Você está na página 1de 12

Anais eletrônicos -

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA – Tempos de transição - 1


ISSN 1808-9690

A ALEGORIA DA AMÉRICA DE CESARE RIPA E AS REPRESENTAÇÕES DE


ÁRTEMIS NO SÉCULO XVI1

Brenda Yasmin Degger2

UFPR

Resumo: A Iconologia (1593) de Cesare Ripa faz parte do gênero denominado livro de emblemas
que possuiu grande divulgação na Europa durante os séculos XVI e XVII. Estes livros são
caracterizados pela presença de emblemas que consistem em uma imagem ou alegoria,
geralmente antropomórfica; a inscriptio, frase que remete ao tema da imagem; e a subscriptio,
pequeno texto explicativo da alegoria. Na Iconologia, quatro figuras femininas representam as
quatro partes do mundo: África, América, Ásia e Europa. Cada uma delas é retratada com
elementos distintos para que o leitor possa associar e reconhecer os continentes. A América é
uma mulher seminua que carrega um arco e flechas, a seus pés está uma cabeça decapitada e um
jacaré. No mesmo período, a partir da recuperação da herança clássica, a deusa grega Ártemis
também é representada em pinturas e esculturas com instrumentos de caça e animais. Segundo
Pierre Vernant, além de responsável pela caça, esta deusa está relacionada às regiões de fronteira.
Deste modo, paralelos entre Ártemis e América se mostram contundentes no sentido de
compreender a representação do continente na obra de Ripa. Este trabalho tem por objetivo
identificar as aproximações e distanciamentos entre as representações de Ártemis e América,
assim como sugerir hipóteses sobre os referenciais imagéticos que influenciaram as escolhas de
Ripa dos elementos representativos do continente americano.

Palavras-chave: Cesare Ripa; Livros de Emblemas; América.

Financiamento: CAPES.

Introdução/Justificativa

Livros de emblemas são um gênero literário que possuiu grande difusão na Europa a
partir do século XVI. Os emblemas são caracterizados pela presença da inscriptio ou moto, o nome
do emblema (i.e. amor, justiça, amizade), seguida pela imago ou symbolon, a imagem, geralmente
antropomórfica, utilizada para representar a ideia desejada; e, por fim, a subscriptio que consiste em
um texto que pretende explicar a inscriptio e a imagem3. Os livros que reuniam emblemas se
inspiraram na publicação do Emblematum libellus [Livro de Emblemas] de Andrea Alciati em 1531
em Ausburgo que, por uma decisão do editor Heinrich Steyner, teve imagens engravadas em
placas de madeira adicionadas aos emblemas. Ou seja, nem todos os livros de emblemas

1 Agradecimento especial ao professor Rafael Benthien por ter contribuído imensamente para o
produção do presente trabalho.

2 Mestranda do programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná.


3 OLIVEIRA, Carla Mary S.. A América alegorizada: Imagens e visões do Novo Mundo na
Iconografia europeia dos séculos XVI a XVIII. João Pessoa: Editora UFPB, 2014, p. 21.
Anais eletrônicos -
XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA – Tempos de transição - 2
ISSN 1808-9690

possuíam as imagem pelas quais se tornaram conhecidos posteriormente 4. Isso se dava por dois
motivos: o autor do livro pode ter acreditado que somente o texto era fundamental para a
compreensão dos emblemas, ou também por causa do alto custo de produção das imagens. Além
disso, os livros eram publicados em latim ou em línguas vernáculas, e em casos como a Iconologia
(1593) de Cesare Ripa, fonte desta pesquisa, versos e prosa são utilizados na subscriptio dos
emblemas. Os livros de emblemas poderiam ser dedicados tanto a emblemas gerais, como é o
caso das obras de Alciati e Ripa, ou a emblemas específicos como a Amorum Emblemata
[Emblemas do Amor] (1608) de Otto van Veen, ou a emblemas sagrados como a Emblemata Sacra
[Emblemas Sacros] (1617) de Daniel Cramer e Conrad Bachmann. Ripa fez uma seleção
diversificada de emblemas, incluindo virtudes morais relacionadas a um contexto religioso, como
a misericórdia e a caridade; áreas do conhecimento como a astronomia e a botânica; descrição
dos meses, de regiões italianas, e de atividades como a caça.

Este gênero literário serviu em grande medida para a síntese e estabelecimento de


imagens nas regiões europeias. Carla Oliveira em seu livro A América alegorizada afirma que a
imagem do continente (Figura 1) presente na segunda edição da Iconologia de Cesare Ripa foi
responsável por estabelecer o padrão para representação deste continente 5. Os elementos
presentes no emblema da América, o arco e as flechas, a cabeça decapitada, uma mulher seminua,
e um animal exótico (jacaré, lagarto, tatu) foram continuamente utilizados nas mais diversas
fontes pictóricas, quadros, porcelana, tapeçaria, mapas e frontispícios. Isso se deu também pelo
fato da Iconologia ter sido uma das primeiras fontes a conter uma imagem antropomórfica da
América. O frontispício do Theatrum Orbis Terrarum de Abraham Ortelius já havia sido publicado
em 1570, mas não há indicações de que Cesare Ripa tivesse conhecimento da obra uma vez que
não a menciona, nem seu autor, ao longo da Iconologia. Menções estas que são realizadas em
relação a outros autores como Petrarca, Boccaccio e Ovídio.

4 AMARAL JUNIOR, Rubem. Emblemática Lusitana e os Emblemas de Vasco Mousinho de


Castelbranco. Lisboa: Chul, 2005. p. 8.

5 OLIVEIRA, Carla Mary S.. Op. cit., p. 22.


Anais eletrônicos -
XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA – Tempos de transição - 3
ISSN 1808-9690

Figura 1. Emblema da "América"

Fonte: Fonte: RIPA, Cesare. Iconologia overo Descrittione dell’Imagini universali. Roma: Appresso de
Lepido Faey. 1603. p. 338.

O historiador Alfredo Grieco ao comparar Andrea Alciati, o teórico fundador do gênero


livro de emblemas, e Cesare Ripa, afirma: “se Alciati se inspirara nas antologias gregas e nos
epigramas latinos, seis décadas depois Cesare Ripa vai basear seu tratado sobre as imagens na
mitologia antiga, nas escrita pictórica dos egípcios e em alegorias cristãs” 6. A retomada da
Antiguidade pelos homens letrados no século XVI e XVII foi responsável por reintroduzir as
mitologias grega e latina como referências para pinturas, esculturas, literatura e imagens em geral.
A deusa grega Ártemis, que na latinização de seu nome é denominada Diana (utilizados no artigo
com sinônimos), é tema de obras como o quadro Diana Caçadora da Escola de Fontainebleau
(Figura 2) datada entre 1550 e 1560; e a pintura Morte de Actéon de Ticiano Vecellio (Figura 3)
produzida entre 1559 e 1575. O historiador Jean-Pierre Vernant discorre acerca da importância
de Ártemis como deusa da caça e também da fronteira para os gregos, tendo por função guiar os
homens e jovens nas fronteiras da caçada e também na passagem da infância para a fase adulta 7.
6 GRIEGO, Alfredo. Livro de emblemas: pequeno roteiro de Alciati à Iconologia de Cesare Ripa.
Alceu, v. 3, n. 6, Rio de Janeiro, 2003. P. 82.

7 VERNANT, Jean-Pierre. Ártemis ou as fronteiras do Outro. In: VERNANT, Jean-pierre. A Morte nos
Olhos: Figurações do Outro na Grécia Antiga Ártemis, Gorgó. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
Anais eletrônicos -
XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA – Tempos de transição - 4
ISSN 1808-9690

Uma vez que a América é um continente distante, desconhecido para a Europa até muito
recentemente na época de Ripa, é possível sugerir que a América também correspondesse à
fronteira e historiadores como Carla Oliveira discorrem acerca do desconhecimento e assombro
experenciado pelos navegadores e viajantes que fomentavam o imaginário criado sobre a região 8.
A hipótese de pesquisa é que a produção da imagem antropomórfica da América pode ter tido as
representações de Diana como base.

Figura 2. Escola de Fontainebleau. Diana Caçadora. c. 1550-1560. 1 original de arte, óleo sobre
madeira. 191 cm x 122 cm. Louvre.

Fonte: Wikipedia9.

1988. p. 15-30.

8 OLIVEIRA, Carla Mary S.. Op. cit., p. 28.

9 Disponível em:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d6/Master_of_the_Fontainebleau_School_-
_Diana_Huntress_-_WGA14546.jpg. Acesso em: 2 de julho de 2018.
Anais eletrônicos -
XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA – Tempos de transição - 5
ISSN 1808-9690

Figura 3. Ticiano. Morte de Actéon. c. 1559-1575. 1 original de arte, óleo sobre tela, 178.8 cm x
197.8 cm. Galeria Nacional de Londres.

Fonte: The National Gallery10.

Objetivos
O livro de emblemas intitulado Iconologia de Cesare Ripa, publicado em Roma em 1593 foi
escrito em italiano e em sua primeira versão não possuía imagens. Foi dedicado a Anton Maria
Salviati, cardeal de Florença na época. Segundo as informações biográficas de que os
historiadores dispõem, Cesare Ripa trabalhou como trinciante na corte do cardeal. O trinciante
possuía a função de cortar carnes nobres para banquetes e era estimada na sociedade 11. O título
completo da obra é “Descrição das Imagens Universais extraídas da Antiguidade e de outros
lugares... Obra não menos útil do que necessária aos poetas pintores e escultores, para representar
a virtude, a vida, os afetos e as paixões humanas”. Contudo, esta pesquisa tem como fonte a
segunda edição da Iconologia publicada em 1603. Esta versão também foi produzida por Ripa.
Teve um grande aumento em relação ao número de emblemas e 151 ilustrações feitas em placas
de madeira foram adicionadas. Estas ilustrações não foram creditadas a nenhum artesão até onde
se sabe, mas pode-se afirmar que Ripa estava ciente e aprovou as imagens que nesta versão
acompanham os emblemas.

Outras modificações são verificadas em relação à primeira publicação. Como o fato da


10 Disponível: https://www.nationalgallery.org.uk/paintings/titian-the-death-of-actaeon. Acesso em: 02
de julho de 2018.

11 STEFANI, Chiara. Cesare Ripa: New Biographical Evidence. Journal Of The Warburg And
Courtauld Institutes, [s.l.], v. 53, p.307-312, 1990, p. 308.
Anais eletrônicos -
XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA – Tempos de transição - 6
ISSN 1808-9690

segunda edição ter sido dedicada a Lorenzo Salviati, pois Anton Maria Salviati havia morrido em
1602, e uma alteração no título da obra que passou a incluir “Descrição de diversas imagens
extraídas da antiguidade e de invenção própria”. Nesta segunda edição destaca-se também o título
de título Caualiere de Santi Mauritio, & Lazaro conferido a Ripa pelo Papa Clemente VIII em 30 de
março de 159812.

Contudo, a mudança mais importante para esta pesquisa é a adição do emblema “Mundo
e suas quatro partes” que correspondiam aos continentes conhecidos no período: África,
América, Ásia e Europa. O mundo é representado pelo deus pagão Pã, e cada uma das
personificações dos continentes possui uma imagem que acompanha a subscriptio (o texto), e a
inscriptio (título do emblema).

O objetivo deste trabalho é identificar as aproximações e distanciamentos entre as


representações de Diana e América, assim como sugerir hipóteses sobre os referenciais
imagéticos que influenciaram as escolhas de Ripa dos elementos representativos do continente
americano. As fontes para o desenvolvimento da pesquisa foram a Iconologia de Cesare Ripa, a
pintura Diana Caçadora da Escola de Fontainebleau; e o quadro Morte de Actéon de Ticiano.

Como aporte metodológico, foram utilizadas as considerações de Erwin Panofsky em seu


ensaio “Iconografia e Iconologia: Uma introdução ao estudo da arte da Renascença” no qual o
autor apresenta as operações necessárias para o desenvolvimento de pesquisas nesta área da
História13. A primeira delas é a operação pré-iconográfica que consiste em elencar os elementos
representados na imagem14.

No caso do emblema da América de Cesare Ripa, há no centro da imagem uma mulher


cujos cabelos estão adornados por um ornamento de penas, em sua mão direita segura uma
flecha e na esquerda um arco. A mulher usa uma pulseira em cada pulso. Suas vestes descobrem
o seio esquerdo logo abaixo do qual ela porta uma aljava com flechas. No chão irregular, sob o pé
esquerdo da mulher está uma cabeça decapitada transpassada por uma flecha, ao lado da perna
esquerda há ainda um animal de focinho alongado, cauda comprida e quatro patas que se
assemelha a um lagarto. Duas colunas de folhas e frutos emolduram a figura.

12 WITCOMBE, Christopher L. C. E.. Cesare Ripa and the Sala Clementina. Journal Of The
Warburg And Courtauld Institutes, [s.l.], v. 55, p.277-284, 1992. p. 278.

13 PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: Uma Introdução ao estudo da arte da Renascença.


In: Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 47-65.

14 Ibidem, p. 50.
Anais eletrônicos -
XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA – Tempos de transição - 7
ISSN 1808-9690

A segunda operação descrita por Panofsky é a Iconográfica 15. Esta possui como objetivo
classificar os elementos descritos na fase pré-iconográfica. O pesquisador precisa estar
familiarizados com os temas do período e do artista a fim de interpretar de maneira acurada os
elementos presentes na fonte estudada. Esta segunda fase serve como base para interpretações
posteriores.

A partir deste modelo, sabemos que a mulher representada é uma personificação da


América, pois Cesare Ripa deu à figura o nome de América, escreveu um texto que descreve e
interpreta a imagem e que corrobora este discurso. A subscriptio do emblema apresenta a América
como uma “mulher nua de cor escura misturada com amarelo. Traja um véu de muitas cores que
cai de um ombro cruzando o corpo e lhe cobre as partes vergonhosas. Tem os cabelos
espalhados e um ornamento artificial de penas coloridas ao redor do corpo. Segura na mão
esquerda um arco e na direita uma flecha, pendurada no ombro uma aljava, debaixo de um pé há
uma cabeça humana trespassada por um flecha e ao lado um lagarto de incomensurável
grandeza”16. Em Seguida, Ripa apresenta o Padre Girolamo Gigli, Ferrante Gonzales, padres
jesuítas e o cosmógrafo Fausto Rughese da Montepulciano como fontes para seu emblema.
Entretanto, não foi possível estabelecer uma conexão entre estes nomes e obras que pudessem
ter sido utilizados por Ripa uma vez que não há na historiografia informações sobre eles para
além da menção na Iconologia17.

O animal próximo à mulher que representa da América é descrito por Ripa efetivamente
como um lagarto, “muito grande e notável naquelas terras” 18, que poderia ser um jacaré embora
Ripa utilize somente o termo lagarto. O fato da mulher estar nua, ou seminua, é explicado por
Ripa por ser este o costume dos povos nativos da região, assim como se enfeitar com penas. E as
armas são descritas como próprias e utilizadas por homens e mulheres nestas províncias. Por fim,
a cabeça decepada é um indicativo dos hábitos antropofágicos da população.

A terceira e última operação para Panofsky é a iconológica que possui como objeto o
significado intrínseco ou conteúdo da obra que pode não estar claro nem mesmo para o autor 19.
Esta fase exige o maior número de documentos possível e se insere na história dos sintomas
15 PANOFSKY, Erwin. Op. cit., p. 51.

16 RIPA, Cesare. Iconologia overo Descrittione dell’Imagini universali. Roma: Appresso de


Lepido Faey. 1603. Disponível em: <https://archive.org/>. Acesso em: 02 de junho de 2018, p. 338.
Tradução própria.
17 Existiu um escritor e dramaturgo de nome Girolamo Gigli, mas que é posterior à obra de Cesare
Ripa tendo nascido em 1660 e morrido em 1722. Assim não pode ser o mesmo autor a que se refere
Ripa.

18 RIPA, Cesare. Op. cit., p. 339.


Anais eletrônicos -
XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA – Tempos de transição - 8
ISSN 1808-9690

culturais. Este último ponto, ainda que considerado fundametal para Panofsky, ultrapassa as
pretesões do presente artigo. O que se busca neste trabalho é uma comparação entre
representações da deusa Diana e da América de Cesare Ripa. Para realizar um estudo iconológico
seria preciso contrapor inúmeras representações da América, trabalho já realizado, por exemplo,
por Carla Oliveira no livro supramencionado20.

Resultados

O quadro Diana Caçadora é datado entre 1550 e 1560 e apesar de anônimo a autoria é
atribuída à Escola de Fontainebleau que se refere à produção artística francesa durante o século
XVI. A obra possui 191 centímetros de altura e 122 centímetros de largura, óleo sobre a madeira
transferida para a tela. A mulher que representa Diana está no centro e de lado encara o
observador. Suas vestes se assemelham às da América de Ripa e, tal como esta, Diana tem o seio
esquerdo descoberto. Uma fivela prende a aljava cheia de flechas a suas costas. Na mão direita
junto ao peito Diana segura uma flecha e na esquerda um arco. Atrás da deusa há uma grande
árvore e morros ao fundo no lado esquerdo da imagem. Os pés estão desnudos e atrás de suas
pernas um cão avança para a esquerda do quadro. O animal porta também uma coleira. Por fim,
uma pequena lua crescente adorna os cabelos de Diana.

Alguns dos textos clássicos que podem ter embasado as imagens de Diana são a Teogonia
(séc. VIII a.C) de Hesíodo e a Biblioteca (c. séc. I - II d.C) de Apolodoro. Ambas as obras
ressaltam a caça como uma característica intrínseca da deusa. O próprio título da obra, Diana
caçadora, torna clara a associação. As armas são elementos justificados e característicos neste caso,
assim como o cão de caça. De acordo com estas fontes, Diana é filha de Júpiter e Latona e irmã
gêmea mais velha de Febo (Apolo para os gregos) 21. Além de caçadora, Diana é também deusa da
lua, fato que explica o ornamento em seus cabelos, da virgindade e da vida selvagem 22. Como
mencionado anteriormente Jean-Pierre Vernant ressalta ainda as funções desta divindade como
deusa da fronteira de modo que ela tornaria permeável este território selvagem e realizaria a
passagem entre a infância e a fase adulta 23. A América é no século XVI um território de fronteira
para os homens letrados de regiões europeias de modo que a fronteira é uma hipótese de
19 PANOFSKY, Erwin. Op. cit., p. 53.

20 OLIVEIRA, Carla Mary S.. Op. cit..

21 APOLLODORUS. The Library. Londres: William Heinemann, 1921. 1 v.; HESÍODO. Teogonia: A
origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1991.

22 VERNANT, Jean-Pierre. Op. cit..

23 Idem.
Anais eletrônicos -
XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA – Tempos de transição - 9
ISSN 1808-9690

aproximação das imagens da deusa e do continente. Os artesões e artistas que produziram as


imagens da América neste período não tiveram contado com o continente que procuraram
representar. Portanto, baseavam seus trabalhos em relatos e imagens e frequentemente os temas
ressaltados são a guerra, o canibalismo e animais exóticos, como se verifica no caso da Iconologia24.

Ainda que este quadro da Escola de Fontainebleau e a gravura da América analisada


possuam diferenças fundamentais em relação aos materiais utilizados em suas composições, os
pés descalços, o arco, a aljava e as flechas estão presentes de maneira bastante similar em ambas
as obras, até mesmo as posições destes elementos. O arco está na mão esquerda e a flecha na
direita, a aljava está presa à cintura no lado esquerdo. As vestes também são semelhantes e
descobrem o seio esquerdo das duas mulheres. Não há um grande mistério em relação a isso, é o
modo como geralmente se porta estas armas.

A pintura A morte de Actéon de Ticiano (c. 1473/1490 – 1576) é datada aproximadamente


entre 1559 e 1575. Possui 178.8 centímetro de altura em197.8 centímetros de largura, pintada à
óleo. Na metade esquerda da obra Diana está representada logo após ter atirado uma flecha. A
mão esquerda esticada segura o arco e a direita está livre, a aljava cheia de flechas está presa à
cintura da deusa e suas vestes amarela e rosa descobrem seu seio direito. Nos pés a mulher usa
uma sandália e uma fita prende seu cabelo. Uma pulseira adorna cada um de seus pulsos. Atrás de
Diana um cão corre e mais ao fundo há água e nuvens no céu. No lado direito da obra muitas
árvores e arbustos parecem compor um bosque ou floresta. Três cães atacam um homem de
tronco desnudo com cabeça de cervo.

Esta obra representa, tal como o título indica, a cena da morte de Actéon. Apolodoro
escreve que na versão mais comum da história Actéon teria visto a deusa se banhar e para puni-lo
Diana o transformou em cervo e fez com que seus cães de caça (de Diana ou de Actéon, não se
sabe ao certo) o caçassem e o devorassem 25. Os elementos tornam a cena reconhecível para
aqueles que conhecem a história de Actéon, mesmo que o observador não saiba o nome da
pintura. A mulher com arco e flecha, os cães atacando um homem com cabeça de cervo e a água
são suficientes neste sentido. Mais uma vez é possível comparar Diana à América. As vestes
descobrem um seio, as pulseiras em cada pulso, o arco e as aljavas estão presentes nas duas obras.

Na Iconologia Diana, propriamente dita, não possui um emblema dedicado a ela, assim
como os demais deuses da antiguidade. Cesare Ripa chegou a descrever as musas e monstros da

24 OLIVEIRA, Carla Mary S.. Op. cit., p. 28.

25 APOLLODORUS. Op. cit., p. 323.


Anais eletrônicos -
XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA – Tempos de transição - 10
ISSN 1808-9690

mitologia grega, mas se eximiu de descrições dos deuses gregos e latinos para além de breves
menções. Além disso, os nomes dos deuses estão em sua forma latinizada Baco, Minerva, Diana
correspondem a Dionísio, Atenas e Ártemis respectivamente.

Cesare Ripa menciona Diana na Iconologia em duas ocasiões somente. A primeira delas
ocorre no emblema da região de Friul que é descrita por Ripa como uma mulher que traja
sandálias similares as de Diana, “terá na mão esquerda um livro e nos pés sandálias similares às de
Diana”26. Ao mencionar novamente as sandálias portadas pela personificação de Friul, Ripa
acrescenta “como aquelas de Diana”27. A menção à deusa atesta o conhecimento de Ripa acerca
das representações também desta divindade ao utilizá-la como exemplificação da sandália.

A outra menção à deusa Diana ocorre na descrição das Ninfas. As ninfas de Diana
possuem um espaço reservado dentro do emblema “Ninfas na Comuna” ainda que sem a
presença de uma representação imagética. Segundo Ripa, estas ninfas se vestem de branco como
sinal de sua virgindade, característica intimamente relacionada a Diana, e têm os braços e ombros
nus com um arco na mão e uma aljava ao lado do corpo. Também poderiam usar vestimentas
adornadas com peles de vários animais como sinal de que são caçadoras 28. Esta pequena
descrição poderia se aplicar a imagem do emblema da América se o lagarto e a cabeça decapitada
não estivessem presentes na imagem. Resta o questionamento: teria o artesão responsável pelas
ilustrações da Iconologia ou Cesare Ripa conscientemente baseado a representação da América em
imagens já existentes da deusa Diana?

Considerações finais

Tal como Erwin Panofsky ressaltou no ensaio “Iconografia e Iconologia: uma introdução
ao estudo da arte da Renascença” mencionado anteriormente, nenhuma metodologia garante a
exatidão das interpretações, sejam elas inconográficas ou iconológicas. Portanto, não é possível
afirmar categoricamente que Cesare Ripa, ou o artesão que fez as gravuras para a Iconologia,
utilizou imagens ou textos já existentes da deusa Ártemis ou Diana como base para sua
representação da América. As diferenças entre elas não devem ser ignoradas. A cabeça decapitada
aos pés da América representa a antropofagia e não Actéon, o grande lagarto é outro animal
exótico distintivo do continente em questão e não possui a função de um cão de caça. Todavia,
semelhanças são encontradas entre a deusa e a personificação do continente. As roupas, a

26 RIPA, Cesare. Op. cit., p. 280.

27 Ibidem, p. 282.

28 RIPA, Cesare. Op. cit., p. 353.


Anais eletrônicos -
XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA – Tempos de transição - 11
ISSN 1808-9690

presença de um animal, o lagarto no caso da América e o cachorro no caso de Diana, o arco e as


flechas, e mesmo as roupas são sinais de que as imagens podem estar relacionadas.

Referências

Fontes

APOLLODORUS. The Library. Londres: William Heinemann, 1921. 1 v.

Escola de Fontainebleau. Diana Caçadora. c. 1550-1560. 1 original de arte, óleo sobre madeira.
191 cm x 122 cm. Louvre.

HESÍODO. Teogonia: A origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1991.

RIPA, Cesare. Iconologia overo Descrittione dell’Imagini universali. Roma: Appresso de


Lepido Faey. 1603. Disponível em: <https://archive.org/>. Acesso em: 02 de junho de 2018.

TICIANO. Morte de Actéon. c. 1559-1575. 1 original de arte, óleo sobre tela, 178.8 cm x 197.8
cm. Galeria Nacional de Londres.

Bibliografia

AMARAL JUNIOR, Rubem. Emblemática Lusitana e os Emblemas de Vasco Mousinho


de Castelbranco. Lisboa: Chul, 2005.

GRIEGO, Alfredo. Livro de emblemas: pequeno roteiro de Alciati à Iconologia de Cesare Ripa.
Alceu, v. 3, n. 6, Rio de Janeiro, 2003.

OLIVEIRA, Carla Mary S.. A América alegorizada: Imagens e visões do Novo Mundo na
Iconografia europeia dos séculos XVI a XVIII. João Pessoa: Editora UFPB, 2014.

PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: Uma Introdução ao estudo da arte da


Renascença. In: Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 47-65.

STEFANI, Chiara. Cesare Ripa: New Biographical Evidence. Journal Of The Warburg And
Courtauld Institutes, [s.l.], v. 53, p.307-312, 1990.

VERNANT, Jean-Pierre. Ártemis ou as fronteiras do Outro. In: VERNANT, Jean-pierre. A


Morte nos Olhos: Figurações do Outro na Grécia Antiga Ártemis, Gorgó. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1988. p. 15-30.

WITCOMBE, Christopher L. C. E.. Cesare Ripa and the Sala Clementina. Journal Of The
Anais eletrônicos -
XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA – Tempos de transição - 12
ISSN 1808-9690

Warburg And Courtauld Institutes, [s.l.], v. 55, p.277-284, 1992.

Você também pode gostar