Você está na página 1de 9

DOSSIÊ – O GENOCIDA CRISTÃO

Por Gilberto Miranda Junior

Jair Messias Bolsonaro, o carrasco de nossa República segue incólume, intocável, ceifando
vidas de forma irresponsável e com o apoio de uma base religiosa nefasta muito mais
preocupada com o dízimo do que com a vida de seus fiéis. Praticamente sem exceção, todos os
seguidores de Bolsonaro se dizem cristãos e já passou da hora de cobrarmos da facção
religiosa que lhe dá apoio sua responsabilidade de forma mais contundente e direta. Até onde
serão capazes de ir? Até onde estarão dispostos a matar, manipular e desgraçar a vida
brasileira em nome de seus interesses, mas dizendo ser interesse de Deus?

Mais do que nunca é preciso dizer, bradar, escrever nos muros do mundo as palavras de Maria
Lacerda de Moura, mineira anarquista do século passado:
Cristo é um mito muito alto: não cabe dentro do Cristianismo… O Cristianismo é anti-
cristão. É a negação absoluta das palavras de doçura e amor de Jesus de Nazaré. O
Cristianismo para mim é a significação mais perfeita de uma civilização voraz de
déspotas e escravos. (MOURA, 2018, p.17)

Embora Maria Lacerda se referisse à espúria aliança do catolicismo com os regimes fascistas do
início do século XX, o cristianismo mais uma vez se associaria ao que é de mais desumano,
cruel e nefasto nas relações de poder da contemporaneidade. A Igreja Católica, agora
comandada por um Papa de viés menos retrógrado, ainda abriga em seu interior uma grande
quantidade de reacionários nostálgicos do poder que exerciam sobre corpos e
comportamentos por várias gerações. Não é raro padres reproduzindo o que é de mais abjeto
e atrasado para alimentar a sanha anticomunista revivida pelo neo-reacionarismo
contemporâneo (um prato requentado de fundo supremacista branco).

Olavo de Carvalho, mentor (des)intelectual da cúpula brasileira, tanto quanto Steve Bannon,
são católicos. Alexandr Dugin, outro mentor próximo a estados autoritários de renome
mundial, professa o cristianismo pela Igreja Ortodoxa Russa. Claro que essa tríade, assim como
muitos cristãos atuantes nos governos populistas de direita atualmente, professam
externamente o cristianismo enquanto formulam suas teorias mirabolantes sob influência da
corrente tradicionalista esotérica (Perenialismo), inspirados por René Guenon e Julius Évora
(entusiasta dos governos fascistas de Mussolini e Hitler).

No entanto, em terras americanas, tanto nos EUA ao Norte, quanto na América Latina ao Sul,
um fenômeno mais avassalador tem dado suporte fundamental para a consolidação (ao menos
eleitoral) da ascensão populista de extrema-direita no poder: o evangelismo pentecostal. Não
é segredo que o neopentecostalismo começou nos EUA e logo deu as graças por aqui, mas é
preciso fazer certa contextualização, sob pena de sermos levianos ou não abordarmos esse
fenômeno sem sua devida consistência.

One Nation under God

Segundo o pesquisador e professor Reginaldo Carmello (MORAES, 2019), desde a fundação das
treze colônias norte-americanas a religião se cruza com sua história política. No entanto, a
mitologia em torno da Nação Cristã é fruto de um árduo trabalho de imaginação e propaganda
em meados dos anos 30. Foi exatamente como reação ao prenúncio de um Estado de Bem
Estar Social, o New Deal de Franklin Delano Roosevelt – após a Grande Depressão – que essa
ideia começou a ser gestada e engendrada. Vista como antessala do bicho-papão Comunismo,
as reformas econômicas, regulamentação do mercado financeiro, obras públicas e as políticas
sociais tiveram forte oposição dos grandes empresários americanos: ultraconservadores e,
obviamente, cristãos. O lema “Liberdade sob as ordens de Deus” foi amplamente difundido
pelos ativistas religiosos recrutados por esses grandes magnatas.

O plano era simples. Contando com a simpatia de muitos pastores protestantes, o interesse de
classe do grande empresariado precisava criar a ideia de que o capitalismo era a própria
encarnação do cristianismo, sendo o cristianismo a sua sublimação espiritual: “a realização da
Glória de Deus” (MORAES, 2019). À J. Walter Thompson, a mais antiga agência de publicidade
do mundo e especializada em disseminação de hábitos de consumo, coube a tarefa de
formular uma grande campanha de incentivo ao novo produto no mercado: Cristo. Assim,
milhares de fiéis foram arrebanhados e passaram a frequentar os estábulos, ou melhor,
templos, espalhados pelo país, fomentando:
(…) o comparecimento periódico ao supermercado do espírito, a igreja. Na base do
‘encontre você mesmo através da fé’, a campanha levava todo mundo para os
templos, que passavam a oferecer uma grande variedade de atrações. (MORAES,
2019)

Aos poucos, de forma deliberada e planejada, surgiu uma espécie de “americanismo” baseado
numa “religião civil” em oposição à ameaça comunista e sua versão interna insidiosa: o
suposto coletivismo estatista de Roosevelt. O plano envolvia tanto acesso a parlamentares do
Partido Republicano quanto o acesso e posse de mídias de massa, como jornais, revistas,
rádios e até estúdios de cinema. Na chegada da TV nos anos 50, o alcance passou a ser
exponencial. Não à toa, em 1956, sob o comando do 34º presidente estadunidense,
Eisenhower, a frase “In God We Trust” foi incorporada nas notas de dólar. Sob o comando de
Eisenhower – a primeira e uma das mais importantes conquistas do movimento – a
“cristianização” dos americanos se massificou.

Da mesma forma que os sindicatos foram e são a âncora social do partido democrata, os
espaços sociais criados pelo movimento evangélico foram e são a âncora social dos
republicanos. A diferença é que os democratas possuem uma relação um tanto ambígua com a
organização sindical nos EUA, enquanto que o movimento evangélico só cresceu e prosperou
sob a proteção dos republicanos. Ao criarem não apenas templos, mas espaços de socialização
e troca, acabaram por formar uma cultura própria e, de certa forma, imune aos apelos do
mundo humanista laico. Afinal, sendo o mundo real um desdobramento de um mundo
espiritual comandado por Deus, toda realidade é parte de um plano cujas agruras e privações
se constituem em desafios divinos de fé, resiliência e perseverança:
O objetivo do movimento era religioso e político ao mesmo tempo: purgar os
pecados coletivos, nacionais, os pecados da América — o ‘homossexualismo’, o
aborto, o feminismo, o humanismo secular que se opunha à fé. A família nuclear
estava ameaçada. Era preciso defendê-la no espaço público. (MORAES, 2019)

Mais do que tudo, era a questão ideológica que unia de um lado o liberalismo econômico dos
conservadores e sua tara por controle social de comportamentos e, de outro, a ganância dos
pastores pentecostais. O American Dream que pregava o esforço individual como garantia de
sucesso financeiro, se encaixava como uma luva na ideia de retidão e austeridade para se
conseguir o reino dos céus. Ser cristão, estar filiado a uma igreja e pagar dízimos, garantia
parte dos requisitos para ser abençoado no capitalismo. A Teologia da Prosperidade é o
equivalente à meritocracia liberal: pague dízimo (com sacrifício e esforço individual) que sua
recompensa será na terra mesma, com bens e recursos acumulados concedidos por Deus. É
por isso também que uma das doutrinas pentecostais envolve o conceito de Batalha Espiritual
(Spiritual Warfare). A ideia é construir uma tautologia retórica em que tudo o que acontecer
terá uma explicação que torna o indivíduo cativo dentro de um círculo que se auto-alimenta
com foco na continuidade do próprio processo.
Ou seja: há forças malignas disputando sua alma com Deus e você deve vencê-las e obter a
recompensa divina através de prosperidade material. Se você não conseguir prosperidade é
porque não teve fé o suficiente, portanto deve continuar se submetendo e se esforçando até
conseguir. Os possibilitadores dessas recompensas, como emissários de Deus, além dos
pastores, claro, são os empresários: seres abnegados que correm todo o risco em um mercado
selvagem para que você obtenha sua redenção. A classe empresarial constitui os novos
patriarcas do cristianismo, aqueles que irão trilhar e orientar o caminho de nossa salvação
desde a terra.

A união dessa lógica e o deslocamento conveniente sobre como essas forças malignas se
apresentam na realidade, torna tudo muito manipulável a favor do que as lideranças religiosas
determinam. No caso, escolheu-se representar essas forças (de acordo com os desejos dos
grandes capitalistas) por qualquer medida imposta pelo Estado que contrariasse sua ampla
liberdade em explorar o trabalho humano e acumular riqueza com isso. O grande mal,
portanto, torna-se o Estado, o Comunismo, o Islamismo e toda e qualquer ideia anticapitalista
que ameace a livre iniciativa dos grandes patriarcas modernos.

Embora Reagan, nos anos 80, e Bush (tanto pai quanto filho) tivessem obtido sucesso com o
apoio massivo dessa rede cristã (favorecendo aqueles que estavam por trás de suas eleições),
o que mais intriga quem se depara com o cenário mais recente é por que, afinal de contas,
essa rede apoiou e ainda apoia Trump? Mesmo sendo notoriamente hipócritas, Reagan e os
Bushs tentavam mostrar certa decência junto a seu eleitorado. Trump não. Mentiroso
contumaz, disse em áudio vazado que pegava mulheres pela vagina, foi acusado de ter tido
encontros com uma atriz pornô mesmo casado e afirmou que os imigrantes mexicanos não
passam de degenerados estupradores. Mais ainda: Hillary Clinton, sua adversária na primeira
disputa, é cristã. Mas isso não fez diferença: mais de 80% dos evangélicos brancos dos EUA
votaram em Trump em 2016.

A antropóloga Tanya Marie Luhrmann tem, pelo menos, três explicações para esse fenômeno.
A primeira e talvez mais importante tem a ver com pautas de longo prazo. A nomeação da
Suprema Corte nos EUA coloca membros para decidir sobre a vida estadunidense por muito
mais tempo que um mandato presidencial. Muito embora os evangélicos acreditassem que
comportamentos imorais na vida privada fossem prejudiciais para o desempenho de funções
públicas, bastou Trump dizer em campanha que nomearia um juiz para derrubar a interrupção
voluntária de gravidez (caso Roe vs Wade), 72% dos eleitores cristãos passaram a ser mais
flexíveis com esse vínculo moral. Outra razão que parece resolver o suposto conflito moral que
alguns cristãos poderiam ter sentido com Trump na presidência é a própria Bíblia. Segundo
Luhrmann a Bíblia conta que:
David skips out on a battle, and, while his men are fighting, spies on a woman
bathing naked. He learns that she is married, but he forces her to have sex with him
anyway. He can do this because her husband is one of those fighting. When the
woman tells him she is pregnant, he first brings the husband back and tries to get the
man to sleep with her, so the man will assume that the child is his. But the man is
too righteous to have sex when the men under his command are fighting. So David
deliberately sends him back to the front of the battle to get him killed. He does this
so that no one discovers his own adultery. Yet the Bible tells us that David is a man
after the Lord’s own heart. Acts 13:22: “*God+ raised up unto them David to be their
king; to whom also he gave their testimony, and said, I have found David the son of
Jesse, a man after mine own heart, which shall fulfil all my will.

Davi foge de uma batalha e, enquanto seus homens lutam, espia uma mulher se
banhando nua. Ele descobre que ela é casada, mas a força a fazer sexo com ele
mesmo assim. Ele pode fazer isso porque o marido dela é um daqueles que lutam.
Quando a mulher lhe diz que está grávida, ele primeiro traz o marido de volta e tenta
fazer o homem dormir com ela, então o homem vai presumir que o filho é dele. Mas
o homem é muito justo para fazer sexo quando os homens sob seu comando estão
lutando. Então Davi deliberadamente o manda de volta à frente da batalha para
matá-lo. Ele faz isso para que ninguém descubra seu próprio adultério. No entanto, a
Bíblia nos diz que Davi é um homem segundo o coração do Senhor. Atos 13:22:
“*Deus+ suscitou-lhes Davi para ser seu rei; a quem também deu seu testemunho.
(LURHMANN, 2017) – tradução nossa.

Se o próprio Deus (segunda a Bíblia), afirma que um mentiroso adúltero, estuprador e


assassino é um “homem segundo o coração do Senhor“, quem de nós poderia condenar Trump
se ele está a fazer algo de nosso interesse? Ninguém. Essa paz de espírito canalha e
conveniente não é apenas algo que a Bíblia permite em suas narrativas, mas é algo que todo
canalha procurará nela para justificar suas escolhas nefastas e, até mesmo, anticristãs. O mais
emblemático é que esses arranjos feitos pelas cúpulas dos grandes templos junto aos
estrategistas de campanha de Trump acabaram por soar ao eleitor comum como um sinal de
Deus.

Por fim, Lurhmann fala sobre o imaginário criado pelos evangelistas neopentecostais acerca do
“fim dos tempos” e a volta do Salvador. Não só Steve Bannon escreveu e apela para essa teoria
do caos (Kali Yuga antes da Era de Ouro), como os próprios cristãos literalistas (25% do total) a
propagam com base no Apocalipse. Eles acreditam que a salvação virá depois de um período
de caos e catástrofe iminente e Trump tem uma missão especial na salvação do mundo. Em
algumas versões Trump é o próprio salvador. Não por acaso a teoria da conspiração QAnon
tem tantos adeptos cristãos e elegeu Trump como salvador de todos contra o Deep State
(Estado Profundo) comandado por canibais pedófilos satanistas que querem levar o mundo a
um governo único.

Trump não só alimentou tudo isso, como sinalizou claramente que iria realizar o que os
cristãos tanto desejam: “Vamos restaurar a fé como o verdadeiro fundamento da vida
americana” (FANG, 2020). Em julho de 2020, notícias davam conta que Trump teria apoio de
90% dos evangélicos para sua reeleição, ou seja, mais ainda do que no primeiro mandato.

A compreensão de todo quadro exposto e seu desdobramento em terras brasileiras ficariam


incompletas sem a inserção de um fenômeno que, não só apoia Trump dentro desse
imaginário paranoico, como está intimamente ligado com o fundamentalismo religioso cristão:
a Alt-Right.

Deus Vult

A Direita Alternativa (ou Altright) constitui dissidência e franca oposição ao Partido


Republicano estadunidense, embora seus membros sejam votantes e colaboradores de
membros do partido que demonstrem o extremismo desejado por eles. Sua oposição, porém,
não os colocam mais perto dos Democratas. Ao contrário, ela se dá, justamente, porque eles
entendem que os conservadores deveriam se distanciar ainda mais. Ou seja, eles são a
extrema-direita que critica o posicionamento pouco à direita dos republicanos em geral. Viram
em Trump um outsider capaz de resgatar o conservadorismo ao nível que eles almejam. Mais
do que isso, formam por si só uma constelação de teorias e visões de mundo que, embora por
vezes conflitantes, possuem muito mais pontos em comum do que não.

Oficialmente, o termo Alt Right foi criado em 2008 por Richard Spencer, supremacista branco
que defende um etnoestado e quer preservar o que ele chama de Civilização Ocidental Anglo-
Saxã separada das demais, colocando-a como ápice da espécie humana. Suas crenças
envolvem não só uma hierarquia racial (muitas vezes dita de forma eufemística como HBD –
Biodiversidade Humana), como social e de gênero. Ao misturar paganismo nórdico com a
estética medieval cristã, Spencer não pode ser classificado estritamente como cristão, porém
seus seguidores em quase sua totalidade vão além da estética cristã que molda seus
imaginários como modelo civilizacional: são cristãos.
Embora faça ressoar com propriedade os supremacistas brancos e o nacionalismo
religioso da Ku Klux Klan (que, inclusive participa de seus comícios e manifestações),
não é possível reduzir a Alt Right a uma mera atualização desses movimentos:

Ao contrário da Klan dos anos 1920, que era uma ordem nacional com capítulos
locais, o alt-right é uma rede difusa de líderes e apoiadores que reivindicam o manto
do alt-right. Eles contam com o Twitter (especialmente as campanhas de hashtag),
jornais online, blogs e até mesmo grupos de reflexão como o National Policy Institute
para distribuir sua mensagem. No Radix Journal de Spencer , Alfred W. Clark, um
promotor da direita alternativa, escreve sobre a variedade de grupos que compõem
o movimento: “identitários e arqueofuturistas, realistas raciais e blogueiros HBD
[biodiversidade humana], a Nova Direita Europeia (ENR), edgelords, neo-reação
(NRx) e reação (Rx), cristãos trad , neopagãos, nacionalistas brancos, PUAs [artistas
do pick-up+, etc. ” (BAKER, 2016)

A lista estaria mais completa, de acordo com os centros de investigação do extremismo


mundias, se incluíssem também os neonazistas, Proud Boys, Q-Anon, neoconfederados e uma
constelação de racistas e extremistas que não só estiveram presentes na manifestação Unite
The Right (manifestação ocorrida em Charlottesville, Virgínia, resultando na morte de um
manifestante contra o comício), como abrigam em seus quadros maioria absoluta cristã
protestante e católicos. Por ocasião da tentativa de motim realizada em Janeiro de 2021, após
a derrota de Trump, os Proud Boys marcharam rumo ao Capitólio e, à certa altura, pararam e
ajoelharam pedindo “reforma e avivamento” em nome de Jesus (DIAS e GRAHAM, 2021).
Banners escritos “JESUS 2020” em azul e vermelho, cruzes brancas com nome de Trump e
camisetas com dizeres anti-semitas completaram a bizarra cena.

Mais do que estritamente cristão como era a Ku Klux Klan (que exortava seus seguidores a
imitarem Jesus como modelo masculino, incentivava os membros a frequentarem igrejas e
tinham a bíblia e a cruz como símbolos sagrados da ordem), a Alt Right “ama a cristandade,
mas rejeita o cristianismo” (BAKER, 2016). Muitos acusam o cristianismo de hoje de incentivar
a adoção de não-brancos ao invés de incentivar a procriação dentro da raça branca. Ou seja, a
crítica está muito mais ligada a uma prática atual, de viés social, contrária ao racismo que eles
almejam, do que ao próprio cristianismo, já que o consideram precursor da civilização branca
que eles querem proteger.

A maioria daqueles que se identificam dentro da Direita Alternativa professam uma visão
idílica da Idade Média e cultuam uma espécie de Guerra Santa: um retorno às Cruzadas para
conter a “islamização” do mundo e garantir a supremacia branca cristã no Ocidente. Por isso
disseminam a expressão Deus Vult, expressão em latim que significa “Deus Quer” atribuída ao
Papa Urbano II no anúncio da Primeira Cruzada no ano de 1.095 de nossa era.

A questão judaica é outro ponto de aproximação e distanciamento entre os cristãos da ultra-


direita e a Alt Right. Esse fato ficou evidente a partir da tentativa de Trump (imitada
posteriormente por seu fantoche Bolsonaro) em transferir a embaixada dos EUA para
Jerusalém. Apesar de grande parte dos cristãos (notadamente aqueles que abraçaram o
extremismo da Alt Right) comungarem sentimentos anti-semitas, parte da base de apoio
evangélica de Trump se situa em uma linha teológica cristã do sec. XIX chamada
Dispensacionalismo. Esta doutrina teológica possui como características principais uma
interpretação literal da Bíblia e a ideia (baseada no Apocalipse) que Jesus irá voltar para
assumir o trono do Rei Davi em Jerusalém. Para tanto é necessário que Israel seja “limpa” de
todas as outras religiões e seja entregue exclusivamente aos Judeus para que se cumpra a
profecia da volta de Jesus (CORDEIRO,2018). A vitória de Trump significaria, para esses
cristãos, a antecipação do Juízo Final e a salvação tão esperada pelos fiéis.

Por outro lado, desde 2016, tem se tornado rotineiro ataques terroristas domésticos anti-
semitas nos EUA. Em carta publicada no 8chan antes do ataque à sinagoga Chabad de Poway
em San Diego, dia 27/04/2019, o atirador fez citações bíblicas e teológicas cristãs, para delírio
e apoio do público do fórum online. Diferente da ideia de que os cristãos devessem libertar
Jerusalém para os Judeus para a volta de Jesus, muito cristãos encontram justificativas bíblicas
e teológicas para resgatar Jerusalém dos Judeus e dos Islâmicos por serem o verdadeiro povo
escolhido de Deus, já que pairam sobre os hebreus a acusação de serem os responsáveis pela
condenação e crucificação de Jesus (BATT, 2019).

De qualquer forma é evidente o imbricamento entre cristianismo e extrema-direita, seja ela de


fundo ultraliberal ou fascista (no fundo, ambos se unem por caminhos distintos), meramente
estético ou com adaptações teológicas alternativas. As ideias de fundo, com alguns detalhes
(uns mais importantes e outros não) são muito próximas ou até idênticas: uma Ordem Mundial
Globalista (com ou sem Judeus envolvidos) que pretende a instauração de um Governo Único
como ápice da secularização e criação de direitos inaugurados na Revolução Francesa,
eliminação dos valores que fundam a chamada Civilização Ocidental (representada
etnicamente por brancos protestantes anglo-saxões – WASPs – White Anglo Saxon Protestant)
e a disseminação de relativismo de gênero, multiculturalismo, controle estatal e Comunismo.
Tudo que é atribuído a essa Nova Ordem deve ser rejeitado integralmente, inclusive a ciência
institucional desenvolvida pelos órgãos internacionais, tidos como globalistas. Por isso outros
movimentos acabam se agregando e engrossando o caldo esdrúxulo de todo esse cenário,
como o movimento anti-vacina e a negação de todas as recomendações relativas à contenção
da proliferação de pandemias e vírus.

Segundo o New York Times, dos 41 milhões de adultos brancos evangélicos dos EUA, cerca de
45% afirmaram se recusar a receber a vacinação contra o COVID-19. As justificativas são as
mais variadas, mas centram-se nas questões religiosas, políticas e científicas todas alimentadas
por fakenews e sensacionalismos oriundos de pastores e teóricos de conspiração da extrema-
direita.

Este quadro assustador transcrito aqui é necessário para se entender como o plano genocida
de Bolsonaro tem dado certo sem que possamos fazer mudanças significativas, sem emplacar
seu afastamento ou processá-lo em tribunais internacionais. Vamos entender melhor isso nas
linhas a seguir.

Brasil acima de tudo, Deus acima de todos

Não foi por acaso que Ernesto Araújo, nosso incompetente ex-ministro das Relações
Exteriores, comparou Bolsonaro a Jesus Cristo na formatura de novos chanceleres em maio de
2019. Araújo teve sua indicação ao cargo feita pelo Olavo de Carvalho com efusiva anuência de
Eduardo Bolsonaro e Filipe G. Martins (olavista com acesso direto a Bolsonaro). Foi esse
mesmo Ernesto quem escreveu um artigo publicado na Revista Cadernos de Política Exterior
conclamando Trump como salvador do Ocidente Cristão. Toda retórica Alt Right está presente
no texto e nas falas de Ernesto, seja fazendo alarmismo contra a tal Nova Ordem Mundial, o
Globalismo, “Ideologia de Gênero” ou ajudando o genocida maior da república desdenhar da
pandemia e desacreditar as medidas de combate ao contágio. Seu plano era que o Brasil
participasse do que ele chama de “metapolítica”, alinhado ao pseudo-salvacionismo trumpista
de extrema-direita religiosa:
(…) o Brasil necessita de uma metapolítica externa, para que possamos situar‑nos e
atuar naquele plano cultural‑espiritual em que, muito mais do que no plano do
comércio ou da estratégia diplomático‑militar, estão‑se definindo os destinos do
mundo. Destinos que precisaríamos estudar, não só do ponto de vista da geopolítica,
mas também de uma “teopolítica”. (ARAUJO, 2017, p. 354)

Teopolítica? Mais adequado à mentalidade medieval e retrógrada desses que tomaram de


assalto a República, TEOCRACIA. É isso que pretendem. Araújo é católico, tal como seu guru
Olavo de Carvalho. Em sessão no Senado Federal, convocado para explicar a relutância e
incompetência brasileira na compra do imunizante para a COVID-19, foi acompanhado por
Filipe Martins (fanático seguidor de Olavo) que protagonizou algo absolutamente bizarro: um
gesto característico da Alt-Right supremacista para sinalizar White Power.

Mais do que uma aproximação eleitoreira, a participação de evangélicos no Governo Federal


só não ultrapassa a de militares, porém é muito mais numerosa no entorno do poder do que
de forma direta, em cargos públicos. Tal como nos EUA, a cristianização do Brasil vem sendo
gestada e desenvolvida há décadas, desde 1970, com impulso considerável na
redemocratização do país.

Ronilson Pacheco, pesquisador da Fundação Ford e mestrando em Teologia na Universidade


de Columbia, EUA, localiza no século XIX o início das missões evangélicas estadunidenses em
solo brasileiro. As raízes conservadoras que frutificaram aqui tem resquícios nos migrantes
missionários remanescentes da derrota da Guerra de Secessão, formados por brancos racistas
que logo se aproximaram das elites agrárias:
A presença evangélica no Brasil tem uma herança do universo evangélico
conservador dos Estados Unidos. A formação da nossa igreja evangélica se dá com
uma imigração significativa de evangélicos cristãos do sul dos Estados Unidos, que
perdem a Guerra de Secessão [1861-1865] e vão fazer missões no Brasil. Eles têm um
projeto de evangelismo, conquistar territórios, povos, converter almas, abrir novas
igrejas. E é um um projeto profundamente conservador, inclinado à escravidão como
parte da economia. É uma igreja que cresce associada à perspectiva elitista e de
poder. Claro que há fissuras, mas há essa influência.

No início do século 20, sobretudo com a ampliação do campo pentecostal, mais


ligado à Assembleia de Deus, eles constroem uma relação com governadores,
presidentes, e isso se intensifica durante a ditadura militar. Há um apoio forte à
ditadura de algumas igrejas, como as convenções da Assembleia de Deus. Essa
parceria atravessa a ditadura e entra na redemocratização. - Ronilson Pacheco in
Deutsche Welle, 21/02/2021.

Apesar do predomínio católico em boa parte do século XX no Brasil, foi na década de 70 que a
ascensão do neopentecostalismo se iniciou com a fundação da Igreja Evangélica Pentecostal
Brasil para Cristo, Deus é Amor e a Igreja Universal do Reino de Deus. Hoje, grandes pastores e
seu maquinário político sócio-religioso dão base de sustentação a Bolsonaro. Edir Macedo,
Silas Malafaia, Valdomiro Santiago e R. R. Soares formam uma espécie de governança baseada
no fundamentalismo e na exclusão que compõe o Cristofascismo de Bolsonaro, termo usado
pelo teólogo Fábio Py.

A influência evangélica vem crescendo ano a ano a partir da década de 1970. No último censo
de 2010, o IBGE apontava um crescimento de 61% da população evangélica no país em um
período de 10 anos (QUEIROZ, 2019. p 12). No início, considerada como um dos aspectos da
vida privada dos fiéis, a religião começou a estender seus domínios no plano público e político,
elegendo parlamentares e pautando suas crenças na esfera institucional.

Mesmo ocasionalmente e por interesses próprios apoiando um ou outro candidato à


esquerda, os grandes templos do Brasil sempre foram avessos a pautas sociais e de minorias.
Seja por falta de candidato com possibilidade majoritária ou por acordos para não se discutir
pautas identitárias, parte do governo Lula e Dilma obtiveram apoio evangélico. Não se pode
dizer que foi exclusivamente por questões econômicas que a esquerda tenha perdido apoio. A
influência estadunidense e os movimentos evangélicos que se associaram aos interesses
capitalistas tiveram grande influência ideológica no pensamento brasileiro. A ascensão da
Teologia da Prosperidade e seu total alinhamento ideológico com o Liberalismo Econômico
tiveram papéis importantes, faltando apenas um candidato que pudesse reunir condições de
representá-los, seja na pauta de costumes de fundo religioso, seja na pauta econômica de
fundo liberal.

Segundo Magali do Nascimento Cunha, doutora em comunicação, em entrevista ao Instituto


Humanitas Unisinos, a ligação de Bolsonaro com o meio evangélico não é tão recente assim.
Ao menos é possível destacar o ano de 2013 como provável início, quando, ainda deputado,
Bolsonaro apoiou o Pastor Marco Feliciano para presidir Comissão de Direitos Humanos e
Minorias da Câmara Federal (CDHM). Feliciano, à época, além de estar enfrentando um
processo por estelionato, estava respondendo ao STF por afirmações racistas e homofóbicas
publicadas em seu Twitter, atribuindo uma maldição de Noé ao povo africano por
“homossexualismo”.

Em 2016, Bolsonaro se filia ao PSC (Partido Social Cristão). Apesar de católico foi batizado no
Rio Jordão (tal como Jesus por João Batista) pelo deputado Pastor Everaldo (preso pela PF em
2020). A partir daí, suas ligações com os grandes templos, seu antipetismo visceral, seus
elogios a Eduardo Cunha (também evangélico, corrupto e presidente da Câmara dos
Deputados em 2016 – tendo sido responsável pelo inicio do processo de impedimento de
Dilma Roussef), consolidou sua preferência entre o eleitorado:
Bolsonaro foi muito bem instruído no discurso que alimentou a pauta de costumes
de sua campanha, afetando fortemente o imaginário evangélico conservador calcado
na proteção da família tradicional, na heteronormatividade e no controle dos corpos
das mulheres. Foi muito caro a muitos evangélicos imaginar ter no poder maior do
país alguém defensor de suas pautas, como ‘homem simples, do povo, que fala o que
pensa’ e isto parece ter sido um propulsor do voto que descarregaram em
Bolsonaro. (Magali do Nascimento Cunha in FACHIN, 2019)

Mas não se enganem. Assim como Trump, pautar ideias caras ao conservadorismo religioso
não garante por si só uma eleição majoritária. A ação direcionada, intencional e massiva dos
pastores tiveram um peso essencial na ascensão e vitória de Bolsonaro. E como aconteceu nos
EUA, aqui no Brasil não poderia ter sido diferente. Nossas histórias têm muitas semelhanças,
muito embora costumamos repetir o que eles fazem de forma canhestra, provinciana e
caricatural. Embora a percepção do eleitorado evangélico pudesse direcionar uma tendência
de voto em Bolsonaro contra Haddad, foi preciso a construção de uma mitologia apelativa,
repetida à exaustão nos cultos e cerimônias religiosas do Brasil; seja nos grandes templos
midiáticos, seja nas pequenas igrejas de bairro. Primeiro, a dimensão escatológica, de fim dos
tempos, de degeneração, pobreza e privações representado pelo antipetismo e as revelações
da operação Lava a Jato. Segundo, a dimensão apocalíptica, de revelação e possibilidade da
vinda do messias salvador, representado pelo atentado mal sucedido contra Bolsonaro por
Adélio Bispo. Por fim, a dimensão soteriológica, representada pela redenção e nascimento de
um país cristão em que todo o esforço dos fiéis serão recompensados.

Bolsonaro tem retribuído à altura. Mesmo por questões burocráticas tendo vetado o projeto
de isenção de tributação a igrejas, disse ser a favor da isenção e jamais cobrou os impostos
atrasados, na casa de R$ 1,4 bilhão. Tentou, em vão, manter abertas igrejas e templos durante
a fase mais grave da pandemia com a ajuda de sua mais nova nomeação ao STF, ministro
Kassio Nunes Marques. Ele ainda tem outra nomeação ao STF para cumprir a promessa do tal
ministro “terrivelmente evangélico” que prometeu em 2019, já que Nunes é católico.

Se ainda não temos um equivalente da alt-right estadunidense ou da Geração Identitária


francesa em terras brasileiras, não é por falta de esforço. Somos consumidores de muito lixo
que se produz mundo a fora e em breve é bem possível que movimentos do mesmo naipe
apareçam com relevância por aqui. A tentativa fracassada dos 300 de Sarah Winter foi um
prenúncio preocupante, mas que só deu errado porque ousaram ameaçar o STF. Massas de
manobra suscetíveis a recrutamento extremista parecem não faltar aqui. Grupos de pequena
relevância já se organizam, seja em torno de Olavo de Carvalho, dentro das igrejas ou mesmo
de cunho político baseado na Quarta Teoria Política de Dugin.

Desde a eleição de Bolsonaro vem crescendo de forma alarmante células neonazistas em solo
brasileiro. Porém o mais alarmante é o crescimento de filiados, que já ultrapassam (baseados
em denúncias feitas a ONGs) a casa de 7 mil. Não são números pequenos, na medida em que a
internet potencializa a disseminação dessas ideias em nível exponencial, apesar da vigilância.
Mas tudo indica que sequer precisamos desse nível de extremismo aqui, muito embora
tenhamos potencial. As teorias conspiratórias, a xenofobia, o racismo, a misoginia e a
homofobia já estão desde sempre nas falas do atual presidente e gozam de grande apoio nas
Igrejas, Polícias Militares, Forças Armadas e Milícias criminosas. O cidadão comum, de verde
amarelo e temente a Deus pode exercer seu fascismo de dentro de casa, na internet;
ocasionalmente fazendo barulho na rua, mas sempre contando com o aparato institucional
para fazer o trabalho sujo. Sossegados, poderão ir ao templo para se convencer de que estão
puros e recompensados por Deus ao encher os cofres sagrados dos magnatas da fé.

Enquanto isso, iludidos com tantas mentiras e teorias conspiratórias, o rebanho vai ao
encontro da morte: negando vacina, negando a ciência, negando as medidas de proteção
contra a pandemia, aglomerando e desafiando a racionalidade que, possivelmente, Deus tenha
nos concedido. Não será somente na mão de Bolsonaro que estará o sangue de milhares de
brasileiros, mas daqueles que em nome de uma fé torta, de uma suposta Guerra Justa, estão
apoiando o carrasco da república e acreditando que ele é algum tipo de messias, quando na
verdade é um genocida cristão que está matando os próprios fiéis em nome de interesses
pessoais e poder.

Você também pode gostar