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3. Infraestrutura do Oeste.

Quase todas essas igrejas tinham evitado a politica até as signifi-

cativas mudanqas do final da década de 1960 e as representaqöes midiåticas,


ainda mais significativas, dessas mudanqas, que as fizeram sentir-se pro-
fundamente ameagadas e chocadas. O Partido Republicano, como parte
de seus esforgos para atrair brancos sulistas contrårios aos direitos civis

dos negros, recrutou esses pastores e seus rebanhos (da mesma forma que
o movimento dos direitos civis havia mobilizado as igrejas negras uma
década antes). Numa leitura peculiar, embora näo original, das escrituras,
Jesus näo era fresco: a direita cristä Jerry Falwell pöde proclamar que era um guerreiro de Deus. "Jesus näo
era um pacifista. Ele näo era um fresco."
O movimento feminista americano da década de 1960, ao lado de outros ata- Dois choques morais (eventos ou informaqöes täo perturbadores que fa-

ques (reais ou imaginårios) cultura e ås instituiqöes tradicionais, provocou zem com que as pessoas sejam recrutadas com mais facilidade) deram impulso
movimentos contrårios de conservadores religiosos para os quais a Bfblia
ao novo movimento: a aprovaqäo pelo Congresso da Emenda da Igualdade
cristä contém literalmente a palavra de Deus. E a vontade de Deus, segundo de Direitos de 1972 e a decisäo da Suprema Corte no caso Roe versus Wade,

esses grupos, é que os homens dominem as mulheres assim como Ele do- de 1973, que legalizou o aborto. As feministas foram descritas como bruxas

mina Sua igreja, o que implica diferentes papéis "naturais" para homens e
que haviam lanqado um ataque satånico familia americana, de modo que
mulheres. A pornografia ameaqava alterar a natureza do sexo e a educaqäo o movimento comeqou a se proclamar "pr6-famflia" e "pr6-vida", termos po-

sexual, solapar o poder paterno sobre ela, e -- pior do que tudo — o aborto sitivos que soavam melhor do que "antiaborto". A mobilizaqäo inicial contra

daria ås mulheres a capacidade de planejar e controlar sua pr6pria materni- a decisäo de Roe versus Wade foi liderada pela Igreja Cat61ica, obviamente jå

dade em vez de deixå-las aos cuidados de maridos e do cronograma de Deus. organizada, mas na década de 1980 os fundamentalistas protestantes assumi-
A nova direita religiosa que entrou na politica americana na década ram o controle, culminando nas atividades belicosas da Operaqäo Resgate

de 1970 extraiu alguns de seus membros de movimentos conservadores no final da década. Esse grupo, dominado por rapazes indignados com os
anteriores, especialmente do anticomunismo dos anos 1950, que s6 se dis- direitos das mulheres, era constitufdo de guerreiros de fato, que usavam a

solveu com a vit6ria esmagadora de Lyndon Johnson sobre Barry Gold- coergäo fisica para fechar clinicas de aborto, gritando, empurrando, cuspindo

water, um conservador, na eleiqäo presidencial de 1964. Em grupos de es- e amaldiqoando jovens mulheres aterrorizadas. E, para culminar, homens
tudos da John Birch Society, ativistas aprenderam que os Estados Unidos queimavam e explodiam clinicas, e sequestravam, alvejavam e por vezes ma-

estavam sendo ameaqados por uma conspiraqäo mundial de comunistas tavam médicos e outros funcionårios desses estabelecimentos hospitalares.

e socialistas, centralizada na Organizaqäo das Naqöes Unidas (ONU). No Se a direita cristä se sentiu ameaqada pela contracultura liberal, ela

final da década de 1960, mulheres sem sutiä e hippies de cabelos longos su- também tinha um braqo que dependia dessa nova cultura. Ambos os lados
peraram os comunistas como principal ameaqa ao estilo de Vida americano,
mais concentrado nos valores familiares do que nas liberdades individuais.
* Dissidéncia do movimento antiaborto que criou enorme tumulto na Convengäo do
Mais diretamente ainda, o novo movimento cresceu a partir de redes Partido Democrata em 1988, quando 1.500 militantes foram presos. Curiosamente, suas
de igrejas evangélicas e fundamentalistas, sobretudo nos estados do Sul e tåticas iniciais haviam se inspirado na näo violéncia de Martin Luther King. (N.T.)

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afirmavam oferecer uma existéncia mais profunda e significativa do que o
Cat61ica na década de 1970. A fé em Deus, a Vida ap6s a morte, o bem e o
mal e outras crenqas fundamentais a respeito do mundo podem fornecer
materialismo crasso dos shopping centers e da cultura de massa. O movi-
poderosas motivaqöes para a aqäo. Haveria maior estimulo å agäo do que
mento de Jesus do final da década de 1960 recrutou explicitamente hippies
o medo de apodrecer no inferno se vocé näo lutar contra o pecado?
no sul da California, em outros lugares, combinando casas comu-
e depois

nitårias, müsica folk, cultos empolgantes e uma teologia fundamentalista.


Também vemos aqui como movimentos opostos se inspiram mutua-

A direita também reivindicou o r6tulo de "radical", insistindo em que näo mente, com o sucesso de um lado se tornando uma ameaqa que mobiliza
o outro. As vit6rias das mulheres na década de 1960 e depois a de gays e
estava preservando o status quo, mas tentando transformar fundamental-
Iésbicas no decénio seguinte foram choques morais para os cristäos de di-
mente a sociedade americana. Tal como as mulheres e os afro-americanos,
reita, cuja homofobia, por sua vez, inspirou novas organizaqöes militantes
os ativistas conservadores sentiam-se exclufdos e desrespeitados, como
se as principais instituiqöes de seu pais tivessem Sido tomadas pelas elites
na comunidade LGBTQ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e queers), e
instrufdas e pela intelectualidade liberal que os tratavam com desprezo.
assim por diante. Se um lado entra na arena, o outro o segue.l
Grandes movimentos como a direita religiosa ou o movimento femi-
A maioria dos estudiosos dos movimentos sociais tem tendéncias poli-
nista, compostos de centenas ou milhares de pequenos grupos e seguidores
ticas de esquerda e estuda movimentos que admira. O resultado tem Sido
que, apesar de toda a sofisticaqäo das teorias do protesto, eles frequen-
individuais, näo aparecem do nada, tampouco desaparecem totalmente.
temente usam diferentes tipos de teorias para explicar movimentos de
Tanto os indivfduos quanto os significados culturais que os inspiram es-
esquerda e de direita. Os relatos sobre os movimentos de viés esquerdista-
taräo presentesnuma mobilizaqäo futura, quando antigas ideias vierem a
liberal säo simpåticos, observando as nuances das decisöes diffceis, ava-
assumir novas formas e novos vilöes. Eles tomam de empréstimo e trans-
liando os objetivos do movimento como razoåveis, aceitando sem ques-
formam a infraestrutura existente, que inclui comunicaqöes, transporte,
tionar o que dizem os de dentro. Jå os relatos sobre a direita tendem a ser
sistemas financeiro e juridico, salas de reuniäo, redes sociais, organizaqöes
mais psic016gicos, dedicando atenqäo a patologias cognitivas e emocionais
formais e todas as outras condigöes que permitem que as pessoas realizem
que poderiam iludir os participantes, procurando financiamentos secretos
suas tarefas. Manifestantes usam a infraestrutura para proclamar seus
de empresas ou partidos e subestimando as razöes apresentadas pelos pr6-
significados culturais.

A direita cristä mostra que religiäo e movimentos sociais interagem


prios manifestantes para explicar suas aqöes. A observaqäo participativa e a
introspecqäo (refletir sobre as experiéncias pr6prias) säo métodos comuns
de vårias maneiras. Acima de tudo, a religiäo comeqa e se difunde como
movimentos, mediante alguns dos mesmos processos de recrutamento e
para estudar os movimentos de tendéncia esquerdista-liberal, porém estäo
ausentes da pesquisa sobre movimentos de direita.
motivaqäo utilizados por outros (embora a conversäo forgada seja mais
comum nos movimentos religiosos, uma vez que passem a controlar Esta- Temos de aplicar mais psicologia esquerda, mas certamente preci-

samos empregar modelos menos pejorativos para a direita. Precisamos


dos e exércitos). Trata-se de movimentos religiosos no sentido mais estrito.
aplicar mais o que chamo de teste da pessoa normal a nossas teorias: usarfa-
Num segundo padräo, a religiäo oferece significados culturais, espaqos
livres e outras formas de infraestrutura a outros movimentos, como no mos os mesmos tipos de fatores para explicar nossas pr6prias aqöes? Serå

exemplo que aqui descrevo da direita cristä nos Estados Unidos. Uma que retratamos aqueles que estudamos como pessoas normais, capazes

terceira possibilidade é de que movimentos dentro de uma religiäo ten- de cometer erros, mas agindo com base em sua pr6pria visäo do mundo,

tem mudå-la, como tentou a Teologia da Libertaqäo em relaqäo å Igreja tentando implementar seus vårios projetos morais? Ou serå que os apre-
sentamos como täo desorientados, perturbados e cruéis que chegam a
Técnicas de pesquisa parecer anormais?
Movimentos de protesto sempre trafegam por camadas de contextos
Estudiosos tém usado todo tipo de métodos de pesquisa para entender
culturais e politicos, tirando vantagem das oportunidades que encontram.
o protesto, alguns dos quais especialmente sensfveis a significados cul-
Novas fontes de renda, fragilidades repentinas dos adversårios, novas are-
turais e outros näo. Teorias histöricas e estruturais tendem a privilegiar
nas, guinadas em avaliaqöes mais amplas säo aberturas para os ativistas,
dados quantitativos em lugar de eventos, revelando o nümero de distür-
se estes forem suficientemente espertos e sagazes para reconhecé-las e
bios, passeatas, peticöes etc. ocorridos a cada més ou ano durante longos
tirar vantagens delas. Quem carece de recursos pode frequentemente com-
periodos. Estes podem relacionar-se com outras grandes mudanqas, tais
pensar isso com escolhas estratégicas inteligentes. Mas existem algumas
como a importäncia crescente do parlamento ou alteracöes nas condicöes
precondigöes båsicas para a emergéncia de um movimento, e mesmo para
econömicas. Essas histörias de eventos säo extrafdas sobretudo de re-
os movimentos em geral. Comegamos a examinå-las no capitulo 1, mas
portagens jornalfsticas e registros policiais. Geralmente näo conseguem
agora precisamos analisar outras vantagens de que um movimento faz
atingir o que os eventos significam para os participantes, embora por
uso, especialmente arenas politicas abertas aos cidadäos, veiculos de co-
vezes mostrem o que eles significam para a polfcia e para os jornalistas.
municaqäo, redes sociais e organizaqöes formais. Nos bastidores de tudo
Para captar os "sentimentos e compreensöes" dos participantes,
isso estäo os mercados capitalistas, que afetam a distribuiqäo de recursos
estudiosos orientados para a cultura tém examinado seus pröprios
em qualquer sociedade.
textos e discursos, muitas vezes excluindo as técnicas retöricas ou os

relatos utilizados. Com mais frequéncia, os pesquisadores observam

movimentos no momento em que ocorrem, de modo que podem usar


Cidadania
a observacäo participante juntamente com entrevistas para entender

o que os manifestantes estäo pensando e sentindo. Se eles mesmos


Os contextos politicos säo fundamentais para a maioria dos movimentos
participam, podem usar a introspeccäo para avaliar suas pröprias rea-
sociais, afetando o modo como säo criados e aquilo que fazem. Alguns
cöes, expectativas e emoqöes a fim de presumir o que outros estäo
dos maiores movimentos sociais da hist6ria tém buscado ampliar a cida-
vivenciando e entäo confirmar ou contradizer essas ideias por meio de
dania, seja acrescentando novos direitos ou trazendo novas pessoas para
entrevistas. Experimentos podem mostrar como as pessoas pensam,
o corpo politico. Como vimos em "Wilkes e Liberdade", novos direitos
tomam decisöes e vivenciam emocöes — matérias-primas para a aqäo
de reuniäo e comunicaqäo favorecem novas mobilizaqöes, o que, por sua
polftica. Por fim, a maioria dos estudiosos desses movimentos utiliza
vez, aumenta a pressäo por novos direitos. Muitos dos participantes da
estudos de caso, de modo a poder observä-los em profundidade, téc-
agitaqäo promovida por Wilkes näo tinham propriedades suficientes que
nica que também tem suas inconveniéncias: eles näo sabem se sua
lhes permitissem votar, mas tinham a esperanqa de acabar obtendo essa
teoria se aplica a outros movimentos e tendem a se tornar admiradores
prerrogativa (como de fato ocorreu, por fim, com seus netos).
de um deles, incapazes de ver suas falhas e competéncias. Esse tipo
Na maioria dos pafses, a estrada que leva å plena participaqäo demo-
de pesquisa engajada é ao mesmo tempo militäncia e explicaqäo.
cråtica tem Sido demorada e violenta, com muitos obståculos ao longo do
caminho. Os movimentos de cidadania — incluindo os primeiros movi-
YO

mentos trabalhistas, o sufrågio feminino, os direitos civis e a luta atual e fixar residéncia? Os direitos de propriedade estäo garantidos? Existe li-

pelos direitos dos imigrantes — visam obter ingresso no sistema politico, berdade sexual e de escolha conjugal?

e geralmente avanqam quando encontram elites solidårias que jå estäo Os movimentos de direitos civis ou humanos visam eliminar a coer-

dentro. Alguns membros dos novos grupos chegam a alcanqar posiqöes $0, a tortura, a prisäo, as lesöes corporais e assim por diante; os movimen-

de alto comando em instituiqöes existentes: posiqöes de elite na politica, tos de cidadania buscam expandir o dominio da persuasäo por meio de

no mundo empresarial e nas universidades. novas pessoas e novos canais de influéncia. Quando um grupo oprimido
Facqöes constitufdas por pessoas de dentro do mundo politico abrem obtém direitos politicos, geralmente os emprega para obter também di-

as portas a recém-chegados por uma variedade de razöes. Em alguns casos, reitos civis. Estes, contudo, nem sempre levam a direitos politicos, talvez
elas percebem novos aliados que as ajudaräo nas lutas atuais, quase da porque o foco nos direitos civis caracterize um grupo como constitufdo
mesma forma como o Partido Democrata americano tinha a expectativa de vftimas sem forga para lutar por seus direitos politicos.2 Os direitos

de que novos eleitores negros o apoiassem — como tém feito, predominan- civis näo propiciam o empoderamento como o fazem os direitos politicos.

temente, desde a Lei dos Direitos Civis de 1964. Em muitos casos, isso é O contexto politico é diferente para um terceiro tipo de movimento,
resultado de cålculos eleitorais normais. Em casos raros, segmentos da elite os movimentos p6s-cidadania, compostos de pessoas que jå gozam dos
tém compromissos ide016gicos: por exemplo, fizeram declaraqöes em favor direitos båsicos dos cidadäos e estäo exigindo coisas de outro tipo, tais

de principios democråticos e podem ser forgados a seguir esses principios. como a proteqäo do meio ambiente, mudanqas nas penalidades criminais

Num terceiro tipo de caso, provavelmente o mais comum, as elites fazem para o uso de drogas ou dirigir embriagado, ou maior igualdade econö-

concessöes por temerem as consequéncias de näo o fazerem. Grandes gre- mica.3 Como jå desfrutam dos direitos båsicos dos cidadäos, os participan-
ves e distfirbios jå forqaram muitos politicos a aprovar leis conciliat6rias. tes dos movimentos p6s-cidadania frequentemente visam beneffcios para

Em todos os casos, politicos procuram obter ganhos estratégicos em suas outros: toda a humanidade, geraqöes ainda por nascer, os que sofrem em
pr6prias arenas, e novos eleitores ou novas leis podem ajudå-los de todas outros pafses, até mesmo outras espécies. Os movimentos religiosos mui-
as maneiras. Os grupos permanecem leais ao partido que lhes då o voto. tas vezes säo movimentos p6s-cidadania, exceto quando se trata da luta

Os direitos politicos dizem respeito å influéncia persuasiva de pessoas de uma minoria religiosa para obter direitos båsicos. (Muitos movimentos
sobre o Estado. Alguns dependem de quem faz parte do corpo politico, religiosos, como a direita cristä nos Estados Unidos, afirmam ser oprimidos,
outros do que eles podem fazer lå. Hå eleiqöes livres e justas tanto para o jå que isso lhes traz solidariedade e mobiliza seus membros.) Na maioria
executivo quanto para o legislativo? Existem leis e campanhas eleitorais dos pafses ricos, movimentos inspirados por ideologias religiosas tendem
abertas? Existem agéncias governamentais corruptas ou indiferentes ao a defender pautas moralistas, como a proibiqäo do aborto ou o direito das
püblico? É possfvel criar novos partidos? Existe uma oposiqäo e ela tem mulheres de usar véus.
A distinqäo entre movimentos de cidadania e p6s-cidadania nem sem-
algum poder?
Os direitos civis tém mais a ver com a interferéncia coercitiva do Estado pre é Clara, jå que muitos deles visam ampliar a ideia de direitos. O di-

na Vida dos cidadäos. Ele impede as pessoas de se reunirem e publicarem reito de se casar näo costuma ser imaginado como um componente da
suas opiniöes? Permite que se formem organizaqöes politicas e sindicatos? cidadania — exceto para os casais de mesmo sexo que dele säo exclufdos

A polfcia e as forqas militares estäo sob o controle civil? Pessoas säo presas, e que percebem os muitos beneffcios que ele acarreta, como o direito de

exiladas, torturadas ou aterrorizadas? Hå liberdade para trabalhar, viajar acompanhar o parceiro no hospital. Serå que os cidadäos tém o direito de
nao viver perto de um reator nuclear ou de um deposito de lixo perigoso? conversas exclusivamente face a face mfdia noticiosa global. Ativis-
Serå que um feto tem direitos civis ou é parte do corpo da mäe, sujeito a tas tentam disseminar suas ideias o mais amplamente possfvel, mas, na
suas escolhas em termos de procedimento médico? maioria dos casos, quanto maior o vefculo, menor o controle que tem
O principal territ6rio contestado, contudo, é econömico: as pessoas sobre a mensagem transmitida. Desde o século XIX, novas tecnologias
tém direito a moradia, educaqäo, saüde, emprego? fortuna da famflia? de comunicagäo tém ajudado movimentos sociais — mas também apoiado
Serå que os direitos dos cidadäos säo solapados pela desigualdade extrema, esforqos para monitorå-los e reprimi-los. A mfdia é um recurso ffsico
que impöe vergonha aos que estäo na base e estimula a arrogancia dos essencial, ainda que sua importåncia se deva principalmente aos signifi-

que estäo no topo? Muitos movimentos tentam redefinir as dificuldades cados culturais que transmite.
privadas como questöes de responsabilidades e direitos püblicos. Foram Vimos que no século XIX surgiram movimentos sociais de todos os

necessårias vårias centenas de anos para que direitos humanos e politicos tipos, em parte porque o råpido crescimento das cidades facilitou a comu-
fossem princfpios aceitos na maior parte do mundo, e o processo ainda nicaqäo e os transportes. Em bairros operårios superlotados, bater panelas
näo se completou. Pode ser que seja necessårio o mesmo tempo para o pode levar multidöes ds ruas, para construir barricadas ou sair em passeata
estabelecimento de direitos econömicos, especialmente porque atores po- rumo aos quartéis de policia. Bondes, linhas de metro e önibus acabariam
derosos, ou seja, empresas com fins lucrativos, estäo dando o måximo de permitindo que centenas de milhares de pessoas formassem o espaqo pt-
si na luta contra essa ideia. blicoem eventos de protesto. Os locais de trabalho também cresceram em
Os direitos dos cidadäos constituem uma infraestrutura fundamental tamanho. Uma greve numa das gigantescas fåbricas que apareceram no
para o protesto porque estruturam os custos de diferentes tipos de aqöes. século XX podia envolver milhares de participantes em vez das dezenas

O protesto é arriscado nos lugares em que a polfcia desrespeita os direitos que poderiam estar empregados numa diminuta fåbrica rural.
humanos, porém menos onde ela é desestimulada a maltratar suspeitos. A comunicaqäo também melhorou, especialmente com a invenqäo dos
Os direitos politicos säo um enorme passo frente para qualquer grupo, jornais baratos (e politicamente engajados). Insurgentes potenciais näo
permitindo-lhe participar de novas maneiras. Os direitos säo ao mesmo precisavam mais ir a cafés para acompanhar eventos, sobretudo com a si-

tempo um objetivo fundamental dos movimentos e os meios através dos multanea ampliaqäo da alfabetizaqäo (embora os cafés — s6 encontrados em
quais eles podem atingir muitos outros. Também säo uma visäo moral cidades — fossem geralmente espaqos protegidos, democråticos, livres, em
inspiradora, tendo se difundido pelo mundo para dar esperanqa a poten- que ideias radicais podiam ser debatidas e elaboradas). Os debates politicos
ciais manifestantes onde quer que estejam. permitiram que um grande ntmero de pessoas desenvolvesse ideologias.
Boatos ocasionais também desempenhavam um papel em mobilizar pes-
soas, mas o cidadäo urbano médio estava se tornando mais sofisticado do
Ganhando voz ponto de vista intelectual. Como vimos, nos Estados Unidos, os movimen-
tos sociais tiveram um grande avanqo na década de 1830 com a impressäo
Se o protesto é canalizado pelas instituiqöes e a infraestrutura politicas, e o envio maciqo, pelo correio, de bfblias e panfletos religiosos.

também é afetado pela midia disponfvel para transmitir sua visäo moral, O alcance da mfdia continuou a se expandir, com o rådio e depois a
pois isso determina seu püblico. A hist6ria tem assistido a uma ampla televisäo penetrando num nümero crescente de lares, locais de trabalho e
expansäo das possibilidades de transmitir as opiniöes das pessoas, de Praqas por todo o mundo. Mais tarde, a internet abriu canais para a trans-
missäo de mensagens menos centralizadas e unidirecionais.4 A mfdia social, nos de corporaqöes; desagrada-lhes especialmente falar sobre os inconve-

em que se inserem o Facebook e o Twitter, utiliza as redes existentes e, nientes da propriedade privada.6 Muitas vezes eles também tém intimidade
assim, permite a comunicaqäo por meio delas. Movimentos de protesto corn altos funcionårios do governo, seja por meio de redes sociais ou de

como o Moveon.org nos Estados Unidos e o "Somos Todos Khaled Said" seu trabalho. Até rep6rteres podem basear-se amplamente em fontes do
no Egito aprenderam a mobilizar um grande nümero de manifestantes governo. Quando a grande mfdia näo se constitui de empresas privadas, é

através de e-mails em massa e a reagir rapidamente usando mensagens de composta de agéncias governamentais, refletindo um conjunto diferente
texto no celular. Prosseguem as lutas por essa midia, näo täo descentra- de tendéncias, ou seja, a ideologia do Estado, que pode ser igualmente

lizada quanto parece, mas dependente de grandes empresas que podem contråria aos objetivos do protesto.
encerrar serviqos ou permitir a censura e o monitoramento sub-repticio Em resposta, movimentos sociais frequentemente criam seus pr6-
por parte do governo. prios vefculos de mfdia. Se éum movimento pequeno, pode ser nada
Muitos manifestantes säo obcecados pela cobertura midiåtica, inven- mais que uma ocasional newsletter, mas um grande movimento pode ter
tando eventos dramåticos para atrair a atenqäo, seja "levitando" sobre o sua pr6pria estaqäo de rådio ou televisäo, ou seu pr6prio jornal. Hoje em
Pentågono, promovendo um sip-in* pelo direito de homens gays serem dia, websites, blogs e gerenciadores de e-mail säo suficientemente baratos
servidos em bares, como em 1966, ou realizando flash mobs,
aconteceu para estar ao alcance de qualquer grupo. O pr6prio termo "fundamen-
uma espécie de teatro de guerrilha organizado mediante e-mails em massa, talismo" deriva de um projeto editorial lanqado em 1910 pelo Instituto
incluindo "carrot mobs que patrocinam uma loja em troca de seu com- Bfblico de Los Angeles. Doze volumes de ensaios — sob o tftulo The Fun-
promisso de fazer melhoramentos desejados, como por exemplo uma re-
damentals COs fundamentos] — apresentavam uma ideologia completa do
forma verde. Alguns grupos buscam a cobertura da mfdia excluindo outros
fundamentalismo protestante, distinguindo-o acidamente do catolicismo,
objetivos respeitåveis — e talvez mais eficazes.5 As vezes, eles esquecem
do mormonismo, do protestantismo liberal, das Testemunhas deJeovå e
que a mfdia näo é apenas uma arena, mas também um conjunto de atores
da Ciéncia Cristä, assim como atacando ideologias mais seculares como
com objetivos proprios (ver capftulo 7). Manifestantes podem atrair a aten-
o liberalismo, o socialismo e a evoluqäo.7 Os livros tiveram um sucesso
$0, mas tém pouco controle sobre a natureza dessa atenqäo: em muitos
notåvel em inspirar o ataque fundamentalista a toda espécie de avanqos
casos os manifestantes e suas aqöes fotogénicas säo a matéria, mas seus
e ideias do século X X, näo apenas com seus argumentos, mas também
argumentos säo ignorados.
por meio das redes sociais que os apoiavam e que eles reforqavam, ainda
A mfdia é um grande neg6cio, e mesmo pequenas iniciativas em ma-
disponfveis na década de 1970.
téria de mfdia autönoma acabam absorvidas pela corrente principal. Os
proprietårios da mfdia apresentam a maioria das tendéncias de outros do-
A maioria dos movimentos sociais pega um tema considerado privado
e tenta transformå-lo num problema de moralidade püblica, e a mfdia é

crucial para essa mudanqa. Tipicamente, primeiro ouvimos falar de um


* Diferentemente dos sit-ins em que estes se sentavam em es-
organizados pelos negros,
novo tema por meio de uma reportagem sobre um pequeno protesto, mui-
pagos püblicos a eles interditados, os sip-ins consistiam em gays que assim se declaravam
e exigiam o atendimento em bares, processando-os caso näo fossem atendidos. (N.T.) tas vezes tratado com hilaridade ou descrenqa. Mais tarde, podemos notar
** Termo originado da expressäo "follow the carrot", "siga a cenoura", alusäo å anedota editoriais que ainda zombam dos manifestantes, mas pelo menos levam
sobre as duas maneiras de se fazer andar um burro: agoitando-o ou colocando å sua frente,
na ponta de um bastäo, uma cenoura. (N.T.) 0 assunto suficientemente a sério para abordå-lo. Agora se trata de uma
Redes informais
O dilema da mfdia
As redes sociais, com as quais nos comunicamos com outras pessoas, säo
Grupos de protesto geralmente desejam alcanqar um grande nümero de
os tijolos na construgäo da interagäo humana, e nada acontece sem elas
pessoas, seja para divulgar sua mensagem ou recrutar membros, e a mfdia

convencional é uma forma efetiva de fazé-lo. Mas a atencäo que recebem


— inclusive o protesto. Chamamos pessoas conhecidas para participarem
conosco de uma assembleia; conseguimos informaqöes sobre eventos com
nem sempre é favorävel, jä que reflete as tendéncias de repörteres, edito-

res e proprietärios. Manifestantes tentam influenciar o conteüdo por meio nossos amigos e parentes; compartilhamos ideias e emoqöes com pessoas å
de anüncios escritos antecipadamente, a seleqäo e o treinamento de porta- nossa volta. Raramente vamos sozinhos a um encontro ou passeata; vamos
vozes e a cuidadosa cenografia dos eventos. Mas em todo envolvimento com um ou dois amigos ou parentes.
estratégico outros atores (neste caso, a mfdia) acrescentam um elemento É fåcil descrever as redes como uma teia de conexöes ffsicas, como
de imprevisibilidade. No pior dos casos, a atencäo da mfdia pode provo- circuitos num chip ou estradas num mapa. Nessa imagem estrutural, as
car uma reaqäo que desprestigie ou destrua o movimento de protesto. A pessoas reagem automaticamente quando suas redes säo ligadas. Uma
midia frequentemente enxerga os manifestantes como seres pitorescos, visäo mais cultural das redes é a de que indivfduos tém padröes de laps
e näo como porta-vozes em controvérsias püblicas sérias: as manobras
emocionais sustentados por sfmbolos e familiaridade cognitivos. Quando
ou distürbios que lhes permitem chegar ä porta impedem que eles sejam
minha irmä me pede para levå-la de carro a Albany no Dia da Terra, é
levados a sério.8 Essa é uma versäo do dilema dos aliados poderosos que
mais provåvel que eu diga que sim do que se tivesse recebido um e-mail
confronta todos os atoreS estratégicos (ver mais sobre isso no capftulo
de um estranho ou de uma organizagäo. Conheqo minha irmä a Vida toda,
7): vocé pode precisar de um aliado poderoso em funqäo de recursos ou
gosto de passar em suas afiliagöes politicas.
meu tempo com ela e confio
conexöes, mas é provävel que ele o use, tanto quanto vocé, para seus
Tenho um sentimento predominantemente positivo em relaqäo aos que
pröprios fins. A midia vai usä-lo para atrair audiéncias, mais do que ajudä-

10 a divulgar seus temas.


compöem minhas redes sociais. Outra forma cultural de pensar nas redes
é que elas nos fornecem oportunidades de persuadir outras pessoas, ås

vezes transformando as pr6prias redes nesse processo.9

controvérsia püblica legitima que pode até vir a ser reconhecida como um
Algumas redes jå existem e um movimento que surge tenta conectar-
se a elas. Para os antigos membros da direita cristä, a John Birch Society
problema püblico que precise de soluqäo.
havia desempenhado o papel de "campo de treinamento" para ativistas,
A nova mfdia transmite mensagens mais facilmente graqas ao aumento
dos niveis educacionais na maioria dos pafses do mundo. Jornais baratos
os quais formavam laqos duradouros ao mesmo tempo que desenvolviam

e mensagens de texto säo mais eficientes quando a maioria da populaqäo uma ideologia capaz de ser adaptada a novas causas.10 Congregaqöes pro-

é alfabetizada. Aqueles que passaram anos na universidade tém maior ca- testantes podiam ser recrutadas para o novo movimento por meio de seus

pacidade (e maior toleråncia em relaqäo a estilos obscuros de escrita) para pastores. Em outros casos, um movimento tenta fomentar suas pr6prias
desenvolver ideologias elaboradas, dispondo de evidéncias e argumentos redes de pessoas que se importam com um assunto. Velhas ou novas, as

de apoio com facilidade. A educaqäo também fornece muitas habilidades redes säo uma infraestrutura que possibilita aos grupos de protesto di-

e credenciais para dirigir organizaqöes.


fundir informaqöes e mobilizar participantes. Elas fazem com que as pes-
do que este se sente confortåvel em oferecer, ou pode inspirar nele uma
soas continuem vindo para desfrutar de antigas amizades, sentir-se boas,
reagäo que desafie o estilo de Vida protegido que caracteriza essas redes.
atualizar-se com as ültimas noticias.
Muitos movimentos sociais estimulam atividades privadas como parte
Redes informais podem crescer, transformando-se em subculturas, com
de seus esforgos por mudanqa social: reciclagem, consumo responsåvel,
estilos distintos de vestimenta, preferéncias em matéria de tåticas e ideias
plantar årvores, ler a Bfblia, evitar o controle da natalidade. É por isso
näo compartilhadas pelo restante da sociedade. As subculturas formam
que movimentos sociais e movimentos de protesto näo säo exatamente a
um tipo de estufa em que novas intuiqöes morais podem ser encorajadas e
mesma coisa, e suas atividades por vezes entram em conflito. Pode-se con-
vivenciadas, e onde ideias podem ser expressas sem inspirar repressäo ou
seguir muito como movimento social sem promover um protesto püblico.
enfrentar o ridiculo. Isso é especialmente provåvel quando elas possuem es-

pagos pr6prios que ajudam a construir redes mediante interaqöes face a face.

Redes e organizaqöes reforqam-se mutuamente. No curso do século


X X, os fundamentalistas americanos comeqaram com igrejas e editora Organizaqöes formais

pr6prias, mas acabaram desenvolvendo uma rede de escolas incluindo de


Para sustentar seus esforqos, manifestantes criam organizaqöes formais,
creches a programas de doutorado, seus pr6prios grupos de especialistas
com papel timbrado, website, escrit6rios, equipes regulares e outros sinais
e seminårios te016gicos, e todas as instituiqöes necessårias para uma cul-
de que devem ser levados a sério. A era moderna inventou e ampliou mui-
tura peculiar. Embora em teoria esses espaqos sejam protegidos, livres
tos mecanismos burocråticos para criar e manter organizaqöes: arranjos
da vigilåncia do governo, pastores e outros membros dessas redes com
estruturais, regras, procedimentos de contrataqäo e dispensa, fichårios e
frequéncia fazem afirmaqöes radicais que säo captadas pela mfdia conven-
outros equipamentos de escrit6rio, horårios, técnicas de administragäo,
cional: judeus e cat61icos väo para o inferno, os males do pais se devem
arquivos etc. Säo 6bvias as vantagens das organizaqöes: podem contratar
a sua toleråncia com gays e lésbicas, e assim por diante. Espaqos livres
tentam evitar o dilema da segregaqäo do ptblico por meio da privacidade
equipes, alugar um local de reuniöes, fazer telefonemas, ter computadores;
podem estabelecer regras e rotinas de modo a näo haver necessidade de
(ver capftulo 7), mas nem sempre tém éxito.
discutir tudo todos ospodem buscar doagöes de tempo e dinheiro
dias;
Essas redes e organizaqöes por vezes originam protestos mais visfveis em
que mantenham viva a causa mesmo com a chegada e safda de individuos.
arenas püblicas, especialmente quando um evento ou decisäo atrai a atenqäo
Organizagöes formais säo o cerne de muitos movimentos, mas, como
e atiqa a imaginaqäo. Essa é uma das razöes pelas quais grandes protestos
resume o dilema da organizagäo, trazem também custos e riscos.
podem surgir täo rapidamente: jå hå uma infraestrutura para ajudar a mo-
bilizar pessoas. Esta consiste näo apenas numa lista de telefones ou e-mails
Uma das vantagens das organizaqöes formais é que elas podem ser

(ou cartöes de Natal, para os militantes cristäos), mas também em padröes de


usadas sistematicamente no objetivo de levantar fundos para um movi-
mento social: candidatam-se a doaqöes da parte de fundaqöes; compram
confianqa, respeito e afeiqäo que envolvem as pessoas num nivel emocional.
listas de e-mails (formalmente, o que compram säo listas de endereqos
Elas podem alimentar entre si a indignaqäo, 0 6dio, a compaixäo e outros
postais); e atraem individuos ricos simpåticos causa — da mesma forma
sentimentos que acabaräo servindo de apoio ao protesto püblico.
que as empresas sem fins lucrativos. Ativistas abordam individuos ricos
O dilema deJano aparece no contraste entre a natureza privada, oculta,
por meio de redes pessoais, mas os e-mails em massa — para membros de
das redes subculturais e a natureza püblica de um protesto destinado a al-
uma organizaqäo ou assinantes de uma revista —, mais anÖnimos, também
cangar püblicos mais amplos. O protesto ativo pode exigir mais do ptblico
percebe-se que ela também é uma arena em que vårios indivfduos e facqöes
O dilema da organizaqäo discordam, ameaqam-se e lutam em funqäo de cada decisäo. Veremos no
capftulo 6 que essas batalhas se desenrolam de diferentes maneiras, mas
Manifestantes defrontam-se com muitas escolhas sobre como formalizar
nunca devemos esquecé-las, nem imaginar que um grupo complexo seja
suas operaqöes por meio de regras, levantamento de verbas, equipes re-
sempre um grupo unificado.
muneradas e escritörios. Formalidades como essas ajudam a manter as

atividades ao longo do tempo, mas também podem mudar essas ativida-

des. O objetivo de sustentar e proteger a organizacäo aparece ao lado de


Profissionais
sua missäo original, e frequentemente mais tempo é dedicado a levantar

fundos e ampliar equipes. Em alguns casos, a sobrevivéncia da organiza- Nem todos numa organizaqäo tém as mesmas habilidades ou influén-
cäo se torna o objetivo bäsico. Os membros podem entäo se tornar cinicos Cia. Quando as organizaqöes do movimento crescem, frequentemente se
quanto aos salärios da equipe, äs viagens pagas de seus [deres para as- apoiam numa equipe profissional em lugar de voluntårios: pessoas que
suntos oficiais, aos amplos e luxuosos escritörios. As leis que regulam a säo pagas para estar ali em vez de (ou ao lado de) pessoas que trabalham
operacäo de organizacöes näo lucrativas — especialmente sua isencäo de por entusiasmo pela causa. As organizaqöes podem controlar com maior
impostos — restringem suas escolhas täticas. As organizaqöes säo como facilidade sua equipe do que seus voluntårios, que muitas vezes também

outros meios estratégicos: sempre tem o potencial de virarem fins em si säo mais radicais em seus objetivos do que os membros da equipe. Por

mesmas, caso do dilema do aprendiz de feiticeiro que vimos anteriormente. outro lado, numa sociedade em que existem centenas ou milhares de or-

ganizaqöes de movimentos, hå espaqo para militantes profissionais com


toda uma Vida de experiéncia em fazer politica, tomar decisöes, reagir
rapidamente quando se abrem janelas de oportunidades e, de modo geral,
säo um tipo de rede preexistente. Organizaqöes de protesto buscam atrair aperfeiqoar seus instintos sobre boas e mås escolhas. Eles evitam muitos
dinheiro tanto de individuos quanto de fundaqöes. Quanto mais uma or- erros. Ativistasem tempo integral geralmente se envolvem em vårias
ganizaqäo cresce, mais ela precisa de dinheiro. causas ao mesmo tempo: uma em que säo pagos, outra no lugar onde
As organizagöes também ajudam a estabelecer rotinas regulares de vivem e outras ainda em que säo voluntårios. Para manterem uma ampla
protesto que tornam mais fåcil realizar eventos. Pessoas com know-how participaqäo sem se exaurirem, devem incorporar o ativismo a suas vidas
adequado podem atuar no movimento ou ser contratadas como consulto- cotidianas, e a melhor maneira de fazé-lo é ser pago para ser militante.

res. Na maior parte do tempo, as organizaqöes preferem as tåticas legais Essa ideia de uma carreira de ativista sugere que os indivfduos ope-
ås ilegais, jå que estas podem levar a polfcia a prender seus lfderes e fechar ram por meio de organizaqöes, mas as vezes também fora delas.ll Com
a instituigäo. Ela mesma se torna um potencial refém nas interagöes com o passar do tempo, eles entram e saem de instituiqöes, levando consigo
autoridades. sua habilidade e seu know-how. Uma carreira tem sua 16gica pr6pria, de

Vistas de fora, as organizaqöes parecem atores, com visöes, objeti- compromisso e desenvolvimento, independente da 16gica das organiza-

vos e preferéncias tåticas comuns. Os estudiosos certamente as tratam qöes. Diferentes formas de participaqäo se abrem a indivfduos em épocas
dessa maneira, com base em declaraqöes oficiais, panfletos e nas aqöes distintas de suas vidas, e suas experiéncias em cada fase afetam as op-

que promovem. Mas, quando se olha para dentro de uma organizaqäo, qöes que lhes säo apresentadas em fases futuras por meio das habilidades,
contatos e identidades que desenvolvem. Esses padröes ajudam a explicar säo sempre capazes de quebrar essas rotinas fazendo escolhas tåticas dife-
por que mulheres e homens muitas vezes acabam tendo diferentes papéis rentes: subitamente, um participante do Tea Party comeqa a interromper
nos movimentos, sobretudo quando os homens tendem a conseguir posi- sessöes da Cåmara de Vereadores, uma multidäo ocupa o parque Zuccotti
Göes remuneradas e as mulheres ficam com tarefas näo pagas. A ideia de ou o regime de Mubarak é expulso do poder. O protesto näo parece mais
carreiras no ativismo faz-nos recordar a importåncia da educaqäo como täo controlado ou normal.
infraestrutura externa a que os movimentos de protesto podem recorrer.
Os empreendedores morais, como vimos, inventam novas estruturas e
causas que esperam poder atrair atenqäo e simpatia e levar å mobilizaqäo
Capitalismo
um novo grupo ou movimento. A indignaqäo pode ser generalizada,
de
mas precisa de alguém que lhe dé nome, ofereqa um curso de aqäo e faca Os padröes de produqäo e distribuiqäo de renda säo sempre um contexto
o trabalho inicial de convocar e reunir pessoas. O termo "empreendedor" influente no protesto, seja como fonte de desacordos ou parte da infra-

tem desagradåveis implicaqöes de autointeresse, mas essas pessoas däo estrutura. Escravos säo submetidos a uma vigilåncia mais estrita do que
uma grande contribuiqäo em termos de trabalho cultural ao persuadirem camponeses, operårios mais do que médicos. Todo sistema de controle
outras em relaqäo a uma nova causa. Inventam e adaptam imagens, per- é fonte potencial de discordåncias. Lutas ocorrem no local de trabalho
sonagens, narrativas e outros significados culturais, esperando encontrar näo apenas pelo tamanho do salårio que serå pago, mas também pela
aqueles que tenham ressonåncia para potenciais participantes. Foi preciso duraqäo da jornada, pelo horårio a ser cumprido, pela intensidade do
que alguém avaliasse, por tentativa e erro, que o termo "bebé por nascer", trabalho durante a jornada e (um grande problema) pelo tratamento
combinado com sonogramas de fetos e alfinetes de lapela com pequeninos dispensado pelos chefes. Muitas greves e outras formas de resisténcia
pés, iria mobilizar mais pessoas do que os éditos formais em latim da Igreja säo desencadeadas quando os empregados percebem que näo estäo sendo
Cat61ica. "Bebés" provocou mais emoqöes do que "embriöes" ou "fetos" respeitados, que näo recebem o tratamento digno que todo ser humano
ou longos documentos sob o titulo "Evangelium Vitae". merece.Em muitos casos, a fafsca é um supervisor dizer alguma coisa
A ampla infraestrutura de protesto nas sociedades modernas — as or- inadequada a um empregado.
ganizaqöes, as leis que as regulam, os especialistas em levantamento de Täo importante quanto, a economia determina quem tem dinheiro
fundos e as empresas a isso dedicadas, o amplo know-how difundido por para gastar num protesto ou impedir que ele aconteqa. McCarthy e Zald13
meio de grandes redes informais de ativistas experientes e assim por diante ficaram impressionados pelo fato de uma nova classe média dispor de
— levou estudiosos a falarem de uma sociedade do movimento social em uma renda extra que lhe permite contribuir para suas causas favoritas,
que o protesto se tornou parte regular da politica.12 Por ser mais fåcil de aumentando o volume total' do protesto nas sociedades contemporaneas.
realizar, ele perdeu o poder de intimidar autoridades, atrair a atenqäo da Mas os ricos tém a maior parte do dinheiro. Estimulados pela ressur-
mfdia ou mesmo provar a forga dos compromissos morais e emocionais géncia da direita na década de 1980, Margaret Thatcher na Grä-Bretanha
dos manifestantes. Os püblicos do protesto fazem um pouco de aritmé- e Ronald Reagan nos Estados Unidos lideraram uma reaqäo, bancada
tica mental: serå que 100 mil assinaturas numa petiqäo online equivalem por corporaqöes e por ricos, contra os esforqos do Estado de bem-estar
a mil seres humanos de Pé do lado de fora num dia frio de inverno? Mas social no sentido de igualar rendimentos e proteger os vulneråveis. Os
ainda que o processo tenda, com o tempo, a cair na rotina, os manifestantes ricos aprenderam a usar seus recursos para influenciar politicos, primeiro
tories e republicanos, mas por fim também trabalhistas e democratas. O demoradas interaqöes que a persuasäo exige. Os regimes mais repressivos
dinheiro mudou tudo. Para dar um exemplo que demonstra o quanto o säo os que controlam näo so a economia, mas também a sociedade. E o
espectro politico mudou, o presidente republicano Richard Nixon criou poder do dinheiro é o motivo pelo qual a desigualdade solapa a democracia.

em 1970 a Agéncia de Proteqäo Ambiental, considerou a possibilidade de


implantar um imposto de renda negativo para ajudar os pobres e pelo
menos declarou apoiar a aqäo afirmativa — medidas progressistas que Globalizaqäo
o presidente democrata Bill Clinton, um quarto de século mais tarde,
ap6s a grande reagäo que empurrou os dois partidos americanos para a Antes do século XIX, todo protesto era local, concentrando-se no padeiro
direita, näo sustentou. do bairro que estava cobrando muito pelo päo ou no lorde que exigia
Corporaqöes e famflias abastadas däo duro para manter seu dinheiro e muito trabalho de seus camponeses. No final do século XVIII e especial-

obter mais. Isso näo significa que o mereqam, jå que uma das maneiras de mente no século XIX, com a expansäo das infraestruturas necessårias, o

dar duro näo é produzir bens üteis, mas influenciar polfticas e politicos de protesto passou a ser nacional, dirigido aos parlamentos como arenas-

maneira flagrantemente corrupta. Contratam assessores financeiros para chave. Nos filtimos anos, redes de comunicagöes, transportes, dinheiro e

ajudå-los a evitar impostos e lobistas para promoverem seus interesses. organizaqöes continuaram a ampliar seu alcance, conectando pessoas em
Contribuem com grandes somas para candidatos a cargos eletivos, aos diferentes pafses com mais facilidade do que antes, num processo conhe-
quais tém um acesso incomum quando necessitam. A indüstria financeira cido como globalizagäo.
fica louca quando se apresenta um projeto de lei visando a redistribuiqäo Manifestantes de uma localidade podem acompanhar eventos em outras
de renda, e os politicos quase sempre recuam. Notadamente, os ide610gos partes, aprender novas tåticas e inspirar uns aos outros instantaneamente,
conservadores dos Estados Unidos tém feito com que a "liberdade de mer- sem estarem no mesmo lugar. Mas se realmente quiserem visitå-los, os trans-

cado" pareqa um tema cristäo. portes também ficaram mais råpidos e baratos. Infraestruturas globais tém se
Além das maneiras pelas quais a economia distribui os meios de in- expandido, quer algumas afirmagöes mais extremas também sejam ou näo
fluenciar decisöes polfticas, a distribuiqäo de renda e riqueza é uma difi- verdadeiras (de que exista uma finica cultura ou mercado global emergente

culdadeem si e por si; na verdade, foi a motivaqäo e o alvo principais do ou de que os Estados-naqöes estejam se tornando obsoletos).

Occupy e movimentos correlatos. Embora o ressentimento em relaqäo aos Da mesma forma que os movimentos de protesto antes se orgulhavam
ricos sempre esteja presente, é necessårio um trabalho cultural para mo- de serem aqöes nacionais e näo locais, hoje em dia eles visam ter alcance
bilizar pessoas. Uma distribuiqäo desigual de renda pode ser interpretada mundial, como é o caso do movimento por justiqa global (ver capftulo 6).

como injusta, e os mercados devem ser considerados capazes de aceitar a Um dos primeiros movimentos a se sustentar em redes globais, de

intervenqäo humana, do contrårio as pessoas aceitam a situaqäo de modo fato aquele que as desenvolveu, foi o movimento contra o apartheid sul-

fatalista. (Mais tarde voltaremos a falar sobre culpa.) africano. Essa luta, presente desde o infcio desse regime em 1948, ganhou
Os mercados geram desigualdade, mas os governos podem aliviå-la reconhecimento internacional em 1960 ap6s o assassinato pela polfcia de

se o desejarem. Do lado positivo, os mercados säo formas eficientes de 69 pessoas em Sharpeville. A atenqäo da mfdia foi ampliada e sustentada

distribuir bens e serviqos, além de informaqöes, sem um planejamento por uma rede mundial de ativistas forgados a se exilar pelo governo do

central. Por isso regimes repressivos sempre tentam controlå-los. Dinheiro apartheid, e que viviam sobretudo em muitos dos centros de mfdia e ca-

traz liberdade, especialmente se comparado coercäo, mas também ds pitais politicas do mundo.14
Täo logo percebemos o alcance global do protesto, podemos ver que dos manifestantes anticapitalistas, esse movimento é ainda uma aspiraqäo,
em que se tomam decisöes. A
os Estados nacionais näo säo a finica arena uma convocaqäo å assembleia, um processo e näo um produto acabado. Mas
ONU e a Uniäo Europeia contém mültiplas arenas em que se elaboram leis o campo de batalha é cada vez mais global: para cada filme da Disney expor-
e regras de conduta, mesmo que estas ainda sejam aplicadas amplamente tado por Hollywood, hå uma critica circulando; para cada camiseta enviada

por governos nacionais. Uma perspectiva global estimula-nos a sermos mais de Bangladesh a Londres, hå um grupo de fiscalizaqäo tentando verificar
precisos sobre as arenas e os atores que estamos discutindo. E uma vez tendo as condiqöes das fåbricas que utilizam trabalhadores ilegais. Se existe uma
deixado de lado a ideia do Estado como ator unificado, podemos perceber cultura global da mercadoria, existe também uma cultura global da justiqa
toda a diversidade de arenas dentro de suas fronteiras e também fora delas. e dos direitos humanos.16 Os mesmos tipos de infraestrutura que enviam
as camisetas abrem caminho aos movimentos sociais.
Nos ültimos anos, conservadores religiosos tém seguido outros grupos
de protesto nas novas arenas internacionais que vém proliferando. Algu-
mas dessas campanhas constituem apenas intervenqöes em arenas nacio-
JK TfNHAMOS VISTO trés maneiras de se obter o que se deseja como politico
nais existentes, como quando o Fundo de Defesa da com base
ou ator estratégico: mediante a coergäo ffsica ou sua ameaqa; pagando
nos Estados Unidos, apresentou uma peqa processual na justiqa romena
a outros para fazerem coisas que, de outro modo, talvez näo fizessem;
em um processo (vitorioso) que pretendia definir o casamento
apoio a
e persuadindo pessoas a abragarem objetivos e usarem seu tempo para
como a uniäo de um homem com uma mulher e näo entre dois "esposos".
atingi-los. Vimos agora que grandes instituiqöes e infraestruturas politi-
Outras arenas säo explicitamente globais, mais obviamente a ONU e
cas, econömicas, organizacionais e tecn016gicas afetam tudo isso. Agora
suas vårias unidades, onde o Vaticano tem usado sua condiqäo de "observa-
também podemos ver uma quarta maneira de se obter o que se deseja:
dor especial" para apoiar a rede global "burca-batista" de organizaqöes fun-
pode-se ter membros da equipe em posiqöes hierårquicas que lhes possibi-
damentalistas religiosas. Grupos religiosos aprenderam a usar a linguagem
litem controlar a coerqäo, os pagamentos e os meios de persuasäo. Quanto
de direitos humanos que estå no cerne da missäo da ONU, rejeitando qual-
maior o ntmero de organizaqöes, maior o nümero de posiqöes como essas.
quer critica a suas posiqöes antiliberais como sendo "violaqöes de direitos
As sociedades modernas estäo cheias de organizaqöes formais; säo elas a
humanos fundamentais", ou seja, do direito a crenqas religiosas.15 Como maneira de conseguir que as coisas sejam feitas, incluindo o protesto.
na Roménia, grupos religiosos tém minado ou pelo menos bloqueado o Dinheiro, organizaqöes, redes, instituiqöes politicas e mfdia: sua dis-
avanqo dos direitos dos gays em muitas partes do mundo. Os recursos e a tribuiqäo é mais ou menos rfgida para um movimento social que esteja
legitimidade que organizaqöes ocidentais trazem a naqöes pobres podem comeqando. Todos säo mecanismos estruturais, poderfamos dizer. Mas o
gerar grandes retribuiqöes. movimento faz o possfvel para modificar todos eles: levantar fundos, cons-
A despeito dessas arenas internacionais, a maior parte do ativismo global truir novas redes e organizaqöes, fazer aliangas polfticas, atrair a atenqäo
ainda se concentra nas agéncias dos Estados nacionais. O capitalismo con- da mfdia, até mesmo intervir nos mercados. Manifestantes fazem tudo
tinua sendo mais global do que o protesto de que é alvo, ainda que o movi- isso — e seus opositores tentam impedi-los — por meio dos significados que
mento por justiqa global tenha tentado mudar essa situaqäo. Para a maioria criam e transmitem. A cultura anima as infraestruturas, tal como estas

ajudam a difundir a cultura. Passamos agora ås muitas maneiras pelas

*Entidade de conservadores religiosos cuja pauta inclui a luta contra o casamento ho-
quais manifestantes tentam produzir esses efeitos, a comeqar pelo modo
mossexual e o controle da natalidade. (N.T.) como recrutam novos membros para a causa.

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