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UMA CARTOGRAFIA DA MEMÓRIA

Dona Santa contava de um dos tantos seringais do Tapajós, onde seu tio morrera
em um confronto com índios, quando, de susto, silencia.
Leva a mão ao rosto.
É um gesto carregado da autoridade de seus mais de 80 anos nas margens
daquele rio. Demora um instante, sorri triste: “Hoje eu entendo bem. Naquela época,
a gente fez com os índios o mesmo que os grileiros estão fazendo com a gente
agora.”
A velha matriarca, sem o saber, adivinhava o germe de uma aliança que já se
construía na floresta, uma aliança entre índios, ribeirinhos, quilombolas, seringueiros,
varjeiros, camponeses, castanheiros, quebradeiras de coco e mais um mundo de
populações que se viam frente ao mesmo conflito, frente à mesma ameaça.
Uma ameaça sem rosto. Monstro sem nome, ou melhor, de muitos rostos e
nomes. Se falasse verdades, talvez dissesse meu nome é legião: agronegócio, setor
florestal, fazendeiro, hidrelétrica, grileiro, madeireiro, mineradora, setor produtivo... são
tantas as formas como se apresenta essa hidra de muitas cabeças.
O nome é vário, a intenção é una: um território livre de seus ocupantes e aberto à
exploração econômica indiscriminada. Uma floresta sem seus povos, abrindo, assim, a
última fronteira do planeta à fúria insaciável do lucro.
Ribeirinhos continuam sendo ribeirinhos, índios continuam sendo índios,
quilombolas continuam quilombolas... Porém, tornam-se iguais ao olhar do estranho
que chega para expulsá-los. A ameaça estende-se também à floresta e isso reforça ainda
mais a união desses povos às matas onde vivem e que defendem com suas próprias
vidas. Fundem-se todos ante o olhar do inimigo comum, da hidra de muitas cabeças.
Muitas cabeças e apenas duas mãos.
Em uma traz os “documentos da terra”, a verdade oficial. O título legal (mesmo
que seja apenas no verniz que o reveste) serve de artifício legal para tirar o direto
legítimo dos que vivem na floresta. Na outra mão, a hidra traz os seus pistoleiros e os
imensos índices de assassinatos no campo. Números que explicam mais do que a
violência e o método do expropriador, deixam bem claro o ímpeto e a força de
resistência dessa gente por sua terra. E essa resistência descobre, nos mais diversos
pontos da Amazônia, que sua grande força é a aliança que se constrói dia a dia.
A aliança não quer dizer que as diferenças de identidade entre esses diversos
grupos desapareçam. Mostra apenas que a forma como se vêem uns aos outros vem se
transformando frente à chegada do inimigo comum. Descobrem e constroem seus
diferentes modos de se alinharem em uma luta igual.
Esses povos fundam sua história e seus registros na oralidade. E a hidra
destitui da oralidade seu valor documental, principalmente para fins comprobatórios
de tempo e forma de ocupação da terra. Relega o patrimônio cultural da maioria dos
povos da floresta a uma condição de “sub-informação” e lhes reduz as formas de
defenderem seus territórios e suas florestas com o modo peculiar de documentarem-
se.
Isso explica a enorme demanda por escolas e formação nas comunidades da
Amazônia. Eles sabem, a “escritura” é a ferramenta que os expulsa da terra.
Dominar os meios de registro escrito é também apropriar-se das armas da hidra
para dela se defenderem.
É como resultado desse quadro, dessa demanda, que surgiu o presente
projeto de Mapeamento Participativo Socioambiental. Como intenção de cooperar para
que os povos da floresta possam produzir a representação de seus territórios de forma
politicamente combativa. De forma a ser aceita pela linguagem excludente e elitista dos
fóruns e cartórios.
Historicamente, toda a produção de dados “oficiais”, como documentos
cartoriais e mapas, foi produzida pela hidra que chegava, exterminava os ocupantes
locais e se apropriavam de suas florestas. Talvez por profunda ignorância, talvez por
não considerar como humana a população local, propagou-se a idéia da Amazônia como
um vazio demográfico. Uma terra vazia, disposta e pronta e ser conquistada pelo
espírito bandeirante do empreendedor empresarial.
O projeto Radam Brasil, lançado pelo governo Médice em 1970, foi o primeiro
mapeamento em larga escala da Amazônia e ilustra esse momento, em que a adesão do
grande investidor era sinonímia de progresso e desenvolvimento. É sintomático que o
levantamento tenha sido preciso ao oferecer um banco de dados sobre a distribuição
espacial e a “capacidade de exploração” dos recursos naturais da Amazônia, mas pouco
ou nada dissesse sobre os povos a quem, por legitimidade, esse território pertencia.
Desde os anos 90, novas geotecnologias tornaram a produção de mapas mais
barata e acessível a pessoas sem maiores formação técnica. Isso, por um lado,
potencializou ainda mais os ataques aos territórios tradicionalmente ocupados.
Madeireiras e grileiros passaram a produzir corriqueiramente material cartográfico que
lhes possibilitava a tentativa de obtenção de licenças de extração de madeira e de
apropriação da terra das comunidades locais.
Porém, por outro lado, também abre a possibilidade para que os povos da
floresta documentem cartograficamente sua realidade. O expropriado começa a ter
acesso e a usar em sua defesa as ferramentas das quais a hidra sempre se valeu para
tirar-lhes até o mínimo, e entenda-se por mínimo, até, ter o que comer.
Esse projeto de Mapeamento Participativo Socioambiental propõe-se a colaborar
na agregação desse novo saber aos povos da floresta e colaborar na denúncia do
abandono, do conflito e da violência a que estão expostos. Estas três primeiras
publicações apresentam resultados preliminares uma experiência de mapeamento
participativo que sistematiza parte do conhecimento que estas populações têm do seu
território no que diz respeito a infra-estruturas comunitárias, a distribuição e usos dos
recursos naturais e a percepção de seus conflitos socioambientais. Nem de longe encerra
as demandas destes territórios por dados e pelas inúmeras possibilidades de geração de
mapas, ao contrário, apresenta um caminho de aprendizado coletivo que pode se somar
a outras iniciativas na busca de uma estratégia de resistência.
Trabalhou-se em três frentes, todas no município de Santarém: Gleba Nova
Olinda, Assentamento Agroextrativista do Lago Grande e com Dez Comunidades
Remanescentes de Quilombos. Três situações que abarcam diferentes tipos de
identidades: quilombolas, indígenas, varjeiros, ribeirinhos... Diferentes matizes de
saber. Diferentes identidades que percebem seus conflitos internos ficarem pequenos
frente o conflito com a ameaça comum que vem de fora.
A sustentabilidade do modo de vida dos povos da floresta deve-se diretamente
ao profundo conhecimento que têm das florestas onde vivem. Saberes que permitem,
inclusive, identificar os limites ao uso que fazem da floresta. Esses limites são
fundamentados não só nas necessidades do grupo, mas também nas condições de vida,
de fartura e de sustento de seus descendentes futuros.
Esses povos são o único obstáculo efetivo na defesa da floresta. Não é preciso
conhecer muito da Amazônia para se perceber a inocência de se acreditar na eficiência
de ações de fiscalização para deter o avanço da degradação.

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