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brasileira
Por Rouxinol
Eu sou canela de fogo, Reteté de Jeová, Estou nadando no azeite, Não consigo parar
(...)
Jesus entrou aqui, Não veio para brincar, Veio para decidir, Histórias vão mudar1
Nos últimos 30 anos, é quase impossível discutir política no Brasil sem levar em
conta o crescimento da participação evangélica na política partidária. Embora o termo
“evangélico” seja amplo, quando falamos do crescimento deste grupo no espaço público
brasileiro, nos referimos principalmente aos pentecostais e neopentecostais, como
atestam a enormidade da Assembleia de Deus (AD), maior igreja pentecostal do Brasil,
e o poder da Universal do Reino de Deus (IURD), principal representante do
neopentecostalismo.
No momento os evangélicos correspondem a cerca de 30% da população
brasileira2, e se continuarem crescendo neste ritmo em breve passarão a quantidade de
católicos, num país com o maior número de católicos no mundo. As igrejas pentecostais
e neopentecostais crescem graças à sua capacidade de se apresentarem como espaços de
acolhimento para grande parcela da população mais pobre do país, que se vê à margem
da sociedade, sem acesso a direitos básicos, como educação, saúde e segurança. Estas
igrejas oferecem soluções tanto milagrosas quanto concretas para os problemas da
população desassistida por um Estado cada vez mais ineficiente e omisso.
Nas igrejas as pessoas encontram promessas de prosperidade financeira,
empregos, aprovação em concursos, cura para doenças, e, além disso, dignidade – que
lhes é negada diariamente num país extremamente desigual, racista, classista e
patriarcal. Ao se converterem e receberem o Batismo com o Espírito Santo, os crentes
passam a fazer parte do seleto grupo que será salvo no aguardado dia do Juízo Final, se
1
FLORDELIS. Eu Sou Canela de Fogo. Rio de janeiro: MK Music, 2012. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=K4p5fVX1MuE Acesso em: 25 de ago. de 2020.
2
Transição Religiosa – Católicos abaixo de 50% até 2022 e abaixo do percentual de evangélicos
até 2032. Revista IHU On-line, São Leopoldo, 06 de dez. 2018. Disponível em: <
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/585245-transicao-religiosa-catolicos-abaixo-de-50-ate-
2022-e-abaixo-do-percentual-de-evangelicos-ate-2032 > Acesso em: 30 de ago. de 2020.
destacam do restante da sociedade, e isto lhes confere uma dignidade por vezes nunca
experimentada. Eles encontram explicações para as dores, misérias e injustiças desse
mundo, causadas pelo Diabo e seus demônios, que devem ser combatidos sem trégua.
Mas fora da esfera espiritual, encontram também uma rede de assistência extremamente
material, pois as igrejas possuem inúmeros projetos para ajudar os fiéis, desde a oferta
de cursos educativos e consultas médicas com preços populares, até ajuda matrimonial
ou para lidar com vícios. Em suma, as igrejas lhes oferecem aquilo que o Estado e o
mercado lhes negam.
Se os evangélicos representam uma parcela cada vez maior da nossa sociedade,
faz sentido que eles busquem representatividade no espaço público. O Congresso
Nacional e as câmaras legislativas existem, teoricamente, para representar os interesses
da população, e se esta população tem se tornado cada vez mais “terrivelmente
evangélica”, é compreensível que os interesses desta parcela sejam ouvidos e
representados. Por mais chocante – ou até mesmo desagradável - que esta afirmação
possa soar aos ouvidos dos defensores do Estado laico, não deveria surpreender
ninguém se levamos em conta a história do Brasil.
3
BORGES, Tiago D. P.. Identidade Política Evangélica e os Deputados Estaduais Brasileiros.
Perspectivas, São Paulo, v. 35, p. 149-171, jan./jun. 2009. p.157,158.
serviços assistenciais, e dominam instituições de produção cultural de massa como
editoras, selos musicais, jornais, rádios e canais de televisão. Logo, o diálogo com a
população crente ocorre não apenas nas igrejas, mas de forma dialógica.
Não é mera coincidência que o crescimento neopentecostal tenha sido
acompanhado do crescimento do uso das mídias por essas igrejas, através da aquisição
de redes de rádio e televisão. Um exemplo paradigmático disso é a IURD, que montou
um verdadeiro império midiático ao adquirir a TV Record e a Tv Jovem Pan. Comanda
ainda a Rádio Record, que controla outras 30 emissoras de rádio, possui mais de quatro
mil templos no país, um jornal (Folha Universal) com tiragem superior a um 1,5 milhão
de exemplares, um parque gráfico e um pequeno banco.4
Do ponto de vista teológico, a noção de atualidade dos dons do Espírito Santo,
capaz de conferir poder, curar e realizar milagres se conecta com a sensibilidade
religiosa presente entre a maioria dos setores populares do Brasil, que acredita em
soluções mágicas para os seus problemas, fazendo uso de orações, simpatias, amuletos e
rituais. Outra questão doutrinal importante, proveniente da raiz protestante do
pentecostalismo, é a noção de sacerdócio universal, que facilita o aparecimento de
múltiplos líderes endógenos, agindo dentro de suas comunidades, adaptando a boa nova
à sensibilidade da população local. Assim cada igreja produz pregações, organizações e
produtos culturais adaptados aos mais diversos nichos sociais e culturais.
O neopentecostalismo trouxe consigo a ênfase na Teologia da Prosperidade e na
doutrina da Guerra Espiritual, provocando uma mudança fundamental para o
crescimento dos evangélicos na esfera política, pois retirou o foco do pensamento
escatológico que focava na vida eterna após a morte e abriu a possibilidade para uma
transformação intra-histórica através da atuação dos evangélicos no mundo. A Teologia
da Prosperidade conjuga o pressuposto de que a fé verdadeira faz com que Deus atenda
seus pedidos, com a noção de que a mente humana pode interferir na esfera espiritual,
que, por sua vez, controla a esfera material. Sobre a Guerra Espiritual entende-se que,
como o mundo espiritual controla o mundo material, as mudanças materiais dependem
da neutralização do Diabo e seus demônios no campo espiritual.
Se antes a espera do Juízo Final e da salvação, considerados iminentes, eram
responsáveis por uma atitude politicamente apática e sectária, agora este horizonte foi
4
CAMPOS, Silveira Leonildo. Evangélicos, pentecostais e carismáticos na mídia radiofônica e
televisiva. REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 146-163, março/maio 2004. p.160.
jogado para o futuro e os crentes se sentem motivados a buscar uma boa vida ainda na
Terra. Uma das maneiras de fazerem isso é através da atuação política, ensejando
discursos como o do assembleiano e assessor do Senado na Constituinte de 86, Josué
Sylvestre: “Se queremos que Deus abençoe o nosso país, se queremos que o Brasil seja
uma nação dinâmica, progressista, menos injusta, votemos em candidatos evangélicos
de bom testemunho cristão, preparados e vocacionados para a vida pública”5. Os
problemas sociais, a pobreza, a corrupção, são vistos como tendo um fundo espiritual,
de tal forma que uma maneira de solucioná-los é eleger evangélicos, que assim
poderiam combater as ações demoníacas em seus cargos públicos, trazendo paz e
prosperidade para o país.
O número crescente de pentecostais e neopentecostais e a potência de suas redes
atraíram muitos políticos, pois podem dar legitimidade a variados projetos, que se
colocam como alternativas à política tradicional tomada pela corrupção. Desde 86 o
número de parlamentares ligados às igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais
vem aumentando e hoje a Frente Parlamentar Evangélica, instaurada em 2003, e
popularmente chamada de Bancada Evangélica, é uma das maiores no Congresso
Nacional.
Esse sucesso eleitoral se deve, por um lado, à tendência de fluidez das
identidades políticas no Brasil, sem filiações partidárias definidas. Por outro, as eleições
brasileiras são nominais, o que favorece os evangélicos, pois é necessária uma
quantidade menor de votos para eleger um candidato, o que grupos organizados
conseguem fazer com facilidade. Este fator ajuda a explicar a preponderância das
grandes igrejas na política, que conseguem mobilizar não só os seus fiéis, como os de
outras igrejas menores. A fragmentação do Congresso Nacional, que dificulta a
aprovação de leis, também confere força aos evangélicos, pois sua articulação permite
maior facilidade de negociação para intervenções em leis, e a obtenção de facilidades
para a mídia evangélica, essencial para fazer crescer o número de fiéis e eleitores.
Uma vez que os evangélicos não representam uma novidade, e sim a substituição
do ator religioso que sempre manteve relações com o Estado, por que eles incomodam
tanta gente?
5
SYLVESTRE, Josué. Irmão vota em irmão: os evangélicos, a constituinte e a Bíblia. Brasília:
Pergaminho, 1986. p. 38.
O incômodo fundamentalista
6
JUGEN, HABERMAS. Entre Naturalismo e Religião: estudos filosóficos. Rio de janeiro:
Tempo Brasileiro, 2007. p.135.
as lutas contra leis sobre a descriminalização do aborto e a união civil de pessoas do
mesmo sexo, defendendo os valores da família tradicional cristã, da moral e dos bons
costumes, se posicionando contra medidas progressistas.
Este pensamento conservador, fruto do fundamentalismo religioso, emprega o
discurso do medo e do mundo em crise, onde a Igreja aparece como a única
possibilidade de salvação. A modernização capitalista, vinda de fora e em condições
desfavoráveis, gerou inseguranças sociais e rejeições culturais. As mudanças radicais
trouxeram, por um lado, a criação de trabalhos precários e mal remunerados, com a
ampliação do espaço urbano de modo desorganizado levando ao crescimento das
favelas. Por outro, mexeu com valores tradicionais da sociedade brasileira
majoritariamente cristã ao dar força e espaço para movimentos progressistas e
inclusivos, como o movimento feminista, LGBT e o movimento negro. Quando estes
movimentos exigem mudanças nas leis, costumes e práticas do país, eles mexem no
reino dos valores que servem de alicerce para boa parte da população. A precariedade
da situação econômica somada à quebra de paradigmas e valores gera uma sensação de
desenraizamento e insegurança.
É em cima desses sentimentos que os movimentos religiosos evangélicos agem,
oferecendo soluções a partir de um pensamento que busca recuperar o tradicional e
proteger a fé cristã contra novas ideias e modos de agir. Em meio às rápidas
transformações ocorridas na sociedade moderna este discurso de defesa dos valores
morais tradicionais, da Teologia da Prosperidade, da Guerra Espiritual e da
possibilidade de mudança através da atuação política aparece como uma possível
resposta aos problemas e anseios de parte da população brasileira. Mas faz isso se
escorando no fundamentalismo religioso, amparado numa razão instrumental prática e
individualista, preocupada com o imediato e fechada para o outro – para os que não
seguem ou transgredem a doutrina.
Este fundamentalismo se reflete na política, uma vez que os candidatos, ao
atuarem como representantes dos interesses de suas denominações, muitas vezes
utilizam argumentos religiosos na arena política, de tal modo que questões pessoais se
sobrepõem a questões objetivas. Os argumentos racionais e laicos, que deveriam ser
empregados por estes atores religiosos quando de sua atuação na esfera política de
acordo com Habermas, acabam abandonados para dar lugar ao discurso fundamentalista
intransigente, alicerçado em valores bíblicos, que deve ser seguido e, portanto, imposto
a todos.
Democracia não é a imposição da vontade de uma dita maioria sore os demais, é
a existência de mecanismos que permitam o diálogo e a representatividade dos
diferentes grupos que formam a sociedade, de modo que todos, tendo sua diversidade e
especificidades respeitadas, possam ter acesso aos direitos e serviços garantidos pelo
Estado. Por isso, o discurso fundamentalista e excludente é a antítese do que se espera
dentro de uma sociedade democrática.
Mas todos os evangélicos são fundamentalistas?
Homogeneidade evangélica?
7
Dip, Andrea. Como as candidaturas evangélicas ajudaram a eleger Bolsonaro. Justificando:
mentes inquietas pensam direito, 2018. Disponível em: <
http://www.justificando.com/2018/12/06/como-as-candidaturas-evangelicas-ajudaram-a-eleger-
bolsonaro/ > Acesso em: 30 de ago. de 2020.
conservadorismo. A oposição a essas agendas deu potência aos projetos políticos
evangélicos que se aproximavam de orientações à direita.
O outro caminho que ajuda a responder às perguntas levantadas é analisar a
própria esquerda brasileira. Atualmente os termos “direita” e “esquerda” abarcam um
significado que vai além de questões econômicas: as pautas progressistas são vistas
como pautas de esquerda e o conservadorismo é visto como inerente à direita. Os
partidos de esquerda no Brasil não só assumiram esta ideia, como muitas vezes parecem
fazer das pautas progressistas o seu foco, e talvez aí esteja o seu grande erro.
Se nem todos os evangélicos são conservadores, a maioria é. A esquerda não
conseguirá estes votos lutando pelos direitos reprodutivos femininos, ou o respeito à
vida de LGBT’s. Mas se a maioria dos evangélicos são conservadores, também são
pobres. E quando não se tem comida todo dia na mesa, questões morais podem ser
postas em segundo plano. É preciso que a esquerda volte a focar naquilo que mais
importa não só aos evangélicos, mas à maior parte da população brasileira, que é, assim
como a maioria dos evangélicos, conservadora e pobre. É preciso falar de emprego, de
salário, de moradia, saúde, educação e segurança.
Se numa sociedade verdadeiramente democrática, que se pretende liberal e
progressista, a proibição não é o caminho aconselhável, não se pode pensar na exclusão
da participação de políticos religiosos, mas na melhor forma de fazer sua inclusão.
Habermas nos oferece um caminho, mas os atuais políticos evangélicos eleitos optam
por ignorá-lo porque sabem que seu discurso é efetivo no Brasil atual. Tendo
consciência disso, não seria a hora de criar a contra narrativa dentro do próprio meio
evangélico?
Se os evangélicos ainda não são a maior parte da população brasileira, em breve
serão, e seria errado ignorar a influência que a identidade evangélica e o seu repertório
de ação simbólica podem exercer. Se existem entraves que atrapalham a consolidação
de um partido evangélico, sua contribuição não pode ser desprezada no fortalecimento
das candidaturas de políticos que buscam o apoio de igrejas pentecostais e
neopentecostais. Como Jair Bolsonaro, que conseguiu muitos votos evangélicos graças
ao seu discurso de proteção à família tradicional e contra os direitos LGBT, e ao apoio
direto que recebeu de líderes de grandes denominações evangélicas, como Edir Macedo
e Robson Rodovalho. Mas mesmo nesse caso os evangélicos não votaram como um
bloco homogêneo, as estatísticas pós-eleitorais mostraram que mais de um terço dos
evangélicos votaram contra as orientações “oficiais”8. E dentro dos meios progressistas
evangélicos houve inclusive apoio ao candidato Fernando Haddad, especialmente no 2º
turno.
O voto evangélico, mesmo dos pentecostais e neopentecostais, não está
definitivamente atrelado ao conservadorismo e à direita. Já passou da hora da esquerda
brasileira abrir mão de discursos arrogantes e preconceituosos, que enxergam pobres
evangélicos como simples massa de manobra, e passar a enxergá-los como atores do
jogo político que ganham cada vez mais importância, procurando entender suas
necessidades e como dialogar com elas. Os pentecostais e neopentecostais vieram para
ficar, e idealizar um mundo com uma completa separação entre Estado e religião, não
altera a realidade com que lidamos atualmente. Ou aprendemos a ganhar seus votos
para um projeto de país inclusivo, progressista e autônomo, ou teremos pela frente ainda
muitos anos de canelas de fogo, como Flordelis, acusada do assassinato do próprio
marido e filho adotivo, como a face do político evangélico brasileiro. O problema não
está necessariamente nos evangélicos, mas nos evangélicos que elegemos.
8
SEMÁN, Pablo. ¿Quiénes son? ¿Por qué crecen? ¿En qué creen? Pentecostalismo y política en
América Latina. Revista Nueva Sociedad, 280, Marzo - Abril 2019, ISSN: 0251-3552.