Você está na página 1de 6

In nomine Dei:

o fundamentalistas em busca do poder nos Estados Unidos... em nome de Deus

Católicos, evangélicos e mórmons aumentam cada vez mais sua influência nas
esferas política, financeira e cultural, com o objetivo central de derrubar a
Primeira Emenda à Constituição, que assegura a existência de um “muro” entre
estado e religião

Mauricio Torres*

“Se Dwight Eisenhower estivesse disputando a Presidência dos Estados


Unidos hoje, teria que concorrer por um partido independente. (...) Em 1982,
quem promoveu o maior aumento de impostos em tempos de paz de toda
história estadunidense? Ronald Reagan. Quem propôs uma reforma global da
legislação sobre saúde pública em sua mensagem do Estado da União, em
1974 – um programa que estava bem à esquerda do que Bill Clinton ou Barack
Obama propôs? Richard Nixon. Eisenhower, Reagan e Nixon – eles não eram
liberais, eles eram conservadores em sua própria época. Mas a totalidade da
política estadunidense moveu-se tão extremadamente para a direita nos
últimos 50 anos que as posições antes consideradas conservadoras são hoje
classificadas como extremamente esquerdistas.”
A constatação feita pela comentarista Rachel Maddow, em seu
programa televisivo na rede MSNBC, em janeiro de 2011, descreve um quadro
bastante realista da atmosfera política estadunidense contemporânea. Mas o
sintoma mais claro do conservadorismo contemporâneo é o avanço, em todas
as áreas, da vertiginosa da direita religiosa, integrada por organizações
católicas e evangélicas e organizada no Tea Party. O movimento “Festa do
Chá” nasceu em 2009. O título faz referência à revolta, em 1773, dos colonos
que viviam em Boston contra a governo imperial britânico e a Companhia das
Índias Ocidentais, que detinham o monopólio do chá que entrava nas colônias
e do imposto cobrado sobre o seu comércio, considerado abusivo. A revolta foi
decisiva para a declaração da independência dos Estados Unidos, em 1776.
Os integrantes do Tea Party partem do princípio de que um governo
central forte é fonte de corrupção e de abusos de poder. No princípio, o
movimento surgiu como uma reação ao programa de recuperação econômica
de bancos e indústrias falidos, promovido pelo presidente Barack Obama,
lançado em 2008. Os seus integrantes eram contra a destinação de fundos
públicos federais para instituições privadas. O apelo do Tea Party contra um
governo federal forte atraiu as atenções dos movimentos religiosos,
extremamente os de extrema direita, que identificam a presença do Mal e dos
agentes de Satã nas instituições democráticas.
A extrema direita cristã – que agrega fundamentalistas protestantes,
católicos e mórmons – é contrária, por exemplo, à instituição do ensino público.
Os fundamentalistas acreditam que os princípios humanistas sobre os quais ela
se assenta corrompe a juventude com teorias não cristãs – por exemplo, ao
adotar a teoria da evolução natural de Charles Darwin para explicar a origem
das espécies, e não o criacionismo bíblico. Milhões de famílias são adeptas do
e praticam o “home schooling” (aulas em casa), para assegurar que seus filhos
serão ensinados com base na literalidade do texto bíblico.
Ironicamente, os mesmos movimentos evangélicos que criticam
governos centrais fortes reclamam subsídios federais para sustentar as
atividades pedagógicas das famílias envolvidas em programas de “home
schooling”, em total contradição com o seu próprio discurso. Ao retirar milhões
de jovens das escolas públicas, essas correntes assestam um golpe de
grandes proporções ao sistema público de ensino, pois nos Estados Unidos as
verbas destinadas à educação são calculadas com base no número de
estudantes que atendem regularmente às aulas. Se as verbas diminuem, o
sistema inteiro tende a entrar em crise.
Se o Tea Party é um fenômeno recente, o mesmo não acontece com a
direita cristã. Ela sempre foi muito ativa na história dos Estados Unidos, mais
ainda após o famoso “julgamento do macaco”, realizado em 1925, que garantiu
a um professor de biologia o direito de ensinar a teoria darwinista da evolução
natural, com base na Primeira Emenda à Constituição (v. o Editorial, à pág. 3).
Redigida por Thomas Jefferson, ele próprio associado ao Iluminismo, a
Primeira Emenda, também conhecida como Cláusula de Estabelecimento
(Establishment Clause), assegura a separação entre religião e estado: “O
Congresso não aprovará leis com objetivo de estabelecer uma religião nem de
proibir o direito à liberdade religiosa”. Os fundamentalistas cristãos querem
destruir a cláusula.
Eles partem da falsa premissa, sem qualquer sustentação histórica, de
que os Estados Unidos foram fundados como nação cristã e devem por ser
isso ser governados pela lei bíblica. Apenas respeitando a lei bíblica os
Estados Unidos poderão realizar o “destino manifesto” de ser a primeira entre
as nações do planeta. Para os fundamentalistas, qualquer forma de
humanismo, incluindo o legado iluminista, deve ser condenada como blasfêmia,
heresia ou coisa do demônio. Seu principal argumento, esgrimido por uma
corrente intitulada dominionista (abraçada, por exemplo, por Sarah Palin,
candidata a vice do candidato republicano John McCain, em 2008), encontra-se
no Gênesis, 1:26: “Então Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem,
conforme a nossa semelhança e domine ele sobre os peixes do mar e sobre as
aves do céu, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os
répteis que rastejam o chão.” Para os domininistas, o homem feito à imagem e
semelhança de Deus só pode ser o cristão, a quem foi dada a autoridade e a
lei (bíblica) para governar sobre todas as coisas da Terra.
É essa concepção que explica os ataques ao governo federal: se o país
deve ser governado por cristãos, com base na Bíblia, qualquer outra forma de
autoridade é indesejável. Quanto mais fraco o governo central, melhor, a
menos, é claro, que seja um governo nos moldes bíblicos. Daí também as
campanhas em defesa do criacionismo e contra o evolucionismo darwinista, a
condenação das pesquisas com célula tronco e contra formas de associação
contrárias ao mandato bíblico do “crescei e multiplicai”, incluindo o direito ao
aborto e ao casamento entre pessoas de mesmo sexo.
E daí a convergência de forças entre fundamentalistas evangélicos e
católicos, e aversão de ambos ao Islã – o inimigo contra o qual a Europa
medieval construiu a identidade cristã. Ironicamente, os fundamentalistas
cristãos ambicionam para os Estados Unidos aquilo que é um pressuposto do
fundamentalismo islâmico: a total fusão entre estado e religião. Os extremos,
mais uma vez, acabam se encontrando.
Como reação à derrota sofrida no “julgamento do macaco”, a direita
cristã iniciou um processo de construção de escolas evangélicas e redes
universitárias, bem como de associações destinadas ao proselitismo, grupos de
informação, entretenimento e empresariais. Apropriando-se do avanço da
tecnologia da informação, em especial após a Segunda Guerra, criaram suas
próprias redes de televisão, movimentando, em seu conjunto, centenas de
bilhões de dólares. No clima da Guerra Fria, souberam combinar a mensagem
religiosa com o combate ao comunismo, que seria classificado como o Império
do Mal, em 1983, pelo presidente Ronald Reagan, durante um discurso
pronunciado perante a Associação Nacional de Evangélicos. Hoje, exercem
grande influência em Hollywood, Wall Street e Washington.
A mensagem contra o comunismo e contra um governo central forte tem,
como contrapartida, a ideia calvinista de que a pobreza é um pecado aos olhos
de Deus. O bom cristão é um empreendedor austero, trabalha para acumular
riquezas. Coerente com essa lógica, o fundamentalismo cristão funciona como
uma religião mais do que adequado ao neoliberalismo. O princípio do “menor
estado possível” expressa a confluência doutrinária entre ambos.
Não por acaso, coube a Reagan, o profeta do neoliberalismo, estender o
tapete vermelho da Casa Branca e do Partido Republicano aos
fundamentalistas cristãos, nos anos 80, como reconhece um de seus mais
importantes líderes, o pastor Jerry Falwell. Hoje, os candidatos republicanos a
cargos eletivos só têm chances reais se aprovados pelo Tea Party. Isso
significa, na prática, que um dos pilares da democracia estadunidense (ou do
pouco que resta dela), o Partido Republicano, é refém do conservadorismo
cristão. É a isso que Rachel Maddow se referia quando disse que alguns dos
grandes ícones da história do Partido Republicano não seriam, hoje, aprovados
como candidatos de seu próprio partido.
A campanha do mórmon republicano Mitt Romney, em 2012, explicitou
claramente os fundamentos econômicos do conservadorismo religioso. Tornou-
se célebre a declaração “vazada” para a imprensa, em que Romeny referiu-se
com repulsa aos 47% de “vagabundos” que acham que podem viver “às custas
do estado”. Ele estava falando de aposentados, desempregados, pobres e
miseráveis que dependiam das instituições do bem estar social para
sobreviver.
A ala fundamentalista católica, representada por Paul Ryan, que
concorreu como vice de Romeny, fez chantagem contra Obama: ameaçou com
o fechamento de sua rede de hospitais (que compreende 13% dos 5 mil
existentes no país e emprega 600 mil pessoas) se fossem aprovadas as leis
previstas pela reforma do sistema de saúde pública proposta por Obama. O
problema é que as reformas previam a obrigatoriedade de todas as instituições
de saúde firmarem convênios com o estado, que, por sua vez, garantiria
tratamentos condenados pela Igreja Católica (incluindo a prática do aborto).
Assim, eventualmente, hospitais controlados pela Igreja teriam que praticar o
aborto. A Igreja, em nome dos seus princípios, preferiu fazer chantagem.
É difícil levar a ameaça a sério, quando se considera que, para o
Vaticano, os hospitais constituem uma fonte preciosa de dólares. Os
escândalos recentes mostraram que, quando se trata de dinheiro, o Vaticano
comporta-se de forma tão mafiosa quanto, ou mais ainda do que qualquer
instituição financeira. A ameaça teve, portanto, um óbvio sentido político: impor
ao estado a primazia da opção religiosa, o que contraria, evidentemente, a
Cláusula de Estabelecimento – um princípio religioso privado (condenação ao
aborto) não pode ser superior ao bem público: os hospitais católicos, como
quaisquer outros, estão sujeitos às leis do país.
O fato de que o Tea Party “aprisionou” o Partido Republicano não
significa que o Partido Democrata alimente convicções iluministas. A
identificação dos fundamentalistas com os republicanos tem uma raiz histórica:
ambos condenaram, o New Deal, a reforma radical das instituições
estadunidenses levada a cabo pelo democrata Franklyn Roosevelt, a partir dos
anos 30. O New Deal criou, na prática, o estado de bem estar social. Apesar
disso, as pressões da direita religiosa também faz sentir os seus efeitos sobre
o Partido Democrata.
Obama, por exemplo, termina os seus discursos com a saudação “God
Bless America” tornada por Reagan uma peça obrigatória da retórica
presidencial. E também mantém em funcionamento o Departamento para
iniciativas comunitárias e baseadas na Fé, criado por George Bush jr. como um
meio de carrear fundos públicos para sustentar correntes evangélicas – o que,
novamente, contraria a Constituição. Seu único gesto de maior significado
contra o fascismo cristão, durante sua primeira gestão, foi a histórica
declaração de apoio ao direito de casamento entre pessoas de mesmo sexo,
em 9 de maio de 2012. E no discurso inaugural de seu segundo mandato
Obama reafirmou princípios humanistas frontalmente opostos às convicções
fundamentalistas. Mas só o tempo dirá até que ponto Obama fará valer a
Cláusula de Estabelecimento.
Em mais uma ironia, boa parte da mídia planetária compartilha e difunde
a ideia de que a maior ameaça ao planeta são as supostas (e inexistentes)
armas nucleares do Irã. Teme-se que um estado teocrático tenha acesso à
tecnologia nuclear. Mas aqueles que afirmam isso deveriam pensar no que
significaria a transformação dos Estados Unidos numa teocracia.

*Mauricio Torres é doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo

Você também pode gostar