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100 anos do fascismo: 'O perigo atual é

que democracia vire repressão com


apoio popular', diz historiador
 Angelo Attanasio
 Da BBC News Mundo

24 março 2019

CRÉDITO,GETTY IMAGES
Legenda da foto,
Benito Mussolini fundou o 'Fasci italiani di combattimento' em 23 de março de 1919,
em Milão, na Itália
Existe o perigo de um retorno do fascismo no mundo?
Quando questionado sobre o assunto, o historiador Emilio Gentile, considerado
na Itália o maior especialista vivo sobre o fascismo, dá uma resposta
contundente: "Absolutamente, não".
No entanto, nos últimos tempos, os presidentes dos Estados Unidos, Rússia,
Brasil, Hungria e muitos outros líderes políticos das Américas e da Europa
foram rotulados como fascistas por suas políticas de imigração ou por seu
nacionalismo. Mas é correto definí-los assim?

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movimento
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Gentile conhece profundamente o fascismo, porque dedicou toda sua vida


acadêmica a analisá-lo.

CRÉDITO,EMILIO GENTILE
Legenda da foto,
O historiador italiano Emilio Gentile é um dos maiores especialistas em fascismo do
mundo
Este movimento político nasceu oficialmente na noite de 23 de março de 1919,
quando Benito Mussolini (1883-1945) fundou em Milão o grupo Fasci Italiani di
combattimento.
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Fim do Talvez também te interesse
O grupo reuniu ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial, um conflito que
deixou a Itália, como quase toda a Europa, mergulhada em uma profunda crise
política, econômica e social.
Depois de alguns anos, Mussolini chegou ao poder graças ao apoio do rei
Victor Emmanuel 3º, de grandes empresários e do Vaticano, bem como por
meio do uso da violência.
Em 1925, ele assumiu o controle de todos os poderes do Estado e transformou
um regime parlamentar e democrático em um Estado totalitário regido pela total
falta de liberdades individuais, políticas, organizacionais e de pensamento.
Mussolini e seu movimento também se tornaram uma referência para regimes
autoritários em todo o mundo, particularmente para Adolf Hitler (1889-1945).
Ele apoiou o regime nazista alemão durante a Segunda Guerra Mundial e,
como Hitler, foi derrotado em 1945.
Mas isso não significou a derrota do fascismo como ideologia política, que
permanece viva em muitos movimentos da extrema direita. Mas o que é
exatamente o fascismo?
O historiador Stanley G. Payne afirmou em um de seus vários estudos sobre o
assunto que "continua sendo o mais indefinido dos termos políticos mais
importantes". Cem anos após sua aparição na história, conversamos com
Gentile sobre o tema.

BBC News Mundo - Sobre o que falamos quando falamos de "fascismo"?


Emilio Gentile - Devemos distinguir entre o fascismo histórico, que é o regime
que, a partir da Itália, marcou a história do século 20 e se estendeu à
Alemanha e a outros países europeus no período entre as duas guerras
mundiais, e o que é freqüentemente chamado de fascismo depois de 1945, que
se refere a todos aqueles que usam da violência em movimentos de extrema
direita.

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Legenda da foto,
Matteo Salvini, ministro do Interior italiano, e Marine Le Pen, líder do partido francês
Rassemblement National, criaram uma aliança eleitoral
BBC News Mundo - Quais são as diferenças entre as duas definições?
Gentile - Há uma diferença substancial, porque vários movimentos de extrema
direita já existiram antes do fascismo e não geraram um regime totalitário.
BBC News Mundo - O que se entende por "extrema direita"?
Gentile - Qualquer movimento que se oponha aos princípios da Revolução
Francesa de igualdade e liberdade, que afirma a primazia da nação, mas sem
necessariamente ter uma organização totalitária ou uma ambição de expansão
imperialista. Sem o regime totalitário, sem a submissão da sociedade em um
sistema hierárquico militarizado, não é possível falar de fascismo.
BBC News Mundo - Então, quando se pode falar de "fascismo"?
Gentile - Podemos falar de fascismo ao nos referir ao fascismo histórico,
quando um movimento de massas organizado militarmente tomou o poder e
transformou o regime parlamentar em um Estado totalitário, ou seja, em um
Estado com um partido único que procurou transformar, regenerar ou até criar
uma nova raça em nome de seus objetivos imperialistas e de conquista.

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Legenda da foto,
Benito Mussolini e Adolf Hitler foram aliados durante a Segunda Guerra Mundial
BBC News Mundo - Isto é, somente quando nos referimos a esta
experiência específica?
Gentile - Sim, para o período histórico entre as duas guerras mundiais, quando
ainda havia a vontade de conquistar e se expandir imperialmente por meio da
guerra. Se estas características ainda estivessem presentes hoje, poderíamos
falar em fascismo. Mas me parece completamente impossível. Mesmo aqueles
países que aspiram a ter um papel hegemônico procuram fazer isso por meio
da economia, e não da conquista armada.
BBC News Mundo - O senhor acha que existe o perigo de um retorno do
fascismo?
Gentile - Não, absolutamente, porque na história nada volta, nem de um jeito
diferente. O que existe hoje é o perigo de uma democracia, em nome da
soberania popular, assumir características racistas, antissemitas e xenófobas.
Mas em nome da vontade popular e da democracia soberana, que é
absolutamente o oposto do fascismo, porque o fascismo nega totalmente a
soberania popular. Esses movimentos, no entanto, se definem como uma
expressão da vontade popular, mas negam que este direito possa ser
estendido a todos os cidadãos, sem discriminações entre os que pertencem à
comunidade nacional e aqueles que não.
BBC News Mundo - Donald Trump, Vladimir Putin, Jair Bolsonaro, Viktor
Orbán e outros líderes políticos foram chamados de fascistas por suas
políticas de imigração ou seu nacionalismo. É correto defini-los assim?
Gentile - Se afirmamos isso, poderíamos dizer então que todos são homens e
brancos. Mas, ao mesmo tempo, não entenderíamos a novidade destes
fenômenos. Não se trata de aplicar o termo "fascista" para todos os contextos,
mas de entender quais são as causas que geraram e fizeram proliferar estes
fenômenos. Em todos esses países, esses movimentos extremistas se
afirmaram com base no voto popular.
BBC News Mundo - O senhor acha então que a palavra "fascismo" está
sendo abusada para definir estes governos?
Gentile - Na minha opinião, é um grande erro, porque não nos permite
compreender a verdadeira novidade destes fenômenos e o perigo que eles
representam. E o perigo é que a democracia possa se tornar uma forma de
repressão com o consentimento popular. A democracia em si não é
necessariamente boa. Só é boa se realiza seu ideal democrático, isto é, a
criação de uma sociedade onde não há discriminação e na qual todos podem
desenvolver sua personalidade livremente, algo que o fascismo nega
completamente. Então, o problema hoje não é o retorno do fascismo, mas
quais são os perigos que a democracia pode gerar por si só, quando a maioria
da população - ao menos, a maioria dos que votam - elege democraticamente
líderes nacionalistas, racistas ou antissemitas.

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