Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
12
BARTH, Fredrik. “Grupos étnicos e suas fronteiras”. In: POUTIGNAT; STREIFF-FENART. Teorias
da Etnicidade. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1998.
como traço fundamental, a característica da auto-atribuição e da atribuição por
outros. Ou seja, os ribeirinhos sentem-se parte de uma comunidade e se
reconhecem membros dela, enquanto, simultaneamente, são reconhecidos da
mesma forma pelos “de fora”, pelos colonos que vivem às margens do rio Iriri. O
sentimento de pertencimento passa a ser a tônica para a formação e continuidade
do agrupamento e fato determinante para o estabelecimento das fronteiras sociais
lá encontradas, para a diferenciação entre o “nós” e os “outros”.
Evidentemente, não estamos sugerindo que ambos os grupos não tenham
relações das mais variadas entre si: sociabilidade, comércio, afetividade e outras
tantas. E, ainda mais, que os ribeirinhos não tenham estabelecido relações,
também, com os grupos madeireiros, garimpeiros e até grileiros que,
literalmente, atacaram a região antes – e depois – da criação da Esec Terra do
Meio. Porém, em momento algum, a construção dessa teia de relações
enfraquece o caráter identitário dos ribeirinhos. Ao contrário, nesses termos, a
relação entre a comunidade e agentes externos, sejam colonos, madeireiros,
garimpos, Estado, torna-se elemento fundamental, já que é perante este “outro”
que nasce e se fortalece um “nós”.13
Para além das margens do rio Iriri, assim como é vária a forma das
comunidades ribeirinhas se auto-identificarem, é também múltiplo o modo dos
sujeitos circundantes definirem e caracterizarem os membros das comunidades
tradicionais. As dimensões da história de cada um dos grupos, nos efeitos da
territorialização, na dimensão tempo-espacial, se realizam na prática cotidiana
dos grupos que estabelece vínculos mútuos com os seus, respectivos, “de dentro”
e “de fora”, os “nós” e os “outros”, que no plano do vivido, sentido, percebido e
concebido, produz o conhecido e o reconhecido. Isso identifica de forma distinta
para cada um dos dois grupos os elementos do “seu” espaço produzido em “seu”
processo histórico.14
13
Id. ibid..
14
Barth posicionou as discussões sobre identidades culturais e etnicidade para dois pontos principais. O
primeiro deles foi o apontamento de que as identidades estão presentes em todos os elementos da vida
social, portanto, estas não podem ser compreendidas isoladamente. O segundo é a compreensão de que a
sua descoberta deve ser feita a partir de seus limites, mas que estes não são fronteiras substanciais, mas
simbólicas e que o processo de construção de identidades requer um relacionamento entre os grupos, que
por oposição e contraste, delimitariam a sua própria identidade. Desta forma, a “identidade” é vista como
A maioria dos ribeirinhos encontrados na Esec Terra do Meio nasceu no
local ou às margens de rios e igarapés próximos. Nordestinos que chegaram ao
início da década de 1940, arregimentados como “soldados da borracha” e se
integraram à extração de látex são designados pelos ribeirinhos, também, como
ribeirinho. Já os colonos das margens do Iriri, chegados entre 2000 e 2004, não
são reconhecidos como ribeirinhos, mas como colonos. De modo recíproco, esses
colonos também se reconhecem como um grupo diferente daquele formado pelos
ribeirinhos.
Ainda que o tempo na terra mostre uma grande discrepância entre os dois
grupos, não é esse o principal fator de distinção entre eles, mas, sim, outros
pontos, a saber, o modo de vida, memórias comuns, a pertença a um universo
simbólico comum etc.
Para o efeito de se determinar as ações a serem tomadas em relação aos
ribeirinhos, ainda outros fatores devem ser levados em conta. O principal deles é
o enraizamento dessa população na terra onde vivem. A remoção dessas famílias
envolveria a expropriação de valores que não são passíveis de serem mensurados
em moeda, como, por exemplo, os túmulos de seus familiares ou os marcos e
monumentos naturais sob os quais se constrói a identidade, tanto no plano
individual, como coletivo.15
Não se deve, também, olvidar os direitos juridicamente constituídos que
dão guarida aos povos tradicionais em unidades de conservação de proteção
integral, como veremos adiante.
uma construção relacional entre o nós / outros, sendo que essa fronteira simbólica consiste na
“necessidade de definir e manter seus próprios limites e negar aos outros grupos”. Cf BARTH, Fredrik.
“Grupos étnicos e suas fronteiras”. In: POUTIGNAT; STREIFF-FENART. Teorias da Etnicidade. São
Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1998. p. 153.
Barth é referência por ter formulado, de modo decisivo, a distinção entre cultura e etnicidade. Até seu
trabalho, os elementos culturais que compunham a identidade eram tidos como fixos e poderiam ser
estudados por um ponto de vista. Para Barth, os grupos identitários não são resultados, mas pontos de
partida para o estudo da cultura. O foco é deslocado, então, para a dinâmica da organização social da
diferença, em constante transformação, ao invés da análise da cultura como junção de conteúdo. Portanto,
a ênfase recai nas fronteiras étnicas e culturais e assim pode-se observar esse movimento e também os
processos, tais como o motivo pelo qual alguns indivíduos fazem parte de um grupo ao invés de outro.
15
Sobre a relação entre identidade ribeirinha, território e marcos naturais, veja-se TORRES, Maurício. Na
morada de Mnemosine: a memória e o beiradão do Alto Tapajós. Anais do XIV Encontro Nacional de
Geógrafos – A Geografia e a Amazônia no Contexto Latino-Americano: diálogos práticas e percursos.
Rio Branco, 2006, v.2.
Antes de adentrar nestes pontos específicos, apresentaremos uma breve
memória do processo de formação desse povoamento ribeirinho e do processo de
criação da Esec Terra do Meio, restringindo-nos naquilo que toca à população
tradicional ribeirinha.
16
IANNI, Octávio. A luta pela terra: história social da terra e da luta pela terra numa área da Amazônia.
2. ed., Petrópolis, Vozes, 1979. p. 46. Grifos no original.
17
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo, Publifolha, 2000. p. 137.
momento de intensificação migratória para a extração de borracha na Amazônia
e, novamente, o Nordeste foi a principal origem dos trabalhadores.
Os seringais, comumente, eram em terras não reclamadas e a economia
extrativista dependeu muito mais do controle da mão-de-obra do que da terra.
Essa situação acentuava-se ainda mais nas regiões de rio acima, principalmente,
os de difícil navegação como é o caso do encachoeirado rio Iriri. Nesses locais, a
ocupação formal da terra era ainda mais rara e patrões locais ou firmas aviadoras
controlavam enormes extensões de terra, muito dificilmente adquiridas por meio
de registro formal e demarcação. Para o cumprimento dos trâmites para a
aquisição de terras devolutas, os agrimensores cobravam muito mais do que o
preço da terra, de forma que poucos eram os posseiros em condições de enfrentar
as despesas para legitimar legalmente e definir os limites de sua propriedade.18
Não havendo tão rígido controle da terra, a principal forma de controle
praticada pelos patrões, não se dava ao limitar o acesso à terra, mas por mecanismos de
endividamento, que derivaram em escravidão por dívida. Como comenta Ianni,
18
Cf. WEINSTEIN, Bárbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São Paulo,
Hucitec; Edusp, 1993.
19
IANNI, op. cit., p. 55.
20
WAGLEY. Uma comunidade amazônica. 2. ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1977, 107.
monoextrativismo da borracha, ocorria também o rearranjo das forças produtivas e das
relações de produção. [...] Diferenciou-se o extrativismo em coleta, caça e pesca; ao
mesmo tempo, formaram-se roças e criações. Constituiu-se um setor camponês
razoavelmente significativo, mas disperso no espaço ecológico.21
21
IANNI, op. cit., p. 63s.
22
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 8. ed., São Paulo, Hucitec, 1997. p. 178s.
23
TORRES, Mauricio. A beiradeira e o grilador. São Paulo. Dissertação (Mestrado em Geografia
Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP.
grupos familiares24. Mariana Pantoja, no Acre, registrou como a vida no seringal
era mais fácil para famílias numerosas:
[...] aquelas que contavam com braços para executar as diversas atividades produtivas
(seringa, caça, pesca, roçados) ao mesmo tempo. Os seringueiros transformaram-se
assim, a partir dos anos de crise do início do século XX, não em coletores
especializados, mas sim num “campesinato florestal” apto a diversificar suas atividades
econômicas e a sobreviver a crises setoriais.25
24
Cf. ALMEIDA, Mauro. “The Creation of the Alto Juruá Extractive Reserve”. In: PENDZICH, C.;
THOMAS, G.; WOHIGENT, T. (orgs.). The Rule of Alternative Conflict Management in Community
Forestry. Roma, 1993; WOLFF, Cristina Scheibe. 1998. Marias, Franciscas e Raimundas: uma história
das mulheres da floresta Alto Juruá, Acre – 1870-1945. São Paulo. Tese (Doutorado em História Social) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP.
25
PANTOJA, Mariana Ciavatta. Os Milton: cem anos de história nos seringais. Recife, Fundação
Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2004. p. 101.
26
ISA- INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, Projeto Realização de Estudos Preliminares e Formulação
de uma Proposta Técnica para a implantação de um Mosaico de Unidades de Conservação no Médio
Xingu. ISA/MMA, Brasília, 2003. p. 85.
Em resultado desse processo, em 2002, o Instituto Socioambiental – Isa
elaborou, com base em informações socioeconômicas, fundiárias e biológicas, a
“Proposta Técnica para Implantação de um Mosaico de Unidades de
Conservação no Médio Xingu”.
Esses estudos, em relação à população ribeirinha, além de registrar sua
existência, também atentou para a importância do território para aquele
específico modo de vida:
Há sim, ainda atualmente, uma profunda relação com o lugar de moradia, com os
castanhais, seringais e antigas habitações. Estas marcas humanizam o ambiente,
conferindo identidade e singularidade a cada lugar em particular. Todos os moradores
tradicionais, entretanto, se identificam como “beiradeiros”, fazendo uma clara distinção
para com aqueles recém-chegados que representam uma mudança de padrões, percebida
como uma ameaça para a posse de suas terras. Há, portanto, uma manifesta
identificação com um modo de vida típico dessas populações ribeirinhas nos
depoimentos dos moradores.27
27
ISA, op. cit., p. 87.
28
Id.ibid.
29
Ibid, p. 88.
Em 1999, estudos realizados por Almeida30 apontam 112 habitantes no rio
Iriri, acima da localidade Entre Rios e, nos estudos do Isa, nessa mesma porção
do rio são encontrados 99 habitantes, conforme dados compilados na Tabela 12.31
30
ALMEIDA, M. P. de. Caracterização Sócio-Econômica e Utilização de recursos Naturais pela
População Residente nos Rios Iriri e Curuá (Altamira – Pará). Belém, 1999. Monografia. Universidade
Federal do Pará – UFPa.
31
Isa, op. cit., p. 90.
Com base, também, na distribuição dessa população, mostrada no Mapa
3.2.1, o mosaico proposto estende a Resex do Iriri, até o último morador
tradicional à montante do rio, conforme o Mapa 3.2.2.
Note-se que, a proposta de traçado para a Resex abrange, rigorosamente,
toda a área com registro de ocupação tradicional.
Mapa3.2.132
32
Isa, op. cit., p. 89.
Mapa 3.2.233
33
Isa, op. cit., p. 173.
Mapa 3.2.3
Compara-se, no Mapa 3.2.3, a proposta de delimitações do mosaico de
unidades de conservação da Terra do Meio, derivado do amplo estudo elaborado,
com o traçado implantado.
Em relação ao quadro de áreas, tem-se o seguinte:
34
Segundo http://www.ibama.gov.br/novo_ibama/paginas/materia.php?id_arq=2994. Outras fontes falam
em R$ 20,6 milhões.
multa astronômica foi capaz de inibir os marginais, que no ano de 2005 voltaram
a delinqüir. Mas desta vez a área é muito maior. O sentimento de impunidade
forjou uma audácia, quase uma declaração de guerra ao estado democrático de
direito".35
José Dias Pereira não se limitou ao enorme quinhão que permanece em
seu poder por ter ficado – literalmente, inexplicavelmente – fora da Esec,
contrariando todos os argumentos técnicos indicados nos estudos. Ele avançou
para dentro dos limites da Estação ecológica e, agora, tenta por meio de um
projeto de lei, reduzir ainda mais a unidade de conservação. No tópico 4.2, a
apropriação de Pereira e as pretensões de desafetação da Esec são retomados e
melhor abordados.
Segundo informações prestadas pela Polícia Federal, o fazendeiro Aldimir Lima Nunes,
o "Branquinho", foi preso neste dia 21 de janeiro em Fortaleza (CE). Na hora de ser
capturado, andava armado. Anos atrás, Branquinho havia deixado o Ceará para o
Tocantins e o Pará, deixando ali ume ficha-crime já consistente. Segundo o
35
http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias-do-site/criminal/criminal-2006/preso-o-responsavel-pelo-maior-
desmatamento-do-ano-na-amazonia-20050901
Superintendente da PF do Tocantins, o preso será transferido para Brasília onde deve
ser mantido em estabelecimento de alta segurança.
No dia 24 de setembro do ano passado, depois de quase um ano foragido da Justiça
Federal (prisão provisória decretada em outubro de 2002 pela Justiça Federal do
Tocantins, em relação à denúncia de vários crimes entre os quais aliciamento,
homicídio, trabalho escravo, grilagem), havia se entregado em Marabá-PA, quando o
cerco policial estava para se fechar ao seu redor.
Com a acusação então apresentada pelo Ministério Público, de que o fazendeiro seria o
autor de repetidas ameaças de morte proferidas contra o trabalhador Jair Matos (de
Ananás-TO), contra agentes da CPT do Tocantins (Edmundo Rodrigues, Silvano
Rezende, Xavier Plassat) e contra o então Procurador da República em Palmas-TO
(Mário Lúcio de Avelar), o Juiz Federal de Marabá decretou sua prisão temporária,
neste mesmo dia 24 de setembro.
Não passaram dois meses e Branquinho, fugiu no dia 05 de novembro do
estabelecimento prisional de Marabá, onde estava sob a custódia da Polícia Civil do
Pará, saindo pela porta da frente sem a menor dificuldade. De lá para cá, a imprensa
relatou novos envolvimentos criminosos de Branquinho em confronto de pistoleiros
operando na região do Iriri (Terra do Meio, sul-Pará) opondo grupos concorrentes na
grilagem de terra. O última confronto relatado, dia 24 de novembro, resultou na morte
de 3 dos envolvidos. Ao lado das causas estruturais (carência de políticas de
desenvolvimento adequadas nas regiões de aliciamento, perversidade do modelo de
exploração da Amazônia), a impunidade tem sido apontada como um fator determinante
na permanência do trabalho escravo no país.
Como parte do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, adotado em março
de 2003 pelo Governo Federal, entidades e grupos solidários do Brasil e do exterior, há
meses, cobram das autoridades brasileiras um empenho reforçado na investigação das
múltiplas situações criminosas existentes na região do Iriri, bem como na apuração dos
vários crimes de trabalho escravo e no efetivo julgamento dos envolvidos. Em 2003, a
CPT teve conhecimento de 229 denúncias de trabalho escravo no Brasil, envolvendo
7.800 trabalhadores (metade das vítimas no Pará) dos quais 4.970 foram libertados em
149 fazendas, em 7 estados (PA, MA, MT, TO, RO, BA, RJ), graças à intensificação da
fiscalização do Ministério do Trabalho.36
36
REPORTER BRASIL. Fazendeiro "Branquinho" é recapturado no Ceará. 23 JAN. 2004. Disponível
em http://www.reporterbrasil.com.br/exibe.php?id=214. Acessado em jul. 2008.
A Esec Terra do Meio foi decretada em 17 de fevereiro de 2005, cinco
dias após o assassinato da missionária Doroth Stang. A criação da unidade de
conservação veio, também, em resposta à comunidade internacional pelo crime
cometido. Havia que se mostrar que o governo brasileiro estava, sim, cuidando
das florestas.
Servidores do MMA que também não quiseram se identificar explicam
que a redução da Esec (em benefício dos grandes que se apropriavam das terras
públicas como mencionado acima) diminuiria a área e, segundo esses
depoimentos, o MMA queria responder às cobranças internacionais com um
vultoso número. A solução teria sido a amputação da área indicada nos estudos
para ser destinada a resex e a expansão da Esec sobre ela. Dessa forma, privando
a população tradicional do rio Iriri de seus direitos e garantindo a grileiros a terra
(sob a qual não tinham direito) se pode oferecer à opinião pública “mais de 3
milhões de ha de área de proteção integral”.
Novamente, a extensão da Resex do Iriri no traçado proposto pelo estudo
era técnica e cientificamente justificada e, ao contrário de seu multilamento,
vindo sem qualquer fundamentação de qualquer ordem.
A interrupção da Resex fracionou um agrupamento social historicamente
constituído. Os moradores afortunados por terem ficado dentro da Resex – o que,
nos parece – foi bastante ao acaso, estão, ainda que precária e embrionariamente,
tendo acesso a direitos civis como documentos de identidade, educação,
tratamento de saúde e outros. A parte do grupo que está na área proposta pelo
estudo para ser Resex, mas onde foi criada a Esec, não tem acesso a nenhum dos
serviços sociais de que desfruta o grupo à jusante. E não é só isso, direta ou
indiretamente, os habitantes tradicionais da Esec sofrem uma cruel
criminalização por parte do Ibama/ICMBio. O seu crime seria o de não terem
tido seus direitos ao território reconhecido e a área onde vivem ter-lhes sido
negada com a criação da Esec Terra do Meio.
Mapa 3.2.6
3.3 A população tradicional moradora da esec terra do meio hoje.
37
Sobre o banco genético desenvolvido e gestado pelas populações tradicionais, veja-se: TORRES,
Maurício. “A despensa viva: o banco de germoplasma dos roçados da floresta amazônica”. In: Agrária.
Depto. de Geografia, Laboratório de Geografia Agrária, Universidade de São Paulo – USP. [submetido].
Família de Seu José Boi, às margens do rio Iriri.
Exemplo de população tradicional ribeirinha ocupante do interior da
Esec Terra do Meio.
Na casa de Dona Josefa, por exemplo, essa senhora se sente ultrajada
por ter hospedado a equipe do Ibama/ICMBio e, na partida da equipe, ter
tido sua casa revistada (sem que poupassem sequer suas roupas íntimas) e as
espingardas de caça de seus filhos confiscadas.
Nas palavras dessa senhora:
O IBAMA chegou falando que a gente ia ter que desocupa a área e que não podia nem
caçar e nem botar mais roça, nem um palmo. Eu tenho que respeitar a autoridade. Ai,
não sei como vamos viver, porque se não colocar roça não colhe e se não colher, nós
não come. O moço não falou se ia trazer comida pra gente.
Sendo, por excelência, o corpo de leis que estabelece critérios e normas para a criação,
implantação e gestão das unidades de conservação, ele estabelece obrigações e deveres
tanto para os responsáveis pela sua execução, quanto para aqueles que foram
submetidos à sua regra. O paradigma da relação dos homens entre si, portanto, é
evidenciado quando observamos as relações sociais que passam a existir depois da
criação de uma unidade de conservação. As pessoas que viviam nestes locais antes da
criação, passam a ter que dialogar com os responsáveis pela implantação e gestão das
unidades de conservação, e, frequentemente, com organizações não-governamentais que
não raro assumem a co-gestão da área (QUEIROZ, 1995; PEREIRA, 2002). Neste
sentido é institucionalizada uma arena de disputas que congrega questões sobre a
exclusão de determinados atores ao uso dos recursos naturais, às formas (sustentáveis)
de utilização dos recursos naturais, a responsabilidades com relação à conservação dos
recursos naturais (dos moradores ou do Estado?), e aos deveres de cada ator concernido
por nesta nova configuração político-institucional criada (FERREIRA, 1996 e 2004;
FERREIRA et al. 2007).38
Não fez parte dessa etapa de nosso trabalho, a pesquisa sobre a forma de
utilização da floresta pela população ribeirinha, porém, nos estudos elaborados
para a proposição do mosaico de unidades de conservação da Terra do Meio,
afirma-se que essa população emprega mais do que um uso de tecnologias
38
MENDES, Ana Beatriz Vianna. Ambientalização de direitos étnicos e etnização das arenas ambientais:
populações tradicionais e povos indígenas da Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá
(AM). In: 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2008, Porto Seguro. Caderno de Resumos da 26a.
Reunião Brasileira de Antropolocia, 2008.
patrimoniais importantes à sustentabilidade, mas, também, que oferecem valiosos
préstimos ambientais:
A opção pela palavra “tradicional” gera mais dificuldades ainda, dada à polissemia
dessa palavra e a forte tendência de associá-la com concepções de imobilidade histórica
e atraso econômico. A teoria da modernização, por exemplo, prognosticava a inevitável
(e desejável) superação da “sociedade tradicional” (Lerner 1958).41
39
Isa, op. cit., p. 85.
40
Ibid., p. 86.
41
LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da
territorialidade. Brasília, Universidade de Brasília, Departamento de Antropologia, 2002.
Todavia, nesta análise, a importância dada às constantes mudanças históricas
provocadas pelos processos seculares de fronteiras em expansão e aos múltiplos tipos de
territórios sociais que produziram, mostra que o uso do termo tradicional aqui refere
explicitamente a realidades fundiárias plenamente modernas (e, se quiser, pósmodernas)
do século XXI. Aqui a conceito de tradicional tem mais afinidades com uso recente
dado por Sahlins (1997) quando mostra que as tradições culturais se mantêm e se
atualizam mediante uma dinâmica de constante transformação.
42
ROCHA, Ibraim José das Mercês. “Posse e domínio na regularização de unidades de conservação.
Análise de um amazônida”. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 64, abr. 2003. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3972>. Acesso em: 14 dez. 2005.
“cachaceiros”, pelos litros de pinga, “garimpeiros”, pela tradicional prática do
trabalho sazonal para monetarização em períodos específicos do ano agrícola,
“laranjas de grileiros” etc.
É de vital importância que os servidores que terão contato com essa
população saibam que o conceito de “população tradicional” é objeto de intenso
e acalorado debates, sobre o qual existe imensa bibliografia e, ainda assim, não
possui definição consensual, quer seja no âmbito jurídico, quer seja
academicamente43. Não obstante esse desencontro, o conceito é utilizado por
juristas, cientistas e pelo governo e, como registrou Henyo Trindade Barreto
Filho, é usado no auto-reconhecimento por parte das populações às quais ele se
refere: “a noção produz efeitos nas disputas simbólicas constitutivas da
micropolítica das lutas camponesas em torno do acesso aos fatores de produção e
nos processos políticos que influenciam os direitos territoriais”.44
No trato com as populações tradicionais, os servidores do Ibama/ICMBio
não podem se olvidar que, mesmo a área sendo uma unidade de conservação de
proteção integral, a ocupação por população tradicional acontece em
conformidade com as normas jurídicas, quais sejam, o art. 225 da Constituição
Brasileira de 1988, o Decreto 6.040, de 7 de fevereiro de 2008 (Política Nacional
de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais), a
Convenção 169 da OIT (da qual o Brasil é signatário) e o próprio Sistema
Nacional de Unidades de Conservação (SNUC, lei federal n° 9.985, de 18 de
julho de 2000).
Dessa forma, o uso da terra e dos recursos segundo o modos operandi da
população tradicional é lícito e a União não pode infringir esses direitos, sob
pena de ser obrigada também a indenizar os danos que essa ofensa gere.
Nunca é demais lembrar que o Capítulo VII do Snuc, deixa claro que:
43
Sobre isso, veja-se, entre muitos outros, SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. São
Paulo: Instituto Socioambiental – Isa, 2005; VIANNA, Lucila Pinsard. Considerações críticas sobre a
construção da idéia de população tradicional no contexto das Unidades de Conservação. São Paulo,
1996. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo – USP e BARRETO FILHO, Henyo Trindade. “Populações Tradicionais:
introdução à crítica da ecologia política de uma noção”. In: ADAMS, Cristina; MURRIETA, Rui e
NEVES, Walter (Orgs.). Sociedades Caboclas Amazônicas: modernidade e invisibilidade. São Paulo:
Annablume, 2006.
44
BARRETO FILHO, op. cit., p.110.
Art. 42. As populações tradicionais residentes em unidades de conservação nas quais
sua permanência não seja permitida serão indenizadas ou compensadas pelas
benfeitorias existentes e devidamente realocadas pelo Poder Público, em local e
condições acordados entre as partes.
§ 1o O Poder Público, por meio do órgão competente, priorizará o reassentamento das
populações tradicionais a serem realocadas.
§ 2o Até que seja possível efetuar o reassentamento de que trata este artigo, serão
estabelecidas normas e ações específicas destinadas a compatibilizar a presença das
populações tradicionais residentes com os objetivos da unidade, sem prejuízo dos
modos de vida, das fontes de subsistência e dos locais de moradia destas populações,
assegurando-se a sua participação na elaboração das referidas normas e ações.
§ 3o Na hipótese prevista no § 2o, as normas regulando o prazo de permanência e suas
condições serão estabelecidas em regulamento.
45
Sobre essa pauta, veja-se: TORRES, Mauricio; FIGUEIREDO, Wilsea. “Yellowstone Paroara”. In:
TORRES, Mauricio. Amazônia Revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPq, 2005.
O modelo de conservacionismo norte-americano espalhou-se rapidamente pelo mundo,
recriando a dicotomia entre “povos” e “parques”. Como essa ideologia se expandiu
sobretudo para os países do Terceiro Mundo, seu efeito foi devastador sobre as
“populações tradicionais” de extrativistas, pescadores, índios, cuja relação com a
natureza é diferente da analisada por Muir e pelos primeiros “ideólogos” dos parques
nacionais norte-americanos. É fundamental enfatizar que a transposição do “modelo
Yellowstone” de parques sem moradores vindos de países industrializados e de clima
temperado para países do Terceiro Mundo, cujas florestas remanescentes foram e
continuam sendo, em grande parte, habitadas por populações tradicionais, está na base
não só de conflitos insuperáveis, mas de uma visão inadequada de áreas protegidas.
Essa inadequação, aliada a outros fatores – como graves conflitos fundiários em muitos
países, noção inadequada de fiscalização, corporativismo dos administradores, expansão
urbana, profunda crise econômica e a dívida externa de muitos países subdesenvolvidos
–, está na base do que se define como “crise da conservação”.46
46
DIEGUES, A. C. S. O mito moderno da natureza intocada. 3. ed., São Paulo: NUPAUBUSP, 2001. p.
37.
na varanda, a lenha pra cozinhar e aquecer, a construção de uma nova casa para o filho
que se casou etc., tudo isso é, de uma penada jurídica, transformado em crime e seus
praticantes perseguidos e penalizados. Ao mesmo tempo, são instados a proteger e
respeitar o meio ambiente, sendo encarados como os principais responsáveis (não o
modelo urbano-industrial em expansão) pelo futuro da humanidade, corporificado na
preservação da área em questão.47
47
ARRUDA, R. S. V. “'Populações tradicionais' e a proteção dos recursos naturais em Unidades de
Conservação”. In: DIEGUES, A. C. S. (org.). Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza
nos trópicos. 2. ed., São Paulo: Annablume; Hucitec; NUPAUB-USP, 2000. p. 273-290. p. 280s.
Bibliografia
ALMEIDA, Mauro. “The Creation of the Alto Juruá Extractive Reserve”. In:
PENDZICH, C.; THOMAS, G.; WOHIGENT, T. (orgs.). The Rule of Alternative
Conflict Management in Community Forestry. Roma, 1993.
ANDRADE, Manuel Correia de. 2004. A questão do território no Brasil. 2. ed., São
Paulo, Hucitec.
BORGES, Torminn. 1994. Institutos básicos do direito agrário. 8. ed., São Paulo:
Saraiva.
CANDIDO, Antonio. 1979. Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a
transformação dos seus meios de vida. 5. ed., São Paulo: Duas Cidades.
CARVALHO SANTOS, J. M. de. 1964. Código civil brasileiro interpretado. 6ª. ed.,
Freitas Bastos.
CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. 1.
ed., 6. reimp., São Paulo, Brasiliense, 1996.
FOSTER, Germano de Rezende. 2003. A privatização das terras rurais. Barueri (SP):
Manole.
GARCIA JR., Afranio Raul. 1983. Terra de trabalho: trabalho familiar de pequenos
produtores. Rio de Janeiro, Paz & Terra.
HEREDIA, Beatriz Maria Alásia de. 1979. A morada da vida: trabalho familiar de
pequenos produtores do Nordeste do Brasil. Rio de Jandeiro, Paz & Terra.
IANNI, Octávio. A luta pela terra: história social da terra e da luta pela terra numa área
da Amazônia. 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1979.
JUNQUEIRA, Messias. 1942. Justificativa e ante projeto da Lei de Terras. São Paulo:
Revista dos Tribunais.
LIMA, Rafael Augusto de Mendonça. 1994. Curso de direito agrário. Rio de Janeiro:
Renovar.
LIMA, Ruy Cirne. 1988. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras
devolutas. 4. ed., Brasília: Escola de Administração Fazendária – Esaf.
LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma
antropologia da territorialidade. Brasília, Universidade de Brasília, Departamento
de Antropologia, 2002.
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 8. ed., São Paulo, Hucitec, 1997.
NOVOA, Helio da Costa. 2000. Discriminação de terras devolutas. São Paulo: Livraria
e Editora Universitária de Direito.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de; MARQUES, Marta Inez Medeiros (orgs.). 2004.
O campo no século XXI: território de vida, de luta e de construção da justiça
social. São Paulo: Casa Amarela.
PANTOJA, Mariana Ciavatta. Os Milton: cem anos de história nos seringais. Recife,
Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2004.
PEREIRA, José Edgar Penna Amorim. 2003. Perfis constitucionais de terras devolutas.
Belo Horizonte: Del Rey.
RODRIGUES, Sílvio. 1967. Direito Civil. 3ª. ed., Max Limonad; vol. I e vol. III.
SANTOS, José Vicente Tavares dos Santos. 1978. Os colonos do vinho. São Paulo:
Hucitec.
SHANIN, Teodor. 1972. The Awkward Class. London: Oxford University Press.
SODERO, Fernando Pereira. 1968. Direito agrário e reforma agrária. São Paulo:
Livraria Legislação Brasileira.
STEFANINI, Luís Lima. 1978. A propriedade no direito agrário. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais.
WOLFF, Cristina Scheibe. 1998. Marias, Franciscas e Raimundas: uma história das
mulheres da floresta Alto Juruá, Acre – 1870-1945. São Paulo. Tese (Doutorado
em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP.