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Se meu guia nas montanhas está me levando para o abismo,
prefiro ficar sem guia.
1
Cf. PNR, 2017; Carvalho, 2007.
2
Cf. Cunhal, 1994.
3
Cf. Souza, 2010.
4
Cf. Amziane, 2016; Roubaud-Quashie, 2016.
2
luta parlamentar trocando-a pela ação direta da massa e colocavam dúvidas acerca do
papel ‘dirigente’ do Partido em relação à classe operária” (1981, p. 14).
No item 1 (Origens: o esquerdismo como oposição interna ao movimento
comunista), retomamos as origens históricas da corrente esquerdista, relacionadas com a
oposição (a esquerda, portanto), sobretudo alemã, holandesa e inglesa, dentro do
movimento comunista internacional, na conjuntura revolucionária dos anos 1917-21,
passando pelo refluxo contrarrevolucionário dos princípios esquerdistas após a
ascensão, especialmente na Rússia, na Itália e na Alemanha, dos regimes stalinista,
fascista e nazista, nos anos 1930 e 40. Nos itens 2 (Comunismo de Conselhos vs.
Comunismo de Partido) e 3 (O marxismo heterodoxo de Anton Pannekoek), retomamos
as teses pannekoekistas sobre o poder dos conselhos de trabalhadores, em oposição às
formas partidária e sindical de organização do proletariado no momento revolucionário.
Por fim, delineamos no item 4 (Retorno: o esquerdismo como corrente anticapitalista e
antibolchevique) o retorno dos princípios básicos do esquerdismo a partir da década de
1950, sobretudo durante as tentativas derrotadas de revolução social ocorridas na
Hungria em 1956, na França em 1968, e Portugal em 1974-755.
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A derrota da revolução portuguesa em 1975, junto com o golpe de Estado no Chile no ano anterior, são
vistos por Frederic Jameson como marcos conclusivos do que ele chama de os “longos anos sessenta”
que, segundo a sua periodização, teria se iniciado no final da década de 1950. Cf. Jameson, 1985/1992.
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revolucionária, bem como do papel central da liderança partidária para o triunfo da
revolução proletária – uma tática inteiramente oposta àquela proveniente, sobretudo dos
esquerdistas alemães. Lenin os acusava, em síntese, de negar a legitimidade dos bons
compromissos negociados nos limites do dispositivo político e jurídico burguês por suas
instâncias (políticas e econômicas, partidárias e sindicais) centrais.
Contudo, animados por intelectuais e marxistas heterodoxos como os alemães
Karl Korsch (1886-1961), Otto Rühle (1874-1943) e Paul Mattick (1904-81), os
holandeses Anton Pannekoek (1873-1960) e Herman Gorter (1824-1927), além do
italiano Amadeu Bordiga (1889-1970), tais partidos se rebelavam justamente contra a
imposição, na III Internacional, do modelo russo (bolchevique) de revolução aos países
da Europa Ocidental. Em sua Carta aberta ao companheiro Lenin (1920), Gorter
rebela-se:
5
que chamava de “comunismo de Partido” ou “de sindicatos”6. Seus iniciadores, que em
1920 haviam deixado a III Internacional após a querela com Lenin e os bolcheviques
russos, reagrupar-se-iam, anos depois, nos Estados Unidos, em torno de pequenas
organizações compostas por operários e intelectuais, publicando revistas de crítica
social como a International Council Correspondence (1934-37), Living Marxism (1938-
41) e New Essais (1942-43). Mattick e Korsch emigraram para os Estados Unidos,
respectivamente, em 1926 e 1936, e Rühle para o México, em 1933.
Nesse período de contrarrevolução totalitária na Europa, suas análises refletiam
o rebaixamento do horizonte de expectativas típico dos anos 1930, concentrando-se
particularmente: na crise do capital, agudizada no ano de 1929, e no desemprego
massivo dela decorrente; na ascensão do fascismo na Europa e na destruição do
movimento operário nos países onde ele havia triunfado; no antifascismo e na guerra
civil espanhola, bem como no triunfo da contrarrevolução stalinista na Rússia.
6
Cf. Bricianer, 1969.
7
Cf. Gombin, 1976.
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A maior parte dos teóricos identificados com a corrente comunista-conselhista considerava a URSS um
regime capitalista de Estado, assim como assimilava a burocracia bolchevique a uma classe dominante.
No final dos anos 1930, o ex-trotskista italiano Bruno Rizzi (1901–77), em polêmica com o próprio
Trotski, defendia que o Estado “soviético” nunca teria sido um Estado “operário”, pois a classe capitalista
não havia sido substituída, na Rússia, pela classe operária, mas sim pela sua representação burocrática,
constituída pelos quadros tecnocráticos do Estado e do Partido bolchevique.
6
A forma conselho (soviet, em russo; raete, em alemão) que, em oposição às
formas partido e sindicato, havia surgido no decorrer da primeira revolução russa em
1905 e, mais tarde, se espraiado tanto no processo revolucionário que retornava na
Rússia (1917-21), como na Ucrânia (1917-18), Alemanha (1918-20), Hungria (1919),
Itália (1919-20) e China (1925-27), era vista pelos teóricos esquerdistas como a mais
elevada verdade da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT, 1864-76),
segundo a qual a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios
trabalhadores. Verdade essa que seria absolutamente ignorada tanto pela Segunda
Internacional Comunista (sob a hegemonia dos socialdemocratas alemães, 1889-1914),
quanto pela Terceira (dominada pelos bolcheviques russos, 1919-43) e pela Quarta
(trotskista, fundada em 1938).
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Experiências que, especialmente no biênio 2017-18, completam cem anos. No que diz respeito ao Brasil,
a greve geral de 1917 em São Paulo, bem como o levante anarquista de 1918 no Rio de Janeiro,
testemunhavam que o clima internacional da época era suficientemente persuasivo para influenciar
escolhas sociais e decisões políticas em arenas locais mais restritas. Cf. Addor, 1986.
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permitiram-lhe, negativamente, desenvolver a sua crítica do comunismo de partido, e,
positivamente, formular a sua concepção de comunismo de conselhos” (1972, p. 120).
Segundo Pannekoek, os conselhos não se limitam à gestão econômica (como
defendem algumas correntes operaístas em torno da autogestão da produção), mas
constituem além disso estruturas políticas destinadas a substituir as formas dominantes
de governo. No conselho de trabalhadores, a distinção entre as esferas política e
econômica se interpenetram reciprocamente, juntamente com a abolição da separação
entre especialistas (gestores) e produtores10.
Apesar de privilegiar a luta de classes à evolução das forças econômicas na
análise do processo histórico, o seu materialismo parece cair por vezes no
evolucionismo, bem como numa correlata noção moral de trabalho, que a geração
seguinte de esquerdistas não hesitaria em tomar como “produtivista” (GOMBIN, 1972,
p. 128).
Também sua concepção de proletariado apresentou-se demasiado restritiva, se
comparada com aquela desenvolvida por seus herdeiros do segundo pós-guerra (sócio-
bárbaros, situacionistas). Contudo, conforme assinala com razão Gombin, Pannekoek
“soube transmitir concepções espantosamente modernas ou mesmo proféticas. Vimos o
que ele diz (já em 1947!) da ação direta, da greve selvagem, da ocupação de fábricas”
(Ibidem, p. 129). Concepções às quais se alinhariam a geração seguinte de esquerdistas,
que atuavam na Europa Ocidental entre os anos 1960 e 70.
A partir do final dos anos 1950, sobretudo das tentativas (vencidas) de revolução
na zona oriental de Berlim em 1953, bem como de Budapeste em 1956 (que coincidem,
respectivamente, com a morte de Stalin e a realização do XX Congresso), tem-se o
início da chamada “desestalinização” do PCUS. Nessa nova conjuntura, surgem, na
Europa ocidental, grupos e organizações que, agora absolutamente exteriores aos
aparatos partidários e sindicais tradicionais sob a hegemonia dos comunistas, retomam
10
Tal crítica já havia sido formulada teoricamente no lastro da primeira revolução russa, em 1905, em
textos do russo-polonês Jan Waclav Makhaïski (1886-1926), para o qual a abolição da propriedade
privada, apesar de ser uma condição necessária à implementação do socialismo, não seria, entretanto,
suficiente, caso fossem mantidas a divisão social do trabalho fundada na separação entre o trabalho
manual e o intelectual, entre aqueles que pensam/ensinam e aqueles que executam/aprendem (1905/1981,
pp. 96-109). Ela será retomada nos anos 1950 por Castoriadis (1979), nas páginas da revista Socialisme
ou Barbarie, em sua defesa da autogestão operária, que implicava uma crítica da burocracia gestora e da
separação entre dirigentes e executantes na base da qual ela se edifica.
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alguns princípios da corrente pannekoekista do comunismo de Conselhos da primeira
metade do século, como o Socialismo ou Barbárie (1949-67), a Internacional
Situacionista (1957-72), o Informações Correspondências Operárias (1958-73)11, o
Solidarity (1960-92) e o Combate (1974-78).
Aglutinando intelectuais e marxistas heterodoxos como o franco-grego Cornelius
Castoriadis (1922-97), o francês Guy Debord (1931-94), o anglo-grego Chris Pallis
(1923-2005), o irlandês Phil Mailer (1946 - ) e o português João Bernardo (1946 - ),
esses grupos participariam ativamente (com exceção do grupo de Castoriadis) das
tentativas de revolução de maio-junho de 1968 na França, desempenhando um
importante papel também durante a revolução portuguesa de 1974-75. Na síntese de
João Bernardo:
Tais grupos restauravam, de um lado, uma crítica radical tanto dos regimes
ocidentais quanto do leste, mas, principalmente, da burocracia como nova classe
dominante; uma crítica da concepção leninista de organização e das relações entre a
organização e as massas; uma definição de socialismo como gestão proletária da
produção e de todas as atividades sociais; uma crítica das concepções marxistas
tradicionais sobre a dinâmica e a natureza da crise da sociedade capitalista, e da
concepção tradicional da política como atividade especializada separada das demais
atividades sociais. No Manifesto (1967) do grupo Solidarity, lê-se que:
11
Os contemporâneos Informações Correspondências Operárias (ICO) e Internacional Situacionista (IS)
mantinham entre si tanto pontos de acordo como de desacordo. Do lado situacionista da querela, ver os
textos “Lire I.C.O.” (IS, n° 11, 1967) e “Qu’est-ce qui fait mentir I.C.O.?” (IS, n° 12, 1969). Do outro,
consultar o relato tardio de Henri Simon (2006).
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aqueles que, na indústria e na sociedade em seu conjunto, entram em
conflito com a estrutura social em seu conjunto, entram em conflito
com a estrutura social autoritária atual; ajuda-los a generalizar sua
experiência, a fazer uma crítica global de sua condição e de suas
causas, e desenvolver a consciência revolucionária de massas,
indispensável à transformação total da sociedade (apud BRINTON,
1973, p. 202).
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Os situacionistas compreendem tais unidades em sentido amplo, para além das unidades de produção
fabris, extensiva aos setores da atividade terciária, bem como do trabalho intelectual e dos chamados
10
diversos setores, sendo, ao mesmo tempo, precursoras de novas relações sociais de
produção, verdadeiramente comunistas, transparentes e horizontais: “o Conselho quer
ser a forma de unificação prática dos proletários, dando a si os meios materiais e
intelectuais da transformação de todas as condições existentes, fazendo soberanamente a
sua história” (IS, 1969/1997, p. 631).
Não se trata, para eles, de limitar-se a reverter o regime de propriedade,
passando-o das mãos da burguesia para as da burocracia tecnocrática (através de uma
tomada jacobina do Estado), se tal reversão não for acompanhada, como ocorreu na
experiência russa, de uma profunda alteração nas relações de produção que se
constituem em sua base.
Sabe-se que Pannekoek levava fortemente em consideração a importância do
que chamava de “fator espiritual” no processo revolucionário, uma vez que apenas um
proletariado consciente de suas tarefas e expectativas futuras poderia fazer a
revolução13. Debord também define o conselho de trabalhadores como “o lugar onde as
condições objetivas da consciência histórica estão reunidas” (1967/1997, p. 81) e, no
balanço feito após a revolução de 68, os situacionistas atribuíram a derrota da primeira
greve geral selvagem da história justamente a uma inadequação entre a consciência e a
práxis do movimento, “marca fundamental das revoluções proletárias inacabadas”, bem
como à “falta de consciência histórica, condição sine qua non da revolução social” (IS,
1969/1998, pp. 152-3).
5. Considerações finais.
“serviços”. Cf. Da IS, consultar sobretudo os artigos do 12° (e último) número de sua Revista, de
setembro de 1969.
13
Cf. Mattick, 1960; Bricianer, 1969.
11
Além disso, observa-se como em seu primeiro momento, tal corrente existia
internamente ao movimento comunista internacional, enquanto que, no segundo, ela
passa a se movimentar não apenas de modo inteiramente exterior aos PCs, como
também radicalmente contra eles. Esperamos ter demonstrado como os pressupostos do
antibolchevismo de matiz esquerdista se distinguem radicalmente dos do
antibolchevismo de direita, em suas mais diversificadas matizes, seja nazista ou
fascista, machartista ou tatcherista, sempre incapazes de notar as diferentes nuances
teóricas, táticas e estratégicas, que compõem a multiversa, porém por vezes traumática
experiência histórica do movimento revolucionário moderno. Segundo Paul Mattick,
trata-se de um antibolchevismo radicalmente distinto do antibolchevismo antissemita do
nacional-socialismo alemão, de um antibolchevismo proletário, portanto,
simultaneamente antibolchevique e anticapitalista, dado que “o capitalismo de Estado
bolchevique não é mais do que um tipo de capitalismo” (1960):
12
claramente, como é o caso do esforço de Gombin, da extrema-esquerda, isto é, “dos
numerosos trotskismos aos diferentes maoísmos” de que falava Debord. De acordo com
Gombin:
Referências:
13
ADDOR, Carlos Augusto. A insurreição anarquista no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Dois pontos, 1986.
CARVALHO, Olavo de. O esquerdismo veio para ficar. In: Jornal do Brasil,
26/04/2007. Disponível em: <http://www.olavodecarvalho.org/o-esquerdismo-veio-
para-ficar/>.
CUNHAL, Álvaro. Abril foi uma Revolução libertadora. In: Colóquio “25 de Abril,
ontem, hoje e amanhã”, 18/04/1994. Disponível em: <http://www.pcp.pt/abril-foi-uma-
revolu%C3%A7%C3%A3o-libertadora>. Acesso em: 30/08/2017.
14
LENIN, Vladimir. Acerca do infantilismo “de esquerda” e do espírito pequeno-
burguês, 1918. Disponível em:
<https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/05/05.htm>. Acesso em: 23/08/2017.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o
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SIMON, Henri. ICO et l’IS. Retour sur les relations entre Informations
Correspondance Ouvrières et L’Internationale Situationniste. Paris: Échanges et
Mouvement, 2006.
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Ideal e o Projecto Comunistas”, 14/06/2010. Disponível em:
<http://www.pcp.pt/sessao-publica-partido-com-paredes-de-vidro-partido-ideal-
projecto-comunistas>. Acesso em: 30/08/2017.
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