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Nesta obra, Ana P1zarro reafirma a cond1cão d1scurs1va do temtórro amazônico e,

a part ir dessa constatacão, parece disposta a perseguir e delinear uma " imagem
da Amazôni a", exam inando vários textos que cobrem o período que vai de seu
descobmnento pelos conqu istadores ibéricos até a segunda metade do século 20.
Essa destacada estud iosa chilena, autora de várias obras criticas que guardam uma
perspectiva lat in o a- mer icana em sua análise, propõe um olhar cultural sobre essa
reg1ao, cuia dellm1tacão terr itorial Já é em si mesma um problema. Pizarro recorda
que, durante muito tempo, em razão da existência de uma legião de mitos em
c1rculacão por suas terras e rios, além de sua riqueza histórica, as disciplinas que AMAZÔNIA
se dispuseram a descrever a Amazônia, a Antropologia e a Arqueologia, careciam
de uma perspectiva cultural mais apropriada para explicar a natureza múltipla de
As vozes do rio
seu 1mag1nário social. Assim, ela vai buscar na vasta textualidade produzida sobre
aquelas terras - que carrearam por séculos mitos, inclusive da Antiguidade, como o
Imaginário e modernização
das Amazonas guerreiras, o da mítica cidade de Manca ou o da lagoa de Eldorado
- os fios comuns dessas histórias, com a finalidade de tecer com elas um olhar que
reunificaria a própr ia região, cobrindo um histórico "déficit de compreensão" sobre
aquela parte do continente. Entrar na leitura desta obra é tomar assento ao lado da
autora, numa deslumbrante aventura pelas águas e terras amazônicas, acompanhada
de personagens 1nverossime1s, como o soldado espanhol rebelde Lope de Aguirre, ou
dos cient istas Charles Marre de La Condamine e Alexander von Humboldt, até chegar
ao beatrnk Willi,Hn Burroughs, nos anos de 1960.

A�A P1/ARRO e professora da Universidade de Santiago do Chile. Publicou Aménca


Lat,na palavra, literatura e cultura ( 1993-1995), Gabnela Mistral: el proyecto de Luc,la
(2005). O sul e os trop1cos· ensaios de cultura latino-americana (2006), entre outros.
ANA PIZARRO

AMAZÔNIA
As vozes do rio
Imaginário e modernização

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


REITOR Clélio Campolina Diniz
VICE-REITORA Rocksane de Carvalho Norton
RôMULO MONTE ALTO
EDITORA UFMG
DIRETOR Wander Melo Miranda Tradução
V1cE-DIRETOR Roberto Alexandre do Carmo Said

CONSELHO EDITORIAL
Wander Melo Miranda (PRESIDENTE)
Antônio Luiz Pinho Ribeiro
Flavio de Lemos Carsalade
Heloisa Maria Murgel Starling
Márcio Gomes Soares
Maria das Graças Santa Bárbara
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
Roberto Alexandre do Carmo Said Belo Horizonte
Editora UFMG
2012
© 2009, Ana Pizarro
© 2009, Fondo de Cultura Económica, Santiago, Chile
Título original: Amazonía: el rio tiene voces: imaginario y modernización
0 2012 da tradução brasileira, Editora UFMG
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização
escrita do Editor.

P695a.Pm Pizarro, Ana, 1941-


Amazônia : as vozes do rio : imaginário e modernização / Ana Pizarro ;
tradução Rômulo Monte Alto. - Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
271 p.: il. + 1 DVD-ROM - (Humanitas)

Acompanha DVD ROM com documentário: O areal / Direção Sebastián


Sepúlveda.
Tradução de: Amazonía: el río tiene voces: imaginario y modernización
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-7041-902-6

1. Amazônia - História. 2. Amazônia - Descrições e viagens. 1. Monte


Alto, Rômulo. li. Sepúlveda, Sebastián. JII. O areal (Filme). IV. Título.
V. Série.
CDD: 981.13
CDU: 94(811.3)

Elaborada pela DITTI - Setor de Tratamento da Informação


Biblioteca Universitária da UFMG

À memória de Matías.
DIRETORA DA COLEÇÃO Heioisa Maria Murgel Starling
COORDENAÇÃO EDITORIAL Danivia Wolff
ASSISTf:NCIA EDITORIAL Eliane Sousa e Euclídia Macedo A Facundo, ]aviera e Sebastián.
COORDENAÇÃO DE TEXTOS Maria do Carmo Leite Ribeiro
PREPARAÇÃO DE TEXTOS Ana Maria de Moraes A Paula Atías, Mariana Rutlland,
REVISÃO DE PROVAS Gláucio Rocha Gabriel e Simone Ferreira Maria Soledad Silva, David Cuevas
PROJETO GRÁFICO Cássio Ribeiro, a partir de Glória Campos - Mangá e Alejandro Kirk.
COORDENAÇÃO GRÁFICA E FORMATAÇÃO Cássio Ribeiro
IMAGEM DA CAPA Detalhe do mapa de Pedro Teixeira (século 16)
MONTAGEM DE CAPA E PRODUÇÃO GRÁFICA Diêgo Oliveira

EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6.627 1 CAD II/Bloco III
Campus Pampulha 1 31270-901 1 Belo Horizonte/MG
Tcl.: + 55 31 3409-4650 1 Fax: + 55 31 3409-4768
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'-------
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Gravura do famoso cartógrafo belga Théodore de Bry (1528-1598),


que, a partir dos relatos dos cronistas e viajantes, desenhou o
continente americano. Enfrentamento entre indígenas e soldados
europeus, relatado pelo viajante Hans Staden 17
Figura 2 - O portulano é um mapa de navegação que aparece no século 13,
incluindo detalhes como cidades, rios, montanhas, elementos botâ­
nicos, zoológicos ou criaturas fantásticas. Às vezes contém "fortes
sopros", representações infantis que direcionam os ventos. Esse
portulano é a primeira representação conhecida da Amazônia 32
Figura 3 - Reunião dos anciãos e perplexidade dos conquistadores 34
Figura 4 - Construção de um barco na época. Francisco de Orellana precisou
construir um barco junto com sua tripulação 37
Figura 5 - Embarcações e cidades portuguesas no momento da conquista 40
Figura 6 - Os avanços tecnológicos na navegação, durante o século 16, foram
fundamentais para o projeto europeu de abertura a novos mercados 45
Figura 7 - Espanhóis levando uma coluna de escravos 50
Figura 8 - Imagem da conquista do rio Amazonas, onde aparecem represen-
tados o clero, os indígenas e os europeus 51
Figura 9 - As "casas árvores" protegem os indígenas, numa cena de combate de
1530, em que cada grupo se defende com suas próprias estratégias 58
Figura 10 - Mapa de Pedro Teixeira, o primeiro português que navegou pelo
Amazonas, desde sua desembocadura até Quito, no sentido con-
trário ao da corrente (século 16) 64
Figura 11 - índios contra missionários (século 16) 66
Figura 12 - O navegante inglês sir Walter Raleigh dialogou com o rico ima-
ginário amazônico, em seu percurso pela Guiana, em 1595 67

-
seus amantes.
Figura 13 _ As amazonas se encontram uma vez por ano com _ Figu ra 26 - Postal que ilustra a intensa atividade numa rua da cidade de
Suas figuras são recriad as segund o o ideal de beleza europeia Belém-PA, no começo do século 20
renascentista 73 113
Figu ra 27 - Vapor Maray, embarcação própria do século 20 (1904), que
Figura 14 - Imagem das amazonas usada como ícone de identidade da região 74 era utilizada para o comércio e deslocamento de pessoas, única
forma de transporte entre as grandes distâncias da região 121
Figura 15 • Representação de como os monstros da mitologia amazônica
assombravam os europeus 75 Figura 28 • O grande cineasta português/brasileiro dos seringais, Silvino
Santos, em pleno trabalho no meio da selva 122
Figura 16 . Variedade de personagens do imaginário europeu instalados na
Amazônia. No mapa, pode-se ver de cima para baixo: centauros, Figura 29 - Casal em situação de cortejo na Paris dos trópicos 125
orelhões, iwaipanomas e cinocéfalos 78 Figura 30 - Construção da época numa foto recente de lquitos, Peru 125
Figura 17 • Mapa com representação do enfrentamento entre amazonas e eu­ Figura 31 - O Teatro Amazonas de Manaus, inaugurado em 1896, representa
ropeus do século 16. Nele se distingue o rio em forma de serpente; o fausto da sociedade da borracha 126
as amazonas são recriadas com traços de guerreiras indígenas, o
que parece surpreendente para a estética da época 80 Figura 32 - A datilografia é um dos ofícios próprios da modernização euro­
peia. Na foto, jovens brasileiras possam orgulhosas junto a suas
Figura 18 • A cidade de Manoa se constituiu na imagem central da lenda de máquinas de escrever 127
Eldorado, o lugar da riqueza por antonomásia 83
Figura 33 - Uma família de Manaus reproduz fielmente a ordem social esta­
Figura 19 • Periodicamente os indígenas da Guiana realizavam rituais, no belecida pela classe alta na época do ouro elástico 128
qual cobriam o príncipe de Eldorado de resina e o adornavam
com ouro em pó 86 Figura 34 - Tarifa de um bordel da época, quando as cocotes eram impor­
tadas da França 131
Figura 20 · Representação do Mal vestido com roupas da época 88
Figura 35 - Julio César Arana, proprietário de La Chorrera e EI Encanto,
Figura 21 - O clero enfrentado e vencido pelo Mal 89 onde se deram os grandes crimes na região do Putumayo 134
Figura 22 • A Inquisição teve em Portugal um centro fundamental. Dali partiam Figura 36 - Nicolás Suárez, caucheiro boliviano, outro representante da
as "visitações" para a América, com o objetivo de fazer imperar "civilização, pátria e progresso" 134
sua lei por meio do encarceramento, tortura e morte dos julgados 91
Figura 37 • Euclides da Cunha, junto a um grupo de militares da época, du­
Figura 23 - A entrada na modernidade significou uma luta entre as potências rante sua missão oficial de demarcação de fronteiras na Amazônia 137
pelo poder em torno do conhecimento. À esquerda, o francês
Figura 38 - Huitotos escravizados, numa fotografia instantânea tomada no
Charles-Marie de La Condamine. À direita, o norte-americano momento do escândalo que produziu o caso Putumayo 142
Richard Spruce 95
Figura 39 • Índia morta, um dos horrores revelados pela investigação no
Figura 24 · O alemão Alexander von Humboldt foi um dos viajantes mais Putumayo 142
proeminentes do século 19, e suas exaustivas observações con­
formam uma obra fundamental 104 Figura 40 • Sir Roger Casement, o enviado do governo inglês para informar
acerca dos desmandos no Putumayo. Ele revelou em seus relatórios
Figura 25 · Alexander Rod rigues Ferreira documentou amplamente a fauna, a a realidade da situação dos indígenas 144
_
flora e os habitantes da região, em sua incursão pelo Amazonas.
Acima: tucano negro; órbitas e pés azuis, bico e rabo amarelos, Figur a 41 - Seringueiros e huitotos, no Putumayo, localizado na fronteira
peito branco com uma mancha amarela. Abaixo: peixe conhecido entre Peru e Colômbia 152
como p1rarara entre os habitantes do Pará 107 Figura 42 - As casas "aviadoras" cobriam as necessidades financeiras da
exploração na selva, em troca de exigências desproporcionais.
Casa aviadora em Manaus, 1910 155

,-,,,
Figura 43 - A oralidade, que deu forma escrita à liter� t� ra de cordel, era ilus­
trada por xilogravuras de estilo caractenst1co. Elas representam,
neste caso, personagens do imaginário popular 158
Figura 44 - Uma indígena e seu filho no trabalho de extração do látex 161
Figura 45 - Uma vez extraída das árvores, a borracha era guardada em
"bolachas", que resultavam de vários processos, incorporando o SUMÁRIO
sacrifício implicado em sua produção. O armazenamento ocorria
na etapa final 163
Figura 46 - Garimpeiros em Serra Pelada, lugar que simbolizou o período
culminante de extração do ouro, durante a década de 1980 165
Figura 47 - Gravuras rupestres no rio Negro 168
PRÓLOGO 13
Figura 48 - A obra antropológica de Koch-Grünberg originou a ficção (cha-
mada por ele de "rapsódia": Macunaíma (1928), de Mário de
Andrade, e, na Colômbia, La vorágine (1924), de José Eustasio CAPÍTULO I
R�ra 1� MAPA DE NAVEGAÇÃO
Figura 49 - O golfinho é um dos eixos do imaginário popular em toda a As vozes do rio 17
extensão do rio 195 A região amazônica e m suas formas culturais 23
Figura 50 - No documentário O areal, realizado por Sebastião Sepúlveda, a A Amazônia como construção discursiva 29
comunidade de Guajará experimenta o enfrentamento de seu
universo mágico com o avanço brusco da modernização 197
CAPÍTULO II
Figura 51 - Jovens yanomami numa cena da vida cotidiana 208
AS CRÔNICAS DE VIAGEM
Figura 52 - Escola de San Juan de Yanayacu, no Alto Amazonas 210 Conquistadores e naturalistas 37
Figura 53 - Garimpeiros em território yanomami, em 1972 215 O texto de Carvajal e a expedição de Orellana 42
Figura 54 - Contaminação de barro e mercúrio na floresta 221 Contra Deus e contra o rei: Lope de Aguirre 46
O relato de Acuiia e a viagem de Teixeira 58
Figura 55 - Garimpeiros carregando o material em meio ao qual encontrará
ouro 222 A imaginação europeia na América 61
227 O olhar dos naturalistas 91
Figura 56 - Desenho de huititos aspirando substâncias alucinógenas
Figura 57 - Formas de transporte no interior da Amazônia 241
Figura 58 - Pajé yanomami em ritual 245 CAPfTULO III
245 VOZES DO SERINGAL
Figura 59 - Pajés yanomami aspirando plantas psicotrópicas, 1960 113
Discursos, lógicas, desvios amazônicos
Figura 60 - Evan Schultes, professor de Harvard, estudioso do "bejuco da 123
alma" 247 Um discurso a três vozes
130
Os barões do caucho
Figura 61 - A Festa do Círio de Nazaré, que se realiza no mês de outubro, é 136
uma mostra da heterogeneidade amazônica 251 Os intelectuais
148
Figura 62 - A multidão adora a Virgem 256 Aviados e indígenas
tico 159
Apogeu e decadência do ouro elás
--
CAPÍTULO IV
MODERNIZAÇÃO E PLURALIDADE DE VOZES 165
A estética ilustrada 171
Vozes da água e da selva 188
Os "encantados" se rebelam: o caso do Areal 194
Discursos e imaginários sociais
Oralidade e literatura dos povos indígenas
203 PRÓLOGO
220

CAPÍTULO V
A CULTURA DA D ROGA 227
O narcotráfico na Amazônia 234
As plantas dos deuses 242
A pesquisa que resultou na publicação deste livro foi moti­
CAríTULO VI
vada por várias razões. A primeira e mais importante de todas
é a certeza da necessidade de chamar a atenção sobre uma área
EPÍLOGO DESTA EXPEDIÇÃO 251
geográfico-cultural que é muito pouco conhecida nos estudos
NOTAS culturais do continente; sua menção no campo das ciências
261
humanas e sociais ocorreu principalmente a partir do campo
antropológico. Seu desconhecimento disciplinar no âmbito dos
REFERÊNCIAS 263
estudos latino-americanos, por um lado, assim como a importân­
cia central que seu destino tem no contexto da crise ambiental
que vivemos, por outro, tornam essencial seu conhecimento e
difusão. Como sabemos, ao falar da Amazônia estamos nos re­
ferindo a uma infinita reserva de biodiversidade ambiental, que
vai de recursos hídricos a riquezas minerais, única no planeta.
Além disso, também nos referimos a uma pluralidade cultural
enorme que engendrou processos de configuração específicos,
dentre os quais, a sua opacidade é o primeiro problema com que
nos deparamos. Acredito que a Amazônia precisa ser entendida
como universo cultural, não somente a partir de seu exterior,
mas também é necessário ressaltar seus vínculos com o restante
do continente.
A segunda razão é que, apesar desta área ser percebida como
distante no Chile, desde cedo nos sensibilizamos com ela em nossa
longa relação com países como Brasil e Venezuela. A terceira é
,
que, olhando a partir do sul do continente e, de maneira geral
de fora dele, esta geografia pertence ao campo dos imaginários Tenho um agradecimento especial a fazer a todos que me
utópicos. Assim, as interrogações que esboçamos se torna m apoiaram no campo das ilustrações: Márcio de Souza, pela
questionamentos sobre nossas próprias utopias. generosidade que me permitiu ter acesso a seu acervo; à Ineke
Ao realizar esta pesquisa, consideramos, em primeiro lugar, Phaf, por sua paciente ajuda; ao Centro de Estudos Brasil-Chile
o pensamento que surgia na própria Amazônia, tanto de seus e à Embaixada do Brasil em Santiago.
diferentes habitantes, corno daqueles que produzem alguma Finalmente, agradeço à Alejandra Silva, da Fondo de Cultura
reflexão sobre ela, seus intelectuais; com base nisso, orientamos Económica, editora do texto em espanhol, por sua paciência e
nosso olhar, que é o de um observador externo, procurando entusiasmo.
entender o conjunto pan-amazônico. Sentimos que, de algum Um dos momentos mais agradáveis da preparação de um
modo, os olhares sobre a Amazônia são geralmente locais ou manuscrito é decidir a quem dedicar este trabalho. Gostaria
fazem referência a um único país. Neste sentido, concluímos de dedicá-lo a meus filhos, em primeiro lugar, e a um grupo de
que a busca por urna perspectiva conjuntural poderia oferecer jovens amigos que, aos poucos, foram se convertendo em nossa
urna leitura mais rica. extensa família, desde a época do exílio venezuelano que com o
Gostaria de agradecer às seguintes pessoas e instituições: em passar dos anos a mera existência me enche de alegria e ternura.
primeiro lugar, à Fundação Guggenheim, que me ofereceu uma
A AUTORA
bolsa de estudos no ano de 2002, o que permitiu, em grande
parte, a execução do projeto que culminou na realização deste
livro; à Fondecyt, que financiou o projeto durante quatro anos,
assim como à Dicyt, da Universidade de Santiago do Chile, que
também contribuiu para seu financiamento.
Agradeço ao Instituto de Estudos Avançados, da Universidade
de Santiago do Chile, e a sua ex-diretora, professora Carmen
Norarnbuena, pelo apoio e pela confiança em nosso trabalho.
À professora Rosa Acevedo, diretora da Associação das Uni­
versidades Amazônicas e pesquisadora do Núcleo de Estudos
Amazônicos, da Universidade Federal do Pará, pela generosidade
e apoio, o que representou um estímulo e urna responsabilidade
permanente. Ao professor Cláudio Flores, do Projeto Poema
(UFPA), pelas informações e pela gentileza. Às comunidades de
Guajará e Itancoã, Baixo Acará, Pará, pela generosidade. Ao
Armando Chanchari, de San Juan de Yanayacu, Alto Amazonas,
Peru, nosso guia na selva. Ao César Haag, à Maria Francenilda
Gualberto de Oliveira e demais assistentes do projeto em Ma­
naus. À Carolina Benavente, professora da Universidade Silva
Henríquez, leitora e crítica deste texto, pelo diálogo permanente.

14 15
CAPÍTULO

MAPA DE NAVEGACÃO
As vozes do rio

Figura 1 - Gravura do famoso carrógrafo belga Théodore de Bry ( .1528-1598), que, a partir dos
relaros dos cronisras e viajanres desenhou o conrinenre americano. Enfrenramenro enrre indígenas
e soldados europeus, relarado pelo viajanre Hans Sraden
r

Para começar a ouvir as vozes da Amazônia, recorremos a um


andina, sua região de nascimento, se chamará chullachaqui.
clássico do relato do século 16, José de Acosta, que nos guiará Com uma imagem às vezes protetora, às vezes hostil, ambos são
em nossa entrada neste universo cultural: temidos por defender a selva dos invasores, seja pela astúcia de
seus gestos, ou por sua figura de pés defeituosos ou com os pés
Mas, tratando-se de rios, com razão se fala daquele rio sobre rodos voltados para trás. Os dois são figurações de um mesmo perfil:
os demais, que uns chamam das Amazonas, outros Maraõón, outros a milenar resistência da natureza à ingerência do homem.
o rio de Orellana, o qual acharam e navegaram nossos espanhóis, e Nós, latino-americanistas, fomos desenvolvendo nosso tra­
tenho minhas dúvidas se devo chamá-lo rio ou mar. Corre este rio a balho em distintas direções ao longo do século 20, através das
partir das serras do Peru, das quais recebe grande imensidão de águas, quais os estudos so9re a região cultural latino-americana foram
das chuvas e dos rios, que vai guardando em seu leito, e passando os adquirindo seu perfil atual e definindo seu objeto. Durante a se­
grandes campos e planícies do Paytiti, do Dorado, das Amazonas, chega gunda metade desse período, mais precisamente a partir dos anos
por fim ao oceano, onde entra quase na fronteira das ilhas Margarita e 1970, começou lentamente a ganhar relevância e ser levada em
Trinidad. Mas vão tão alargadas suas ribeiras, especialmente na última consideração a percepção da diversidade continental, centrada
parte onde se formam muitas e grandes ilhas, o que parece incrível, em algumas áreas que pluralizam seu perfil internamente, por
que quem vai pelo meio do rio só consegue ver céu e rio, e dizem que uma parte, em matrizes culturais diferenciadas, e, por outra, em
mesmo os montes mais altos próximos a suas margens são encobertos função da evolução histórica destas.
pela grandeza do rio (Acosta, 1999). Dessa maneira, assim como a região andina e a mesoameri­
cana foram conhecidas e a região do Atlântico sul foi delineada,
Os discursos escritos sobre a Amazônia apresentam, frente aos ocorreram muitos avanços nos últimos anos no conhecimento da
demais discursos da América Latina, a especificidade do fluvial. região caribenha, enquanto que o espaço cultural brasileiro tam­
Na maioria das vezes, são discursos conduzidos pela navegação, bém começou a ser incorporado ao conjunto latino-americano.
tanto no caso dos descobridores, ou aqueles em que a água apa­ Um intenso processo de deslocamento territorial, que teve lugar
rece como instância prévia e se introduz em seu curso, quanto no final d o século 20, gerou uma nova área de estudos, que
no caso dos exploradores científicos. São textualidades que re­ reconhecemos como localizada fora do continente, mantendo
pousam sobre o decurso, que se desdobram em uma infinidade relações com o chamado campo "latino" (chicanas, nuyorricans,
de furos, igarapés, lagoas, afluentes, tributários, numa geografia dominicanos etc.). O espaço amazônico, no entanto, continuou
de águas que, quando não invade tudo, se faz pressentir a sua praticamente desconsiderado nos estudos da cultura latino­
volta, em sua permanência, em seu ritmo. São os discur -americana. Trata-se de urna área que é vista como a mais distante
sos de
uma nação de águas. Nação no sentido figurado, do desenvolvimento, apesar de ter sido uma das primeiras da
de uma área
cultural formada por oito países que comp América Latina a se modernizar, durante o período da borracha;
artilham referentes
comuns, tendo como centro o rio e a selva hoje, é um centro de pesquisa científica e tecnológica de ponta,
. Tal área sustenta uma
relação comum e 1·ntensa com a natu . . com relação à diversidade, recursos hídricos, indústria farmacêu­
. . reza e o meio ambiente,
part1c1pando de uma comum·dad tica e outros. Além disso, a região assume a feição de uma área
. e 1mag
• man
. , . a que denomina de
diferentes modos os mesmos 1eno
, fundamental nas perspectivas futuras, não apenas da América
. • men os, pois o que num extremo
do no se chama curupira, no out Latina, mas da própria humanidade, uma vez que guarda a maior
ro lado, aos pés da cordilheira

18
19
biodiversidade do planeta e os recursos minerais essenciais para cenário histórico mais próximo da Idade Média do que do
o desenvolvimento energético, bem como os recursos hídricos Renascimento, tiveram profundas diferenças que projetaram,
que, como se percebe no momento atual, passaram a representar no obstáculo de uma língua muito próxima, duas perspectivas
a possibilidade de sobrevida no futuro. de mundo, que desde o primeiro momento não permitisse uma
A Amazônia, além do mais, revela formas de miscigenação aproximação. O fato de Portugal já dispor de uma vasta expe­
cultural que não têm comparação no continente, assim como riência no domínio do mar, que já o tinha levado ao longo da
uma infinita diversidade de formas de vida humana e relações costa africana até o extremo sul, dando a volta pelo Cabo da
com a natureza, que nos permite imaginar polos de referência na Boa Esperança, fez nascer desde o início experiências divergentes.
visualização de um mundo no qual se possa recolocar o homem Na experiência portuguesa já existia o conhecimento da
numa relação de equilíbrio com ela, no centro da ação humana. alteridade. Em suas expedições pelas costas africanas, eles ha­
Se a civilização, como tem sido concebida, foi construída em viam convivido com outras línguas, culturas e religiões, o que
oposição à natureza (Laville; Leenhardt, 1996) e chegamos a um permite entender que seu processo de conquista da América
ponto em que as gerações futuras correm risco, o universo ama­ não se realizou com o mesmo nível de violência que o dos es­
zônico, pelas características especiais de sua formação, permite panhóis. O continente descoberto não tinha para o português
sonhar com uma "civilização" construída de outro modo' ou' a importância dos domínios asiáticos e, portanto, sua relação
pelo menos, a partir de uma maior integração com a natureza. com ele foi mais relaxada que no caso espanhol. Incorporou a
São todas estas interlocuções do homem com o mundo, nas rela­ nova realidade com um catolicismo mais aberto que o espanhol
ções expressas pelos imaginários, nas linguagens reveladas pelo e uma mestiçagem com menor reticência ao contato. Se "abaixo
mundo simbólico, que projetam esta área cultural como uma da linha do Equador tudo era permitido", como rezava o ditado
configuração especial, com traços bastante peculiares dentro do português, a Terra de Santa Cruz muito cedo transformou sua
conjunto latino-americano. denominação, e a cor extraída do pau-brasil demonizou seu
Essa área que se constrói em torno da concavidade hidro­ perfil. As visitas da Inquisição apenas constatavam o esperado.
gráfica do rio que o mencionado José de Acosta chamou de "o E ainda que ambos os conquistadores, portugueses e espanhóis,
imperador das águas", será aqui tomada como um espaço que não tivessem chegado de mãos vazias, mas com uma "mochila"
historicamente encarna o papel de uma fronteira cultural dinâ­ carregada de figurações provenientes de diversos momentos
mica, numa relação intercultural que o continente tem ignorado, históricos da Antiguidade greco-latina, por estas mesmas razões,
entre a América Hispânica e o Brasil. Como afirmei em traba­ entre outras, estes imaginários apresentavam diferentes sentidos.
lhos anteriores, a visão sobre a América do Sul esteve marcada A partir dessa situação, o aparecimento de nossas duas cultu­
por um olhar "andinocêntrico", que gerou como subpr ras, construídas com um status colonial em um limite periférico,
oduto o
apagamento das outras regiões culturais não meno impo teve sua evolução marcada até os dias atuais pela complexidade
s rtantes,
entre elas a luso-americana. Acredito que.é de um emaranhado de relações de convergência e divergência,
necessário entender
seu déficit de compreensao- no marco nao - apenas da h'1stona reconhecimento e estranheza, bem como de desenvolvimentos
. , . ame-
nc�na, mas observar que essa situação paralelos. Todas elas se deram no espaço hegemônico das culturas
remonta às divergências
e nvaltdades entre as metrópoles de metropolitanas que, política ou simbolicamente, constituíram-se
origem. Sendo Espanha e

Portugal vizinhos na Europa e s1tua em polos de referência para o processo de apropriação criativa:
n do-se culturalmente num

20 li
Espanha, Portugal, França e, no século 20, Estados Unidos. Há
A REGIÃO AMAZÔNICA EM SUAS
exemplos claros: Sor Juana Inés de la Cruz, na Nova Espanha,
FORMAS CULTURAIS
incorpora padrões de escrita metropolitana, mas, ao mesmo tem­
po, transforma estes padrões para expressar formações próprias Durante muito tempo a importância de diversos mitos rela­
da cultura africana na América; por outra parte, temos a leitura tivos à barbárie impediu o surgimento de um olhar de natureza
de Gregório de Matos sobre Luís de Góngora, com a finalidade cultural, não apenas antropológico, mas abarcador de diferentes
de descrever com ironia a sociedade baiana em formação, da dimensões, sobre esta área. Por outro lado, apesar de seu precoce
qual provém. reconhecimento como uma unidade no plano geofísico, o cons­
tante assédio geopolítico e suas divisões nacionais retardaram o
Isso permite a observação de centros de produção simbólica
reconhecimento de sua complexa unidade no plano simbólico.
comuns, que articulam processos próximos e permitem cons­
No melhor dos casos, e como testemunho da progressiva amplia­
tatar operações culturais, dispositivos construtores de comuni­
ção das perspectivas sobre o cultural a partir da antropologia,
dade, na direção de um território de imaginários de estruturas
apareceu certo interesse pelos modos de vida de suas populações
semelhantes. Há um dispositivo simbólico inicial, ou seja, .um nativas. Em relação a sua história, Darcy Ribeiro escreveu:
mecanismo de produção cultural que tem a ver com a construção
de uma entidade alternativa à cultura europeia. Isso já acontece Eram sociedades de estágio tribal, classificadas como aldeias agrí­
no primeiro encontro de culturas, em meados do século 16. Um colas indiferenciadas, porque não chegaram a desenvolver núcleos
segundo dispositivo aparece no momento em que começam a urbanos e nem se estratificaram em classes, já que todos se encontra­
se constituir os imaginários de um projeto nacional para cada vam igualmente sujeitos aos trabalhos relativos à produção alimentar
um dos espaços. Estamos agora nos momentos das chamadas e não chegaram a ter corpos diferenciados de militares e comerciantes.
independências políticas, que em ambos os casos apresentam Ensaiavam, portanto, amplas condições de convivência social, além do
datas diferentes, mas constituem processos com características domínio de extensas áreas . Os cronistas, que documentaram aquelas
similares. O terceiro dispositivo corresponde ao começo do sé­ aldeias logo após os primeiros contatos com as civilizações, destaca­
culo 20, tem relação com a modernização e seus efeitos sobre as ram aspectos como o tamanho das populações, que se contavam por
linguagens simbólicas. Nesse caso, trata-se da mudança cultural milhares em cada aldeia, sua abundância de alimentos e a alegria de
produzida, por um lado, pela revolução tecnológica das comu­ viver. Estudos arqueológicos recentes revelam a extraordinária quali­
nicações representadas pelo avião, o transatlântico, a bicicleta, dade de seu artesanato, especialmente a cerâmica modelada e colorida
a chegada do trem de ferro, a telegrafia, o telefone e outros. Por (Ribeiro, 2002: 309).
outro, nesta transformação incidiu a apropriação que se produziu
na América Latina do fenômeno estético das vanguardas euro­ As formas culturais das relações entre o Brasil e a América
peias, nas quais participaram importantes escritores e artistas Hispânica, mencionadas anteriormente, aparecem com mais
PJ_ásticos, tanto hispano-americanos quanto brasileiros, como evidência, quando nos aproximamos desta área cultural pratica­
Vicente Huidobro, César Vallejo, Jorge Luís Borges, Oswald de mente desconhecida, que é a Amazônia. Ali confluem oito estados
soberanos - Brasil, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia,
Andrade, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral.
Suriname, Guiana e Guiana Francesa - e as formas culturais

22 23
comuns têm a ver com a vida de sua população de 23 milhões
especialmente na Orinoquia e nas Guianas, como afirmam os
de pessoas, num dos territórios mais vastos do continente, tendo
documentos. Os mais ortodoxos incluem nesta região as alturas
como eixo central o mundo das águas, situado em torno do rio
nevadas dos Andes e numerosos vales interandinos, cuja geogra­
Amazonas e seus afluentes. Estes afluentes descem dos território s
fia não guarda nenhuma relação com a visão universal sobre a
andinos com os nomes de Napo, Ucayali, Putumayo, Urubamba,
Amazônia. Esta visão inclui, por outro lado, áreas do cerrado
Madre de Dios, que, ao confluir com o Mamoré ao sul e o Negro
brasileiro, cujos limites chegam até a capital federal, Brasília.
ao norte, desembocam no Solimões, tomando posteriormente o
Há diferentes considerações sobre sua área, que tem a ver com a
nome de Amazonas.
altitude e até mesmo com as demarcações políticas de cada país.
Trata-se de uma bacia hidrográfica enorme, que produziu
Como se pode perceber, e ao contrário da imagem que temos dela,
historicamente diferentes formas de relação do homem com
a Amazônia está longe de ser urna unidade homogênea. Em suma:
a vida, o que significa também diferentes formas de produção
de imaginários sociais. Múltiplas línguas indígenas e diferentes
[Trata-se de um território] de grande heterogeneidade ecológica, geo­
línguas metropolitanas assinalam, entretanto, a constituição de
morfológica, de solos, clima, e certamente, de flora e fauna. No entanto,
um imaginário com articulações comuns. Estas articulações têm
apesar destas variações, especialmente marcadas nas vertentes andinas, a
a ver, tradicionalmente, com urna vida em permanente diálogo
com o mei"o ambiente. Naquela região, o curso da vida indivi­ maior parte da região se reconhece por seu clima quente e úmido. Além
dual e social está regulado pelo tempo das águas, os ciclos do da variedade natural, existe uma grande, e às vezes pouco compreendida,
rio, os períodos da caça, a colheita, a pesca e a horticultura. Ali, heterogeneidade social, econômica e política (COMISIÓN AMAZÓ­
a subida e a descida das águas regulam os hábitos alimentares, NICA DE DESARROLLO Y MEDIO AMBIENTE, 1992).
o deslocamento familiar, a organização do trabalho (Acevedo;
Castro, 1998). A Amazônia possui o maior bosque tropical úmido do planeta
Porém a Amazônia como região não se reduz apenas ao vale e o rio Amazonas, mais do que o Congo, Orinoco ou Mississipi,
do rio Amazonas. Dentro dela também se considera o vale e o é o mais caudaloso da Terra. A experiência diária de sua riqueza
transcurso do Orinoco e seus afluentes, a Orinoquia, que desem­ como biodiversidade em flora, fauna e germoplasma1 nativo,
boca no delta Amacuro, na Venezuela, incorporando a conexão tornou os povoados amazônicos em coletividades que constro­
entre ambos, o Casiquiare, de descobrimento tardio pelos euro­ em sua vida e sua cultura em torno da vida do rio, sua bacia
peus, mas de permanente utilização por parte dos indígenas. A e suas vertentes, seus períodos de subida e descida das águas,
oeste, aparecem os contrafortes da Cordilheira dos Andes, razão desenvolvendo tecnologias adaptadas a seus ritmos; coletividades
pela qual é chamada de Amazônia Andina. Chega-se ao sul, ao humanas cujo perfil, sociabilidade e cultura se constituíram na
Acre boliviano, tendo a cidade de Trinidad como emblema de relação com a natureza.
u�a importante parte da história da área: o Barroco arquitetô­ A linguagem garciamarqueana que impregna o Relatório da
nico e musical, a cultura das missões jesuítas. Comissão Amazônica, da qual o próprio escritor participou,
Há �iversos critérios para definir todo este território, pois assinala esta caracterização:
uma coisa é falar da Bacia Amazônica e outra
bem diferente é
falar do "dom'mio · " amazomco
• · , que se estende além da bacia,

24 25
• . · · hemisfério ocidental foi encontrada poeta francês Blaise Cendrars, assim como é famoso o percurso
A ceramica mais antiga do
amazônica. Em alguns poucos hectares de Mário de Andrade pela Amazônia. Nem sempre isso acontece
cm Saneare• m, B ras1·1, na bac,·a
há mais espécies de árvores nativas com o fenômeno da modernização e o mundo das encantarias;
desse vasto Iaborato,r1·0 do mundo
e, e apenas cm urna delas vivem os "encantados", que povoam o imaginário das pessoas e gover­
do que cm roda a América do Nort
da Inglaterra. Sua superfície,
tantas espécies de formigas como todas nam suas vidas, têm diferentes representações no cotidiano e o
itui mais da metade
que ocupa somente sete por cento da Terra, const processo de modernização é sempre um perigo.
a
do patrimônio biológico do mundo. Seus rios detêm quinta parte Nas últimas décadas, diferentes fatores impulsionaram uma
de roda a água doce do planeta e o sistema hídrico do Amazonas é o renovação do olhar cultural que se tem desta região.
maior tributário de todos os oceanos. Mais de vinte milhões de pes­ Por um lado, surgiu uma concepção mais ampla de cultura,
soas vivem neste enclave maravilhoso, povoado de mitos milenários que a situa como um elemento estruturador da organização e
e simplificações fantásticas, que terminaram por se confundir com a desenvolvimento das comunidades. Como sabemos, a noção de
realidade. t., na imaginação do mundo, o último reduto do paraíso cultura tem sua origem no mundo vegetal no século 15, quando
terrestre (COMISIÓN AMAZÓNICA DE DESARROLLO Y MEDIO aparece pela primeira vez em documentos escritos. No século
AMBIENTE, 1992). seguinte, a ideia de "cultivo" passou dos vegetais e animais para
questões mais abstratas, como o ser humano. No século 18,
As "culturas da selva tropical", como são conhecidas, compar­ segundo Raymond Williams, "a cultura adquiriu significações
tilham formas de relação com o mundo. É o caso, por exemplo, diferenciadas de classe. Somente algumas classes poderiam as­
de personagens tão vivos como o Curupira, o Boto, a Boiuba, pirar a ta,I nível de refinamento. Desde então, a noção moderna
a Cobra Grande, o Lobisomem, que são encontrados em várias de cultura passou a ser associada à ideia de 'artes "' (citado por
línguas e em versões diferentes entre os diversos grupos, não Bocock, 1997: 151). Também desde esta época, e ao longo do
apenas indígenas, mas também caboclos, afrodescendentes e século 20, o conceito passou a sofrer mudanças em seu regime
outros. Esse universo mítico foi incorporado à literatura ilustra­ de significação. Foram incluídas as ideias de cultura popular e
da, entrando num processo de modernização que lhes outorgou de cultura de massas. Posteriormente esta noção, sob inspiração
outra forma de vida e sobrevivência. Como exemplo, entre tantos das ciências sociais, busca sua origem no Iluminismo e se amplia
outros, a Cobra Grande é um núcleo gerador do texto literário ao processo secular do desenvolvimento social. Finalmente, em
de Raul Bopp, Cobra Norato, de 1931, da importante vanguarda nossos dias tem a ver com o impacto da antropologia social; e
modernista brasileira, assim como a mitologia da área impregna logo depois, com a antropologia simbólica, tem a amplitude de
e estrutura a obra Macunaíma, o herói sem nenhum caráter de significação compartilhada entre grupos e nações, concentrando­
Mári� d Andrade, de 1928. Um imaginário que incorp a -se na dimensão simbólica desta última (Bocock, 1997: 150-153).
� _ se �r
com v10lenc'ªa' modern1'dade em ambos os casos, Esta ampliação e aprofundamento da ideia de cultura permi­
. a partir de uma
perspectiva estética magnífica. Os mod tiram abarcar uma maior gama de sujeitos culturais, colocando
ernistas "descobrem" a
nature a brasileira ao vê-la com os em evidência a região em sua diversidade social e cultural, dando
� _ novos olhos da modernidade
tecnolog1ca e de fora do conti• nente conta dos problemas da modernização. Assim, as atuais pesquisas
; sao conhecidas as viagens
. m pe IO mten
que realiza · . as Gerais, acom revelam que a Amazônia não é apenas indígena, que os sujeitos
·or de Mm panhados pelo

26
27
. . _ . 1os e que seu imaginário revela a turbulenta
soc1a1s sao mu,1up latino-americanos sobre um espaço que os conforma, as questões
história da área.
vi�culad� a� que queremos levantar têm a ver com os dispositivos estruturais
O segundo fator responsável por esta renovação, _ que intervêm na conformação da Amazônia como uma complexa
· s amb1en ta1s e soc1a1s
anterior, nasce corno resposta aos impacto unidade, não apenas de tipo geofísica ou geológica, como tem
dos processos de superexploração de seus recursos naturais. sido vista, mas também cultural. Ou seja, com os padrões que
As contradições resultantes de uma modernização realizada de lhe garantem, dentro de toda sua riqueza e diversidade, uma
modo implacável na região, bem como a necessidade de apro­ unidade e uma espessura cultural próprias, diferenciadoras de
veitar certos recursos e assegurar sua sobrevida, favoreceram o outras regiões do continente, mais exatamente aquelas que a
aparecimento de um amplo questionamento das relações entre constituem como uma área da mais heterogênea unidade da
0 homem e o meio ambiente amazônico. Desde as primeiras América Latina em sua configuração heteronímica. Para usar
reflexões sobre a região, realizadas no século 20, aceitou-se o os termos do poeta e teórico Paes Loureiro, "uma diversidade
princípio de que o desenvolvimento deveria se dar em bases cul­ diversa". Portanto, fazemos a seguinte pergunta: quais são os
turais, e, antecipando-se a outros lugares no mundo, as respostas elementos, no plano simbólico, das distintas partes da Amazônia
a este desafio efetuaram-se em termos de uma ecologia humana, que a constituem como unidade articulada e nos levam a pensar
como demonstrou o pensador amazônico Leandro Tocantins, no numa área cultural específica?
começo dos anos 1960.
O terceiro fator está ligado exatamente à defesa desta re­
A AMAZÔNIA COMO
gião frente à ameaça de intervenção externa, que tem sido uma CONSTRUÇÃO DISCURSIVA
constante em sua história. Isso explica a emergente constituição
formal de uma área de interesses comuns, a partir de uma espécie Nosso interesse por este espaço é igual ao de qualquer ex­
de "comunidade imaginada" de espaços e nações amazônicas. plorador, mas além da experiência concreta, nossa observação
Este esforço se concretizou em reuniões, comissões e tratados tende para uma dimensão intelectual. Como qualquer explo­
internacionais, como o Tratado de Cooperação Amazônica, que, rador, chegamos com imagens preconcebidas e com os mitos
independente de sua evolução, teve por objetivo construir uma produzidos sobre ela, como o do território verde com populações
posição harmônica da região em torno de seu desenvolvimento. indígenas, do "paraíso", do "pulmão do mundo", entre tantos
Como em todo processo de integração, houve o estabelecimen­ outros. Como dizíamos, uma consideração ampliada do cultural
to de vínculos culturais, tanto no plano simbólico quanto no pode vir a incorporar uma variedade de elementos, mas nossa
inquietude se orienta especialmente para o modo como foram
material, que neste caso se orienta na direção da construção de
construídos, e ainda se constroem, no discurso, os imaginários
uma identidade pan-amazônica. É um processo não isento de
sobre esta área. Colocar em evidência os discursos orais e escritos
conflitos, no qual se entrecruzam visões e interesses divergentes
surgidos da Amazônia, na medida em que apareçam ao longo do
sobre a Amazônia, que se manifestam sempre em função de um
desenvolvimento do trabalho sobre a área, é um dos objetivos de
vínculo tribal, nacional, internacional ou transnacional.
nosso estudo, sejam eles de natureza estética ou, relativizando
Neste contexto, e a partir de um olhar que aponta para a
esta noção, tenham dimensão cultural. O discurso das encanta­
apropriação identitária da região sobre si mesma, bem como dos

__
rias, dos "encantados", por exemplo, não é estético no sentido

28
29

\__
. nte sua própria estética
, 1co, mas tem evidenteme
ocidental class . . Pouco a pouco, assim que vamos penetrando na área, a
. . e nas modulações da oral idade. Aqui e,
que se expressa me1us1v " . ,, experiência começa a construir sua própria informação.
termo discurso num
importante assina1ar que utilizamos o . A Amazônia é uma região cujo traço mais geral é o de ter
. .do ampI o, sem af'rmar1 apenas uma d1mensao estet1ca , ou
senti . . sido construída por um pensamento externo a ela. Ela tem sido
e 1 , o que de fato
seus e 1ementos est,t·cos é nossa pnond ade , uma
_ pensada, em nível internacional, através de imagens transmiti­
vez que cons1·dera mos· que ali aparecem formas pnv1leg1ada . s de das pelo ideário ocidental, europeu, sobre o que eles entendem
. . • . .
simbolização. Utilizamos este termo por convem enc1a d
. � estr�- ser sua natureza, ou, em outras palavras, sobre o lugar que a
tura de significaçõ es que estamos criando, numa perspectiv a nao
Amazônia ocupou na sua experiência, imagem que foi ratificada
estética. Assim, falamos de romance, poesia, ou do que tem sido
. em diversos textos: crônicas, relatos de viajantes, relatórios de
chamado- acredito que de forma errônea, uma vez que se trata cientistas, informes de missionários. Somente no final do século
de padrões ocidentais- de"literaturas indígenas"; mas também 19, foram recuperadas as linguagens que deram pluralidade
falamos de discursos descritivos, sobre o trabalho ou a vida coti­ ao discurso amazônico, de forma que hoje já podemos escutar
diana, de discursos de valor comunicativo em que somente alguns
vozes distintas.
possuem, ou não possuem diretamente, elementos estéticos.
Se no continente americano foi erigida a imagem da alteridade
Usaremos o termo "discurso" no sentido empregado por
- uma alteridade funcional ao pensamento europeu e seu mundo
Stuart Hall:
colonial, não uma mera referência-, este Outro persistiu na his­
tória, principalmente com a permanência dos grupos indígenas
Um discurso é um conjunto de declarações que proveem uma lin­ situados nesse espaço geográfico. Em suas origens pré-ocidentais,
guagem para falar sobre - por exemplo, uma maneira de representar calcula-se que esta região estivesse ocupada desde uns 10.000
- uma espécie particular de conhecimento, sobre um tópico. Quando anos a.C., na parte sul, por caçadores de espaços abertos. Assim,
as declarações sobre um tópico são feitas dentro de um discurso parti­ afirma-se que:
cular, o discurso possibilita construir o tópico de certa maneira (Hall,
1996: 201).
Não existem evidências definitivas da ocupação das terras baixas
da Amazônia central até 5.400 a 3.200 anos a.C., a partir de restos de
Ao falar de discurso, estamos nos referindo também ao termo
cerâmica no rio Madeira; recentemente foram feitas descobertas em
"formação discursiva", que, como afirma Michel Foucault, não
Santarém onde se encontraram vestígios cerâmicos com uma idade
se trata de declarações isoladas, mas de declarações articuladas
calculada entre 7.000 e 8.000 anos. [No entanto) restos encontrados na
em torno de um mesmo sentido. Segundo Hall, não se trata de
boca do Amazonas, no Baixo Tocantins e Alto Xingu, foram atribuídos
uma diferenciação convencional entre pensamento e ação, mas
à época pré-cerâmica (COMISIÓN AMAZÓNICA DE DESARROLLO
da produção de conhecimento através da linguagem. A prática
Y MEDIO AMBIENTE, 1992:' 29).
discursiva tem por sentido a geração de conhecimento. Isso
significa que todo discurso é ideológico, na medida em que não
é inocente, pois foi emitido por um sujeito em condições parti­
culares e parte de um lugar específico de enunciação.

30 31
urbana , possuía um sistema intensivo de produção de ferramen
tas e
. .
• · uma agricultura diversificada, uma cultura de mua1s e uma
ceram1cas,
ideologia vinculadas a um sistema político centralizado, além de uma
sociedade altamente estratificada. Essas sociedades foram derrota
das
a
elos conquistadores, e seus descendentes foram compelidos a buscar
pouco menos
�esistência, o isolamento ou a sobrevivência. O que levou
de ce�
de dez mil anos para ser construído foi aniquilado em menos
e negado em quase meto
anos, soterrado em pouco menos de 250 anos
milênio de terror e morte (Souza, 1994).

Esta alteridade foi sempre funcional aos interesses europeus


coloniais, à sua necessidade de poder político, civil ou eclesiástico,
de riqueza, de autoafirmação, de luta pelos mercados. � Ama­
zônia é, tal como hoje a percebemos desde seu descobrimento
...... - ..... ... . pelos olhos do homem ocidental, a história dos discursos q�e
.. AP"))}: L. a construíram, em diferentes momentos históricos e dos quais
:"!.-..,_•...;:;::A_:·.:.•·'·.:·
recebemos uma informação parcial, que permite fundamental­
s·..-, ':'BA
i

i.: -.. -a·Õ.··


mente identificar o discurso dos europeus sobre ela.

A Amazônia é, assim, uma construção discursiva. Somente
Figura 2 - O porruJano é um mapa de navegação que aparece no século 13, in duindo através dessa construção é possível chegar à sua imagem. Esta
detalhes como cidades, rios, montanhas, elementos botânicos, zoológicos ou criaturas
fantásticas. Às vezes contêm "fortes sopros", representações infantis que direcionam os região do imaginário é a história dos discursos que a foram eri­
ventos. Esse portulano é a primeira representação conhecida da Amazônia gindo, em diferentes momentos históricos, dos quais recebemos
apenas uma versão parcial, a do dominador. Como espaço físico
Os grupos amazônicos tiveram contato com as migrações de
e cultural, a Amazônia possuía elementos que atuavam como
povos pré-incaicos, que desceram dos altos dos Andes e ocuparam
dispositivos simbólicos no invasor, instigando nele conexões
os bosques e as vertentes orientais andinas. Posteriormente, os in­
semióticas do imaginário, permitindo que comparasse com o que
cas penetraram na região, promovendo mudanças na localização
via um universo mítico, que respondia a suas carências, expec­
das populações da área. Os grupos amazônicos eram sociedades
tativas, necessidades físicas e espirituais. O resultado disso foi a
ribeirinhas, sociedades cujos horizontes e formas de vida eram os
elaboração de textos com elementos em comum, cujas relações
rios. Todos eles deram origem a esse habitante Outro da região
representam as formas dos imaginários da sociedade europeia em
amazônica, dizimado pela guerra, cativeiro, traba
lho escravo determinadas condições de existência. Este discurso constituiu
e enfermidades, que chegaram junto com
o mundo ocidental: um corpus, que surgia a partir da interação do novo ocupante
- espanhol, português, holandês, inglês, francês - com o meio.
Quando os europeus chegaram, no
século 16, a Amazônia era Não era um discurso inocente, procedia de um ponto de vista, de
habitada por um conjunto de soci
edades hierarquizadas de alta den- uma história e suas necessidades. Carregado, pois, de fantasias.
sidade demográfica, que ocup :
avam a terra com populaçoe s em esca 1a
32 33
Seu efeito sobre O meio foi, entretanto, determinante para o que
antropologia {lida também desconstrutivamente), a semiologia
viria a ser O futuro deste espaço geográfico e suas sociedades.
em geral, permita uma aproximação às vozes e aos gestos do que
hoje ainda não temos acesso: os dos grupos indígenas que viram
os europeus chegarem. Existem vestígios e sua reconstrução é
possível de ser feira através de uma metodologia adequada. É
o caso, por exemplo, da Saga do tuxauá Buoopé e sua amada
C11c11í, relato da cultura oral dos índios tariana, em que se narra,
segundo Márcio de Souza, a conquista do norte amazônico pelos
arawaks (Souza, 1994).
A Amazônia, a imagem que manejamos dela, tem a ver com a
construção desses discursos e com a forma como eles expressam
a relação do homem com a natureza, com o meio ambiente. Eles
realçam, ao mesmo tempo, a dualidade paraíso e inferno, que de
alguma maneira está presente em roda a discursividade.

Figura 3 · Reunião dos anciãos e perplexidade dm conqui<r.1dort''>


Ilustração de Thfodore de Bry.

A imagem que se foi construindo da regi.io p,1ssou a ,cr regis­


trada nos documentos, nos relatórios que produziam os europeus,
conforme iam adentrando nela. Neste lapso, rúio conhecemos u
discurso dos nativos, pois possivelmente apenas a arqueologi.1
poderá nos legar alguma informação sobre estes grupos. A partir
do final do século 19, começamos a escutar outras vozes, agora
locais, que conferem pluralidade à imagem. Finalmente, do século
20 ate. os dias ·
. atuais, ·
os discurso s se multiplicam e adquirem uma
tonalidade variada. Nesta parte de nossa indagação, buscamos
ouvir as perspectivas centrais desses discursos, na percepção
de que é necessano
· · - e seguramente nao - serem .
os nos que po-
deremos fazê-lo - realizar uma tarefa enor
me e desconstrutiva
deles que , com a aiu · da de · 1-mas como a arqueologia ou a
d.1sc1p

34 35
CAPÍTULO li

AS CRÔNICAS DE VIAGEM
Conquistadores e naturalistas

Figura 4 - Construção de um barco na época. Francisco de Orellana precisou construir um barco


iumo com sua tripulação
Amazôni a, entre o século 15
e
.
o pen,odo de ocupação dapnm
. . parte do secu
eira
, lo 19, ,
esta
O marco no qual se movem os imaginários do conquistador
, u1o 18, 1·ncluindo a
fma1 do sec começa com aquilo que foi analisado por Sérgio Buarque de
europeu, o que e. natural, con-
marcado por um 1·ntenso discurso . Holanda como a condição "paradisíaca", atribuída às índias,
discurso garantiu sua perma-
siderando que graças à escrita esse a partir das viagens de Colombo. É o atrativo das "terras in­
os "descobridores", os
nência e visibilidade. Primeiro aparecem cógnitas", como um espaço disposto para o desenvolvimento
e os primeiros
ocupantes, depois vêm os cientistas viajantes. Entr da fantasia, onde se projetarão tanto os fantasmas cultivados
se encontra também o discurso missionário. O território é ocupa­ na Idade Média europeia como suas expectativas, as tradições
do fisicamente, mas a penetração é tímida em direção ao interior, culturais do mundo renascentista, revitalizando o imaginário
a partir das margens dos rios, afluentes e igarapés. O território é da Antiguidade greco-latina, a convenção literária dos motivos
inexpugnável, a selva é como uma grande muralha sobre a qual edênicos, entre outros (Buarque de Holanda, 1992).
se tecem uma infinidade de histórias. A Amazônia é ocupada, Após Francisco de Orellana e outras tentativas anteriores
primeiramente, pela imaginação fantasiosa do conquistador e, fracassadas de penetrar neste espaço desconhecido pelos in­
posteriormente, pelo imaginário moderno dos naturalistas. vasores, a partir do outro lado dos Andes, pelo Pacífico, o rio
Entre os primeiros aparecem vários nomes, os quais represen­ que hoje conhecemos como Amazonas começará a se situar no
tam numerosas expedições, que ocorreram entre 1530 e 1668: horizonte da aventura, do delírio, da posse, do poder e do ouro.
Vicente Yáiiez Pinzón, Pedro de Anzures, Gonzalo Pizarro e Fran­ Os textos começaram a chamá-lo de "rio de Orellana" e "Ma­
cisco de Orellana, que permaneceu como o grande descobridor. ranón", possivelmente por causa do emaranhado de seu próprio
Pedro Teixeira, o primeiro a navegar o rio, partindo do Atlântico trajeto, feito de curvas, meandros e bifurcações. Ou talvez por
em direção aos Andes, no século 17, dirigiu uma expedição de causa de sua vegetação. Finalmente, ele recebeu o nome de "Rio
mais de nove mil quilômetros em canoa e a pé. Foi da desembo­ das Amazonas", depois da travessia de Orellana, inicialmente
cadura do rio Amazonas até o alto dos Andes. Pedro de Urzúa em função dos relatos que a partir dali foram se generalizando.
comandou a expedição que talvez seja a mais conhecida, porque Terminou sendo chamado simplesmente de "Amazonas". Antes
nela ia um personagem já mítico por sua ferocidade: Lope de dessa denominação, o imenso rio não tinha apenas um nome. Os
Aguirre. Outros colonizadores de origens diferentes tentaram grupos que viviam a sua volta o denominavam por trechos e de
ocupar a região, como os alemães Ambrosio de Alfinger, pelo modos diferentes: Paranaguazú, Guyerme, Solimões, entre outros.
lado da Venezuela, e George de Spires ou Philip von Hutten, no O primeiro europeu que o avistou do Atlântico, quando deságua
século 16; holandeses, cujo papel será significativo na cultura do no mar, deu-lhe o nome de "Santa Maria do Mar Doce", pen­
�orte do Brasil, com o ilustrado Maurício de Nassau à cabeça; sando que se tratava de um mar que não fosse salobro. Mas seu
irlandeses; ingleses, cujo representante é sir Walter Raleigh no nome estava destinado a uma figura imaginária maior, viajante
século 17, com seus relatos sobre a Guiana e o Orin ela mesma rumo à Europa desde tempos imemoriais. Não é um
. oco·' fra�ce-
ses, que se instalaram, durante décadas, no que é hoje o estado segredo que, no perfil mítico da amazona, normalmente associada
do Maranhão, e assim como no frus também à figura do acéfalo, se acreditava na proximidade da
trado intento de criação
da "França Antártica ' ", no sul, de CUJO. riqueza, dos depósitos - cidades, minas, desperdício - do metal
testemunho ficaram os
documentos de Léry e Th,evet, tão cobiçado: o ouro.
" França . tam b,
em tenta ram instaurar uma
. Equatorial " · 'tornaremos deles os relatos mais signifi- Das primeiras viagens realizadas pelos europeus e os textos
cativos dos cronistas nas quest0es - que nos interessa observar. que as fixaram em palavras, interessa destacar três. Estes três

38 39

.........____
.
textos foram escolhidos em função da significação que cada um
tem na construção do perfil cultural da região. atrativos para o historiador. Sua importância central, de acor­
do com a nossa perspectiva, está relacionada à carta - além
de outras comunicações laterais - que envia a Felipe II, Rei da
Espanha, esgrimindo seu poder e declarando sua independência
dos domínios monárquicos, juntamente com a intenção de levar
este projeto ao Peru, centro do poder colonial na parte sul do
continente. Este documento, que Simón Bolívar viu como a pri­
meira manifestação independentista na América e que surgia no
interior do próprio poder colonial, é de suma transcendência, e
será abordada quando falarmos da expedição na qual tem como
referência o personagem de Lope de Aguirre.
Em terceiro, abordaremos a crônica de viagem de Pedro
Teixeira, um século depois da primeira viagem realizada pelos
europeus na Amazônia, por sua importância em relação às
questões do poder terrirorial sobre a região. Essa expedição é
realizada pela coroa portuguesa, para conhecimenro e posterior
possessão da região. A rivalidade entre a coroa portuguesa e os
interesses espanhóis fez com que, uma vez chegado a Quito, de­
pois de navegar em sentido contrário à corrente do rio a partir
Figura 5 • Embarcações e cidades portuguesas no momento da conquista do Atlântico, Teixeira se visse pressionado pelas autoridades
Gravura de Civitates orbis terramm, de Georgius Braunius e Franz Hohemberg, Colônia, v. 1, 1572. espanholas a embarcar consigo o jesuíta Cristóbal de Acuíi.a,
que escreve a crônica da viagem de acordo com os interesses
A primeira delas é a viagem de Francisco de Orellana, o espanhóis. Daí seu rom e estrutura.
iniciador dos périplos, a partir da crônica que é escrita por Frei Estes discursos instalam três figuras básicas do imaginário- as
Gaspar de Carvajal. Essa expedição abriu os olhos do Ocidente Amazonas, o Eldorado e o Maligno - às quais faremos referência
para o universo privilegiado da natureza e a multiplicidade da em quarto lugar.
riqueza amazônica. Pela primeira vez se falará para Europ a so­ A partir do século 18, os discursos sobre a Amazônia se trans­
bre o rio a partir de seu interior, o que significa também para o formam. Eles começam a adquirir um caráter racional. Os que
nascente mercado internacional. A viagem de Orell cristalizam essa visão são homens que não pretendem sustentar
ana dá início à
implantação da mitologia grega na região, o que as convicções absolutas dos primeiros viajantes do período
vai se constituir
num elemento importante de sua cult colonial. Eles querem se abrir ao conhecimento de uma realidade
ura.
Em segundo lugar, em ordem cronológ que precisa ser revelada. Para conhecer, é necessário olhar com
ica faremos referência à
expedição de Pedro de Urzua,, que, no f.mal, acaba , atenção, descrever, classificar. Os discursos de naturalistas como
' ra se tornando,
como veremos, de Lope de A Charles-Marie de la Condamine e Alexander von Humboldt
gu1rre
· , este singular personagem
da história da Conquista, certa serão examinados nesta última dimensão.
mente um dos mais complexos e

40 41
-
O TEXTO DE CARVAJAL
Gonzalo parte com duzentos cavaleiros, milhares de lhamas,
E A EXPEDIÇÃO DE ORELI.�ANA
. dois mil porcos, duzentos cachorros e quatro mil índios; antes de
t. no complexo cenário de espaços a serem conquistados q ue chegar ao Colca se encontra com Orellana, que o acompanha na
Gonzalo Pizarro começa a pensar, a partir de informações obtidas expedição levando consigo o "testemunho de vista", o homem
das histórias de algum viajante, ou de comentários que aparecem que nos legará o documento histórico sobre a viagem. Francisco
entre a tropa, ou mesmo em seu contato com os indígenas, em sair de Orellana havia nascido em Trujillo e era parente dos irmãos
à procura de um lugar de possíveis riquezas, chamado de País da Pizarro, Francisco e Gonzalo. Teria, em 1542, provavelmente
Canela. Sabemos que a rota das espécies foi um desencadeador trinta anos. Participou da batalha de Salinas contra Almagro e
das viagens ao Novo Mundo. Este mítico País da Canela, lugar teve um olho ferido, que tapava com um trapo de pano. Em 1538,
onde esta espécie se encontraria com prodigalidade, também anos antes, houve um primeiro explorador que se viu obrigado
uma das expectativas de Colombo em suas travessias, estaria a retroceder após a tentativa de se aventurar no rio. Também
situado atrás das grandes montanhas, o que hoje conhecemos agora, após onze meses de viagem em condições adversas, os
como Cordilheira dos Andes. O caminho, partindo de Quito, problemas e falta de alimentos fazem Pizarro esperar por uma
seu centro de operações, era longo e atravessava montanhas e solução de Orellana, que decide se internar no rio. Ele parte com
selva até encontrar o rio Napo. Gonzalo busca em seu curso, ao cinquenta e sete homens e, em lugar de regressar para socorrer
atravessar as alturas andinas e passar através do temível Pongo Pizarro, que finalmente volta a Quito, constrói uma embarcação
de Manseriche - uma fenda entre duas pedras enormes onde a maior e continua rio abaixo, apesar da fome e dos ataques dos
torrente d'água cai de forma abrupta, da qual falam todos os indígenas. É o que lemos em Carvajal.
cronistas e viajantes que têm relação com esta região geográfica No primeiro momento, uma vez entregues à aventura pela
-, a saída ao que mais tarde se chamará Maranón, posterior­ impossibilidade de voltar, não encontram alimento algum.
mente Amazonas, o "mar de água doce", descrito por Pinzón Procuram raízes e comem ervas desconhecidas, ficando alguns
nas primeiras notícias de seu encontro. deles à beira da morte. t. tão grande a fome que se alimentam de
Estamos no ano de 1541. Quem escreve a crônica dessa via­ "couros, correias e solas de sapatos, cozidos com algumas ervas,
gem situado no espírito da contrarreforma e com inspi de maneira que era tanta nossa fraqueza que sobre os pés não
'. ração
medieval, é o dominicano Frei Gaspar de Carvajal, que dará conseguíamos nos manter" (Carvajal, 2007: 7).
_ lhe
0 i tulo de Descubrimiento As margens dos rios aparecem bastante povoadas na crônica.
� dei río de Orellana. Como cronista,
afi� m� a veracidade de seu relato com Os viajantes são permanentemente atacados em sua travessia.
a expressão do "eu vi",
propno do gênero·• "Mas o que d Nesse momento, a procura pelo País da Canela já se transfor­
aqui· em d.,ante d i. sser sera,
como testemunha de vis · ta e h ornem mou na busca de Eldorado, meta também de Anzures, assunto do
_ a quem Deus quis dar parte
em um tao novo e nunca visto
· qual trataremos mais adiante, como uma das formas adotadas
. desco bnmen
• to' como e este que
adiante direi" (Carva1aI, 2007 pelo imaginário mítico dos europeus. Mas tem mais. O relato de
. · : 2 ). Dessa forma, o documento
afirma a perspectiva com a Carvajal remete ao imaginário dos viajantes que a Europa leu e
. qua1 e, narrada: a de alguém que viu
diretamente os fatos r eIata incorporou como uma de suas primeiras versões do Outro. É o
dos, o que defme um valor frente a
quem conh eceu somente de imaginário do Prestes João, o das áreas contíguas ao t.den, o do
ouvido.

42 43
Grande Khan; em meio à fome e às batalhas com os indígenas,
aparecerá a imagem dessas mulheres guerreiras, as amazonas, a Negro, batizado assim por sua cor, e o cronista descreve o lugar
cujo habitat - perto da costa - se ia jovem e voltava velho, se­ do encontro dos rios, que até hoje corre paralelo ao Solimões,
gundo os indígenas. Essas amazonas projetarão sua importância demarcando as duas cores. A defesa contra os índios se torna
nas diferentes narrações dos cronistas posteriores. O triunfo de mais difícil, já que se encontram perto do lugar das amazonas;
Orellana, que toma posse daquelas terras em nome da coroa es­ eles são seus súditos ou tributários. Finalmente, eles se enfrentam
com elas. Curiosamente, são muito brancas e altas, com os ca­
panhola, é ter percorrido todo o curso do atual Amazonas até sair
belos longos e trançados na cabeça. Possuem membros grandes
na região do Caribe, pois foi levado pelas correntes a Trinidad e e andam nuas, tampando somente suas vergonhas. Cada uma
Cubagua, frente à Venezuela, aonde chega em setembro de 1542. delas equivale na guerra a dez índios. E afirma, não sem uma
A crônica de Carvajal foi redigida com base na fantasia. pitada de humor: "E, na verdade, que houve destas mulheres que
Enquanto constroem um bergantim para poder continuar a meteram um palmo de flechas em um dos nossos bergantins, e
viagem, os índios encontrados por Orellana são assim descritos: outras que menos, que nossos bergantins ficaram parecendo um
"Cada um era mais alto um palmo do que o mais alto cristão" porco espinho" (Carvajal, 2007: 32).
(Carvajal, 2007: 13). São brancos e têm cabelos longos que
chegam à cintura, estão vestidos com roupas cheias de ouro. A
imagem da fome também condiciona o texto. A ideia da falta de
comida, ou de uma comida saborosa, está presente. Os indígenas
são gentis, parecem vassalos de um grande senhor. Tudo parece
perfeito: riqueza, ouro, o que se procurava, seres extraordinários
e amáveis, salvo, como contrapartida, a praga dos mosquitos que
não deixa a tripulação em paz, os perigos da navegação a serem
enfrentados pelo novo bergantim. Paraíso e inferno. Em geral,
os indígenas são belicosos; no entanto, aqueles parecem ter sido
uma exceção. Outros selvagens atacam em massa os tripulantes e
não permitem um único momento de descanso. Os aventureiros
enfrentam as centenas de canoas, "e por terra não faziam conta
da gente que parecia" (Carvajal, 2007: 20). Figura 6 - Os avanços tecnológicos na navegação, durante o século 16, foram fundamentais
para o projeto europeu de abertura a novos mercados
Ao chegar a uma aldeia Omagua e ver os implemen de bar-
tos
ro que ali se usam, "nos d.1sseram os m, d10s
. Essa crônica, que relata o descobrimento espanhol do Ama­
. que tudo o que nesta
casa tinh a de barro tinha também terra adentro de our e prata, zonas, tem como contrapartida a do jesuíta Cristóbal de Acuii.a
o
e que eles nos levariam lá, que era que, um século depois, exatamente em 1641, relata a viagem de
perto" (Carvajal, 2007: 23).
A fantasia, a sensaçao- de forne e sua saciedade - "a terra Pedro de Teixeira. Antes de nos referirmos a ela, abordaremos o
e, mui. alegre e vistosa e mm. ª texto que tem como autor Lope de Aguirre e se situa na expedição
bundante de todas as comidas e
frutas ,, (Carva1al,
.
2007: 24)- dominam o texto. Chega ao rio que teve início com Pedro de Urzúa.
m

44 45
TRA O REI:
CONTRA DEUS E CON liga a existência desses seres, à qual se adiciona a tensão frente
LOPE DE AGUIRRE à expectativa de que algo está na iminência de suceder - dentro
jornada em busc a do Eldorado de um mês, haviam dito-, quando vissem os alforjes cheios com
Pedro de Urzúa empreendeu a
contra os cimarrones no Panamá, as riquezas de Eldorado, por tudo que haviam deixado para trás.
em 1559. Ele havia guerreado Com efeito, haviam deixado no Peru não apenas as famílias,
que fez com tanta boa
por ordem do Marquês de Caiiete, "o mas também seu gado, porcos, cabras e ovelhas, instrumentos e
manha e solicitude, que destruiu, prendeu e matou a muitos dos
ferragens, uma vez que iam se aventurar no mundo das grandes
tais negros, e deixou os demais tão escarmentados e medrosos,
montanhas, as dos Andes, e não poderiam carregar com tudo.
que por muito tempo não ousaram provocar problemas" (Vás­
Diz o relator, Francisco de Zúiiiga, cronista e cantador de copias,
quez, 1945: 27).
que acompanhou a expedição e a descreve em carta a seu pai:
No recrutamento dos soldados para a expedição apareceu um
homem "pequeno de corpo e pouca pessoa; de modos duros, 0
rosto pequeno e chupado" (Gaudia, 1945: 24), que, entretanto, Ali se via o que muito se perdeu e sobrou, e ver todos os soldados
tão tristes e pesarosos ao ver ficarem seus cavalos tão queridos e
era conhecido por caminhar longos trajetos, carregando grande
cômodos, seu gado, roupa e bens, que dava muita pena ver tudo isso;
peso de armas, armadura, espada, adaga, capacete, peitoral, arca­
e tudo era recebido com muita alegria, porque esperavam se encontrar
buz ou lança de mão. Não era necessário contar sua história. Já
dentro de um mês, como diziam os guias, na melhor e mais rica terra
havia se destacado nas chamadas "entradas" contra os indígenas,
do mundo (Mampel González; Escandell Tur, 1981: 7).
em combates anteriores e histórias comuns no estreito meio em
que viviam os recém-chegados da Europa com seus projetos,
Estavam deixando, em troca de um futuro ilusório imediato,
suas ambições, na maioria das vezes obscuras, seus evidentes
um mundo em ebulição, tal como era descrito o espaço por
desejos de poder e força, suas histórias, suas pendências. Veio
onde se movimentavam, nos centros de poder coloniais de Lima
acompanhado de sua filha mestiça que, segundo se contava, era
e Quito. O Panamá, apesar de estar longe, também passou a
chamada de Dona Elvira.
, ·
Mas esta não era a umca figurar como centro, depois da descoberta do istmo, pois se
muIher da expedição. Urzúa levou
. . . tornou passagem necessária para o Pacífico. Eles provinham de
consigo uma bela viúva, tamb,em morena, que d1Z1am ser uma
. - , . _ , . um mundo em que as elites do poder econômico se fechavam
das mais bonitas das colomas. • · N ao e uma s1tuaçao factl, em
. cada vez mais frente aos que chegavam da Península, zelosos de
m� 10 a tantos ho mens capazes de qualquer coisa Don Inés de
. a
At1enza, por suas artes, foi apelidada de ,, suas conquistas, assim que as primeiras fundações deram lugar à
_ "feiticeira . Foi capaz de
conquistar Urzúa• financiar divisão de cargos, solares e encomendas de índios. Os conselhos
· parte daquele projeto expedicionário
e, durante a travessia , mante- . administrativos repartiam as terras e as licenças para se construir
, 1o 1so1 ado e ocupado em desfrutar
.
seus amores dizem os cronistas. . moinhos, oficinas, olarias, lojas e cantinas. Os beneficiados eram
' As provocações geradas por sempre os mesmos grupos, suas famílias e próximos. Assim se
sua atttu. de na embarcação , .
s�-o percepttve1 s, através dos olhares
rápidos e l'b'd•
i • mosos que a tripu1açao constituem as primeiras elites coloniais, zelosas com o botim e
- 1ança em sua direção. Suas a partilha da riqueza, poder e privilégios. O comércio com a Pe­
próprias olhadeIassobre alg
uns deIes, de vez em quando, desatam
certa co mpetição entre os nínsula e as minas também eram controlados por estas famílias.
machos. É uma força obscura a que

46 47
-
insta!ado e os "enc ome n­
Os primeiros indianos já se havia� ,
rqu1ca, que eles próprios poderosos rios do Piru (sic), de maneira que nos encontramos
deros" encabeçavam a sociedade h1era em Golfo Doce. A primeira vista caminhamos trezentas léguas,
ue
construíram para sua proteção. As vias de enriq cimento, assim desde o embarcadouro de onde embarcamos na primeira vez
como O acesso ao poder social, já estava m defini das e er am cada
(Aguirre, 1927).
vez mais estreitas. Isto configurava uma sociedade difere nciada, Os diferentes elementos dramáticos dessa expedição já se
tensionada pela divisão na qual, por uma parte, o servilismo, e encontram presentes no cenário da partida. A cena tem início
por outra, a rebeldia, eram atitudes emergentes de um perfil em bem cedo: os soldados enfrentam situações mais difíceis que as
formação. previstas por falta de abastecimento, os que estão no comando
Os "maranhões", como seriam chamados posteriormente os
se apropriam dos mantimentos dos quais se servem com fartura.
soldados dessa expedição, pertenciam ao âmbito dos perdedores Urzúa se ausenta do comando da direção da navegação, porque
no contexto da Conquista, os que "procurando uma oportunida­ está constantemente com Inés de Atienza. Os tesouros prometidos
de de melhorar de vida (...} para sua desgraça, só encontraram não são vistos em parte alguma.
em seus intentos o anonimato, a miséria ou a morte" (Ortiz de Ao perceber as debilidades da organização, o primeiro golpe
la Tabla, 1945: 31). dado por Lope de Aguirre é contra Urzúa. A morte deste último
Urzúa inicia o projeto com um mau presságio. Por um lado, é parte de um complô no qual se nomeia rei, por sua linhagem e
obtém um financiamento de modo fraudulento; por outro, dis­ fraqueza, a Fernando de Guzmán. Todos juram lealdade a este
tribui mentiras entre a tripulação. Parte de seus fundos provinha novo rei em uma carta, na qual Lope se declara "traidor" (à
da riqueza de Dona Inés de Atienza e do padre de Moyamba, a monarquia peninsular, é claro), colocando posteriormente seu
quem promete um bispado em Omagua. A partida não deixa de nome. No barco, a tensão e as intrigas não cessam. Encerrados
ser trágica para eles. Assim é descrita por Lope de Aguirre em no meio da selva, as expectativas não satisfeitas alteram os
sua missiva ao Rei: ânimos. O poder de Lope sobre a tripulação, dado seu caráter e
determinação, se impõe.Agora será a vez de Guzmán, e sua morte
No ano de cinquenta e nove, deu o Marquês de Caiiete a jornada deixará o caminho livre para que Aguirre assuma o comando da
pelo rio das Amazonas a Pedro de Urzúa, navarro, ou melhor dizendo, expedição. Desalmado, quando mais tarde estiver ameaçado de
francês; e demorou para fazer os navios até o ano setenta na província morte, matará sua própria filha a punhaladas, para não entregá-la
dos Motilones, que é no Peru; e tem este nome Motilones porque os a seus captores. Numa carta ao Soberano, ele relata a peripécia
índios se raspam com navalha. E como muitos desses navios se rom­ da viagem. Eis sua versão:
peram na época em que foram postos na água, talvez por ser huvosa
c
ª terra onde foram construídos, fizemos balsas e deixando cavalos e Foi este mau Governador (Urzúa) tão perverso e cheio de vícios
bens' nos lançamos r·10 aba1xo e miserável que não pudemos tolerar; e aí, por ser impossível tolerar
· com grande risco . 'para nossas pess oas
(Aguirre, 1927). suas maldades e por me tocar uma parte da história, como me tocou,
excelente Rei e senhor, direi apenas que o matamos; morte, é certo,
Mas não é só a parti.da que e • • bem rápida. E depois, a um mancebo, cavalheiro de Sevilha, chamado
. 1 1c1.1 . Estamos na Amazonia
, d"f' D. Fernando de Guzmán, o alçamos a nosso Rei e juramos por tal, como
andma e os rios têm corren , .
tes fortes e rap1d as que descem em
curvas, como se fossem serpe vossa Real pessoa verá pelas assinaturas de todos que ali estavam que
ntes: " Depois . topa mos.
' com os mais
48 49
e me nomearam capitão da
ficam na Ilha Margarita destas Índias; ex­
e
pedição; e porque não consenti em seus insultos maldades, quiseram
me matar, e matei ao novo rei e ao capitão de sua guarda, e ao tenente
geral, e a quatro capitães, e ao mordomo, e também a seu capelão ,
oficiante de missas, e a uma mulher do complô que se armou contra
mim e um Comendador de Proas, e a um Almirante e a dois alferes, e
outros cinco ou seis aliados seus, e com a intenção de levar adiante a
guerra e morrer nela, pelas muitas crueldades que seus ministros usam
contra nós, nomeei outra vez capitães e sargento maior, e quiseram me
matar, e eu os enforquei a todos.
Caminhando nossa derrota, passando todas essas mortes e terríveis
sofrimentos no rio Maranhão demoramos até a desembocadura, que
chega ao mar, mais de dez meses e meio: caminhamos cem jornadas
justas, andamos mil e quinhentas léguas (Aguirre, 192 7),

Figura 8 - Imagem da conquista do rio Amazonas, onde aparecem represenrados o clero,


os indígenas e os europeus

A história dessa expedição será contada, entre outros, por


Pedro Simon, na Primera parte de las noticias historiales de las
conquistas de Tierra Firme en las Indias Occidentales (Primeira
parre das notícias históricas das conquistas de Terra Firme nas
Índias Ocidentais], de 1623.
O interessante é que, nesre transcurso, Lope de Aguirre
transforma o espíriro da expedição na tripulação. Da procura
por riquezas há um mês, Aguirre convence a tripulação com seu
discurso antimonárquico - observar no rexro a reivindicação
"pelas muitas crueldades que seus ministros usam contra nós"-,
que é o mais interessante de sua performance, e convoca a todos
a segui-lo para libertar, passando pelo Panamá, o próprio centro
do poder real nas colônias do sul, que é o Peru. A promessa é,
evidentemente, de maior enriquecimento e poder. A proposta
parece ser a de um megalomaníaco. Mas, quem entre os que
Figura 7 - Espanhóis haviam empreendido aquela aventura não o era?
leva ndo uma coluna
de escravos

50 51
espanhol, intr odu z a imagem de
Blas Matamoro, crítico
exto no qual se movimentav a, e começando a coletar as assinaturas, estando todos juntos para co­
Lope de Aguirre dentro do cont
nsão. Ele afirma: "Seu ing resso meçar, tendo já assinado o General, chegou o Mestre de Campo Lope
oferecendo sua particular dime
: tiranos, criminosos e de Aguirre, a quem pedira que fizesse o mesmo, o qual, retirando a
na história se dá em péssima companhia
máscara da intenção que carregava, assinou dizendo: Lope de Aguirre,
loucos" (Matamoro, 1986). Quem é Lope
de Aguirre? Quem
traidor (Simón, 1942: 46).
é este expedicionário de histórica rebeldia, que penetrou pelo
Maranhão até a confluência com o Uyacali, seguiu pelo gran de
Lope de Aguirre, o Traidor, assumiu assim um papel perante a
rio até chegar ao Atlántico, no Caribe chegou à Ilha Marga rita,
história. Ele mesmo acunhou seu apelido para o futuro, assinan­
representou por onde passou uma época de terror, e, queren do
do como traidor da monarquia. Escreveu cartas-manifestos nas
chegar ao Panamá para atravessar o istmo, foi obrigado a tomar
quais proclamava independência frente ao Rei da Espanha, dele
o caminho de Valência, para terminar morto em Barquisimeto?
e de seu bando, os "maranhões", e pretendeu levar suas ideias ao
Vilipcndiado por uns e glorificado por outros, a figura de Lope
Peru, depois de atravessar o rio Amazonas, sair no Caribe e dar a
d e Aguirre é uma das poucas que aparece com uma intrigante
_ volta pelo Panamá, para libertar o continente do jugo espanhol.
riqueza entre os chamados descobridores, os primeiros europeus
Se não conseguisse fazer tudo o que pretendia, "ao menos a fama
que revelaram aos olhos do mundo como era o espaço ameri­
das coisas que o circundavam ficaria na memória dos homens
cano, através de seus informes, cartas e memoriais. Aguirre foi,
para sempre" (Caio Baroja, citado por Ortiz de la Tabla, 1945).
como muitos outros, justificadamente, chamado de assassino;
De personalidade contraditória, violenta e ao mesmo tempo
na verdade, não fez mais do que os outros, apenas o fez de for­
doce, quando se pensa na relação com sua filha, a quem ama
ma mais explicita e determinada. Com o correr do tempo, essa
profundamente, seu carisma foi objeto de diversas análises,
�ntude _aparece como uma qualidade desse personagem, frente algumas com abordagem de natureza psiquiátrico-positivista,
3 maneira oculta e maliciosa como procede
ram os demais ' que que lhe conferem certo "delírio de reivindicação". Esta análise
realizaram atos de vanda1ismos
· d a mesma natureza e sustentaram
. é curiosa, porque seria necessário avaliar se na época em que
de igual modo seu poder.
viveu, o período colonial que no geral ficou marcado pelas
1':o encanto ' Lope de Agu1rre .
· fez a 1go considerado
. ,
1mpensavel injustiças flagrantes, o normal não seria justamente este delírio
.
para a memoria colon·al .
1 e mereceu, por isso, o castigo exemplar de reivindicação. As análises psicológicas atribuem sua re...-olta
, .
da calunia e da difamaçao: º
• desa f 1ou o poder real. Enfrentou a
. a um "ressentimento". Por acaso não se assemelha ao mesmo
reale1,a diretamente em missiva. . . lmente em uma carta
• s, especia ' argumento que escutamos frequentemente, nestes tempos de
3 qua 1 faremo, s referénc·13 mais · ad.iante. Participou liderou o
• e oposição política ao poder onisciente? Até a grafologia apre­
motim para acabar com ,
• Urzua no barco, lugar' segundo relatam sentou seu veredicto:
os cronmas, onde fo1· escnc . a a carta com
notícias ao Rei:
Transparece um amor próprio exagerado, produro de um imenso
Mas, para que mostrass
e mais força, Dom Fernando [Guzmán, orgulho e que brota do desc-jo de deixar uma marca particul.u: um
que será posem• ormente
assassinado I ordenou que fosse afã decidido de dominação, alimc-ntado por um,1 aurentica capacidade
rodos do campo, poi.s ass assinada por
. fi.cava meIh or para segur
im de liderança, feita de uma energia refletida na escrita firme e nurrid.t,
ança de todos,

52
53
..
claros das letras da ativ idade,
de segurança expressa Pelos contornos realizou, terminando com sua declaração de revolta até a morte
. 1 o revelada pela
mtrep1•dez e ambºça· linha ascendente que envolve todo
pela ingratidão real.
0 grupo (Matamoro, 198
6: 14). A carta está escrita numa permanente oposição, que às vezes
soa irônica e em outros momentos assume este tom de forma
Em 153 9, Lope de Aguirre chegou à América com licença real explícita, entre a formalidade e a acusação brutal contra a pessoa
para ir até O Peru, podendo, inclusive, ir dali a outros lugares: do Rei, passando pela informação e denúncia. Dessa maneira,
"Sair desta terra com seus bens e posses, indo onde quisesse e por exemplo, usa permanentemente as fórmulas, "Rei Felipe,
aprouvesse, sem que por isso recebesse qualquer impedimento", natural espanhol, filho de Carlos invencível", "Acredite, exce­
afirma o documento oficial que o autoriza. lente Príncipe", "Rei e senhor", "excelente senhor e Rei", "Deus,
Ali, em suas atividades militares, sempre de parte do Rei, Nosso Senhor, aumente e engrandeça sua prosperidade contra
aparece nos relatos dos cronistas em batalhas contra Gonzalo os turcos e franceses, assim como todos os demais que por estas
Pizarro, quando se rebelou contra o ditame real mais liberal partes queiram guerrear contra Sua majestade". Porém estas
da época, como são as prerrogativas dos indígenas com as Leis expressões serão apenas o preâmbulo para a acusação direta e
de 1541, as chamadas Novas Leis; lutou também contra Pedro o enfrentamento: "Acredito (excelentíssimo) Rei e senhor que
Alonso de Hinojosa e outros. Como afirmamos, o Peru é um cen­ para mim e meus companheiros você não agiu assim, mas foi
tro de ebulição em torno das relações de poder, não apenas dos cruel e ingrato; "Te acuso, Rei"; "olha Rei espanhol, que você
espanhóis contra os indígenas, mas entre os próprios peninsulares não seja tão cruel com seus vassalos, nem ingrato"; "você não
que se enfrentam, direta ou indiretamente, por ciúmes, direitos, pode levar título de Rei destas partes, onde não se aventurou
riquezas, prestígios ou simples rivalidades. Os conflitos, em geral, em nada"; "Por um lado, acredito que muitos poucos reis vão
são entre ricos e pobres, os já estabelecidos e os recém-chegados. para o inferno, porque são poucos, pois mesmo se fossem muitos
As disputas entre Almagro e Pizarro são as mais notáveis. Nesse nenhum alcançaria o céu, já que lá seriam piores que Lúcifer,
meio de frustração e descontentamento, lealdades e deslealdades, pela grande ambição e desejo de saciar-se com sangue humano."
não é raro encontrar o sentimento antimonárquico, como o que A primeira acusação se refere, pois, à crueldade do Rei frente
se abriga no seio da revolta de Gonzalo Pizarro antes mencio­ a seus vassalos que o enriqueceram, sem terem, no entanto, seus
nado. É a revolta de quem corre o risco de perder privil ios e trabalhos reconhecidos. É a acusação de uma dupla injustiça
ég
se rebela, aconselhado por Francisco de Carvajal, cont gesto histórica: a de serem súditos de uma coroa que aprofunda as
_ ra o
liberal da monarquia. diferenças entre as castas, e, por outro lado, a frustração e descon­
A carta de Lope de A gume · · I'aveI. Sua orgam.zaçao
· e, m1gua - formidade dos que chegaram atrasados ao botim da conquista.
revela duas partes claramente d1º f . . , Essa tem sido uma acusação frequente nos julgamentos de Lope
. erentes. A pnme 1ra e um longo
d1scur�o, no uai arrosta o Rei da de Aguirre; o que não se reconhece nele é seu questionamento
_ � Espanha, Felipe II, listando as
s1tu�çoes de mjustiça vividas na da natureza do poder. Ele é um homem da colonização, uma
América e se levantando co ntra
a atitude do monarca, num tom ferramenta dela, porém, que num determinado momento coloca
e numa construção única para
o momento em que vive· A
segundª parte começa com o relato em questão o poder real, por uma parte, e o poder colonial na
da Expedº,çao ' ª °
_ de Urzúa rei tand as
execuçoes que ordenou e
54
55
, . encomendeiros, por outra, além de
Amenca, o dos Ouv i·dores e velhas, além de outros tantos rapazes que pescam, matam per­
ígenas.
ressaltar os maus-tratos dos ind dizes e trazem frutos para eles."
de uma escnta que pro-
· aça- o expli·ca as contradições
Esta s1tu Todas essas descrições acompanham as acusações contra o
o monarca de abuso de
tege o Re1,· ao mesmo tempo que acusa monarca e levam, finalmente, à determinação que é o grande
saber recompensar
poder. Recrimina seu enriquecimento e o nao sentido desta carta: "De fato deixei, juntamente com meus
devidamente aqueles que colocaram suas vidas em perigo pela companheiros cujos nomes depois direi, sua obediência e natu­
coroa, pedindo amparo divino para os que se lançam à guerra ralidade de nossa terra que é Espanha, para fazer a mais cruel
contra ele na Europa. Faz a acusação e, ao mesmo tempo, reve­ guerra que nossas forças possam sustentar e sofrer contra a sua
la a hipocrisia dos que se relacionam com ele a partir do novo Pessoa" (Aguirre, 1927).
continente, dos que derramam "lágrimas ante sua real pessoa". Em Aguirre não existe indício de urna percepção sensível da
Esta situação está refletida na seguinte expressão:" Não podemos natureza; é um depredador, na medida em que seu objetivo, que
acreditar, excelente Rei e senhor, que seja tão cruel com tão bons é político, deve ser atingido a qualquer custo. Trata-se de um
vassalos como nestas partes existem, mas o que fazem seus maus problema relativo ao poder, frente ao qual a natureza tem um
Ouvidores e ministros sem seu conhecimento." l:. uma acusação sentido totalmente utilitário; a pesca é para comer, como os frutos
direta ao monarca, mas também a descrição dos abusos de seus da terra, os rios são meios de transporte. A força da natureza é um
representantes, como, por exemplo, os ouvidores, que só usam a elemento contra o qual se luta para sobreviver. Este é o sentido
força dos demais sobre os que fazem valer seu poder, aumentando de sua relação com o meio natural, quando aparece no texto.
sua riqueza, ou os ministros do monarca, que "usurparam nossa A expedição de Urzúa, que será finalmente a de Lope de
fama, vida e honra". Não apenas deixaram seus homens alijados Aguirre, marca a imagem da Amazônia com urna nova dimen­
das riquezas do Novo Mundo, mas os relegaram ao anonimato, são. Já não se trata apenas da procura de Eldorado, não é ape­
de modo que não terão um lugar na história. A fama tão procu­ nas a aventura desmedida e a ousadia; está presente também o
rada por eles também foi assim arrebatada. sentido separatista, libertador da coroa espanhola, que aqui se
Além disso, há o cenário grotesco da Igreja; a dissolução acha favorecido pelo isolamento geográfico, num ambiente que
moral dos freis, que mais do que espiritual, dedicam-se a mer­ se percebe repleto de riquezas naturais. Na carta que Lope de
cadejar com bens temporais, vendem mercadorias, adquirem Aguirre envia ao Rei, este princípio está consignado num gesto
posses, comercializam com os sacramentos. São inimigos dos que foi considerado demencial, porém que demarca um princí­
pobres - Aguirre sempre se coloca do lado dos desv pio histórico com a consignação de uma nova ordem. Naquela
alidos -,
ambiciosos, glutões e soberbos. Além disso época, como agora, a Amazônia parece condensar as visões do
, revela seu compor­
tamento com os indígenas·• "P01s · os· frei• s nao querem enterrar paraíso que a Europa projeta sobre a América.
nenhum índio pobre e estao - a1OJa• dos nos melhores reparti-
mentos do Peru ·" Depoi s, comenta
com franca ironia· "A vida
que levam é dura e labono · sa, porque cada um deles tem por
penit. enc
. .
i a em suas cozi
nhas uma d,uz1a - .
. de moças, nao mu i to

56
57
hoy S. Francisco de Quito y declaración dei mapa en donde está
pintado, escrito provavelmente em 1639.
Acuna foi encarregado pelas autoridades espanholas, incomo­
dadas com a presença de Teixeira em Quito, de acompanhá-lo
em sua trajetória de volta ao Grão Pará. Partem no dia 16 de
fevereiro de 1639 e chegam ao Pará em dezembro daquele mesmo
ano. O texto de Acuiia é bastante próximo ao de Rajas, que havia
feito a viagem em sentido inverso. Há nesse texto uma vontade
informativa logística evidente - é a função que lhe foi dada em
Quito-, assim como um recenseamento do que vê em relação a
riqueza. Fica claro no texto a tensão entre as duas metrópoles pela
hegemonia na região. O tom de Acuna é descritivo e lírico, mas
é também de registro, diríamos. Por uma parte e em seu começo,
quando se refere ao rio, a visão majestática deste leva o autor a
uma comparação com dois grandes rios históricos, o Ganges e
o Nilo. Frente àqueles, "o Rio das Amazonas rega reinos mais
extensos, fecunda mais terras, sustenta mais homens e alimenta
com suas águas oceanos mais caudalosos" (Acuna, 1946: 31).
Mais a frente, a prosa adquire o tom lírico da emoção para­
disíaca:

Figura 9 · As "casas árvores" protegem os indígenas, numa cena de combate de 1530, As províncias localizadas no rio Amazonas não necessitam de nada
em que cada grupo se defende com suas próprias estratégias de fora; o rio é abundante em pesca, os montes de caça, os céus de
Ilustração de Théodore de Bry. aves, as árvores de frutas, os campos de cereais, a terra de minas; os
naturais que ali habitam são dotados de grandes habilidades e uma
O RELATO DE ACUNA E A VIAGEM DE TEIXEIRA aguda criatividade em tudo que para eles é importante, como iremos
Como vimos na crônica de Carvajal, que relata o descobri ­ vendo no discurso desta história (Acuna, 1946: 32).
mento espanhol da Amazônia, a procura do País da Canel se
a
transforma na procura de Eldorado. Sua contr Não é estranha essa perspectiva com fundo bíblico em um
aparti da será a
,
crônica do 1·esuíta Cr'isto , funcionário do Santo Ofício. É dessa maneira como ele descreve,
. baI de Acuna,- que exatamente um seculo
depois' em 1641, reiata a viagem· . . ' ao se referir a uma das lagoas- "mãe do recém-nascido"-, que
. da por Pedro Te1xe1ra
realiza
em um texto intitulado Nuevo , nasce aos pés da Cordilheira, o surgimento do rio rumo à planície
descu b nm,en
. . to dei gran no de
las amazonas· Trata-se de uma descendo dos Andes. Mesmo que este rio não tenha sua origem no
viagem cuja trajetória corre no paraíso terrestre, como se acreditava na Idade Média a respeito
mesmo sentido. da des
· por Carva1.al. Teixe
ema . ira havia chegado
a Q uno. vm. do de Curupa, , do Nilo, o Amazonas aparece ali como nascendo de um fiat
ci'dade do Grão-Pará ' no Atlântico ' lux, de um big bang iniciático, originado no curso tributário do
e o re1ato dessa travessia ,
esta no texto de Alonso de Rojas, in-
titulado R eIac,on
. , del descu bnm,e Caquetá, que desce do Peru, e de duas lagoas próximas a Quito:
. . nto del no,
de las amazonas,
58 59
Por várias outras partes, o Peru almeja se colocar como O prin­
cípio e nascimento deste grande rio, comemorando e festejando 0 a partir da perspectiva dos interesses da cultura que o avalia.
Amazonas como O rei dos demais. Porém, de hoje em diante, a cidade O discurso adquire modalidade científica e literária, simulta­
neamente, porém cada vez mais o tom literário perde terreno.
de San francisco de Quito não o permitirá, pois a oito léguas de seu
Trata-se de informação útil para a navegação, dados de logística
assentamenro tem encerrado este tesouro( ... ) que furando um monte
militar. A seguir, aparece a descrição da produção e das técnicas
quc.-, invejoso do tesouro que guardava, procurou com a força de um
de trabalho envolvidas para o consumo e conservação. Trata-se
terremoto cair em cima dele, pretendendo afogar em seus princí pios tão
de informação econômica: a fertilidade, os frutos "os quais são
grandes esreranças, como daquele lago se prometiam ao mundo. Dessas em grande abundância", os peixes, as tartarugas, as caças. O
duas lagoas, que caem vinre minutos debaixo da linha equinocial, pela olhar antropológico denuncia o ponto de vista. Frente às festas
handa do Sul, tem sc.-u princípio o rio das amazonas (Acuria, 1946: 33) indígenas não interroga, qualifica: estes índios são dados à em­
.
briaguez. Não passa ao largo da riqueza mineira: ouro e pedras
O rio aparece, assim, aos olhos do leitor armado de uma aura preciosas, o imenso tesouro "que a majestade �e Deus guard_ou
,
construída com o recurso poético da humanização da nature
- para enriquecer com ele a de nosso grande Rei e senhor Felipe
za. Há um olhar de relação com o mundo natural, valorizado IV" (Acuiia, 1946: 49).
esteticamente, que ganha importância no decorrer da escrita Finalmente, ao que parece, last bu� not the least, não se es­
.O
sujeito da enunciação parece suhmergir na grandiosidade quece de sua função catequizadora; inúmeros são os grupos e
e na
belela natural, mas sem deixar de assimilá-la ao ser huma as línguas faladas pelos naturais, mais de cento e cinquenta, e se
no: lhes fosse dado saber do verdadeiro Criador do céu e da terra,
abraçariam sem dificuldade sua santa lei.
Caminha sempre serpenteando em extensas voltas, e como senho
r Assim, o texto de Acuiia é conduzido por um olhar sobre a
ahsoluto dos outros rios que entram nele, tem repartidos
seus braços, paisagem que extrapola as expectativas e, frente ao assombro,
qu( são como fifis executores seus, por meio dos
quais vai ao seu projeta um halo quase místico sobre ela. Esse olhar, no entan­
encontro, e cobrando dc.-les o devido trihuto de to, coloca em evidência tudo o que encontra, não se deixando
suas águas, volta a
incorporá-los no canal principal (AcuriJ, 1946 levar pelos interesses do grupo e da sociedade à qual pertence
: 34 ).
o sujeito que enuncia. A natureza e o meio ambiente transitam
Tem braços que recebem de seus aflue da admiração, que envolve a emotividade, para se constituir em
ntes, oferece hospe­
dagem aos pequenos rios: a humaniz objeto do possível enriquecimento.
ação é dimensionada não
apenas no aspecto físico, mas também
no social. O rio tem um
funcionamento semelhante ao da
sociedade hierárquica à qual A IMAGINAÇÃO EUROPEIA NA AMÉRICA
pertence o enunciador, mobiliza
do através de um sistema de
tributos e favores, superioridad O espaço amazônico não foi construído imaginariamente
es e submissão.
Bem cedo, e às vezes paralel apenas pelos súditos das coroas de Espanha e Portugal. Como
, . amente, o lirismo vai dando lugar
a mformaçào detalhada ·
de tom preCL· so. O discu afirmamos antes, os países que entraram na disputa pelo botim
. rso assume o
mat1z da preci são geogra· f.1ca; americano estimularam seus representantes a se aventurar neste
onde e como recebe suas aguas, a
que altura a quancas 1egua
• s de sua desembocadura se estreita, lugar do continente por explorar. Em sua dedicatória a perso-
. . • . sua .
vanaçao em lat1t_ ude e 1ong1tu
· de. Examma . seu aproveitamento
· h escreve.· "[Inglaterra]
nagens da corte inglesa, s1r Wa1ter Ra1e,g

61
60
tem outra posse e a segurança de riqueza e glória n as viagens às
Índias Ocidentais e uma entrada fácil para invadir as m elhores na Europa pelo gênero da literatura do deslocamento geográfico,
partes dela, pela via comum" (Raleigh, 1980: 27). a !itera tura de viagens dos séculos 18 e 19. Desse modo, Ottmar
Dessa maneira chega à Guiana, inicialmente como voluntário Ette registra:
e, mais tarde, como aventureiro, o escocês John Gabriel Stedman,
cujo interessante relato, ]oanna or the (ema/e slave Uoana ou O fascínio do relato de viagens(... ) se baseia fundamentalmente nos
a mulher escrava], publicado em Londres em 1804, é o primei­ movimentos da razão onipresentes na literatura de viagens, considera­
ro romance da região, no qua l aparece o perfil escravista dos dos como movimentos de entendimento espacial. Um entendimento que
colonos. Chega também J. Wilkens, português, que escre ve um concretiza espacialmente a dinâmica entre o saber e o agir humanos,
poema épico sobre os índios mura, Muhuraida, publicado em entre o que já se sabia e o que ainda nâo se sabia; entre os lugares da
1819. Mas dentro do âmbito da s crônicas de viagem, teremo-s escrita, da leitura e do relatado (Ette, 2001: 14 ).
que espera r até o final do século 16, em 1596, quando aparec
e
sir Walter Raleigh, com E/ descubrimiento dei extenso, rico Como e por que se constrói este novo espaço cultural no
y
bello lmperio de Guayana y la relación de la grande y primeiro momento colonizador, este imaginário fantástico sobre
dorada
Ciudad de Manoa. Seu texto, que relata sua vi a gem pela Guiana a Ama zônia?
e Orinoco - ele não chega ao Amazonas - foi imediatamente Gostaria de analisar quatro elementos que me parecem con­
traduzido para o latim, língua franca da época, e publica do em dicion ar a criação das formas e conteúdos deste imaginário: a
1599 por Théodore de Bry, cm sua Colección de viaies a América. significação da viagem e seu preâmbulo nas cortes europeias, o
Foi tr aduzido para o akmào, francês, holandês e italiano, o que contexto medieval inquisitorial, a nascente imaginação renascen­
parece ser um dado relevante para perceber o sucesso que fazem tista e, por fim, o interesse que d.espertam os textos de viagens.
em sua época os relatos de viagem, que m.-1is adiante se torna Os séculos 16 e seguintes experimenta m a abertura do mundo
­ conhecido na direção de outras fronteiras, é o momento em que
rão vrrdadeiros frnômenos da cultura dr massas. Seu destin
o as viagens abrem os horizontes e as perspectivas para outras for­
de aventureiro trrminou em 1618, quando foi decapitado em
mas de expressão humana e social, do espaço e do tempo. Não é
Londrrs. Sobre ele foi escrito: "De nada serv i u ter s
i do letrado , por acaso que a Europa vê surgir textos críticos, como o ens aio
poeta , cortesão, guerreiro, navegante, pirata, desc
obridor e his­ "Os canibais", de Montaigne, ou Cândido, de Volta ire, assist a às
toriador. A bal ança se inclinou para o la do
do hom em de pouca polêmicas entre Sepúlveda e Las Casas, e discuta posteriormente
sorte" (G arcia Tamayo, 1980: 18).
os textos de De Paw e Buffon, e as teorias de Gobineau.
Tomaremos esses exemplos como sign
ificativos para ressal­ A viagem, de acordo com J acques Brosse, é "menos um aven­
tar dementos do imaginário, que
trazem em si a construção tura do que uma procura":
da Amazôni a como uma imagem
ocidenta l internacionalizad a,
atr avés da difusão provida por
esses relatos na Europa. O in­ Nos tempos antigos, os viajantes tinham como modelos os heróis
teresse desperto pela a ventur
a americ a na fez com que o Velho cujas façanhas apareciam nas mitologias. Por sua origem quase divina,
Conrinrnre procurasse o pr
azer da alter ida de cultur semi-humana, os heróis tinham a missão de unir o conhecido ao
p� lítica . Era ta mbém um al soc ial e
modo de olhar para si própri�. Porém desconhecido, de comunicar o espaço dos homens, o império do divino
h a outra dimensão presen
te, ressalta da neste fascínio que se dá e o mundo subterrâneo dos mortos (Brosse, 1987: 4).

62 63
Esta interpelação ao desconhecido sempre foi um atrativo sin­
gular de todos os tempos e, naquele momento em que os espaços
se abriam paulatinamente, aparecia com mais intensidade. Nela,
nem tudo era desconhecido, pois o relato de viagens remetia a
um mundo que já estava consignado em fascinantes imagens
oferecidas pelos viajantes conhecidos, com suas topologias e
bestiários, sua zoologia fantástica e aventuras inauditas, desde
Pierre D'Ailly com seu Imago mundi, Mandeville ou Marco
Polo. Ou seja, como aponta Ottmar Ette, toda aventura tem uma
memória anterior, toda viagem remete a outra viagem. Não era
apenas o prazer de vislumbrar o desconhecido que fazia do relato
de viagens um atrativo especial; nele era possível ler o intertexto
que o precedia, reconhecer os personagens de outras viagens,
de outras naturezas inusitadas, outras zoologias, como as que
apareciam nas Etmologías de San Isidro de SevilJa, organizadas
em grupos: os "portentos", os "ostentos", os "monstros" e os
"prodígios". O lwaipanoma, personagem sobre o qual escreve
sir Walter Raleigh, é um exemplo:

Junto ao Arvi há dois rios, Azoica e Caora [Caura) e no ramo


chamado Caura [Caora] habita uma nação de gentes, cujas cabeças
chegam um pouco acima dos ombros; os quais, apesar de se pensar que
é mera fábula, no enranro de minha própria parte, estou convencido
que é verdade, porque todos os meninos das províncias de Arrmaya e
Canuri afirmam o mesmo.
São chamados iwaipanomas; dizem que têm os olhos nos ombros
e a boca na metade do peito, e que um grande rabo cresce para trás
enrre os ombros (Raleigh, 1980: 161).

O acéfalo tem diferentes nomes no imaginário desde a An­


tiguidade. É um personagem sem cabeça, cujos traços do rosto
Fig ura 1 O - Mapa d se situam no tronco. Em geral, está associado às amazonas e
e pe dro Teixeira, o rim
ro portug uês p ei- à existência do ouro. Este personagem, de tradição milenar,
desde sua de;e ��;;�ou pel� Amazon as,
u
sentido contrário ao ura ate Quno, no chega à América transportado pelo delírio do conquistador.
d a corrente (século
. . 16)
Bibl,oreca Nacional
de Madn..
64
65
Figura 12 - O navegante inglês sir Walter Raleigh dialogou com o rico imaginário ama­
Figura 11 • Índios contra missionários (século 16) zônico, em seu percurso pela Guiana em 1595
Ilustração de Théodore de Bry.
A viagem tinha uma aura de processo iniciático, a travessia
unia o conhecido e o desconhecido, o preço a pagar era a resis­ constituído pelos meses de espera e pelas conjeturas que reunia
tência às provas no meio da monstruosidade do "mar tenebroso", aqueles que perambulavam pelas cortes europeias, procurando
feito de serpentes marinhas, sereias, lacraias, ruídos, o estreme­ convencer o poder político e econômico de seus projetos, inda­
cimento do inesperado. gando documentos e arquivos, pedindo autorização e fundos.
Ao voltar, o viajante já não era o mesmo, afirma Brosse. Seus Do outro lado do mar também circulava, como aqueles que so­
olhos haviam visto outras constelações, os pés traziam o pó de cializavam nos lugares de encontros e partida de destacamentos,
outras terras, "está impregnado do desconhecido e no mito se as "entradas", a versão das "bandeiras" da costa ocidental da
converteu num herói", assinala o pesquisador (Brosse, 1987: 5). América, em Quito e Lima. Havia ali uma sementeira de formas
Esse trajeto abria, assim, um espaço para a fantasia do do imaginário, que se juntavam às expectativas, rusgas, acordos,
conhecido-desconhecido, gerando desde então um processo possibilidades, delírio.
virtual de transformação no viajante e naqueles que esperavam Para o viajante, o que espera ver e encontrar já havia sido
ou liam seu relato. Além dos limites do mundo demarcad o pela ditado por suas leituras, seus temores, suas fantasias, toda a
Europa, havia outras criaturas, outra natureza, outras vidas, informação fabulosa que reuniu em seu meio. De algum modo,
que estimulavam a fruição do relato, da leitura, despertando ele vai encontrar o que esperava encontrar, o que imagina de
a curiosidade das mentalidades recém-saídas do espectro da alguma maneira já está em sua cabeça. Daí sairá o imaginário
visualidade medieval. Mas este trajeto tinha um preâmbulo, de gigantes, anões, a monstruosidade do cinocéfalo, do bispo

66 67
..
do mar, dos homens com rabo, dos orelhões. Com resp eito ao
desenho dos mapas, afirma Rojas Mix: da cultura. Como se produz o processo transcultural? Serge
Gruzinski trabalhou a questão em relação ao México colonial,
com uma observação minuciosa e bem informada. Não parece
Basta observar as cartas feitas no século 16 para ver como a fauna
haver, ou ao menos eu não conheço, nenhum trabalho parecido
desta cartografia maravilhosa se traslada a América. Acompanhados
com a questão amazônica.
de lendas significativas, monstros com feições humanas alternam com
Como afirma o pensador brasileiro Sérgio Buarque de
os nomes dos rios, lugares geográficos, cidades reais e imaginárias.
Holanda - o mais clássico dos estudiosos desses começos da
Constituem a história da viagem. Representam ao mesmo tempo um a imaginação americana, cujos trabalhos são publicados ao longo
superfície real e um espaço mítico. É uma viagem rumo ao desconhecido. do século 20, em especial Raízes do Brasil (1936) e Visão do
Rumo ao imago mundi que os descobridores possuíam. Os monstros paraíso (1959) -, a variedade das criaturas que desembarcam
faziam parte de uma "tela simbólica", que permite apreender O espaço com os conquistadores é considerável. Em meio a uma enorme
geográfico, dá um sentido ao mundo e organiza a visão das novas terras quantidade de informação reunida, ele cita o filósofo e homem
descobertas (Rojas Mix, 1992: 42). de estado, Brunetto La tini (circa 1210-1294), professor de
Dante, que considera a Índia (aquela que Colombo acreditou
O discurso construído pelo viajante, que descobre a Amazônia descobrir e foi situada por ele mesmo, na carta aos monarcas
aos olhos europeus, é, assim, enquadrado num imaginário que hispânicos, próximo do Ganges) como um lugar onde se en­
provém, por uma parte, da Idade Média e do obscurantismo contraria os seres mais disformes e espantosos que podiam ser
inquisitorial, e, por outra, de conteúdos míticos que o Renas­ imaginados.
cimento resgatava das fantasias da Antiguidade greco-latina. Procura, em outro lugar, relatar esses impossíveis: "homens",
Seu discurso é o da experiência direta, do testemunho, porém a diz, "com os pés apontando para trás e oito dedos em cada pé;
realidade que enxerga e que acredita enxergar, ou está certo de outros, sem a cerviz, mas com os olhos nos ombros; alguns
que alguém próximo a ele enxerga, está enquadrada nos ecos da apenas com um olho no meio da cabeça, como os ciclopes, ou
bagagem transportada por sua cultura. às vezes, com uma perna só; estes últimos seriam velocíssimos
O popular personagem do curupira, de antiga tradição em na corrida". Brunetto situa igualmente na Índia os homens que
toda a região amazônica, onde recebe denominações diferentes e logo ao nascer já parecem velhos, e vão tomando feições de
apresenta grande vitalidade no imaginário popular atual aparece moços à medida que envelhecem, assim como as mulheres que
,
em uma de suas variantes importantes como engravidam aos cinco anos de idade e não vivem além dos oito.
uma criatura com os
pés ao contrário. A figura está documen Entre as demais curiosidades do lugar fabuloso, fala ainda de
tada n o text o de Acuna.
Em outra variante tem apenas um . , certos homens que matam e devoram aos próprios pais, antes
pe, d efe1tuoso
. . Como d1z1amos,
ele pertence claramente a, cu1 que eles morram de velhice ou enfermidade, e veem esta prática
tura popular amazônica e diríamos
que e, um dos seres imaginários como altamente piedosa (Buarque de Holanda, 1992: 19).
centrais do "olimpo" local. Ele Como vemos no fragmento em itálico, há antecedentes de
passa do conheciment m
Acuna
° · d'1gena para o texto de Acuiía, ou será
_ que vai. projetá- 10 criatu ras com os pés ao contrário no imaginário que vem da
a partir de uma história prévia? Esta
,
e uma permanente qu Europa.
estao- d e quem observa estes fenôme nos

68 69
o intelectual brasileiro observa, em seu trabalho, a presença assinala o pensador brasileiro, como as inúmeras pedras pre­
permanente de motivos edênicos - escreve a "biografia dessas ciosas, entre elas, uma das mais apreciadas que, por se tornar
ideias migratórias" - presentes no discurso do chamado desco­ tão corrente, se converterá na menos desejada, a esmeralda, de
bridor, numa sequência que tem início com Colombo, pois este, esplendorosa presença nas narrações míticas referidas ao para­
frente à saída do Orinoco, assegura em carta aos monarcas ibé­ íso. O clima, também descrito como temperado, contribui para
ricos estar realmente frente ao Paraíso. Uma vez que esta classe a fábula. Nesta capacidade fantasiosa, Buarque de Holanda
de figuras está tão ligada às paisagens edênicas, nas quais as sustenta que a ilusão do maravilhoso parece se atenuar, quando
reminiscências bíblicas coexistem com a mitologia greco-latina' se trata dos portugueses, pois demonstram uma aceitação mais
sua frequência, segundo Buarque de Holanda, "faz acreditar que resignada, quase fatalista, da realidade possível frente à extra­
correspondem a um sentimento geral, porventura nascido de polação imaginativa hispânica. É que para eles estas não eram
tradições anteriores ou alheias à própria difusão do cristianis­ as primeiras terras novas que encontravam. Sua tradição os
mo". Com efeito, o mito do paraíso, de longa data na história da havia levado longe na navegação da costa ocidental da África e
humanidade, ganhou presença com o descobrimento da América, já conheciam mundos descobertos pela Europa muito antes dos
ganhou corpo, chegando a se converter numa ideia fixa: espanhóis. Bem distante de especulações e, em boa parte, dos
preconceitos, a atitude dos portugueses era mais aberta para o
Sabe-se que para os teólogos da Idade Média não representava o desenvolvimento de um pensamento científico.
paraíso terreal apenas um mundo intangível, incorpóreo, perdido no Entre a grande quantidade de figuras presentes neste trânsito,
começo dos tempos, nem simplesmente alguma fantasia piedosa, e queremos nos referir a três, que interessam especialmente na
sim uma realidade ainda presente em sítio recôndito, mas porventura medida em que são as mais recorrentes nas crônicas que estamos
acessível. Desenhado por numerosos cartógrafos, tenazmente procurado observando. Vamos nos deter mais de perto nas "amazonas", por
por viajantes e peregrinos, pareceu descortinar-se, enfim, aos primeiros uma parte, e no mito de Eldorado, por outra. Mas também há
contatos dos brancos com o novo continente. ( ... ) Denunciam-no as uma terceira figura que está presente no imaginário de e sobre
primeiras narrativas de viagem, os primeiros tratados descritivos, onde a região: a do Maligno.
a todo instante se reitera aquela mesma tópica das visões do Paraíso AS AMAZONAS
que, inaugurada desde o século IV em um
poema latino atribuído, A questão é central para nosso propósito, como é evidente.
erradamente segundo muitos, a Lactâncio
, e mais tarde desenv olvido A imagem das amazonas é uma das mais surpreendentes para o
por Santo Isidoro de Sevi·Ih a, a1cançara
, sem sofrer mudança, notave , 1 leitor, presentes no texto inicial da grande narrativa amazônica
longevidade (Buarque de Holanda,
1992: IX-X). de frei Gaspar de Carvajal.
As obsessões destes viajantes proporcionam a revitalização
Muitos dos elementos da nova
_ . terra apontam para a realiza- de monstros, a produção de variantes, pois ficam perturbados
çao do mito .
' não apenas das criaturas e curiosidades perfiladas com os perfis humanos dotados de um sexo volumoso na região
nos relatos·' também aque
1es que o enunciavam se situavam do umbigo, seres hermafroditas, mulheres sensuais, guerreiras,
em uma geogr afia fantá '
stica, em que "tudo era dom de Deus", andróginas. As amazonas cruzaram o espaço de séculos para

70 71
chegarem até a América. Elas vêm de muito antes da Antiguidade
altamente estratificada. Na verdade, o que acontece é que o cro­
greco-latina; a voz amazon, de origem prov_avelmente ira niana,
nista dominicano projeta ali o único sistema social conhecido até
segundo algumas interpretações, responderia pela falta do seio
então, 0 da cidade medieval. É por isso que assinala as grandes
cortado para O melhor manejo do arco. Suas principais caracte­
diferenças sociais: entre elas, enquanto umas possuem vasilhas
rísticas são conhecidas, pois são mulheres solitárias que mantêm
de ouro e prata, outras, as serventes, usam vasilhas de madeira.
relações com homens uma vez por ano e fazem desaparec er os
Elas usam roupas de lã e coroas de ouro. A imagem continua
filhos machos. Estão relacionadas à existência de riquezas, ouro
sendo a da mulher medieval, assim como o entorno descrito, o
e dos acéfalos, tão presentes na Idade Média europeia, ainda que
de um lugar paradisíaco repleto de riquezas naturais.
na América seja raro encontrar a falta do seio. A figura inteira,
com sua sensualidade renascentista, campeia pelas crônicas e
relatos de viagem da época. Talvez seja possível explicar no
contexto a necessidade de resgatar esta figura dos imaginários
coletivos originários; um elemento que é incorporado precisa de
condições que produzam a necessidade do gesto.
Na viagem de Orellana, pouco a pouco vão aparecendo
notícias de umas mulheres que os indígenas chamam coniu­
puiaras, junto com a recomendação aos recém-chegados de que
se pretendem vê-las têm de tomar cuidado, pois como eles são
poucos e elas muitas, poderiam matá-los. A descrição não tarda
em chegar: "Estas mulheres são muito brancas e altas, tem o
cabelo muito longo, trançado e solto na cabeça, são de membros
grandes e andam totalmente nuas tapadas suas vergonhas, com
seus arcos e flechas nas mãos, armando tanta guerra como dez
índios" (Carvajal, 2007: 32).
Elas vivem próximo da costa, a sete dias de caminho. A
descrição do dominicano remete à existência de um grupo de
mulheres; no total, haveria umas setenta aldeias às quais é difícil ·
Figura 13 - As amazonas se encontram uma vez por ano com seus amantes. Suas figuras
chegar porque elas têm vigias. São mulheres celibatárias que são recriad as segundo o ideal de beleza europeia renascentista
levam consigo os homens quando querem sexo deix ndo que
, a
partam em seguida. Quando engravid Como vemos ' no relato de Gaspar de Carvajal realidade e
am e o resultado é um . _
f1cçao possuem o mesmo status, na medida em que as imagens
'

homem, matam o filho e o enviam _ i-


ao pai, mas se é mulher, será que ele aporta sao as que mode1am• a realidade por ele perceb
convertida em guerreira. A chefe . , mco
.
se chama Corrí. A cidade em que da. O discurso que maugura ª descnç· ão do mundo amazo
vivem é extremamente rica - . , .
as amazonas como dissemo s, estão
tradicionalmente associadas ao tem m1cw com a proi·eção do imaginário europeu sobre uma
ouro - e 'a sociedade descrita é
73
72
Neste contexto de relatos, a versão de sir Walter Raleigh tem
senti do similar. Ele diz ter averiguado entre os que viajam pelo
rio Orinoco e Amazonas, porque queria saber a verdade sobre
aquelas mulheres, nas quais alguns acreditavam e outros não.
E acrescenta:

A nação destas mulheres fica no lado sul do rio, na província de


Topago, e seu principal reduto e retiro está numa ilha situada no la�o
sul da entrada, umas sessenta léguas do lado da boca do refendo no.
(... ) Em muitas histórias se comprova que existiram, em diversas idades
e províncias. As que vivem não distante de Guiana costumam estar c m

homens uma única vez por ano, no período de um mês, que eu mf1ro
Figura 14 - Imagem das amazonas usada como ícone de identidade da região pela relação que seja o mês de abril.
Nessa época, todos os reis das ribeiras se reúnem em assembleia com
realidade natural e humana que nada tem a ver com ela, mas que as rainhas do Amazonas; depois que as rainhas escolhem, o restante
o discurso trata de modelar: a sociedade medieval, o imaginário joga sua sorte por valentes [namorados].
greco-latino, a descrição paradisíaca do clima da zona tórrida. Durante um mês festejam, dançam, bebem abundantemente de seus
Acufta não fica atrás, um século depois, confiando serem vinhos; quando a lua desaparece, regressam a suas próprias províncias
corretas as notícias que os tupinambás dão sobre as amazonas: (Raleigh, 1980: 87-88).

Os fundamentos que dizem haver províncias de amazonas neste rio


são tantos e tão fortes que seria faltar à fé humana não dar-lhes crédito.
( ... ) Umas das principais coisas que asseguram era que estava povoado
de uma província de mulheres guerreiras, que se sustentavam sozinhas
sem homens, com os quais de tempos em tempos coabitavam, moravam
em suas aldeias, cultivando suas terras, e alcançando com o trabalho de
suas mãos todo o necessário para seu sustento (Acuiia, 1946: 94-95).

É interessante a incorporação destes eleme


ntos ao cotidiano
e sua funcionalidade um século depois, assim
que se instalaram
no continente americano . As amazonas
não parecem surpreen der assom­
exatamente como um elemento fant Figura 15 - Representação de como os monstros da mitologia amazônica
ástico, elas são um prolon­ bravam os europeus
gamento do mundo natural.
Gravura de Théodore de Bry.

75
74
--
- h,que localiza as amazonas na parte sul
RaI e1g .
do grande rio
,
valores sociais, pois ao questionar a "ordem masculina" estabelecida
uma vez que seus maiores red_ucos se encontrariam en:1 al gumas
ilhas próximo dali,não acredita que �l�s corte� o petto direito acabavam questionando o modelo social vigente, ou seja, a ideia de
"civilização". Representava, assim, a "barbárie" e era expressão da
para lançar as flechas com maior prec1sao. Esta �m�gem da ama­
alteridade. De uma alteridade que só existia como antípoda da ordem
zona sem O peito cortado parece ser uma vanaça o americ an a
estabelecida, uma vez que qualquer outra ordem era negada ou desco­
do modelo europeu original, no qual aparecem assim . De fato,
nhecida pelo mito, pela religião ou pela concepção da história (Rojas
0 vocábulo "amazonas" etimologicamente alude à falta do seio.
Mix, 1993: 138).
Sobre a questão do seio cortado ou queimado, há uma infinidade
de critérios entre os cronistas, alguns dos quais, como Thévet,
por exemplo, consideram que aquilo seria um exagero, pois na Por que esta revitalização em sua chegada a �mérica? É
verdade não implicaria maior eficiência, e sim um perigo para uma pergunta que nos fazemos também. Parece ser importante
suas vidas. considerar que, neste universo aberto com o qual se encontra o
As amazonas são nomeadas neste continente desde o Diario de cronista, por uma parte,não se separa a ideia de dar concrecude a
Colombo, que reconhece seu habitat como a Ilha de Martininó seus imaginários relativos a uma sociedade de outras ordens pos-
, , · Pore'm,também a imagem da amazona como essa mulher
s1ve1s.
a terra das mulheres sem homem. Tratava-se de um mito erudito,
assinala Buarque de Holanda, que seguramente provinha de forte, aterrorizante, que exerce o domínio sobre si m�sma e seu
Marco Polo ou dos que o seguiram. Este haveria interpretado de entorno dona de seu prazer e sua gravidez, pode ser lida com as
acordo com essas crenças as palavras dos indígenas, que teriam implica�ões simbólicas de um erotismo evidente. Isso é mais cl�ro
dito outra coisa. De fato, sua descrição é igual a do veneziano, quando são vistas como guerreiras, como no texto d� Ca� va1al,
que teria situado nas ilhas orientais,dois séculos antes, sua is/e em que estão prontas para o enfrentamento, a dommaçao e a
(emelle. Depois virão Pedro Mártir de Anglería, em De orbe morte - Eros e Tanatos - capazes, portanto, de representar um
novo, ou Américo Vespúcio, entre os primeiros a falar delas neste mundo bárbaro de sedução,com seus momentos de clímax e de
lado do Atlântico. Em outras versões, como uma regist aniquilamento. No universo sexualmente repressivo do meio,na
rada por carência de mulheres durante os meses que durava a aventura
Pigafetta, aquelas mulheres não viam home nem mesm de
ns o fluvial e a expedição em geral, a fantasia erótica representada
longe,inclusive os que tentavam se apro
ximar morriam; elas se por elas deveria ter sido a resolução simbólica das carências dele.
deixavam engravidar apenas pelo vento
,"assim com o acontecera
em outros tempos, com umas égua
s da costa da Lusitânia",
afirma o pesquisador brasileiro. Tamanha será a longevidade desse velho mito, no novo quadro
Das ilhas em que viveram toda
a Antiguidade se trasladam geográfico onde ao final se instalou que ilustres sábios não se can­
para a América,para habitar o n ovo
concinente. No Velho Mu sarão de indagar ao final dos setecentos, em suas andanças entre as
_ ndo é um mito que cur iosamente não
foi tomado pela iconografia tribos vizinhas, sobre O paradeiro das animosas guerreiras. Para tão
da Idade Média, assinala Rojas Mix,
que, ª� mesmo tempo, pergunta
pela raz ão deste mito quase
assombrosos mistérios, aquelas vastíssimas terras, de clima tórrido e
esquecido na Idade M
édia ser reatualizado, e res ponde: selvas opulentas, enredadas em mil correntes de água, furos, igarapés,
bordes mun
. . .mf ectados de uma fauna hostil e de índios bravos,
d'ave1s,
.
Em grande medida po .
1am proporc10nar 1 ideal e quase inexpugnável
o espaço d e acoJh'da
rque des de a Anttgu1dade
- . , ,
ter de símbolos · Para elas possu1am cara· (Buarque de Holanda, 1992: 6-27).
os gregos o mito
• representava a contrapartt·da dos

76 77

L
ELDORADO
O mito de Eldorado é um dos mai s populares da época
na América, atravessando os séculos até os dias de hoje, pois
ainda há expedições de aventureiros que percorrem os espaços
amazônicos em busca de Paititi ou de Manoa. É um mito que,
incrivelmente, ainda s e encontra na população da região ama­
zônica - um exemplo disso está no documentário E/ arena[ [O
areal], de 2003, filmado na Amazônia brasileira, na aldeia de
Itancoã, na região do Pará.
Quando falamos de Gonzalo Pizarro, havíamos mencionado
a utopia do País da Canela, uma forma de enriquecimento, que
dá lugar rapidamente à procura de Eldorado. Em 3 de setembro
de 1542, Pizarro escreve ao Imperador:

Pelas grandes notícias que em Quito e fora eu tive, assim por ca­
ciques principais e muitos anrigos, como através de espanhóis, que
confirmavam ser a província da Canela e a Lagoa de Eldorado terra
muito povoada e rica( ...) tomei a decisão de conquistá-la e descobri-la
(eirado por Ramos Pérez, 1987).

Esse mito, que é a concretização do desejo de enriquecimento


do europeu na América, teria sua origem neste continente, de
acordo com o pesquisador Demetrio Ramos Pérez, e é trans­
mitido pelos indígenas. De acordo com Buarque de Holanda, a
origem dessa obsessão dos soldados da Conquista faria ref erên­
cia, possivelmente, aos homens de Sebastián Benalcázar e teria
a ver, como sustento da fábula, com os imensos tesouros que,
segundo era voz corrente, havia nas terras dos chibchas (Buarque
de Holanda, 1992: 33).
O mito, que se expande entre os séculos 15 e 18, na Améri­
ca, e termina se localizando imaginariamente no território dos
Figura 16 -Yane •. omaguas e na cidade de Manoa, aparece como uma estrutura
· d ªde de personagens d
mapa, pode-se ver de cim . 0 imagm
· · ano
• • europeu instalados na Amazônia. No
a para ba1xo: centauros, ore . . . do imaginário, intensamente conformada por modelos europeus.
Ih"oes, 1w a1panomas e cmoce'fa1 os

78 79
asiático". Trata-se da transmissão europeia das imagens da ri­
queza do Oriente, trazidas por Marco Polo. A estrutura do mito
teria, então, três elementos em suas distintas variantes: o cacique
Dourado (o príncipe), uma lagoa e ouro em pó. A adoração
das lagoas como espaços rituais (o Titicaca, por exemplo), da
água em geral, é comum entre os povos indígenas, assim corno
é frequente a associação da água com a riqueza no imaginário
americano, especialmente no caso de Tenochtitlán.
A imagem de Eldorado é frequentemente associada às das
amazonas, bem como à do acéfalo. Assim aparece, por exemplo,
em sir Walter Ra leigh. Ele reconhece a sede desse império dou­
rado na cidade de Manoa, lugar de difícil acesso, onde habita o
Inca, que é o rei ou príncipe, e acrescenta:

Este Uuan] Martínez foi quem batizou a cidade de Manoa com o


nome de Eldorado, como me informou Berrío nessa ocasião.
Estes guianenses, e também os ribeirinhos, e todos os outros naquela
F!gura 17 - Mapa com representação do enfrentamen paragem que eu vi são grandes bebedores, no qual vício eu penso que
to entre amazonas e europeus do
seculo 16. Nele se distingue o r1·o em forma de nenhuma nação pode se comparar com eles; e na época de suas festas
. serpente·' as amazonas são recriadas com
traços de guerreiras ·md'igenas, o qu e parece surpr solenes, quando o Imperador festeja com seus capitães, tributários e
eendente para a estética da época
governadores, a maneira é esta: todos aqueles que brindam com ele são
Evi�entemente que, no princípio da "pro
cura", os antecedentes despojados de suas roupas e seus corpos ungidos completamente com
serao encontrados na busca do Santo
Graal, do Bezerro de ouro, uma espécie de bálsamo branco, chamados por ele curcai, do qual há
da Fonte da eterna juventude. A Am
_ érica como a projeção do grande quantidade, e é verdadeiramente muito apreciado entre eles, é
ennquecunenro possíve1 e, uma •
forma utop1c, a, que nasce nesses entre todos o mais precioso, do qual tivemos boa experiência.
tempos e se estende at,e h OJe.
· AI,em disso·
. . , e, uma aventura que Quando são ungidos completamente, uns servidores do Imperador
unphca, com a consecuç-ao . .r fama e nque
_ d o o b.
1et1vo
. , a dqum . za, preparam ouro reduzido a fino pó, que é soprado por meio de canas
que sao valores europeus do peno
, do. No entanto' há outros ocas sobre seus corpos nus, até que brilhem dos pés à cabeça; dessa
eIementas.
maneira, eles sentam para beber em grupos de vinte a cem e continuam
O mito fala da exist· .
, encia de um cacique que se banha numa bebendo durante seis a sete dias (Raleigh, 1980: 75-76).
1agoa e apos o banho de agua, recebe
. da rique
Esta I.deia um banho de ouro em pó.
za patente em palácios
historiador espanhoi é, de acordo com o Corno se pode perceber, o esplendor da riqueza é estonteante.
menc·ionad0, " uma carga de Recordamos que a origem do mito remete, segundo Buarque de
douramento

80
81
s homens de Sebastián Benal­
Holanda, à história contada pelo
a conquista de Quito. A
cázar, quando empreende, em 1533,
pó de ouro com eça a se
história do príncipe que se banha em
tornar uma armadilha para os conquistadores - curiosamente '
como indica o historiador, para os portugueses esta história
fantástica não teve o mesmo efeito - e a localização de Eldorado � .- --
.
com o tempo vai mudando de lugar e se dilui. Está, a princípio, ,, . --
,
.
-. .
em Santa Marta, Nova Granada, assinala Sérgio Buarque, no vale .. � ·. , ..-·
do Cauca; na Guiana; no país dos omaguas, onde permaneceu
com o nome de Manoa. Em nossos dias, inclusive, apareceram ' ':g.:
./ & J'
'/-'J . .:

informações de novas expedições arqueológicas, que teriam


evidências de sua existência na lagoa Paititi, próximo a Cuzco'
no Peru.
Eldorado, a cidade de Manoa, é um lugar mítico, um espaço
do imaginário e da procura. Um grande poema atual revê a cidade
nesses termos. É o poema homônimo do venezuelano Eugenio
Montejo (Trópico absoluto, de 1982):
Figura 18 - A cidade de Manoa se constituiu na imagem central da lenda de Eldorado, o
Não vi Manoa, não encontrei suas torres no ar lugar da riqueza por antonomásia
Nenhum indício de suas pedras Ilustração de Théodore de Bry.
Segui o cortejo de sombras ilusórias
Que desenham seus mapas. este imaginário, o sentido da riqueza, sinônimo de felicidade, da
Cruzei o rio dos tigres qual está embebido o mito de Eldorado, é a projeção, segundo
E o fervor do silêncio nos pântanos Buarque de Holanda, da ideia paradisíaca. A nocão da existên­
Nada parecido a Manoa, nem a sua lenda. cia concreta do paraíso na Terra - que estrutura sua magnífica
obra Visão do paraíso - é um dos pressupostos do pensamento
�ssim, resta a perplexidade, porque não "é um lugar, mas um na época da Conquista:
sentimento"• Pode ser divisada, no sonho mas sua dificuldade é
,, '
que é "a outr Iuz do honzonte
· . Já no tempo de Colombo, a crença na proximidade do Paraíso
" quem am - � , o lugar da plenitude: somente
a Ja chegou, já vive nela". Terrena! não era apenas uma sugestão metafórica ou uma fantasia
Como podemos notar, o 1magman
· · · · o greco-romano ' por meio passageira, mas uma espécie de ideia fixa, que ramificada em numerosos
da recuperação renascenttsta
• e dos claro-escuros medievais, for- derivados ou variantes, acompanha ou precede, quase permanentemen­
maram a lente através dª quaI te, a ativida de dos conquistadores nas Índias de Castela (Buarque de
se perf'1laram as primeiras imagens
da Amazo• ma.
. . , .
O ambiente de m1sten Holanda, 1992: 13).
o e fantasia que impregna

82 83
0 imaginário sobre a América é contraditório , como a socie­
dade que O produz, e cedo a imaginação eclesiástica medieval de "sociedade colonial", já que se trata de "agregados" -diz o
começará a outorgar-lhe um caráter menos privilegiado , um autor - "tão indefiníveis quanto incertos com respeito ao futuro".
Grupos em torno dos quais convivem o estupro, o concubinato
caráter de terra da promissão, um caráter demoníaco. Sob re 0
e O casamento, mundo da improvisação, da precariedade. Gru­
Brasil, em particular, tal como foi estudado pela historiadora
pos que durante este período perdem suas referências cultu rais,
Laura de Mello e Souza, é elaborada uma curiosa série de asso­ _
sociais, religiosas, em meio a uma sociedade que tem seus ciclos
ciações que estão presentes no provérbio português usado por
interrompidos, que se desestrutura e reestrutura de forma frag­
ela como epígrafe: "Debaixo da linha equatorial tudo é possível ."
mentaria, em diversos momentos do tempo, descontextualizada.
O MALIGNO, O DEMÔNIO, O INIMIGO Mais do que culturas, trata-se de "fragmentos" da Europa, da
A imaginação europeia sobre a América não tem apenas América e da África. Agrega o pesquisador francês:
uma visualidade plástica. A uma série de monstros e criaturas
próprias de uma zoologia fantástica se juntam também formas As relações entre vencedores, vencidos e colaboradores - todos
próprias de concepção, de uma estruturação, tanto da natu­ saídos de universos com trajetórias completamente distintas - e
reza - sobretudo a da zona tórrida - como das formas que o suas consequências são de uma complexidade sem precedentes. Sem
dinamismo social vai desenhando ao construir uma sociedade precedentes, porque as hibridações da Ibéria medieval são processos
diferente, múltipla, fractal. diferentes da mestiçagem da Conquista. Se a história da Península foi
O mundo americano é percebido como um universo de tur­ feita, durante muito tempo, de intercâmbios e conflitos, de mesclas e
bulências. Frente ao intento ordenador - modernizador - da coexistências entre três mundos, o cristão, o judeu e o muçulmano, os
contatos se estenderam no tempo - durante séculos os habitantes da
colonização, emerge por todos os lados e em todos os níveis, tanto
Espanha "se visitavam" - e se desenvolveram sobre uma base comum:
natural como social, um universo instável, imprevisível, com
o paganismo antigo e o monoteísmo (Gruzinski, 2001: 75).
todos os fantasmas incorporados ao espaço do desconhecido.
Trata-se de um mundo de misturas, de violentas justaposições.
É como se a própria comunicação estivesse distorcida no
O poder colonial que tenta se impor é subvertido pela ordem,
espaço da Conquista; os referentes, os sentidos, as significações
pela confusão. É um espaço caótico, acossado pela mud ça,
an diferiam, multiplicando o sentido de desorientação e desordem:
momento em que lutam para não desapare estru
cer turas herda­
das, enquanto as normas da Conquista
se impõem pela metade, [A convivência] é fundamentalmente "caótica", no sentido de que
cenário de "uma fratura das socieda
des locais e de uma meta­ todos os intercâmbios que ali se dão apresentam um aspecto fragmenta­
morfose acelerada do corpo soci
al", aponta Gruzinski (2001: do, irregular e intermitente: os interlocutores aparecem e desaparecem,
73). Esta instabilidade tem a
ver com a situação do mom ento: os acertos de um dia não valem para o dia seguinte. Todas as etapas
fome, guerras, epidemias.
O interessante do olhar deste autor, da comum· caçao,
- desde a recepçao, - est-ao constantemente perturbadas
entre outros, é colocar em
evidência e transmitir uma sociedade (Gruzinski, 2001: 87).
em movimento, grupos que
dificilmente poderiam ser chamado s

84 85
Desta noção de caos, que para o pensamento científico
do
século 20 se constitui como um modo de comp reensão da re a1. entravam nos corpos dos roedores, controlavam tempestades.

dade, no qual prima o princípio da incerteza, no século 16, Eram ubíquos e multiformes.
tem
uma conotação absolutamente negativa. E mais, quando lemos os
textos de Laura de Mello e Souza sobre o período, advertimos que Dizia Frei Vicente que o demônio perderia o controle sobre a Eu­
o caos neste continente é uma prova da existência do demôni o. ropa - cristianizada durante toda a Alta Idade Média - e se instalaria,
vitorioso, no outro lado da Terra, na América, mais especificamente
no Brasil, segundo a epígrafe. A infernalidade do demônio chegaria
� inclusive a colorir o nome da colônja; Brasil, para nosso religioso,
- .'-to!'-i 5-zs
. ..��- relembra as chamas infernais, vermelhas. Aqui ele foi vitorioso, pelo
menos na primeira das luras: o nome de Santa Cruz foi esquecido e a
designação apadrinhada por Satanás acabou prevalecendo. Ao cristia­
nizar, os portugueses rracavam de dissimular as hordas de seguidores
do diabo; finalmente, o inferno estava aqui (Mello e Souza, 1989: 67).

Quando nos aprorimamos do texto da carta de Lope de


Aguirre a Felipe II, referido anteriormente, observamos vários
elementos. Um deles é a caracterização do lugar, dada, inicial­
mente, por sua distância e isolamento: "Os que escrevem desta
terra, como esrão longe." Este estar longe implica não somente
di tância, mas também alreridade, um universo diferente.
Em seguida aparece uma descrição que tem a ver com a
falra de comunicação e a distorção dela decorrente: "que de­
vem re enganar os que escrevem desta terra". Com o abuso de
poder: "as crueldades que usam esses seus Ouvidores, Vice-rei
e governadores"; "prêmios e castigos injustos que nos dão seus
ministros, que por remediar seus filhos e criados, usurparam e
roubaram nossa fama , vida e honra"; "o serviço que estes seus
O demônio na linguagem
dos textos da época é o Inimigo, Ouvidores escrevem dizendo ter feito, porque é uma fábula
0 Mau, Satanas,,
o Príncipe das Trevas, entre muito grande, se chamam serviço ter gasto oitocentos mil pesos
que o nomeavam ou tenta as muitas vozes
. ,
vam evtta de sua real caixa para seus vícios e maldades". Com os conflitos
-lo. O certo é que no século
16 ' na Europa em tem
. Pos de Reforma, a presença de Satanás internos entre os grupos espanhóis e a sociedade onde exercem
recrudesceu. Havia _ .
demom .
os de todos os tipos: , , seus abusos: "Não podemos acreditar, excelente Rei e senhor,
terrestres, aquatic 1gneos, aereos,
, . os, subterrâneos, que seja tão cruel com tão bons vassalos como nestas partes
1 uci'fugos. Viviam em frascos,

86
87
existem, mas O que fazem seus maus Ouvidores e ministros sern
seu conhecimento"; "passam o tempo casando filhos e filhas"
.
Com O comportamento desonesto dos representantes da Igreja:
"A vida que por aqui levam é entender de mercadorias, procurar
e adquirir bens temporários, vender os sacramentos da Igre ja por
preço, inimigos dos pobres, não caritativos, ambiciosos, glutões e
soberbos, de maneira que por mínimo que seja um frei pretende
mandar e governar todas estas terras" (Aguirre, 192 7). Eis aqui
uma relação que estes tinham com os indígenas e o abuso, a que
fizemos referência anteriormente.

Figura 21 - O clero enfrentado e vencido pelo Mal


O 111/emo, autor anônimo. Museu de Arte Antoga, Lisboa.

Estado. Ou seja, estamos frente a um processo de deslegitimação


dos poderes que pretendem regular o novo sistema social. Esta
atitude não está longe dos desacacos aos membros da Igreja,
pela falta de respeito aos símbolos religiosos, à imagem de Jesus,
desacaco que faz parte, segundo Mello e ouza, de estereótipos
antigos que, através dos tempos, foram imputados a diferentes
categorias sociais marginai ou marginalizadas: os templários no
século 14, os judeus, os cáraros. A carna,·alização da Virgem, que
destacava de forma cética a características humanas, t:ra comum
na colônia portuguesa ( 1 lello e Souza, 1993: 100).
Assim, o que transmite Lope de Aguirre, com a expressão
delirante de seu modo de ver o mundo, é a imagem do caos. t
um cao que surge não apenas da natureza ou do próprio esta­
Figura 20 . Represenraç do da guerra, mas em meio à forma como está se consolidando
ão d0 Ma 1 vestido com roup
as da época a colonização, em que esta imagem prevalece sobre qualquer
O m(erno, autor an.on1m
o. (Detalhe). Museu de Arte
Antiga, Lisboa.
outra observação. O mundo caótico é a própria expressão do
Esta situação e- bªstª demônio. Afirma Mello e Souza: "Os missionários e cronistas
, . nte preocupante, na medid em que é
necessano a
recordar ue a Igre1a . na Amen dos primei ros tempos da colonização tinham a convicção de que
.. _
cular, a 1nqu1s1çao � , . ca Latin a e, em parti-
' sao essenci.a1s
.
na consolidação do poder do
enfrentariam no Novo Mundo um velho inimigo.'' Os jesuítas, ao

88
no Brasil, acre dita vam que ela e stava
se deparar com a natureza
do a insubordinação de um mun do
endemoninhada, "provan
desordenado e contradit ório, como
natural, muitas vezes caótico,
e Souza, 1993: 32-33).
0 próprio demônio" (Mello
olhar europeu. O Brasil,
Esta imagem não é desconhecida ao
o pela Igreja , que detém o po der
desde os inícios, é considerad
na cidade letrada, um âmbito demoníaco. Em relação a isso, a
historiadora brasileira incorpora como epígrafe um texto de
frei Vicente de Salvador, em sua História do Brasil, de 1627,
que afirma:

O dia em que o capitão principal Pedro Álvarez Cabral levantou a


cruz era 3 de maio, quando se comemora a invenção de Santa Cruz,
em que Cristo Nosso Redentor morreu por nós, e por esta causa pôs
o nome à terra que havia descoberto de Santa Cruz, nome pelo qual
foi conhecida muitos anos. No entanto, como o demônio perdeu, com Figura 22 - A Inquisição teve em Portugal um centro fundamental. Dali partiam as
"visitações" para América, com o objetivo de fazer imperar sua lei por meio do encar­
o sinal da cruz, todo o domínio sobre os homens, temendo também ceramento, tortura e morte dos julgados
perder o muito que detinha sobre os desta terra, trabalhou para que
esquecesse o primeiro nome e permanecesse o de Brasil, por causa de consideradas para a exploração, assim como aquelas que per­
um pau assim chamado de cor abrasado e vermelho com o qual tin­ tencem a uma zoologia fantástica. Um mundo endemoninhado,
gem tecidos, que aquele divino pau que deu tinta e virtude a rodos os inclinado à insensatez, já que suas formas de pensamento não
sacramentos da Igreja (citado por Melo e Souza, 1993: 31-32). respondem à lógica binária conhecida; pelo contrário, há uma
permanente t ransgressão delas. Dessa maneira foi construído o
A ideia da eficiência demoníaca, que funcionou para mudar o primeiro discurso, amplamente difundido na Europa por meio
nome de Santa Cruz pelo de Brasil, pela cor vermelha, associada das crônicas, relações e escritos de viagem. Esse discurso começou
ao mfernal, devido a' que desprend e a madeira, tem seu lugar e a fazer parte de uma literatura geográfica de caráter fantástico,
expressa_o na mult.1P11caçao
· - da mcerteza· . estímulo para a imaginação europeia, fosse ela social, comercial,
' da desordem' da inco-
municabilidade, do excess1vo · . . erótica ou de outra índole.
que def·miam o umverso nascente
como u m mundo caótico.
Assim foram se construm . do as primeiras imagens da Ama- O OLHAR DOS NATURALISTAS
• .
zonia: espaço paradisiaco
, e .m fema], caótico, povoado por cria-
. · .
turas estranhas' obi·eto pnv1 A expansão europeia - que partiu fundamentalmente da Pe­
1 eg1ado do demoníaco e portanto,
aptas para sua transf ' nínsula Ibérica, no momento em que, primeiramente Portugal e
ormaça- o em servos da Igreja Católic a.
Criaturas que ha6.itam logo depois Espanha, se lançaram na direção sul d o hemisfério
um espaço povoado de riquezas a sere m

90 91
_ estava tornando evidente não apenas o início de uma nova
encontrar uma nova rota para as Índias (um achado, ao final,
etapa da história da humanidade, mas também a conquista dos
realizado pelos portugueses), era encontrar ouro e propagar o
grandes descobrimentos científicos, com os avanços tecnológicos
catolicismo como fé universal.
e as transformações que acarretaram. Como sabemos, Portugal Dessa maneira, a ideia de Ocidente foi se consolidando, o
começa a navegar pelas costas da África e, dando a volta pelo que nas palavras de Stuart Hall, mais do que uma designação
Cabo da Boa Esperança, chegaria até Calcutá, na Índia (1430- geográfica, foi se transformando num conceito de poder frente ao
1498), através da grande empresa marítima de Vasco da Gama: Outro, aquele que não correspondia ao conceito homogeneizador
"E, si mais mundo houvera, lá chegara", escreve Luís de Camões de "europeu". Este Outro se instalaria no espaço estabelecido por
(1970: 231 ), em seu clássico poema épico Os lusíadas, que trata Roma para os que estavam do lado de f ora de suas muralhas:
da aventura lusitana liderada pelo português. Haviam iniciado "o bárbaro" (Hall, 1996).
sua navegação não apenas em busca de ouro, mas também im­ Os descobrimentos científicos que precederam e acompanha­
pulsionados pelas lendas de Prestes João, e terminaram fundando ram esta expansão - Galileu, Newton - davam as dimensões da
um império asiático. Prestes João era um personagem muito espessura que as relações teriam no nível, não apenas da abertura
difundido em Portugal e na Europa medieval, principalmente dos mercados e novos espaços do conhecimento, mas também
em meio à derrota da Segunda Cruzada frente aos muçulmanos. em relação a essa revolução fundamental, que se concretiza com
As primeiras notícias aparecem em 1145, quando o Papa recebe a Enciclopédia. Esta será a expressão gráfica da mudança das
notícias de um reino cristão, depois da Pérsia e Armênia, gover­ mentalidades, no nível cada vez mais amplo da sociedade, bem
nado por um rei-sacerdote descendente dos Reis Magos. Uma como de urna nova organização do sistema de conhecimento,
carta, ao parecer, apócrifa, fala de um reino de riquezas e beleza, no qual a teologia, central no Antigo Regime, passa a um lugar
onde existe a Eterna Juventude. Está assinada pelo Senhor das secundário, tendo o homem e a racionalidade no lugar central.
" Três Índias", parte da qual corresponderia à Etiópia de hoje. Essa mudança simbolizava a profunda transformação que era
De fato, Haile Selassie se considera seu herdeiro e, portanto, há possível observar nas sociedades europeias, desde a sociedade
ali uma vinculação com o mundo rastafári atual. do Antigo Regime até a sociedade moderna. A importância da
Este vínculo com a Ásia foi determinante para o Novo Mun­ racionalidade e o desenvolvimento acelerado do conhecimento
do, já que condicionava o pouco interesse demonstrado por iam se convertendo cada vez mais num poder, em torno do qual
Portugal em relação aos novos territórios desc competiam os governos europeus. O novo modo de pensar im­
obertos, assim
como a atitude dos portugueses sobr pulsionava o aparecimento de uma mudança na estrutura dessas
e o que seria o Brasil, uma
vez que nã0 era a pnm · · sociedades e, ao mesmo tempo, iria consolidando-a. No campo
e1ra vez que eles se encontravam frente a
culturas desconhecidas, o que . , político isso daria lugar à Revolução Francesa, por um lado, e
. demarcava outra atitud e frente a
"difere nça" cultural enco à Revolução Industrial, por outro, através de um longo período
ntrada.
No caso espanhol, as viage
. ns de Colo de tensões, que no campo do imaginário produziria também
, . mbo consolidam esta
outra orbit -
a da expansao ocid. territórios de controvérsia. Ele evidenciava a densidade de um
. . ental, entre 1492 e 1504. O ob-
Jet1v o, desta vez' com0 se . o ao trânsito, formado pela tensão entre os elementos persistentes
sabe, Junt propósito inicial de

92 93
feudal, a onipresença
• Reg1·me, a escuridão do mundo
d0 Anngo pelo método científico, era um ser que entendia e, consequentemente,
do poder absoluto, com elementos
de um � mud ança em que dirigia a natureza . (Hamilton, 1996: 28).
ia, par� dar lugar à
perdiam terreno a fé e o apoio à m�narqu
presença do indivíduo e da racionalidad e'. como eixos est rutu­
Não parecerá estranho, então, que nesta efervescência do
radores do conglomerado social. Era o caso do pensamento de conhecimento científico, a Académie de Sciences de Paris, que
alguns filósofos, como Voltaire ou Diderot. Tratava-se de u ma procurava resolver uma grande polêmica que se dava em seu
centralidade francesa, que a partir da preeminência de sua lín­ interior em torno da forma da Terra, aparecesse como centro
gua como a própria língua do discurso das ideias e da cultura, propulsor de uma missão científica para a América. Por uma
havia realizado a publicação da Enciclopédia. Era u m trabalho parte havia Cassini, astrônomo real e cartógrafo oficial, que
intelectual e também político, uma vez que havia sido publicada considerava a Terra como um asteroide alongado no sentido dos
em tiragens enormes e levada a diferentes regiões da Europa. polos. Por outra parte, aparece Newton, saudado por Voltaire,
O pensamento ilustrado teve seus monarcas, como Catarina homem de grande influência nos círculos de poder, como um
da Rússia, seus pensadores, como Montesquieu, Diderot, Hume, homem superior, que considerava que o planeta se alargava no
Smith, Ferguson, Rousseau, Condorcet, entre outros, que disse­ Equador. Concretamente, era necessário conhecer a longitude de
minaram no meio seus escritos de ideias e ficções. Havia uma um grau. Desta discussão dependiam muitos outros problemas,
audiência ávida para escutar - nos salões, por exemplo, regidos assim como também soluções para a navegação.
por mulheres emancipadas no uso da razão, que posteriormente
se viram desprestigiadas por sua dissipação-, ler ou presenciar
o espetáculo das novas ideias, imbuídas na filosofia ou nas ci­
ências físicas.
Dessa maneira, nasceram as sociedades científicas e huma­
nísticas, dedicadas ao estudo das artes e das ciências, como a
Académie Française (1635) e a The Royal Society of London
(1645). Eram instituições que se instalaram baseadas no princípio
da centralidade do conhecimento como processo de crescimento a
partir da experiência, opondo-se à autoridade secular, ao dogma
religioso e ao misticismo.
A ., .
cienc ia era a forma suprema do conhecim
· · ento para os filóso-
fos ' porque parecia criar verdades seguras, baseadas na obs ervação
e no experimento· Sua conf. , o c1. , .
1 ança no metod ent1f 1 co era tanto, qu e
acreditavam ser a propn , · a força . Figura 23 - A entrada na modernidade significou uma luta entre as potências
. 1,p10,
. _ do iluminismo e do progre sso; em pelo poder em torno do conhecimento. À esquerda, o francês Charles-Marie de
prmc nao havia nenhum am , b1to .
º da vida la Condamine. À direita, o norte-americano Richard Spruce
ap ricar. Eles pensavam ao qual não pudesse se
que este hornem novo, que
estava sendo criad0

94 95
A Académie de Sciences resolveu enviar uma expedição cien­
tífica de caráter europeia. No contexto da época, evidentemente é a mobilidade dos instrumentos, que são transportados a mão
que O interesse era maior que o problema a resolve r. Fariam pane e no lombo de mula.
dela Pierre Bouguer, astrônomo, Louis Godin, matemático,Joseph A expedição passa por grandes dificuldades, pois é alvo de
de Jussieu, botânico, entre outros; a expedição seria presidida por permanente suspeita. A relação com o meio, apesar da primeira
acolhida positiva, que vê com curiosidade aquelas pessoas, mas
Charles-Marie de la Condamine, jovem soldado e matem ático
não entende exatamente o sentido da viagem, nem sempre é boa.
que estava se orientando na direção da geodésia. Aos 29 ano;
O médico do grupo é assassinado em um incidente banal, além
havia sido eleito membro da Académie de Sciences e foi incorpo­
dos problemas com o clima, as enfermidades e os mosquitos,
rado à expedição graças às instâncias de Voltaire. Segur ame nte danos de instrumentos etc. Finalmente, o grupo se desintegra e
foi graças a sua situação econômica e social que figurou entr: cada um segue seu próprio caminho.
os privilegiados; filho do Régisseur Géneral des Finances, esteve Quando voltam à Europa, no caso de La Condamine, depois
rodeado em sua juventude por personagens influentes da época: de dez anos, com as medições feitas, os problemas colocados
militares, homens de letras e homens de ciências. Seu olhar sobre pelo campo científico já eram outros.
o Novo Mundo não podia ser outro que de uma pessoa que fala O caso do cientista Godin, que regressou em 1773 e conse­
a partir de um espaço onde se conhece o poder. guiu se reencontrar com sua esposa, depois de passar dezoito
Como assinala Mary Louise Pratt, dois elementos jogam anos em Caiena, Guiana Francesa, é bastante peculiar e dá uma
aqui um papel importante: o primeiro, a publicação em 1735 do dimensão melodramática à vida deste expedicionário. Existe um
Sistema naturae, de Lineu, que significa um salto no desenvol­ documento, uma longa carta (Godin des Odonais, 1941), na qual
vimento do conhecimento científico. Ele propõe um sistema de ele narra a peripécia de sua mulher que, sem ter notícias suas,
classificação de todas as formas vegetais do planeta, conhecidas decide entrar na selva para procurá-lo. A expedição começa a
ou desconhecidas para os europeus. Com isso, ele dava um for­ enfrentar a falta de víveres, enfermidades, mosquitos, perigos
mato orgânico ao que antes era apenas um caso, situando, dessa infindáveis e seus integrantes vão morrendo pouco a pouco.
maneira, gênero e espécie, numa proposta que se podia estender Finalmente, Mme. Godin, apenas sobrevivendo e em estado de
aos reinos animal e mineral. O segundo elemento tem a ver com demência, é encontrada por indígenas e levada para se juntar ao
ª consciência que a Europa começa a adquirir com respeito ao marido, em Caiena. Esta carta com sua história, escrita não por
conhecimento e à organização, a partir dessa expedição científica, ela, mas pelo marido, é uma espécie de folhetim da época, na
que procurava determinar a forma exat qual se juntam vários elementos de interesse para os leitores do
a da Terra (Pratt ' 1997). Velho Mundo. É um texto interessante que poderia receber hoje
Há nela umª clara nva · 1 I·dade pela hegemonia, entre França e
Inglaterra. outras leituras, a partir das ferramentas de análise do feminismo.
A expedição em que v1a1a · · · La Condamine escreve a relação de uma parte da sua via­

. La Condamme parte dia 16 de gem, somente a que se refere ao rio Amazonas, porque dado
mato de 1735 rum0 ao E
. ',
, . os h1sp quador, conseguindo ser aceita nos os conflitos surgidos no seio do grupo, parte do relatório de
domm1 anicos, zeIosos de suas instalaç
exp1oraçoes _ ões militares e viagem já havia sido entregue à Académie des Sciences de Paris.
mineiras · Chega, mic1alm
. .
. ente e com grandes d•f' 1 1- Sua relação é breve, porque é dirigida a um grande público; os
culda des, ao Panamá ·
. M as as . .
maiores d1fteuldad
. es aparece rao detalhes das notas de Geografia, Física ou Astronomia estão fora
na traves sia por mar.' terra e n.os,
até Quito. O gran de pro blema desta relação e foram incluídos no relatório principal dirigido

96 97
à Academia. O seu relato se situa, segundo o desejo expresso "Um romance, em que a sede de ouro talvez seja o único que
em seu prefácio, entre a narração da viagem comu m e a info consiga lhe emprestar uma aparência de verossimilhança" (La

mação científica: "Procurei escolher um ponto médio entre os Condamine, 1941: 81). No caso das amazonas, acredita que
dois extremos." Também i�corpora a elaboração de um map como tantas pessoas de lugares tão diferentes falaram delas, é
a,
considerado de grande valia. muito difícil que todos tenham se equivocado: "Se alguma vez
O texto de La Condamine expressa um modelo de discurso hou ve amazonas no mundo teve que ser na América, onde a
europeu, francês neste caso, da modernidade emergente, através vida errante das mulheres, que frequentemente acompanham
de um gênero que apresenta cada dia mais interesse na Europa seus maridos nas guerras e não são muito felizes em sua vida
que é o da literatura de sobrevivência, com suas histórias d; doméstica, poderia fazer nascer nelas esta ideia" (La Conda­
navegação, de perigos enfrentados, de maravilhas e curiosidades mine, 1941: 72). Ou seja, retira da imagem das amazonas o
vistas (Pratt, 1997). halo fantasioso e a torna uma imagem de liberação feminina. É
Seu relato detalha as aventuras da navegação, começando uma curiosa maneira de inserir a fantasia numa forma racional.
pela passagem do famoso Pongo de Manseriche, com seus tor­ A perspectiva é moderna, pois há uma procura pela expli­
velinhos de água, sua velocidade e seus acidentes geográficos cação. O mito existe, porém observamos a que corresponde;
imponentes. La Condamine dramatiza seu relato e a descrição assim, o viajante cientista analisa o lugar de onde é possível
adquire o tom de uma narrativa mais literária. Observa os que esta imagem surja ( "tem que ser na América") e a partir
indígenas e descreve os diferentes matizes de peles, de acordo de qual situação concreta ("a vida errante das mulheres, que
c� m a variação observada desde os Andes até os planaltos, as frequentemente acompanham seus maridos"). Mas as contra­
diferenças de alimentos, os costumes, as relações comerciais. dições de uma época de transição, em que o aparecimento da
Dentro da variedade, descobre um elemento, no entanto, em racionalidade desloca outras dimensões de restos pré-racionais,
comum. O narrador informa e constrói um discurso em que se se tornam evidentes. Neste caso, é curiosa a possibilidade que
deixa aberta ao cientista; mesmo quando não sobrem vestígios,
�roduz uma distância entre o eu narrador e o espaço único do
informante. Como afirma Ottmar Ette, leva a estilização do eu isso não é suficiente para afirmar que não existiram as socie­
ª ponto de se converter na única personalidade investigadora, dades das amazonas.
dando lugar, assim, a um personagem literário que atravessa o Suas observações da realidade abarcam uma vasta gama de
_ perspectivas. Entre outras, a linguística:
no Amazonas, onde procura personagens míticos a cuja grandeza
ele procura se juntar.
A imagem que vai dando de sua viagem está dom da pelo Todas as línguas da América Meridional, das que tenho alguma
ina
pensamento científico• Entretanto, noção, são muito pobres; muitas são rudes e suscetíveis de elegância,
essa compre ensão da moderm-
dade e, atravessada pela hes1taçao
· - frente a elementos fantasi osos,
singularmente a antiga língua do Peru; porém, a todas elas faltam
que procura também explic ar vocábulos para expressar as ideias abstratas e universais, prova evi­
racionalmente. dente do pouco progresso realizado pelo espírito desses povos (La
Apesar de não provar ª "con1ectu . r a,, a respeito de Eldo ra- Condamine, 1941: 40-41).
do, no Iago Parima e na , · .
. mmca cidade de Manoa ' através do
tra1eto que realiza a suª
procura, quando fala das amazon as
sua rmguagem e, menos Seu olhar do ponto de vista linguístico não é senão a confir­
drama, tica.
·
Para o prim eiro, bu sca
um lugar raci.ona 1 e mação das observações sobre o indígena. Seria possível pensar
escreve a f'trman do seu caráter ficcional:

98 99
que seu embrutecimento é resultante das condições de servil
Uma tarefa própria de sua época, pois Lineu, ao desenvolver sua
dependência em que vivem, mas não é assim:
proposta classificatória, não tinha feito mais do que estabelecer
uma relação comparativa. "Dificilmente se poderia pedir" _
Os índios das Missões e os selvagens que desfrutam de liber dade são aponta Mary Louise Pratt - "uma tentativa mais explícita de
pelo menos, tão pobres de criatividade, para não dizer estúpidos, como 'naturalizar' o mito da superioridade europeia" (1997: 67).
os outros; ao vê-lo dá vergonha de perceber que o homem, abandonado O discurso racionalista, que organiza o pensamento moderno
à simples Natureza, privado de educação e de sociedade difere pouco dos viajantes cientistas na Amazônia, está dominado por esta
da fera (La Condamine, 1941: 40-41). concepção naturalista, que também dava passo às ideias de
De Paw e Buffon. É o mito clássico do eurocentrismo, da sua
O pensamento europeu do momento se expressa em toda superioridade, seguida do desconhecimento do Outro. Como
sua contradição pelo sentimento de pena em relação à visão afirma Edward Said: "As raças submetidas simplesmente não
do Outro. A tese da relatividade cultural desmorona frente aos tinham o que era necessário para saber o que era bom para
valores da Razão. elas" (1993: 53).
Com estas passagens, o homem da modernidade europeia, Dessa maneira, os discursos sobre a Amazônia, que ob­
no momento em que a Europa está se erigindo como emblema servamos, condicionam uma imagem dela: primeiramente, a
da modernidade frente às demais sociedades, deixa claro suas imagem fantasiosa, a imagem demoníaca e, agora, a identidade
limitações. Porém, o que chamamos de limitações deste pensa­ que a define apenas como um imenso tesouro a ser explorado,
mento têm uma função que é, ao mesmo tempo, desenvolvida porque seus habitantes não são capazes de fazê-lo. Neste olhar
por La Condamine detalhadamente em sua relação. É o inventá­ europeu sobre a região há necessariamente um imaginário meio
rio d�s �rodutos, das tecnologias e das manufaturas dos povos ambiental. Este imaginário consiste numa perspectiva que, num
amazomcos que observa. Dali sai, para a Europa, nem mais primeiro momento, é de assombro e sensibilização frente à gran­
nem menos que o conhecimento da existência do caucho e suas deza, como no caso da descrição do Pongo de Manseriche por
virtudes, um detalhe que marcará a história dos séculos 19 e 20 La Condamine, superado, posteriormente, pelo sentido utilitário;
depois, o olhar atravessa a natureza, evitando a estética para ob­
�mazônicos, como• observar
·
emos mais adiante. Desse modo, a
jetivar a própria natureza. O discurso do viajante cientista - que
informação econom1ca e comercia · 1 se torna consequência da
. . junta o positivismo com a perspectiva experimental, esta última
P esqmsa científica. A conclusão é que se trata de terras aptas e
_ obsessivamente instauradora de uma ordem do conhecimento,
ricas e� P:odutos, que podem ser exploradas pela Europa; os
naturais nao são aptos para tanto. o que havia sido descrito por Lineu - projeta na região o olhar
La Condamine fala a partir · , dicotômico da modernidade: por um lado, percebe a grandeza,
• · d e um umverso que e centra1 e e, por outro, observa, classifica, anota, difunde, informa às aca­
nao consegue se situar, frente as .
, amazo• . , dema1s sociedades e, neste caso, demia s de ciências da metrópole.
as mcas' como um Observador que procura compreender
aqui.1o que está obse rvand . O viajante se constitui como um sujeito privilegiado da mo­
- se • cntic
o. Ele nao ve . amente ' po is dernidade. Aparece nela como a expressão da ansiedade frente
o bserva os demais a partir . de uma centralidade irredutív el. Sua
observaçao • • ao conhecimento. Conhecimento que, no caso de escritores
nao gera um conhec1men . to novo, já que ele observa
apenas para constatar' D como Raynal, necessitava apenas ser livresco, e que, sobretudo
. _ e fme d e .
imedia . to seu paradigma de
superioridade.. ª supenon para Alexander von Humboldt, o grande viajante do período,
dªde da civilização, da raci onalidade.

100 101
é sinônimo de cosmopolitismo, de relação direta com o objeto
sendo essa a razão de construir seu volumoso texto com base na
de seu interesse.
informação intertextual de natureza diversa. Em seu belo artigo,
Em seu exame do viajante como sujeito, uma estud iosa p er­
Ette observa com detalhes como na iconografia construída na
gunta, '.'como o viajante vê a si próprio?" Então responde: épo ca sobre Raynal e Humboldt, iconografia buscada por eles
mesmos, é construída uma verdadeira "ficção de autor". Por um
Cabe destacar que, salvo quando sua missão os designe explici­ lado, a mesa de trabalho do primeiro, uma escrivaninha com
tamente como agentes ( ...) os viajantes não se veem como enviados uma imagem da Enciclopédia atrás, e, por outro, a de Humboldt,
a serviço de urna empresa, com objetivos concretos, que se traduzem enquadrado na natureza da zona tórrida ou da Cordilheira dos
em dominação e acúmulo de riquezas. Pelo contrário, consideram que Andes, com o barômetro na mão, expõem iconograficamente a
são seres dotados de uma elevada missão, imaginam que são homens postura de ambos frente a esta tensão. As duas são montagens;
diferentes da maioria, quase como se fossem eleitos. Eles dão à sua ali se constitui o discurso, aponta o estudioso alemão.
viagem uma missão que ultrapassa amplamente o sentido utilitário
para entrar quase nos domínios da metafísica. É o espírito do progresso A escrita do filósofo não se legitima absolutamente pela experiên­
que se encarna neles para o bem da humanidade (Pierini, 1994: 165). cia e pelo conhecimento direto deste objeto. A legitimação do filósofo
obedece, antes de qualquer coisa, a um duplo movimento. Por um lado,
seu saber se funda sobre seus trabalhos com outros textos, sua "crítica
Acontece que no século 18 é muito importante o sentido
das fontes"( ...) A Histoire de deux Indes do abade Raynal se fundava,
da viagem. Como afirma Rousseau, viajar por viajar "é ser um
portanto, em um trabalho intertextual em vários níveis, em vários
vagabundo". Então, é necessário que a viagem sirva para algo.
graus: uma sucessão de intervenções intertextuais. (... ) Por outro lado,
O naturalista encontra esta utilidade em um objeto altruísta:
a legitimidade de seu discurso repousa sobre seus fins universalistas
o conhecimento. Por outro lado, a utilidade que seus governos (... ) Assistimos à universalização do discurso europeu que, investido
encontram na viagem se inscreve mais precisamente na confor­ de um poder supra-humano, o da História, acredita poder responder
mação de um sistema de poder, de uma "geopolítica do conhe­ às necessidades da húrnanidade inteira (Ene, 2000: 46).
cimento", na expressão de Walter Mignolo (2003). A relação de
cada viajante com esta perspectiva apresenta variações. Alexander von Humboldt e seu irmão Wilhelrn pertenciam
A polêmica entre os filósofos, que assumem a postura de do­ a uma família alemã de tradição aristocrática. Segundo suas
nos do saber, frente aos viajantes, que denotam a pura experiência próprias palavras, ele foi beneficiado com o ensinamento dos
sem reflexão, atravessa este período na discussão sobre as fontes professores mais importantes de Berlim:
de informação. De acordo com Diderot, "o homem contemporâ­
neo é sedentário, ao passo que o viajante ignor te ou menti­
é an .Não houve sacrifício que meu pai e especialmente minha mãe (já que
roso. Quem recebeu o gênio como sorte, o primeiro morreu quando eu tinha nove anos) não fizessem para nos
desdenha os minuciosos
detalhes da experiência, ao passo que a,
o produtor de expe riências educar com os homens mais célebres em línguas antigas, matemátic
carece quase sempre de gênio" (cita 1 , educação doméstica -
· f's•·ca
d.enc1a, sem
do por Ette, 2000: 165). Seu h1stona, . .
. , . desenho, 1unspru
conte porâneo Raynal, com , · - no campo, o invc-rno na cidade, sempre
� quem colabora para sua famosa frequentar coleg1os - o verao
Hzs tozre de deux Indes [His como um grande retiro (Humboldt, 1980: 259)-
_ tória das duas Índias], pub lica da em
Haia, em 1774 ' cons,·dera t
ambem' que o sa ber deve ser 1·1vresco,
103
102
Humboldt realiza seus estudos nas universidades de Frankfurt
Embarcado no navio E/ Pizarro, o viajante chega à cidade de
e Gõttingen. Empreende urna viagem sob a direção de Georges Cumaná, na Venezuela, e escreve a seu irmão sobre seu projeto
Forster, naturalista que havia acompanhado o capitão Cook p ela para a estadia, bem como suas primeiras impressões:
Holanda, Inglaterra e França, estudando mineralogia e história
natural. Cook também esteve na Alemanha e Polônia. Humboldt Fic aremos alguns mese s em Carac as, de entrada estamos aqui no
tem seus trabalhos precocemente conhecidos no meio científico mais divino e ri co pa ís. Plantas maravilhosas: gymnotos, tigres, ta tus,
europeu. Depois de várias viagens e tentativas frustradas de ma cacos, papagaios; uma grande quanti dade de indígenas semi sselva­
outras expedições, consegue na Península Ibérica, juntamente gens, raça humana mu ito bonita e interessant e (... ) e que cores possuem
com seu companheiro Bonpland, também naturalista , uma au­ os pássaros, os peixes, até os caranguejos (azul anil e amarelo). Até
torização da monarquia espanhola para uma viagem à América agora temos passeado muito; nos três primeiros dias não conseguimos
'
com total apoio real. O projeto preenche as expectativas de uma resolver nada, porque deixávamos um ass unto par a nos interessar por
procura obsessiva: "Inquieto, agitado, sem poder desfrutar nunca outro. Bonpland afirma que se as maravilhas não deixare m de aparecer
das coisas realizadas, só me sinto feliz empreendendo coisas novas logo ele perderá a c ab eça. Mas o que é mais impressionante mesmo de
e fazendo três coisas ao mesmo tempo" (Humboldt, 1980: 263). todas estas maravilhas, vistas particularmente, é a impressão produzida
pelo conjunto da natureza vegetal poderosa, exuberante, e, ao mesmo
tempo, tão suave, tão acessível, tão serena . Sinto que se ria muito feliz
aqui e que estas i mpressões me farão feli z frequentemente em outras
oportunidades futuras (Humbol dt, 1980, p. 14-15; Carta a Wilhelm
von Humboldt, Cumaná, 16 de julho de 1799).

Humboldt vive a orgia da natureza dos trópicos, revelando


aos olhos europeus a evidência de sua alteridade e abrindo frente
a ela um olhar de percepção que, hoje, chamaríamos meio am­
biental, que o faz dar um passo além no encontro com o mundo
natural. 2 Tal é a sua proposta, por exemplo, de uma "geografia
das plantas":

Ela - a geogra fia das plantas - as observa, segundo a proporção


de sua distribuição nos diferentes climas. Quase ilimitada, tal como o
objeto que investiga , desc obre perante nossos olhos o infinito manto
vegetal, o qual , tecido mais denso ou aberto, colocou a na tureza, fonte
Figura 24 - O alemão Ale de toda a vida, sobre o planeta despido. Ela acompanha a vegetação
xander von Humb oldt
século 19 ' e suas exausti foi ntes do
vas ob servações conform um dos viajantes mais proemine desde as a lturas em que O ar se torna raro, onde estão os glaciares per­
am uma obra fundamental
pétuos, até as profundida des do mar ou no interior das ca vernas, onde

104
gamos, que ainda permane cem
habitam em covas subterrâneas os criptó
entam.
_ descoohec1ºdas como os vermes que elas alim
tao
ada, como as bor-
A borda superior deste manto vegetal está localiz
das da neve eterna, mais alta ou mais baixa, de acordo com a latitude
do lugar ou da inclinação dos raios solares. Porém, o limite interior da
vegetação não é totalmente desconhecido, já que observações exatas
sobre as plantas subterrâneas, em ambos os hemisférios, ensinam que 0
interior da terra tem vida em todas as partes, onde os germes org ânicos
encontraram espaço para seu desenvolvimento, além de um líquido
com oxigênio para sua alimentação. Aqueles penhascos pendentes e
congelados, que se levantam por cima das camadas de n uvens, estão
cobertos de musgos e líquens. Parecidos a eles são as criptogramas,
que abrem algumas vezes multicoloridas, outras vezes imaculadamente
brancas, sua textura branda e fibrosa sobre as paredes das estalactites
nas cavernas subterrâneas, ou sobre a madeira úmida dos soca vões nas
minas. Dessa maneira, ao que parece, são próximos os limites periféricos
da vegetação, produzindo formas cujas estruturas simples são ainda
pouco estudadas pelos fisiologistas (Humboldt; Bonpland, 1985).

Humboldt inaugura uma nova maneira de situar a natureza,


um modo de entendê-la em sua projeção emotiva. Há nele uma
espécie de devoção pelos lugares do mundo natural observados,
um olhar que concentra sua atenção nos ciclos ambientais. O não
humano toma vida, ele conecta, sensibiliza seu leitor com o objeto
de seu olhar, estabelecendo a relação do veget
al com o mundo
mineral e animal, a geografia das plantas,
os estratos minerais
que conformam o solo, a economia
animal. É uma prova de que
ciência e estética se junt am em
sua lente, projetando na palavra
uma dimensão emotiva e
sensorial. Também há nele um olhar
transdisciplinar, que potenc
ializa a compreensão do mu ndo e sua
estética ' levando-o a uma Figura 25 - Alexander Rodrigues Ferreira documen_t_?U
dº1mensao- global do cosmos, como e o amplamente a fauna, a flora e os habitantes da rcg1ao,
nome da g randiosa obra em sua incursão pelo Amazonas. Acima: tuc� no negro;
ainda inacabada.
órbitas e pés azuis bico e rabo amarelos, peito bra�co
com uma mancha' amarela. Abaixo: peixe conhecido
como pirarara entre os habitantes do Pará
der Rodri-
Documentos do Museu Bocage de Lisboa, em Alexao
. . 2002.
gues Ferreira, Viagem ao Bras1·1. Kapa Editorial •
106
107
Ele escreve uma infinidade de cartas e faz com que cheguern
seu destino através de uma série de vias, porque teme constante� frequên cia das chuvas. Escreverá, entre seus objetivos, ao chegar
mente sua perda, segundo afirma. É sua preocupação, jumarnente à Venez uela:
com a segurança das coleções e dos instrumentos. Desenvolve
como assinala Ottmar Ette (2001), uma "escrita nômade", corn� Meu objetivo é mais juntar ideias do que coisas. Um grupo de
sua própria vida, escrita permanentemente em movimento nat uralistas, enviado por um governo, acompanhado de pintores,
sem pausa, considerada por ele imperfeita por sua necessidad: taxidermistas, col�cionadores (... ) pode e deve abarcar todos os de­
talhes da história natural descritiva. Um particular que, com uma
incessante de levar adiante a dinâmica de seus interesses, suas
fortuna medíocre, empreende uma viagem ao redor do mundo, deve
observações e reflexões. se limitar a objetos de maior interesse. Estudar a formação da Terra e
Dessa maneira, eles percorrem os lhanos, a savana e acabam das camadas que a compõem, analisar a atmosfera, medir com os mais
embarcando na navegação desde o Apurímac até o Orinoco
' delicados instrumentos sua elasticidade, sua temperatura, sua umidade,
para subi-lo e encontrar o ponto de encontro com o rio Negro, sua carga elétrica e magnética, observar a influência do clima sobre a
o canal que une o Orinoco com o Amazonas, conhecido desde economia animal e vegetal, relacionar em alto nível a química com a
sempre pelos indígenas. Humboldt se propõe a situar o local com fisiologia dos seres organizados, este é o trabalho que me propus fazer
a precisão de seus instrumentos. Para isso, navegam em canoas (Humboldt, 1980: 53; Carta a Fourcroy, Cumaná, 24 vindemiário, ano
até as fronteiras do Grão Pará e Brasil, depois sobem o rio du­ IX da República).
rante doze dias até Casiquire, que é a conexão entre ambas as
correntes. Passaram através de uma das regiões geológicas mais Em outra carta, afirma:
antigas da Terra, sobrevivente de eras milenares. Em suas obser­
vações, desmistifica a lenda de Eldorado, no próprio local onde Você sabe que meu objetivo principal é a física do mundo, a com­
Raleigh situava a lagoa de Manoa, Parima ou mesmo Eldorado posição do globo, a análise do ar, a fisiologia dos animais e das plantas,
(Humboldt, 1991: 568). Encontra no local apenas uma pequena ou seja, as relações gerais que vinculam os seres organizados com a
lagoa com pouca água e algumas ilhotas, que "não merecem a natureza inanimada; estes estudos demandam uma série de objetivos ao
morte de tantos infelizes, sacrificados pela cobiça e pela cruel­ mesmo tempo (Humboldt, 1980: 35; Carta a Jerôme Lalande, Caracas,
dade" (Humboldt, 1980: 69; Carta a D. Guevara Vasconcelos, 25 frimário, ano VIII da República).
23 de dezembro de 1800). Sua crítica a Rale
igh ocorre a partir
do rigor cientT1 tco; o vi_aian
· · te ang1o-saxão encontra o que previu Em Humboldt se percebe o que poderíamos chamar atual­
encontrar. mente de pulsão meio ambiental, a procura de um equilíbrio
Ele não consegue entrar na Amazô
nia brasileira ' mas a con- entre o que ele chama de "as forças concorrentes'. a har�onia
torna. Portugal exerce seus dº1retto .
· s frente ao inter esse dos estran- da influência do universo inanimado sobre o remo animal e
. os e o alem
geir ão tem problemas com os agentes de fronte ira. vegetal" (Humboldt, 1980; Carta a De Moll, 5 de junho de
Em suas travessias, reveJa uma
grande ansiedade por descrever 1799). Fascinado pela percepção dest e possível diálogo, é to-
tudo o que vê' desde a dº1stan • · num mundo em que
. entre
• c1a as estrelas até o cultivo de mado pelo pensamento da permanenc1a
" o trabalho
cace, • 1a· da natureza·, grande ' potente e
com o cacau, a vari. edade
dos peixes, das a ves, a tu do proclama a magm·f·1cenc

108 109
terno, ao mesmo tempo, escreve. Da tribuna da superioridade
Em 1849, chega à Amazônia o matemático e botânico Richard
da região de onde provém, Humboldt é capaz de conviver com
Spruce, norte-americano, no rasto de Darwin, como haviam feito
a barbárie, onde encontra traços contraditórios, como também
os naturalistas Henry Walter Bates e Alfred Russel Wallace. Os
nesse grau intermediário, que é a "simplicidade dos costumes ingleses se interessavam cada vez mais pelos territórios amazô­
espanhóis", em que é possível encontrar elementos de huma­ nicos; o conhecimento havia se tornado, com a modernidade,
nidade entre os que se consideram cultivados, afirma. Porém é
uma forma _de poder, e as potências colocavam em funciona­
um homem da modernidade e a necessidade de não permanecer mento suas estratégias para conquistar um lugar proeminente
alheio ao progresso da civilização e da ciência, à troca de ideias, na "geopolítica do conhecimento". Os viajantes, naturalistas e
é definitivamente mais forte. Sua perspectiva do indígena é o de cientistas, em geral, foram muitos e de diferentes nacionalidades,
um estágio inferior no desenvolvimento do progresso humano. entre os séculos 18 e 19: o inglês Charles Waterton (1782-1865),
Ao se referir às etnias que habitam o delta do Orinoco e as bocas 0 austríaco Johann Natterer (1787-1843), os alemães Carl von
do Amazonas, escreve: "É curioso ver como, no mais baixo grau Martius (1794-1868) e Johann Baptist von Spix (1781-1826),
da civilização humana, a existência de toda uma população de­ o inglês John Burchell (1781-1863), o oficial da marinha ingle­
pende de uma ú�ica espécie de palmeira, semelhante aos insetos sa Henry Lister Maw e os tenentes William Smyth e Frederick
que só se alimentam de uma única flor, de uma mesma parte do Lowe, o norte-americano Daniel Parish, missionário metodista
vegetal" (Humboldt, 1991: 502). (1815-1891), Robert e Moritz Richard Schomburg entre outros,
Humboldt traz à zona tórrida, às regiões equinociais do novo e, posteriormente, os ingleses Alfred Russel Wallace (1823-1913)
continente, um olhar racional e científico que deixa, por outro e Henry Walter Bates (1825-1892).
lado, um lugar para a emotividade e o sentimento, apesar de O caso de Wallace é impressionante, porque ele perdeu suas
insistir na primazia da razão. Toda produção de conhecimentos coleções e anotações com o naufrágio do barco que o levava de
implica, de qualquer modo, formas de transferência de poder volta a Londres. Digno de menção é também o naturalista bra­
para Europa e, no caso do alemão, o aporte não é menor. No sileiro Alexander Rodrigues Ferreira, com seu notável trabalho
entanto, esta abertura é suficiente para transmitir uma pro­ Viagem philosóphica pelas Capitanias do Grão-Pará, rio Negro,
funda relação entre a vida animada e o universo inanimado, Mato Grosso e Cuyabá, de 1783 a 1792, no qual revelou um
o que torna seu discurso um espaço para novos olhares sobre numeroso conjunto de textos e ilustrações.
as formas de relação do homem com o mundo, que, sendo Vários viajantes norte-americanos, ou procedentes de lá, como
as mesmas de um universo novo, ampliam nessa dimensão o o professor de Harvard, o suíço Jean Louis Rodolphe Agassiz
campo da percepção sobre a Amazônia e cont (1807-1873), entre cientistas ou amateurs de outras naciona­
o inente em geral.
Desenvolve, assim, uma nova maneira lidades, começaram a viajar à Amazônia com o discurso que
de situar a natureza, de não os deixavam longe do padrão positivista e discriminador.
entendê-la a parti'r de · - .
uma pro1eçao emotiva, agora com um
valor de grandeza em si· mesma . ,
. eomisso, e capaz de transm1t1· ·r Foi o caso do geógrafo francês Henry Coudreau (1859-1899),
que via a necessidade de incorporar os europeus civilizados ao
uma sens1b . ..
1ltzação a respeito
· dela, bem como de sua relaçao
com o umv . . lug ar, depois de examinar os indígenas (Souza, 1994: 77-78).
erso mineral e amm aI. Trata-se de um novo lugar Vozes alternativas, como a do poeta brasileiro Gonçalves Dias
da natureza no pensamen
to sobre a Amazônia. (1823-1864), do canadense Charles Frederick Hartt (1840-1878),

110 111
do carioca João Barbosa Rodríguez ( 1824-1894 }, do italiano CAPÍTULO 111
Ermano Scradelli (1852-1926) ou do alemão Theodor Koch­
-Grünberg (1872-1924), cujos trabalhos dariam lugar mais tarde
à obra central da literatura brasileira, Macunaíma, de Mário de
Andrade, foram importantes, mas não se destacaram a res peito
da ordem do discurso.
VOZES DO SERINGAL
Nas palavras de Márcio de Souza, escritor e historia dor da Discursos, lógicas, desvios amazônicos
região:

Com a onda de cientistas viajantes começa a se produzir O insis­


tente mito de que a Amazônia é um vazio demográfico, uma natureza
hostil para os homens civilizados, habitada por nativos extremamente
primitivos, sem vida política ou cultural. E da Amazônia como terra
sem história (Souza, 1994: 76).

: igu: a 26 · Postal que ilustra a intensa atividade numa rua da cidade de Belém-PA, no começo
0 sectilo 20

112
1 de discurso será abordado aqui, o da expio
· t"po
Um terceiro
ração da borracha. É um discurso complexo, e� que os im agi- determinado de árvores de caucho, entre oitenta e cento e cin-
, •
nanos naufragam e os preconceitos da modernidade se tornam quenta. Estas estradas têm uma forma circular, como pétalas
porosos, são tensionados e às vezes explodem. É o discurso em torno de um centro, que é o lugar onde mora o seringueiro e
dos que revelam O horror presente num dos pilares do salto tem sua choça ou barraco. No meio do seringai fica o depósito,
onde deverá entregar, em prazos rigorosos, uma determinada
tecnológico, de final do século 19 e começo do 20: a extração
quantidade de "bolachas" ao capataz. Este vai creditando o
da borracha, caucho ou látex, que será utilizada nos tecidos e
caucho ou látex em sua conta, mas apenas 50% do valor de
sapatos impermeáveis, desenhados para a recente vida urbana
mercado. Os outros 50% correspondem ao lucro do dono do
dos grandes c entros metropolitanos.
O caucho despertou o interesse dos primeiros viajantes - apa­ seringai, o "aviador", que o levou ao lugar, além dos custos do
rece já na segunda viagem de Colombo-, pois, como dissemos transporte. As "bolachas" levavam o nome do dono do serin­
antes, La Condamin e buscou informações d etalhadas sobre est e gai. Porém o seringueiro devia comprar � necessário p �ra sua
mat erial e o trabalho realizado pelos nativos da Amazônia sobre subsis tência ao próprio aviador, que vendia as mercadonas por
esta resina. As possibilidade s de uso são muitas e elas vão da
preços abusivos. Este era o grande ganho do dono do seringai
e, ao mesmo t empo, significava o endividame nto perpétuo do
goma para fabricar correias industriais até a própria goma de
s eringu eiro, com sua posterior escravização. Em caso de pro­
mascar, o chiclete.
curar outro lugar de trabalho, a dívida passava ao novo pro­
A obtenção da resina é trabalhosa, especialmente devido ao
prietário, acrescida de mais 20% de "direito de transferência"
lugar onde é encontrada, em geral um lugar emaranhado e repleto
(Pennano, 1988: 51-61).
dos perigos da selva. No começo pensaram que as árvores qu e
, A extração se faz mediante feridas abertas na árvore ou cortes
produziam a resina cresciam somen te na parte al ta, na Amazônia paral elos, a de z centíme tros de distância um do outro, em forma
andina; depois, ficou evidente que também havia borracha na
de canaletas, que conduzem a resina até um recipi ente. Es ta tarefa
parte plana. As plantas mais comuns são a Hevea Brasiliensis e
ocupa a m etade do dia do seringueiro. A outra metade consiste
a Castilloa Ulei, a primeira produz o lát ex e a segunda caucho.
o em re tirar o produto e coagulá-lo, mediante um pau ou vara que,
Há difer enças nos métodos através dos quais se obté o pro­
m gi rando sobre um eixo, produz o acúmulo do produto endurecido
duto, que foram importantes em relação
a suas cons equências. em camadas sucessivas, através de fumaça com alto conteúdo de
De um lado está o caucheiro, que
corta a árvore para extrair enxofre e carvão. As bolas de caucho, ou "bolachas", estavam
a resina, sendo considerado um
depredador. Trata-se de uma prontas para a exportação.
pessoa que está de passagem
pe
· - los lugares e, subtrai
deixando para tra's a destru1ça .
o prod uto,
.
No com eço era um trabalho de aventureiros que imitavam as
,e o. D e outro, ha o serin gueiro, que técnicas dos indígenas. Porém, quando a borracha começa a se
o trabalhador sedenta'no· e esta, vmcu "
de exploração· É mai·s um • lado a lugares espec1 f' 1cos tornar um material importante, pois um norte-americano cha­
. peno, colomz. ador, que extrai o látex durante mado Goodyear havia desenvolvido o método de vulcanizaç�o,
dois dos _anual
• ment e. No restant
para sua subs1stencia. e do ano, cultiva e pesca que eliminava os problemas de transporte e previa sua Pºstenor
O lugar onde traba elaboração industrial, a sit uação mudou. Por outro lado, e Sta
lhª 0 s eringueiro está org s1· tuaça•o atmgma
. .. . ou a ser
"estradas,, , sendas
abertas na se1 va, ond
anizado em o paroxismo quando a borracha pass . _ em
e exist e um nú mero elemento indispensável na modernização das comumcaçoes
114
115
resulta infame, para dizer pouco. No rmalmente
nível internacional, tendo o a utomóvel com o personagem c en­ 0 processo em si
elo subor no. O contratante, do no ou aviador, se dirigia às
tral da cena contemp orânea, no começo do século 20. Entã o começava p
enas e entregava adiantamentos aos nativos, que eram
o "aviador" chegou a situações ext r emas de explo raç ão dos aldeias indíg
"aviados". No ca so da ár ea peruan a, os explora dos eram os in­ esco lhi
dos. A escolha dos nativo s se fazia com base em sua aparente
suas noções acerca do caucho. O adiantamento não era
dígenas huitotos e boras, principa lmente, obriga dos a trab alhar força físic a e
em artigos de co nsumo atrativos para a população
nas cauche rias. No Bra sil, traziam mão de obra d o Nordeste, em dinh ei ro, ma s
negociava o preço do s artigos oferecidos
nesse momento atravessando um a g rande cr ise econômica em nativa. O nativo escolhido
razão de uma sec a; os q ue vi ajav am à Am azônia eram movidos pelo contr atante, em tr oca de um número dado de semanas de trabalho.
pe l o de sespero da l uta contra a subsistência e c om a expectativa Normalme nte, d eixava com sua família os produtos, a fim de satisfazer
de sua ausência. Esse era o primeiro
de voltar com dinheiro p ara alimentar suas famílias. A realidade suas nece ssidades dura nte o tempo
encontrada estava longe daquela com a qual tinha m sonh ad o passo no processo d e peonagem ou servidão, já que o período de tra­
pois viviam uma situação de semiescravidão, em que a possibi� balho costumava se estender indefinidamente.( ...) Tudo o que recebia
!idade de regressar nã o figurava no ho rizonte. 0 nativo , sej a alime nto, roupas,
ferrame ntas para trabalhar melhor
O "avia dor", na ma ioria dos casos, foi um pe rsonagem no etc., era a notado como dívida contraída e a preços exorbitantes. Este
mun do amazônico que mais tarde viria a ser um clássico no ce­ ponto demarca a passagem da dependência para a escravidão. Sem
nário do caucho, conhecido como "regatão". Tratava -se de um dinheiro, longe d e sua aldeia, em regiões desconhecidas e sem recursos,
come rciante ambulante dos rios, que tra nsitav a pelos lugares não sobrava mais altern ativa que o trabalho no seringai para continuar
habitados pelos caucheiros, em sua lancha , troca ndo merca­ subsistindo. A possibilidade de fuga não fazia parte do leque de suas
dorias por látex. O seu perfil é variado, às vezes é mencionado possibilidades (Pennano, 1988: 59).
tanto como um suj eito autoritário, poderoso e temido, como um
personagem romântico, que navega sozinho no entardecer pe los A histó ria d a exploração d a borracha apresenta vários mo­
rio s. Em 1890, eram, em s ua maior ia, de origem judia; depois mentos. O primeiro p rojeta se us inícios no tempo americano,
essa função pas sou para outros comerciantes, em grande medida já que era usad o tra diciona lmente pelo mundo indíge na, de
árabes imigrante s. O " r egatão" obtinha crédito nas emp resas ac ordo c om os registros feitos d esde Colombo e Pe dro Mártir
de aviação em Manau s ou Iquitos . Posteriormente, el es mesmos de Anglerí a, em 1530. Em 1770, foi d escoberto na Inglaterra
se tornaram aviadores. Foi o caso do famoso Fitzcarrald, por seu us o como borra cha para o l ápis de carvão. Em 1803, já
exemplo. existia em Saint Denis, próximo de Paris, um lugar de f abricação
O "aviador" dependia de um g rande comercia nte d as cidades d e correias elá sticas, com o que tem início seu uso industrial.
unportantes, que nesse momento eram lqui tos e Man Posteriormente, há outro m omento, em tor no de 1839, quando
a us associ a-
do ao sistema bancár10 ' e a um . '
a casa exportadora . Por mtermed10
, . Charles Goo dyea r descob re nos E stados Unidos o processo de

da mao de obra comp1ementava e
aumentava seus ganhos. O vulcanização e a dema nda por látex é incrementada. E ste proces­
enganche dos traba mental
lhadores f 01. sustentado pela
"op r e ssão' usura ' so é a celerado
qua ndo J. B. Dunlop inventa o pneu, funda
engano e escravidão"·' um h'1stºn• para a indús tr ia a utomobilística. Esse período abarca a seguocla
ador do caso peruano afirm a:
metade d o século 19 e se estende até 1910, data em que come­
çam a funcion a r as pla ntações de látex que a Inglaterra tem na
116
117
Ásia, no Ceilão e na Malásia, depois de ter retirado setenta mil vapor, ao qual mandou desmontar e carregar
vez com um para
plantas secretamente do Brasil. Há um segundo momento na istmo, acontecimento que posteriormente seria
atravessar o
demanda pelo produto, durante a Segunda Guerra Mundial, que alemão Werner Herzog. Aos 26 anos já
filma do pelo cineasta
leva capitães norte-americanos à região, que, no entanto, dura como caucheiro reconhecida em Iquitos:
pos suía uma reputação
pouco. O descobrimento da borracha sintética substituirá, desta
vez, a produção asiática. Neste processo de conquista da selva, Fitzcarrald fez uso da força
Na região alta dos Andes, na cabeceira dos rios que alimentam
e da violência, subjugando e enganando uma série de grupos nativos,
o Amazonas, entre o Putumayo e o Caquetá, foi projetado um
a os qua is c olocou sob suas ordens. Um mecanismo típico, usado con­
lugar estratégico para exploração do caucho, devido à existência tra aqueles grupos que se negaram a ser submetidos voluntariamente,
de numerosos manchais - lugares com abundante presença de foram as famosas "correrias" (Pennano, 1988: 158).
árvores produtoras desta resina, além dessa ser uma área em que
as demarcações fronteiriças entre Peru e Colômbia não estavam As "correrias" consistiam em verdadeiras caçadas nas quais,
de todo claras, permitindo movimentos de duvidosa legalidade. sob O poder do caucheiro, brancos e indígenas assaltavam aldeias
Vários personagens surgiram como parte da mitologia desta de nativos, matando, levando suas mulheres e meninos entre oito
região. Trata-se de aviadores, cujos nomes permaneceram nos e quatorze anos, para vendê-los por um valor entre duzentos a
imaginários e na história desgarrada da região. Um deles é quatrocentos soles cada um. Os adultos que não resistiam eram
Fitzcarrald, outro é o peruano Julio César Arana. Aparecem levados como peões do caucho. Cedo, Fitzcarrald começa a ser
também os nomes do boliviano Nicolás Suárez e alguns brasi­ chamado de "rei da borracha"; seus filhos são enviados para
leiros, como o coronel seringalista José Júlio de Andrade, que estudar em Paris e ele se apropria de indígenas de diversos grupos.
viveu no Palacete Bibi Costa, construído por Francisco Bolonha,
em Belém do Pará, chamado de "castelinho". É difícil seguir as peregrinações de Fitzcarrald pela montanha; a
Sobre Isaias Fermin Fitzcarrald foi tecida uma grande mitolo­ cada determinado período de tempo mudava sua área de trabalho: o
gia. Parece ter nascido em 1862, filho de um marinheiro norte­ Pachitea, o Alto Ucayali (onde edificou sua casa sede, luxuosa e rodeada
-americano e uma mestiça peruana. Seu pai fazia o trabalho de de delicados jardins, cuidados por jardineiros chineses), o Tambo, 0
regatão esporadicamente. Já ele internou-se na selva e durante Apurímac, o Urubamba, o Madre de Dios, o Purus. Para se locomover
a guerra contra o Chile foi acusado de ser espião daquele país. com rapide z, de um lugar a outro de seu vasto u·tmpeno , · " , F1tzcarrald

Um período de oito a dez anos transcorre sem que se saiba muito e seus dois sócios haviam organizado uma pequena frota de botes e
dele, até que reaparece em Iquitos, em 1888, como um dos mais armado um vapor, que podia . · ·a das águas dos nos
navegar na ma1on
importantes caucheiros do Ucayali. Está associado à casa bra­
, 1 encontrar 0 melhor vinho franccs
da selva ce ntral. Neles, era poss1ve
sileira de Manuel Cardozo da Rosa, com cuja enteada se casa. e descans ar em cômodos camarotes (Varese, 1968: 90).
Seu poder e fortuna crescem com as explorações em busca
de novas regiões de caucho. Em 1893, com uma pequena frota · ªd'ante
1 ' mas de
Sobre Julio César Arana falaremo s mais _ Com 0
de canoas e ajudado pelos índios, entrou pelo rio Mishagua até
momento é importante oferecer a 1guma 1•nformaç ao.
chegar ao rio Madre de Dios. Em 1895, refez o trajeto, desta . , . o
tntc10 do auge da borracha, começ ava também o sonho d

118
119
enriquecimento rápido. Na Rioja, um povoado da selva alta,
Julio César, um garoto de classe média, trabalha com seu pai
numa loja de "chapéus panamá", o clássico acessório dos cau­
cheiros da época. Em 1884, já está em Tarapoto junto com seu
cunhado, Pablo Zumaeta, em um posto de operações para as
caucherias. Ali se torna regatão nos rios Javari, Purus e Acre.
Seus ganhos aumentavam com a subida do preço da borra cha.
Em 1896, já controlava uma série de caucherias e tinha crédito
de várias firmas comerciais de Iquitos. este ano, ao se estabe­
lecer em Iquitos, constituiu a empresa "J. C. Arana e Irmãos"
com vínculos conhecidos no ex t erior, Lisboa, ova Iorque :
Londres, entre outros.
Em 1899, quando chega a ser chamado de "o sócio de Deus"
Aran� afasta caucheiros colombianos da região do Putumayo:
onde i nst ala seu poder, um rio praticamente inexplorado e com
suas três quartas partes navegáveis. E ta área em disputa, entre
Peru e Colômbia, se converteu em " terra de ninguém", que é
20 (1904), que e ra utilizada
Figurar - Vapor .\lara\'. embarcação própria do século
o mesmo que dizer "terra de Arana". Foram os trist emente de pe soa . única forma de t ransporte entre as grandes
para o comércio e de slo amento
famosos portos chamados de La Chorre ra [A Corredeira[ e EI distância da região
Encanto [O Encanto]. Por questões estratégica e ncce sidade de
Quando e touraram o e cândalo que revelaram o horro
r
contar com o respaldo da coroa britânica, formou em Lond res
a "Peruvian Amazon Rubber Co.", com capital inglês. da sm1ação de Putumayo, Arana realizou uma jogada hábil, que
das
A mão de obra que utilizava era a mesma de seu prede­ pro,·.l\'., ua confian-a na modernidade e no desenvolvimento
cessores; nativos do lugar, que se calculavam em rorno de no\'.1� tecnologia . onfiando na men agem de veracidade que o
quarenta mil pessoas - boras, huirotos, ocainas, andokes - os cincm.1 \'eteulaYa, arre que apare e em corno de 1917, conrratou
ra­
quais viviam isoladamente com suas línguas, costumes e cul­ cm l\ Lrn au e formou. no e rúdio Parhé, de Paris, um fotóg
fo de rua, porém ralemo o, chamado ilvino Sant os, imig rant e
tur as. Pa ra seu férreo controle, trouxe capataze de Barbados, oe
com Wi nchesters em mãos, que se converteram em seu exército português, para fazer um documentá rio sobre o Putumay
cineasta,
Pa rticular. Ficavam sob as o rdens d os supervisores do po ro e mo trá-lo em ua defe_a. Foi o começo de um grande
nguém mais
eram os verdugos que ap1 1cavam
· · , .
os castigos e ocorrenc 1as do cujo- te tcmunhos ão único em intensidade: "Ni
pris, sem
.
supervisor. E nt re 1905 e 1910, os indígenas eram vendidos a sabe ria ver a região amazônica como ele, sem parti
. deslu mbrados do
preços que iam de vinte a quarenta libras esterlinas cada um nen 11u m preconceito sempre com os 0lhos
' o livro da
(Pe nnano, 1988: 161-169). garoto que um d i. a, numa ' • de portugal, abriu
ald eia
e co 1 a e v i. u a foro d O no 2007: 12).
• Amazonas "(Souza ,

120 121
tino foi engrossar os grupos que chegavam do sul
Outro des
lorar as ":olônias", terras amazônicas em torno das
par a exp
exploraçao que, no entanto, foi se distanciando cada
rodovias,
dessas rodov ias, à medida que essa colonização ia se
dia mais
Era a nova utopia: conseguir uns hectares de terra no
acelera ndo.
, no meio da selva, limpar e preparar os terrenos,
meio do nada
se tornassem produtivos. Sem capital, sem apoio
a fim de que
ou apen as esporádico, este projeto lev ou os que
governamenta l,
m neste périplo a um destin o bastante amargo. A
se aventurara
está ligada à da extração da borracha.
histó ria das colônias
do moment o em que se incre­
No Brasil, houve um segun
borracha, qu e foi durante a Segunda
mento u a exploração da
de Getúlio Vargas. O novo plano
Guerra Mundial, no governo
siderado uma causa nacional e para
de exploração, que foi con
0 qual se urilizou
pro pag and a oficial, que veio a ser um dos
Fig ura 28 - O g�ande cineasta português/brasileiro dos seringai , Silvino Santos, em P 1eno
hordas de imigrantes à selva;
tra b alho no meio da selva pilares do governo Varga , levou
acha", soldados do caucho.
Coleção Joaquim �larmho. Arqu1,·o Márcio de Sou,a. eram o chamados" oldados da borr
Examinaremo e ra etapa mai adiante.
� gr_ande qu e�a do preço da matéria-prima, que fazia girar a
.tnduSrna euro peia e norte-americana, ocorreu a pa rtir de 191 1 e
teve a ver com a concorrênc·- · - 1 rc J as p J anrações asiáticas,
ta o fnua U 1 DI CUR O A TRÊ VOZES
. amazônica,
desenvo lvidas pela Inglaterra, a rarrir de um barco cheio de O di�cur o da bor rach a, definidor da história
· 1•es ha via se constrói
mudas de seringueira , q ue um su' diro . 111g . retirad o \ub- tem na realidade dna voze . É um discur o que
aleatórias
-rept1c1
.
. . amente do Brasil , e nganan(1o o controle prorecionisras em movimenro, em opo 1 õe , no marco de ituações
da epoca. Os.tngleses criaram sementeira na Inglaterra e dcpoi as diferenças
• . que o tornam complexo e o fazem obscuro, c omo
desenvolveram as plant aç o- es em u a colon1as os países da re­
a iáricas, onde o geopolnic:1 e a dehmira õe de fronteiras entre
.
clima era pr opício e a ma- o de Obra rambem. O Bra il rerdcu A relação com
, . , . ., gião do eringal: Bra il, o lõmbia, Peru e Bolívia.
o mon opoh o da matéria -prima · A queda do " o uro e 1a nco ,
0 mundo e onõmico europeu adquire nova
carra de cidadania,
. .
como fo,.chamado ' levo u à debac1 e O ennga1 , e o destino dos
. . o rn a incorporação do capitai ingleses.
rrabaIhadores fo1. tncerro·· un s se converter am cm nbemnhos . . breve rrajero,
. e O viajante que chega ho je a M anaus e percorre o
passaram a viver da pesca de su bSisrcnc1a; nciada pelas
·
os ganmpos' no lado bras1·1 c1ro
. • . muiro foram para que vai do porto até a maior atração da cidade anu
. ' engrossando a I evas d e 1 1omen agências turí rica , o Teatro Ama zonas, rep
roduz o mesmo geSro
que perambu1avam pela selva e I ás, quando , em
de uma forruna sempre incert
pe as aldeias . em busca de our o ' do habitanre de pouc o mais de um século atr
es e a histórica
bac' informaço- es que corriam
a que r ond ava as conver a de
1895, a cidade não tinha mais de cem mil habirant
de doze anos de
da orientaç ão de um Iugar ao qua
de boca cm boca, dando c onta co n trução acabava de ser inaugurada, depo is
l se d ...mgir pa ra tentar a orrc.
122
se deu graças ao es­
trabalhos e esquecimentos. Sua conclusão
forço de um governador que, posteriormente, como os mecenas
do Renascimento, algo similar ao patrocínio empresarial de hoje,
deixaria seu gesto inscrito na própria obra, ocupando o lugar dos
grandes nomes da História e da Cultura, com H e C maiúsculas,
cuja figura adorna o frontispício do edifício.
As mulheres das famílias podero a do final do século 19 '
identificadas com as heroínas românticas do romance francês ,
procuravam o ar da tarde na explanada, ao redor do teatro
recém-inaugurado, numa atirude que ao bu car evitar o desejo
de exposição pública, as umia o tom da modéstia e do recato,
próprios da assistência à novena. Iam à Igreja de São Sebastião,
com sua torre única que delatava os arremedos ultramarinhos
das grandes catedrais europeias, poi acabavam se tornando sua
reprodução, ainda que de formas carente , di torcidas e como
frágei cópias do original. Abri a da tarde em Manaus abrigava, Figura 29 - Ca ai em 1ruação de corteJO na Pans do�
trÓptCOS
assim, o passeio da mulheres do con iderados homens ilustres
e eminentes, do valente que as umiram o domínio da floresta
para o bem da pátria e da humanidade. Eram as mães de família
virtuosas, ocupadas no cuidado dos filhos e no governo da casa,
que rodeadas de sua mulheres de serviço, de claros traços indí­
genas e escravas recém-liherta do tráfico que havia chegado às
fazendas amazônicas, se vangloriavam de sua vocação cristã que,
mais que diferenciá-las da mulhere de origem popular, tinha
a virrude de deixá-la à margem das críticas e boato alheios.
Tratava-se de uma sociedade muito pequena, que via, com uma
mistura oscilante de atração e a ver ão, a aberrura às novidades
técnicas do momento, como a eletricidade o telefone o trem de
ferro, a bicicleta, além des e prodígio gerador de inveja que era
o automóvel, presente nas capas de L'Illustratio11 e outras revi tas
menores, que chegavam de Paris nos barcos das companhias
inglesas que faziam a rota regular até Manaus. Comen tava-se
com admiração que havia famílias que, cansa
. das da umidade
que impregnava suas roupas nos época num a foro
trópicos, mandavam lavá-las f i gura 30 - Construção da
nas lavanderias de Paris. recente de lquttos, Peru
Foto Ana P11arro.

124
das preciosa , madeiras de origem loca 1, que eram
rrab alho .
ec1 lmente a Europa para serem trabalhadas por
levadas esp �
enmentados na montage m das pequenas peças,
arte ã os exp
enhos aludiam a motivos da natureza.
cujos des

Figura 31 • O Tearro Amazon.1 de t-1.inau,, inaugurado cm 1896, representa o fausto da


sociedade da borracha

A dama , quando pa avam em frenre ao rearro acomranha­


da de suas se rvenrc , não e tranha\·am a representação o,rcnrada
na fachada central, onde e via homens e mulheres com r(1nica
neoclássicas e claro rraços europe u �, le\'ando uma pena pre,a
na cabeça, um símbolo evidcntt: da im::igcm que, na Europ,1, e J foto,
h!!ur.t ,2 \ d.ml,,�r.1t 1 < um do, ot1,10, rwrno, da modernização europe1<1.
tinha do narivos do lugar. 1c11,•11' hr.1,dc1r.1, p,,,.1111 nrgulho,,1, Junto ,1 ,u.1< maquina de e crever
Em algumas rarde , o rearro apre cnra\',l companhi.,s it.1li.1·
nas. Então havia um desfile de gala, com �obreca!>aca e h,1..r.io, O ,1111bol 1 ,nH1 J.1 11.nura.1 regional rambém podia ser admt·
e a moda de Paris de fila\'a junto à balau�rrada na cnrrad,1. A, r.1do pelo, ho,pcJe, Je'-',1 no 1 re de glor ia - em que pa avam
pessoas subiam a e cada de mármore de Carrara p,ir.1 chepr conrn ,e e,rn e,,cm 11.1 Europ,1. " rudo que é bom para a França é
aos palcos de ferro fundido inglê , que rodeavam o hemicu.:lo, bom p.u.1 o Br.1,d" - n.1 rela do tundo do alão obre; ali acon·
e dali poder admirar a iluminação, o lusrre , o� candela hro, rccia o enconr ro mar.1\'llho,o do rio egro com o olimões, q ue
de bronze e cri ral iraliano, anres de romar assemo e ob\en·.,r egucm p.ualelo� em �eu duplo r aperc marrom e negro, durante
re
0 re ro do público com cu prismático de náca r. O lu\r rc um lo ngo rrecho, r,1 r.1 e converrerem no Amazonas em fren
º - Bela Arre no
central, de bronze francês, possuía um i rema manual feiro J 'h \ .rnau . 1 o rcro .1parecia a"Glon· f 1caçao das
. • urna rerra
especialmente par a poder baixá-lo para limpeza, o que pcrmi· A ma Lona� .. de Domemco
, Ange 1.1s. 1m, esra não era
_
na O brilho perfeiro dos cristais. As sandália fina , própria s 1 1)ar
le , 1 er tao
• b aros, aqui era po ,ve - am,ante da arre com o na
·
para as damas naquelas ocasiões, se reflet
iam no espelho que
e .d
1 aJc Lu,.
O champanhe de a . noire · s de grandes espera
a'>
panhi
chegava aré o eh·ao, reproduzin · do, ao mesmo rempo, o ·1110 r· cu 1 os - aru o nunca veio, como d Jl a 1 enda ma com

126
e teatro - borbulhava entre o s risos ocup a do pela construção era imponente - e conti-
europeias de balé, música 0 esp aço
os ombr os, os bastões e as so brec sobretudo porque ainda se tratava de uma
até hoje - .
das damas, os olhares sobre a. nua s e ndo
os, e algum gesto cúmp lice que imag in av quena, no meio da selva e com o único acesso pelo rio.
sacas dos caval heir cidade pe
m

rom vitoriano nos trópicos. Ali não chegav: 'm quele úni co acesso fluvi al. não. er a óbice para que as co-
reproduzir O mesmo pore a
a, sentido pelos cu r iosos a montoados uropa fossem mais fluidas do que com a capital
0 calor da selva próxim exões com a E
que observ avam de longe o festim da grande cultura, durante 0 oca, o Rio de Janei�o- Havia linhas de barco� de
�o país na ép
de grande calado podiam
espetáculo. Um sistema sofi ticado de gale ria sob o piso, que nav ega
ça-0 direta ' e as emb arc açoes
desembocavam debaixo dos assento de jacarandá da plateia, em do o r io para chegar até lquitos. O transporte da
cont1·nuar subin
assi m como abrir nov as passagens e formas
relação direta com as correntes de a r produzidas pela abertura bor racha O ex i gia, do emaranhado de
mente ao Amazonas, vi ndo
de portas e janela , p roduzia a ensação de frescor necessár i o de chegar d i reta ra
r pas sar embarcações através de montes pa
para o bem-es tar físico dos p resente . Estar sentado ali era com o seus afluentes, faze o faria Ftizca rrald, o
itar a s c achoeiras, como
estar em outr o lugar. As s im se podia entende r da represe ntação abri r novas v ias e ev
Amazônia andina. A luta contra a natu-
do teto, que dava a sensação, com seus quatro ângulo s , de qu e emp resári o peruano, na gem para o
indígena para abm passa
se encontrava deba i xo da Tor re Eiffel, cuja p intura a óleo foi reza, assentada no trabalho
iro de produto que ti nham a c ada
t razida em rela d iretamente da F rança. rrem de ferro, acelerou o trân
envolv imento das comuni cações,
dia mais dem anda com o des
riqueza possível era uma co rrida
a bicicleta e O automóvel. A
eses rapidamente s uperav am
contra O tem po e os cap itães ingl
qualquer obstáculo.
Trópicos", como as mu-
P.uJ quem de frutava da "Pari dos
esplanada do Teatro
lhere que brincavam com eus leque na
i da, ou, p ossi ­
A 111 J101us, estJ real i dade era ralvez de conhec
da como o preço ª
\'elmcnrc, \·1sta com de preocupação, senti
selv agem. Para os
p,1g.1r parJ rrner a c i vilização a um lugar tão
umento do ESrado­
governo·, era que tão de colonizar sob o arg
relação com os
·Naçào. Porém o d i cur os do seringai , da
· ' sa-os construídos
trabalhadores da bo rracha e com os 111d 1genas,
p rincipalmente
numa di nâmica ba tante ren a, que radicam
• ozes do poder' dos
em rres voze . Por uma parte aparecem as v
proc u-
" coronc1 ,. da bor racha" ou dos "baroes - do c aucho "' que
. a ação· A siru a
ção
ravam :1g1r e tentar cn. ar um sentt'do para su . .
gais
. trabalho dos serin
e ra d 1 ferente par a os que perceber am O . , . cos, elabo-
.
como mrel ecrual ' no lugar prop , no ª
. dos f ros hisron
. nre registro, com o o
rando esta experiênci a em rexro s de d 1 fere

!29
128
(Va ldez Lozano, 1944: 22). Uma concepção abso­
documentalismo, 0 ensaio e a ficção romanesca. Por último, estão c aucheiro"
t a da história preside a construção deste sui·eito,
as vozes reconstruídas dos que foram as vítimas, os seringueiros. ul tamen e fátic , .
este ulnmo texto, que pretende estabelecer uma
co mo preside
aseada em fatos concretos e verídicos", conforme
n arração "b
OS BARÕES DO CAUCHO diz O autor (Val
dez Lozano, 1944: 2). A história, então, é uma
fatos que encerra sua própria objetividade; não
Observemos, em primeiro lugar, a constituição, como sujeito , sequência de
ão deles, não existem os subtextos e nem outra
do chamado"barão do caucho". Jesús San Román descreve desta existe interpretaç
os próprios valores �rojetados em seu
maneira a origem desta função social no caso de Loreto, no Peru: possível leitura que � � _
pelo su1e1to que enuncia. É por isso que os editores
ordenam ento,
na tradição exata e justa", ou seja,
Normalmente chegado de San Martín, de alguma outra região do fala m de "narrações baseadas
em sua própria interpretação
Peru, ou mesmo do estrangeiro, o aspirante a caucheiro se apresenta­ a justeza e a interpretação constitu
(Valdez Lozano, 194 4).
va em algumas das casas comerciais, que, no caso da selva peruan a,
tinham geralmente seu centro em Iquitos, e pedia sua habilitação. Era
suficiente ter uma boa reputação para conseguir dinheiro ou merca­
doria por muitos milhares de soles. O novo "habilitado" começava a eATALE)GUS OES PRIX O'A.�E)UR
da M•d•n,,ol••tl• Merc•II• LA POM PE\,
"enganchar trabalhadores". Uma vez reunido o número necessário
TAIUP •••5 A��;-L;;.; ;����I?" raáci.o��..
ele se internava na selva, procurando os lugares inexplorados. Abri: ,...,.,..e,,HIUQWQUlffl

caminhos, assinalava as árvores produtoras e se instalava. O seringueiro ..!.':'�'ta·.::..:·�-'�::;�.� r..::=


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................... .·:.:.:-�';:..-..:;
chefe distribuía o trabalho entre os peões, dava a cada um sua tarefa, ... .,._.,, p W">•1- ,_..i...... ·- .. r""
• - . .....__ _,..·.,. ,...... ......... .,._ ,.... ...,.t ,..
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repartindo a mercadoria, também em forma de habilitação. Abria seus ,.li: • . ' ' . ,- �"""
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livros de contas, que lhes deram tão triste fama, assumindo o papel de
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mspetor e também de verdugo (San Román, 1994: 151-152).
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Os barões do caucho invocaram um novo cenário o de uma ......... ,,.,..,..., ........


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P tendida modernidade. Eles representavam os valo�es da "ci-
�� euç.M A U IIOfTMI
vil1zação" e do"progresso" . É mteressante
· observar que mesmo
quando examinamos text os que se referem a e1es, e, 'poss1ve -
,..,_,..., ..............,,...... ,� r-•·'-"•
......._ .... ,....................
·- ..... ,..,..to , � -1• i ,
..,_,_. �
....

' 1
,
perceber que são def·m1·dos com ep1tetos .
. grand1l oquente s, como ' /.� .,.
"cavaleiro da selva", 0u " va1ente e cavalheiresco seringueiro",
a.
como fazem os anômmos · .
ed1tores de E/ verdadero Fitzcarrald iigura 34 · Tarifa de um bo rdel da época, quando as cocotes eram importadas da Franç
. . r a-se d um texto que circulava e havia sido criado, no momento de seu aparecimento,
ante la historia [O verd ª deiro
. Fitzcarrald perante a história], perª dad ai�sta Renée Dunan
obra do peruano Zacarías Vai
dez Lozano ( 1944)
Valde z Lozano caractenza• estes homens com o "desbravado- Neste marco, os desbravadores foram "homens de empresa
.
res" ' homens que impu e d e visão pa
nham suas ordens por meio das carabinas ra O futuro [que] abriram para a civilização" o
w·meh ester, que "constituí , . , . . espaço selv
am O umco cod1go para impor a lei agem (Valdez Lozano, 1944). É importante aqui a
do mais forte' que, com função da
o passar dO tempo, ve10 . a ser a lei do noção de civilização: a bandeira do Ocidente, que
130
131
será a justificativa da própria barbárie, assentada nos princípios O m esmo . raci,ocínio está presente na declaraç a· o que o
da razão. O homem moderno é o que se sustenta por si me smo
caucheiro Juho Cesar,
Arana apresenta perante o Conse
lho de
a partir de seu próprio raciocínio, distante de qualquer depen­ ão, da Camara dos Comuns, respondendo pelas acu-
Investi gaç
dência teológica. O caucheiro expressa sua modernid ade com
sações que lhe imputam de maus-tratos aos indígenas. Como um
seu gesto "individualizante", com sua épica pessoal, "para que
mo do de enquadrar num contexto que justificasse suas ações,
a posteridade admire suas façanhas realizadas como um do s
ele afirma a condição de selvageria dos indígenas e sua situação
maiores pioneiros da selva" (Valdez Lozano, 1944: 13).
de atacantes:
Deste modo, a descrição da vida dos desbravadores é vista
por aqueles que participam deste discurso como uma épica Foi então que, pela primeira vez, ouvi dizer que os índios no Igar a­
coletiva. Esta perspectiva é compartilhada pelo cearense Mário paraná e no Caraparaná havia m resistido à implantação da civilização
Diogo de Melo: em suas terras. Efetivamente, eles resistiram por muitos anos, pratic an­
do O c anib alismo, e, de vez em qu ando, assassinavam colonizadores
Pela manhã, todos os homens capacitados da cara van a desemb arc a­ brancos; porém, a partir do ano de 1900, os índios se tornaram mais
ram na terra, onde começariam na quele •dia su as ativida des aventureir as, amistosos, desse modo um sistema de intercâmbio das gomas extraídas
na quelas p aragens desertas que não eram tão diferentes para eles, a pesar por eles e das mercadori as europeias teve lugar entre eles e os referidos
da n atureza exuberante, onde a opulência da flora competi a com a estabelecimentos. Desde então, meus negócios no Putumayo cresceram
grandeza da f a una, convidando a se juntar a ela num esforço comum gradualmente, porém com lentidão (Arana, 1913: 8).
par a levant ar;naquele dia, os cimentos de uma nova civiliz ação, a que
iria logo dominando as amarguras da selva, ap arentemente indomável Não resta dúvida, então, sobre o lugar que a função comercial
(Melo, 1994: 93). ocupa no ato de levar a "civilização" aos indígenas. Na repetida
história de Próspero e Caliban, tão presentes na cultura e lite•
A dualidade civilização-barbárie organiza o discurso, ratura latino-americanas, os indígenas não são os atac ados em
justificando-o. Trata-se aqui de uma "nova civilização", não seu território, mas os que atacam os estrangeiros. A condição de
por ser diferente da ocidental cristã, mas por ter sido instalada canibalismo não foi documentada. Do mesmo modo, no texto do
num lugar diferente, em princípio "vazio". Os estandartes da cearense Mário Diogo de Melo, a deslegitimação do seringueiro
civilização são suficientes para agir frente ao que se encontra está dada a partir de sua vida pessoal. Durante a viagem se relata:
fora de seu círculo. "O código da selva aconselhava obrar desta
forma", afirma Valdez Lozano (1944: 6). Essa situação justifi­ la atra c a ndo nos mesmos pontos em que atracara n a subida, para
ca a superioridade de Fitzcarrald, que projeta o enunciad o de emb arcar a produção dos " a vi ados", bem como de todos 0_s traba -
Lozano perante a defesa indígena de seu território: "Notando • · a 1· am pass ar um ou dois meses
lhad ores da selva, que em su a ma1on
. te o ano
a indign a ção que havia causado entre os caucheiros essa nova n a cidad . tud o o que ganh aram duran
e, g asta ndo em orgias
aleivosia dos selvagens, Fitzcarrald resolveu castigá-los e prepa­ com tanro sacrifício (Melo, 1994: 39).
rou O ataque contra sua aldeia, que se encontrava poucas águas
truçã o do
abaixo do Sutilija" (Valdez Lozano, 1944: 18; o itálico é nosso). A condição civilizadora aparece um·da, na cons
. . · ap arece vtn·
É import ante entender que o castigo é exemplar, pois pretende su1e1to caucheiro ' à noção de p,atn. a, cu1 o valor
responder à ação dos indígenas pelo olhar dos caucheiros. . e ªfirmação da s naçoes,
culado a um momento de construçao

132 133
especialmente dentro de um espaço em que as fronteiras estã aços para a nação, eles foram chamado s de "aqueles
o de nov os esp
sendo demarcadas, além de um momento de tensões políti cas deirantes amazônicos", pois realizaram a "obra
alorosos ban
com os países limítrofes. Neste marco, a afirmação patrió tic a ad­ leiro útil à Pátria" (Melo, 1994: 135). Bandeirantes
�e um br asi
quire também uma perspectiva justificadora. Estes indiv íd uos da meiros que abriram no século 16, escravizando;
com o os pri
interiores do Brasil.
modernidade levam a lugares recônditos a civilização ocid ental assassinando, os
ao mesmo tempo que ampliam as fronteiras da Pátria. O sentido da Pátria é também utilizado no outro lado, pois
ataque ou crítica aos peruanos, o acusado era
frent e a qualquer
agente do governo colombiano.
Por onde iam, os capitães do caucho, como Fitzcarrald, formavam logo taxado de
verdadeiros exércitos de caucheiros aguerridos, valentes, impulsionados Civilização, Pátria, Progresso. A tríade é representativa da
a a
por essa agitação que ar rastou grandes mas as humanas aos interiores corrente de pensamento positivist que predomin em grande
da selva, de um extremo ao outro, sem deixar um único ponto inex­ arte do século 19 e boa parte do século 20, dando sustento
latino-am ricana em sua
� forma adorada pela modernidade
e
plorado (Yald ez Lozano, 1944: 13).
versão amazônica.
Entretanto, o espírito monetário, o grande motor da gesta
.
civilizadora, pareci a não estar presente nesta versão da história
o relato
Aparece obliquamente, como na declaração de Arana.
xto. Era
de Valdez Lozano aparece como um valor, no final do te
a descricão do batizado dos filhos de Firzcar r ald, realiza do por
eu ami�o e barão do caucho boli\iano, icolás Suárez , depois
reali zou
da morre do primeiro. Diz o texto: '· Em razão disso se
um.1 fc ta que deixou gratas lembrança em rodos os que dela
pelo
pamciparam, pela untuosidade e abundância, bem como
(Vald ez Lozan o,
ga,ro que como nunca se mo rrou rão imenso"
19-H:·H).
razer,
E ra dimen<io, que empr e ta rnlor ao momento de p
ro
Figura 35 -Julio César Arana. proprie­
pela gasra nça sem limites. representa no rexro o que O Teat
Figura 36 • Nicolás Suárez, cauchc,ro faust o, esba n­
tário de La Chorrera e EI Encanto, onde boliviano, outro represcn1an1e da Amazonas é para a hi rória da borracha: o 0
do trab alho
se deram os grandes crimes na região "civilização, páma e progresso .. jamento. o u o in olenre do dinheiro, produto
do Putumayo
e era vo do seringai . . .
i o su1e1to
A gesta do caucho incorpora os símbolos da Pátria com P o enta nto , e ra modernidade aparente que constró
maiúsculo.·" este ugar - · ' • "barao- ..
do caucho ', o corone 1 de barran co , está articulada com ..
1 tambem fo1 plantada a bandeira nacio- • , p t·t ªlistas ou colo niais,
nal" (Yaldez Lozano, 1944: 24). Tudo coinc os elemento próprio de remoras pre-ca _
idia em seu sentido avo. 0 "barao
e justificação·, eram os " pnme1ro como é o i tema de aviamento e o trab alho escr
· · s tempos em que começou a se pe a1 moder-
elaborar um novo coneeito do caucho" e aproveita dos elementos praduzidos .
. · d e c1v1 • .11zaçao
. _ e de progresso, associa- . . tempo, insta a1 seu
do a peruam.dade, nessas imens . n1dade, sustenta este discur so, mas, ao mesmo . . , ras .
· as e ncas terras" (Valdez Lozano ' , . • . soc1a1s pre-cap1·talis
1944: 11'· o itálico é nosso ) .
G raças a essa condição de abertura
negocio sobre estruturas econ omicas e

134
tr
Trata-se, pois, de uma modernidade deformada, de uma mo­ pois não volta atrás sobre seus passos,. Ja
l·1 bertária' •, o segu ndo
dernidade bastarda. No "barão do caucho" a construção de si at ad o a sua "estrad� ,, e a uma condição da
vive qual não con-
mesmo é a de um sujeito bastardo. g ue esca par. Para Euclides, o problema é do indivíduo e
se das
c ida des que consegue desenvolver, apesar do meio, sistema
capa
toca sua sensibilidade é a capacidade épica
ou história. O que
OS INTELECTUAIS , não a sua situação, a beleza do seu gesto
da individualidade
ácia.
O segundo discurso a ser examinado é o dos intelectu ais. independente da sua efic
Vamos nos aproximar de seus textos, uma vez que eles nos Em Euclides da Cunha, o meio e a natureza aparecem também
permitem situar historicamente o problema. Ler estes textos é como sujeitos, com a densidade instauradora de um universo de
observar o olhar crítico e perceber o aparecimento de uma voz forças tectônicas. Ele observa a tudo com olho científico, analisa
que denuncia. com emoção e envolve seu leitor no ritmo épico das seivas e dos
Em primeiro lugar, temos o en aio do brasileiro Euclides da crescimentos. A Amazônia, para ele, é presente, "terra sem histó­
Cunha, "À margem da história" ,3 texto póstumo de 1909, que ria", imensidão onde o olhar "se abrevia nos sem fins daqueles
anuncia o que à primeira vi ta seria um relato épico, intitulado horizontes vazios e indefinidos como os dos mares"; é um local
Paraíso perdido, parecido com Os sertões, porém relativo à Ama­ onde o homem "é ainda um intruso impertinente" (Cunha, 2003:
zônia. Esse texto resulta de sua participação como membro da 34 ). A lente cientificista de Euclides, filho do positivismo, que se
expedição da Comissão de Reconhecimento do Alto Purus > do corna evidente na épica de lumbrante de Os sertões, intervém
governo brasileiro. Depois, virá o relatório do peruano Carlos na linguagem, em perder, por isso, a força lírica.
Valcárcel, E/ proceso dei Putumayo y sus secretos inauditos,
publicado em Lima, em 1915. O escritor interveio corno juiz no
processo do Pururnayo, que produziu um duro que rionarnenro
sobre a relações de trabalho e o papel do capital inglês no rio
Purumayo. Em terceiro lugar, remo o colombiano José Eu rasio
Rivera - o mais conhecido deles em nível internacional - com o
romance La vorágine, de 1924, que, depois de uma érie de via­
gens a Casanare e, arravé do Orinoco, a Fernando de Arabapo,
incursiona no Guaviare e Inírida, como membro da Comissão
de Limites do governo da Colômbia. Ali conhece a situação dos
seringueiros nas regiões venezuelana, colombiana e peruana, tema
que será a inspiração para sua clássica obra ficcional.
"À margem da história", de Euclides da Cunha, rem uma
forrn� de expressão ensaística. Através deste gênero, revela a
ronal,dade da denúncia. Em seu olhar, a diferença entre caucheiro
_ _
e senngue,ro não alude à sua condição de trabalho mas à sua
· '· ' -
relação com o meio f1s1co, o que o faz admirar o primeiro em nr�
F'igura • . o de mdira res da época, dura
detrimento do segundo·• em um, . - - 37 - Euclides da Cunha, 1unro a um grup Amazoma, .
enxerga sua con d 1çao nomade, sua missão oficial de demarcação de fronreiras na

IJ7
136
Perplexo com o rio e seu sistema hidrográfico, seu movimen. p or três meses. O escritor informa, faz as contas que
e arroz _
não pode fazer por sua ignorância e pela malícia
to interno, dedica-lhe longos parágrafos e conclui: "Tal é O rio sering ueiro
cluindo que, mesmo quando O gasto é pequeno,
tal, a sua história: revolta, desordenada, incompleta" {Cunha: �o s chefe s, con
eguir á pagá-lo, pois "raro é o seringueiro capaz de
2003: 45). ele não c ons
pela fortuna" (Cunha, 2003: 52).
Tal é o rio. Mas aquela natureza soberana e brutal, em ple na emancipar-se
expansão de suas energias, é uma adversária do homem. Desse Qua ndo nos aproxi mamos do texto, apesar do marco enun­
tação positivista com que visualiza o trabalho dos
modo, este homem, no olhar do brasileiro, padece de uma ca­ ciativo de orien
ctiva humana, dolorosa, porém admirável
rência pecaminosa de atributos superiores, uma falta sistemática seringais, uma perspe
to com a natureza e as condições impostas,
de escrúpulos, um coração fraco para os erros. Sobre ele incide nesse enfrentamen
iano.
a natureza, com sua influência climática - está falando Euclides tensiona m o dis cur so euclid
o positivista -, em sua falta de vontade e egoísmo, vivendo n:
superestimulação das funções psíquicas e sensuais, na debilidade E vê-se completamente só na faina dolorosa. A exploração da

das faculdades, começando pelas mais nobres. Esta figura, pree­ seringa, neste ponto pior que a do caucho, impõe o isolamento.
suas
xistente em seu imaginário ao encontro com o seringueiro, atra­ um laivo siberiano naquele trabalho. Dostoievski sombrearia as
vessa a imagem desse homem, evidentemente, e o vê aceitar, com páginas mais lúgubres com esta tortura: a do homem constrangido a
sua quase harmoniosa "gagueira terrível de Caliban" (Cunha, calcar durante a vida inteira a mesma "estrada", de que ele é o único
2003: 53), a impossibilidade de sair do sistema de "enganches", transeunte, trilha obscurecida, estreiássima e circulante, que o leva,
do "aviamento" que o escraviza eternamente. Euclides da Cunha intermitentemente e desesperadamente, ao mesmo ponto de partida.
denuncia, no entanto, as condições de sobrevivência e de vida
do seringalista brasileiro, do caucheiro peruano: é um homem E culmina sua observação: "O seringueiro é, obrigatoriamente,
que trabalha para ser escravizado. profissionalmente, um solitário (Cunha, 2003: 89).
Nesta situação, ele distribui responsabilidades, pois o peso Há uma força nesse domínio trágico que Euclides da Cunha
do infortúnio é culpa, por um lado, do homem e sua própria não desenvolve, mas que se torna patente na tensão enunciativa
incapacidade, e, por outra, pela limitação que a natureza impõe e se expressa cabalmente nesse magnífico ensaio "À margem da
ªele.Mas também denuncia o sistema que o escraviza. Euclides histó ria", que se chama "Judas Asverus". Sua predileção é pelos
descreve o trabalho do seringai: a construção de "estradas" que caucheiros, os do lado peruano, que trabalham por conta própria
separam os grupos de árvores, a extração, seguida da entrega a e ext raem cortando as árvores, diferentemente dos seringueiros,
um capataz - "homem de co nf'1ança" -, o castigo. por nao trazer que extraem sem arrancar as árvores:
. .
suficiente goma, a 1mpos
· s1·b·1·d
1 1 ade de mudar de lugar sem pagar
, .
a d1v1 da contraídª· É uma d'1v1•da que começ Deste modo o nomadismo impõe-se-lhes. É-lhes condição inviolável
a lá no Ceará, no
caso dos nordestinos migrantes, de êxito. Afundam temerariamente no deserto; insulam-se cm sucessivos
que não se detêm apenas na
entrega das ferramentas e do , .
. • . mm1mo necessário para a sub-
·
sit· tos e não reveem nunca os caminhos percorri·dos. Condcnados
ao
s1sten cia - uma caçar01a, uma . . desco nhecido, afeiçoam-se às paragens ínvias e inteiramente novas.
carabina Wmchester, feijão, sal

138 t39
alhista, uma justiça austera e uma forma qualquer de
Alcançam-nas: abandonam-nas. Prosseguem e não se restribam nas lei trab
q ue o vincule a sua terra.
posições às vezes arduamente conquistadas (Cunha, 2003: 101 ). hornestead,
se consol ida na descrição das condições de
Sua d enúncia
m meio que é majestoso e hostil ao mesmo tempo.
Entre estes homens fortes, admirados pelo escritor brasileiro, e wibal ho, em u
núncia de Valcárcel, está longe de ser panfl etário.
os espoliados das "estradas", aos quais não p erdoa a submissão, Corno a de
exto, como veremos, o tom é conseguido com a
há uma hierarquia. Civilização, barbárie; a dualidade organiza Se naquele t
plicação, a história e as provas concretas, em Eu­
os motivos, tensionando as linguagens ao se aproximar da rea­ des crição, a ex
a construção é diferente. Apesar da informação
lidade. O cauch eiro não é apenas um tipo inédito na História , clides da Cunh a
concretos, o que ele faz é interpelar o leitor a
afirma, é principalmente antinômico e paradoxal, um civilizado precisa e dos dados
presente na construção da linguagem . A
que se barbariza, de uma brutalidade elegante, de uma elegância partir da pulsão estética
tam seu interlocutor, assim como
sangrenta; no olhar de Euclides da Cunha, é o herói de uma Amazônia, o rio, a selva conquis
do "Judas Asverus".
terra sem lei. ele é conquistado pela ternura no episódio
a realidade
O discurso do escritor brasileiro não tem imaginário prévio; Aqui não existe imaginário prévio, há princípios, mas
.
tem princípios com os quais medir a realidade, e o resultado é se encarrega de projetar sua porosidade na escrita
uma linguagem que, sendo aparentemente ofensiva, humaniza a O se gundo texto, E/ proceso dei Putumayo y sus secretos
suposta barbárie do trabalhador do látex, tanto em seu intento inauditos, foi escrito por um jovem advogado de 32 anos, Car­
descritivo do universo real e simbólico d eles, como em sua de­ los A. Valcárcel, e publica do em 1915, algum tempo depois, em
núncia. O seringueiro rude, afirma, não se rebela, não blasfema, razão do assédio a que foi submetido seu autor, com imputações,
não abusa da vontade de seu deus com pedidos. "É mais forte; pers eguições e ações judiciais.
é mais digno. Resignou-se à desdita. Não murmura. Não reza" Trata-se de um te xto qu e narra, de nuncia e mostra os docu-
(Cunha, 2003: 118-119). Está convicto de que Deus não pode mentos dos julgame ntos do caso Putumayo, procurando reunir
descer, para se sujar, no meio daqueles matagais. A comemora­ instrumentos probatórios a seu testemunho. Este julgamento é
ção que revela em "Judas Asverus" é uma p eça mestra. O Judas feito com base nas denúncias de um jornalista peruano, Saldana
feito de palha, ramos e restos de vestimentas é lançado ao rio Roca, em lquitos e Lima. Elas se referem ao tratamento e aos
de é, numa embarcação. Das margens, a multidão o apedreja,
� cri mes cometi dos pela empresa do peruano Julio César Arana,
pro1etando nele sua sorte, até destruí-lo. A leitura de Euclides nas prop riedades dos afluentes do rio Putumayo, chamadas
está de acordo com seus pnnc1p1· , · _ . La Chorrera e E\ Encanto, contra os "pobres e desvalidos ín­
os. A sensaçao de tnunfo que
.
ele encontra na multidão tem tamb'em outras l eituras . dio s" (Valcárcel, 1915: 3). Ali o autor denuncia os delitos de
, . s,
s1m bohca
assi.m como o castigo tena, . sem duv1, .da a I guma, em sua vida, menti ra, roubo, incêndio, estupro, env enenamento e homicídio,
.
outros destma tários culpados. agravados com os tormentos mais cruéis, como o fogo, a água,
A leitura - euclidiana - d . 0 chico te e as muti lações.
. a v1da dos seringais do Alto Purus
possui um tom de denuncia , . , bem como uma proposta de pe-
1 o urgente de medidas
d"d que sa 1vem aquela comunidade, uma

140 141

\
A s denúncias do jornalista peruano não prod .
. . uz,ram muito
to nu m sistem a dommado pelo poder de Arana. pouco dcpo1.s,
efei .
dan te norte-amencano , Walt .
Hardenburg, apo·s uma via-
um estu
gem a ventur eira pela r egião - "paraíso do de mônio" ,como ele a
chamou - publicou em Londres, sede da companhia de Arana e
portanto,com implicações no assunto,sua denúncia. o escândal�
ganhou, em 1909, repe r cussão internacional, e o governo inglês
s e viu obrigado a faze r uma investigação, pressionado também
pela Sociedade Antiescravista e de Proteção dos Aborígenes.
Esse discurso é pouco conhecido no continente e também fora
dele. Normalmente,a história escrita,a mem ória oficial,preserva
a versão hegemônica,ou seja, a voz que, no julgamento concreto
da época e na consideração geral dos faros, acaba se rornando
a voz da verdade. Entretanto, neste caso, a voz hegemônica, a
Figura 38 - Huitotos escravizados, numa fotografia instan
· tânea tomada no momento d0 voz oficial dos tribunais de justiça, no nível internacional, aca­
escan
• da Io que produz1u o caso Purumayo
bou sendo apagada. Assim, uma das situações mais dra máticas
da história da América Latina e, concreta m ente, um episódio
fundamental na destruição do mundo indígena na Amazônia
foi maliciosamente esquecido, silenciado, calado, de modo que
o problema suscitado mal é le m brado. É uma situação não
discutida e nem arualizada pela pesquisa histórica, salvo por
pouco estudio o da Amazônia. Recente m ente, com o esforço
do grupo de pe qui adores do Monumenta Amazônica,começam
a er reeditado os textos perdidos. Se na história do continente
latino-americano e ta região é praricamente inexistente, imagine
como ficaria um episódio sobre o qual tentara m retirar toda
visibil idade da memória regional.
o dia 15 de novembro de 1912, a Câ mara dos Comuns deu
0 golpe final sobre os negócios de Ara na e abriu uma investigação

que teve grandes repercussões no governo peruano. A imbricação


entre o poder judicial e político com o poder de Arana não era
pouca, e em sua resolução entraram em conflitos com outros
problemas internos da região co m o as disputas limítrofes com
, , : "É
Colômbia e Brasil. O escânda
· lo era internacional, porem
1111POrtante assinalar, e m comparaçao - co m casos semelhantes,

142
143
que todas estas medidas serviram para dar celebridade ao d uque onfunde o Peru
com alguns funcionários delin
que ntes e com
de Nolfolk, a Roger Casement, ao próprio Harde nburg, mas :lguns crimi nosos" (�alcárcel, �915: 2).
não influíram muito na vida dos índios do Putumayo" (Souza' Val cárcel fala, assim, a pamr de uma situação de cidadão
1994: 133). de patriota peruano e de humanista
a cusado de traição, que sai
em def esa da justiça, e mais concretamente , dos indígen o
as. que
0 sujeito da
enunciação reivindica não é somente a definição ética
de seu lugar na conformação do relato dos fatos, nem apenas
de sua condição patriótica ou a defesa dos índios. Seu discurso
adq uire a angustiosa tensão de quem revela uma realidade, que
não quer ser aceita como lugar da verdade e nem da memória. A
tensão de revelar fatos a uma estrutura de poder que, no fundo,
desejaria esquecê-los. Por esta causa é que o relato da história
termina com um tom de reafirmação:

A matança dos trinta índios antes mencionados, pertencentes às


nações (subtribos) dos 'Puineneses' e 'Renicuenses', está assim acredi­
tada; 1 º. pela confissão de um dos assassinos; 2º. pelas declarações de
testemunhas presenciais; e 3 °. pelo reconhecimento do corpo do delito;
e segundo a legislação do Peru, como a de rodos os países cultos, não
Figura 40 - Sir Roger Casemenr, o enviado do governo inglês era necessário mais para ser provado um crime (Valcárcel, 1915: 34).
para informar acerca dos desmandos no Putumayo. Ele revelou
em seus relatórios a realidade da situação dos indígenas
1 essa afirmação, fica evidente o desejo de construção nacional
O jovem Valcárcel conheceu os documentos do processo e sua formulação sintetiza as três funções do sujeito que enun­
contra Arana no papel de juiz e foi acusado de favorecer as cia. Em sua detalhada exposição dos crimes, o tom de Valcárcel
aspirações da Colômbia, bem como de apoiar o governo inglês.
não arrefece e seu discurso avança pela acumulação dos fatos
Seu texto é uma tríplice defesa: dos indígenas que trabalharam crim inosos e das astúcias para esquivá-los. A exposição procura
na empresa de Arana, do governo de Billinghurst, do governo dar respostas, em sua pormenorização, ressaltando não apenas
peruano e, finalmente, de si mesmo como juiz. Por esta razão o horror, mas as inesgotáveis artimanhas de que se vale o poder
seu texto assume o tom declarado da verac
idade, a partir das do criminoso para escapar da justiça, um mecanismo baStªnte
provas documentadas, as provas apre
sentadas no processo. conhecido na América Latina.
Escreve Valcárcel: "Vou, pois, dizer
toda a verdade, sobre est e O terceiro texto ' o último a sercitado aqui, é conhecido por
infeliz assunto, a verdade nua , .
, sem eufemismos nem reticên­ todos nós desde a infância· trata-se do romance La voragme,
cia_s·:: Assume a convicção de . '. .
"que prestarei um serviço a meu va de
pais , anota, porque na
d 0 colornb1ano José Eustas10 Rivera , de 1924 · A narrati
internacionalização desta hist ór ia "se R.tvera, também na Comissão de L.imites • , surge do conhecimento
._
das reg 1oes venezuelana e coloro b.1ana pn·ncipalmente. Em La
144
145
vorágine, Rivera ficcionaliza sua experiência com um curioso Então, de sconjuntad o pelo cansaço, presenciei o espetáculo mais
trejeito de modernismo tardio, salpicando sua linguagem de terrível, mais
pavoroso , mais abominável!: milhões de piranhas caíram
inovações com diálogos de matiz regionalista, com um protago­ sobre O ferid
o, entre um tremor de nadadeiras e centelhas, e
apesar
nista que apresenta uma mistura de mal-estar finissecular _ qu e agi tar as mã os e se defender, descarnaram o pobre num segundo,
dele
a urbanização nascente enfrenta - e que sem poder decidir sua arran ca nd o a carne em cada mordida ( ... ) borbulhava a onda num
a
vida, é conduzido por um destino que só lhe depara desgra ças . fervor dantesco , turva, trágic (Rivera, 1985: 200).
Desse modo, ele aparece no meio dos caucheiros, o que permite
ao narrador recriar suas condições de vida no meio da selva.
A força monstruosa da selva, apresentada num marco ex­
Essa narrativa é lida tradicionalmente como um ícone do odulação frequentemente assum ida pelo relato
Pressionista - m
-, é como a dos cauche1ros. que perseguem o protagonista. No
romance da floresta. Ao voltar a ela, depois de muit os anos, fiz
uma leitura diferente. Tenho a impressão de que o núcleo cons­ marco dessa narrativa, de evocação magnífica e monstruosa, a
trutor da linguagem ficcional tem a ver com a vida de violência, floresta tem uma vida simbólica que funciona ao compasso do
injustiça e horror dos caucheir os. A floresta, numa magnífica horror social. Com sua lente também tocada pelo positivismo,
construção discursiva, j oga aqui um papel funcional em relação José Eustasio Rivera constrói um discurso da reivindicação que
a este centro. O herói é um pers onagem romântico-modernista, se articula com o da floresta, na paridade simbólica d o perigo e
cuja atitude de vida é a insatisfação. A estratégia narrativa oferece do poder: "A selva os devorou!"; esse final de efeit o estar reced or,
o texto como um diário, um relato de sua existência em meio que se repete com frequência, tem neste marco outras leituras.
à violência do mundo do caucho , d o s caciques regionais e dos Nesse segundo discurso configurador da Amazônia no período
capatazes. A floresta aqui tem pouca autonomia - muito menos do caucho, o dos intelectuais, o imaginá rio não está predefinido,
que no texto de Euclides - apesar de continuar opulenta. c omo acontece com o discurso dos primei ros colonizad o res.
É construída em um discurso consoante com o universo social, É um relato pro dutor de novas imagens, que desconcertam e
complexo e emaranhado , do caucho - o poder, o roubo, o crime, inco modam por sua violência. A região amazônica é construída
o estupro-, que projeta sobre ela seu t om. O trânsito por ribeiras ago ra em função de uma experiência vivida e, nesta expe riência,
e afluentes, o Vaupés, o Yurupari, o Caroní, não produzem com ela aparece na retórica paradisíaca que alimentou os relatos dos
sua presença o efeito de beleza, mas o de grandiosidade e poder primeiros cronistas, na ilusão de um novo Eldorado, lugar de
ilimitad o. A selva é um mundo que segura e asfixia, depois de en riquecimento ou então do Paraíso, para aqueles que procuram
seduzir. Os caucheiros também foram sed�zidos pela ilusão de urna vida melhor. O problema é que, para conseguir tudo isso,
uma vida melhor, já que a trama do aviamento envolve cada um os primeiros escravizam os segundos, em geral indígenas ou imi­
deles até asfixiá-los. A resolução do conflito se encontra no gesto grantes norde stinos. Então, o paraíso se torna inferno, cárcere
final do envio de um a carta, ao cônsul da Colômbia em Manaus, de grades verdes, entre m o squitos, umidade, malária, insetos,
que denuncia o envolvimento do protagonista, Artur Cova, na víboras, faunas animal e humana.
o
morte ímpia do "engancha
d o r" Barreiras. Nesse episódio final Esse discurso é enunciado a partir de sujeit os co mpromen -
tem ftm O confl'1t o pessoal, ao mesmo temp - dai, O tom e a função que
o que a morte exerce dos com a construção de suas naçoes, . .
ª função de uma justiça social. Diz
assim o texto de Rivera, entre procuram assumir, que e o de se apresentar corn o uma ef1c1ente
,
pontos de exclamação : . pelar pela
denu, ncia , construída para co nvencer pe1 a razão e inter
146 147
emoção, a partir da ética humanista dos construtore s de naçã . 14, qu e é a q ue t�m�s tratado no fundamental. Para
o 1870 e 19
Para conseguir isso, o sujeito que enuncia se desloca por p onto pos , como os manqu itares, a situ ação foi dura. Havia
s a1 uns gru
álgidos de uma nação de águas e abre, em seu temário e enun­ � ocidentalizados que outros, mais "racionais". Os
gr pos mais . , . "
ciação, a dualidade do inferno e do paraíso vista pelos cronistas itares e os p1 aroa eram "mais
. m ·
d10s . Assmalam alguns
mariq u
missionários, a Inquisição e os viajantes cientistas . Acontece qu:
testemunhos:
aqui o inferno diz respeito fundamentalmente ao universo do
s
homens, tanto em suas relações, como em seu perfil. O meio
Os único s mais indígenas que haviam eram os mariquitares, era a
apenas se defende da ação humana. O cur upira, invisível no viviam como escravos(...) se os mariquitares se
s única raça que saía( ... )
textos, tem aqui uma presença permanente. . ureavam (se mandavam da área de exploração), teriam que escapar
Os três textos foram escritos na perspectiva de produtores de pic
encontrados, porque eles os buscariam
comunidade; são disc u rsos, como dizíamos, de constru ção nacio­ para Iugares Onde nunca. fossem . . , .
os manquitares e ate os gumdavam
nal e cada um advoga pelo que é seu: Colômbia, Peru e Brasil. onde fosse Preciso Traziam presos
de cabeça para
(penduravam)• Conheci aqui dois homens guindados ,
No entanto, ao construir individualmente um relato da nação, dos e, num pe de
· , po rque tinham se picureado, foram encontra
b a1xo
eles estão operando simultaneamente sobre um relato coletivo . sei quanto
abacate que tlflha por ali , foram guindados pelos pés. Não
que constrói um âmbito supranacional, o da Amazônia, em um
tempo ficaram assim (lribertegui, 1987: 309).
momento de sua história.

Entre os trabalhadores, os que recebiam pior tratamento eram


AVIADOS E INDÍGENAS os indígenas, afirmam os testemunhos venezuelanos:
Como conseguir esc utar as vozes dos trabalhadores do cau ­
e
cho? Existem estes textos? Sob que formas? O incêndio dos Nunca pagavam aos indígenas com dinheiro, apenas mercadoria
cara, que nunca terminavam de pagar. Ai estavam os íquez [sic) e os
Arquivos dos Tribunais de Iquitos, alg uns anos atrás, destruiu .
Patino, que connnuavam com o mesmo sistema, · roubando os pobres
documentos que certamente poderiam fornecer muita informação '
.md1genas.
sob a forma de denúncia, testemunhos, julgamentos. Encontra­
.
ali; pagavam, mas dmam aos. . "Você deve tanto", e tinha o
mos, entretanto, de outra maneira, a voz dos aviados, através de indígena que voltar a trabalhar.
· · s, tínhamos que pegar
alguns poucos testemunhos escritos, da memória, do mito, e por Este sistema d e avance contmuou. D ev1amo
. e
meio da poesia oral, a chamada literatura de cordel. nossas tralhas e subir pro monte e erab aIhar até terminar de acabar,
eles então já não trabalhavam mais.. A gora Ja e dinheiro' têm carros,
·, t'm
A memória da época do caucho na Venezuela está muito pre­
sente e foi registrada numa pesquisa, cuja finaÍidade era conseguir já estão ricos (lribertegui, 1987: 307).
0 diploma de antropólogo.
Seus materiais, de grande valor, foram trabalho
reorganizados por seu autor na forma de
um livro (lribertegui,
Em relação aos sistemas de recrutamento para o
. ofer ecem
1987). Através destes doc umentos,
podemos conhecer a voz nos seringais ' os textos que .mveSttgam 0 período
dos trabalhadores do caucho, ou . m tarob,em o trato paru. cu 1 que
abundantes detalhes e registra
ar
a memória de testemunhas da
é�oca. Neles, a situação é clar era dado às mulheres:
a: é um período de excessos, espe­
cialmente O da primeira exp
loração dessa matéria-prima, entre

148 149
os, Zumaeta, C arlos Lo ayza, Saravia. Miguel Loayza era
Povos y e 'kuana das seis regiões fluviais desesp eraram-se ao ver seus dois irm ã
ana mandavam seu peão pra matar. Sof rida era a
habitantes amarrados, costa com costa, com fortes arames. Estas cenas bom- Os Ar gente.
er es trab alha vam com s e us meninos nas costas. Minha
de incêndios de aldeias ye'kuana foram mais g rav es n o Padamo, Cunti­ As m ulh mãe
namo e Alto Ventuari. M ais de vinte aldei as y e'ku ana foram arrasadas. rn seu de do quebrado morreu, porque não queria homem. Elas eram
co
homem. E os homens pegavam qualquer menina que
As mulheres ye'kuana foram viol entadas e tiveram seus peitos ampu ­ dadas a qu alque r
veio pra cá no tempo da con fusão e foi trazida
tados, as g rávidas foram destripadas. Os ho mens tiveram os d edos das qui ses sem . Minha mãe
p elo Loayza .
4
mãos co rtados, ou mesmo a munheca, para que não usass em os remos
ao navegar, tinham suas p antu r rilhas aberras, co r tav am seu n ódulo

sinovial, com facões a bri am g randes feridas ao lo n go de seus corpos No imaginário dos indígenas, no caso venezuelano, afirma
e nelas passavam sal; perfuravam suas cabeças com pregos ou puas Irib ertegui, eles diferenciam entre patrões "bons" e "maus".
de estacas; eram amar rados como nos cepos chin eses e se conver ti am Eles inte r iorizam, no processo de ocidentalização, a ideologia
em alvo para os ti ros de revólver etc., junto com out ras c ena s do mais do domina dor. É por isso que distinguem en tre o "índ io-ín dio"
absurdo sadismo que é impossível mencionar (B arandia ran, 1961: 296). e O "raciona l", que é mais tra nsculrurado. Há um refrão que
se repete até hoje: "Nem o índio é gente, nem o casabe é pão."

Uma segunda leva de materiais é possível de obter a través de Dizem ta mbém que os maus e ram os capatazes, que os p atrões
entrevistas pessoais a sobreviven tes, filhos de antig os trab alh a ­ ign oravam o que acontecia, argumento usado perman entemente
do res, a memória de t ercei ros. E ste é um trabalho por realizar e pelos barões, como no caso de Arana, que declarav a ignor ar tudo
de forma urg ente, uma vez que os s obreviven tes e stão mor rendo. o que acontecia em suas propr iedade s, apesa r de ter estado ali

Como exempl o, temos o testemunho or al d e Virgínia, de 60 present e em várias oca siões.


an os, uma m ulher huitoto que e nt revistamos n a comunidade de Um te rceir o tipo de registro, em que é possível encontrar a
Puca Urquillo, próxi mo ao rio Ampillacu, Peru. A comunidade voz dos aviados, os t r abalha dor es da bor racha, está no un iverso
foi diminuin do desde o período da borrach a e hoje se localiza mítico. O mito, na medida em que é "memória, reflexão, é sim­
no Amazona s ocidental, a algumas horas de Loreto , Colômbi a . bolização e ciframento " (Nino, 1996).
Comento com ela que os huitotos fo ram, dos indígena s da O funcio namento do mito, contrariamente ao que se poderia
região, jun tamente com os boras, os mais afetados na época da entende r como mera significação de estruturas susp ensas no
borracha. Ao ver que se emocion a ao respon der, pe rgunto se tempo apresenta uma dinâmica que encerra tanto a memória,
sa be algo disso. Ela conta: quanto o presen te, projeta ndo-se no futur o. Ele a briga , seg undo
Nino," propriedades de coe rência memorialista, coesão comun i­
Dos patrões, pois. Minh a mã e, Jacinta Ordónez m conto qu e tária, info rmação e inter pretação". É um relato que se suSten ta
, e u
muito batiam neles. Os brancos obrig avam em diversos níveis revelando e ao mesmo tempo en cobrindo.
todo mundo a tra balha r
como animais e depo·s 1 targavam. lio dos trabalh avam . Não trazi am N o caso do imagi�ário em torno do período qu e n os interessa,
muito quilo. Eles em cavaio a1., M maneira,
trouxe? E era pouco · Bae'i am. C
e d.1z, Pe dro, quantos quilos voce 0 mito assume
uma função de "có digo secreto". Dessa
. . o1 ocavam em calabouço. Chorrera era é possível encontrar em alguns relatos da comunidade huitoro
que dlZlam. Muito sofrera
m eIes, d'1zem, muito sofreram. Estava m em ce rtos elementos míticos e n criptados que, sob a função do_ relato
Porcotue,, por Chorrera ( ._ • , -
regi ao do Putum ayo). Era Luis A rana, eram · • ntecimentos
com o unive rso 1maginano ou como cr0• ni·ca dos aco
150
151
os outra forma discursiva que nos oferece infonna­
relacionados com a comunidade, encobrem vários fatos. A n
ar­ Encontram
rativa huitoto teria dois ciclos principais para escutar e narrar• -0 ao ca
lor dos próprios fatos históricos. Trata-se da oralidade
chamada liter�tura de c�rdel.
;:ética da
mos acima, a maior parte dos trabalhadores
A história de Gitoma corresponde ao primeiro ciclo. Porém , mes mo Como assinala
aos seringais era originária do Norde ste brasi­
pertencendo a ele, a narração está dotada de uma grande elabo ração ue se dirigia m
geográfico anualmente castigado pelas secas,
narrativa e de estratégias de constituição de significantes que enc err am �ir o, um terri tório
de vida habitual é ser "retirante", uma espécie de
significados encobertos. De fato, trata-se de textos cifrados, para usar onde O modo
lificado que, junto com sua família, caminha
outra vez um termo de contato. Assim, alguns episódios constit uem a ambulan te desqua
errando pela s estradas em busca de terras para trabalhar. Como
crônica secreta das guerras da borracha no século 19, bem como do
Apocalipse da Casa Arana e das posteriores guerras de fronteira ( ... ) se sabe, no Brasil há períodos cíclicos de grande fome no Ceará.
Aqui temos um texto de dupla simbolização, semelhante ao que os Assim, essas pessoas emigravam; em geral eram homens solteiros,
criptógrafos denominam envelope fechado, no dicionário da espiona­ atraídos pela possibilidade de juntar dinheiro para retornar, ao
gem (Nino, 1996: 214). cabo de alguns anos - o sonho dos mjgrantes - para junto de
suas famílias. Dificilmente isso acontecia. Um poema da época,
precursor de rodo um ciclo de literatura popular em verso, pro­
duzido em torno dos seringais e cantado em 1913, conta a sorte
de um dos que conseguem voltar, narrando, em sua despedida,
as condições de vida do seringai. É um texto único e precursor
de uma linhagem literária:

Vou-me embora, vou-me embora


pra minha rerra natal.
Diabo leve a seringa
e o dono do seringai.

Mais adiante, continua:

Nesra terra de miséria,


de riqueza apregoada,
que parece ser mentira
de uma rude caçoada,
eu não quero mais viver
vou tocando em retirada.
. '. - ·��
F'igura 41 - ermgu
Daquela exp eriência sobrou pouco. Não traz dinheiro, diz,
eiros e huirotos, no Putum
fronteira entre Peru e C ayo, localizado na
1• 6.1a
oom
apenas enfermidades:
152
153
De carne velha inda levo
minha barriga inflamada
de gordas só levo as pernas,
de uma moléstia malvada; dinheiro...nem um vintém
só levo conta e... mais nada.

E termina com a alegria do futuro próximo:

Adeus, oh! Terra de lama!


Vou plantar meus gerimuns,
dos veados ver a cama
e os despertar dos anuns,
viver com minha Joana,
sem o ferrão dos piuns.

No Nordeste, a oralidade em verso tem uma importância


fundamental, pois é o modo da literatura no mundo popular.5
Esta literatura, que foi introduzida no século 19 no Brasil, por
meio da publicação de folhetos que contavam histórias da Idade
Média, como Genoveva de Brabante ou as histórias do Rei Artur
e os Doze Pares da França, se tornaria popular no Norte do país,
que, além de se apropriar criativamente destas histórias, incorpo­ Figura 42 - As ca a '·aviadoras .. cobriam as necessidades financeiras da exp lo r;�ão
na selva, cm rroca de ex1.genc1as
_ . · , aviadora em Manaus, 1 9
· s. Casa
d esproporc1ona1
raria as próprias aos relatos. Com a migração dos nordestinos,
o drama da borracha seria também cantado por esta literatura Ali, em seu segundo texto, ele narra a vida de seis anos nos
na Amazônia, e Belém do Pará se converteria num importa nte seringais, na convicção de que:
centro de difusão destes folhetos. Havia ali uma editora e uma
revista dedicadas a esse trabalho, chamada Guajarina Ela falava Hoje sei que o Amazonas
.
sobre a vida dos seringais, no momento é um sonho vil, enganoso.
em que era vivida e bus­
cava sua própria expressão, adiantan
do-se à expressão ilustrada que
que, salvo no caso de Euclides O texto começa com uma caractenz - 0 dos patrões,
· aça
da Cunha, foi muito mais tardia. .
Outro poeta, um dos mais nesse momento estão vivendo a cnse d a queda dos preços da
conhecidos do Brasil, é Firmito .
Tei eira do Amaral. Em . . e tentam ganhar dinheiro, apesar
borracha. Não têm credito
� um folheto de 1916, ou seja, em plena de­ . .
da cns. e, roubando . ueiros. O senng ue1ro
cadencia dos seringa1·s, narra , · ·' · o trabalho dos senng .
um texto intitulado De
em verso sua propn a expenenc1a em
spedida do Piauh. O rigor do Amazonas.
que nao- °
foi embora em 1911, quand a crise come
çou, lª, e, re_
_
em Belém '
f,em da situação. Os patroes _ bons quando estao
_ sao
.
154 155
proc urando trabalhadores para levar para o interior da s e1v donem esta fantasia do Amazonas como o Iugar onde
a que aban .
Nesse momento, eles prometem tudo, bons empregos e a po ão resolver seus problemas financeiros.
s- v
sibilidade de juntar dinheiro, mostrando somente as vantage
ns
para convencer. Quem de lá volta com vida
mala,
e quatro contos na
Para ir é muito fácil escapo u do beriberi
o diabo é para vir. da emboscada , da bala,
pode creer que todo dia
�ma vez dentro da selva, a volta já não é mais possível, es­ com Deus e os anjos fala.
pecialmente por questões práticas, não há como regressar sem
anuência do �atrão. É, então, quando la mentam a hora em
qu: Um importante movimento social aconteceu na década de
nasceram; nao lhes vendem suficiente bebida, são enganad
os 1920, no Brasil, que aum entou a tensão social nas colônias,
com bebidas alcoólicas, suas dívidas aumentam , já q ue têm
de lugares designados para o cultivo daqueles que, entre outros,
pagar com "bolachas" de borracha e estas estão retidas, tendo
de deixavam o trabalho da borracha e também dos seringais. Trata­
trabalhar para conseguir mais, ou seja, estão à m ercê do sering
ai, -se da revolta do Jari, chamada assim pelo latifúndio do coronel
que espera que eles se endividem cada vez mais. José Júlio Andrade, revolta liderada pelo retirante Cesário de
Medeiros. Dois folhetos da revista Guajarina resgataram do
A luta do Amazonas silêncio estes acontecim entos, versejados sob um pseudônimo:
para quem tem saldo ou não,
não há quem seja feliz O senador José Júlio
tendo um patrão ladrão tinha no seu seringai
que com uma bala de rifle muita gente escravizada
paga o saldo do cristão. morrendo, passando mal,
e cujo fim quase sempre
Se o freguês tem bom saldo era na certa fatal .
botam-lhe uma emboscada
quando pobre alegremente O interessante deste período, na sequ ência histórica dos dis­
vai cortando sua estrada, cursos amazônicos, é que agora podemos encontrar a pluralidad�
ouve O tiro, sente a bala; das vozes. Se antes tínham os apenas a voz hegemónica, hoie e
está a vida acabada!
possível recuperar, co m certa consistência, as outras vozes que
narram os mes mos acontecimentos a partir de outro lugar. Nos
O texto termina com
uma cone1usao - , um a m ensa gem , que o .
eªsos antenores, 1 ntes da conquist a,
tanto no d.1scurso dos v·a1·a
poeta narrador quer tr . .
ansm1t1r a sua gente, os nordestinos, para como no dos viajantes ilustrados, a voz dO outr O somente sena
passi,vei de reconstrução, ainda assim te, a partir
. fragmentariamen

156 157
Porém, a partir da segunda metªde do
dominan te. . seculo 19 ' as
podem ser rastreadas, e é O que proc
v oz es plurais , ur amos fazer
, grafas deste capitulo .
nos para

APOGEU E DECADÊNCIA DO
oURO ELÁSTICO
o auge da bor racha seguiu o ritmo do crescimento industrial
europeu e
norte- americano. A indústria de bicicletas e automóveis
era um de seus moto r es mais pujantes. Porém a extração da maté­
ria-prima na Amazônia já ap r esentava problemas. O primeiro foi
0 roubo d e uma g rande quantidade de plantas, que deixa ram as

fronteiras b rasileiras de modo ardiloso, apesa r do férr eo co ntrole


alfan degário que permitia ao Brasil, até 1864, manter fechado
o r io Amazonas para a ci rculação internacio nal. A importância
da borracha, no entanto, já havia levado a Inglaterra a estudar a

possibilidade de criar fontes alternativas de abastecimento. Assim,


os ingleses começaram a desenvolver plantações de seringueiras
na Ásia, do ripo Hevea, graças ao contrabando realizado por
um de seus úditos, chamado Wickham, que constituiu o n úcleo
dos eringais que mais tarde seriam desenvolvidos, depois de um
período d e dificuldade , nas colônias britânicas. Elas ofereceram
grande concorrência à borracha extraída na Amazônia.
O egundo e definitivo rnotirn foi a grande queda dos p reços
em razão da produção da borracha sintética. Durante a Segunda
Figura 43 - A oralidade ue d eu f Guerra Mundial houve um bre,·e momento de cr escimento do
.'q orma escrita à literatura de cordel, era ilustrada
Por xilogravuras d e em1o caracceríst·
ico. EI as representam, neste caso, perso nagens do proce sso extrativo, lid erado pelos Estados Un idos. Após a cir­
imaginário popular
culação da libra e terlina, aparece u o dólar americano, rambém
Em Xilógra(os nordestinos, Fun
dação Casa de Rui Barbosa, 1977. chamado na região de "bacama rte". Em alguns lugares, isso
significou urna mudança nas con dições de extração, tal como
do discurso do poder, a que1
e que nomeia a realidade amazônica, expressam testemunhos da região venezuelana. No en ta
nto,ª
esta be 1 ecendo com ela e so cisiv .
bre ela o poder da cidade letrada. É maioria dos estudiosos não considera a variação de a
o caso dos conq uistad lha da Bor .. a,
rach
ores e tambem dos viajantes cientistas. Aqu1. aparece o episódio. da chamada Bata
Eles rep resentam o pode nia brasileira ,
r 1 errado, do sistema de conhe ci me nto um novo momento no ciclo d o produto na Amazô

158 159
d os. Todas as nossas atençõe
. o Brasil e dos alia s e preocupações
que determina a segunda grande migração de nordestinos para vi ro, n.a d s, neste grave mome
ar o ri en tada nto da nacionalidade, para
a região. foi O momento em que os japoneses ocuparam as d evern est .
o Chefe d a Nação Getúlio Vargas, obedec endo-o com
do d .
plantações inglesas no Oriente e o governo de Getúlio Vargas o c ornan .
. e boa vontade, a fun de que mais tarde, vitoriosos, olhemos
entrou na guerra para apoiar os aliados. O governo brasileiro energia .
o O passado, d e cabeça erguida, entregando a nossos filhos
recrutou uma grande quantidade de migrantes, entre 19 43 corn orgulh p, .
e e nos sos antepass a dos: a ama estremeci.da, com sua hºisto- ,
1945, com o objetivo de trabalhar na extração do látex. Era 0 o leg ad o d
, . de amor ao Bras1·1 (J ornaI O Acre, Rº10
a de nosso exercicio
movimento chamado de Batalha da Borracha. O destino dos n· a acre sci.d
2 30 maio 1943, em Silva, 2000: 59).
homens eram os seringais, mas, para efeitos do recrutamento, Bra nco, n. 74 '
foram convocados através de um discurso de combate, como
tropas de guerra, soldados da borracha; nesse marco e sob esta
ideologia, novamente foram levados, a lugares distantes e in­
salubres da Amazônia, grandes contingentes de trabalhadores,
em sua maioria, nordestinos. O problema radicava no uso feito
pelo governo de propaganda enganosa, que apelava a instâncias
superiores do patriotismo, além da migração compulsória a que
foram forçadas legiões de brasileiros. Foram embarques dramá­
ticos, afirmam os historiadores da época, que ficaram gravados
na memória popular. Às vezes, a mulher era enviada ao Sul e o
marido ao norte (Medeiros Filho; Sousa, citado por Silva, 2000:
49). Tudo se justificava pela instância instaurada pelo discurso
patriótico, que fazia da Amazônia um grande campo de batalha.
Entre 1943 e 1945, foram levados mais de cinquenta mil tra­
balhadores e, pelo tom dos discursos, é possível prever que seu
objetivo fosse atrair maior quantidade de força de trabalho para,
como soldados, levantar-se "em defesa da pátria ameaçada". Este
era o tom predominante:

. . no tra b a Ih0 de extração do látex


Seringueiros, ( ... ) o momenro que a Pátria atravessa não deixa a Figura 44 - Uma indígena e seu filho
nenhum filh o do Brasil o direito de se esquivar do cumprimento do
Mas este não foi o único subterfug . d propaganda
, io ªoficial,
dever. O aguerrido esforço que empreendemos para derrotar os sol­ . . . . . . governo de Vargas.
mass1f1 cada e d1ng1da estrategicamente pelo
dad os tiranos, assim como as batalhas que enfrentamos nos campos, ma dimens ão
A A mazônia também era apresencada na mes
fábricas, mares, céus, escolas, casas, igrejas etc., estão exigindo de rodos . . paraíso, como
v ista pelos primeiros conqu15tadOres ' como um
nós - solda dos da liberdade - uma maior e melhor contribuição para a . . 1 para os
poss'vel
Eldorado, o lugar do enriquecimento rá P,do,
)61
160
que fizessem parte do exército convocado pela nação· O sen. reclamar, afirma a historiadora que
n. Não se po dia colhe esse
gal se convertia, uma vez mais, no espaço da poesia pop ula o i m e nto , já q ue os _donos dos seringais eram os donos da
r. O dep _ _
contraponto (desafio) de Antônio Marinho com Severino p·lll expediam 1 ust1ça _e eram os senhores da vida e da mor­
to v erdade,
representa com h umor a experiência: ar contras as leis que demarcavam esse trabalho era
re. Reclam
um ato de re beld' ta, assim
· como vender para outro
cons1•derado . .
AM - Pinto foi pro Amazonas motivo para ser Julgado e condenado . Não cumprir
patrão era - . ..
para ver se enriquecia de prod uçao s1gn 1 f1cava ter sua comida retida e estar
co111 a cota
voltou pior do que foi passar fo�e. A prat . da escrav1'dão era comum
, 1c
destinado a . _ �
esqueceu o que sabia dos ser111ga1s mais mescrupulosos da região. A
entre Os donos
nem canta como cantava cl ui o seg u inte:
pes qu 1· sadora con
nem bebe como bebia.
Nas rrincheiras da Baralha da Borracha milhares de "soldados"
SP - Eu volrei do Amazonas
perderam suas vidas pelas enfermidades que os debilitava, sem receber
rodo cheio de defeito no
, · m a as isrência > abandonados pelos -comandantes" meio da
a Jllllll
batido da idade "baralha ", vítimas do descaso do governo e eus represencanres, além
velho cansado do peito, de rer lurado roda a ,·ida ( ilva, 2000: 62).
mas a boca de beber
ainda esrá do mesmo jeiro.

O rom deste contraponto já tradicional não é o mesmo de


outros casos, no quais e contavam história de vicia, relatos,
resgates da memória feiras com clrarnaricidadc, no mornen10 de
produção das imagen

A propaganda pra vir para a Amazônia era feira nas cicl.1des por
microfone... o bicho tinha uma boca desse tamanho, a,,irn ... Ahhhh...
Pepepei... Pepepei ... Pepepei... e aparre disso estava o grupo local.
Aquele grupo mais inreligenre... o Br:isil está em guerra ... ::1lisramcnro
para a Amazônia... Tarará ... e muiro bem, tem que ir para ,1 Annzôni:1
pra ganhar muito dinheiro ... em tempo de guerra, é tempo de
ganhar dinheiro em todo lugar... inda mais no Amazonas . . �eringal
.
0 seringueiro ganhava muito dinheiro ... não h:ivia sering:il ruim ...
rudo cheio... tudo rico ... um patrão bom ... melho
a r coisa ... n:io tinha
tristeza ... ames de chegar ao scnnga
· 1 rudo era bom... (Entrevista com F1g1ira 4 -'- · Um.1 vc, cxrr.11d� d.is arvores, a borracha era guardad a em "bolachas·'·.s
• do em sua
' l,ca
acn'fício i,np
Cícero Miranda Silva, de 80 anos,
em Silva, 2000: 28). qu,e rcsu 1 uvam ele v.ino� proce sos. •1n cor po rando
. o
produçõe,. O J r111.1zcn.rn1cnro ocorri a na ecapa f,na 1

162 163
Os estudiosos concordam que faltam dados mais claros par CAPÍTULO IV
a
se estabelecer O número de migrantes que enchiam os navios
rumo à Amazônia, em busca da sobrevivência no sonho amazô�
nico. No período de 1890 a 1910, ou seja, dentro da pr imeira
corrente migratória, o contingente que viajou para a Amazônia,
de acordo com os estudos de Márcio de Souza, chegaria a meio
MODERNIZACÃO
milhão de pessoas. E PLURALIDADE DE VOZES
Hoje, com os novos discursos que surgem dali, o Oriente
esquecido dos países andinos, a fabulosa região de várzeas e
igarapés nos remete ao desgarrado universo que foi revelado e
denunciado, no começo do século 20, pelas vozes que articula­
ram o complexo discurso da época da borracha. Os discursos
que moldam a espessura da história do látex na Amazônia apre­
sentam diferentes estéticas, diferentes propósitos, construindo
textualidades de diferentes tonalidades. Todos concorrem, ao
mesmo tempo, para a construção da complexidade de um dis­
curso de lógicas perversas, de desvios, num universo que apro­
xima a cultura amazônica de outros momentos das relações do
grande capital na exploração dos recursos na América Latina.
Os discursos posteriores continuam se localizando no verso
das dualidades utopia e fracasso, encantamento e ilusão, infer­
no e paraíso, deslumbramento e horror; hoje também evidente
através das vozes dos novos sujeitos sociais, que falam por si
mesmos- remanescentes (descendentes) de quilombolas, grupos
de sem-terra- frente a outros, que procuram definir o futuro das
populações amazônicas e da região, a partir das grandes metró­
poles e do exterior. Dessa maneira, aparece o novo e complexo
discurso atual, que se arma a partir da modernização resoluta
dos anos 1960 e 1970, bem como da exploração do petróleo,
da energia hidráulica, da indústria das madeireira s. Em sua
complexidade, é patente a cicatriz da violência ostentada pel a
Amazônia de hoje, a superposição de interesses que espre ita m
com avidez sua riqueza no presente e desenham o perfil dos de eXtração
F1.gur 46 G simb . ou o pen.odo culminante
oliz
problemas do futuro. ª · anm . pe1ros
. em Serra Pelada, 1 ugar que
d0 ouro,
durante a década de 1980
R.cvista
Manchete, jul. 1983.

164
A região amazônica, tal com o_ª, �emos hoje, no século 21, aís, c�me çavam a se _definir pe�a exploração do subsolo,
Su l d o p
teve m_1�10 n os ano� 1960 e 1970 xtrair as enor�es �•quezas minerais, o que determinou
eme rge de um processo que 1 visando e
os militares, naquilo q ue foi e ções de modermzaça o - estradas e energia _ que atrairia
com a participaçã o d o s govern On- as condi nac1
.
na 1 e o
.
mternacional. As estradas fluviais
capit a1 o
siderado o desenvolvimento da modernização da reg ião· Nesse g
o t a nde
. a' construção de hidrelétricas
período, a partir das profundas mudanças p roduzidas, co meça gar às g rand es rod ov1as,
deram lu , abertura de �randes buracos em
enormes dº1ques, a
ser gestado o que podemos chamar de quarto discurso de cons- a partir de eram esultado das mmerações. Tudo isso
crat eras, que r
trução da Amazônia. Uma vez que o Brasil possui a maior part fo rmas de
prejuízo das populações locais e do funcionamento
da superfície do território amazônico, suas mudanças repercute� ocor ria em
ecossistemas.
em toda a área. norrnal dos as o,
Depois do golpe militar de 1964, com a queda d o p residente Deste m odo, deu-se uma reorganização das áre de trabalh
emble mátic a a criação da Superintendência da
João Goulart, as fo rças militares ocuparam a Amazônia brasi­ na qual resulta
us, bem como a abertura d os três eixos
leira, perseguindo e dispe rsand o os principais líde r es políticos zona franca de Mana
de Brasília. Isso gerou o protagonism o de
democráticos, o que abriu caminho pa ra a proposição de um viários que partem
ento d e novos problemas, como, por
plan� de. modernizaçã o da regiã o, elabor ado no Sul do país. novos setores, o aparecim
adores sem-terra, localizados
Isto implic ou na entrada de capitais nacional e inte r nacional exemplo, o surgimento dos t r abalh
zônica, ou mesmo a expulsão
assim como na redefiniçã o do espaço e das condições de vid; pelo governo em torno da Transama
s de vida e trabalho. Sem
da população. No final dos anos 1950, a integração ge ográfica de trabalhadore s rur ais d e seus lugare
ra logo aband ona ram
da Amazônia com o Sul - na verdade uma proposta geopolítica apoio pe r manente do Estado, os sem-ter
de oportunidades
- já havia começado, através das rodovias. É po ssível perfilar seus locais e come çaram a circular em no t or
res rurais
u m núcleo ligado à indúst ria autom otora, assim como suas no seringai ou no garimpo, enquanto outros trabalhado
a de novos
indústrias adjacentes. Este polo industrial é intensamente esti­ desalojados produziram uma paisagem d esolador
mulado pelos militar es que, sob o discurs o da modernização da migrantes presos ao desemprego:
. . .
Am�zoma e sua mtegraçã o nacional, conseguem promover seu
rigem e
proieto geopolítico, através da const rução de rodovias. É uma Milh J res de familias fo r am retiradas de seus lugares de o
ntaram
decisão que ganha força com a subida ao poder dos militares e empurradas para a desagregação. Os conflitos pela terra aume
mo
a consequente instalação de um regime ditatorial, em colab ora­ em intensidade, a partir de 1970, produzindo focos de tensão, co
ça_ o elas classes civis dominantes. Este projeto foi col ocad o em na região do Bico do Papagaio. no s ul do Pará, ou n os estad os de

funcionamento sem que os habitantes da Amazônia t omassem Rondônia e Acre.
ou um
par te nas decisões · Escreve porto Gonçalves: "A construç ao - da O crescime nto da or ganização destes trabalhadores demand
rodo. v1aTransamazôn·1c a, d as h Iºd r e1, . re forço do sistema repressivo, com ameaças, pnsoe · • s, dep ort ações e'
. _ etncas de Balv1va . e Tucuru1, ·
a cna çao de novos espaços sob a tutela direta . fma1ment e, o puro e simples assassinato, com a co niven--�� p��
d o governo fede-
ra1 ( ·.. ) d-ao bem a ideia d (Souza, 1994: 165).
0 pape1 reservado aos amaz onenses,
me
• 1us1. ve a suas eJ1· tes " (Porto
Gonçalves, 2001: 32-33).
A vid
. a para os habitantes d
a reg1.ao
-
mudou desde a década de . . I erente que
aprese nta a
1960. J'a na• o se organizou . ESta nova situação , a paisagem dºf
maisª parur dos rios, uma vez que os • . 1970 ' esta marcada..
interesses que se PCOJe . A mazo1 , as de 1960 e
11a a partir das decad
tavam dos escnt· o, n· os oficiais, localizad os no · 1·ndicado res soc 1a1s
pe1a conc ent r ação d e riqu eza e pe1 os piores

166 }67
do Brasil. Dentro da região pan-amazônica, ou seja, dos
oit o A pa rtir do século 20, já é possível escutar as vozes plur
países que a compõem, é necessário assinalar que o Brasil, ais
que e u m a real idade que, ªº evidenciar as hegemonias,
d . também
ocupa a maior parte do território, é, ao mesmo tempo, 0 p turas, as fissuras, resquícios através
que apresenta as melhores condições na região.
aís refl ete as fra dos quais se
el escuta r as vozes dos vencidos. No discurso
torna Possív dos
A medida que nos aproximamos do presente, as vo zes que a cont radiç ã o que faz parte da modernização é
rn1.1 .
1ta res , evidente
surgem da região se tornam plurais. No início, no momento
ta- se de um plano que procura colocar em marcha grandes
das primeiras explorações ocidentais no século 16, era possível Tra
recorrer somente às vozes do poder, que resgatamos através de
proJe • tos de "in tegraçã ,
o nacion a l", expressão permanente nas
. .
documentos e public ações que sobreviveram. O atual nível do declarações dos ideologos do nacionalismo nesse momento.
desenvolvimento do conhecimento científico ainda não per mite Par a isso e contando com o aval do Banco Mundial, os proje tos
ler os signos das sociedades hoje inexistentes. Possivelmente, foram fina nciados por capitais japoneses, americanos, ingleses,
em algum momento, a arqueologia poss a const rui r linhas ou alemães, franceses e holandeses.
fragmentos de discu rso, através de gravu ras rupestres, cerâmi ca Observa mos que, po r meio dos textos, o adjetivo de "ven­
ou outros elementos que o tempo se encarrega de promover a cidos,, mantém toda sua carga semântica original. As vozes
descoberta. dos vencidos conseguem se manifestar em termos diretos, pois
possuem um lugar na memória longa e na memória simbólica,
. .
como no caso dos seringueiros, confo rme advemmos ao revisar
.. 0 discursos su rgidos em co rno da extr ação da borracha. Porém,

a Amazônia é hoje uma região onde a complexidade articula os


elemento de uma diversidade única:

A Amazônia é, obrerudo, di,·er idade. Num hectare de selva exiScem


. . . , · parte , não se encontram no
inumer:l\·e1s e pec1e que, em ua maior
• •
hectare nzinho. Existe a Amazonia a1 aga d a e a de terra firma. Existe a
. xiste a Amazônia de terre-
Am.1zõ111 a de água branca e de agua negra. E:··
nos de movimenro e erra no do Tumucumaque e de Parima ao norte,
..
e o da erra do ara1a . ex1
. no Para: ,· te a Amazônia das planícies do
, . • .
litoral do Pará e do Amapa. Ex1 te a Amazoni • · a do cerrado, Amazonra
dos mangues e da selva.
. • .
.

Habit ar e tese paço e. um d e a 10 para a ince'1genc1a, para a
eon-
. • . . 9).
vivencia com a d1ver I"da de (Porto Gonçalvez ' 2001:

mb huma-
E te panorama expli. ca, em parte, ª densida, de ra ém
• . . s,. co munidades
igura - ravuras rupestres
no rio Negro
na, de ofícios, tipos de conhecimen t o, de h1st ona

168 169
indígenas múltiplas com diversidade de línguas, com unidad . a s seguin tes, examinaremos esta pluralidade de vozes
es pa, gin . que
caboclas, populações negras remanescentes de quilombos, m na .
d1vers1d ade • .
u­ t recru za m amazoruca de hoje.
se en
lheres quebradoras de coco de ba baçu, populações ribeirinha
s,
dedicadas à extração, migrantes recém-chegados, conglomer ados
urbanos de insólitas mesclas. Populações diversas com uma varie
A ESTÉTICA ILUSTRADA
­
dade de ofícios, conhecimentos, histórias, experiên cias distint A literatura sobre a Amazônia tornou evidente, desde seus
as . , gens simultâneas de inferno e paraíso. Essa é a
de relação com a natureza, com os complexos ecossistem
as, 101c1.os, as ima . ,
- que se encontra nos textos dos primeiros . . cronistas ate
"portadoras de um acervo de conhecimento, que se torna um tensao •
a atual. O poeta contemporaneo bo1.IVlano,
. Suarez-
,
vantagem no diálogo com o mundo e deveria servir de base par 0 1.magi·n a' rio
a .
qualquer proposta de desenvolvimento que se pretenda susten­ -�ª� , publ ica
·
um livro de poemas no formato de um livro
tada pelos agentes diretamente envolvidos" (Porto Gonçalvez, de receitas de cozinha amazônica e, ao propor a receita de uns
· ..
. oitos antropomórficos• chamados Índios . malucos ,, , conclui.
2001: 10). bisc .
Toda esta nova situação gera a perspectiva de um campo, no assim o poema:
qual se desenvolvem não só diferentes imaginários, diferentes
estéticas, mas também emergem discursos com a voz dos habi­ Os olhos também se formam
de clara e açúcar.
tantes da região, sem intermediários. Organizar esta diversidade
0 corpo é montado com massa
não é tarefa simples. Entretanto, queremos examinar seis tipos de de farinha de mandioca.
discursividades amazônicas atuais. A primeira corresponde à esté­ Uma vez seca soltar na selva
tica ilustrada que aparece na cidade, preservando uma referência estas criaturas
fundamental com a floresta, a cultura popular, a diversidade para que as lâminas das escavadoras
amazônica, relacionada à poesia em sua expressão ilustrada. A as triturem outra vez e se tornem
segunda delas é o relato amazônico sob a forma narrativa, espe­ no que sempre foram desde 1492:
cialmente do gênero romance. A terceira corresponde a discursos olhos desorbitados de fúria e espanto
de setores populares, que elaboram um imaginário povoado de
seres fantásticos ligados à água e à selva. A quar conc ne a (Suárez-Araúz, 2001)
ta er
um caso de elaboração comunitária deste imag etudo, a
pela modernização. A quinta tem a ver
inário, ameaçado A cidade amazônica de hoie. - h.tScon. camente e' sobr ,
1o
como o modo pelo qual partir da exploração da borracha na segunda m etade do secu
a população e os trabalhadores ama . Bel'em _ é
zônicos se elab oram como 20, com o explosivo surgimento de Iquitos' Manau s e
sujeitos sociais individuais e cole • . . onde a selva é
ver com a sobrevivência das cosm
tivos. A sexta, finalmen te, tem a u m ponto de referen cia importante, num lugar
. ec1·f·ic1·dades, ela
de5tes povos, assentadas
ovisões indígenas nas literaturas uma presenç a pertinaz. Com suas diferentes esp
do a partir de
fundamentalmente na oralidade. Nas revela também sua cultur a, que vai se elaboran
uma v ariedade de elementos e miSturas.

170 171
ebr e �om�o�it?r Waldemar E�ique, e, com maestria,
Aqui os animais, aves e peixes a do cél
s do 1rnagmano popular: a Bomna, o Curupira ' a Cu tia

�.
e)ernen to
a .
reinaram desde a noite originári O O Boto, a Cobra Grande; formas do .
imaginário a partir
muito antes do final desses ves
tígios �O tantes do Amazonas inventam e explicam suas
habi
s fêmeas 5 uais os
do golfinho sobre O pescoço de sua esia, desde Pora�tim (1979? a Desl endár'.o (1981)
a memória vivendo de memórias �;da�. Sua po
cham as (1981), instala o mito e a s1ITibohzação da
relidas na memória, segue os passos ate, Altar ern . O mito . atua1, presente na cu1tura popu-
ônica de hoJe.
tão leves destas tardes caminhantes vi.dª ªrnaz · w·dade dos textos fundacion . ais, .
cotidiana, re1·e a anng
nos tempos não perdidos de Belém lar e n a vida • . prop
. enc1a , na. e 1oca1·1za da, promo-
em sua exist
rnas reve1 a força . • . ,
assim, a cobra do Genes1s. e reedi
.
tada
("Para ler como quem anda nas ruas", Paes Loureiro, 2000) vendo sua resig nifica ção; _
.
sua po esia a cnaçao de um
corno Born · , na . Des te modo , existe .em- . .
João de Jesus Paes Loureiro (1939) é a voz poética que, com próp rio , que é. recnaçao, .cont , inuidade e ruptura
espaço m1t , 1c
· 0
. do lo-
, pna
urna obra prolífica e potente, instala Belém do Pará no discurso clássica' umversal, e a md1gena, pro - ,
corn a rn1·tologia tran se - nao e em
literário brasileiro de hoje. Em sua obra, incorpora as modula­ bolismo de uma terra em
cal· Trata-se do sim ocuidade da voz do
ções do Barroco, que são as da cidade, as da estética local na -
vao que rnenc10 · na Glauber Rocha - e a "in . . em um tem. to, no .
percepção diária de seus calçamentos, suas ruas, suas igrejas. orm aça - o da Am azo ma
poeta, pera nte a transf .
. so, afirma o
Instala Belém na sensualidade feminina de seus aromas - o ., (L u cas , 20 00 · 397 ). Du plo compromis
de confl.1tos e, ao
. comprometer com seu tempo
mercado do Ver-o-Peso, que assombrou Mário de Andrade nas autor, pois a po esi a pode se
ão literária e cultural.
primeiras décadas do século 20, quando os modernistas brasi­ mesmo tempo, co m a tradiç
leiros descobriram a Amazônia - na superposição temporal de
suas igrejas, mansões, vielas, torres, sinos, em toda essa memória o tempo etern o e transitório
que vive de memórias, fazendo da cidade um triunfo Barroco que humano e desumano
am estatuárias
encontra, corno tal, sua expressão no poeta amazônico. Belém é do sêmen infecundo se desmoron
.
urna cidade situada no ponto em que o grande rio se abre para o gerações e infortúnios e conjuros..
O Curupira se perdeu de si mes mo
ocea no Atlântico, tornando-se um "mar de água doce", segundo
e até Macunaíma se investe de mateir
o
a expressão das primeiras crônicas. Historicamente, sua cultura
ilustrada voltou seus olhos para Europa em detrimento do Sul do da Grande Empresa
país, já que as dificuldades de comunicação a deixaram isol ada sem nenhum caráter.
ro, 2000)
durante séculos. É corrente a menção ao fato de que a república ("Deslendário"' Paes Lourei
chegou à Amazônia um ano depois de sua proclamação, pois a viagem
e o raro ( 199 8), do mesmo autN' é um ,
a informação da independência de Portugal chegou somente B elém. O azul d o da amad '
a co ntando
. aco mp nha
, da c1dade na antiga
a
através de um navio inglês. de amor atraves
h.1stº , r ia ("P enetremos
desfr utando, revivendo sua nclusive,
A interessante obra do escritor João de Jesus Paes Loureiro
C arm o ' re co Ihamos") e, i
Terceira ordem/ da lgreJa . dO desde
responde a um cruzamento de gêneros. No teatro - é um im­
. s, av es e .
pei xes / rei nam
ani. mai
portante autor de obras dramáticas - incorpora a música, como - stória ("Aqui os
sua pré hi
173

172
a noite das origens"), entre reflexões meta poéticas ("Que faz um rhiago. de Mtoelo, nascido em Manaus, tem, p r
.
nacional
.
no Brasil.
outro lado, seu
o
imen O livro Vento geraI aba
poema quando nasce? / Recordar, relembrar, esquecer "), mas reco nhec .
poesi que
rca
te de sua a, aponta para a reivind1·caçao
principalmente, vivendo a cidade como presença, uma presença' grande par . • dos
vida e do homem:
também feminina, de perfumes eróticos e linhas sugestivas. valores da
Paes Loureiro é, além de um pensador, um intelectual
teoriza sobre a cultura local, a partir de uma vasta experiên��: Ninguém me habita. A não ser
0 milagre
da matéria
adquirida em seu tempo de Secretário da Cultura de Belé m , bem
como por sua participação permanente em instituições culturais e qu e me f capaz de amar,
a z
acadêmicas locais. Hoje ministra seus cursos de teoria na univ
· er- e O mistério da memória
.
s1dad� F�deral do Pará. Como teórico, publicou uma importante que urde o tempo em meus neurónios,
obra mt1tulada Cultura amazônica. Uma poética do ,·mag·man , · para que eu, vivendo agora,
o
�Belém, 19:1), que é, como seu nome indica, uma propost a de possa me rever no outrora.
mterpretaçao da cultura de seu meio. Ninguém me ha bita. Sozinho
Outros poetas expressam suas cidades: Thiago de Melo res valo pelos declives
(1926) fala de Manaus, César Calvo (1940-2000) , de JqUI·tOS. onde me esper am, me chamam
,
Cesar Calv o - autor_de Poemas bajo tierra [Po emas sob a terra] (meu ser me diz se as atendo)
e Pedestal para nad1e [Pedestal para ninguém] - f oi um po eta feiuras que me fascina m,
belez as que me endoidecem.
peruano �e grande prestígio nacional, que recebeu importante
reco nhecimento em seu país. Morreu em 2000 e, com ISSO,· a re- ("Ninguém me h abita ", Melo)
.- • .
gia� ama zonica perdeu um grande escritor, defensor das causas
mais nobres. So bre ele comenta o escritor boliviano Nicomedes A expressão poética de Melo está incimamence ligada à experi­
Suárez-Araúz: "Como membro da geração poética peruana dos ência autobiográfica, a uma vida que também é de compromisso
anos de 1960, cresceu na v1·da e na po esia transportand o um c ontra a marginalização da região. Escreveu, como ensaísta,
.
el vado ideal de maior justiça social" (Suárez-Araúz, 2001). Em numerosas obras que ressaltam a necessidade de acabar com
� É um poeta
Cesar Calvo , o ento rno se d'1stanc1a . • Ele escreve o desmatamento e a violência de classe na região.
· da temat1zaçao.
. .
a partir de uma subi'et·1v1·dade em que a ongem se tornou expe- que viveu em vários países do continente, está ligado a causas
.• . .
n �cia de vida, estrutura de relação c om o mundo, sobriedade fundamentais da cultura latino-americana e é reconhecido in-

b as1ca, despojamento : ternaciona!mente.
gas, e
Esses poetas são emblemáticos das três cidades mais anti
o que
Caída de um sopro dO pedestai, mmha testa historicamente mais importantes, da região amazônica, send
segu ndo
entre a relva, ainda assim, soterrad a sua voz poética se instala em menor o u maior medida ,
pelo invicto pedo do ausente , d .
.
mge 0 caso, no luga r de enunciação de um falante nati
vo. .
o curso dos astros e seu fulgor do inte res.•se
suicida. Estamos ressaltando alguns nomes, em funçã o
ra da reg1ao
(Calvo, sem título) deste trabalho dentro do vasto espectro da literatu e la .
.
na atua lid o propo, s1t. o traçar um pano rama d
ade. Não é noss

174 175
Como p o.ucos • luga res, a selva . é um cent
O discurso da cultura amazônica havia traçado seu camin ho
do 1
, • s-
magmano. ao energias que se
ro propulsor de
de forma independente da nação, como o próprio território, até ener gia s , . d.ispoem perante
que dois dos maiores modernistas, em seu redescobrimento do h o m e m com suas propnas tensões e fraturas intern
o . · · as. É um
país, nas primeiras décadas do século 20, incorporam seu discurso uni.verso
mítico e mltl. t1cante ao mesmo tempo· Sua prox1m • 1.dade
ao da cultura nacional com dois textos fundamentais, o gra nde a vi vê ncia esti mulam a necessid ad e de expres
e sU . . são , mov1.d a,
romance Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928), de pela grand1os1dade, pela beleza, pela
ossivelm en te, riqueza
Mário de Andrade, e o longo poema "Cobra Norato " (1931), de ári a da região, pela sensaç ão única de sua
frnagin experiênc ia.
Raul Bopp, segundo Márcio de Souza. Com isso, estes escritores en sibi lida de da escrita b r ota à flor da pele para expressa
r os
As
ressaltavam também uma realidade que até hoje mostra sua força bis rn os int erior es, e isto faz com que exista urna importante nar­
a
portentosa, que é a lei do imaginário amazônico, expresso num rativa de autores - em nível nacional e internacional, não somente
universo oral de enorme vitalidade. amazônicos ou procedentes dos países da região - enquadrada
Por outro lado, esta região do continente americano apresen­ n a selva amazônica e escrita a partir de diferentes situações e
ta uma característica especial em sua relação com a literatura ersp ectivas. Por um lado, os que escrevem de dentro da pró­
ilustrada, que tem a ve r com a presença da selva.
:ria Amazônia, como é o caso de Márcio de Souza ou Milton
A selva é uma espécie de basso continuo nos imaginários da
Hatoum. Por outro, os que tiveram uma experiência amazônica
Amazônia, uma presença inquietante que sempre está latente no
parcial. Este é o caso de Mário de Andrade, com Macunaíma,
discurso oral e no texto escrito, como espaço, como figura, como
já mencionado, texto escrito logo após urna viagem, e que se
ruído ou como silêncio. A selva é como fogo par a o viajante que
inspira em textos clássicos de antropólogos viajantes, como o
a vê a partir do rio, uma monotonia variável, uma beleza em
de Koch-G rünbe rg, De Roraima ao Orinoco, resultado de uma
permanente transformação. O tempo passa. É como se a selva
viagem deste autor pelo Brasil e Venezuela entre 1911 e 1913.
não tivesse tempo, ainda que este apareça definido não só pelas
Há também quem escreve sobre a área sem tê-la conhecido, como
enchentes e mudanças - o rio muda permanentemente de leito
é o caso de Julio Veme, com seu romance A ;angada, de 1881.
-, mas também pelo ritmo das aves e animais, na madrugada em
No conjunto das narrativas sobre a selva amazônica é possível
que estes saem a comer, no instante em que as aves se juntam
observar diferentes est ruturas do relato. Analiso aquelas que
alvoroçadas. A selva também aparece através de seus r uídos: os . , .
tomo como mais notonas, sem pre1u1zo · , de que, num campo tão
papagaios que passam em dupla ou em bandos, um roedor que . , . ·
vasto , se1a poss1ve1 sistematizar um nu'-mero maior delas. , .
grita, o grande sapo que emite sons guturais, as rãs, os grilos. É periplo
uma calma vigilante, em que não se pode inquietar as víboras. Em primeir o lugar, aparecem as obras em que o .
ope ra como elemento central, assumm • dO ª forma da viage m
Elas também têm seus ritos e momentos para entrar ao rio. Não • A viag . em e uma
existe anarquia, a natureza tem seus ritmos que não devem ser co mo modo total ou parcial da narrativa. . , .
forma clássica do relato ficcio . . . ao espaço l1terano
nal, re I ativa
alter ados. Tarântulas e crocodilos saem à noite, olhos azuis e . . de G'Ii gam esh'
vermelhos se movimentam, uns sobre as árvores, outros sobre que recua até as origens da literatura, ª e Popeta . a
p ermitindo vislumbrar e enfrentar O descon hecido, a aventura'
as margens dos igarapés, nas lagoas, entre os juncos e matag ais . dan ça de uma
das margens, dos cogumelos e líquens que crescem nas lianas, desc obe rta. É uma ficção que probl em_atiza a m u
n do individual
parasitas de árvores gigantes que deitam seus ramos na água. estrutura de conhecimento, ou percepÇao ' dO mu

176
177
e social, a partir do deslocamento que vai se dando à me dida ,. Pesar da crôn
ica intitulada El río. Explora ,·
iones y descubri-.
.n- , .
que ocorre o conflito. en la selva amaz omca , do norte -americano Wade D
,nt·ent os av1s
o transporte tradicional da região é a navegação fluvial, (200 5), a bor dar o rela to de um mov
.
imen to físico e intelectua1,
. ad'1ante na discussão
praticamente a principal até os anos 1960, quando ocorre uma que será tratad
o mais sobre a questão da
reconfiguração da cartografia interna com a entrada da empresa drog a, um ex em plo atua l se enco ntra no rom ance Nove noites
nacional e internacional, além da construção de grandes estradas (2002), de B erna rdo de Carv alho, uma narrativa que também
interamazônicas. Um relato clássico da Amazônia brasileira, es­ trans cor re atra vés da floresta. Este é um relato sobre Buell
crito por um narrador de origem portuguesa, é A selva (1930) , Quinn, um antro pólogo norte-ame ricano que se suicida entre os
de Ferreira de Castro. A partir de uma experiência biográfica, 0 índios bra sileiro s, aos 2 7 anos de idade, às vésperas da Segunda
autor relata a história de Alberto, um garoto que cursou o ensino Guerra Mundial, em 1939. Num segundo plano, a obra revela
médio e chega a Manaus à casa de um parente, que o manda a intriga do narrado r ao procurar entender o suicídio de Buell,
para um seringai no interior do Amazonas. Longe de ter o lugar enfrentando a si mesmo: "Todo mundo quer saber o que sabem
prometido, Alberto trabalha de seringueiro, o que permite que os suicidas" (Carvalho, 2006: 23).
conheça o nível de exploração dos trabalhadores dos seringais. Uma segunda entrada à ficção em torno da Amazônia se dá
A viagem faz parte do romance que é, também, um relato sobre atravé s dos temas históricos. Aqui encontramos inumeráveis
a exploração das matérias-primas e do homem no interior da romances. Um breve olhar sobre a literatura ilustrada da Ama­
floresta. A viagem toma o sentido de um trânsito rumo ao espaço zônia atual não pode deixar de se deter em Márcio de Souza,
da degradação do homem e das relações humanas. Nessa obra, nascido em Manaus, cujo discurso se tornou umas das vozes mais
a presença da floresta é intensa e aparece nas descrições sob a poderosas da região. Ele é dramaturgo, romancista e ensaísta,
forma de uma grandiosidade sem excesso, tornando-se um clás­ com um vasto trabalho intelectual, cujo discurso tem relação
sico da questão; o livro foi traduzido para vários idiomas e sobre com questões da realidade e da história da região. Sua obra é
ele o poeta Blaise Cendrars elogiaria a capacidade de descrever, consagrada em todos os gêneros e suas publicações, inumeráveis,
para se desfazer dos fantasmas: circulam por todo o país e começam a chegar ao exterior. Dentre
seus roma nces destacamos, por exemplo, Calvez, o imperador do
As belezas e os horrores da Amazônia descrevem a natureza do Acre (1976), que parodia a história das escaramuças que deram
trópico, advertem as estranhezas, os caprichos, as extravagâncias corno resultado a transferência do Acre para as mãos brasileiras.
que nascem neste clima de água e de fogo, mas que também falam de Mad Maria (l 980) aborda a tentativa de construção da linha de
homens que habitam esta terra, que vivem, que lutam, que sofrem nos trem de ferro entre os rios Madeira e Mamoré, como um modo
clarões da selva virgem, os selvagens, os primitivos, os autóctones, os de apr oximar a borracha do eixo central, o Amazonas, ª fim de
nativos, os "caboclos", os camponeses livres, os trabalhadores rurais, facilitar sua exportação, mas também como um compromisso
' b'e . · uma saída para o mar
os colonos, os plantadores, os comerciantes, mas também os transplan­ pos- l1co, que procurava dar a, BoL'1Y1a
tados e os emigrantes. atr aves da ferrovia . Nesse romanc e, e narrad ª em detalhe a açao
, ,
·
dos personagens das empresas norte-amencan as • ligadas a seu
.
Num universo em que o tran
sporte é fundame ntalm en te governo, que estiveram envolvi. dos em um episódio que se. re-
fluvial' a viagem é, antes de
tudo, uma estrutura permanente. velou um frac asso profundo, no quaI morreram cer ca de mnta

178 179
mil trabalhadores, em meio à umidade, ao calor, aos m osquito . .a que a selva tinha vértebras e pelagem de tig re, e u
d1z1 , . de
s lll ma sene
n os con venceram de que haviam mastigado a 1oucura nos
e às febres tropicais. Seu trabalho intelectual está ligado à siste­ . d'1C1•os
1n .
matização, estudo e difusão da cultura e da história da região es verd es (Osp ma, 2008: 246).
, .c
cort1
pan-amazônica, sobre a qual é um dos maiores espe cialistas.
Fruto desta linha de trabalho são os importantes artig os e livros formam um todo. Às vezes, a vida de quem navega
A selva e O rio
escritos referentes à produção cultural da região. Márcio de longo se co fu de com a própria vida do rio.
por um período � �
Souza é, sem dúvida, o grande conhecedor da história e cultura A lém de out ras observ açoes importantes, como O ritmo nar-
amazônica, além de um excelente narrador. Trata-se de um es­ e relato interessa destacar o tratamento da natureza
1 o , ness
rat·v
critor que observa a história da região, desde uma perspectiva existência, que vai se articulando com a narração
como forma de
crítica e altamente criativa, ocupando, assim, um lugar definido, 0
até chegar no ponto de estruturá-la. Reeditando velhos mitos da
de um escritor que fala a partir de um espaço identitário próprio
Antigu idade greco-latina, por exemplo, o texto parece armar
e pouco conhecido. Atualmente, o autor - também ensaísta e uma trama, que leva os homens selva adentro até se perderem
dramaturgo - está finalizando uma trilogia ficcional, sempre de
nos labirintos de árvores "que se repetem sem fim".
cunho histórico, sobre a Província do Rio Negro e Grão-Pará.
A obra de William Ospina é um dos grandes textos na dimen­
O colombiano William Ospina, com seu romance El país de la são que observamos, revitalizando, na perspectiva do romance
canela [O país da canela] (2008 ), recebeu recentemente o prêmio
histórico e com dimensões de um alto lirismo, uma relação que,
literário Rómulo Gallegos (Venezuela, 2009). Essa narrativa faz em geral, é empreendida com dificuldade e teve poucos momentos
parte de uma trilogia sobre a conquista do Amazonas, que está
de êxito na narrativa latino-americana.
precedida por Ursúa, de 2005, e uma próxima que se chamará
Uma questão importante na memória da região é a história da
La serpiente sin ojos [A serpente sem olhos].
exploração da borracha, que se estende de meados do século 19
No romance premiado, a narração da selva - incompreensível
até quase meados do século 20, como havíamos apontado antes.
e de poderes ocultos - defronta os personagens, por uma parte,
Sobre o período foram escritas grandes obras, como La vorágine
com a própria selva, e por outra, evidencia sua própria confusão:
(1924 ), do colombiano José Eustasio Rivera, mencionado an­
"Falamos tantas coisas que já não sei o que vimos. Além disso,
teriormente. Também há outras narrativas que giram em torno
a selva é tão estranha, tão misteriosa, que é mais fácil entender
desse assunto, como a do cientista e escritor colombiano César
o que diz quem a viu fugazmente do que aquele que nela viveu
toda a vida" (Ospina, 2008: 245). A coexistência de ritmos de­ Urib e Piedrahita, chamada Toá. Narraciones de caucherías [Toá.
siguais entre o movimento do rio, o crescimento dos vegetais, o Histórias dos seringais], de 1933, entre outras; ou contos, como
0 atual "Las noche s dei deseo" , do boliviano Homero Carvalho,
vaivém dos animais e as urgências do homem desestruturam a ·
nas cido em Santa Cruz. Um relato recente revive a h'istona ' da
percepção do mundo no relato. Deste modo, os que se internam
nela regressam alucinados: borrach a em seu segundo peno
.
°
, d o, quand os 1·nteresses
norte-
-americanos tentaram se estabe1ecer na Amazônia' atraves do
Vinham devorados por insetos, cu1ti. va das espécies. Fordlandia: un oscuro parat . ' so' do argenuno
haviam comido raízes e lagartos,
falavam de animais lum·mosos,
de tn'b os de pessoas pequenas que mo- '
ª
Edua rdo Sguiglia narra a aventura fracassad do magnata Henry
ravam nas raízes das arvo
, res, de foi For d, com o projeto mess1am . • . de uma PJantação de borrac ha
h agens que guardavam segredos, co

180
181
. .
_

e uma cidade chamada Fordlândi a. Porém, depois de planta uê tá, um. Decameron indígena, de Nunes pere1ra
. . dos viO ,ong
1•-'
. ;e
ndo nao existia, de Umusi Pãro· kumu e ,..
os milhares de hectares de sermgueiras, a natureza se rebela: r"intes O m u
. texto, trabalhado na a'
1ora_ mu,
de 198 0. E s te ultimo
, rea h"1spano-
e írí,
J('h ,.
. c ana pe l o critico A ngel Rama, foi escrito por autores da
Na plantação, no entanto, as coisas iam muito mal. Uma enf,erm1da- -a merí
.
de, desconhecida por nós, havia atacado os seringais, f azen do com que etnia dessana
murchassem com a velocidad e d e um raio (... ) A epidemia ava nçav a à Os textos relativos ao mundo indígena têm uma re lação de
o diferente com as fontes tribais das quais emergem.
razão de cem hectares por d.ia e, apesar de ter começado pelas piantaçoes aproximaçã
em torno deste m u ndo, olhar de conhece­
do sul, já havia alcançado o norte e o oeste (Sgu iglia, 2003: 195_ 196)_ É O olhar ocidental
ólogos que constroem a narração em relação
dores , de antrop
· · e aos rituais, como, por exemp lo, Quarup, de
A narração se refere à história da aventura, na qual, em poucos aos imaginá rios
que a convivência entre o "civilizado" e
. . , n. o desaparece, restando' ho1·e em di·a, somente
dias, o futuro impe Antônio Calado, em
0 "outro" coloca
questões fundamentais : "Mas como explicar
as ruínas de algumas construções.
quando justo deixavam a casca
Na Venezuela, um autor procedente do delta Amacuro, na aquelas raças que se extinguiam
havia de fato vários começos
.
sai'da do Ormoco, se destaca pela solidez da sua es crita. Trata-se do ovo? O que queriam dizer? Ou
texto exemplar desta
� e Jos é Balza, que começou com Marzo anterior [Março ame­ do mundo?" (Calado, 1971: 175). Outro
y Ribeiro, te xto de
n or], em 1965, e após uma trajetória de suce sso com sua escrita linha é o romance Maíra (1976), de Darc
o conhecimento
desfruta hoje de reconhecimento internacional. Balza ins crev: uma estrutura narrativa complexa, que ressalta
o autor durante
suas estruturas literárias na memória do Orinoco e do delta do profundo das culturas no meio das quais viveu
no exílio
Amacuro, com um hábil manejo de textos his tóricos, em especial parte importante de sua vida. Esse romance foi escrito
em seu tran­
com uma es crita de bus cas constantes, s ugestiva e s ólida. e a questão da relação entre culturas é fundamental
o espiritual
No coração da narrativa amazônica s e encontram desde çado, em que o universo indígena aparece valorizad
ce�o, importantes relatos sobre o mundo indígena. Aq�i, mito e materialmente.
texto con­
Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, é um
� ht�r�tura se articu lam numa apropr iação a partir do campo Sobre este
literano, bem como de doi s espaços diferentes e uma distinta siderado fundamental na história literária brasileira.
crítica
fun ção· os pr·ime1ros
· assma· 1am para a manutenção do status texto es crev eram grandes críticos e po ssui uma fortuna
rap ódia , de
que aumenta a cada dia a sua relevância. É uma
s
quo da co��nidade de onde provêm, ao passo que a literatura,
, ou sej�,
acordo com a definição do próprio Mário de Andrade
�elo contrano, procura a crítica do social (Krüger, 2003: 19).. A baseia
literatura recria os m1·tos no espaço e tempo da fi cção litera .
, na. um relato narrativo de origem popular, que o escritor
s propulsores
Nesta linha, um estudio · so do assunto, Marcos Fedenco . . ..
Kruger sobre várias matrizes da cultura nacional. Um do eiro,
.
analisa quatro textos de recon hec1da . importância do movimento. , . p1·1ar do Mod ernismo brasil
antropofag1co, , . co .,,
. que , como mitivismo esteti
Macunaíma ' recriam mitos . ou ut1·1 IZam
· valores das culturas Ma, no • de Andrade incorpora o chamado "pn· com a
m
. d'igenas amazônicas, das reg1oe ·- que havia .
. sido sustentado pe1 as van guardas europeias
s dos e s tados do Amazonas . d0
. ' no Brasi·1 . . 0 0 Renascimento
e d e Roraima v a1onz ação da arte aborígene - assim com
10ao- Bar bosa Rodri
· 5-ao e1es: Poranduba amazonense, de
gues , pu bl.1cado em 1890·, Lendas em nhen- Hariem com a arte africana - oferecend um ° a resposta desc o-
, . ou
um ant1-. her01
gatu e em português' de A , .
ntoil!o Brandão Amor im, de 1928; 1oni. zadora com este personagem, Macunai'ma

182 183
m ma história anterior, tiveram seu
herói sem nenhum caráter, como diz o subtítulo. Sua exp ressão , que possue ,u
. ,, {qui.to s na epoca da borra ch
. cipal
prin .
permanente, "A1. que preguiça! , expressa um valor anticolon·1ª1 d ese n v ol vim ent o
, .
a , lugare s onde os gr n des
_. aram seu comercio
a
· p1t· a11sta,
· a1'em de sa1·1entar, como af·1rma Telê Ancon org aniz e os barõe s tinham seus cen-
e ant1ca a c ap.tt ai· s , . nesse sentido é a de D
Uma voz class1ca
.
Lopez, "na mestiçagem , . e na sonoridad
1.mgmstica . e music al'um e d ive rsa o. ·
a1c1'd10
6) tros d . ,.
que tem
traço mais da nacionalidade" (Ancona Lopez, 1988: . , escntor prohf1co um romance sobre BeI'em,
Jura ndl·r. cotidiana dur nte
Uma matriz básica dessa narrativa é o texto do antrop ólo º de sua vida a os anos da borracha, 0s
cen a'ri·o .
,
Koch-Grünberg, que relata uma viagem de Roraima ao Orino;0 , chamado Justamente B�lem do Grão-Pará (2004).
anos 1920
ce faz parte do coniunto chamado de Ciclo do
descrevendo as pa isagens mitológicas do trajeto. Com relação ª' Esse roman
orte, composto por dez de seus rom a nces. Trata-se
estas origens, afirma Alfredo Bosi: Extrem o N
ativa que, podendo ser identifica da com a linha
de uma narr
regio nalista, vai além, incorporando, por uma
A narrativa de Macunaíma, como "fantasia estrutural" , para re- estritamente
tomar a feliz fórmula de Haroldo de Campos, seguiria leis que são parte,
um sentido documentalista e ficcional e, por outra, tran-
textos da na rrativ . sa1 ; mas e,
. a umver ,
próprias dos contos maravilhosos, produzidos pela cultura popular ando laços com grand es
o da perspectiva melancólica da cidade
e� tod� o mundo, mas que se encontram apenas em estado puro nas ;rin cipalmente, o retrat
da decadência de seu esplendor,
m1tol og1as dos povos ágrafos. Numa perspectiva diferente, mas tam­ na década de 1920, no momento
ação da borracha . Mas é,
bém orientada a apreender a chave formal da obra, Gilda de Melo e depois de época dourada da explor
do olhar de um menino,
Souza encontrou, na busca da muiraquitã, uma versão carnavalizada também, a perc epçã o da cidade através
da procura pelo Santo Graal. Em qualquer caso, em uma ou outra 0 persona gem Alfredo, que
será o fio condutor de todo o ciclo.
Nunes:
leitura, 0 paradigma é uma m odalidade arcaica de ficção, anterior ao Tal como afirma o grande crítico Benedito
romance e ao relato de costumes (Bosi, 1988: 173; o itálico é nosso ).
a história dos
Em Belém do Grão-Pará lemos, ao mesmo tempo,
grande status
É um texto múltiplo, crítico, repleto de ana cronismos e h umor. Alcântara' uma família de classe média, que perde o
Lemos, durante
U t�xto "selvagem e civiliz adíssimo, como Mário", dizia Darci social que desfrutou no governo do prefeito Antônio
anos 1920,
Ribeiro
'.11 , uma "desconcertante utopia antiufanista " (Ribeiro' o grande momento da borracha, e a história de Belém dos
imida por
1988: XVIII). já decadente, mas com a moderna estampa parisiense impr
A respeito da vincula çao - d.1reta do mundo md1gena
· , com a aquele prefeito (Nunes, 2004).
.
impr _
essao .
e a difusão, falaremos mais adiante.
, · meça a receber
Uma quart a forma que a d qu1re
.
. ama -
· a expressa- o narrativa A ob ra desse escn.tor esta sendo re1IDpress a e co
• 1c
zon . a diz respeito à s c1. d ades. A Am •
. . apresenta uma vida
azonia maior atenção da crítica. 1 -
urbana imp ortante e J·a, f1zemos referenc1a
• . a a lgumas cidades. Outras v ozes surgem das c1.dades amazom • ·c as de hoje, co o
Cada uma delas tem uma h 1stona
.
.
, . diferen
. te. Belém do Pará foi
.
ca ndo a problemática dos imigrantes 1unto . ª
outras con heci das.
um centro impo rtante no peno , m fala a partir
• . do colonial, com seu desenho Um dos grandes narradores atuai. s, M·J1 ton Hatou ' 1sto n-·
arqu1t . etonic o elabora do pe IO arquiteto bolonh de um a cultura h.
ês Landi' no sé- dos subúrb ios de Ma nau s e do mte . nor
. es,
c u1 o 18 , antes do perí odo
de extraça-o do látex, apesar de essa de seus romanc
camente imigrante, a cultura árab e. E um
época tam b'em ter deix . le registra
ado suas ma rca s na cidade. Manaus e ·
D 01·s irm pont o de p ar�tida a c1.dade, e
ãos, tendo como
184 185
, as, numa prosa cuja simplicidade resul
o desencontro entre o mun do do �orte, c?m seu m odo e tern o exp ectativ ta de uma
p e suas b ão, sem b
amazôn ico, e O mundo pujante e oc1dentahzado do Sul do Bras e ela o raç com c rta sensualidade em
grand
ex a rup tos ,
il. do complexo e distante .
e

u m m un
rneio a .
c erto Oriente f ez os leitores .
l to de um esperarem pela
com expectativas que foram satisfeitas com
a
narra tiva,
Re
segun d irmãos. Este é um relato de uma vida fami-
. ção de
ª
a pubhca · · ·
Dois
ntro do universo 1m1grante ara , b e. Os d01s . . ·
em pr e de Lrmaos
1.iar, s '
me sm o meio mas acabam se torn ando completamen-
nascern no
tes. Um deles' que sai par a estudar e postenormente
te diferen
no Su I do país' é um tipo de fac1l , . relacionam
. e nto e
perrn anece
, . econômico
tigio e social.
. O ou o p rmanece em
a1 ca nÇa pres , .
tr e

us a I se de dica a uma vida de praz eres, em me .io a beb1-


M an 1.
v1'da s em re spo nsabilidades. Em certo mome nto da
a e

d e a uma . _ 1 r egressa e O choque é inevitáve l. A meta, fora


v1'da, o irmao do su
ª
. - . ar dúvidas' pois o sul é empreendedor,
sugen d a p arece nao deix
· rte fraco, refém de su a inclinação ao
bande1rante fren te ao no
mesmo pai. Daí as rusg�s. Outros
prazer. Ambo s são filhos do
dois relatos de H� toum sao _ C. zas do norte e órfaos do E/­
m clist ancia do mundo árab e da
dorado. N .
. e ste úlum o , o autor se . .
Amazônia e se mterna nos ima . gm . ários latentes dos ribe hos mn
Figura 48 - A obra antropológica de Koch-Grünberg originou a ficção (chamada por ele
. ­
que vivem no bosque ou nos fun
de urapsódia"): Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e, na Colômbia, La vorágine
relat ivos a seres encant ados'
nta da de
(1924), de José Eustasio Rivera
dos dos n. o s, be m como à permanen • c1a . da cidade enca
Milton Hat oum é um escritor at ualmente reconhecido em seus
Eldorado, que persiste no 1mag10ar
. . , .10 local e co nvive com
todo o Brasil e também fora de suas fronte iras. Com uma ampla entretanto, quando
habitantes. O pra z er d O relato se frusrra,
formação literária, em especial em literat ura hisp ano-americana, _ imaginário vivido
o desvela nao como um encantament o do
que ensinou na Universidade Federal de Manaus, Hatoum come­ . enc1· a len dária'
o .que,
çou sua carreira com um romance que chama va a atenção por atraves , d a literatura, mas como uma refer • final.
de algum . a, rettra. vi. t al'dad 1 e ao texto na página
seu tema. Trata-se de Relato de um certo Oriente, onde a vid a de � a maneir nte a um
Acredito que , se obvi. amos eSte salto fina . 1, estaremos fre
um bairro periférico de Manaus, próximo à cidad flutuante, era
narrada a partir da imigr ação árabe na Amaz dos maiores textos de Hatoum. temas que
ônia. Est a é uma ·
rav1'da0 são
e

imigração de importância histórica - é me A vida das fazendas e o mund da esc ° es ou-


ncionada, de passa gem, ao, 0 que faz del
fo ram trabalhados pelos au tores da reg1 ._ 'di0
no clássico romance colombiano La 11orág
ine -, que não havia ferência a Da1 ci
t ra entrada às narra uv as d a ar
. , ea: Fi. zemos re ces
tido uma voz própria até então (ou
ao me nos ainda não havia que seus ro man
tido seu destaque). Aqui somos Jurandir ante ri orme nte. É necessano . 1embrar ao m un -
os expectadores de um mundo , são relativos
pouco conhecido, narrado a part Chove nos campos da cachoet'ra e Mara1.0 ajó, bem co mo ao
ir de dentro, com suas tradições ede, Ma
do rural da grande .ilha de onde proc
r

187
186
suas est. ruturas identitárias básicas , assim· como a capa
lugar concreto Cachoeira do Arari. Assim também é a obra
de mante·m tan tes, de onde surge . -
sh abi m de
' imaginar s1tuaçoes e
Inglês de Souza, o grande escritor do universo rural brasil eir
o. ci·dade do . .
as, rnetafonzando a realidade em formas do 1m - agma
O universo amazônico e da selva desempenha, na narra tiv a cooduc o
. , no
referentes para os comportamentos ·,nd·1v1·du .
.
ve rn corn
diversos papéis e se relaciona com eles em intensidades variá veis ' que ser .
das deno�maç�es variarem, as referências
a1s
tivo s. A p es��
Em alguns casos, o mundo amazônico é utilizado como marc o d� e cole
uns à reg1ao, do Peru a Guiana, da Venezuela ao Mato
uma narração. É outro tipo de relação. No romance� Pantaleão sa_ o com ·
ras1·1 . O s hab.,cantes do mtenor, · os ribeirinhos, os
e as visitadoras (1973), Mario Vargas Llosa não conse gue fazer Gro sso , no B .
s, habitant:s das comunidades indígenas , seringueiros,
com que a selva funcione como espaço próprio para a ficção. quilombola
pulares nao urbanos em geral, mas também os se to­
O talento técnico do autor faz a obra caminhar de acordo com os se tores po
todo s vivem mergulhados num universo mitológico
o meio, mas a selva como espaço próprio não desempe nha um res urbanos,
lidade e a ficção não têm fronteira.
papel singular no relato. A função de marco ocorre no roma nc e em que a rea
a que antes nos
E/ fuga: dond� estuvo e/ paraíso [O lugar onde esteve o paraíso], Um dos perso nagen s de seu imaginário
Chullachaqui, o guardião da selva na
do escritor chileno Carlos Franz. Na medida em que o funciona­ havíamos referido é o
e andina, que ataca, sequestra e confunde
mento narrativo não está estruturado internamente em relação Amazônia peruana
com o âmbito da selva, sua operatividade é superfi cial e poderia uma perna defeituosa, o qu e facilita
os que penetram nela. Tem
variadas aparências. Uma
ser evitada, pois não se torna essencial para o andamento do su a identificação pela vítima em suas
onas, conta a se-
relato. A se lva, assim tem uma dinâmica diferenciada nos rela­ ribeirinha da regiã o do Yanayacu, Alto Amaz
tos e sua função é variável. O que aparece como evidente é que guinte passagem:
numa função estrutural em relação com o personagem, pode ter
a operatividade de um huis cios, de um espaço fechado onde os e u na r odovia
Bom, quan do a gente vivia (...) por cá, isso a contec
i�divíduos só encontram lugar para se enfrentar, entre ele s ou mos pequenas,
de )quicos( ... ), meu pai tinha um fundo, quando nós éra
v10lencamente consigo mesmos. quebra da e nós
cinco irmãs, irmãzinhas( ... ), a mãe desceu para lavar na
(... ) um
fic amos em ca s a, brincando, pegando la r anjas( ... ) e apareceu
chamava, e
VOZES DA ÁGUA E DA SELVA home nzinho e nós assustadas, e ele dizia vem, vem,( ... ) e
nós, meninas inocentes. De longe ele fazia · b'· b1· b1·( ·•• )• as lar anjas
• assim
Estamos num terreno de vozes contraditórias; o imaginário
,
ca1ram no chão (... ) te ntando segurar as 1r·utas mng · uém falava nada
nunca pode ser menos fragmentado e tensionado do que a so­ . mont anha
ciedade à qual pertence. e então ele hipnotizou a ge nte, e vimos como entramos na
· ha mãe chamo u, e
a
Frente à elaboraça0- da est,ettca· 1·1 ustrada temos a permanenc1a• . e ele segurava nós três pela mão ( ... ) rMas 31, min d
. - tinuava: "Ün e
- e o crescim - , ·
ento a part,·r de construçoes m1t1cas, surgi"das de gente não re s pondia, nós tres, . . E mamae con
• me ninas
ep1.s od1
, . versando d'isso.
os que abalaram suas socie .
. dades - do 1magma . , . esta.o? Não estão em casa!", e eu escutava meus Pais con
. .ano (Slater. 200 no local co- bosque bem che10 •
t1d1 ' 1) • com poder de articular a variedade cultural Então, a gente sentava e respondia a mãe. E er a um
qu al o moti-vo da
do s d.f
I e rences país es g , .
' rupos etnicos e ofícios. Existe uma espécie de e spi.nheiros e meu pai contou para mi. nha mãe . se deve
de 01.impo, de san cuári pro
° - pessoas d.1ªbólica s as quais na- o
gente estar ah. e ele di. sse que s ao
se 1va, que se recriam e se
fano, de t·1guras ligada
. s à água ou a
sai'd às q uatr o e 1a ·, eram seis,
transformam permanentemente. Elas acompanhar. E então, como tínhamos 0

188 189
e na hora de dormir a gente não conseguia dormir, porque via . ge nte estava em casa, ainda não morava
tudo, a (Jm d1a a aqu1,· VIV!
.. a em
gente queria dormir e estava gritando(...), e minha mãe chegou o . , Es tav a tod o mundo em casa com a mãe, de noi
nde 0 GuaraJ · ª te, e de repenee
xamã e agradeceu quando nos curou, e minha mãe fez que agrade . ho c ome çou a correr atra,s da casa. Corria
le b ic mai s lento que um
cesse aqu e .
udia , pare cia
.
esta
. ,
0 xamã, que a gente não estava com eles, e a mãe conseguiu sair a ba rrig a sac r chei a de agua. Aquilo fazia pluc,
desse cav alo, pra
fundo e mandou todo mundo pra lquitos (Senhora Jovita, Sa . Cor ria, ia b a1xo
. . M asca va um osso e rodeava a casa
n Juan /u c p/uc
de Yanayacu, Peru, 2004). P ' osso e sacudi ndo as orelha s. As orelhas faziam bl a, bla, bla.
m ascan do .
cha mou e me d 1sse: "M. rn ha f'lh
I a, e' um Hornem
E minha m a-e .
Lobo."
É O mesmo caso do Curupira, no lado brasileiro, cujo m m edo. Eu fiquei curios
. a. Levan tei cedo. Aquilo
traço f1cam os co . - .
. depois
mais importante é ter os pés ao contrário. Isso lhe perm . E levantei e fui fazer uma ronda pela casa. E nao tinha nem
ite des­ sumiu .
na areia não tm· h a nad a, o c ao
h" estava normaI. Entao
pistar seus perseguidores na selva. É o mesm o caso
da Cobra um a marqu1· nha '
.

.
Grande, a grande serpe nte que surge da água e que, . que eu digo que existe Homem Lobo. E muitas pessoas aqui
com signo é por isso • • .
positivo ou negativo, sofre transformações, engana ou
faz o bem: . , viram que exis· te. Existe, sim. De manha nao unha rastro de porco,

rastro de cava1o, nao · tinha nada (Senhora Ruth, Itancoã, Brasil, 2004).
Tinha um fulano de tal que chamava Noratinho. Dizem
que ele era .
uma Cobra Grande, ele era encantado. Ele vinha nas festa
s e tal, em Outra f 1 gura desse imaginário é O golfinho, que na região
• . . cuja maldade consiste
barco, bom, barco bonito na época era difícil tamb
ém, tinha mais era amazomca bras 1·1eira é chamado de Boto, . . • b.
.
em seduzir, atraves d e mil argúcias, sirmlares. tanto no am ito
canoa a remo. E ele vinha naquela lancha muito arrum ,
ada e chegava
.
. • mco
aqui e dançava. Quando eram umas duas da manhã, ele
já rapava fora. h1spa com o no lusitano ' e engravidar as 1ovens. A senh· ora
. .
Pegava sua lancha e quando chegava na metade do
rio desaparecia. Jovita, morad ora do Alto Amazonas peruano, relata o segumte.
Dizem que era uma serpente muito grande. Quan
do estava em pes­
soa ele contava histórias do fundo (da água). Os . é
bichos que ele via, Eu mesma tenho expenen . • c1a com os goLfinhos coloridos, o rosa, .
.
bichos grandes. E quando ele lutou com outra serpe
nte que era ruim, uma experiência que me aconteceu. EIe me roubava. na noite, eu saia e
que perseguia as canoas, ele mandou dizer pras pesso . . soz1·nha,
as de Belém que queria me levar pro no, me perseguia e eu não podia dormlí
se guardasse água. Que ele ia tratar de mata . . deixa-
r essa serpente, porque eu saía dormida, saia, a, f orça. Minha mãe, meus pais... e1es me
senão ela ia tratar de virar muita canoa, muit . tava... E no
o barco, ia comer muita vam sozinha ... saía, entrava ate, O 1oelho na água e desper
gente e a luta deles ia levantar água ao pont • orno gringos...
o de ficar muito alta (ficar sonho me faziam sonhar, uns gringos, se apresentavam c
muito grossa). Passaram três dias lutan .
. m, eu unha medo... E quando eu
do. Diz que essa água ficou feia Até a idade de 18 anos me perseguia
de barro. E ele dominou a serpente
. Essa era a história que meu avô queria ficar sozinha, ele quena . ser meu namorado... E q uando acord ei,
contava (Senhor Zeca, ltancoã, Bra . fa)ou, esse golfinho
sil, 2004). conto pra minha mãe, pro meu pai, " não ' meu pa .i
• vai. . . pro xa mã, o.xa ma
nao roubar mmha hlha, . tenhO que mandar e1a uns
Por outro lado, existe o - . xama, - me fazia
Homem Lobo. É uma figura muito e mm h a salvação...,, T'mha que me curar co m. O
frequente. Estamos em mei co m isso eI e me
o a um imaginário potente, que abarca banhos de florescimento , a base de flores m edict.nais ,
a vid a dos ribeirinhos, me fez com o
explica e dá sentido a sua relação com a preparava o banho, a partir das doze da noite . ... c orno isso -
natureza e com os dem q ando estava J. 3 co m
ais homens. quatro vezes, a última foi quan d° me perse
. gui. a, u

190 191
se
e ar a quem _i nterna na selva. É um person age
bebezinho... quando eu ficava sozinha tinha saudade do golfinho, eu aparec P me a reg1. ao. m q ue
confor . E m algumas, tem no c n
tinha medo deles (Senhora Jovita, San Juan de Yanayacu, Peru, 2004). rnud a e tro da ma o
S e se diverte. passando brasas pelas mãos· Em outras
buraco ,e
rn a rnOed a · Eles se. Juntam todas as noites para plan e·)arem suas
A figuração do habitante submarino, que em geral toma a u
ras. O Saci se transforma. no que quer. É seu poder. Às
forma de peixe, é um tema recorrente no imaginário da região. rravessu
arece ac_ ompanhado de figuras horríveis, às vezes sozi-
Monteiro Lobato toma esta imagem em seu clássico livro infantil, veze5 ap , . .
h o - Su a diversao e ma 1tratar os anima - is, trançando seus pelos
que circulou pela América Hispânica numa edição espanhola n . .
ira emite sons que dao medo, porque esta figura ,
de Espasa Calpe, intitulado A menina do narizinho arrebitado, _Mauntapere
ce ger alme nte brincal hona, també m surge em outros
surgido de um relato curto chamado "História do peixinh o que que apare
omo um personagem de terror. Algumas vezes, dizem '
morreu afogado", de 1919. Nesse texto, um dos personagens mornentos c
com uma cara em que a pele está ao contrário. Estes
centrais é justamente o peixe, que é um galã. Sobre esta figura, ��e . .
o em permanente metamorfose, por isso, dizem,
que é a de um encantamento, comenta uma antiga moradora de personagens estã
de Rob�rto Serr�, um morador
Itancoã, Dona Luiza, na Amazônia brasileira: é difícil-reconhecê-los. A esposa
da regia · 0, relata suas relações com Matmtapere1ra:
Dois peixinhos, um dourado e um prateado
se encontravam no areal. o Homem Lobo se transforma em boi, em porco, em cavalo, em
A moça bonita viu os peixes qua 1quer c01·sa pra dar medo · Ele muda. Marintapereira se transforma
· . dava para ver
' quando era rnemna,
de noite apareceu frente a ela um jovem, que disse: em cachorro tambe' rn · Antigamente
"Eu sou o peixe que você viu no areal muitas coisas dessas aqui: Matintapereira, Homem Lobo, Curupira,
e gostaria que me desencantasse mas com o poder da oração já não se vê tanto essas coisas (Esposa de
então, a cidade que vive embaixo de Guará vai aparecer" Roberto Serra, ltancoã, Brasil, 2004 ).
(Acevedo, 2003: 50)
. ,. • · tado com a mo-
Esse universo m1t1co amazomco tem se enfren ·
difer entes
As figuras mudam e se transformam permanentemente. Outro demizaçào ' promovida por d1. ferentes .mSt1r· uições e em
endo na
dos "encantados" é o Matintapereira, que também assume o . s. A 1guma coi. sa está ocorr
períodos ' de distintas maneira
. e
nome de Matirnpererê ou Saci Perecê, personagem que também atualidade e mudando a s1tuaçao
. . e u ma difer ,, entr
- , pois exist
ença
se gu em
virou livro de Monteiro Lobato, projetando um clássico da escrita a memória de ontem e a de ho1e. . Porem , os "encantados
a des que
sobre um clássico da oralidade. Aqui se trata de uma ave. É uma ocupando um lugar importante na vi. da das com uni.d
. do-se através
das imagens mais comuns no meio amazônico. Sua origem retro­ se defrontam com a modermzaçao, - transforman exo a
cede ao século 19, na região Sudeste do Brasil, especialmente em s. Verem os O n '
de outros tipos de elabor açoes- d.iscursiva dade,
Minas Gerais e São Paulo. Em Portugal existe esta figura, mas ela . , o miu a da comuni
articul ação deste imaginan . , . co com a v1.d
não aparece no Brasil colonial. Entre os indígenas tupinambás, no caso de Itancoà, Brasil.
a ave Matintapereira passou a ser chamada de Saci Pererê e se
transformou em um negrinho caboclo de uma perna só, que

192 193
OS "ENCANTADOS" SE REBELAM:
O CASO DO AREAL
A Amazônia é uma região conhecida quase exclusiv
amente
por seu componente indígena. Nela, a diversidade alu
de atu ai.
mente, como afirmamos no início, não apena s às co
munidades
indígenas, mas também às comunidades cabocl as,
ou seja , ru.
rais e mestiças de diversas naturezas, ribeirinhas ,
extrativistas
negras, descendentes de escravos, quilombolas e '
mig rantes de
diferentes épocas.
Dizemos no começo que havia um imaginário
mítico trazido
da Europa - como o das amazonas - bem com
o um imaginário figura 49 _ o golfinho é um dos eixos do imaginário popular em toda a
.
local, que articula até hoje estas culturas: a
Cobra Grande, 0 extensão do no
Boto, o Curupira. Existe uma construção diár
ia de imaginários
destes povos que são de cultura essencialmen Gua1a· ra, e' uma comunidade negra situada no. Baixo Acará,
te oral e têm a ver . .
com o desenvolvimento atual de suas vida . . ha da comunidade de Itancoã. Elas compamlham a idenn-
s. Nestas construções, v1zm .
a história, os temores e as expectativas
das comunidades vão se da de d e rem anescentes dos quilombos. Ambas..
as comunidades,
.
juntando, num imaginário que incorpor
a as vida s individuais formad as POr Setenta e três núcleos farn1ltares, viveram toda a
ao destino do povo. Assim, as suas histó vida de cerra forma autárquica, já que até o ano 20_0� so, se che-
rias são também as da
comunidade. Em nosso caso, falamos das gava a suas terras por barco · Este isolamento permmu que estas
comunidades morado­
ras de descendentes de quilombolas, resid comunidades fossem regidas, durante mais de cem anos, por 1eis ·
entes no Baixo Aca rá,
chamadas de Itancoã e Guajará, no esta
do do Pará, no Brasil. P róprias · Dentro delas nunca existiu po(jciais e nem sacerdotes.
A escravidão no B rasil só foi abol As deci õe e di curem em assembleia · comunitá. rias' e a so l1-
ida em 1888, é uma das .
mais tardias do continente. Os quil dariedade e o cuidado com o demai é algo qu� �mpress1on � a
ombos foram o refúgio dos
quilombolas, escravos que fugiam para quem chega de fora. Estas caractensac , . as perm1nram rambem
ce rto lugares na elva e av
ali construíam suas aldeias, em
condições de p r ecariedad e e de manter em ua cultura as tradições herdadas de seus i°� - :
i ga
sobrevivência básicas. essa regi pai em algun ca os - escravos, como' por . exe,,mp o, as o
ão, os quilombos perduraram . e os padre s
por dife rentes razões, pois os desc reza cantada em lanm, chamadas "ladainhas 'qu
endentes dos quilombolas pe r·
manecem em vários lugares en in avam no barracões.
originais. Eles se identificam como . i de escra vos
"remanescentes dos quilom A duas comunidades d e cendem de cres • fam1Tas
bos", herdeiros de uma rradição de . róxim a. A
lura contra a escravidão, que fugi tivo (Galiza, antana Zecca ) e vivem de forma p
fo ram redefinindo suas identida des venda
e atualmente lutam pela maio ria do habitante vive . _ de carvão ' da
da p roduçao
terra na qual permaneceram durante xo em
duzentos anos, ao mesm de ba mbu e da farinha de mandioca. O nive , 1 de vida é bai
o tempo que enfr entam o perigo da alg uns
modernizaçã o desenfreada .
rela ção à qualidade da altm entaça-o o qu e faz co m que
. . a lepra ou
de seus habitantes desenvo 1vam enfe' rm1dade5 como
a tuberculose.
194
}95
c o c ome çava a exyerimencar vida, produzindo ruídos
Nos últimos anos, estas comunidades têm lutado m uito P 1 ligar se f o
s s e u ma erupçao, que se podia escutar a quilôme-
receber os títulos legais de posse destas terras, onde vivem
ar a corn0 se · - .
há distância; e ntao, o Ar ea I se ench1a de uma água cor de
duzentos anos. rros de . a, meia-noite
. segu nd o .os ha b. . irantes. Sempre acontecia .
A área ocupada por estas comunidades é grande, são uns du­ vinh o, 1 nchia d e agua no centro, e a seu
e lado
zentos hectares. Elas compartilham um imaginário que é respon­ o Are• a via varndo
s e . .
a areia. Todos escutavam como o Areal ia
parecia que
m ha •
sável pela coesão do grupo. Existem, na vida destas comu nida des, alg ue . 1 escutar, no ruido
enc h e n do. Tambem era poss1ve . que fazia a
relaros cotidianos de homens lobos que se transformam em por co se galos, os lattdos de cachorros, os relincha
ntos de s de
ou cavalo, de padre sem cabeça que vaga pelas proximidades da a. u a os ca macacos e de porcos.
g ' 5 ru ídos de.. , Aí, os habitantes das
casa do patrão, de dois meninos negros, fantasmas que andam cava1 os, 0 - 1 o. A ,
agua estava sempre 1·1mpa apesar
des ia m v1s1ta
pelos caminhos, entre outros. Este e píritos são chamados de comun1'da . . .
caía m.Hav1arodo ttpo de pe1xe,segundoo senhor
"encantados". O Areal, um va to lugar de areia branca, desa­ das fo li1as que ..
morador de Guaiara. Ele conta que, quando
bitado, é importante na vida da comunidades, já que residem CI. 1 0'. 0 mais antigo
ver os pei.xes resvaland o pelo caminho até
naquela área de de o tempo dos antigos, "encantados" muiro cho via, era p o ssível . . .
água permanecia ali por alguns dias e, numa
poderosos, que cuidam do lugar. Cada um dos habitantes do lugar chegar ao A reaI. A
. A água voltava a escorrer pelo
man ha qua 1 quer, desaparecia
-
já passou por uma experiência pessoal nesse areal, que depois se eal.
roma uma história coletiva que vem desde os tempos dos avôs. buraco no centro do Ar
No entanto, o que acontece e tem roubado a tranquilidade e
trazido inquietude à região, é que, segundo os moradores das
comunidades, a partir de 2002 estranho movimento começaram
a se produzir por parte dos "encantados" do Areal, de de que
alguns trarores começaram a chegar ao local com o objetivo de
extrair areia do lugar.
O Areal é um amplo espaço de arei:i branca, de uns cem hec­
tares, onde cresce uma vegetação diferente da que habirualmente
aparece nessa parte da Amazônia. Pela rexrura ele su:.1 arei:i e por
sua cor esbranquiçada, dá a impress::io de ser um lug:.1r nevado,
realçado pelo contraste que estabelece com a pele escur:.1 cios
habitantes de Guajará e ltancoã. os limites deste areal, há uma
pequena cachoeira, chamada A Pedra, que segundo os moradores
locais, faz parte cio espaço encantado.
Tradicionalmente, o Areal sempre foi um lugar onde ocor­
riam fatos considerados naturais pela comunidade; durante a "
maior pane do ano se encontrava limpo, sem folhas e ramas cios ' -
a comunidade
arbustos que o rodeiam, e cresciam uniformemente devido ao Figura 50 - por - Sepúlveda,avanço brusco
Sebastt. ao
o documenta no O areal, .
realiza do ico com 0
de G ua1a uni·,,erso mág
tra�alho de um "zelador", uma espécie de jardineir;, como um · rá expcri menra o enfrenr amentO de seu
da lllodcrnizaçào
espirno, que zelava pela limpeza do lugar. No mês de maio, este
O areal, doc
un1emário. 54 mm. Chile -Brasil, lOOB.
197
196
.............

no ltimos tempos al�o ac


O Areal era habitado também por uma princesa l oura, q
ue _Mas e is que � ú onteceu.
Era como se
chegou de uma ilha chamada Chapéu Virado e cant ava u s s e - á an u nc ia do ; pa sso u p ah um
rna esu .v e 1 or
fun era l e O Areal nao
ver a morte passar. Desde então, mais exato •
modinha, uma canção de amor, sobre a qual uma das habita s t o u de
ntes, go desde maio
a mais velha, Dona Luiza, filha de escravos, relembra a let não v olt ou a se encher de agu , a. Secou. Isto coin
ra e de 2002 ' cidiu
canta. Na canção, a princesa conta que, ao lavar seus cab ta d e u m h orne m pe la areia . branca do
elos com a ofer Areal. Um
extraiu areia . da 1·I e, segundo os moradores, os
louros com a água do Areal, se converteu em "encant
ada" , cam t.n,,h a"0 . " encan-
ficando presa no lugar. Cantava, dessa maneira, a tristez ad o s do luga r não gostaram da chegada d esses inv aso res. Di-
a que t
sentia por não poder voltar para sua ilha e encontrar seu am e m pre sár ios tenta ram se torna r d n s do Areal ,
versos inclu sive
o o
ado.
Muitos dos habitantes de ltancoã e Guajará afirmam a n d o fals os documentos de pr opne · d a de; e1 e ·
tinham como
que Porr s

sobre o Areal existiu, muito tempo antes, uma cidade de . struir uma enorme ponte so b re n ,
. chamada Alça h
ouro. pr oieco con . . . a exploraçao
o o
-
Ago ra está enterrada sob suas areias brancas. Em seu imagi . ,na . que, obviamente, pemutma e o transporte
nário Via , , .
é possível rastrear a persistência de Eldorado. da areia . em caminhões , rumo a Belem, em apenas meia ora.
.
O Areal sempre foi um lugar respeitado. Por exemplo,
uma A ponte, bastante parecida com a de São Francisco, nos
mulher durante o período de menst ruação não pode
visitar o Estados U OI.d os, foi construída em 2001, no marco de .um pro-
lugar, porque os "encantados" veem neste gesto uma . de integra ção r egional do Programa Grande Caraia, s , pa ra
falta de 'eto . . .
respeito. Segundo Maria Antônia, carvoei ra, uma
-
. açoes dentro da "maior provmc1a , . mme1ra
mulher que facilita r as comumc ..
foi lá nessa condição morreu três dias depois, com do mundo ,, , conforme afirmam os documentos. .Ela perm1tma .
o resultado da • "
visita. Dizem que, ao sair da água, ela encontrou com que " os grand es e i.xos do desenv o lvimen to da reg1ao pu d essem
um casal . . N
de jovens "encantados", que a cump rimentou silen
.
s upn r o acesso dos produtos paraenses ao hem1sfeno
, orte, "em
cios amente - . ,,
ao se cruzarem, condenando-a, dessa fo rma, à m ort
e. cond.içoes com pennva . s .
.
Num de seus cantos, como dissemos, há uma cachoeira form com a const rução ponte, um negoci da , o de grande enverga-
a­ . · ·
da por uma grande pedra (A Pedra) com vegetaçã
o da selva, que
dura ' urna sé rie de emp resários e po 11c1a1s cor ruptos tentou se
. .
é muito respeitada. Pa ra se banha r ali é neces
sá rio pedi r licença
ap ropria r da areia, . unhzando fa1 s o� títulos de posse da terra,
aos "encant ados". A Dona Ruth, que traba
lhava no cu ltivo da o que levou a comumºdad e de Gua1ara, onde se encontra em
mandioca, esteve ali com sua tia e as duas term os legais . o Area 1, a protestar · duram' ente 1un • to aos órgãos
saíram com uma forte
dor de cabeça. A tia m orreu no dia governamentais. Muitos dos !'d
.
I eres de Gua1a . ra, ti·veram de se
seguinte, de form a trágica. , . resá rios.
Isto aconteceu, segundo Dona Ruth,
porque o "Índio" que vive
esconder, devido . as ameaças de morte fe1tas pelos emp . ,
naquele lugar não gostou da p r , ass a .
ma to de líderes
rura is e
Em comumdades . prox1ma . s, ss .
Gua1ara,
0
esença delas.
A comunidade inteira mantém uma prática comum. Nest e contexto o s moradores de
uma relação especial com es te . a1' deu como resultado
luga r que já se con stitui como
um lugar de referência c omum, do travaram uma longa batalha que ao' fin
terras. Em 26 de
qual cada um participa atr
avés de sua história pessoal. As histó­ a conquista dos titu , los de propn'.edade das
comuni.dades
rias de escravidã
o, assim como as histórias d dezembro de 2002, medi ante ª 1ei· de proteça- 0 às s de
o encantamento do u os título
are al e seus efeitos, são
dois r eferentes permanentes na memó ria descendentes de quilombos, 0 govern o entrego .dªde'
dos membros da comun propriedade à comum·dade de Gu a1a . ra, .6 A o utra comuni
idade. ma vez que não
Itancoã, não obteve os t ,1tu1o s de propn. edade' u
198 !99
ortável depois que
os requereram ' pois, ao parecer, os em presár_ ios não se most raralll cab eça. insup . se foi· 0 esposo
dor de eira ,
.
vm u cavalo- mari nho gigante, metade
de Antô-
. , a carvo m
interessados em suas terras. Na compreensao d eles, o desinteresse .r11a . negro
d br anco, corrend o a, noite do Areal até O no. .
por suas terras tem a ver co m o fato d e não possuírem e m suas em e t a e Q uando
. erguntado a qu e s e d ev1a . tal fato, respo ndeu que a
terras um areal. D esse modo, o Areal s e lou os destinos das d uas f01 p
udanças.
.
A simbologia da perda se e
natu reza
n tin do as m , xpres
co munidades irmãs. esta, se . . . sa
ém n a seguinte h1stona:
No momento em que recebera m os títulos d e propriedade caril b
em Guajará, houve uma discussão sobre vale r ou não a pen
muitos fantasmas que, hoje em dia, quase
vender, não só a ar eia, mas o próprio Areal, o que por um lad: Nesse tempo apareciam
os, porqu e o desmatamento vai crescendo. Quando eu
significaria ganhos econô micos com a cons e quente melh ori a an da m sumid
aqu i era muito grande. As árvores eram muito
de vida para a comunidade e, por outro acarretaria em troca a {or rnei família isto
Zeca? Aqui era escu ro. Aí apareciam os fantasmas.
extinção dos "encantados". andes, né verdade
Zé Carlos, líder sindical de Guajará, e stava a favor da venda �oje está tudo mais claro. A pessoa anda por aí e já é muito difícil
Mas para nós é muito difícil, que os fantasmas
que beneficiaria a comunidade, dizendo que todos eram favo­ ver fantasma. Existem.
ro or de ltancoã, Brasil, 2002).
ráveis; no entanto, algumas mulheres e homens, como o senhor gostam mesmo é lugar mais escu (Morad
Ciló, tio de Zé Carlos, diziam que não estavam de acordo, apesar
tados" estão
de saberem que o Areal era "uma mina de ouro". Assim, depois A história r evela que não somente os "encan
também aparece o proble­
de uma reunião comunitária, decidiram vender até três metros abandonando as comunidades, mas
dois resultados
de profundidade dos cem hectares do lugar. Entretanto, naquele ma da destruição da selva e do meio ambiente,
o sentido da mudança,
momento, um antigo proprietário de terras d e Guajará impe­ da modernização. A construção registra 7
rnização
tr�u um recurso no tribunal de Belém, afirmando que Guajará de algo que está transformando suas vidas. Da mode
ontado com
nao era uma comunidade realmente quilombola, logo, as terras conheceram o pior. Isso implicou um mundo confr
com as
pertenciam a ele. O recurso foi aceito e suspenderam a entrega o imaginário da Igre ja católica, no começo, e atualmente
� estão
d�s títu!os à comunidade; posteriormente, após investigações os igrejas evangélicas. Os moradores deste universo imaginári
mao ifeStar,
tnbuna1s referendaram novamente a entrega das terras. mudando assi m com o os aspectos e as formas de se
no seio dos
Devido a essa circunstância, as mulheres de Guajará e ltancoã uma vez �ue um a luta entre poderes está ocorrendo
começ�ram a falar da "maldição do Areal". Dize m que a venda imaginários. Com o relata a seguinte passagem :
da areia levou Guajará a uma situação de crise .
s · Meu espo so
Os trabalhos de escavação prossegue.m até os dias de hoje, Um dia à noite estava em casa soz1'nha com meus filho . ou
eira. Apit
com tratores e caminhoes
. . , . Os
- Ievand o a areia pela Alça Viana. estava caçando e e la apitou perto de casa. Era Matintaper.
o Salmo 91 .
habitantes e trabalha dores encarr
egados da e xtração de arei.a p erto. Queria me fazer medo. Enta- o, peguei. ª Bíblia e h eu
comentam acerca de umas Iuzes
enceguecedoras ' que surgem . .
Ela se irri .
mais alto , mas 1
eª f0i e mbora. Porque
· tou. Soou o apito encontra a1g ue'm
do Areal de dia e de noite, num comecei a invocar o nome do Senhor. Quan do ela
lugar onde as únicas luzes são nes-
as dos cami. nhõe s· ReI atam per segue es ta r-
que não crê no Senhor' que não está libera da, ª1, ela
.
que um caminhoneiro teve de ser e
levª d0 a um hospital de r terra. t. 0br a d
Bel'em, porque a luz lhe apareceu no soa. Ma s com o pode r do sangue de Jesus, ela cai po .
mome nto em que trabalh coa- , Brasi1' 2004)
ava na extr ação, deixando-o com uma Satanás, o Maligno (Esposa de Roberto Serr a, Itan

200 20 1
.....
tados" não são figuras aleatón·as. Eles
Os "en can . convive m,
O senhor Zeca, por sua parte, afirma: te da
.
vi da dos habitantes da Am • .
rn a r azon1a; explicam,
faze P . .
. rn e d ão senudo a essas vidas. As forças do 1ma . . ,
Eu me pego pensando às vezes, sobre a questão das serpent cs. gu i a .
d a d ', . d
1ana, eterm
. g.man o
rn n a vi mando -a · e C e rta ocas1a __
.1nte rvé o
Faz uns dez anos aqui tinha uma quantidade de serpentes, que de
os gravando o trabalho_ de um. carang uei'eiro, num 1 ugar'
andar por estes lados era horrível. Hoje tem poucas. Entã o, pode ser esta, Varn
. arro p erto do mar, nao muito longe de Bele'm, na I•tha
a mesma coisa com os fantasmas. Tem m eno s por causa da claridade. che10 de b . .
. Seu trabalho consistia _em descobrir, debaix o da
Por causa de que tem muitas casas, toda um a série de fatores que vão de _Marajó
barro, os buracos onde vivem os carangu ejos. t um
distanciando eles para outros lugares. Muita oração. Hoje Assembleia água e do
e o obri ga a ficar dentro da água e do barro quase 0
de Deus, Igreja Católica e tudo isso se junta, soma. Mas ta mbém tem trabalho qu
erguntei a ele pelos perigos que corria. Ele me disse
gente que assusta à toa. Isso é um dom também. Eu nã o tenho o do m dia inteiro. P
eram as cobras, a � serpentes que entravam nos
de ver, mas posso c ontar que escutei muito ruído que te m a ver com que O princip al
er os carangue1os, sem serem vistas. Assim,
essas histórias. Agora, isso de ver, cu só vi um fogo no céu (Senhor buracos para com
picado. Perguntei se não tinha
Zeca, ltanc oã, Brasil, 2002). quan do enfiava o braço podia ser
medo. Ele respon
deu com absoluta confiança, mostrando algo
m e acontece nada",
Estam os num mundo regido pelas águas, regido por sua tem­ pendurado em seu pescoço. "Com isto não
poralidade e seus ritmos. Apesar da enorme mudança cultural afirmou, mostrando um dent e de jacaré.
representada pela chegada da modernização acelerada, realizada É desse modo que a modernização e seus perigos encontram
ização
pelos militares nos anos 1970, que implicou a consagração da no imaginário dos habitantes destas localidades a simbol
inter­
grande empresa nacional e internacional, bem como a constru­ do ressecamento do Areal. Por esta razão é que no Areal os
ção de rodovias que reorganizaram os sistemas de comunicação, ditos cobram vida, além da memória e dos medos do grupo. Éa
tos,
originalm ente fluviais, a Amazônia continua sendo definida co mo partir de sua história que a comunidade manifesta seus confli
um a enorm e ramificação de rios, afluentes, lagoas, igarapés, seus habitantes revel am as formas de imaginar suas vidas.
visualizados pelos prim eiros invasores europeus que chegaram
no século 16, vindos dos Andes, de Orellana em diante. Paes
Loureiro propôs o sentido de construção destas formas de pensar DISCURSOS E IMAGINÁRIOS SOCIAIS
h m de ! es
e_ e �perim entar o mundo como o de uma "poética do imaginá­ Existem outros tipos de discurso neste cam po. Nen �
çoes
no , que nasce nos habitantes da selva a partir do devaneio e é div orciado do anterior mas estão m ais ligados às situa
tip de
concretas dos ofícios e s�us problemas. Trata-se de um
o
da relação permanente com a beleza natural.
.
te xtualidad e oral que esta, sendo recopi·1 d0, ªprocedente dos
.
Está se falando do poe'ti·co, e mais• precisamente, ,
.
d e uma poet1ca . . que existem na reg1ao
grupos soc1a1s - . ª
. DeIes nalisarem os apenas
· a um
como estado coletivo remocenta
_
relaçoes
· do. Esta, se falando de um con1un to de
culturais com 0 mundo. Reguladas
ª 1guns, pois a bus ca pela exaustao
.
- nesse aro
.
• bito leva.na
s vid as, s,ua· s
. pelo poético que emana p ro1eto diferente. Nesse caso, pesquisamos sobre sua ,
do devaneio . . . ma sene
.
do imaginano
_
, · em 1.b
I erdade, cuia mediaçã o e, feita por .
ex pectat ivas, sobr e o mei . o. O resultado e u
me10
. das s1m bohzações e5cet1cas suas imagens . . s. Buscamos
.
na visu alid
. ade amazo• mc
, . configuradas na mitologia na arte, de reIatos, nos quais são narrad as h istórias p ess oai
- a (Paes Loureiro, 2000: 80). ' . . atrave, s destes discursos.
p erceber os imaginários soc1a1s

202 203
O s discursos atuais da região têm como compon entes o utr , p ara ele s . Eles s ão permanentemente assed.iados
os na_º e pelos
a tores, que viveram o drama da moderniz ação des enfrea
da a z e n d eiro s ' que roubam . ,
suas terras. São
acos sa d os tamb ,
f em
surgida no s ano s 1960 e 1970. São os textos e a orali da de str uç ão de h1d rele .
tnc a , que os expulsam, bem com
pela con
s
d; o
complexa condição dos habitantes da Amazônia de hoje. Trata-s s m in er a dor a s qu � ocup am seus terri órios
, ou os g rimpos
e pela : a
de discursos provenientes de ribeirinho s, garimpeiros, centenas e n ve n en am suas aguas �oro o roercur'.o sado na procura
que _ �
de grupos indígenas, descendentes de quilombolas que enfr entam r o. S ã o tamb em assed1a��s pelas m1ssoes, ontem católi-
do ou
inermes, ou com algum grau de organização, a chegada brutal da e specialmente evangeltcas, que se apoderam de suas
moderniz ação acelerada. Ele s defendem se u lugar de trabalho cas' hoje . • .
' rn a . em muitos ca so s, merguIharo suas ex1stenc
s, 1 as no terror
aJ
sua terra de cultivo, lutam contra as mineradoras e seu ritmo
ou s1. rn
plesrnente passam a determinar suas vidas. Faremos refe­
capitalista incontrolável, contra o de smatamento sem limites adia nte ao que aconteceu com as "Novas trib os",
da s madeireira s, que violent am sua s vidas, contra a invasão r e•n c1• as mai s
dinâmica que tensiona os imaginários. Agora,
das hidrelétrica s sobre seus territórios, contra o a ssédio que as na Vene Zuela, e a •
perto outra s ocorrenc1.as, como a de
missões religiosas promovem sobre su as alma s . São discursos de vamos Observar m a is de
urna d.1ng · ente indígena ' bem como de seringueiros, mateiros e
uma cultura fragmentada que falam da situação de suas vidas,
suas expectativas, su as luta s. ga rimpeiros de hoje.
Eles não enxergam o conjunto amazônico em su as articu­ MARIA MIQUEL�NA BARRETO,
lações profundas, porém suas vozes refletem o sentido delas, DIRIGENTE INDIGENA
ação das
configurando o coro das formações culturais mais tradicionais Maria Miquelina Barreto é dirigente da Coo rden
uma das poucas
do continente, frente à pressão impávida da ocidentalização que Organizações Indígenas da Amazônia B rasileira,
. . • digen ' as no Brasil. Conhecer a sua
os "zumbi fica ", anulando sua alma ao reduzir aquelas pessoas a e importantes orgamzaçoes m .
ncias e o papel
uma mera força de trabalho. Destroem seu habitat e seu modo história é um c a minho pa ra entender as circunstâ
das instituições na v1.da do 1ugar. t um caso interess
de vida: "Os indígenas e a natureza em noss o território são ante, porque
uma coisa só, uma única coisa, e é por isso que os ashaninka ela é mulher e foi construm . do sua 1.d1 erança po uco a pouco. É
nas margens do
que remos ter ras não somente para nós, mas para os macacos, o s da etnia Tucana. N asceu em Santo D Omingo '
. Bra s1. 1 ' no Alto
caititus, as aranhas. Eles também têm direito a viver", afirma o rio Tiquié ' que fica na fronteira entre C olômbia e
dirigente ashaninka, o peruano Juanuco. E Damián Tibij an, dos , dº1os do lugar Iª . , traia. vam
Rio Negro. Quando ela nasceu, os 10 . o irm os, tucano.
agua runa, continua: "Estes são os montes e rios que permitem . , os cinc .• •a-
roupas ocidenta i s. A mãe falava tut11ca as
meu povo viver; esta é a herança que a gente vem recebendo de É comum o us o entre os povos 10 . d'igenas amazon1cos de du
gua geral na
nossos antepassados e vou derrama r meu sangue antes de passar ,
. do sec
lmgua s. Existiu, desde o final , ul o 18, u ma l'in s
ver gonha, de olha r nos olhos de meus filhos, quando a gente co m n ic
. ar todos os grupo ,
reg1ao, através da qual podiam º se u
ae
perder tudo isso" (Herreros, 1992). Damián Tibija n m orreu , . ne egha tu. Aind
etm·�cos, uma variante do tupi. que se chama portuguesa,
assassinado como dirigente ashanink a.
m nt , a C oroa
faI ado em alguns luga res. P05ren·or .. a1·
e e
Uma das reivindicações básica s dos povos indígenas é o di­ •
ues co mo
língua of1c1

ve ndo nele um perigo, .1mpos O P ort u g
reito à sua existência. O que pa rece claro para qualquer pessoa,
20 5

--
204
delas, levantar cedo, estu dar, acom
que cuidar panhar, fazer meus
Cada língua, então, passou a ter sua função específic a Ha 1 inhª -
. _ · via . os, fazer as oraçoes. Eu também tinha mwto . . ntivo para
ince
a língua da comunidade, para a comumcaçao inte . rna e a
vid serviç padr . la, em Be ·
e que me disse ser
. , Tev e um lém · "0lh a, voce te
frei r a m que
diária, 0 neeghatu para as relações interétnicas e o p ortuguê: . "
E u respondi: Padre, eu não sei O que va·• ser de mim
fr e i·ra" . . . daqu i
para se comunicar com o colonizador. ser
. eu nao• vou fazer este Juramento porque eu •
n t e , nao so u assim."
Eles viviam em torno da Missão de Paricachoeira · Já não havi. a em d1a .
. re cé m- chegado, nem fazia noção de como era O mundo. "N·ao,
mais as malocas, pois, com a chegada das missões, eles forarn f-lav1a . .
• te rn qu e s er freira, vou rezar muito, vou rezar missa" ·
• Sabe.> t1ve
divididos e cada um passou a ter sua casa. Seu pai morreu ce do vo ce
unidade, mas nunca cheguei para falar, para demonstrar
de malária no trabalho nos castanhais. Sua mãe foi amparad; essa oport
ha mãe, que era a madre superiora (Maria Miquelina Barreto
pelas missionárias. Ela estudou numa escola cristã• Seu pa1· era � min
2006).
catequista também. Trabalhava no campo, depois de rezar na .Manaus, Brasil,
capela aos domingos. Mantinham uma ligação ritual com as de­
A pressão da Missão não ocorre somente neste espaço. Tam­
mais comunidades durante as festas étnicas, como o "Gabicuri"
bém se dá na definição da sua vida, fora dela:
uma f�sta de alimentos. Os jovens se mudaram para a cidade:
os mais velhos, muitos dos quais eram pajés, já morreram. Ela
se chama Miquelina em homenagem a uma freira italiana. Foi Então aparec eu outro rapaz, da aeronáutica, era um cabo da Força
ava. Eu
se tornando uma pessoa forte na vida, sozinha, desde pequena: Aérea Brasileira. Chegava e conversava comigo, a gente convers
ele comendo.
ia no refeitório com ele, sentava e ficava conversando,
Maria,
Então, eles me levaram para a Colômbia porque num tempo, não sei Então, de uma janela, mais em cima, alta, aparecia o padre e: "Ai,
que eu
em que ano, apareceu o trabalho fácil. Havia muita procura de látex, está namo rando?", gritava. E assim, parece que eles queriam
o está bem.
um preço bom, então vinha gente da Colômbia procurar mão de obra, arranjasse um namorado, mas aquele e não este, meu marid ,
ele:
vamos dizer, aqui no Bras·I1 , como os m' d.10s. F01· nessa caravana que No final ele foi embo ra, porque era de Belém e eu conversei com
eu fui levada para lá. Então lembro que houve um tempo de sarampo, "Olha, se me mandar uma carta, eu posso, um dia quando você apare cer
ar, eu
teve muita gente que morreu ali, ali mesmo na selva, não era na aldeia de novo, sair com você." Então ele disse: "Não, quando eu cheg
. Bem,
nem nada , era na selva • A ald eia , pelos
· estava aqm· e as pessoas saiam te mando uma carta, tudo bem." Até agora não mandou nada
, · "Olha'
caminhos pra buscar o la'tex, com os coI omb1anos (Mana . .
. M1quehna ate, que eu estava gostando dele. Mas a1, a ·trma· me ehamou·
• mand a
Barreto, Manaus, Brasil, 2006). você falou com ele? E o que ele te respondeu?" "Não sei, me
pensar
uma carta, se eu gosto dele, di.sse que vai. escrever e eu podia
Ela estudou O básico
• disse
m elhor." Ela diss e "Est á bem, espera!" E depois · assun · .• "Po rque
· na M'1ssao - e depois retornou para s e
, gava. Voce
formar em Pedagogia, graças a .
um avião que distribuía os ma· no, s que ríamos ver seu comportamento, ate on de você che
u
. ·lrl.a com . depois aparece
,, ntao,
ten. a1s nas Missões · Depo·1s
continua: ele?"; "Olha, ia, se ele quisesse eu .1 ª· E
quero namorar
este meu mando, .
chegou com a freir . a e d'isse.. "Ah'· Eu
ela tem que
Então, em 1981' e u enSm. ei. em . co m e 1a!" Então a freira disse: "Na. o, para nam orar com
Pancachoeira, na Missão. Além meçou 0
. ar, eu toma
de ensin passar na sala . a)··· e é assim que co
va conta das menina
. s que estavam internad as ali. antes" (que era da Diretori a51·1• 2006).
namor o. Aí uelin a Bar reto , Manaus, Br
está, bem (Maria Miq .
206 2 07
. que, como na coordenação da COIAB, so
rú,o)e é . u secretárta· geral, é
e l. E co mo secretar, i a geral(... ) hoje ve .
flleu p P a i o que nossas. muIh
b'rn c rescemos bastante, porque ali, na bas crcs
rartl e . . e, o movimento
. mais orgamzado. Tanto no das
U l h e re s e stá mu1t0 trab ª lh0 polm .. co na
(Tl
na educação, como no desenvolvimento sustem·ave 1• p orqu' c .
sau'de, . e
a ve, s do artesanaco que mUJtas mulheres trabalham, vendem, nao • .
atr e?
união acho que estamos bem fortalecidas ( ··· l Eu te nho uma
Enta_ O nessa . de uma base para sustentar
mas preciso a at,·v,·dade. N·ao
ex perl·e·ncia '
uer e , que rer eu tenco. As pessoas têm que buscar essa união,
basta q r essa
, p o rq ue para chegar a esse ponto eu tenho formação. Aí na
inr eração
s a mos pelos problemas dos militares, que é um problema
região nós pas
seminários e eu dirigi, porque a relação não era boa ·
se, n-0 • Fi·zemos
Porque as comunidades estavam sendo objeto de abuso sexual, como
coda essa quest ão da discriminação, rudo. E tinha outra questão, das
mineradoras. O que significam as mineradoras para o pessoal? É uma
quesrão muico polêmica e difícil( ... ) Em nossa região, nós sofremos o
impacto do garimpo. Os parenres que escavam lá fizeram uma aldeia,
mas muitos volraram ( ... ) O problema é que eles ganham ouro e não
Figura 51 - Jovens yanomami numa cena da vida cotidiana sabem in\·esrir, eles não pensam no futuro, no amanhã. Hoje eles ga­
nham, compram rudo, comida, cachaça, gastam mdo, acaba, e lá vão
Apesar de ter sua vida pessoal dirigida pela Igreja, no momen­ eles de no\·o. Eles não emendem o que é uma renda que sustenta, você
co que dizem que deve e ca ar ela não aceir:i. Vai se casar quando vê)(� la ria \ !iquelina Barreto . .\,l anaus. Brasil, 2006).
quiser, diz. Estabelece enrão uma relação, com seu companheiro,
enfrent� m
de envolvimenro com os trabalho e a causa indígena. Mas, nem l\liquelina explica o problema que os indígenas
loraçao,
tudo é fácil. O casal perde um filho pequeno: "leucemia, segundo com as madeireiras. Há uma legislação que regulaª exp
os médicos; mas, segundo nossa tradição" afirma ela "era uma que ela não ob en·am, mas no caso dos 111 1 nas é difere nte,
· d'ge
. rando suas
maldade, um feitiço. Para isso não tem :ura." Miq�elina está poi eles preci am viver de algo e ac abam explo
ndes
. . Iho f e,r. o pe la s gra
sempre entre as duas culturas. Depois, decide se mudar para madetrcl . Não é possível 1u loar o o traba
. Com as empre-
Manaus e começa a trabalhar na Fundação Nacional de A sis- emp resas e as comumdade s com a mesma lei. . a. eom
, . • . afirm a e 1
tência aos I 11 d'1genas, ·
Juntamente com seu marido. Ali conhece as sas, e uma questão muito polemJc a e d1"f1.cil truição
. , • . pois ha ', urna des
comunidades em raza·o d os , .
conratos necessanos e tem 1111c10 s ua re 1 aça• o ao garimp. o, a s1ruaça- o e, e 1ara' dem ação
arc
. o e, o da
liderança Hoi· e se sente sans · fena
• por tudo que fez, sempre 1u nto
social . Outro oorande problema enfrenrad - mas
. · . ela erad',çao,
do mando , com q uem d.1v1'd .
e as responsabil. i. dades dome,s ti cas. das terras . Ele têm a propriedade garanti da p s não
rn peiro
'
Tem orgulho de ser uma d mgente . ,· tanro os faze as · erado ras e gari·
rnin
111d1gena e mulher: ndeiros corno

208 209
fala dos problemas enfrenrª dos pelo s ind'igen
e as invadem. Suas cerras ai nda nªº Jviiquelina . . as na
respeitam esta tradição · z ônia . Ded i cou sua v i da a lut a r p o r e Ies, tem
orgulh °
d e ser
oficialme nte: Am a o mulher e observa que , atua1 mente, a difcren a
foram entregues e ci da corn . . ç
re conh . des cem perm1t1do que ma is pessoas se acerquem
ua s ar 1tu
eno comp r ado, você cem um doc um enro de s d e necessidade que encont ra hOJe
Quand o vo cê cem um terr ci l idade. A_gran . e, a edu-
n o é seu, est e lugar, esta fazenda· E se quiser com fa ,
novos lideres que c ontinuem o t rabalho·
para dizer que este terre a f orm açao de
. •
o mo trab al har? Aí começa nosso probl e-
cação e
desenv olver algum p ro1, et o, c seu grande . ho pessoa : "Meu sonho hoJe
son · e, que eu
l
Confessa
ma, p orque nós temo s areas dema
r cadas, m as não t emos os títu l os'm e ro voltar a viver na comunidade."
queria rnui
Manaus, Brasil, 2006). comunidades indíg en a s, que perfaz e m um
ente nd e ? (M a ria Mi quelina Barreto O discurso das
em r oda a regiã o am a­
rno de rrés milhões de pess oas
coral em ro o de lamento . Ê um discurso de
apenas um discurs
zônica, não é io­
que vai mais além da terra, seu objetivo tradic
reivindicação im ento étnico, da
diversifica em corno do reconhec
n a l, e hoje se uísmo, do acesso
dade das sociedades, do mulri ing
l
mul ric ulrurali os a nces trai . Ê
do re peito a seus conheciment
às tecnolog ias e o branco, com a
fal a das relaçõe com o mund
um dis curso que dade
ge rn ô nic a. po rém no que diz respeito à sua identi
culrura he a em termos
acesso à ar,ndade ec o nômic
étnica , bem c omo de
regul a r c . da tríplice
Ticun a, que e localiza perto
Um amg.o ,obre a em1.1 o a a batinga,
T
o1Ht'1 r,1 cnrrc Peru, Colômb i a e Bra il. p róxim
fr na ceu
.1 l"m.1 n.1.:-u . que e,1 te de de 1914 e onde
f.iL1 d.1 .1kk1
en rad o :
r\ndrt' d.1 's1h ,1 .-\lfrcdo. o enrr
nos que prec i-
1, rrt'c" 11nú 'tW. e,pe .::1J 1 menre .::orn o alu . e,
is,
\, H,k�nc"u t'
e estadua
equd.ir na. e,,o . 1as rnu01 ,pais
,.1111 ,.11r 1 .1, .ildc,.1, r,1r.1
l
L t' p gosa par
a sos filhos,
nos
. ··T.H•,1nng que rodos
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aq ui , de forma
o que m.11, 111c 1111111d.1 .\n dre
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L1.11 que tll'"º ,onho e
mpl i r
Z004).
a

(D,1nra et ai.,
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mc,nH 1·. d z o rnx.1u .1


r,rud..:111 .1qu1 i
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O e nsi no fundament al
eni no d is pode
A C'-COL1 que .Hende o� m norm a 1' po·
s con I"der a rn
l)I 1,111guc. E,re e o en�1110 que ele
ógico
funcio,ur 11.1, du.i� cul rura • s do irn
. pacto ecol
0b re O c
a o um
itenta r
Figura 52 . Escola de San J uan de Yanayacu, no A Iro Arn:ilOll:lS Um C:,tudn colcn\'O recente, n de ex1. rern o
b', , o
e e1 o grupo· 1nd1gena na Co1•om
a
Foro de Ana P,zarro.
2 11

210
ª
CaraU ri' c
onta: "Eu nasci, me criei e mo a .
fO te, hOJe .
grupos étnicos e sessenta e quatro língu�s, além
do e�panhol,
e1 .,3 n ão na sede do m unicípio." o di a a d'a n� me io
ral da s • ' . i da família g.ira
analisa fenômenos locais que são, na realidade, gene izados a to r n o da c asa do pai e das conversas sobre O que
ern aconteceu
vários grupos indígenas da Amazônia. Várias lideranças indígenas as:
da região, junto com estudiosos de diferentes lugares, levantam nas jorn ad
os temas do desmatamento, dos conflitos gerados pela extração
mineira e petrolífera, pela construção de estradas e represas, dos Ali er a onde o pessoal junta va, também no final de semana ou de
tar histórias das pescarias; que o crocodilo ti'nha .
grandes projetos hidrelétricos e da violência através de todos eles tarde, Para con corru-
sobre os habitantes da área. Numa publicação que tem o respaldo ele, co m eu, que encontrou com a onça, que topou com a serpen
do te
viu o animal correndo. Então, sempre no trapichc,
da Comunidade Europeia, assinalam em relação a estes últimos: no mato, 00 que
tinha um trapiche grande, e ali na boca da noite
na casa do meu pai
O planejamento, construção e operação dos projetos hidrelétricos a conversa era sempre essa conversa, a história do dia a dia, 0 rio que
geraram conflitos de terras com os povos indígenas. Nem eles, nem está subindo, que está toma ndo minha estrada.
suas organizações foram consultados e, mesmo, informados, antes que
fosse tarde. Os rios e suas bacias foram antes manejados pelos povos Manuel conhece a história da escravidão dos seringueiros,
indígenas numa relação harmoniosa com a natureza, provendo água que nasciam destinados ao patrão, ao "coronel de barranco'',
para o consumo humano, para a limpeza, o transporte e a comida.
que não era um ser hu mano.
Agora, eles são vistos apenas como fontes de energia para a indústria,
o turismo etc. (Müller-Plantenberg, 1996: 145).
Inclusive é hwnilhante falar disso (... ) Quando você endurecia a
conversa, deixando claro que de sangue para sangue [no fundo] era
SERINGUEIROS E MATEIROS
homem igual a ele, já sabia que seu tempo máximo era na semana se­
Se tivéssemos de pensar em conjunto os discursos dos diferen­ guinte. T inha que mostrar de uma vez que, de sangue para sangue, cu
tes trabalhadores da região a mazônica , os termos que reuniriam sou inferior a você. Você é meu patrão e eu sou seu, e quando tentava
estas vozes seriam: sobrevivência, respeito às identida des, respeito
ser igual, então, sua vid a esta va perdida.
à natureza que permite a eles e a seus filhos viverem e, finalmen­
te, justiça. Eles viveram e continua m vivendo, atualmente, num
mundo de desigualdades e violência s, num universo onde impera, Hoje as cois as são diferentes. Cada um tem a sua e5fr�da,
em grande medida, a lei do ma is forte; estão sujeitos a invasões ,
seu tanto d e arvores . • Pºde untar andonba,
de b orracha, " voce 1·

de terras sob a ameaça de caciques locais e pistoleiros contrata­ por exem plo, o que crescer ali". Mas o problema é que, q�a?do
dos, à chegada de missionários que constroem seus aero rtos começou a escassear a borracha, para o enn· quec imento. rap1do,
e à i�stalação de centros de cultivo e proc
po
essamento de droga, começou o problema da madeira. Apareceram s made1re1ras e ª.
especi almente na parte colombiana e na tudo começou a se complicar novamente.
região das três fronteiras.
Também existe a presença dos sold
ados norte-americanos por
causa do Plano Colômbia. mi· nha estrada
[Antes] também se respeitava a ma de1ta. · Se aqui. e,
No caso dos seringueiros, 1 - ã a gente
carregam. Manoel Silva da C
, . a que
. tes da h1. ston
e es sao conscien de seri· nga, a m . . • , eu posso ti.rar. Ent o
a deira que tiver aqui so
. a ficar
unha, d o mte .
nor do município de começou a quan d °os pat r ões come çaram
estra nhar, porque,
212
213
da s derrotas que nós temo_s sofrido, da pre ss ao
A.pe sar dos latifun-
que esta, a1,, que nao está do
fora e arren davam esse lugat, vieram
as madeireiras de Manaus, de , ri. os do governo .
lado dos sering .
ueiros
dia nem dos trabalhad ores,
• vam sem respeitar a norma que o s ín di os, mas é um governo que
Itacoanara, de outros Iugares, e chega nem d . , . se
lado do lattfund10,
_ estrateg icame nte para
os comunitários tinham. ca d o . . •
tmpe d. a pas-
colo .
mzaçoes, ainda assim, hoje os
1r

e rn d e nossas orga, . seringue1ros, os


53g Amazomca demarcam um espaço muito un· porta
ligada à vida
o seringueiro sabe que sua subsistência está P0vo
s da Selva nte
. Sabe que seu espaço dos povos da floresta e a proposta de criação das
das árvores que lhe proporcionam o látex corn su a aliança. .
.
espaç o, explora a mata extranv1 stas. Eu acredito , . que a reserva extrativista hoi·e é
está sendo limitado. Por isso cuida desse re se r va s
com cuidado, respeitando seus tempos e quantidades. É, por . bandeira de luta dos ulttmos
. .tempos dos povos da floresta,
a maior
necessidade, um indivíduo dotado de consciência ecológica, pois ravés delas que os senngue1ros e os índios vão conquistar
porqu e e, at . , . . ,
sabe que o ganho desorbitado produz "esta falta de respeito com v er<lad eira liberdade, que, para nos, a reserva extrat1V1sta e a
su a
a natureza. Então, hoje as lagoas estão mais agredidas, a selva ria do seringueiro, é a forma de se contrapor à política
refor ma agrá
está mais agredida". . (Chico Mendes, 1995).
v1gente do latifúndio
Hoje, diferentemente do tempo dos excessos da época da bor­
racha, no começo do século 20, os seringueiros estão organizados
em associações, cooperativas ou reservas extrativistas. É o caso
da Associação de Produtores Rurais de Caruari. Atualmente, o
problema é a destruição. Os seringueiros lutam por seu espaço
contra as madeireiras e os fazendeiros.
Tudo isso aparece articulado com a luta ambiental, porque
eles sabem que a destruição da floresta significa a destruição
deles mesmos, suas famílias, seu futuro. Nesta luta morreu as­
sassinado, em 1988, no Acre, Chico Mendes, Francisco Alves
Mendes Filho, o líder dos seringueiros e sindicalista, conhecido
internacionalmente por seu trabalho de organização das lutas
· e reivindicações ambientais. Chico Mendes, que havia nascido
em Xapuri, Acre, trabalhava desde pequeno nos seringais. Ali
organizou a luta contra a destruição da floresta e em defesa da
propriedade da terra. Em 1977, participou da fundação do Sindi­
cato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, através do qual passou
a reivindicar internacionalmente a defesa do meio ambi ente,
recebendo reconhecimento do exterior por
isso. A sua proposta
de umficar as reivindicações indígenas
com as dos seringueiros e
comumdades tradicionais da Am
azônia, na chamada "União dos
Povos da Floresta", to1· uma d - mais..importantes das lutas
. . as açoes
soc1a1s na Amazônia· Ass,m .
· exp11cava . . .
seu proJeto este dmgente:

214 215
.
s conhecem de tudo , todo tipo
c o _i..
w • ec idas, ele de Planta, tod as as
as . n ho .
ação er a outr a; vivia permanente- í I",.5' cu di
Po rém, em seu meio, a situ fafilll
rte por parte dos fazendeiros, situaçao
mente sob ameaça de mo '
m'dades ate que foi' finalmente ecimento da flora e da fauna, assun como d° mei. o
que denu nci
· ou em '
var ·
ias opo rtu
' ,:: se conh
pS
desenvolvimento' sobre O qua1 os m ateiros se
no Acre, um fato que despertou o pa ra seu
assassinado em sua casa, proPl,ci . 1· , . .
e revelou as condições da luta ambienta� es pec ta 1 stas, e trad1c1onal em todos os hab'1tantes dos
repúdio internacional coroar a m . .
no lugar. os que habitaram a. floresta,, e foi este mesmo conhecimento
lhado r es da floresta. Eles gru P iu atraves dos viajantes naturar1stas. Esse
Os mateiros também são tr aba ocidente descobr
es. No início, em função d que 0 . . oni,vel_, e o tr abalho d�s naturalistas, mais do que
realizam diversos tipos de atividad escava ah
, d1sp
vam da abertura de n:� er a sistematiz ação ocidental das
atividades dos seringais, que necessita rimento, foi promov
0 descob Lineu.
vas "est radas" na mata. Hoje realizam
variados tr abalhos. São partir da p�oposta de
ica espécies, a mate1ros se defrontam com o dia a dia da selva.
sobretudo, conhecedores da flor esta. Assim expl José Guede; Seringuei r os e relação com 0
de Oliveira, oriundo de Ca reiro, sobre o que é p r eciso para ser
s perigo s, o trabalho é árduo. Sua
Enfrentam seu que justifica
mateiro: eio é que dá sustento a suas vidas. Há uma razão
m ncia, apesar do
é dal i que retiram sua sobrevivê
tal relação, poi s ldades. Mas há também certo pr azer,
Precisa est ar seguro, né? Quando se anda pela floresta é preciso tra b lh o du r o e das dificu
dimensão
nto diário eles conhecem outra
a
sempre anda r prevenido , né? Nunca deve deixar de leva r c oisas para pois neste enfrentame al com o uni-
mordida de cobra, v ocê tem que andar sempre preparado com soro
e
vid , feit a de u ma relação básica e fundament
ta da a
essas coisas, preparado. Graças a Deus, eu já andei muito pela flores verso natural.
Estes ano;
né? Muito e (... ) h abilidades, olha eu tenho muita prática. EM E DE HOJE
todinhos eu andei muito por essas florestas e nunc a me perdi. GARIMPEIROS DE ONT am come­
garimpo de ouro tenh
Ainda que os tr abalhos no Guerra Mundial, n:
teria co, depo is d a Segund a
José gosta de ser mateiro. Se tive sse tido oportunidade, çado pouco a pou o sul do Para,
197 9 em Se rra Pelada, n
estudado, pois assi m as coisas ser iam mais fáceis
. Mas tra ba- Amazônia , o boom de cional mente. Os
ga-
' · lante. Quando está na c idade e passam c nhe cid o int ema a
lha r na floresta e e st1mu foi um aconte cimen to o
a mec aniz
ar
. . . ç as d o g overn o p ar , .
. dias, diz ele, às vezes vinte, a vontade de voltar para
a
nmpe1ros res1st1 ram aos . esf o 1ca na
um a força poht as
r
quinze
�oresta co�eça a se manife star. Tem "sa ud ade, po rque é bom .pro duça_ o e regula r as mmas, tornando-se obe rtas ou tr
. . • 2: 1 4 ) • F ora m desc
· · ho " . H,a um caminho a percorr
f icar na bei rada, do nozm er para reg1ao (Rodríguez- Lar reta, 200
u, em R
. a. Es ta
oraun
. · . e X ing
se� matei ro. Ha um a boa dose de profissi onalismo no trabal
ho. Jazi da s: em Rondônia' na regiã . o d, nfrentarnento a·
para
,u1 . urna ep oca de e no m
Ha os qu e sabem mais do qu e os outros: tuna descoberta representou erc de dez rn•·1 ya de
a naç ao Yanomam1· . Acr edit· a-se que e de v1. olenc
a
• 1·a. A cida
Não me considero mate1r · o. Nem mesmo sou um mateiro born,
. •
mis mo rre ram vítimas de enferrn 'd
1 ª d es e
u
. fro nteir a
a1r,en, na enta e
d e G
como meus colegas· porque meus colegas têm a sabedoria de conhe- de Boa Vista, próxima de Santa EIen 80e1989 de qu ar o,
a

• cabeça, iss
cer as plantas ' né)· Eles tem . o já não entra bem na minha,
bras1·1e1ro-venezuel
· an a, c resc
eu entre t9 c o J1l.l·1 • No entant
nta e ci.n
de conhecer. À s vezes sei de uma p1 anta e depois já não sei mais, nem tre• s mi· l habitantes pa ra cento e se sse
21 7

216
pria vida

·=
ndo sua pró
AJCI. S,a
a principal jazida de.produção aurífera foi a de Serra Pelada
1980. As fotografias sobre o tra
balho neste g arimpo' feitas p or
pro Cur
luta nd
ando no me
o p e lo
io dos bosques
progresso
dele pre cisa
grafo brasi leiro, deram v olta a n ação
Sebastião Sa lg ado,renomado fotó porque . o sem luta
te munf
ao mundo. na_ o e,c i s
o, triunf �-
O garimpeiro é uma figura e
ssencial na região. É reconhecido e Jura nd ar uma gran de luta
ouro e e nfrent
s lugares próximo s à s jazi d as,por f,nco ntra r
em Bo a Vista, Sa nt a Elena, no e d escendo
mont anhas, d entro de cavern as
.
· a de vestir e seus h'b'a 1tos. Eles são uma mistura de subi ndo
sua maneir o f er as s elv a g
ens
Sua condição,ou identidade enfrenta nd
trab alhadores urbanos com ru ais. ndo
r
m e enco ntr a
as de ouro que carre ga nos eu aca b ei
de garimpeiro, é reforçada pelas peç já s ei que o trab
alho é d ur o
a io sa no pescoço.
. es ou na ,pulsei ra, ou ainda um.a pedr prec
de nt
c a minhar p
ela flo resta
" .
Afirma Rod nguez-Larret a: Os ganmpe1ro s constroem sua iden- so fr en
do o pi or
tidade com fragmentos de sua própria lenda" (2002: 17). Eles lut and o c o m s a
crifíci o
compõe m uma i magem e são verdadeiras lendas na região. Por ntrar o ur o.
trat ando de e nc o
um lado, a image m do arrojo e da aventur a,· a i magem da rique za (R odríguez-Larreta, 2002: 118)
, .
po ss1vel, re pentina , que poderia mudar a vida de qualquer um.
a m ao lado dos ga
rimpos, tudo é impro­
Mas, neles não há mudança. Por outro,a imagem t a mbém é de Na s v ilas que se m ont ro s e o que
esba nja me nto,fes ta, bor de l: preços nos bares e lojas são ca
vis ado e arti ficial. Os de ouro. É
é o ouro . Os preço s são definidos em grãos
cir cul a rias . Elas
fechada, com suas leis próp
Eu nunca me interessei porque é muit o perigos o , né? - comenta José uma econ omia praticamente nsgressão é
Guedes de Oliveira - (... ) Po r ess a questã o da malária, de mat a r, ess a s o r gid s p la pala vra, ou seja, pela honra, e a tra
a e
nest a
orte. Há v alores pró prios
sã e
cois as. As pesso a s matam muito no g a rimpo ( ... ) porque eles matam freque ntemente punida com a m de tra­
é valori zado por sua cap
acid ade
uns aos outros, né? Às vezes contam que um mergulhou. Qu a ndo o socied a de. O garim peiro ade,
ssa ca pacid
e m razão d e
g alo está lá emba ixo, no fun do, a 1, vem o utro e cort a a mangueir a. O b alho . Ele é p r ocurado e contra ta do qu eª
ade de ouro
possível. Daí
g alo morre lá emba ixo· Entao- t a m b,em quando o galo s a i, que recebe a maior qua tid
a de encontrar e "vagabund o".
n
é e r tax ado d
, a pr a cidade
aquele ouro' que eles recebem em our o, quan do v a i• de s a 1d . maior ofens a que pos s a rec e b e r s
do grande
lusão do ouro,
la, da florest a' ali mesmo O dono d a balsa m and a mat a r o galo. Isso o cons ome . O garimpeiro vive na i efa do", q�e­
em g r l. t ermi na "bl
t esour o, do bambúrrio; mas, e a
uito alem
Este é o ambiente que 1 a t ei a naquel es que conhe cem ess e tra- ,
brado, d e s tru1do. Sua pe rsp ecti · va d o mu n °
d na- o vai m
e o, fora, do
e i
· te O d entro
ba IhO de perto Seu per f1 da r egião. É ta mbém d0 1ugar em que trabalha. Para el . e, x s e1
· . I eSt a, no unagmário

• . ug ar onde
não e poss1\'
um assunt o da ht eratura de c orde1,genero que trouxer a m p ara garimpo. Est e último é distan t e , hos n l, 1
. antes nord e stmos, ond e ela é m ais fre que nte.
- o os migr
a reg·ia chegar a ter dinh e iro. seu tra
balho· ele
Esta literatura e, ass .im cha ma d porqu e,sendo oral no começo,
ª s, que rou b am
- da o a-
. Sua 1uta é contra os mineiro ão cem
ooçao
. N
pass ou de po is a ser imp res sa d e modo artesana l; estes impressos
er am pendur ad os em c ord as pa ra s ere m vendid os nos merca do s .
ª
lut para sobreviver num mu nd o vi· o 1 en
.
to
e, corn o o s f'ins sa· 0
mais
t urez a que o rode ia . É para ele um met0

218
os indíge nas já escreviam de inu mer'ave.1s f
Os gruP .
s, por exemplo, podem ler para nos
ormas suas cn
g ca-
importantes, não se importa de envenenar a água com mercúrio. . as , Os m ax a cah , o pau-da-rc�gi
..ao,
logl .
. a historia . de como eles se
Vive apenas de sua vontade de enriquecer a qualquer momento q u e arI está escrito . , . torn ara m pesso as·
Por. • contmuam praticando seus ritu ais.
num mundo onde todos são sozinhos e sozinhos se defendem un; JC , rnu1tos p ovos e transit. and o
}-Io ro, .
se1a o corpo, o pape l ou o computador, a fim
dos outros. Um entrevistado de Thiago de Melo conta: paço a out
de urn es s form as de escrever se tornem
de
s dif ere nte reais (Mind \"
m , 2005 ).
que sua
Não existe pecado na moral do garimpo. Naquela lei da selva vale
tudo. No garimpo não existe nenhuma lei, cada um faz a sua e todos as indígenas em sua textualidade, essencialmente
As literatur
estão prontos a pisar uns sobre os outros. Ali o crime é a coisa mais m estudadas de forma minuciosa em outras partes do
ora 1 fora
trivial, ninguém repara. Morreu, se fudeu. E o corpo é jogado no rio. Os trabalhos de Miguel León-Portilla, nas regiões
conu'.n ente. , . os, assun
. como os estudos de Georges
Ninguém confia em ninguém, todo mundo vive com medo. Todo garim ­ ste caS e m aia ' são class1c
a . ores, tanto sobre o mundo mesoa-
peiro anda com uma faca ou um revólver. Com medo de ser roubado. ais p esqmsad
B audot e dem _
( ... ) Tinha um garoto no Maranón, com quem eu conversava de noite, erica no, com o sobre and"mo. 0 mesmo nao ocorreu com
o
m
uras alternativas" da região amazônica. As
ele dormia perto da minha rede no barracão, gostava de ouvir as his­ as chamadas "literat • s" receberam
· ili" zaçoe
chamadas " grandes c 1v
tórias dele, apesar de serem as mesmas, das terras dele no Maranón e cultu ras andi nas e as
· estudiosos, deixando de lado estas outras
das coisas que ele tinha vivido em ltaituba, de onde saiu corrido. Forte maior arença·0 dos
com um touro, era dos que mergulhavam. Morreu afogado poucos dias expressões .
antes de eu ir embora. Disseram que o cara da balsa cortou a borracha
de respirar, mas ninguém nunca sabe como foi, ninguém quer saber
nada (Citado por Melo, 2005: 158).

ORALIDADE E LITERATURA
DOS POVOS INDÍGENAS
As literaturas indígenas - fundamentalmente orais - têm, na
região, um perfil diversificado. Elas falam de cosmogonias e de
formas de estar no mundo. Fazem parte do acervo de cada grupo,
e nos processos interculturais vão constituindo uma construção
híbrida, articulada a partir do Ocidente. Diversos antropólo­
gos procuraram traduzi-las em publicaçõ es, com o objetivo
de preservar a existência de poemas e relatos. Atualmente há
grandes projetos que, de acordo com o novo discurso indígena
da América Latina relativo à multiculturalida
de e ao direito à
educação bilíngue, oferecem ferramen
tas para que as p róprias
comunidades redii·a bl" est a
. m e pu 1quem seus textos. Com respeito a Figur 5 , io na flor
ª 4 - Contaminação de barro e mercur
.
isso, afirma Betty Mindlin: RcYJS!a
Manchete, jun. t 983.
221
220
onte údos da s denúncias' fe1.t as com tota
se n r es 110s c .. 1 propriedade
re fes so r guaJi rO A rcadio Monn. el,
P_ , ·tc a pelo pro _ que questiona 05
hisro r da lite r atu ra ven ezuelana' q u e « nao• sou
be
. ad re s ra m englobar a
his tori
o
oss a ex istência ( indígen a) como descen
e al de n � . . - . demes lon . quos
gm
base r qu e cem c _
od1fic açoe s lite rá rias (... ) n ascida s . na
u ra s na prop
de culr povos " (Rod íguez Ca cci, 1988: 22).
a dess es
r ru
entranh

m uma difu são muito limitada. Trata _se da cna . ç a_ o


Elas tivera . , .
_ ' evidenrem ente, ge ra um
nas e isso
as de grupos tnd,1ge
de centen ologos e missionári os se aproximaram
a, Alguns a ntr�p
problem de Civrieux e Michel Pe rrin,
o Jacques L1zot, Marc
delas , com do t upi, frei Cesá r eo de
ela, Pi e r re Clastres, no mun
na Venezu o iiio, na Colômb ia,
também n a Venezue la, Hug
Armellada, a sistema t ização e O estudo
assim corn
o ourros estudi osos, mas
n t es. No Brasil
var ie dad e enorme de materiais são insuficie
da particular, um tra­
as de grande interess e e, em
exi rem pesqui o extensamen t e
ho d ob erv açã o de problemas a pa rti r do u s
bal e
tir do rupi, que
ua geral", estruturada a par
gene ralizado da "líng língu a foi co­
levad o a o io egro pelo mis si oná rio . Esra
foi r
boa", rermo
como nheenga tu, ou "fala
nhecida desde o éculo 19 "o francês
alhãe , que a conside rou
divulgado por ,ouro de t-.1ag ida
azônica", já que era en tend
ou inglê da 1mcn�a região am , 200 4: 62) .
rudi o o (Be a Freire
por roda� a� n,1çõe , a fi rrna o e m e ece m 0
oralire r aru ras - q u
e r
:io lircr .nuras - ch,1rnada de rtante s, ta
mbém
a de exp re s ão impo
5 lat11 s JaJo J d ema i form dida em qu e
ocid enr al, na me
ª
qual
Figura 55 • G:mmpeiros carrrgand o o m-tterial em meio .10
parrir da pcrspecri va da lirer aru a
nra m• ed id• a
r
n t o e em d·1sri
_ •
enconrrarao ouro . te m om e
e ra e apropn,1, em d i feren 111aça o
Rc,as1a Manchete, 1un 1983.
ar p bl em a da dissem
d e I as . E t e esru<lo p r ocura enfrent
ro
o p rura
rema· , a ·
sun como a ru
Com relação ao e ca o con h ec1m - e nro e t r abalho de s i d 0 materi-al, da pluralidade das lin , g uas . 0 das
_
_tizaçao, nai s , , o, regi·do pela n oça
que t r ad i ci onal m e nre s e rca 1·1za sobr e re mar hre ra n -
.
e s s e
d e p reconce-ito a re peito do -
assinala o pe squ isado r ve nezue l ano Albe r to Rodr íguez: , · este
"bela letra " .
re n m ernona d
. que persis o rela·
a
ão relato <le urna o r alidade m P I0, persi sre e
· por ex e
. corn 0 00rne d
A hiScoriografia literária na venezuela nao conseguiu' ou melhor' não num e r o os grupo , entre os quais, id o
fo i reco lh
com o e ste que
sou be aproveitar os aportes in d'igenas, ne re momento em que chega
t o da
'' amazonas '
a hora da reivin
. dicaçã
. o p0r pane de no sos comparrior a s aborígenes,
Uli dz an, as mul here sem homem":

222
-----
dividuais e coleti . vas• . Além d'isso, possui o
o n dutas in utr a fun.
c a comumcaç ao
Na grande selva quente e pantanosa, regada pelo Uraricuera e Pa­ * 0, a
de prov er com sua s de1'd
ade s·
· "Dentro de
3
rima, cruzada por córregos e quebradas espumantes, próximo da serr a ç a d·1me nsão transtemporal, o. mito .
se insere no p
lan o da vid
su . tual, que se constitui .a
de Murupu, fica a montanha rochosa Ulidzan, tomada algumas vezes ve's do n no mito em a _
çao .
at r a " (N ov at1;
pelo silêncio e, em outras, as saltada pela alegre algara via dos macacos' .Z, t984: 9).
}lUI
o grasnido das corujas, o grito estridente das araras e corvos. No caso dos
horas, por exemplo, terno s o relatO do . -
nasc1men
Em meio às moitas de trepadeiras daquele monte, fizeram sua ma­ ,nangua re, , ou tam bor grande formado por d
u as peças de
loca, há muitas luas atrás, as mulheres sem homem, que se chamaram to dO duto da transformaçã
co p ro o de urna d'1vm · dade: "O
Ulidzan, como a montanha em que moravam (Cora, 1972: 175). cronCo o ' . . no Anumeemum . ..
s e on gina . uhe (Pai áb o) , queera u m
rnanguaré
s i

ho m e m , que un�a sua �asa e seu p o vo. Então sua mulh


er
Como no mito ancestral, aquelas mulheres robustas sabiam grande
m filh o, m as o filho nao queri a crescer, sempre crescia
fazer u s o do arco, derrubar no mato os báquiros e as dantas, teve u
vati; Ruiz, 1984: 9). Depois, há urna história com
manej a r enormes zarabatanas, preparar armadilhas para os atrasado" (No
ele mentos
incestuosos, que o filho se converte em árvore, para
peixes, fazer todos os traba lhos dos homens, preferindo viver rtido em manguaré.
solitár ias nas montanhas. Às vezes, algum arekuna, taurepam fina lmente volta r a casa conve
ou membro de algum a tribo próxima se extravi ava, procurando Atualmente, uma mudança fundamental está ocorrend o no
caça, e era surpreendido por elas. Então ele dormia com alguma campo dos imaginários, pois os indígena s co meçam a esc rever
delas em sua rede; pequenas chapas feitas de pat a s de porco e publicar seus próprios textos, para conhecimento do grande
do mato anunciavam que ela tinha s ido m ulher de estrangeiro. público. Já não precis am de intermediários. Não existe mais o
Porém era obrigado a ir embora no di a seguinte. Se da união escritor que interp reta, representa, reivind ica ou traduz suas
nascia um meni no, era morto, mas se nascia u ma filha , era palavra s; não há mais a antiga necessidade do antropólo go ou
cuidada com muito esmero. Quando qualquer dela s já não con­ intele ctua l que autorizava a palavra indígena. Nesse terreno, es­
sa s sociedades começaram a se autoriz ar por elas mesmas, o q
ue
seguia segurar o arco, pediam que a ma tassem. Posteriormente
·
e 1as se d'1v1·duam, Má ci de
rep resenta uma mudança fundamenta l. Como afir m a r o
e as que permaneceram ali se converteram
voz,
em Mauaris, espír ito s mal ignos que habi tam as monta nhas, Souza , aparece em 1985 um indígena que publica sua própria
m 1961 •
ocultas em meio ao matagal, atrás das árvores ' sobre as rochas sem inter med iários. Chamava-se Luís Lana, na scido e

e debai xo da s águas. f'lh °


1 do chefe de uma tribo, cujo nome em dessana e'To .
k .. . 85)
lom
' escnto
en-
O universo mítico da oralidade das diversas etnias amazônicas · enim, c om o texto Antes o mundo nao - exts· t·a1 (19
sustenta um irnagm · a, n·o mu, 1ttp
· 1 o, em geral bastante codif icado. . cosmogônica de sua
. em português e dessana uma narranva , .
Nesse trnaginário, o relato cosmogomco • · , , ·
e bas1co, como no res-
' .
como as ·
i n alo u M. ar'eio
cu 1tura. Este fato é fundamental, pois, S
tante das culturas· "Na s cu1turas etnograf1 , . cas, o m es Jil d ige-
.
i to se apre- de Souza, "estimulou o aparecimento de outros escritor do
senta como a forma d0 conhec1mento do af o s, sen
const1t. um. mundo por excelência, nas, que e stão tornando vernácu lo s seus 1.d'iomas ágr
do-se como O marco ao qual o homem remete a fim . . . ' pa ís, propne • d ªde da
de encontrar as referenci • • as u, 1tima
. s do sentido de sua ação." O
editª dos pela pnme1ra . editora tndigena do . Negro" (Souza,
mi·to explica.
a vida e oferece um marco de referê
F ede raç ao
- das Organizaçõ es lnd'i gen as de Rio xist e hoje,
ncia para as . - ·
tn d1,gen as e
[ s. d ] ). N esta l inha recente de pubhca oe s
· ç
224 225
CAPÍTULO V

logia da floresta (Rio


de Janeiro, 1977)
por exemplo, uma Anto na s; a História d�
r professores ind íge
selecionada e ilu trada po
índio, de Daniel Mundu
rucu (São Paulo, 2002), um escritor in­
dígena, recopdaçõe de tex
tos, como a recente Sueiios e historias
e
A CULTURA DA DROGA
e11 Bogotá (Bogotá, 2007). Est fenômeno
de los jóue11es rvayu11
ia com os novos espaços abertos
aparece na modernidade tard
eça a ocorrer em outros paíse
à diferença étnica, algo que com
res estão se levant ando depois
larino-americano , em que os auto
dando a conhecer ao grande
de um grande silêncio histórico e
público ua próprias histórias.

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FIgura 56
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· DesenI10 de huitiros aspirando substâncias a1ucin

226
. i. ros tra dicionais, hoje dav am troféus a, s •f'li has .
de viv.e . u s e outras autoridades, cuja dos pie
.
. bica teros.
Como em outros luga res, par a os escritor es da região qu t s o mis sao
e os au n
culta, abaixavam a gu
consistia em .
cuid ar
circunda a Amazônia, realidade e ficção não possuem fronteiras eresses da classe arda para se refr
dos i. nt ocado
, lares
. E mesm o com tudo isso esc ar
reconhecíveis, a não ser através dos mecanismos de dist ancia­ tas de c . , os p1ch.
,orn no . icat eros
mento narrativo. Reproduzimos abaixo o relato de um escritor nem m esmo gente interessante; eram su,·eitos sem gosto
n ão eram , que
boliviano "do O riente", um lugar que, nos países andinos, é f .
1ta va m os dentes com ouro, compraram aer onaves qu
eo e . . e desaparc-
considerado menos impo rtante e visto como um "outro país" af ll na s elva no dia seguinte, e contratavam bandas e mar1ac • h.1s para
ci
de n tro do pa ís. Um lugar que, de fato, se expr essa como uma
cultura diferente, ligada não ao mundo se r rano, andino, tão
�" renatas p ara suas amantes, n um carnaval interminável (M�
81).
.

Vanucci, 2004:
desprezado pelos povos das regiões amazônicas do lhano, mas
como a cultura dos "chunchos", a maneira pejorativa pela qual m ental desta forma ficcional - como em
Um recur so funda
são conhecidos os índios desses lugares, num enfrentamento de m os mais adiante . e, em especial, . .em obras como
outra S que vere . s [A vrrgem dos
olhares em que cada qual exerce uma forma de discriminação. prstolezros] (1994), de
La virgen de /os sicano
Queremos ler mais de perto o romance ]onás y la ballena ro­
Fernand o Vallejo - é o distanciamento, o olhar tra nsformador da
sada Uonas e a baleia rosa], do na rrador boliviano José Wolfango
obsc enidade, do horror, numa construção verbal, qu e imprime,
Montes Vanucci, premiado em 1987 pela Casa de las Américas. o leitor, a quota necessária de humor q ue
na interlocução com
O autor enqu a dra seu relato ficcional no marco de uma Bolívia mar o insuportável� a dor, em possi�ilidade de
permite transfo r
exasperada pelo narcotráfico e pela hiperinflação. Este expressa
verbalização, o indizível em expressao. O humor funciona como
com distân cia e ironia a mudança que o narrador observa em seu
urna maneira d e cur a e, ao mesmo tempo, como possibilidade
povoado, resultado do aparecimento da cultura do n a rcotráfico: de comunicação.
A violência seja na Colômbia - "onde, entre 1985 e 1996, um
Hoje ninguém concebe seu próximo como instrumento de trabalho,
milhão e meio de pesso as foram expulsas de seus lares, e qu e,
refletia Patroclo, ninguém elabora novos métodos de fazer com que o . • taques
some n te em 1996, tnnta e seis m1·11ares fo ram alvos de a
empregado tenha um rendimento máximo com o menor custo possível. · " (R otker, 2002·· 168) -, e
das guerrilhas ou dos par am,·1irares
Já não existem heróis dispostos a declarar guerra a outro país, para . s1.1
também em outros lug3 res da Ame, nca Latina' como no. Bra.
proteger as plantações de borracha; o espírito patriótico se perdeu. . ona1s e
e na Venezuela pe rmitiu o aparec imento de obra s ficc1
Na atualidade, as pessoas ignoram as relações entre o produto e o _ . . . ' . _ importante a
consumidor, a paixão com que o público é seduzido para p agar mil
nao f 1Cc1ona1s, que constitue m um l.OtpO so, lido e
.
parti r de uma perspecnv . a n a o apenas . te mática mas r ambém
pesos por aquilo que vale dez. Esse processo de enriq - . , '. • droga·,
uecimento exige ,.
esret1ca. Em �grande medida, . esta no . 1 e· neia esta ligada a
perseverança, manha, arte. E os jovens não quer mo
em se esfor çar. A san­ es espec1·f·icas, co
�íssima ordem do passado morria.( ..) Os em algu � ns ca sos' responde a outras quesrõ
produtores de cocaína, que a . e guern·1has· que
imprensa chamava com a detetivesca
. as guerras internas que en,·ol n�m . pa, ram ilitares
sociais que,
e meu sogro apelidava com o
denominação de narcotraficantes
• . . no geral diz respeito à exdusa- o de gra nde s set ores rtedt'k,
er pa
termo crioul o p1ch1c ateros ' pululavam mesm o per tencendo ao sistema, na- o conseguem 1,az · .· as
pela cidade· Patrocl0 rec I
amava de que nem bem colocava seu nari.z .ncu1 ª�.ª- º per o• urr
na rua, estava arriscad 0 a 0 que d ar
os leva a buscar seus modo óto e ,huro
s e
perecer sob as rodas de seus Mercedes de .
.
vidros escuros· Os concursos v·•a s possí e a1· os c once 1ros de li k I0 de
de beleza, antes vencidos pelas florzinhas veis. É por isso q u I
rneoro rJ rJ
n.ªº funcionam· ao c o m po rr a
, estamos frente
228 ll�
Corno um
0 carnp o. • • · · , exe • mplo trá gico, horne
qualquer ética que não seja a do grupo, de um agir à margem pafª da rn1sen a, imagin am que o futu ns do camp
o J rni ar
l· r o d o
n e seus fil. ho s ,
dos valores que dão sustento à convivência na sociedade, um a treg a dos garotos a guerr ilha vincuIad. a .ao está
vez que é ela mesma que os expulsou de seu interior. "A situaçã o n a en a, a traves• de espaços radiais . narc otra. fico•
se pr o cur c
de violência" - afirma Susana Rotker - "suspende as teorias das ho .
J e " ria t ,,
iv os'transm1t. .1r '
m aç ão r eal de converter a morre em vid a
quais dispomos: no caos, o Outro somos todos". Desta maneira . for
111 • portanto, d . a 'com
. . o me d1z1. . a
nte. Ha, 01s tipos• de narrat1
teremos discursos como crônicas ou narrativas - os gêneros uma fo . vas distintas, que
) rn estas duas formas de v10len cia. A pn.me.1ra
como veremos, neste sentido se tornam híbridos - como La [� reve a se este
C iu da d enloqu ect'da (1951), de Pablo Rueda Arc . . nde
de la calle [A lei da rua], dos venezuelanos Boris Mufioz e José de . m1ega s ou
,n em or ias dei odto (19 53), de Pablo Velásquez , ate.
Roberto Duque, analisa Rotker. Encontrar jovens, sempre po­ Las .• . Jorge Zalamea ou
a o'b ra
MeJia Va lle10,
tencialmente culpáveis, num bairro perigoso, equivale a pensar de Manuel Gab ne· 1 Gareia
que estão assaltando alguém ou consumindo drogas. A polícia Márquez, o nde se localizam mais de setenta romances, desde 0
atado pel�s nomes até a procuras estétic as de
não pergunta antes de disparar. Assim, Rotker finaliza: p uro realismo del
maior refin amento (El-Kad1, 2007). A segunda é atual
"narcoviolência" se instalam .
Quisera concluir este trabalho com o otimismo de Jorge Castaiieda Os tex tos da no caos urb a no e
quando fala do eventual castigo para as elites; gostaria de acredita; se introduzem nos meandros das cidades desorganizadas pelas
que estas representações de uma realidade apocalíptica abrem caminho migrações resultantes da guerra, da exclusão, de formas de vidas
para um futuro melhor. No entanto, só consigo pensar no que me res­ que não tiveram um lugar para sintetizar a realidade de outro
ponde u Boris Muiioz, o coautor de La ley de la cal/e, quando perguntei modo; configuram, dessa maneira, imaginários torpedeados pela
se tinha chegado a alguma conclusão, depois de sua experiência nos persistente obscenidade de uma realidade que os assedia. Na
bairros de Caracas. Após mergulhar na violência e escrever um livro Colômbia, o texto paradigmático é La virgen de los sicarios. Seu
inteiro, sua compreensão é literalmente esta: "Que a coisa fudeu de autor, o escritor, biólogo e cineasta Fernando Vallejo é oriundo
vez" (Rotker, 2002: 180). de Medellín, justamente um dos cenrros do desajuste urbano
prod uzido pelo narcotráfico. Em tomo de um eixo narrativo,
um
Na Colômbia, a violência é tratada de uma nova maneira. que estrutura a relação amorosa entre um velho gramático e
cidad e,
Ali, em razão de sua tragédia histórica, existe uma tradição neste sicário adolescente o texto vai além da vida desta outra
sentido. O que é chamado de "período da violência" se estende a a gora a dos "desoc�pados" cartéis após a morte de
Pablo Escobar.
mico,com
partir do ano de 1946 até 1965, propriamente desde o assassin ato O relato é c onduzido por um narrador ilustrado, ac:dê_
- • . distancia . Faz uso
de Eliecer Gaitán, em 1948, quando houve uma guerra civil que formaçao em gramat1ca, que narra com certa sobre
vai durar cerca de vinte anos, revelando vínculos com os enfren­ de citaç. ões em latim, incorporando um OIh ar quase neutro
. ue or de
am
tamentos entre conservadores e liberais. Os textos desse período ª vi'd a, relativizando os valores num uruvers o em q
dos:
fªIam da v10· 1·enc1a
· que ocorreu nas zonas rurais' sobre a qual h edoni· smo são solapados, transpass ados, s uplanta
h'ª uma vasta bibliografia. Hoje em dia se trata de outra forma
dele;
de violência, desatada pelo narcotráfico, especialmente a partir q 3 ct'd3de
fale através
Fe rnando Vallejo não escreve; deixa rn, a Aids é
ue
· 1· ·
dos anos 1990· É uma v10
. . · · pa 1
enc1a ur bana: a c1'dade e• o pnnc1 Mede 111n mor te ,
e o utr o personage ona, as
cenano destas nar rat'1vas, mesmo quando · é outro personagem, a . desmor
as açoes se deslocam oUtro pers an ce) a ide
o1ogia
onagem ( ... ) [Em seu rom
2 31
230
das favelas e seu s
com o o s chefes h ab·1tantes
consciência são derrubadas, o paradigma relig.10s0 35s1.rn . ai,em dos po
grandes mur a lhas da 2006: 4). .tic1. a1. s que c omb atem as organiza ções cn. m m . osas ' -
s Chavar ro, O
· s hab1. tantes
se esfuma (Mo ra le ela s s e sent em protegid os e ten dem a se c
das fav , . alar· A po1,1c.
.f rna que e uma guerra, mas diferenc em ente 1a
os, pertence ao último escalão executor 1
a rn pr . d os de
. , . o, como sabem
O s1can . ara dor mir em suas É casas todas as noite . s,
ma ·
i
s, ele s

rqu1• do sist ema do crime orgamzado


. .
. É identificado v o1 ca . no dia . . . regressando
na h.1era a . s segumte. uma guerra cot'd
• esc apulários de Mana Auxil iador a que carrega, m as a, s fa v ela 1 iana
' sem saíd
a.'
pe 1os cres Ci da de de Deus, Paulo Lms expõe a evoluça• o h'1sto, nca
com o amor e a morte . O amor à m·ae, Em . .
ta mb,em po r sua relação . . e sua imagem, desde os anos 1960 ate' os anos
por exemplo, para que�
arnsca a vida por u_ ma geladeira; u m daS favelas . • personagens ' que 1 990,
presentes os sentimentos de tern ura a Pa r
tir da vida de tres estruturam as tres
ser querido, no qual esta o u a narraçao
_
caudal o
_ s , _ nas qu
nte, quase u m menino partes de is se organizam de
de qualqu er ser humano. É um a dolesce � . � a

to form a rizomau ca centenas de h istorias. Lins, que viveu p arte de


que nasceu e a companha o movimen dos bairros pobres d; adolescência
s ua infâ ncia e nestes lug res, e realizou, além do
Medellín, vinculado ao tráfico como pistoleiro contratado.
a

se u filme , um trabalho antropológico sobre a criminalidade nos


Além de fazer parte da vida social e política da Colômbia - como setores pobres do Rio de Janeiro, explica em entrevista:
afirma uma crítica-, os sicários co nst_ituem também, como os caubóis
do oeste americano ou os samurais japoneses, uma mitologia forjada As favelas, especialmente as maiores, ao crescer e resguardar o poder
pela literatura, cinema, música, jornalismo e a fantasia popular (El­ do narco traficante, to rnaram-se mais violentas, perdendo seu amigo
•Kadi, 2007). romantismo de lugar pobre, mas criativo, onde havia nascido o samba
e a capoeira, lugar e m que viviam belas mulatas. Agora, a violência da
Esta adolescência vinculada ao poder do narcotráfico, ao favela desceu para a cidade, enfrenta as elites ricas, paralisa a cidade
c,ime, às armas, à corrupção, está também nas favelas do Ri o de e está mais bem arma da que a polícia e o próprio exército. Agora as
janeiro. Ali faz parte do grupo que domina a favela, com uma favelas geram terror e morte (Arias, 2003).
economia e um sistema de poder paralelo, assegurando, como
expressam em entrevista seus próprios membros, o cumprimento O que nos interessa a respeito desses textos visuais, escritos
do papel do qual se desincumbe o Esta do, ou seja, escol a , medi· e or ais, é o modo como eles chegam a censionar o s gêne ros.
:amentos e até os funer ais dos moradores. Fazer parte do grupo No caso do romance, o gênero é projetado até a exaspera ção,
e se tornar um líder admirado, é possuir mulheres incondicio· no ponto de provocar uma explosão interna na eStrutura da
nal'.11 ente, é ter acesso ao pra zer fácil, é
mostrar poder frente à narraç ão. Esta realidade sórdida, concupiscente, odiosa,.ªº ser
sociedade s abendo que seu 1
. d o e que,
ugar e, amplamente dese1a incrustada arremete contra a ficça- o, produzin · d° um híbndo de
ao morrer,' hav era um . P1aneJ· a interna me
nte
grupo de postulantes a ele. Cidade de Deu s fieçao
(1997), de Paul0 L'ms, e,
- e cron• ica, do mesmo modo como se . de
uma expressão desta realida de no R'1º· a dua 1i· dade vida morte. Os que escr evem O faz em a partir
e
ª
viol ência que se
,
Um v1de o recente nos co 1oca
. Notícia
do mito: de uma guerra 'particular, de
'
1 ade
entretanto frente à rea1·d outro foco,
em relação, por exemplo, com escn·ra'
· a urbana e · • .
,
Kátia Lund (More _ Moreira Salies e narrava na
época do campo. A fJCç. a- o-cro, mc
iaçao.
ira Salles; Lund, 1999). Nest documento são
e ª firma Susana de du s sicu
• aç · s de enunc
oe
entrevistado s os Rotker' a partir novo su,· eito
a
garot os que trabalh
am no mundo da droga
, Por um lado, a de "vítim a em potenci. al" ' esse
232 233
-.............
droga para o narcotráf
convertendo tod os; e, p or ou tro A c ultura da . , . ico e, tamb.e
m uma for-
social no qual estamos nos ç -o
a d os .m agina nos da Amazônia,
i , on de se c
a do o�tro lado, do interi or mes�: rna ult'iv aa
enunciação, que aparece vind c oca, que sera conduzida' atrave, s d a ma m atéria-
o me10 e fala a partir dele. Tal é ·Pº· rna, a n· ipu1ação de
de quem começou a conhecer os quí micos, ao refino da cocaína e sub
exemplo, que, surgindo da pro' Pria pro d ut , . d . . p rod utos , como
0 caso de Paulo Lins, por st a base, qu e e a via e intoxicação dos po
b r
de de Deus, desliza e ntre a cro. p a . es A dr oga e.
favela sobre a qual escreve, Cida a
rib uí da e circu 1a por me10 . de inumeráveis cam.mh ·
relato ficcional ' com uma .c
d,s os por agu • a,
nica - e o relato antropológico - e o. e ar ' desd e seu cultivo, transporte' tráfic0 e pr ocessam
cer ra ento
narrativa que articula horror e poesia. Em razão dessa situaçao ser consumida
.
pelos setores abastados das gran d . .'
ao falar de dentro, o universo marcado p or P a ra . la deixa . es cap 1ta1s
de quem enuncia · sil. E suas marcas pelo camin ho Es . 1
· 1· · e' intenso, • de um narrad
e, apesar da f oca 1·1zaçao do B ra . · pec1a mente
esta v10 enc1a or.' qu alida de, que permanece nas cidades da Am azom
, superpon d o-se e trans b a de pio r •.a
se transf orma na " voz " orda ndo-se na os
paí ses por onde carregamentos proc uram os .
traietos
percepção do leitor. e dos
bri os, que a pobreza carrega no estômago, nos sapato s, no
De outra parte, o futuro do relato é outro. Estamos longe do som
reto, nos milha res de esconderijos inimagináv eis, que somente
tempo pausado dos acontecimentos. Aqui também eles se acu­
a criat ividad e de transgressão ligada à necessidade é capaz de
mulam até a exasperação. Não por acaso os dois relatos icônicos
produzir. Porém a droga fala também de outras relações: a da
desses temas foram levados ao cinema; o tempo da narração é
riqueza, da cultura da ostentação, dos espaços de poder, dos
cinematográfico, em alguns momentos se parece a um videoclipe,
altos salários próprios da concentra ção de renda, da desordem
em que acontecem de modo vertiginoso as elipses e as ações sem
respiro que são, por exemplo, as mortes sucessivas. institucional e a corrupção com os psicotrópicos (Motta Ribeiro;
A narrativa estética ligada ao narcotráfico é uma questão Ulianelli, 2000).
que observamos nos limites urbanos da Amazônia, até onde O narcotráfico é uma máquina movida pelo consumo. t uma
�abe��s,_constituindo-se numa das formas através das quais os engrenagem complexa que cria, como toda atividade humana,
1magmanos da região percebem o tema, um assunto que abarca seu imagi nário específico, com seus mitos, relatos, ícones e for­
amplamente o lugar e também o ultrapassa. mas estéticas próprias. Há uma grande quantidade de gêneros,
bem como a sua reno vaçã o, que surgem desses imaginários
da
que resultam da transformação da vida de vastos setores
O NARCOTRÁFICO NA AMAZÔNIA con­
pop ulação. A Amazônia é um lugar de integraçã o como O
as
tin ente nunca tinha visto antes, em que a globalização, com
· • ·cas form as
Com a morte do provave · 1 traf'1cante, que disse acima nosso primeiro m ai·s artesana is e, a o mesmo tempo, mais tecno1ogi
nte em torno dª indú inef
_. dos
mand atan o'a profiss·ao de Sicano
. ... praticamente acabou. Sem trabalho · v açao,
de ino • funci. ona perfeitame . stna
r a
. 1-.
fixo, e1 esse disper . • ado '
. . saram pe1ª ci.da de e começaram a sequest rar, assaltar, ento rpecentes. No caso do Brasil, afirma o pesq u is
·
roubar. O s1cari o que trabªIhª sozinho s umo, faze m
. , por conta própria, já não e cáeia. d o control e lega l ' assim como o grande con nsforme,
. o.. .e livre
sicári . empresa e, inicia . pnvada. Aí está outra instituição
.. . tiva com que o nar cotráfico, em suas dife . rentes f ases' se vias
tra
nossa que se per de No 'nauf . As . de
· • io da Colô mbia, nesta perda de iden tt·
rag n a Amazônia, num a rotina como outr a qu alquer· se a rti -
ano
dade , não vai. so brando nª d
ª nosso (Vallej o. La virgen de los sicarios). transporte . rur aI e o urb
são múltiplas, pois nelas O ndestinos,
cul am através u fla d os, aer oportos eI a
de envios cam
235
234
--
_ . . é transportada- em balsas, bar rocess,amento. Há alguns anos ' estes
caminhos fluv1a1s. A droga c os, ar a O P . Produt os
. "pos de embarcaçoes, b em como em carn1-· P rasil e sai am por Tabaunga, cid ade q entravam
lanchas, d1f erent es t 1 _ _ _ 1 0 B ue faz fro te -
• , utilizar rotas terrestres, em recip 1 , · ' na Colômbia. Naque la regi ão, é po , _ n ua com
nhoes, quando e possíve l . iente s 1euc1a sem saber exatamente de q
ss1ve1 circula
r ent
o de moveis
, que se manda con se rtar na a s c ida des ua11ado da fro .re
de pared es faIsas, dentr , . d. as du - . nte1ra
tipo, subterfu g1os ,versos no ' uma vez que sao espaços integrados· M as
.
capita1, ve1,cu 1 os de todo nív el da estai11os esta rota uma
cultura l que eles perturba m (Pr ecida, acabou sendo controlada pela po1, .
. 1.dade b"ológi
d1vers 1 ca e o cópio' vez eonh , teia. A
2000: 178 10). e processada no Acre, na fronteira com p asta
2000: 147, Gouv eia; Sant os,
. que entra ou a Bo1'1v1a .,
A pasta base chega à Am azônia pelos nos, aeroportos clan­ R o n dô nia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, li
em . . oc antms e
destinos e caminhões com fundo falso, que transportam madeira ara as cidades do interior, em São Pa ulo
Goiás , seg ue p e Min as
e gado. Entra no Brasil pela Bo�ívia, Per�1 e Colômbia, _ onde ulti­ Gerais. É cham
ada de" rota caipira ,,, a rota rural. No
interior de
mamente é produzida em locais de culnvo, colheita e refino da cocaína também é armazenada. A partir
algum as fazendas, a dali
coca. Os estados, que fazem fronteiras com estes países, como 0 icos circulam por todo o continente até O extremo
os psicotróp
Acre, são os que mais sofrem com esta situação. A estimativa é sul da Patagônia. Supõem-se que velhas ferrovias sejam utiliza­
de que uma tonelada e meia de pasta base atravessem a região das pelos traficantes, que misturam cocaína ao café, à soja ou
todos os meses (Gouveia; Santos, 2000: 178). O processamento ao trigo. Pelas rotas que cortam o vale do Acre circula, segundo
tem diferentes etapas que necessariamente requerem diferentes estimativas, uma tonelada de pasta base, proveniente da Bolívia.
lugares. Depois de processar as folhas, que são deixadas maceran­ Com as normas restritivas às exportações impostas pela DEA
do dentro de buracos, seu volume reduz de forma considerável. (Drug Enforcement Administration), agência dos Estados Unidos,
No caso da região do Acre, grande parte dos carregamentos vem parte da cocaína consumida no Brasil passou a ser processada
do Peru. Naquele país ocorre a primeira parte do proc essamento na própria Amazônia. Ali os aprendizes se tornaram expertos
da folha. Depois da colheita, ela é colocada em buracos na terra,
na matéria, além disso, experimentos em torno do cultivo da
"tipo sepultura", conforme declaração, a fim de que se dê sua
amapola e da coca contaram com a experiência holandesa, como
putrefação. Desse modo se chega à pasta base. Para o transpor­
forma de "cooperação técnica".
te, são us ados seringueiros e índios, que levam nas costas os
O controle no meio amazônico é difícil, os movimentos são
carregamentos até o Acre. Ali entram os grandes empres ários e a e
proprietários, que provêm toda a estrutura: combustíveis, aviões,
con tínuos, os fluxos que mudam de ·mnerano, · , · 1ug ar, form _
. ·
ob1et1vo são permanentes. Quando se unag1na · · haver dom o i nad
soda cáustica, acetona e éter. O Acre é lugar de passa m, onde, . • osso
ge
de alguma maneira, fic a uma parte
um 1ugar, a s1tuaçao muda tota1 mente. Trata-se, segundo n
da pasta base , mas o desti no .
pe squ 1sador, de u m esquema de bandid agem amador' . sem a com -
final é a Colômbia, onde é ref . . .
inada. 6 ia
O grande problema para P1ex,dad
. e das organizações colomb ianas . N0 caso da Colam .
a produção de cocaína na B olívia
e no Peru é a dificuldade éis,
controla dos · Nos di·as em
de obtenção dos pro dutos químicos A estrutura do narcotráfic o se base.ia pnn . alm ente nos cart
. ctp
' - s este texto - iun
que red1g1mo · h o de con trola dores da produção e cornerc1a . hza . em rede que me
. çao . 1 uem um a
2007 - apare ceu ª notiC1 , · a de um grande carregamento de baterias até o
se,ri.e de agen tes nos' prod utores
de automóvel usa
das, contrabandeadas do Chil para o Peru, atuando em socieda de, d os peque cidade
com o ob1e . _
t1vo de consegu1r . e merca do consu midor. ,. se sustentam sobre um a eapa
as substâ ncias químicas necessa, na . s Os carte1s - criminosas·
O p era t1· v �P� . �
a própria. Seus vínculo s com o utr as garantir
repre se nta óci.os a1-em de
m um modo de potencializar os neg
236
2 37
entais nos espaços residen . .
,eis ornam , . c1a1s•
_ _ alização, ao long
teção e operacion
o de todo 0 mo,,• espec1es nobres, como . d0 mundo des en-
cond1. çoes de pro . _
. çao
erc1aliza
Pro. · do - O u tra s
o tpe (Tab
• , tra nsf orm aça o e com da droga· e
um vo 1111 ,
. . ebuia. serati-
cesso do P1anno , 0 jatoba (Hy menaea cou rba rio), o p1q
f..

ado em bases, em macrocomunida d I. 1


i·a ) . u1á (Ca
padrao _ or gani· zacio nal assent , es 1o ba (Vegaza guianense) ou a Iamaçarand ryocarsp)
torna poss 1vel conhe cer melhor q . ta i ·u
1 rq ' uico o que at a uba (Manrk . ara'
de comando h·erá . . . . uais stão em processo de extinção· Com e1 as
.ao as regras do narcotráfico e 1dentif1car as respectivas organi·zaço• es h1'ber i} ' e se e ting
· uem
s .,., é os animais que se alimentam de seus x
do comércio da droga, que já nasceu globaliza: ca,..b m _ . fruto s. Est'
Com a intens ificação a tu alm ente, sao cort a das mais de duzenta . ima-se
amazônica, destinada ao mercado internacio n al qu ' e . 1· � s e cin quentª
do, parte da cocaína ara comercia 1zaçao (�rocópio, 2000: 143).
e eur Opeu, dá algumas · vezes voltas inexplicáveis. Máfias lib a nesas esp écies p
que parte da droga circule pelo pa� Estes atentados contra a existência estão vi·ncu Iados ao d1-.
radicadas no Paraná fazem com . . , . ao desprezo tota l pelas
il e , . , . formas de vida, cnmes. cu 0
s
burlando qualque r controle. Os libaneses mafioso são peixes dentro n heiro fac , , 1
e r�mb em propna vmm .
perpetrador Os jornais dispõem de
a a
d'água no mundo árabe. Suas bases nunca são as mesmas, mas fica
sobre a necessidade manifesta por importantes
00 Brasil uma parte da
inteligência do comando desse poderoso cartel ampla informaçao
set ores desses grupos, de estarem inseridos numa vida de norma­
(Procópio, 2000: 53).
lidade e desfrutarem de respeito generalizado para suas famílias.
A produção e venda de drogas sempre aparecem junto a Esta posi ção não foi alca nçada com o acúmulo de bens, apenas
outras atividades delituosas. O comércio e o tráfico ilegal de os setores protegidos no âmbito de seu negócio é que desfrutam
armas, por exemplo, configuram verdadeiros arsenais bélicos dela. Efetivamente, a carreira de mafioso, com todos os códigos,
em lugares que, como a Amazônia, são próprios para o armaze­ especialmente os "códigos de honra", em que o primeiro passo
namento e circul ação. As vias são sempre as mesmas: ar, terra e é a violência - a tortura, a morte indiscriminada, quando a l ei
mar, dependendo das circunstâncias; época do ano em que os rios do grupo é infringid a - é vista como uma opção "democrática",
são navegáveis até os lugares indicados, existências de estradas, segundo os historiadores, numa sociedade fechada em que a
lugares de depósito, aeroportos cla ndestinos. É a outra face do exclusão não tem saídas.
mercado da morte. As máfias estão ligadas ao contrabando e A extração da madeira não está apenas ligada ao desen·
roubo de automóveis realizados na Argentin a e no Brasil, que volvimento do tráfico; ela provocou o abandono dos cultivas
vã? parar no Paraguai, onde as pl acas e registros são mudados. tradicionais, como a castanha do Pará e a borracha, atualmente
AI, também são trocados por droga. em decadênci a no Brasil :
O m_undo da droga convive com outros produtos vinculados
, . ficantes amazô-
aos delitos conhec·1d os como " cnme
. • · os
eco 1og1co". Este utl·11za A f'ormu Ja do sucesso do cnme · para os narcoera
nos para levar seus carregamentos de . ene·1 a os pas
sos das
madeiras extraídas ilegal- nicos consiste
• em seguir com rapidez e compe t-
ócio s 1hC 1tOS com
.• •
mª· fias amencanas-colomt>i:mas . and° os neg
mente' madeiras nobres, • · .
como, por exemplo, o mogno (Sw1etenta , m1srur ..:o1J>.
macrophylla) ' q ue se
, mediante suborno persegu1 çao e
ob tem
. _ a agropecua, na . ag.ro-bus mess
. . 1 m p rances áreas agn
or
' mclusive o ocain , Je
ameaças aos indí gena . ' . · de heroína. c
s. E ssas madeiras roubadas - cuJO tra nspo r- do pais· gozam da fama de ser ponto de trans - ito
fino d3 -i:a
(!ro
te ocorre por via ,. • s P�ra o re . n•·ri"S dos
aquattca ou terrestre em operaç ões cn. m1n . osa5 anfetam m • as. Sobr . e a existência de. laboraro. no
de natureza ecológ m lii
. ' • ·1ve rs1· dade
. _ ica, um verda deiro atentado à b1od em fa zrndas va a ação S(
de uma d as reg1o . . e lugares no campo, isso compro
es mais ricas do mundo - vão se con verter e m traficantes n !45).
o meio rural (Procópio, 2000:

238
-
acha.' �ssim como a recente indús-
Os empresários da borr
bras1le1ra nos anos 1980, fora rn s
ma . do gan•mpo na região _ e
direç ão das drog as, � m raza o d � desespera nç
deslocando na _ _ a.
. -
aça o ·v,·
v1 d a pela crise da agricultura, m1c1ada nos anos
da s1tu . • .
sobrev1vencia, para quem , em
1970_ Foi a solução para a sua
homens. Eles se instalaram
1980, dirigia cerca de quarenta mil
ira, no m omento da fe.
em Rondônia, na região do rio Made
bre do ouro. Como em outros casos - o de Serra Pelada, por
exemplo_ a bulia (bambúrrio), como é chamado na Venezuela
0 descobrimento súbito de jazidas de
ouro e diamantes, atraiu
um grande contingente de migrantes. O interessante desta nova
situação é que se tratava de migrantes de um nível social pouco
comparável a situações anteriores, já que não provinham do
campo. Havia entre eles muita gente proveniente da classe média
urbana, às vezes profissionais, o que deu um caráter especial ao
fato. Foi especial porque, na crise posterior ao garimpo, eles se
converteram em pessoas qualificadas nas atividades do tráfico.
Os mesmos grupos que haviam encabeçado a extração e comer­
cialização aurífera se tornaram os controladores na exploração
das drogas. As mesmas máfias que organizaram o trabalho na
procura de ouro, através dos garimpeiros, passaram a organizar o
sistema de produção e comercialização das drogas. Como afirma,
com ironia, Montes Vanucci, "os pichicateros floresciam sobre
a sociedade com o vigor das vegetações que invadem as ruínas
pré-colombianas" (2004: 81 ).

,__
O trabalho artesanal dos garimpeiros, que usavam balsas e
equipamentos sem manutenção para mergulhar nos leitos dos
rios, seguros por mangueiras que, muitas vezes, se enrolavam
e arrebentavam entre os troncos, sendo levados pelas águas
ou pela simples utilização excessiva,
fez com que m uitos del es
passassem a usar cocaína para supo
rtar a situa ção. O garim po, . -' :�, ·"- .
com s�a própria forma de
organização, abriu caminho para Figu ra
57 - Formas de transporte no inten
.
a
. or d3 Amazôni
0 comercio de
entorpece ntes. Este com érci o se tornou o novo Rcvis ta Vei
a, jul. 1989.
salva-vidas da região.

241
240
guisrno , urn estado superior de expansa o
. corpo ra à rotin
a diária da região. Cria situaÇo• do psi· , eis da consc1e .• n
O tráfico se in agem
. . ,
mv1S1ve 1 entre O rea l s
e
!T l l· c i· n do o acesso a outros . niv de v .
1 d a. cia'
•a de ta pa ss
eo e r Se u co
de exceça_ o, pro
, pn s s
P neia! parece ser a seroto nma, que est" m ponente
. r cterizou boa parte
da 1·1teratura do contine esse .. tmu1a os neuro
e ca nte g erand o estados v1s1onários m'1st1.co s. tr ans-
fantástico, q•
a
u , . d,ecadas.
_ te vanas . s o re s ,
. e pec ia l' duran O docu m e nto m1 s
e desta regi ao ern o do mundo, do ponto de vista dos pov
s

. ce de urna declaraçao de quem te stem unho u os fa t os •...ra visã .


.... os am az.0nic. os,
a seguir nas
u aç õ es diversas. No entanto, há ta mbém n exos
ha, s •c
1 dentro dela
e diz O seguinte: ternos acesso a partu . de sua expres
são nos re1atos míti •
aos quais -
vés deles, conhec emos a tensão interna dos . .
0 custo de vida em Cruzeir
o do Sul talvez seja um dos m ais car os cos. Atra . 1ma gmano
,. s
que existem, por uma parte ' as tradiço· es ances . '
do mundo. Fortunas inexpli
cáveis nascem numa regi ão isolada do perCebemos trais
ação são fluviai s e aéreas. O tra nspor s e per sonagen� herdados da s próprias culturas ou
país, em que as vias de comunic te cren ça
rmaçao de elemento s da cul tura ocidenta l
pro'.
aéreo é caríssimo e o fluvi al acontece som e nte na época do inve
rn o, duto s de transfo • . d
. encia ·
, p or
são caudalosos. Uma viagem em barco de ra, é po ss1,ve1 perce ber a coexm e elementos tardios
quando os rios Man aus, o ut
principal cidade distribuidor a de produtos, para Cruzeiro do Sul, leva que estão relacionados, em geral , com a religião católica; pos­
de trinta a sessenta dias, dependendo do volume de água do rio Juruá. teriorm ente, existem elementos conte mporâneos que procuram
A população de Cruzeiro do Sul chega aproxima damente aos sessenta neg ar a s tradições ancestrais, como é o im aginário dos grupos
mil habitantes (Gouveia; Santos, 2000: 182). relig iosos pr otestantes, que foram desemba rcando nas últimas
décadas na região.
Mas a s substâncias psicotrópicas não estão somente liga das Neste processo de ocide ntalização, há sempre uma dimensão
n
ao arcotráfico. Ta mbém obedecem às formas rituais da s etnias coe rcitiva, que se dá em menor ou maior medida. O acesso ao
da região, que serão recuperada s, em parte pe la antropologia, conhecimento destas situações ocorre, por um lado, através dos
mas também pela contracultura. escritos dos cronistas e viajantes e, por outro, temo s a informação
da história do século 20, atravé s de informantes orais e de escas­
AS PLANTAS DOS DEUSES sas publicações a res peito. Por meio delas, fica evidente qu e há
A Ama zônia sempre e steve tradiciona lmente l igada à imagem histo ricamente uma luta no interior dos imaginário s,que não se
da droga. De fato, foi uma prática imemorial das cul turas qu e dete ve até os dias de hoje, pois as religiões trazidas pelo Ocidente
existiam ali, antes da chegada do Ocidente. A "ayahua sca" (Ba­ in stal aram suas bande iras e se misturaram violentamente com
n!steriopsis caapi) nos Andes, o "caapi,, ou "yagué" no Brasil, 0 imagin ário tradicional. Um dos casos de coerção que chego u
cham da
s�o, entre tanto s outros, os nomes de uma bebida alucinóg ena à o pm1ao· · • pu, bl.1ca, nos ano s 19 SO, e, o da orgaru·z ação , . a de
. · Lingu1snco
n�al, manipulad a pelo s xamãs, pajé
s, curandeiros de diferente
s N o vas Tnbos . , na Venezue l a, ligada ao lnsntuto
ento, um
etnias com fins pro f,e ticos,
• como fontes de sabedona o u prazer,
Ve rao- , com sede nos Estados Um.d os. Naqu ele mom
expe riên cia com O s a grupo de indí . . e1ectuais, . fez uma denu,n-
. gr ado, busca de expenenc1as . • • tran scenden- gena s, apoiado s por mt
do Cong resso
· alidades t
tais, fm . s no sentido do diagnóstico ou tra-
erape• utica ciª pu, b hca . , que desencadeou numa inv
.
. eSngação . . na,n·a. Os
tamento , entre outr
as uti·1Id· ade s. Este cipó chamado de "P1anta Naci.ona l sob . . ão m1ss1o
. ituiç
re as atividades daque la tnSr de
dos deus.es" ' "c '
ordª do enfo rcado" "trepadeira da alma,, ou 1d1.0, rne'todos
e stra nge1r . os foram acusado s de ecoei'd.10, etnoc, os minerais
"folhª d1v.ma da ' evan ge1·1za e os recurs
imortalI"dade", segundo incas, é preparado . agem sobr s
individualmente
ou com ª1guns ·
os ·
aditivos, gerando urna auva çã
o e control
çao- obrigatória, espion
e social. Finalmente, foram exp ulso ª
s d Vie
n ezuela. Sua

242 243
renaturais precisam f a
m a is mode rnos recursos tecno 1o, - Os seres sob . zer frente a det
nrava rn com os .- " s q ue os f az em fugir, com cnni nados
instal ações co e frot as de . a v1oes. . A, força m otriz do e1erne
nr o . . , . o ' por exe
m p I o,
rop rros . uta dos imagmano • . s, entra a drog o tabaco ·
gi· cos, co. rno a e
o
pelo Insnt uto Lingu1st1co d e Ve rão , p1. est a l
... . . a como um m
omovido . ,e ção com 111st nc1as extrassensoriai . odo de
mile nansmo, pr
a
Cns
. to r egr ss ra, , -r
I erra so .
me de - v1nc uia s. O tabaco
ª·
a a
a de que e
. nte ass ume o
paPel
. de uso de uma drog
a cr. ença concret r sido tr duzid a a todos os idiom , .
a de forma ritu I
O fumo d0 ta
lavr a rive a as do ' b aco
p ois qu e sua pa Alexan .de r Luza rdo (1981: 19) pos Sui u
ma gran d e e f 1cac
. _
1a nesses casos , assi.
m como a pres
,, a f'irma 0 pesquisador . , ença
mundo ' . elem ento cnstao funciona' desse mo do'
ca So , O univers
o . 1mag1nano . dos home . ns. da flor -
es da Cruz. O como anu'doto
Co mo nes re . , dos tradicionais.
, mane nr emen re assedia do pelo 1mag111 a no cri stã o , hoi· e para os me
ta e pe r
prot estante, que che ga com a modernização.
especialmente pelo
o dos homens e mulher es ama zônicos, há
0 universo mític
são centrais, aos quais estão associados
l ugares da natureza que
ia concreta também se torna
personagens e histórias. A histór
miro e, às vezes, se fecha em universos superpostos, como é 0
caso da história da b orracha, ou do descobr imento do sal na
área peruan a. Os centros produtores d e energias míticas são a
água, o boro, a serpente, a elva ou a montanha, no caso dos
Andes, habitar do Curupira ou Chullachaqui, o céu onde vivem
divindades de origem cristã. Os lugares importantes da natureza
rêm um espírito proteto r, que é a chamada Mãe. Existe a Mãe
da selva, a Mãe do Areal, a Mãe d'água etc. Eles aparecem no
conjunto de rit os: Figura ·s - Pa1é yanomami em ritual

Muira gente já viu lanchas fanrasmas, que viajam de noite e desa­


parecem na água. Eles fal am de vapores que u am lenha ou p ossuem
motores. Os Yacuru na� ou Roro diri gem ;is lanchas que rêm luzes,
levando pessoas e animais. Segundo a tradição indígena, siio boas
imensas. Os Cocamas dizem qu e é a Purahua, Mãe do rio . Em quéchua,
é ª Supay-L ancha (lancha-demônio). a língua Shipibo do Ucayali
central se chamª Acuro- n. 5e alguem
, chega perro da lancha fanra nia
pode contrair· enf ermidade ou paral isia (Reg an, 1993: 156).

Esta lancha é tam b, .


. em, em muitos casos, uma boa gigantesc a
que sai da água,ª
Cobra Grande no lado brasileiro. É em .relação
com este umverso . .
de seres e luga res onde as crenças trad1.c1onais
se rens1• onam e tra ' .
nsf. ormam sob a ação do imaginá no oc id enta'1
que os povos . .
nbemnho s dese
nvolvem sua rituali da de. F·igura O
nas, 196
59 , yanomami aspirando plantas 31uc1nóge
- pa1. es 2 45
244
a arnazónica (2005), de Wade D
· como um modo de reia � /tz seI� av1s. Enviado
t também é exercida , o s n a Colomb1a, Schultes, pa i da a realizar
Esta n.tua Idade . . ça0 ud

c
A

a u s e s . . ctn ob
ai. Po r um lado, ha os anim is que fa zem 5e log1a, r ea11zou urna irnp onantc otâ nic• a e d
a
n acu , . as fa rrna co
com o mundo
r
r elação e cham ada cut1pa no Peru)' be e c n o ' y .--, 15 a so br e
a iedades e "
sta , us . 1
Ot'Cnu•

pessoas ado ece


r (e . m ração as v r
. , . os da a ahuasca" ' de
m O feto das mulheres gravidas. Há pia nta rePª
P . c mo. dos ps1cot rop1cos .em geral, USo nru a�
feta s .
como. os que a .. a ssi m
o · e, espec1a lmcnte, da
, genas que são uultzadas nestes casos pelos cu ran de·1r os, m t
pub 1cou, )Unto com Hoff
aluci, no pos terior ente man, o cien tista
e, por sua vez,
aprendem com um pa 1·é co ndu coca, .
paJ.es ou. xama-s, qu .
. as bebidas apropriadas , dep�
-
sui,Ç 0 qu
e d esc ob riu o LSD, um estudo cha mad O Pia ntas de
los
as plan tas e preparar
� aooa 1. ar d. . Q r íg e n d ei uso de lo s alucinógenos ( 19 7 9 )• T
,ornou-se um
do de aprendizagem. Segundo Jaime Regan: ,os es
de um longo perío nhecedor do mundo indígena amazônico e trab
grande co .ç_ . a Ihou
ua d es u1 ao a f i rmava que o conheci
mento
viver num lugar isolado, fazendo dieta e contra s � � que os
r
0 aprendiz se retira para a m azô n1c os dettnham da natureza desapareceria antes
pimenta e contato sexual. O apre ndiz po vos , _
abstinên cia de sal, gordura, doce, o qu e a prop na n atureza - e em defesa do meio ambiente.
genas. Os espíritos O ensi nam rne srn
vai provand o as diversas plantas alucinó
a curar e O fortalecem, para que possa se defender dos espíritos maus.
Quando é uma mulher, nunca deve tomar os alucinóg enos no período
menstrual. O período de aprendizado pode durar de seis meses a dois
anos ou mais. Durante este tempo, o mestre vai ensinando seus conheci­
mentos e o aprendiz adquire um ou mais espíritos protetores, chamados
gênios ou crias, os quais o ajudam e protegem (Regan, 1993: 229).

Esta é a iniciação a uma função fundamental que desempe­


h
n ará na comunidade . Por outro lado, as plantas possuem um
espírito, "por isso conse guem sobre viver ( ...) São poderosas.
Curam. Outras têm o espírito da maldade para t razer sofrimento"
(Regan, 1 993: 171). Há plantas que produzem diferentes efeitos,
muitas delas alucinógenas; existem aquelas que enfeitiçam, as que
• ·
sã0 demomos , as que causam enfer midades, produzem febres,
as que curam as doenças e as identificam. Por esta razão é que,
ao fazer uso da " aya huasca ,, como forma nwal · a
' beb endo-a,
- · o da "ayahua sca" fala ao pajé du rante o son ho
Mãe ' o u espmt
ou estado de eb riedade.
Muitos viai·anres oci·d enta ·
1s procuraram a "ayahu asc a " , des-
de que Spruce' um · · ·
via1ante tnglês, deu notícias dela, em 1851'
p
nº�-�� .
Harvard R'ichªrd
um imp ortante estudioso dela, o prof es sor de
�van Schultes (1915-2001), a quem fa re mos
referência mai. s
, adiame, ao fa1ar da crônica recentem ente pu -
arvard• es
do
blicada sob a titu -
(IJdiOSo
lo E/ "º·
, Explo raciones y descubrimientos ei1 Figura 60 - Evan Schulres, professor de H
"beju co da alma" ].47
246
es s a m ontagem, com base na na
, Jos- N rr
A -azônia , em contato com Schultes, escritores
es nJllU
rn ar tic ul a dos d'fI erentes relatos·. . ati vª d e viagem,
Esuv. era m na f\.lll e Ce , . h,a mformaç
aroar .-,ca s do s crop1cos,
ª"
é o profeta da contrac ultur a, L:sto, na
sequências da iu . • sobre
oes
ang1o-saxoe - s conhecidos. Um deles 1 de Sc
(1914-1997), ícone de distintas gera as P õ is dios e ca sos da flor est h
. _ult es cm
William Seward Burroughs - a s e ,cpediç es, ep . ó a e suas c1v 1lizaÇoe
1950, os hippies nos anos 1960,os su - s,
- s,como os beats nos anos
çoe ç a s ' le nda s locais, costumes de diversas etn ia .
s, histórias dª
cren . .
adeptos da cibe rcultura dos anos viagem 1unto . com. Tim Plowman, informaço• es
ativistas dos 1960 e 1970, os pro'pria . sobre as
1990,0 new age do novo século.
Em 1953, Burroughs cheg ou à
b err as ante riores f e1tas pelo cientista. eada
erg. Queriam viver a desco . . momento é
Colômbia e, sete anos depois, Allen Ginsb a d o n um a den sidade e perspectiva que desp ertam mtere .
re 1ae . , . sse
experiência da "ayahuasca", da qual falava Schultes - além da s e l · cor · O p ont o de vista e de um leitor ocidental, que
enxer ga
no 1
vinte e quatro mil espécies de plantas que identificou e regis trou dad e a p artir da compreensão afirmada pela ciência
-e que havia observado Spruce no século 19. Eles queriam passar a reali con-
p orâ n ea; outros olhares estâo proscritos.
pela experiência,que ficaria registrada nas Cartas do Yage (1963), te m
to num registro bastante lírico, coerente
com a correspondência entre os dois escritores. Para Burroughs, 0 relato está escri
tam bém profundame nte poética da qual trata:
esta experiência seria o ponto de partida de pelo menos duas com a m atéria
publicaçõesJunkie (1953) e Queer (1985).
Uma publicação recente em espanhol, à qual fizemos refe­ [Os shua r) acreditam que a vida normal é uma ilusão, tudo o que
rência anteriormente, revela uma das direções que pode tomar vemos, essa montanha, a caminhonete, o próprio corpo. As verda deiras
as i que só
a escrita da droga. Trata-se da crônica, originalmente publicada causas determinantes da vida e da morte são forç nvisíveis
podem ser percebida s com a ajuda de plantas alucinógena s. Quando
o
em inglês, em 1996, chamada E/ río. Exploraciones y descubri­
p oteja
menino faz seis anos,ele deve procurar uma alma externa que
o r
mientos en la selva amazónica (2005), de Wade Davis, profes­
anha seu
sor de Harvard, antropólogo e explotador britânico, autor de e permita que se comunique com os antepassado s. Acomp
es de
uma vasta história de publicações anteriores. Ele faz parte do pai a uma cachoeira sagrada. O menino se ba nha e bebe infusõ
pa rece, pai
Programa de Exploradores residentes da National Geographic tabaco e outras drog as. Se depoi s de tudo isso, a alma não a
200S: 172)-
Society, e seu texto é a crôn ica da viagem de um naturalista, na e filho toma rão borrachero, a planta do desespero (Davis,
linha dos grandes cron istas como Wallace , Bates, Humboldc ou
Spruce,de quem,como Schultes, é um seguidor. O texto resgata a
O relato das diferentes crenças .md1g ' enas em torn o da coca é
trajet? ria do mestre, Schultes,o grande etnobiólogo, que realizou . exao antro·
feito num tom de respeito culturaI , reve1 ando a infl
sua viagem em 194 l e foi seu professor. Ele enviou seu pupilo ao
polo, g1. ca da narra tiva apesar de nao o estntamente
A� azonas,pois este desejava acompanhar as pesqu isas que ele - ser um text
o.
.
acad•em1co, mas escrito bt·,co mais ampl
fazia sobre a coca, 1mc1a • decadas
· · · da tres , antes. É uma homena- ' para um pu,
gem' dedicada ª' memona , · de quem foi seu companhei ro de vida ia flui
Sa dio' a energ o
e trabalho' Tim PIowman, .
pesquisador também reconhecido, Os m , d.10 s paeces acred·itam que, num corPo e pelo la d
be pe la perna
com quem realizou a viage contin º . , so
· m e a pes quisa, morrendo' no encanto, . uamente da terra pelo pe, direito
lo 1ª do e
sq uer do d0
pouco tempo depois. diº r en· o de sc er pe z
do peito até a cabeça, para d ep · (lu,co pro du
o 1s
A montagem da hist,ona . up - º des s e e
esta construída sobre a base de urna corp0, regre s I
sando a terra . Qua qu er
interr ,Ç ª
forJlla d
. que vª 1 e
narrativ a agi!, . gn o so.co é uma
. , nvolvendo o leitor atravé de va
s
.
, nos . . .
d esequ1hbno e, portanto, desgraça. O dia

248 249
CAPI TULO
Vi
a noite, à intempérie
ad1vm _ 0 x amã permanece sozinho durante
. . haçao.
. ,
do grand e quantidades de coca. A planta estimula o corpo
mascan S
ulares que os paeces chamam de
imóvel, produzindo espasmos musc
EPÍLOGO DESTA EXPEDICÃO
ção dos senas é que O xamã
senas. Na interpretaçã o do lugar e dura
is, 2005: 176).
deduz e prediz o destino do paciente (Dav
,
São textos relativos ao imaginário mítico, instâncias rituais,
como neste caso, ou narrativas que nos contam da descoberta
de uma planta, sua beleza, seu perfume, suas particularidades.
Cada uma delas é diferente e se torna interessante para o leitor'
que penetra num universo científico, apaixonado e apaixonan te,
com um mínimo de linguagem especializada. O ritmo da nar­
ração é, em geral, pausado e apresenta uma lentidão propícia
à abertura de espaços novos do imaginário. Apesar de ser uma
construção repleta de informação de caráter científico, o tom
não é solene e, em geral, revela um humor que produz empatia
pelos expedicionários.
E/ río é uma crônica de grande nível, tanto na arte da narra­
ção, como no plano científico. O leitor vai descobrindo, através
de um relato pormenorizado da viagem, a vegetação da floresta
e, em especial, as variedades de folhas da coca, a planta sagrada
dos incas, "a folha divina da imortalidade". Mas não é apenas
isso: a viagem realiza um trajeto longitudinal, mas, como nos
clássicos, seu percurso é denso, através de uma escrita que é
literária, histórica, científica e antropológica.

250
lar com o apoio das autoridades
e s t a poPu ' . . , que est1
mu1avam
f o interior a vir para Belém e t
A festa de Nos sa Senhora do Círio de . Nazaré .
reúne, na se
• - ad o r e s d
. . razer. suas os
a d1vers1dade amazonica· 11 1 o r ne ira, a -
lgre 1a cns tã oferendas.
gunda semana de outubro,anualmente, . . p essa
m a org aniza o im p
. -.
uludao, ess uls o à trans-
Confluem em Bel'm e , vindos pelos nos e caminhos
.
variados, os •
e n c1•a d a rn e esp aço com uni t'
a .
ce!l d no e .
habitantes da s diferentes regiões do interior. O chamado Círio t o rn a as relaçoes entre as pessoas algo ma· s1mbólico
qu e . . is que a so
de Nazaré recebe os desejos, os agradecimentos, as esperanças, a s p ar tes , a comumtas mst1t .. uc1ona
.
l, que
ma
de s u proc ura ut1.1.JZar
os impulsos espirituais e a vontade de afirm�r ident_idades. Em Canismos de controle, a fim de reassentar a estrutur
torno de do is milhões de pessoas, às vezes tres - universo alta­ s_eus me a d0
t u a 1 • R e assentar a norma, velar pela fidelidade das práticas
mente fractal_ invadem a cidade nesses dias, superando todas as ri . _ sa-
is ' para conseguir a evange11zaç . ao que é O fundamento
dificuldades e distâncias, exibindo a mostra concreta da razão de crarnenta
ual.
sua peregrinação, nas pernas, nas mãos, nos olhos talhados em da prática an
cera, nas casas pequenas de madeira sobre a cabeça, nos sinais nas, diferentemente de outros nrua1s
1�,{
. . (espanhóis,mexicanos
chilenos), este não apresenta uma tônica dolorosa ou expia-
de agradecimento aos favores obtidos de No ssa Senhora. Num
determinado instante da festa, tudo isso será colocado numa º:.
tona básica. O Círio é um culto à festa, à alegria,à comunicação
. - man ifesta
embarcação destinada aos pre sentes. Este é o contrato que os com o Outro É a festa d a toIeranc1a. • Sua rea1·IZaçao
homens firmaram com a patrona - favor recebido e entrega de ª Plural,idade de uma
cultura aberta
b ·
e
,
com sentido do deleite,
º
' . bebIda, dança,
oferendas - no milenar intercâmbio entre homens e deu ses. Tudo A festa e uma procissão ' mas tam em e negocio,
é deixado num barco, porque o Círio começa com um pas seio repre sent a Ço-es variadas· Frente à tentativa . disc1plmadora
. . . da
fluvial,pois estamos num mundo regido e dominado pelas águas ordem,h,a o des bordamento' - a des-ordem. Um sentido de prazer
. .
A barca, que recebe a diversidade de objetos,se torna uma
répli­ que mterpe1 a a ordem do sagrado Dentro deste ritual se encontra
ca, em menor escala, da diversidade dos povos que parti a Festa das Chiquitas. É a festa do Círio,que congrega ho�osse-
cipam
da peregrinação anual, num ritual cristão-pagão dirig xuais e travestis, todos d evotos de Nossa· Senhora de Nazare,com
ido pela
Igreja Católica; no entanto,de religioso apresenta ,
es pecialmente um espetáculo musical . e teatra1 propnos, integrando-se,assim, .
a vocação para a espiritualidade, uma estrutu na grande procissão onde todos encontram seu espaço. Desfe itas
ra de base à qual • .
são agregados os elementos de muitas outr
Para a Igreja Católica,a história de No
as culturas. as fronteiras étnicas, de generos e socms,
• .
ª
. toler anc1a aparece
cos, as
ssa Senhora de Nazaré, ali espelhada nos rostos morenos, negr os,mulato s' bran
a "devoção", possui uma longa trad a
ição que vem desde Portugal. mil misturas de uma sociedade fractal' que enc ontra nes sa fest
Tudo começa com o caboclo Plác
quando encontrou a imagem
ido,no final dos anos de 1700, a ma neira de articular suas 1dent . ª
1 des,atrav es
.d , de um ricual de
de madeira,de 28 centímetros, no espint . .
ualidade e carnava1 . Frente a essa dim . ensao, _ de significado.
igarapé de Utinga,passagem . dat as ' a JgreJa
de Vigia, lugar onde os via
certa de um romeiro que regressava fund ame ntal para a comumd ade amazônica n essas n tânea,
começou a ser venerada
jantes bebiam água. Co mo a imagem tema retomar a direção de uma exPressa_ o amp1 a e espo
contro1e e
Souza Coutinho, cap1t
ali, em 1790, o fidalgo Francisco de que pec a de "mundanismo " , que foge totalmente ao
beneficiado com os f
· -
ao GeraI do R10.
Negro e do Gra- o-Para,, extrapola qu
alquer previsão. gra��e
. .
dec1d1u levantar um
avo res da ima
· gem durante uma enferm1da · de, A narrativa oficial da lgre1a col oc a e m evidência a no
, .o. A ss 1m
· go n o c,
tra m em jo in·0' sua
santuan . começou a ser cel brada a
e contradiçã
o, a força dos po d ere s q u e en
ª
d festa do

252
de hOJe · , a ordem e a desordem. o ca ra, ter
2 53
ocial, que evide nci a elemCnto
ºa e s s de apro
, rado e, ao mesm· o tempo, carnavales ht1inª o tempo, revela suas tensõe xu.nação e
natureza, e de rito sag co .
i n e s m . s- s . T ra ta-se de
São dias de rupt ur a com o cotidiano, o trab�lho e o papel social o
a i
de i!Tl . bo, 11c
,
a . g n a nos e formas comuns de n
·
.
pe sar a u univ
vid
_ m . ers o,
caminha, vem � Belem dos lugar es mai � a. ao vozes que reivind· a a parti.
O romeiro navega ou .riaça-0 51m . - icam o res pe r da
para cumpnr o contrato estabelecido , . pdos
no
recônditos da Amazônia, s s i stema s da
reg1ao, que pensam no fut
. uro das, ger a
, que tem a forma de Noss a Senho r e c o • s que
çoe
com sua entidade espiritual a de rão e, p. or. isso, querem preservar O par a1s0. Est
Porém , ao fazê-lo , a�ere � uma forma de relação as su ce e talvez
de Nazaré .
çao de seu perfil regio n c3 te nha existid o como tal, .
mas está pre s ente
na me
comunitária que é, também, a af1rm� nal, no • . mória
um, como aquele da mfanc1a ou dos antigos, b em com
identitário, paraense ao menos, num interregno de deleite, 0 qu al de. cada , . o
n agi nan o de sua esperança.
extrapola os limites da organização das quatro procissões, que 0u
que envolve a Amazô nia, parece ser o d
estruturam fundamentalmente o evento e fazem da romar ia p elo O discurso atual, . . a rei-.
. di·cação ecológica. Mas . a discussão teórica é extern a a· regia. . o.
rio O Círio Fluvial: o Traslado, o Círio, a Procissão da festa e O Re­ vin
a o discurso da sensibilida
-Círio. A festa é organizada pelos coordenador es, os presidentes· Ali dentro circul de meio ambiental
por seus habitantes. Apesar de ser fundament al para 0
entre os participantes há os que levam a música, os "tocado res d; vivida
planeta, este discurso ecológico encobre uma série de problemas
instrumentos", os que carregam estandartes, as bandeiras, além
outorg ando-lhes um status menor: a e n o me margina­
dos festeiros, "brincantes" e "foliões" (Figueiredo, 1999). Os na região, r

organizadores trabalham um ano para dar uma boa estrutur a ao lização social, as desigualdade s, os abusos de poder, a violência.
evento. Os participantes vão além e extrapolam a festa. No gesto Além da apropriação simbólica, por parte das grandes potências,
de cumprir seu contrato há devoção, mas também comemoração da Amazônia como uma reserva estratégica da humanidade.
pela promessa cumprida, alegria pelo encontr o, às vezes pelo Com relaçã o à questão ecológica, os enfrentamentos não são
uma
r eencontro, a ebriedade do tumulto, o espaço ilimitado que se poucos; há muitos, especialmente no ex-rerior., que reclamam
intern a­
produz com o barulho dos alto-falantes e suas ladainhas quase Amazônia inta cta - "pulmão do mundo" - um território
iorve�
nunca nítidas, somente reconhecíveis pela m odulação dos tons, cional estratégico que não deve ser modificado. Do exier
milit ar. �a
marcando um princípio de r egular idade, os fogos artificiais, a também o assé dio do grande capital · e da ocupação
· açao
lor
música, os ambulantes, a comida, a bebida, a dança, o alvor oço. outr os que, a partir de seu interior. exigem o direi·roª· exp
_ A festa do Círio de Nossa Senhora de Nazar é é a negocia­ econ omtea• · para fazer frente a- sobre,,w · · ' naa, · acenando para O que
�ao _ entre
_ as forças que ordenam e as que desorde nam, as da .
tem sido chamado de desenYO1nmento sustentável
. ·o enfoque
desen-
mSrituição e as do tumulto. É também o momento de reunião preservac1on . .
ista dos monmenros eco1og · i. ..•os dos países , .
da diversidade am azonica · nia e da prorn.1
· · e do aparecimen to do seu sentid· o de vo 1v1do . s questiona o prog�resso saci. a1 dª't\m azõ
tolerância · Nessa festa se , g1c. ,, • . � - m os pesqu1. s.1dores
a que aludia Tocanr·ms
representa a "pluralidade ecolo a
. . . , .
Amen ca Latina, de maneira geral , ahrma_ . . ('\;.Ol{,•o,-xist
(t9Sl) e visualizamos a partir da ot1ca da a· rea, na . pa mmonio
.
. 1�ade
da di�ers med i da em que a de fesa dO c n1.C'(liment..
i�us.
de uma socie dade fractal. co nf und e com a p.u;,hs;,çao o1· eco s des 1'(\,
Nao existe aqui um d.iscur , . . . dos p r
u m est .1do r rin110
so unico que consiga expressar a N·a o se tr;ua de manter a Amazonia c • . m
Amazo. nia.
. As voze ,.rcs.:i•n1c,nro

s que surgem dela são de tons distintos, d,·fe- a f1 de facilitar sua tutrla. m,is de ni: • n sar que O i m
remes ester, i. cas dife rences propo, .
mos. Todas elas assina lam para ec ono' 1111co i: possível junto com as roliticiS de: r
m . . r• . rva,J<'
Ct'�c
a cena mu'lt1p . 1'a de um uni. verso _ .
dominado por uma dive rsid ade biental (Flores; Mitschein. 1990: tO).
254
. Ç ão' estét ica do espaço,, entre outra s su
experimenta hoje, e m seu dia a e f1 60 - se passou, no n1vel inter . rg,'da s no fina1
t t 1
Desta maneira, 3 Amazônia . ' 19 . nac1on al•
a outr as rc . o.s
d
obre o meio am . b 1ente em nível in • te aoo s es. Elas tivera m co ·
1v
dia ' um g rande dcbare r- _ 5 rna ior m o foco a s ern _ t ndi-
er.í o hom em o cen tro do u01ver o, o que faz p ensar ,açoe c1
.
as poluentes, prod uzid
. issoes ind usrr' .
1a1s
nacion al: . . bstâ n a s Prtncipa
do meio ambiente deverian, te• - 10 de s u . . 1mente pe
que a re po r,1 s ao p roblemas desenvolv . _
idos. Da Con fe rência de Es
tocolrno, ern
lo s
rá a biosfera, ou seja ' a natur ez pai,ses .
' .
como único referente? Ou e . a, c ada p elas Naç oes Unidas saiu uma pro1e 19 72'
rambém ch <1mada de eco fera, a mam z da p r eoc upa çã o q ue convo çàO altament
e
. . . ante da crise . .
meio ambie ntal' que um
de\'C orient ar a respo ta urgen tes a cri e amb1ental :nua!? E preocup analista resume
pontos: a 1de1a da. .aurodestruição, a percepção de
outra palavra , amos mai impo r tante que os de mai ere s
m etll crês que
m o s em um mundo finito e, posterio rmente, a substitu ·
- ou e trata de bu car O cquilíbn. o vi •ve . iça· o
vivo - animai ou . • p antas
l
. progr esso pela de incerteza (Este nssoro, 2006) Nos
.
que pe rm1re a ex1 tenc1a e a v1'd a, entendendo que somo aPe na da ideia de
e 1990, estas preocupações se aprofun daram com a
. .
, a ma1 e devcmo� no� compor tar como ral?
urna e pec1e anos 1980 . , . -
anca e a aceleraçao da destruição d a cama d a de
mudança cl1m
atamento das florestas tropicais e subtrop1•ca1s. .
ozô nio, o desm
Nest e aspecto, a Amazônia aparece como um espaço altamente
preocupante. A isto e juntou uma discussão sobre os recursos
do planeta em torno d e uma polêmica que marcou história -se
er am finitos ou mal distribuídos-,
que teve como pomo de par­
tida o rexto Los lí111ites dei crecimiento, de Meadows e outros,
em 1972, patro cinad o pelo Clube de Roma.

As di cussõe obr e os efeitos da civi lização, que já preocup
pações
vam Rousseau, voltam a ter sentido e encabeça m as preocu
efeitos.
sobre o a\·anço científico e tecnológico, bem corno seus
ída pelo
A ideia Je progre so, própria da modernidade, é su bstit
u
pções do
pr incípio da incerteza. que incorpora as novas perce
o antropo-
futuro. A cosmo\·i Jo biocêntrica questio na a relaçã
modernidade,
ênrr ica, que h,n·ia sido o grande pa radigma da do
leva11do tambe, m a um que no . narnenro dos cre dos religiosos
ntal da rn ode r-
Oc'1denre. J unro com a c r ítica à visão do eu oci·de n
, s a
" afirma qu e
. profun da
Figura 62 _ A rnuI tId-ao adorJ• nidª de, a agora chamada "ecologia
J \'1rgrm
_ d, Lu11
Foto Bra�a palavras de Hill Devall e George Se ssi ons:
. escer
Como sabemo 'd as dcman ire ito d e exisn·r, flor .
inter nas . smo d ealizaçao
em rornode umasene
das das 1 lltas am 1)1enra1
· · s· 10d as a coisas . na biosfera tem o me in1 e n co e aurorr ..u.c3,
, . dcr eivin
··d'icaçocs e aleançar s env olv de b1o
çào, conservaçao
- d e espaç
_ - salubridade, despolu1 - uas próprias forma s de des a c om unt·da
• proteção de espécies em
0 naturais, [e] o5 11uma
• nos são simplesmente ci ª péc1es
'd d-oª .s (...) 3 medida em que
d
nao s a- o a ·s es
m os ou senhor es das demai 7
256
25
ar os discursos dessa reg ião ,e con
E,stud . hecer as
tensõe
as . s como organismos ou entidades indiv
coisa -
iduais' esta
,
a r.1a s d a cultur
.
a do coneme
• .
nte. Terra da
Pr ome s a s o .
ente ndem os , huma nos e nao hu i11
duos manos' ern g da s utopias, a Amazoma abrig a a div ' . s , espaço nde-
ra , a respe1•car os indiv
1
visão nos leva
. . como parte de um todo , sem
.
sentir a necessi.dade de enova ers1 d ade, a
mult1pl
e ·d de cultural, o espa-ço do i. nacabado' do des1 . i-
seu pleno direito
. qu1•as' tendo os seres humanos no alto (Estenssoro' c1 a u oes culturais inst ávei.
Ocarnento. C
o
esta belecer h1erar , I• 0 d e constr ,ç • s, de des\iza m0
cenaC men tos
2006, p. 81). •nários a. h1st . ona da região ap arece corn o um
illlagi .
e das fronteiras geográficas para d 1
delo da ]ab1lidad . , cu1 tur
rno , . .
a1s e º�ª
sun-
. • or da Amazônia, o discurso teórico não tem a pala ·
No mten o n'1vel m . ternac1onal. Estudar seus discursos ,
habitantes, ribeirinhos, indíge nas' serin- bo,1.1ca s n . e também
vra, que esta , com seus . "'ºloc
ar n uma perspectiva que permite visual·mr���
_
. , quilombolas' habita ntes urban os, os quai s enfrentam os
gue1ros elativos ao futuro da humanidade, no at ua1 1ogo
.
os amaz
• .
omd as que
_
dao a conhecer problemas r . ._ · de
roblemas em seu dia a dia, int e rna c10 nal sob re a reg1 ao.
intelectuais, escritores e jornalistas poder
� discurso de suas vidas. Os
também fazem uso de seus discurso s, porém estes raramente saem
da r egião. Para além dos direitos dos homens, eles reclamam os
direitos da Terra.
Estes discursos revelam a dualidade gerada pelo grande ca­
pital na região, historicamente e hoje, em que a grande empresa
enriquece em detrimento do meio ambiente e d a sociedade, pro­
duzindo cifras inumanas nos índices de pobreza. Ali o trabalho
assalariado é remunerado com valores irrisórios e existe, segundo
denúncias nas Nações Unidas, trabalho escravo e tortura. A vio­
lência , que se expressa nos assassinatos de líderes seringueiros e
sindicais, tornou-se conhecida após as publicações referentes à
morte de Chico Mendes, alguns anos atrás, por meio das ONG's
e da Pastoral da Igreja (Gutiérrez, 2006; Martínez, 2006).
Atualmente, a floresta é palco de grandes disputas entre po­
deres e opções políticas. É ali onde se debate, por uma parte, o
domínio da guerrilha, com seu discurso que se coloca nos anos
1?60 e se desgasta nas décadas seguintes, e, por outra, a orga·
ruz�ção e O poder do narcotráfic o, seguido dos paramilitares,
e, finalmente, o exercito
, · como representaçao - 1 u do
. do Esta do. T:
isso também é . •
part e da cu1tura da v10lenc1a . ' a que nos re f · mos
en
antes, cu1· a hist,ona
· nasce d,ecadas atrás e tem sua evoluçao _ em
curso. Seu cenário , . ,
eª se1 va amazo• mca ' pertencente a Col.om b'
ia,
ao Equador'ª' V,enez
ue1 a, ao Brasil e ao Peru.

258
zs9
-
NOTAS
se transmite na reprodução,
veget al vivo que
1 _Mat erial
perspectiva do sujeito, bem como de sua re 1 açao _ com 0 ntomo sur-
,
1 Sobre esta s d e 1 e . uras da reIaçao
1r • enrrc literatura e meio . amb1.�
ente, com o
i m pro p osta E - .
ra . . t
sao mteressan es, na medida que ampliam o campo
g ecocr1te1sm. Ias
chamado BUELL, 1995: 94).
crítico ( ver
i seamos n ossa leitur a na. edição de Arthur azar Fc rrcira Reis, . .
. que mnrula
Ba "Aro azo• rua: terra sem 1S h . tória '
• i"i mtan do c o m outros textos
o
esse texto com a Amazoru • . a, para oferecer uma vers.io de Um /1 arauoptr' , d"d0
d e Eucli
des sobre
2003: 123).
(v er cUNHA,
o de 2005.
zada pela autora em 31 de janeir
• Entrevista reali ibérico
em verso, que recebeu dos estUdiosos o nome cm
1 É uma literatura popular íran cês litrér atur e de colp ortag e, ou
d e literar ura
de cordel, equivalenre ao na, apa rece a partir de sua incor­
ceg o. Na Am éric a Lati
Porrugal, literatura de o 'º"ido, no México,
recebe aqui diversos n omes, com
poração ibfrica. O estilo me e nde taJDbém se conhece
de\·ido às dobras com o no hecidocomorontrapunteo
o
lira popr,/a r, no Chile,
alguns países do Caribe écon
como versos de âego; em
a de paya.
ou repente. No sul, tom a form a
Núcleo
essora Rosa Accvedo, do nnlrza
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270 Z71
1
para obter mai•
informações sobre
outro• titulo& da
!DITORA UPMG,
visite o site
l O areal
www.editora.ufmg.br .I! Melhor documentário

Í. SPECIAL JURY PRIZE)
\ IV Mostra Amazônica de Manaus /f � FIDOCS 2008

Sebastián Sepúlveda.
Uma coprodução chileno-brasileira dirigida por
nica brasileira e narra a relação dos
Este documentário foi filmado na Floresta Amazô
uma comun idade quilom bola com os espíritos que habitam um areal encantado.
descendentes de
modern a ponte ameaça mudar o estilo de vida da comunidade.
A construção de uma
sidade de Santiago do Chile e
Sua realização foi possível graças ao apoio da Univer
ação de Univer sidade s Amazô nicas.
ao patrocínio da Associ

r11.1lo ,mgmal: O areal Legendas: Inglês e Espanhol

1lm:ç;io Sct>astián Sepúlveda Formato: Ntsc. Stereo

C1 enl.'.r�, Do,umentário Países da produção: Chile e Brasil

l)urai..:Jo: 5-r Ano da produção: 2008


Contato: sebasepu@gmail.com
Idioma: Português

S \O PODE SER\ ESOIDO SEP/\RADA�!ENI F


C�dido gentilmt!'nt1.; põr Seb::i!,ti;in Sepuh eda para enc;.tn� dc-:,h' livro.

-..-
S/\NFIC4�

A presente ediçao
· • f01• composta pela Edito ra
lJFM. G e impres
. sa pela Rona Gráfica e Editora
em sistem a offset,
papel pólen soft 80g (miolo)
e cart'ao supremo 300
g (capa), em abril de 2012.

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