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Resumo: A Iconologia (1593) de Cesare Ripa faz parte do gênero denominado livro de emblemas
que possuiu grande divulgação na Europa durante os séculos XVI e XVII. Estes livros são
caracterizados pela presença de emblemas que consistem em uma imagem ou alegoria,
geralmente antropomórfica; a inscriptio, frase que remete ao tema da imagem; e a subscriptio,
pequeno texto explicativo da alegoria. Na Iconologia, quatro figuras femininas representam as
quatro partes do mundo: África, América, Ásia e Europa. Cada uma delas é retratada com
elementos distintos para que o leitor possa associar e reconhecer os continentes. A América é
uma mulher seminua que carrega um arco e flechas, a seus pés está uma cabeça decapitada e um
jacaré. No mesmo período, a partir da recuperação da herança clássica, a deusa grega Ártemis
também é representada em pinturas e esculturas com instrumentos de caça e animais. Segundo
Pierre Vernant, além de responsável pela caça, esta deusa está relacionada às regiões de fronteira.
Deste modo, paralelos entre Ártemis e América se mostram contundentes no sentido de
compreender a representação do continente na obra de Ripa. Este trabalho tem por objetivo
identificar as aproximações e distanciamentos entre as representações de Ártemis e América,
assim como sugerir hipóteses sobre os referenciais imagéticos que influenciaram as escolhas de
Ripa dos elementos representativos do continente americano.
Financiamento: CAPES.
Introdução/Justificativa
Livros de emblemas são um gênero literário que possuiu grande difusão na Europa a
partir do século XVI. Os emblemas são caracterizados pela presença da inscriptio ou moto, o nome
do emblema (i.e. amor, justiça, amizade), seguida pela imago ou symbolon, a imagem, geralmente
antropomórfica, utilizada para representar a ideia desejada; e, por fim, a subscriptio que consiste em
um texto que pretende explicar a inscriptio e a imagem3. Os livros que reuniam emblemas se
inspiraram na publicação do Emblematum libellus [Livro de Emblemas] de Andrea Alciati em 1531
em Ausburgo que, por uma decisão do editor Heinrich Steyner, teve imagens engravadas em
placas de madeira adicionadas aos emblemas. Ou seja, nem todos os livros de emblemas
1 Agradecimento especial ao professor Rafael Benthien por ter contribuído imensamente para o
produção do presente trabalho.
possuíam as imagem pelas quais se tornaram conhecidos posteriormente 4. Isso se dava por dois
motivos: o autor do livro pode ter acreditado que somente o texto era fundamental para a
compreensão dos emblemas, ou também por causa do alto custo de produção das imagens. Além
disso, os livros eram publicados em latim ou em línguas vernáculas, e em casos como a Iconologia
(1593) de Cesare Ripa, fonte desta pesquisa, versos e prosa são utilizados na subscriptio dos
emblemas. Os livros de emblemas poderiam ser dedicados tanto a emblemas gerais, como é o
caso das obras de Alciati e Ripa, ou a emblemas específicos como a Amorum Emblemata
[Emblemas do Amor] (1608) de Otto van Veen, ou a emblemas sagrados como a Emblemata Sacra
[Emblemas Sacros] (1617) de Daniel Cramer e Conrad Bachmann. Ripa fez uma seleção
diversificada de emblemas, incluindo virtudes morais relacionadas a um contexto religioso, como
a misericórdia e a caridade; áreas do conhecimento como a astronomia e a botânica; descrição
dos meses, de regiões italianas, e de atividades como a caça.
Fonte: Fonte: RIPA, Cesare. Iconologia overo Descrittione dell’Imagini universali. Roma: Appresso de
Lepido Faey. 1603. p. 338.
7 VERNANT, Jean-Pierre. Ártemis ou as fronteiras do Outro. In: VERNANT, Jean-pierre. A Morte nos
Olhos: Figurações do Outro na Grécia Antiga Ártemis, Gorgó. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
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Uma vez que a América é um continente distante, desconhecido para a Europa até muito
recentemente na época de Ripa, é possível sugerir que a América também correspondesse à
fronteira e historiadores como Carla Oliveira discorrem acerca do desconhecimento e assombro
experenciado pelos navegadores e viajantes que fomentavam o imaginário criado sobre a região 8.
A hipótese de pesquisa é que a produção da imagem antropomórfica da América pode ter tido as
representações de Diana como base.
Figura 2. Escola de Fontainebleau. Diana Caçadora. c. 1550-1560. 1 original de arte, óleo sobre
madeira. 191 cm x 122 cm. Louvre.
Fonte: Wikipedia9.
1988. p. 15-30.
9 Disponível em:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d6/Master_of_the_Fontainebleau_School_-
_Diana_Huntress_-_WGA14546.jpg. Acesso em: 2 de julho de 2018.
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Figura 3. Ticiano. Morte de Actéon. c. 1559-1575. 1 original de arte, óleo sobre tela, 178.8 cm x
197.8 cm. Galeria Nacional de Londres.
Objetivos
O livro de emblemas intitulado Iconologia de Cesare Ripa, publicado em Roma em 1593 foi
escrito em italiano e em sua primeira versão não possuía imagens. Foi dedicado a Anton Maria
Salviati, cardeal de Florença na época. Segundo as informações biográficas de que os
historiadores dispõem, Cesare Ripa trabalhou como trinciante na corte do cardeal. O trinciante
possuía a função de cortar carnes nobres para banquetes e era estimada na sociedade 11. O título
completo da obra é “Descrição das Imagens Universais extraídas da Antiguidade e de outros
lugares... Obra não menos útil do que necessária aos poetas pintores e escultores, para representar
a virtude, a vida, os afetos e as paixões humanas”. Contudo, esta pesquisa tem como fonte a
segunda edição da Iconologia publicada em 1603. Esta versão também foi produzida por Ripa.
Teve um grande aumento em relação ao número de emblemas e 151 ilustrações feitas em placas
de madeira foram adicionadas. Estas ilustrações não foram creditadas a nenhum artesão até onde
se sabe, mas pode-se afirmar que Ripa estava ciente e aprovou as imagens que nesta versão
acompanham os emblemas.
11 STEFANI, Chiara. Cesare Ripa: New Biographical Evidence. Journal Of The Warburg And
Courtauld Institutes, [s.l.], v. 53, p.307-312, 1990, p. 308.
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segunda edição ter sido dedicada a Lorenzo Salviati, pois Anton Maria Salviati havia morrido em
1602, e uma alteração no título da obra que passou a incluir “Descrição de diversas imagens
extraídas da antiguidade e de invenção própria”. Nesta segunda edição destaca-se também o título
de título Caualiere de Santi Mauritio, & Lazaro conferido a Ripa pelo Papa Clemente VIII em 30 de
março de 159812.
Contudo, a mudança mais importante para esta pesquisa é a adição do emblema “Mundo
e suas quatro partes” que correspondiam aos continentes conhecidos no período: África,
América, Ásia e Europa. O mundo é representado pelo deus pagão Pã, e cada uma das
personificações dos continentes possui uma imagem que acompanha a subscriptio (o texto), e a
inscriptio (título do emblema).
12 WITCOMBE, Christopher L. C. E.. Cesare Ripa and the Sala Clementina. Journal Of The
Warburg And Courtauld Institutes, [s.l.], v. 55, p.277-284, 1992. p. 278.
14 Ibidem, p. 50.
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A segunda operação descrita por Panofsky é a Iconográfica 15. Esta possui como objetivo
classificar os elementos descritos na fase pré-iconográfica. O pesquisador precisa estar
familiarizados com os temas do período e do artista a fim de interpretar de maneira acurada os
elementos presentes na fonte estudada. Esta segunda fase serve como base para interpretações
posteriores.
O animal próximo à mulher que representa da América é descrito por Ripa efetivamente
como um lagarto, “muito grande e notável naquelas terras” 18, que poderia ser um jacaré embora
Ripa utilize somente o termo lagarto. O fato da mulher estar nua, ou seminua, é explicado por
Ripa por ser este o costume dos povos nativos da região, assim como se enfeitar com penas. E as
armas são descritas como próprias e utilizadas por homens e mulheres nestas províncias. Por fim,
a cabeça decepada é um indicativo dos hábitos antropofágicos da população.
A terceira e última operação para Panofsky é a iconológica que possui como objeto o
significado intrínseco ou conteúdo da obra que pode não estar claro nem mesmo para o autor 19.
Esta fase exige o maior número de documentos possível e se insere na história dos sintomas
15 PANOFSKY, Erwin. Op. cit., p. 51.
culturais. Este último ponto, ainda que considerado fundametal para Panofsky, ultrapassa as
pretesões do presente artigo. O que se busca neste trabalho é uma comparação entre
representações da deusa Diana e da América de Cesare Ripa. Para realizar um estudo iconológico
seria preciso contrapor inúmeras representações da América, trabalho já realizado, por exemplo,
por Carla Oliveira no livro supramencionado20.
Resultados
O quadro Diana Caçadora é datado entre 1550 e 1560 e apesar de anônimo a autoria é
atribuída à Escola de Fontainebleau que se refere à produção artística francesa durante o século
XVI. A obra possui 191 centímetros de altura e 122 centímetros de largura, óleo sobre a madeira
transferida para a tela. A mulher que representa Diana está no centro e de lado encara o
observador. Suas vestes se assemelham às da América de Ripa e, tal como esta, Diana tem o seio
esquerdo descoberto. Uma fivela prende a aljava cheia de flechas a suas costas. Na mão direita
junto ao peito Diana segura uma flecha e na esquerda um arco. Atrás da deusa há uma grande
árvore e morros ao fundo no lado esquerdo da imagem. Os pés estão desnudos e atrás de suas
pernas um cão avança para a esquerda do quadro. O animal porta também uma coleira. Por fim,
uma pequena lua crescente adorna os cabelos de Diana.
Alguns dos textos clássicos que podem ter embasado as imagens de Diana são a Teogonia
(séc. VIII a.C) de Hesíodo e a Biblioteca (c. séc. I - II d.C) de Apolodoro. Ambas as obras
ressaltam a caça como uma característica intrínseca da deusa. O próprio título da obra, Diana
caçadora, torna clara a associação. As armas são elementos justificados e característicos neste caso,
assim como o cão de caça. De acordo com estas fontes, Diana é filha de Júpiter e Latona e irmã
gêmea mais velha de Febo (Apolo para os gregos) 21. Além de caçadora, Diana é também deusa da
lua, fato que explica o ornamento em seus cabelos, da virgindade e da vida selvagem 22. Como
mencionado anteriormente Jean-Pierre Vernant ressalta ainda as funções desta divindade como
deusa da fronteira de modo que ela tornaria permeável este território selvagem e realizaria a
passagem entre a infância e a fase adulta 23. A América é no século XVI um território de fronteira
para os homens letrados de regiões europeias de modo que a fronteira é uma hipótese de
19 PANOFSKY, Erwin. Op. cit., p. 53.
21 APOLLODORUS. The Library. Londres: William Heinemann, 1921. 1 v.; HESÍODO. Teogonia: A
origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1991.
23 Idem.
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Esta obra representa, tal como o título indica, a cena da morte de Actéon. Apolodoro
escreve que na versão mais comum da história Actéon teria visto a deusa se banhar e para puni-lo
Diana o transformou em cervo e fez com que seus cães de caça (de Diana ou de Actéon, não se
sabe ao certo) o caçassem e o devorassem 25. Os elementos tornam a cena reconhecível para
aqueles que conhecem a história de Actéon, mesmo que o observador não saiba o nome da
pintura. A mulher com arco e flecha, os cães atacando um homem com cabeça de cervo e a água
são suficientes neste sentido. Mais uma vez é possível comparar Diana à América. As vestes
descobrem um seio, as pulseiras em cada pulso, o arco e as aljavas estão presentes nas duas obras.
Na Iconologia Diana, propriamente dita, não possui um emblema dedicado a ela, assim
como os demais deuses da antiguidade. Cesare Ripa chegou a descrever as musas e monstros da
mitologia grega, mas se eximiu de descrições dos deuses gregos e latinos para além de breves
menções. Além disso, os nomes dos deuses estão em sua forma latinizada Baco, Minerva, Diana
correspondem a Dionísio, Atenas e Ártemis respectivamente.
Cesare Ripa menciona Diana na Iconologia em duas ocasiões somente. A primeira delas
ocorre no emblema da região de Friul que é descrita por Ripa como uma mulher que traja
sandálias similares as de Diana, “terá na mão esquerda um livro e nos pés sandálias similares às de
Diana”26. Ao mencionar novamente as sandálias portadas pela personificação de Friul, Ripa
acrescenta “como aquelas de Diana”27. A menção à deusa atesta o conhecimento de Ripa acerca
das representações também desta divindade ao utilizá-la como exemplificação da sandália.
A outra menção à deusa Diana ocorre na descrição das Ninfas. As ninfas de Diana
possuem um espaço reservado dentro do emblema “Ninfas na Comuna” ainda que sem a
presença de uma representação imagética. Segundo Ripa, estas ninfas se vestem de branco como
sinal de sua virgindade, característica intimamente relacionada a Diana, e têm os braços e ombros
nus com um arco na mão e uma aljava ao lado do corpo. Também poderiam usar vestimentas
adornadas com peles de vários animais como sinal de que são caçadoras 28. Esta pequena
descrição poderia se aplicar a imagem do emblema da América se o lagarto e a cabeça decapitada
não estivessem presentes na imagem. Resta o questionamento: teria o artesão responsável pelas
ilustrações da Iconologia ou Cesare Ripa conscientemente baseado a representação da América em
imagens já existentes da deusa Diana?
Considerações finais
Tal como Erwin Panofsky ressaltou no ensaio “Iconografia e Iconologia: uma introdução
ao estudo da arte da Renascença” mencionado anteriormente, nenhuma metodologia garante a
exatidão das interpretações, sejam elas inconográficas ou iconológicas. Portanto, não é possível
afirmar categoricamente que Cesare Ripa, ou o artesão que fez as gravuras para a Iconologia,
utilizou imagens ou textos já existentes da deusa Ártemis ou Diana como base para sua
representação da América. As diferenças entre elas não devem ser ignoradas. A cabeça decapitada
aos pés da América representa a antropofagia e não Actéon, o grande lagarto é outro animal
exótico distintivo do continente em questão e não possui a função de um cão de caça. Todavia,
semelhanças são encontradas entre a deusa e a personificação do continente. As roupas, a
27 Ibidem, p. 282.
Referências
Fontes
Escola de Fontainebleau. Diana Caçadora. c. 1550-1560. 1 original de arte, óleo sobre madeira.
191 cm x 122 cm. Louvre.
TICIANO. Morte de Actéon. c. 1559-1575. 1 original de arte, óleo sobre tela, 178.8 cm x 197.8
cm. Galeria Nacional de Londres.
Bibliografia
GRIEGO, Alfredo. Livro de emblemas: pequeno roteiro de Alciati à Iconologia de Cesare Ripa.
Alceu, v. 3, n. 6, Rio de Janeiro, 2003.
OLIVEIRA, Carla Mary S.. A América alegorizada: Imagens e visões do Novo Mundo na
Iconografia europeia dos séculos XVI a XVIII. João Pessoa: Editora UFPB, 2014.
STEFANI, Chiara. Cesare Ripa: New Biographical Evidence. Journal Of The Warburg And
Courtauld Institutes, [s.l.], v. 53, p.307-312, 1990.
WITCOMBE, Christopher L. C. E.. Cesare Ripa and the Sala Clementina. Journal Of The
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