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Canelas de Fogo no Congresso Nacional: o crescimento evangélico na política

brasileira

Por Rouxinol

Eu sou canela de fogo, Reteté de Jeová, Estou nadando no azeite, Não consigo parar
(...)
Jesus entrou aqui, Não veio para brincar, Veio para decidir, Histórias vão mudar1

Nos últimos 30 anos, é quase impossível discutir política no Brasil sem levar em
conta o crescimento da participação evangélica na política partidária. Embora o termo
“evangélico” seja amplo, quando falamos do crescimento deste grupo no espaço público
brasileiro, nos referimos principalmente aos pentecostais e neopentecostais, como
atestam a enormidade da Assembleia de Deus (AD), maior igreja pentecostal do Brasil,
e o poder da Universal do Reino de Deus (IURD), principal representante do
neopentecostalismo.
No momento os evangélicos correspondem a cerca de 30% da população
brasileira2, e se continuarem crescendo neste ritmo em breve passarão a quantidade de
católicos, num país com o maior número de católicos no mundo. As igrejas pentecostais
e neopentecostais crescem graças à sua capacidade de se apresentarem como espaços de
acolhimento para grande parcela da população mais pobre do país, que se vê à margem
da sociedade, sem acesso a direitos básicos, como educação, saúde e segurança. Estas
igrejas oferecem soluções tanto milagrosas quanto concretas para os problemas da
população desassistida por um Estado cada vez mais ineficiente e omisso.
Nas igrejas as pessoas encontram promessas de prosperidade financeira,
empregos, aprovação em concursos, cura para doenças, e, além disso, dignidade – que
lhes é negada diariamente num país extremamente desigual, racista, classista e
patriarcal. Ao se converterem e receberem o Batismo com o Espírito Santo, os crentes
passam a fazer parte do seleto grupo que será salvo no aguardado dia do Juízo Final, se

1
FLORDELIS. Eu Sou Canela de Fogo. Rio de janeiro: MK Music, 2012. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=K4p5fVX1MuE Acesso em: 25 de ago. de 2020.
2
Transição Religiosa – Católicos abaixo de 50% até 2022 e abaixo do percentual de evangélicos
até 2032. Revista IHU On-line, São Leopoldo, 06 de dez. 2018. Disponível em: <
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/585245-transicao-religiosa-catolicos-abaixo-de-50-ate-
2022-e-abaixo-do-percentual-de-evangelicos-ate-2032 > Acesso em: 30 de ago. de 2020.
destacam do restante da sociedade, e isto lhes confere uma dignidade por vezes nunca
experimentada. Eles encontram explicações para as dores, misérias e injustiças desse
mundo, causadas pelo Diabo e seus demônios, que devem ser combatidos sem trégua.
Mas fora da esfera espiritual, encontram também uma rede de assistência extremamente
material, pois as igrejas possuem inúmeros projetos para ajudar os fiéis, desde a oferta
de cursos educativos e consultas médicas com preços populares, até ajuda matrimonial
ou para lidar com vícios. Em suma, as igrejas lhes oferecem aquilo que o Estado e o
mercado lhes negam.
Se os evangélicos representam uma parcela cada vez maior da nossa sociedade,
faz sentido que eles busquem representatividade no espaço público. O Congresso
Nacional e as câmaras legislativas existem, teoricamente, para representar os interesses
da população, e se esta população tem se tornado cada vez mais “terrivelmente
evangélica”, é compreensível que os interesses desta parcela sejam ouvidos e
representados. Por mais chocante – ou até mesmo desagradável - que esta afirmação
possa soar aos ouvidos dos defensores do Estado laico, não deveria surpreender
ninguém se levamos em conta a história do Brasil.

 Estado e religião no Brasil

Desde a chegada dos portugueses em terras sul-americanas, há mais de 500 anos,


Estado e religião andam de mãos atadas. Primeiro com o sistema de padroado, que
conferia aos reis de Portugal grande controle sobre a Igreja Católica em seus domínios
territoriais. Com a independência do Brasil pouco mudou, os direitos de padroado foram
estendidos aos dois Pedros imperadores, e o catolicismo se tornou a religião oficial do
novo país. A proclamação da República mudou o cenário, pela primeira vez o Brasil se
tornou um Estado laico e a Igreja Católica se viu, por um lado, livre do controle estatal,
por outro, tendo que lutar para manter sua influência. Mas isto não foi tarefa tão difícil
se levarmos em conta o tradicional conservadorismo e catolicismo da elite brasileira que
formava as oligarquias que comandavam a política nacional.
Se nas décadas da chamada República Velha a Igreja Católica perdeu alguns
privilégios, como o controle sobre a educação, ela conseguiu readquirir vários deles
com o governo de Getúlio Vargas e a Constituinte de 1933. Havia uma afinidade de
interesses entre a Igreja e Vargas que orbitava em torno da questão do trabalho, dos
direitos sociais e do capitalismo. Baseada na ideia de “justiça social”, presente na
encíclica Rerum Novarum, a Igreja buscou uma conciliação entre o capitalismo e a luta
dos trabalhadores, e acabou se tornando uma aliada que ajudava a legitimar o governo
varguista, em troca de recuperar seus privilégios.
No âmbito legislativo, em 1932 foi criada a Liga Eleitoral Católica (LEC), uma
instituição que tinha por objetivos: alistar, organizar e instruir o eleitorado; e assegurar
o voto católico para os candidatos que aceitassem o programa da Igreja e concordassem
em defendê-lo na convenção da futura Assembleia Constituinte. Era grande o interesse
da Igreja em eleger políticos comprometidos com os valores religiosos para restabelecer
o vínculo com o Estado. Com seu programa antiliberal e anti-esquerda, a LEC
conseguiu o apoio das oligarquias estaduais elegendo a maioria dos candidatos que
apoiou no pleito de 1933.
Se o catolicismo não voltou a ser a religião oficial, tornou-se a religião oficiosa
do Brasil. A constituição de 1934 incluiu uma ressalva no artigo que definia a separação
entre religião e Estado, permitindo a colaboração entre o poder público e instituições
religiosas. A Igreja conseguiu o direito de oferecer instrução religiosa nas escolas; o
casamento religioso adquiriu validade civil e o divórcio foi proibido; escolas católicas
passaram a receber subvenção do Estado; membros de ordens religiosas tiveram direito
de voto e foram asseguradas maiores facilidades jurídicas às associações religiosas.
A LEC atuou até o início da década de 1960, quando o processo democrático foi
interrompido. Em uma das páginas vergonhosas de sua história, a Igreja Católica apoiou
o golpe que instituiu a ditadura militar no Brasil em 1964. Mas, ironicamente, foi
durante este regime que as relações entre Igreja e o Estado começaram a azedar. O
estremecimento desta longeva relação teve início quando as violações aos direitos
humanos começaram a vir à tona e parte do clero católico passou a fazer críticas cada
vez mais duras aos militares, e a expor as torturas ocorridas no Brasil para o mundo,
chegando a atuar na defesa de militantes de esquerda e pessoas perseguidas. A repressão
do Estado acabou se voltando contra a própria Igreja, que teve alguns de seus membros
presos e torturados. No final da ditadura, a Igreja era uma das mais fortes oposicionistas
ao Estado militar, tendo atuação importante nos movimentos pela redemocratização.
Desde então a relação entre ambos nunca mais foi a mesma.
Ora, depois de mais de 400 anos de claro domínio público do catolicismo, que
chegou a contar com uma organização focada em eleger políticos alinhados, não
surpreende a intromissão de um grupo religioso na política partidária brasileira. Os
evangélicos não representam uma novidade, e sim a substituição do ator religioso que
sempre manteve relações com o Estado. Como ocorreu essa substituição?
 A entrada evangélica na política

Durante muito tempo os evangélicos participaram pouco da política brasileira. É


durante a formação do Congresso Constituinte, responsável por fazer a nova
Constituição Federal após o fim da ditadura militar, que vemos a efetiva entrada deste
grupo no cenário político brasileiro. As eleições de 1986 podem ser consideradas um
marco na inserção evangélica na política, com as igrejas lançando candidatos oficiais e
conseguindo eleger significativa bancada entre os deputados federais, com 33
evangélicos, sendo boa parte composta de pentecostais da Assembleia de Deus.
Na época, a grande preocupação dos evangélicos era justamente impedir que a
Igreja Católica reassumisse o papel preponderante que deteve até a década de 1960.
Alegavam agir em defesa da liberdade religiosa, pois durante muitos anos formaram um
grupo minoritário e perseguido. Sua atuação buscava assim a proteção de seus direitos
como minoria religiosa. Durante os trabalhos da constituinte eles se destacaram por sua
tentativa de ganhar visibilidade e demarcar seu espaço dentro da esfera pública. A
defesa da presença de um exemplar da Bíblia no plenário foi uma de suas principais
iniciativas. Os parlamentares evangélicos argumentavam que sendo a população
brasileira majoritariamente cristã, a Bíblia seria fonte de consulta para que suas ações e
palavras estivessem em consonância com as crenças da maioria, ao mesmo tempo em
que reforçavam a Bíblia como um símbolo evangélico. O projeto passou sem enfrentar
grandes oposições.
Desde a década de 1980 o número de evangélicos saltou de 6,6%3 para cerca de
30% da população, e este número só cresce. O aumento populacional se traduziu na
arena política pelo crescimento de representantes eleitos ligados a essas igrejas,
principalmente no poder legislativo. O crescimento evangélico se alimenta das
vantagens organizacionais e discursivas dos evangélicos e dos déficits católicos. Em
cada bairro que a Igreja Católica pretende chegar já existem diversas evangélicas. Isso
ocorre, pois enquanto se necessita passar por toda a burocracia católica para formação
de novos padres e abertura de novas igrejas, a grande diversificação e autonomia das
igrejas evangélicas, assim como a facilidade de se tornar pastor, permite a proliferação
de modo muito mais rápido. Além disso, as igrejas evangélicas são responsáveis pela
criação de diversos centros educativos e esportivos, pelo oferecimento de variados

3
BORGES, Tiago D. P.. Identidade Política Evangélica e os Deputados Estaduais Brasileiros.
Perspectivas, São Paulo, v. 35, p. 149-171, jan./jun. 2009. p.157,158.
serviços assistenciais, e dominam instituições de produção cultural de massa como
editoras, selos musicais, jornais, rádios e canais de televisão. Logo, o diálogo com a
população crente ocorre não apenas nas igrejas, mas de forma dialógica.
Não é mera coincidência que o crescimento neopentecostal tenha sido
acompanhado do crescimento do uso das mídias por essas igrejas, através da aquisição
de redes de rádio e televisão. Um exemplo paradigmático disso é a IURD, que montou
um verdadeiro império midiático ao adquirir a TV Record e a Tv Jovem Pan. Comanda
ainda a Rádio Record, que controla outras 30 emissoras de rádio, possui mais de quatro
mil templos no país, um jornal (Folha Universal) com tiragem superior a um 1,5 milhão
de exemplares, um parque gráfico e um pequeno banco.4
Do ponto de vista teológico, a noção de atualidade dos dons do Espírito Santo,
capaz de conferir poder, curar e realizar milagres se conecta com a sensibilidade
religiosa presente entre a maioria dos setores populares do Brasil, que acredita em
soluções mágicas para os seus problemas, fazendo uso de orações, simpatias, amuletos e
rituais. Outra questão doutrinal importante, proveniente da raiz protestante do
pentecostalismo, é a noção de sacerdócio universal, que facilita o aparecimento de
múltiplos líderes endógenos, agindo dentro de suas comunidades, adaptando a boa nova
à sensibilidade da população local. Assim cada igreja produz pregações, organizações e
produtos culturais adaptados aos mais diversos nichos sociais e culturais.
O neopentecostalismo trouxe consigo a ênfase na Teologia da Prosperidade e na
doutrina da Guerra Espiritual, provocando uma mudança fundamental para o
crescimento dos evangélicos na esfera política, pois retirou o foco do pensamento
escatológico que focava na vida eterna após a morte e abriu a possibilidade para uma
transformação intra-histórica através da atuação dos evangélicos no mundo. A Teologia
da Prosperidade conjuga o pressuposto de que a fé verdadeira faz com que Deus atenda
seus pedidos, com a noção de que a mente humana pode interferir na esfera espiritual,
que, por sua vez, controla a esfera material. Sobre a Guerra Espiritual entende-se que,
como o mundo espiritual controla o mundo material, as mudanças materiais dependem
da neutralização do Diabo e seus demônios no campo espiritual.
Se antes a espera do Juízo Final e da salvação, considerados iminentes, eram
responsáveis por uma atitude politicamente apática e sectária, agora este horizonte foi

4
CAMPOS, Silveira Leonildo. Evangélicos, pentecostais e carismáticos na mídia radiofônica e
televisiva. REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 146-163, março/maio 2004. p.160.
jogado para o futuro e os crentes se sentem motivados a buscar uma boa vida ainda na
Terra. Uma das maneiras de fazerem isso é através da atuação política, ensejando
discursos como o do assembleiano e assessor do Senado na Constituinte de 86, Josué
Sylvestre: “Se queremos que Deus abençoe o nosso país, se queremos que o Brasil seja
uma nação dinâmica, progressista, menos injusta, votemos em candidatos evangélicos
de bom testemunho cristão, preparados e vocacionados para a vida pública”5. Os
problemas sociais, a pobreza, a corrupção, são vistos como tendo um fundo espiritual,
de tal forma que uma maneira de solucioná-los é eleger evangélicos, que assim
poderiam combater as ações demoníacas em seus cargos públicos, trazendo paz e
prosperidade para o país.
O número crescente de pentecostais e neopentecostais e a potência de suas redes
atraíram muitos políticos, pois podem dar legitimidade a variados projetos, que se
colocam como alternativas à política tradicional tomada pela corrupção. Desde 86 o
número de parlamentares ligados às igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais
vem aumentando e hoje a Frente Parlamentar Evangélica, instaurada em 2003, e
popularmente chamada de Bancada Evangélica, é uma das maiores no Congresso
Nacional.
Esse sucesso eleitoral se deve, por um lado, à tendência de fluidez das
identidades políticas no Brasil, sem filiações partidárias definidas. Por outro, as eleições
brasileiras são nominais, o que favorece os evangélicos, pois é necessária uma
quantidade menor de votos para eleger um candidato, o que grupos organizados
conseguem fazer com facilidade. Este fator ajuda a explicar a preponderância das
grandes igrejas na política, que conseguem mobilizar não só os seus fiéis, como os de
outras igrejas menores. A fragmentação do Congresso Nacional, que dificulta a
aprovação de leis, também confere força aos evangélicos, pois sua articulação permite
maior facilidade de negociação para intervenções em leis, e a obtenção de facilidades
para a mídia evangélica, essencial para fazer crescer o número de fiéis e eleitores.
Uma vez que os evangélicos não representam uma novidade, e sim a substituição
do ator religioso que sempre manteve relações com o Estado, por que eles incomodam
tanta gente?

5
SYLVESTRE, Josué. Irmão vota em irmão: os evangélicos, a constituinte e a Bíblia. Brasília:
Pergaminho, 1986. p. 38.
 O incômodo fundamentalista

Jürgen Habermas aborda, em “Entre Naturalismo e Religião”, como poderia


ocorrer a participação religiosa no espaço público político. Baseado na teoria política de
John Rawls sobre o uso publico da razão, Habermas coloca que “a autocompreensão do
estado de direito democrático formou-se no quadro de uma tradição filosófica que apela
exclusivamente a uma razão “natural”, ou seja, a argumentos públicos que, de acordo
com sua pretensão, são acessíveis da mesma maneira a todas pessoas.”6 Quer dizer, a
crença em uma razão humana comum justifica o poder secular do Estado, independente
de legitimação religiosa.
No entanto, o secularismo do Estado não significa o fim da presença religiosa na
sociedade. Logo, coube ao Estado secular, dentro do estado de direito democrático,
encontrar meios de lidar com a pluralidade religiosa e garantir sua participação no
sistema. Uma resposta adequada foi encontrada na garantia do direito fundamental da
liberdade de consciência e de religião. Entretanto, para garantir a liberdade religiosa e
mediar os potenciais conflitantes entre as diferentes crenças, é preciso também que as
próprias partes interessadas cheguem a um acordo sobre as fronteiras entre o direito do
livre exercício religioso e o impedimento de imposição religiosa a outrem. Para
estabelecer os limites do que pode ou não ser tolerado é imprescindível a existência de
argumentos convincentes e aceitáveis por todos.
Em um Estado que se pretende democrático e neutro, só são legítimas as
decisões políticas que possam ser justificadas por argumentos imparciais e acessíveis
para pessoas de diferentes credos ou sem religião. Desta forma, mesmo que a posição
política parta de um pensamento religioso, seria necessário ao crente conseguir uma
justificativa secular que sustente sua posição.
É aqui que reside o maior problema da atuação evangélica pentecostal e
neopentecostal no Congresso Nacional. Sua inserção na política brasileira a partir de
1986 parece ter vindo acompanhada da adoção do discurso conservador da Direita
Cristã que se destacou na política norte-americana nos anos 70. Ganhou força o discurso
de um país alicerçado nas verdades fundamentais da palavra de Deus, em defesa da
família tradicional e de valores morais. Os políticos evangélicos brasileiros encampam

6
JUGEN, HABERMAS. Entre Naturalismo e Religião: estudos filosóficos. Rio de janeiro:
Tempo Brasileiro, 2007. p.135.
as lutas contra leis sobre a descriminalização do aborto e a união civil de pessoas do
mesmo sexo, defendendo os valores da família tradicional cristã, da moral e dos bons
costumes, se posicionando contra medidas progressistas.
Este pensamento conservador, fruto do fundamentalismo religioso, emprega o
discurso do medo e do mundo em crise, onde a Igreja aparece como a única
possibilidade de salvação. A modernização capitalista, vinda de fora e em condições
desfavoráveis, gerou inseguranças sociais e rejeições culturais. As mudanças radicais
trouxeram, por um lado, a criação de trabalhos precários e mal remunerados, com a
ampliação do espaço urbano de modo desorganizado levando ao crescimento das
favelas. Por outro, mexeu com valores tradicionais da sociedade brasileira
majoritariamente cristã ao dar força e espaço para movimentos progressistas e
inclusivos, como o movimento feminista, LGBT e o movimento negro. Quando estes
movimentos exigem mudanças nas leis, costumes e práticas do país, eles mexem no
reino dos valores que servem de alicerce para boa parte da população. A precariedade
da situação econômica somada à quebra de paradigmas e valores gera uma sensação de
desenraizamento e insegurança.
É em cima desses sentimentos que os movimentos religiosos evangélicos agem,
oferecendo soluções a partir de um pensamento que busca recuperar o tradicional e
proteger a fé cristã contra novas ideias e modos de agir. Em meio às rápidas
transformações ocorridas na sociedade moderna este discurso de defesa dos valores
morais tradicionais, da Teologia da Prosperidade, da Guerra Espiritual e da
possibilidade de mudança através da atuação política aparece como uma possível
resposta aos problemas e anseios de parte da população brasileira. Mas faz isso se
escorando no fundamentalismo religioso, amparado numa razão instrumental prática e
individualista, preocupada com o imediato e fechada para o outro – para os que não
seguem ou transgredem a doutrina.
Este fundamentalismo se reflete na política, uma vez que os candidatos, ao
atuarem como representantes dos interesses de suas denominações, muitas vezes
utilizam argumentos religiosos na arena política, de tal modo que questões pessoais se
sobrepõem a questões objetivas. Os argumentos racionais e laicos, que deveriam ser
empregados por estes atores religiosos quando de sua atuação na esfera política de
acordo com Habermas, acabam abandonados para dar lugar ao discurso fundamentalista
intransigente, alicerçado em valores bíblicos, que deve ser seguido e, portanto, imposto
a todos.
Democracia não é a imposição da vontade de uma dita maioria sore os demais, é
a existência de mecanismos que permitam o diálogo e a representatividade dos
diferentes grupos que formam a sociedade, de modo que todos, tendo sua diversidade e
especificidades respeitadas, possam ter acesso aos direitos e serviços garantidos pelo
Estado. Por isso, o discurso fundamentalista e excludente é a antítese do que se espera
dentro de uma sociedade democrática.
Mas todos os evangélicos são fundamentalistas?

 Homogeneidade evangélica?

Ao longo dos anos os compromissos políticos evangélicos se mostraram plurais


e de caráter pragmático. Distintos grupos adentraram a arena política usando seus
capitais de diferentes modos e construindo diferentes tipos de alianças. Isto levou a
situações que vão desde a participação nas campanhas de Fernando Collor, até a
estratégica candidatura de Benedita da Silva à prefeitura do Rio de Janeiro, que venceu
reivindicando seu caráter de “mulher negra, favelada e pentecostal”. Mais tarde
apoiaram Fernando Henrique Cardoso contra o “perigo comunista” do Partido dos
Trabalhadores (PT), para em seguida integrar a frente promovida pelo mesmo PT nas
eleições ganhas por Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, dando depois seu apoio
à Marina Silva, e terminando por apoiar a candidatura de Jair Bolsonaro na reta final das
últimas eleições.
Outro ponto importante é que não há voto confessional entre os evangélicos. A
máxima “fiel vota em fiel” não se concretiza na realidade, de modo que a identidade
religiosa não gera automaticamente uma identidade política. A ausência de unificação
institucional, somada à dinâmica competitiva e fracionada dos grupos evangélicos
contribui para este fato, que frustra diversas tentativas de empreendimentos políticos.
Muitas vezes as tentativas de pastores e igrejas de guiarem os votos dos fiéis são vistas
com suspeita, como tentativas de manipulação, controle e capitalização indevida. Além
disso, também nota-se que os evangélicos votam de modo similar aos católicos, ou aos
cidadãos de outras crenças em seus respectivos estratos sociais.
Como em qualquer grupo social amplo existe diversidade de pensamento no
meio evangélico, e podemos encontrar crentes de direita e de esquerda, conservadores e
progressistas. Mas então, por que a atuação política, em especial dos membros da
Bancada Evangélica, parece estampar apenas um lado deste grupo? Onde estão os
políticos evangélicos progressistas?
Eles existem. A própria Benedita da Silva é uma evangélica filiada ao PT, que
defende pautas de esquerda, feministas e do movimento negro. No Rio de Janeiro, outro
nome de referência quando se fala em evangélicos de esquerda é o do pastor batista
Henrique Vieira, filiado ao PSOL. De fato, o número de candidatos evangélicos
aumentou no partido socialista no último pleito, demonstrando o aumento de
evangélicos progressistas na política7. Se existem evangélicos progressistas e de
esquerda, e mais importante, políticos evangélicos com este perfil, por que não se fala
neles? Por que não obtêm o mesmo sucesso que suas contrapartes de direita e
conservadores?
A meu ver a resposta caminha em dois sentidos. O primeiro diz respeito à
sociedade brasileira e ao cenário político dos últimos anos. Dentre os fatores que
contribuíram para a emergência das forças políticas evangélicas está o desgaste das
alternativas políticas tradicionais, principalmente devido aos escândalos de corrupção,
como a Lava Jato, que contribuiu para a degradação dos políticos e partidos, que
vinham encabeçando a política nacional, notadamente o PT. Nestes casos, a aura de
honestidade atribuída às religiões age como garantia, ou, pelo menos, como um aval
para os políticos perante a opinião pública, desde que não estejam ligados aos partidos
que tiveram sua credibilidade destruída pelos escândalos de corrupção. Da mesma
forma, se o partido no poder e, por isso, colocado pela mídia no centro de todos os
escândalos de corrupção, era um partido de esquerda, ganham mais confiabilidade da
opinião pública os partidos que se encontram no outro lado do espectro político. Foi
assim que vimos um partido nanico, de direita, ganhar subitamente os holofotes, o
espaço midiático e os votos dos eleitores.
Mais um fator foi o avanço das políticas e conquistas de direitos relativos à
agenda feminista e LGBT nas últimas décadas no Brasil. Neste caso os evangélicos
puderam ser os catalisadores e principais representantes de uma reação de parte da
sociedade, marcada pelo forte machismo e valores morais provenientes do

7
Dip, Andrea. Como as candidaturas evangélicas ajudaram a eleger Bolsonaro. Justificando:
mentes inquietas pensam direito, 2018. Disponível em: <
http://www.justificando.com/2018/12/06/como-as-candidaturas-evangelicas-ajudaram-a-eleger-
bolsonaro/ > Acesso em: 30 de ago. de 2020.
conservadorismo. A oposição a essas agendas deu potência aos projetos políticos
evangélicos que se aproximavam de orientações à direita.
O outro caminho que ajuda a responder às perguntas levantadas é analisar a
própria esquerda brasileira. Atualmente os termos “direita” e “esquerda” abarcam um
significado que vai além de questões econômicas: as pautas progressistas são vistas
como pautas de esquerda e o conservadorismo é visto como inerente à direita. Os
partidos de esquerda no Brasil não só assumiram esta ideia, como muitas vezes parecem
fazer das pautas progressistas o seu foco, e talvez aí esteja o seu grande erro.
Se nem todos os evangélicos são conservadores, a maioria é. A esquerda não
conseguirá estes votos lutando pelos direitos reprodutivos femininos, ou o respeito à
vida de LGBT’s. Mas se a maioria dos evangélicos são conservadores, também são
pobres. E quando não se tem comida todo dia na mesa, questões morais podem ser
postas em segundo plano. É preciso que a esquerda volte a focar naquilo que mais
importa não só aos evangélicos, mas à maior parte da população brasileira, que é, assim
como a maioria dos evangélicos, conservadora e pobre. É preciso falar de emprego, de
salário, de moradia, saúde, educação e segurança.
Se numa sociedade verdadeiramente democrática, que se pretende liberal e
progressista, a proibição não é o caminho aconselhável, não se pode pensar na exclusão
da participação de políticos religiosos, mas na melhor forma de fazer sua inclusão.
Habermas nos oferece um caminho, mas os atuais políticos evangélicos eleitos optam
por ignorá-lo porque sabem que seu discurso é efetivo no Brasil atual. Tendo
consciência disso, não seria a hora de criar a contra narrativa dentro do próprio meio
evangélico?
Se os evangélicos ainda não são a maior parte da população brasileira, em breve
serão, e seria errado ignorar a influência que a identidade evangélica e o seu repertório
de ação simbólica podem exercer. Se existem entraves que atrapalham a consolidação
de um partido evangélico, sua contribuição não pode ser desprezada no fortalecimento
das candidaturas de políticos que buscam o apoio de igrejas pentecostais e
neopentecostais. Como Jair Bolsonaro, que conseguiu muitos votos evangélicos graças
ao seu discurso de proteção à família tradicional e contra os direitos LGBT, e ao apoio
direto que recebeu de líderes de grandes denominações evangélicas, como Edir Macedo
e Robson Rodovalho. Mas mesmo nesse caso os evangélicos não votaram como um
bloco homogêneo, as estatísticas pós-eleitorais mostraram que mais de um terço dos
evangélicos votaram contra as orientações “oficiais”8. E dentro dos meios progressistas
evangélicos houve inclusive apoio ao candidato Fernando Haddad, especialmente no 2º
turno.
O voto evangélico, mesmo dos pentecostais e neopentecostais, não está
definitivamente atrelado ao conservadorismo e à direita. Já passou da hora da esquerda
brasileira abrir mão de discursos arrogantes e preconceituosos, que enxergam pobres
evangélicos como simples massa de manobra, e passar a enxergá-los como atores do
jogo político que ganham cada vez mais importância, procurando entender suas
necessidades e como dialogar com elas. Os pentecostais e neopentecostais vieram para
ficar, e idealizar um mundo com uma completa separação entre Estado e religião, não
altera a realidade com que lidamos atualmente. Ou aprendemos a ganhar seus votos
para um projeto de país inclusivo, progressista e autônomo, ou teremos pela frente ainda
muitos anos de canelas de fogo, como Flordelis, acusada do assassinato do próprio
marido e filho adotivo, como a face do político evangélico brasileiro. O problema não
está necessariamente nos evangélicos, mas nos evangélicos que elegemos.

8
SEMÁN, Pablo. ¿Quiénes son? ¿Por qué crecen? ¿En qué creen? Pentecostalismo y política en
América Latina. Revista Nueva Sociedad, 280, Marzo - Abril 2019, ISSN: 0251-3552.

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