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Arte e literatura na Antiguidade Clássica

Prof. Milca Tscherne

Descrição

Expressões da arte na Antiguidade Clássica e manifestações literárias, como Ilíada, Odisseia, Eneida e
Metamorfoses.

Propósito

Reconhecer as principais manifestações e características da arte e da literatura greco-latinas na


Antiguidade Clássica para ampliar o domínio das diferentes linguagens e seus contextos.

Preparação

Tenha em mãos um dicionário de literatura para compreender o vocabulário específico da área. Na internet,
você acessa gratuitamente o E-dicionário de termos literários, de Carlos Ceia, e o Dicionário de cultura básica,
de Salvatore D’Onofrio.
Objetivos

Módulo 1

Arte na Antiguidade Clássica


Reconhecer as manifestações artísticas da Antiguidade Clássica.

Módulo 2

A Ilíada e a Odisseia de Homero

Identificar os aspectos culturais e literários da Ilíada e da Odisseia.

Módulo 3

Eneida, de Virgílio, e Metamorfoses, de Ovídio


Identificar o contexto e os aspectos literários de Eneida e Metamorfoses.

Introdução
O que há em comum entre as cerâmicas gregas, as colunas dos templos romanos, a Odisseia, de
Homero, e a Eneida, de Virgílio? Resposta: todos são expressões da arte na Antiguidade Clássica
greco-latina.

A Grécia e a Roma antigas são importante berço da cultura e da arte ocidentais, com ricas
expressões estéticas na pintura, na escultura, na música, no teatro e na literatura. Por isso, você está
convidado a conhecer, neste conteúdo, o maravilhoso mundo da arte e da literatura na Antiguidade
Clássica.

1 - Arte na Antiguidade Clássica


Ao final deste módulo, você será capaz de reconhecer as manifestações artísticas da
Antiguidade Clássica.

Contexto das expressões artísticas na Antiguidade


Clássica
A Antiguidade Clássica tem início no século VIII a.C., quando a Ilíada e a Odisseia recebem as suas versões
escritas, e termina no século V, com a queda do Império Romano, que sela o fim da Idade Antiga e marca o
início da Idade Média. É um período extenso e, por isso, um tanto difícil de sintetizar em suas várias
manifestações artísticas.
A Apoteose de Homero, por Jean Auguste Dominique Ingres (1827).

A favor dessa sintetização, no entanto, está certa familiaridade com os valores estéticos e as regras de
composição dos antigos, pois muito do que produziram consolidou-se como tradição artística sob diversas
linguagens – até mesmo as mais recentes, como a do cinema e a dos jogos digitais.

Além disso, faz parte do conhecimento escolar a história antiga, sobretudo a da Grécia e de Roma, e suas
influências na cultura ocidental, que vão desde o sistema político e legislativo a modelos canônicos de arte
e de literatura até hoje estudados, valorizados e contemplados museus afora.

Ao se entrar em contato com a literatura no ensino médio, ainda que se negligencie a leitura integral de
obras literárias antigas que impactaram toda a civilização do Ocidente, estuda-se a chamada Era Clássica,
que abrange os séculos XVI, XVII e XVIII, representados respectivamente pelo Classicismo da Renascença,
pelo Barroco e pelo Neoclassicismo árcade.

Nesse período, valores clássicos, como os de proporção, regularidade, clareza e unidade, orientam a
composição das obras. Mesmo que o Barroco tensione alguns deles, ainda assim reforça o imitatio
antiquorum (o modo de imitação dos antigos). É contando com tal repertório que as manifestações
artísticas da Antiguidade Clássica serão brevemente abordadas aqui.

A Última Ceia, por Leonardo da Vinci (1945), obra do Renascentismo, que retoma e valoriza referências culturais da Antiguidade Clássica.

Os gregos e os romanos
A civilização grega antecede à romana, mas algo as conecta de modo indissociável, pois, quando Roma
domina a Grécia, os romanos passam a assimilar a sua cultura.

Como profundos apreciadores dos gregos, os romanos constroem um fecundo


diálogo estético com eles. Embora seja possível verificar claramente os traços
peculiares de cada civilização em suas manifestações artísticas, não seria exagero
afirmar que os gregos imitaram a arte dos egípcios e que os romanos imitaram a
dos gregos, todos eles condicionados a uma lógica de admiração.

Eneias foge de Troia em chamas, por Federico Barocci (1598).

Poeta latino do século I a.C. e autor da epopeia romana Eneida, Virgílio buscou nas epopeias gregas do
século VIII a.C. o modelo a ser imitado. No entanto, inseriu elementos novos, como o próprio imperador
Otávio Augusto, contemporâneo do poeta, como personagem.

A peculiaridade, nesse caso, além de conferir à Eneida os valores augustanos, foi usar referências do tempo
presente como matéria épica, e não só recorrer a um passado remoto, como era próprio das epopeias.

A diversidade de manifestações artísticas


Em princípio, são consideradas manifestações artísticas a literatura, a música, a escultura, a pintura, a
dança e o teatro, porém convém reconhecer o valor estético que inúmeros objetos com finalidades mais
utilitárias ostentavam.

As joias, a tecelagem, os talheres, os escudos de guerra, a tapeçaria, os túmulos, as cerâmicas: tudo recebia
cuidadosa e preciosa ornamentação, uma vez que as classes abastadas de nobres, reis, imperadores e
aristocratas se destacavam por se cercarem de um ambiente e de objetos absolutamente exclusivos. Se
arte (ars, em latim) significa habilidade, não seria equivocado atribuir a um conjunto amplo de objetos o
apelo artístico.
Ânfora grega do século VI a.C.

Tendo isso em vista, apresentaremos a seguir algumas expressões artísticas do mundo antigo greco-
romano em três agrupamentos:

A música, a poesia (literatura), a dança e o teatro

A arquitetura e a escultura

A pintura e a cerâmica
A música, a poesia (literatura), a dança e o teatro na
Antiguidade Clássica

O grande teatro de Epidauro, construído no século IV a.C., no Santuário de Asclépio, na ilha de Epidauro, na Grécia.

A poesia nasce identificada com a música. Tal característica não é uma particularidade da cultura grega,
pois a poesia e a música ligam-se a manifestações primordiais do ser humano dirigidas a divindades e
reservadas a momentos coletivos de rituais.

Páris e Helena, por Jacques-Louis David (1788).

Não somente a poesia lírica, cuja etimologia advém da lira, instrumento que acompanhava o ato de recitar
ou cantar os versos, está associada à música, como também a poesia dramática, com a qual o teatro antigo
se realizava, e a épica, cujos cantos ou parte deles eram entoadas pelos aedos, isto é, os poetas-cantores.

Desse modo, no contexto antigo, não é simples dissociar a música da poesia e até mesmo da dança.
Embora Aristóteles tenha separado as artes miméticas segundo os meios e os objetos próprios pelos quais
cada uma se realizava, a sua apreciação no mundo antigo se dava, em geral, em conjunto.
Quanto aos meios, Aristóteles opõe (e aproxima) a manifestação
literária à música, à dança, à pintura, ao mesmo tempo que
estabelece distinções internas à própria literatura. Com exceção
da pintura, que se serve das cores e do desenho, os meios das
outras formas de arte mimética são o ritmo, a linguagem e a
harmonia, ora reunidos ora separados.
(BRANDÃO, 1976, p. 46)

A música emprega, portanto, a harmonia e o ritmo; a dança, apenas o ritmo. Já a literatura pode empregar
até mesmo os três meios juntos, como no teatro antigo, por exemplo.

A propósito, quando se busca a origem do teatro grego, cujo ápice se dá no séc. IV a.C. com o florescimento
das tragédias e comédias, o que se encontra são os cantos ditirâmbicos, canto em louvor ao deus Dioniso
(Baco para os romanos), entoados em festividades em seu louvor. Aos poucos, foram acrescidos a esse tipo
de canto primitivo instrumentos musicais e dança, sendo instituído ainda um coro de cinquenta integrantes
do qual se destacava um solista, chamado de corifeu, com o qual o coro passou a dialogar.

A partir desse diálogo, estabeleceu-se a base do gênero dramático, que, no século IV a.C., passou a contar
com a introdução gradativa de atores e de temas de origem profana. O coro permaneceu no teatro com
função mais lírica do que dramática, pois não participava da ação dos personagens: ele apenas as
comentava como uma voz coletiva em uníssono, representando a origem coletiva do teatro quando ainda
não era composto por atores individualizados.

O teatro antigo, portanto, não se dissocia da religião nem da vida social. Por isso, ele sempre foi
acompanhado de música e dança.

O Teatro de Dionísio em reconstituição do século XIX.

Sobre os instrumentos musicais, muito do que se sabe se dá por meio das artes visuais. Os romanos, por
exemplo, se valiam de uma variedade cuja origem era grega, etrusca, africana:
Cordofones (lira, cítara e alaúde)

Membranofones (sinos, chocalhos, sistros, címbalos, tímpanos,


tambores, órgãos)

Aerofones (bucina e corno, tuba, tíbia, ascaule e flautas)


A associação entre ética e música, tão marcada na cultura grega, não se repetia na romana. A música
estava em todas as ocasiões: do contexto público de manobras militares com cítaras de tamanho de
carruagens a usos privados na educação musical, considerada uma distinção social.

Outro momento em que as artes se misturavam era durante os tradicionais jogos píticos. Iniciados no
século VI a.C., eles incluíam competições de música, poesia e canto realizadas no teatro, enquanto os jogos
ginásticos ocorriam no estádio.

A arquitetura e a escultura
O Parthenon, templo dedicado à deusa Atena, padroeira da cidade, construído na Acrópole de Atenas no século V a.C.

Há uma discussão acerca da natureza da Arquitetura sobre ser ou não arte, dada a sua filiação com a
engenharia e outras ciências, como a Física e a Matemática. No entanto, ela conta a história da arte de
todos os períodos, sendo possível contemplar na arquitetura a sensibilidade estética e os valores cultivados
por cada civilização nas construções de suas cidades.

É o que pode ser visto nas edificações públicas que restaram do mundo antigo, como:

Templos

Arenas e estádios
Termas

Teatros

Senados

Praças
A arquitetura também acolhe elementos escultóricos que, no caso greco-romano, são muito evidenciados
por colunas e seus variados estilos. Além de, claro, ela também ser um receptáculo de outras artes, como a
escultura e a pintura.

A escultura e a arquitetura na Antiguidade Clássica se expressam segundo as leis de:

Harmonia
Equilíbrio
Simetria das formas
Ambas são atravessadas pelo racionalismo clássico, como é possível observar nas linhas retas das
edificações gregas e na regularidade do espaço intervalar das colunas. Já a arquitetura romana, além de
reproduzir substancialmente a grega, ainda desenvolveu um estilo próprio marcado não só pela beleza, mas
também pela rigorosa funcionalidade.

Suas diferenças em relação à arquitetura grega advêm sobretudo do uso de materiais mais leves, como o
tijolo, o concreto armado e o ladrilho, que favoreceram a criação dos arcos, das abóbadas e dos domos tão
característicos das construções romanas. As edificações mais leves dos romanos permitiram uma maior
versatilidade na criação de espaços mais amplos, circulares e sem a necessidade de apoios intermediários.

Três ordens clássicas norteavam a arquitetura grega, que, por sua vez, foram revisitadas pela romana:

Ordem dórica
A mais antiga e simples de todas, esta ordem remonta ao século VIII a.C. As colunas em estilo dórico não
tinham base. O capitel era despojado e o friso, liso, porém elas eram sólidas, esbeltas e elegantes, sendo
muito usadas na parte externa de templos de divindades masculinas. O Império Romano adaptou o dórico,
tornando-o mais leve e constituindo, assim, o estilo toscano.

Ordem jônica
Surgida por volta de 450 a.C. As colunas são mais leves e fluidas que as dóricas, com capitel ornamentado
em duas volutas e base larga. Elas eram muito adotadas em templos que abrigavam as divindades
masculinas. O templo de Atena Niké é um exemplo do estilo dórico.
Ordem coríntia
Típica do final do século V a.C., ela surge como uma versão mais ornamentada da ordem dórica. O capitel
apresenta decoração exuberante com folhas de acanto. Outros elementos constitutivos da coluna também
são decorados, como o entablamento e o frontão. As colunas coríntias eram muito usadas no interior dos
templos. Os romanos expandiram o estilo coríntio por todo o império e o mesclaram com o jônico, dando
origem ao estilo compósito, considerado uma versão tardia do estilo coríntio.

Quanto à escultura, o modelo grego seguia o princípio do ideal, ou seja, ao esculpir um corpo humano, um
rosto, o escultor não se atinha a traços de um indivíduo em particular, ainda que fosse uma homenagem a
uma personalidade conhecida, como um político, um governante ou um vencedor dos Jogos Olímpicos.

Assim, na representação visual grega, como a pintura e a escultura, não se


encontra a arte do retrato até o período helenístico (323 a.C.–33 a.C.), momento
que, sob o domínio da Macedônia, a cultura e a língua gregas se espalharam dentro
dos limites do vasto império de Alexandre, o Grande, cujo intuito era introduzir
elementos gregos na cultura persa.

Esse contato provocou uma fusão da cultura ocidental com a oriental, uma vez que as fronteiras do império
de Alexandre, um dos maiores do mundo, estendiam-se até a Ásia. Provavelmente foi a arte helenística com
sua expressividade que levou os romanos a desenvolver a escultura retratística.

Embora com oscilações entre retratos mais idealizantes e de grande realismo, havia uma predileção na
escultura romana pelo busto e pela cabeça avulsa. Além de ambos serem mais acessíveis que o corpo
inteiro, criou-se um gosto na cultura romana pela contemplação de formas fisionômicas fiéis ao modelo
muito superior à do próprio corpo, das vestimentas ou de qualquer outro acessório

Quanto aos materiais utilizados nas esculturas, era comum aos gregos o uso de metais, como o bronze, e
rara a manipulação do mármore, o que talvez explique a escassez de esculturas gregas originais. É muito
provável que elas tenham sido transformadas em outros objetos, como armas e outros aparatos bélicos.
Busto do Imperador Marco Aurélio, século II d.C.

Já os romanos, hábeis no manejo do mármore, elegeram-no como o material predileto tanto para a
infinidade de réplicas gregas que fizeram quanto para a elaboração das próprias esculturas.

A pintura e a cerâmica
Os gregos apreciavam as cores: a ideia de que eles não as usavam é um erro. Pouco restou, porém, dessa
arte tão prestigiada por eles – e muito do que se sabe vem das fontes literárias, como as descrições de
Plínio e Pausânias, e das cópias romanas. O maior acervo que permaneceu até os dias de hoje sobre a arte
pictórica grega é o encontrado na cerâmica.

Acredita-se que este afresco de Pompeia seja baseado em uma Afrodite pintada por Apeles.

Os gregos conseguiram ultrapassar o desenho plano e linear com técnicas de sombreado, produzindo, com
isso, a ilusão de tridimensionalidade. Elementos de perspectiva também foram introduzidos a partir do
século V a.C., enquanto a paleta de cores foi ampliada.

As pinturas murais, por exemplo, eram realizadas com diversas técnicas. Elencaremos três delas a seguir:

Técnica de afresco
Utiliza pigmentos diluídos em água que penetram no revestimento ainda fresco da parede em argamassa de
cal.

Técnica de têmpera
Emprega uma mistura de corantes e pigmentos com um aglutinante, como a água ou o ovo, por exemplo.

Técnica de encáustica
Usa pigmentos misturados à cera ou a algum tipo de resina, que, aquecida, era aplicada à pintura com o
pincel ou à espátula também quente.

Um dos belos afrescos são os da Pinacoteca da Acrópole de Atenas. Estudos recentes mostram que até as
esculturas gregas, quando feitas em mármore, recebiam uma camada de tinta.

Os romanos também se valiam das mesmas técnicas de pintura. Eles, de igual modo, apreciavam as cores.

inacoteca
Coleção de quadros de diferentes épocas.

Saiba mais
As escavações em Pompeia e Herculano, cidades próximas a Nápoles e soterradas pelas cinzas do vulcão
Vesúvio em 79 d.C., têm revelado, graças às pinturas em murais e em porcelanas lá encontradas, um
colorido intenso de verdes, amarelos, pretos e principalmente vermelhos. Trata-se, aliás, do vermelho
Pompeia, que se tornou uma tonalidade “oficial”. A pintura Os suplícios de Penteo (séc. I) é uma das
preciosidades encontradas em Pompeia na qual pode ser contemplada a beleza do verde.

As duas cidades ficaram soterradas por cerca de 1600 anos e começaram a ser escavadas no final do
século XVIII. Até hoje, as artes e os modos de vida dos romanos antigos não cessam de ser descobertos
graças a tais localidades conservadas por sólidas camadas de cinzas e lama.

Embora subsidiária em parte da pintura grega, a romana abandona a pintura de


cavalete praticada pelos gregos em benefício quase absoluto da mural,
privilegiando as pinturas triunfais e o retrato de corte com traços naturalistas,
cultivando com abundância a paisagem e a natureza morta.
Quanto à arte em cerâmica, os vasos foram o suporte mais utilizado pelos gregos. Neles, é possível
distinguir:

Uma variedade de estilos: Do abstrato ao mais realista.

O motivo: Representações de figuras divinas, de figuras humanas em cenas do cotidiano e de cenas


épicas e mitológicas, além de um conjunto de cenas eróticas.

Já seus estilos são:

Pyxis com um cavalo como tampa da alça.

Protogeométrico e geométrico (1050 a.C.-900 a.C.)

Compunham-se de elementos mais abstratos e de padrões geométricos.

Ânfora de Dipylon.
Arcaico (750 a.C.)

Possuía figuras que lembravam as pinturas egípcias, com os pés posicionados sempre de lado, os rostos
de perfil e o olho voltado para frente. O estilo arcaico retratava tanto cenas do cotidiano quanto
mitológicas e heroicas, como as sequências de cenas da Ilíada e da Odisseia.

Niobid Painter, ânfora do século V a.C.

Pinturas negras (700-600 a.C.) e vermelhas (530 a.C.)

Trata-se dos estilos mais conhecidos. Nas cerâmicas em preto, o fundo permanecia em argila, enquanto
as figuras eram pintadas em preto e os detalhes, realizados com uma ferramenta pontiaguda que riscava
e retirava a tinta preta. Nas cerâmicas em vermelho, a técnica foi invertida: o fundo era preto, e as figuras
assumiam o tom vermelho da terracota (barro cozido).

Para concluir a rápida passagem por algumas das manifestações artísticas da Antiguidade Clássica e
preparar o estudo dos módulos seguintes, convém ter em mente a constatação de Arnold Hauser (1994, p.
58). O historiador de arte afirma que, “em uma certa medida, toda a arte antiga é uma resposta ao desejo de
fama e de consagração aos olhos dos contemporâneos e da posteridade”. Como vimos, de fato, os antigos
conseguiram.

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Arte greco-latina
Assista agora ao vídeo que traz uma conversa sobre algumas das manifestações artísticas da Antiguidade
Clássica, destacando as pinturas nos vasos de cerâmica.
Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

Deve-se reconhecer que as manifestações da arte na Antiguidade Clássica

eram diversas e incluíam desde a música, a literatura, o teatro e a escultura até as


A
ornamentações em objetos utilitários.

B eram expressões da linguagem que se circunscreveram à literatura e ao teatro.

representavam a expressão do talento individual restrito a determinado conjunto de


C
objetos.

evidenciavam a habilidade dos artistas expressada nos objetos e nas práticas apenas
D
populares.

E limitavam-se à arte do teatro, prática artística influenciada pela mitologia.

Parabéns! A alternativa A está correta.

As expressões artísticas greco-latinas se deram em diversos suportes materiais e por meio de


diferentes linguagens, sendo marcadas pela diversidade. Até as peças utilitárias poderiam contar
manifestações artísticas em suas ornamentações ou seus adereços.

Questão 2

Como expressões de arte antiga, as cerâmicas

A têm nas pinturas negras e vermelhas os estilos mais conhecidos.

B em seu estilo arcaico, retratam cenas do cotidiano apenas.

C em todos os estilos, trabalham com formas geométricas e definidas.

D destacam-se pelo estilo abstrato e pela ausência de motivos eróticos.

E destacam-se pelas narrativas bíblicas em forma de pinturas.

Parabéns! A alternativa A está correta.

Há uma diversidade de estilos nas cerâmicas (alguns mais abstratos e outros mais figurativos),
destacando-se as pinturas negras e vermelhas. Os temas ou motivos também são diversos, incluindo
cenas cotidianas, narrativas míticas e até cenas eróticas.
2 - A Ilíada e a Odisseia de Homero
Ao final deste módulo, você será capaz de identificar os aspectos culturais e literários da
Ilíada e da Odisseia.

A Ilíada e a Odisseia no contexto da Antiguidade Clássica


A Ilíada e a Odisseia são extensos poemas épicos atribuídos ao poeta grego Homero, que teria existido por
volta do séc. VIII a.C. Ambos são poemas narrativos de caráter heroico que eternizaram, na cultura do
Ocidente, os grandes heróis de uma guerra remota e muito questionada como acontecimento histórico,
ainda que ela fosse aceita como fato pelos gregos antigos.

Repleta de ornamentos lendários e míticos, a Ilíada trata dos últimos momentos da Guerra de Troia, conflito
que teria ocorrido entre 1300 a.C. e 1400 a.C., o que corresponde à Idade do Bronze. Já a Odisseia centra-se
nas aventuras do retorno para casa de Ulisses (ou Odisseu), um dos grandes heróis da Guerra de Troia.
O Cavalo de Troia, por Henri Motte (1874).

Nas duas obras, figuram alguns elementos comuns:

O universo heroico e bélico dos aqueus (gregos) e dos dárdanos (troianos).

O universo maravilhoso dos deuses e das divindades do panteão grego.

Essas obras permaneceram como expressão oral por alguns séculos até serem registradas em versos
escritos em finais do século IX e/ou início do século VIII a.C. Por essa razão, as epopeias homéricas são
consideradas epopeias primitivas, estando ligadas a uma tradição de poesia oral da Era Micênica, que
corresponde à última fase da Idade do Bronze.

popeias primitivas
As epopeias primitivas são aquelas gestadas e nutridas pela oralidade durante a formação cultural de um povo
a ponto de ser difícil estabelecer o momento exato de seu surgimento ou origem – e, por consequência, a sua
autoria.

A tradição oral dessas obras não é suficiente para torná-las composições


populares, elaboradas e entoadas pelo próprio povo, pois elas foram cantadas por
poetas considerados semelhantes a sacerdotes, isto é, portadores de uma verdade
soprada por divindades.

Os poetas primitivos responsáveis por cantar as epopeias e as composições líricas eram os aedos. Nas
epopeias, os aedos resgatavam o passado e o perpetuavam costurando elementos míticos, históricos e
lendários.

A Ilíada e a Odisseia não só cantavam e eternizavam os grandes feitos heroicos dos gregos, como também
possuíam um caráter religioso e pedagógico ao ensinar crenças e valores que, no juízo grego, os
distinguiam de outros povos. Entre esses valores, destacamos a rigorosa ética guerreira baseada em dois
elementos:
A honra
(timé)
A excelência
(areté)
O filósofo grego Platão (428/427 a.C. -348/347 a.C.), em sua obra A República (séc. IV a.C.), defende o valor
da poesia épica justamente como potência formadora, auxiliando no encorajamento da classe dos
guerreiros, embora condene as artes que imitam ou representam por meio da linguagem.

Homero

Dante Alighieri, Homero e Virgílio, em detalhe da pintura O Parnaso de Rafael Sanzio (1511).

A Ilíada e a Odisseia são tradicionalmente atribuídas ao poeta grego Homero, cujo nome marcou um modo
de pensar, uma visão de mundo e um período glorioso da produção cultural da Grécia Antiga. Os séculos XII
ao VIII a.C. são conhecidos como período homérico; os séculos anteriores, por sua vez, são tidos como pré-
homéricos.

Essa marcação temporal sugere a complexidade da origem tanto das narrativas


presentes na Ilíada, que é a composição mais antiga da literatura ocidental, e da
Odisseia quanto a do próprio Homero. Atualmente, historiadores e estudiosos
raramente defendem que ele tenha sido um homem histórico em função da
escassez e das controvérsias de dados acerca de seu nascimento e de sua
biografia.

No entanto, isso em nada reduz a grandiosidade dos textos que sintetizam e dão unidade a toda a memória
grega antiga da qual a figura de Homero seria, então, a personificação de uma voz coletiva, possivelmente
de vários aedos, a serviço da celebração épica.

A epopeia

Andrômaca lamentando Heitor, por Jacques-Louis David (1783).

A epopeia é uma composição de caráter grandioso tanto pelas ações narradas quanto pela extensão da
narração. Ela lida com heróis, semideuses, reis e outros homens ilustres. O herói épico é virtuoso, e sua
superioridade é exaltada.

Os episódios épicos desdobram-se ao longo de tempos e espaços variados, assim como possuem muitas
ações e um número extenso de personagens. Não à toa, os adjetivos “épico” e “homérico” passaram a
qualificar aquilo que é grandioso.

Resumindo
Em síntese, o épico (épos = palavra ou narração) é o gênero da palavra narrada . O narrador da epopeia não
expressa valores ou juízos subjetivos, não se ocupa dos próprios pensamentos, não faz confissões e não se
impõe sobre a narrativa.

Quando a epopeia se ocupa de modo mais detido de algum evento particular e íntimo de um herói, que é um
homem afeito à guerra, mas também ao amor, ela o faz com vistas a monumentalizar o seu caráter.

Exemplo
A tocante despedida do herói Heitor de sua esposa Andrômaca e de seu filho ao saber que iria duelar e ser
morto por Aquiles. Ela tem poucas e longas falas que são suficientes para caracterizar a coragem de Heitor.

É nesses momentos que os traços do lírico explodem no interior do épico. Todos os elementos de uma
epopeia estão a serviço de eternizar os grandes feitos de uma coletividade na figura dos seus heróis a partir
de um passado glorioso que mereça ser cantado.
Estrutura de uma epopeia
A epopeia possui uma estrutura fixa composta por:

Introdução expand_more

Apresenta-se o que será cantado.

Dedicatória expand_more

Explicita-se a quem é oferecida a epopeia.

Invocação expand_more

Conclamam-se as divindades a fim de inspirar o poeta.

Narração expand_more

Apresentam-se todas as aventuras heroicas.

Epílogo expand_more

Tem-se o encerramento.

Como é um extenso poema narrativo, a sua organização se dá por cantos. Os cantos ou livros são as
estruturas maiores das epopeias, as quais, por sua vez, subdividem-se em episódios.
A Ilíada
A Ilíada (do grego Ilias, relativo a Ílion ou Troia) narra a cólera de Aquiles, filho do mortal Peleu e da ninfa
Tétis. A ambientação é a lendária Guerra de Troia em seus últimos momentos.

O herói Aquiles

A Educação de Aquiles, por James Barry (1772).

Príncipe dos mirmidões e um dos aliados reais de Agamêmnon (o Átrida) no cerco a Troia, Aquiles
demonstrou a sua ira em vários momentos. Em todos eles, a consequência foi a seguinte: muitas mortes.

Reuniremos a seguir alguns momentos em que ele se irou:

Contra o próprio Agamêmnon, comandante do exército dos aqueus, recusando-se a lutar.

Quando perdeu o melhor amigo Pátroclo, que, a seu mando, foi proteger os aqueus da ofensiva troiana e
morreu pelas mãos de Heitor. A morte de Pátroclo provoca-lhe tamanha fúria que o faz voltar à luta.

Quando arrastou o corpo de Heitor com seus cavalos e se recusou a devolver o cadáver para que os rituais
fúnebres fossem cumpridos, levando os deuses a intervir ao reconhecer a loucura do seu coração.

A ira é um elemento importante do ethos (caráter) de Aquiles e precipitará um conjunto de ações na Ilíada.
Na Invocação, logo nos primeiros versos, tanto o motivo do canto épico, que é a cólera de Aquiles, quanto os
seus efeitos já são revelados.
Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida (mortífera!, que
tantas dores trouxe aos aqueus e tantas almas valentes de
heróis lançou no Hades, ficando seus corpos como presa para
cães e aves de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam o Átrida,
soberano dos homens, e o divino Aquiles.
(HOMERO. Ilíada. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. Canto I, versos 1-7)

Aquiles, referenciado como o de pés velozes, tem um destino ao qual estava fadado e que conhecera desde
cedo. Entre as duas opções que lhe foram dadas, uma vida longa e sem glória ou uma vida breve e gloriosa,
a bela morte é a que o seduzia.

De todas as personagens da Ilíada, Aquiles é o único que pratica o canto poético. Acompanhado da cítara
em sua tenda, o herói canta para Pátroclo justamente o que Homero canta na Ilíada: os grandes feitos
heroicos e a elevada honra que é escolher a vida breve.

Comentário

Escapar da velhice é uma forma de ultrapassar a morte para os gregos, uma vez que a morte e a idade
avançada equiparam-se para eles.

A morte heroica, ou seja, a bela morte, acontece na integridade da potência vital do herói, de sua força física,
da leveza do corpo e da agilidade e segurança nos movimentos. Ela contém todos os valores que compõem
a areté viril ainda no seu auge, antes de ele vivenciar qualquer decrepitude.

Algumas ações da Ilíada


A Ilíada abarca os acontecimentos do último ano do conflito entre os gregos e os troianos. Ela começa in
media res (do latim “no meio das coisas”), ou seja, pelo meio. Os antecedentes da guerra, como o rapto de
Helena por Páris, não estão no início da Ilíada.
O Julgamento de Páris, por Peter Paul Rubens (1639).

No conto, que já era conhecido pelos gregos, a deusa da discórdia Éris, enfurecida por não ter sido
convidada para o banquete de casamento que Zeus ofereceu aos pais de Aquiles, chega à festa com uma
maçã de ouro em cuja inscrição havia uma provocação: “Para a mais bela”. Foi dada a Páris, filho de Príamo,
rei de Troia, a tarefa de escolher entre Hera, Atena e Afrodite quem era a deusa mais bela.

Cada uma lhe ofereceu um suborno. Páris escolhe a tentadora oferta de Afrodite: a
mulher mais bela do mundo. Nesse momento, ele se torna vítima da deusa do amor
e se apaixona por Helena, esposa de Menelau, rei dos aqueus (gregos).

Sem alternativa, Páris a rapta. Tal injúria exige uma retaliação por parte dos gregos. Comandado pelo
supremo da Grécia (Acaia como Homero a chama), o rei Agamêmnon, irmão do rei de Esparta, Menelau, e
esposo de Helena, convoca os príncipes que deviam lealdade à Grécia para se unirem contra Troia. Em
seguida, eles partem em uma numerosa expedição.

Príamo suplica a Aquiles pelo corpo de Heitor, por Gavin Hamilton (1775).

A seu favor, os gregos têm Hera e Atena. Afrodite, por sua vez, está do lado de Páris. Desde o início da
viagem, tensões sérias entre Agamêmnon e Aquiles se instalam a ponto de o grande herói se rebelar e
desistir da luta.

No trecho da Invocação, Aquiles é tratado não só como divino, mas também como causador de muitas
dores aos aqueus. Algumas de suas ações trouxeram inúmeras mortes de grandes heróis pelas quais
Aquiles é responsabilizado por lançar no Hades.
Entre essas ações, temos:

Sua insurgência contra Agamêmnon, comandante do exército grego.

Sua rejeição à proposta de reconciliação feita por Agamêmnon.

Seu abandono das lutas.

A partir do Canto XIV, há uma crescente concentração na figura de Aquiles à medida que as suas tragédias
pessoais começam a tomar vulto. A morte do amado Pátroclo no canto XVI, que o faz retornar à batalha, é
uma delas.

Nesse momento da epopeia, já se conhece a fundo o inimigo troiano (chamado também de dárdano,
dardânida ou dardânio) e o motivo da guerra, ambos explicitados no Canto III, bem como Heitor, o maior
guerreiro troiano, que é analisado em minúcias no Canto VI.

Em seguida, em uma adaptação agora em prosa da Ilíada, a morte de Pátroclo é narrada e descrita. Aquiles,
embora ausente, é referenciado pelo discurso provocativo de Heitor e pela ameaça de Pátroclo.

Quando Heitor viu o magnânimo Pátroclo recuar, ferido pelo


bronze afiado, ele se atirou, [...] golpeou-o no lado com uma
lança que o atravessou. [...] Vangloriando-se, Heitor, insultou-o
com estas palavras: “Pátroclo, você estava esperando, sem
dúvida, para saquear nossa cidade e levar nossas esposas
cativas em seus navios para sua amada terra natal? Louco! É
para protegê-las que os cavalos rápidos de Heitor o levaram a
lutar [...]. Os abutres comerão você, desventurado, e nem Aquiles
com todo seu valor, ajudará você [...].” E Pátroclo, mal
respirando, respondeu: “Heitor, agora você se vangloria, porque
Zeus, o filho de Cronos, e Apolo lhe deram a vitória, foram eles
que facilmente me mataram. Eles próprios arrancaram a
armadura de meus ombros. [...] Você não vai viver muito e sua
morte está bem perto de você, e seu inexorável destino é morrer
nas mãos de Aquiles”. Tendo dito essas palavras, a morte
envolveu-o [...].
(HOMERO. A Ilíada. São Paulo: Ediouro, 1996, Canto XVI)

Outro trecho que vale a leitura e se relaciona com o retorno de Ulisses à luta é o seu encontro com o
fantasma de Pátroclo em sonho. Aquiles retoma os combates, cumpre as exigências feitas por Pátroclo,
como os devidos rituais fúnebres, e, por fim, enfrenta e mata Heitor, filho mais velho do rei Príamo, irmão de
Páris e o principal guerreiro troiano.

Em um belíssimo embate entre dois grandes heróis, é possível contemplar quão potente cada um é. Eis uma
característica da glória épica: nunca aceitar acordos covardes. O duelo entre os dois grandes heróis se dá, e
Aquiles vence.

Para triunfar completamente e fazer jus à sua ira, Aquiles perpassa o tornozelo de Heitor com fibra bovina e
arrasta seu corpo em uma quadriga, ostentando-o como um troféu. Não só ultraja o cadáver, transgredindo
os princípios da virtude grega, como também o toma para si e leva ao acampamento dos gregos.

Aquiles abate Heitor, por Peter Paul Rubens (1635).

uadriga
Carro antigo puxado por quatro cavalos.

Para convencer Aquiles a devolver o corpo do herói troiano, os deuses interferem. Zeus convoca a deusa
Tétis ao Olimpo e ordena que ela vá ao acampamento do seu filho Aquiles e lhe diga que os deuses estão
irados com ele por causa da loucura de seu coração.

Ao mesmo tempo, Zeus envia Íris, a mensageira dos deuses do Olimpo, para aconselhar o rei Príamo a
resgatar o corpo do filho no acampamento dos aqueus, levando presentes como compensação. A conversa
entre Aquiles e Príamo é comovente.
O rei dos troianos faz referência ao pai de Aquiles, lamenta que já perdeu os seus cinquenta filhos na guerra,
dezenove do mesmo ventre, que são os filhos de sua esposa Hécuba. Aquiles se comove e chora pela má
sorte de Príamo e pela perda de Pátroclo, aceita os presentes e devolve o corpo, comprometendo-se a não
atacar Troia durante os ritos fúnebres.

Príamo estabelece nove dias de choro por Heitor, com o funeral no décimo dia, o sepultamento no décimo
primeiro dia e, se necessário, a retomada do combate no décimo segundo dia. Aquiles aceita.

A Ilíada termina com o funeral de Heitor. O povo chora nos portões da cidade. Em
uma sequência de lamentações proferidas pelas mulheres, a mãe Hécuba, a esposa
Andrômaca e a cunhada Helena enaltecem a grandeza de Heitor.

Essa obra tem uma forte presença do elemento trágico, culminando na morte de Heitor. Seu encerramento
não se dá exaltando a vitória dos gregos, até porque ela não alcança o desfecho da guerra, e sim com o
ritual fúnebre do admirável Heitor, considerado o maior dos troianos.

A Odisseia

Ulisses na caverna de Polifemo, por Jacob Jordaens (século XVII).

Se nos 24 livros da Ilíada a ira de Aquiles é cantada, nos 24 da Odisseia canta-se a astúcia de Ulisses, rei de
Ítaca, uma ilha grega do Mar Jônio. Após o término da Guerra de Troia, vencida pelos gregos graças à
inteligência de Ulisses, inicia-se a sua longa viagem de regresso ao lar, que durará dez anos.

Ao todo, Ulisses se ausenta por duas décadas da sua rochosa Ítaca, da sua amada Penélope e do seu filho
Telêmaco, de quem se despediu quando ele acabara de nascer. Nesse trajeto repleto de aventuras e de
obstáculos, Ulisses precisa a todo tempo dar provas de sua competência, virtude e excelência (areté), uma
vez que o seu regresso se dá sem o socorro dos homens ou dos deuses.

Os primeiros versos da Odisseia anunciam o tema como é de praxe: falar do homem astuto que muito
vagueou após o fim da guerra e o esforço para retornar à pátria.
Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou Depois que
de Troia destruiu a cidadela sagrada, Muitos foram os povos
cujas cidades observou, cujos espíritos conheceu, e foram
muitos no mar os sofrimentos por que passou para salvar a vida,
para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas.
(HOMERO. Odisseia. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2010, Canto I, versos 1-6)

Dos dez anos de regresso, sete deles Ulisses passa isolado na ilha da ninfa Calipso. No início do oitavo,
após o Concílio dos deuses se reunir, a deusa Atena determina que Hermes vá à ilha da ninfa Calipso,
Ogígia, e anuncie que é vontade dos deuses que Ulisses regresse à sua casa.

No entanto, nos próximos 2 mil versos da Odisseia, as aventuras de Ulisses cedem lugar às de seu filho,
Telêmaco.

A estrutura da Odisseia
É possível dividir a Odisseia em três partes:

Penélope e os pretendentes, por John William Waterhouse (1912).

Cantos de I a IV (Telemaquia)

Expõem a situação de Penélope e os esforços de Telêmaco para assegurar o trono do pai durante a sua
ausência. Com o conselho e a proteção da deusa Atena, Telêmaco sai em viagem em busca do pai e
encontra vários combatentes de Troia que lhe dão notícias da guerra e da possibilidade de Ulisses estar
em uma ilha.

Atena e Telêmaco viajam para Pilo, cidade onde governa o ancião Nestor, e, em seguida, para a
Lacedemônia, onde reinam Menelau e Helena, recebendo honrarias e presentes de hospitalidade.

Os deuses em assembleia se posicionam favoravelmente ao regresso de Ulisses, e Hermes transmite à


ninfa Calipso a ordem de Zeus para libertar o herói.

Esboço de Circe, por John William Waterhouse (1914).

Cantos de V a XIII (Apólogos)

Eles contêm os relatos de Ulisses. Nesses cantos, são narradas, entre outras aventuras, as seguintes
ações:

O doce e amargo cárcere na ilha de Calipso seguido de sua despedida.

O naufrágio próximo à ilha de Esquéria e o encontro com os feácios.

A advertência da feiticeira Circe quanto ao canto das sereias. Com cera nos ouvidos, Ulisses pede para
ser amarrado ao mastro como medida de segurança.

Os perigos na ilha dos Ciclopes, onde Ulisses consegue, com seus ardis, embebedar, cegar e fugir
disfarçado de ovelha do gigante Polifemo.
A partida de Odisseu da Terra dos Feácios, por Claude Lorrain (1646).

Cantos de XIV a XXIV (Mnesterofonia)

Narram as seguintes ações:

A chegada de Ulisses à sua pátria.

O reencontro com a esposa, o filho e o pai.

A vingança contra os pretendentes de Penélope.

Nessa última parte, Ulisses chega oculto à Ítaca sob o risco de ser morto. Encontra o seu palácio tomado
por exploradores que se instalaram junto de Penélope, vivendo de festas e banquetes e dissipando a sua
fortuna, enquanto Penélope, astuta como Ulisses, tecia e desfazia o sudário do sogro para adiar a escolha
do pretendente.

Finalmente, após todas essas tribulações, os deuses decidem, em Concílio, que chegou a hora de Ulisses
finalmente seguir viagem. Hermes é enviado para anunciar à Calipso que Ulisses precisa ser libertado e que
chegará à terra dos feácios, parentes dos deuses, na fértil Esquéria, e que lá será recebido como um deus e
ganhará um tesouro superior ao espólio de Troia.

A despedida de Ulisses da ilha de Calipso

Hermes ordena a Calipso que liberte Odisseu, por Gerard de Lairesse (1670).

Ao partir, Ulisses faz Calipso prometer que não preparará para ele nenhum sofrimento. O caráter heroico da
sua partida é caracterizado pela jangada na qual viajará. Segundo o próprio Ulisses, nem as velozes naus
conseguiam atravessar o abismo dos mares sem o vento favorável de Zeus.
Calipso, então, lamenta a partida dele e diz que não é inferior a Penélope, pontuando que não é possível às
mulheres mortais competir em beleza e corpo com as deusas.

Ulisses cuidadosamente a acalma, dizendo:

Deusa sublime, não te encolerizes contra mim. Eu próprio Sei


bem que, comparada contigo, a sensata Penélope É inferior em
beleza e estatura quando se olha para ela. Ela é uma mulher
mortal; tu és divina e nunca envelheces, Mas mesmo assim
quero e desejo todos os dias Voltar para casa e ver finalmente o
dia no meu regresso. [...]
(HOMERO. Odisseia. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2010, Canto V, versos 215-224)

Após se despedir de Calipso, que o vestiu com roupas imortais e abasteceu a sua jangada com suprimentos
em abundância, Ulisses parte. Chegando ao país dos feácios, é recebido com muitas honrarias e põe-se a
contar a sua história após a rainha Arete lhe perguntar quem era ele.

Por meio de analepse, recurso também conhecido como flashback, Ulisses recorda
e conta tudo o que se passou. Tal procedimento das narrativas épicas subverte
radicalmente a ordem cronológica dos acontecimentos ao mesmo tempo que
causa surpresas e acrescenta elementos até então sonegados ao leitor pelo
narrador.

É revelado, por exemplo, como Ulisses, ao perder todos os seus companheiros, ficou agarrado à nau e foi
resgatado e alimentado por Calipso, com quem ficou por sete anos completos. Por meio da analepse, ele
também conta como foi a derrota dos troianos por conta do envio do cavalo de madeira repleto de gregos
prontos a incendiar e saquear Troia, a rica cidade de comerciantes.

A chegada de Ulisses a Ítaca


A vingança de Ulisses sobre os pretendentes de Penélope, por Christoffer Wilhelm Eckersberg (1814).

Quando Ulisses finalmente chega a Ítaca, mata todos os pretendentes de Penélope em uma verdadeira
carnificina. Até mesmo o aedo Fêmio, responsável por alegrar os banquetes durante a sua ausência, quase
foi degolado.

Além de suplicar pela vida, Fêmio usa um argumento baseado na sua condição de aedo, o que indica a
distinção social, no contexto no mundo grego, de que desfrutava um poeta-cantor. Por fim, a pedido de
Ulisses, ele ajuda com a sua música a abafar o barulho provocado pelo morticínio, entoando canções de
noivado.

Ulisses e Euricleia, por Christian Gottlob Heyne.

Após restabelecer a sua honra, Ulisses vai até seu pai, Laertes, informando-lhe que matara todos os
pretendentes ao palácio. No entanto, Laertes, muito idoso, não reconhece o filho e pede um sinal
inconfundível.

Ulisses mostra-lhe a cicatriz na coxa causada por um javali em sua juventude durante uma caçada. Ambos
se abraçam a ponto de os joelhos e o coração do pai se enfraquecerem e de Ulisses quase desmaiar.

Após a matança de tantos homens ilustres, as famílias resgatam os corpos e, revoltadas, querem causar
uma nova guerra, agora contra Ulisses, pois, além da matança do palácio, ele é acusado de levar os mais
valentes homens a Troia e perdê-los todos.

A Odisseia chega ao fim sob a intervenção da deusa Atena dissuadindo Ulisses em relação à guerra. Ele
obedece, alegrando-se no coração.
Últimas palavras
As grandes narrativas épicas apresentadas são fundamentais para a compreensão dos valores sociais
gregos, como a ética e a virtude, bem como suscitam reflexões mais amplas, como a tensão entre sacrificar
o privado em prol do coletivo ou vice-versa.

Mesmo com a consciência da subjetividade que se tem hoje, muito diferente da


visão de mundo homérica, sempre voltada para o coletivo, tais textos continuam a
ecoar profundamente no leitor contemporâneo.

Não é à toa que a Ilíada e a Odisseia moldaram a sociedade ocidental, exercendo, em todos os tempos, forte
influência sobre a literatura e as artes. Isso se deu não somente por ambas iluminarem a compreensão da
história, do pensamento, da religiosidade e dos afetos do homem da Grécia Antiga, como também por elas
suscitarem reflexões da psicologia e da antropologia contemporâneas a partir das imagens e das narrativas
simbólicas das quais o mito é o seu núcleo irradiador.

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Ilíada e Odisseia
Assista agora a um vídeo que aborda o texto épico na Grécia Antiga, destacando a Ilíada e a Odisseia, de
Homero, com seus heróis e mitos.
Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?


Questão 1

Assinale a alternativa que permite identificar um aspecto cultural comum à Ilíada e à Odisseia.

São tragédias que eternizavam ações heroicas e dissociavam elementos históricos dos
A
aspectos míticos ou lendários.

Destoavam da tradição dos aedos e do resgate de acontecimentos passados por meio


B
elementos míticos.

São cantos épicos que celebravam feitos heroicos e possuíam função religiosa e
C
pedagógica.

Eram fonte de educação para os latinos e de exaltação de crenças e valores da


D
mitologia romana.

Possuíam valor estritamente literário, sem implicações na preservação de crenças e


E
valores gregos.

Parabéns! A alternativa C está correta.

As obras atribuídas a Homero dentro da tradição lírica e épica dos aedos exaltavam os feitos heroicos e
possuíam um caráter pedagógico e religioso, contribuindo para a preservação dos valores da cultura
grega.

Questão 2

Sobressaem na Ilíada
A a cólera de Aquiles e a chegada de Ulisses a Ítaca.

B a cólera de Aquiles e a Guerra de Troia.

C a morte de Aquiles e o retorno de Ulisses.

D a paz e a aliança entre gregos e troianos.

E a Guerra de Troia e a viagem de Ulisses.

Parabéns! A alternativa B está correta.

A Guerra de Troia, em seu nono ano, marca o início da narrativa do poema épico Ilíada. Aquiles é o herói
que retorna à guerra depois de a ter abandonado por um tempo movido pela ira diante da morte de seu
amigo Pátroclo – a tal ponto que consegue matar Heitor, o comandante dos troianos.
3 - Eneida, de Virgílio, e Metamorfoses, de Ovídio
Ao final deste módulo, você será capaz de identificar o contexto e os aspectos literários de
Eneida e Metamorfoses.

Contexto da expressão literária da Roma Antiga


Como a matriz da cultura ocidental é a Antiguidade Clássica greco-romana, neste terceiro módulo
apresentaremos duas grandes expressões da literatura latina:

Eneida (19 a.C.)

Metamorfoses (8 d.C.)
Os poetas Públio Virgílio Marão (70 a.C.-19 a.C.), autor de Eneida, e Públio Ovídio Naso (43 a.C.-17 d.C.), de
Metamorfoses, viveram em um período de construção de um novo regime político em Roma. Ambos
nasceram nos últimos anos da República Romana (507 a.C.-27 a.C.), momento em que houve uma
acentuada expansão das fronteiras, embora Roma ainda não estivesse no apogeu de suas conquistas.

Primeiramente como um dos cônsules da República Romana e, em seguida, como ditador absoluto, Júlio
César (100 a.C.-44 a.C.) participou da transformação do regime de República para o de Império. Em
testamento, ele deixou registrada a adoção de Gaius Iulius Caesar Octavianus Augustus (63 a.C.–14 d.C.),
que, sob o título de Augusto, se tornou o primeiro imperador romano.
O regime recém-nascido experimenta então a chamada Pax Romana, período de
pacificação interna que se estendeu até 180 d.C., já que as guerras externas eram
consideradas uma atividade econômica.

Sem conflitos civis (a não ser um de curta duração), a cultura em Roma vive um momento de ebulição. A
literatura conhece o seu auge na prosa e na poesia com poetas como Virgílio, Horácio e Ovídio.

Os poetas e a política
Nesse contexto de novo regime político, o poeta Virgílio, nascido em Mântua, deixa o norte da Itália e se
associa ao poder do imperador Otávio Augusto, tornando-se, em certa medida, corresponsável pela nova
Roma que surge no período pós-republicano. O poeta estava inserido no círculo poético do rico e influente
Caio Mecenas, conselheiro do imperador, em cujo grupo a posição de Virgílio era a de maior destaque.

Entusiastas do novo sistema político, os poetas desempenhavam uma função publicitária em seu favor.
Ovídio, por sua vez, participava do círculo de Messala Corvino, político que havia sido cônsul na República
Romana. No círculo intelectual do refinado Mecenas, os poetas se reuniam, liam para o imperador e a corte,
conheciam a produção literária uns dos outros e recebiam o apoio de Mecenas.

Recepção na casa de Mecenas, por Stefan Bakałowicz (1860).

ecenas
Nome do qual deriva o termo “mecenato”, que indica justamente o patrocínio e o incentivo a artistas e a
atividades culturais de forma geral.

Virgílio desfruta até o fim de grande admiração do imperador. Isso, porém, não acontece com Ovídio.

Em 8 d.C., Ovídio é banido de Roma por Otávio Augusto e exilado em Tomis, atual cidade de Constança, na
Romênia, por razões nunca totalmente explicitadas. Contudo, ele supunha que o banimento se deu por
imoralidade em razão do conteúdo de A arte de amar e por um erro que teria cometido, uma vez que o
imperador Otávio Augusto defendia os “valores da família”.

Eneida – uma epopeia para Roma

Eneias na corte de Latino, por Ferdinand Bol (1663).

Para os antigos, a arte era uma manifestação estética, sem dúvida, para a fruição, porém também tinha um
compromisso com a instrução e as funções rituais e políticas. A poesia, por exemplo, era uma forma
sagrada de expressão. A poesia épica, aliás, era considerada perfeita para eternizar as origens de um povo.

Roma, como um império jovem, reivindicava uma epopeia que lhe desse um
passado grandioso no qual pudesse espelhar o presente e celebrar o governo de
Augusto. Como estratégia, Virgílio projetou mitologicamente Roma e o imperador
na Eneida. Por buscar refletir o modelo homérico, a epopeia romana é considerada
uma epopeia reflexa.

Bem diferente das epopeias gregas, Eneida nasce escrita com data e autoria definidas, pois foi sugerida (ou
encomendada) por Otávio Augusto e planejada e escrita por Virgílio no final da sua vida. Trata-se de uma
história mítica criada para a Roma Imperial, a qual, aliás, é chamada por Virgílio de Eneida, que significa “de
Eneias”.

Eneias, o herói da epopeia romana


Eneias, príncipe e herói sobrevivente de Troia, era casado com Creúsa, irmã de Heitor e filha do rei Príamo.
Ele fugiu de Troia em chamas com a missão de reconstruí-la em outro lugar.
Na Eneida, revela-se que Eneias não viu quando os gregos saíram de dentro do cavalo de madeira e
invadiram Troia. Por isso, Heitor lhe aparece em sonho e lhe dá os comandos da fuga: confia-lhe os objetos
sagrados, os deuses-lares (penates) e os troianos (os sócios), orientando que Eneias busque um lugar para
os sobreviventes no além-mar.

Com o velho pai, Anquises, nas costas, o filho e os sobreviventes troianos, ele deixa Troia. Uma das fontes
para conhecer Eneias é, sem dúvida, a Ilíada, que traz, nos versos de 208 a 241 do Canto XX, um embate
com Aquiles, no qual Eneias detalha a sua linhagem e se apresenta como filho do mortal Anquises e da
deusa Afrodite (Vênus para os romanos).

Embora mortal como o pai, Eneias aponta a sua ascendência divina não apenas por parte de mãe, como
também revela Zeus como ancestral distante, além do seu parentesco com o rei troiano Príamo.

Fuga de Eneias de Troia, por Federico Barocci (1598).

Com tal origem, Eneias, ao ser escolhido por Virgílio para ser o fundador mítico de Roma, dá sustentação ao
passado distante, mítico e aristocrático que todo universo épico precisa evocar.

A lenda de Eneias tinha o mérito de dar a Roma títulos de


nobreza, fazendo remontar a estirpe dos seus fundadores às
origens dos tempos históricos, atribuindo-lhes antepassados
divinos: Zeus e Afrodite. Além disso, a grandeza de Roma parecia
ter sido predita pelo próprio Homero. Roma parecia realizar, no
seio do seu império, a reconciliação das duas raças inimigas, os
troianos e os gregos.
(GRIMAL, 1993, p. 136)
Ornamentar as façanhas guerreiras com lendas e mitos revela o engenho do poeta épico, tarefa que Virgílio
cumpriu à risca ao conceber os ancestrais míticos de Roma até chegar a Otávio Augusto. Doze gerações
separam Eneias de Rômulo e Remo, gêmeos nascidos em Alba Longa, cidade fundada por Ascânio, um dos
filhos de Eneias.

Comentário
Há outras versões consideradas obscuras que relatam ser Eneias o fundador de Roma ou que Rômulo e
Remo eram dois de seus quatro filhos. No entanto, a versão virgiliana é a que se impôs e sobreviveu a partir
do século I d.C.

Eneida e sua estrutura


A Eneida apresenta 9.826 versos distribuídos em 12 cantos, ao longo dos quais é possível perceber a
evolução do príncipe troiano Eneias. Apesar de começar com certa fragilidade, ele, aos poucos, demonstra
toda a sua virtude guerreira.

Veja os versos iniciais de Eneida nos quais se anuncia o que será cantado, seguido de uma breve síntese da
história de Eneias:

As armas canto e o varão que, fugindo das plagas de Troia por


injunções do Destino, instalou-se na Itália primeiro e de Lavínio
nas praias. A impulso dos deuses por muito tempo nos mares e
em terras vagou sob as iras de Juno, guerras sem fim sustentou
para as bases lançar da Cidade e ao Lácio os deuses trazer— o
começo da gente latina, dos pais albanos primevos e os muros
de Roma altanados. Musa! recorda-me as causas da guerra, a
deidade agravada; por qual ofensa a rainha dos deuses levou um
guerreiro tão religioso a enfrentar sem descanso esses duros
trabalhos?
(VIRGÍLIO, Eneida. Trad. Carlos Alberto Nunes. Brasília: Editora da UNB, 1981, Canto I, v 1-10)

Eneida, como prevê a tradição épica, começa in media res. Até o Canto VI, temos o relato da longa viagem de
Eneias até a Península Itálica, a sua nova pátria; do Canto VII ao XII, as ações bélicas para conquistá-la:

Do Canto I ao V

Vênus aplica um bálsamo na ferida de Eneias, por Giovanni Francesco Romanelli (1650).

Eneias está navegando, fugindo de Troia. Juno (Hera) intervém e sempre se coloca em posição contrária
aos intentos dele. Ela representa o símbolo de obstrução às ações do herói. Sua missão é sobreviver e
fundar uma nova Troia, que será Roma.

Apesar da tempestade, sua tropa sobrevive e Eneias chega a Cartago (cidade que será muito inimiga de
Roma no futuro). Encontra Dido (rainha de Cartago), e eles se apaixonam. Eneias narra a sua história a Dido
(valendo-se da analepse, assim como visto na Odisseia).

Esse amor, entretanto, é um problema. Eneias, afinal, precisa cumprir o seu destino:

Predito por sua mãe, Vênus (Afrodite).

Reiterado por Júpiter (Zeus).

Retardado por Juno (Hera).

Lembrado por Mercúrio (Hermes), deus mensageiro.

Eneias despede-se de Cartago. Em seguida, Dido se mata.


Do Canto VI ao XII

A morte de Dido, por Heinrich Füger (1792).

Eneias chega a Cumas, onde encontra uma sibila (sacerdotisa) do Templo de Apolo, deus caro aos troianos.
Ele pede à sibila que o leve ao mundo dos mortos para ver o pai.

Eneias se encontra com Anquises, que lhe mostra os Campos Elíseos. Aponta para Otávio Augusto e
anuncia que aquele será o descendente de ambos e faz profecias sobre o futuro glorioso de Roma.

Após ter certeza de que a descendência deu certo, Eneias se fortalece. A partir desse momento, ele é um
herói completo e está pronto para disputar o território onde Roma será fundada. Chega ao Lácio e pede
abrigo ao rei Latino.

Ele lutará contra um grande inimigo instigado por Juno: Turno, rei dos rútilos (povo itálico antigo) e
prometido de Lavínia, filha do rei Latino, com quem Eneias se casará. A luta será pela região do Lácio, região
central da Itália, onde Roma se erguerá.

Eneias fundará a cidade lendária de Lavínio em homenagem à sua esposa e cujos habitantes serão
chamados de latinos. Já o filho de Eneias fundará Alba Longa; dessa linhagem, surgirão Rômulo e Remo,
fundadores de Roma.

Se a Ilíada é a narração de uma guerra e a Odisseia, a volta de um de seus heróis para a pátria, Eneida
consegue ser uma síntese de ambas ao trazê-las à memória do leitor – só que na ordem inversa.

O tema da fuga como transgressão ao épico


Trabalhar com a perspectiva dos vencidos da Guerra de Troia não foi uma novidade, pois Eurípides já o
fizera no teatro, como nas tragédias As troianas e Hécuba. Entretanto, apresentá-la em uma epopeia foi algo
inusitado.

Virgílio conseguiu um grande feito com Eneida, pois o tema da fuga no universo épico está associado à
covardia, e é difícil incorporá-lo como parte de um ato heroico. Ademais, a fuga não se dá de modo
periférico; pelo contrário, ela constitui o cerne da obra, pois é dela que Roma nasce.

No entanto, mesmo sendo difícil enquadrar a fuga como um valor positivo no épico, ela acentuou a força e a
grandeza de Eneias, herói impregnado de altos valores morais, fiel à família e aos deuses e bom amigo e
virtuoso guerreiro. Ele é considerado, em suma, o melhor depois de Heitor.

Eneias e Turnus, por Luca Giordano (século XVII).

Após os troianos aportarem em Cartago, Ilioneu, mensageiro de Eneias, dirige-se à rainha Dido e apresenta o
herói. Destaca suas virtudes guerreiras e relata tanto a fuga de Troia quanto a tempestade que os seus sete
navios acabaram de enfrentar, pedindo e recebendo acolhida.

Eneias foi nosso rei, o mais justo e piedoso dos homens, De


comprovado valor nos combates; em tudo, o primeiro. Se os
fados ainda o conservam e as auras vitais ele aspira, Sem para
as trevas terríveis haver até agora baixado, Não tem medo de
nada nem tu de nos teres salvado.
(VIRGÍLIO, Eneida. Trad. Carlos Alberto Nunes. Brasília: Editora da UNB, 1981, Canto I, v. 544-548)

Ao contar a saída de Troia, Ilioneu diz que Eneias “foi nosso rei”. Em outro trecho, exalta sua excelência
como pai dos teucros (troianos), reconhecendo, desse modo, que Eneias já era o pai da pátria. Ainda que
seu povo estivesse sem território fixo, Eneias, cumprindo as profecias de Afrodite sobre o destino grandioso
que o filho teria, liderava os troianos rumo à nova Troia.
Tal construção de herói aderiu-se aos ideais augustanos a ponto de Virgílio ter sido considerado o seu
melhor intérprete, uma vez que o poeta se esmerou em reproduzir os valores filosóficos, morais, religiosos e
políticos de Otávio Augusto. Ao mesmo tempo, ele conseguiu evocar toda a tradição épica de Homero em
Eneida.

Eneias e Dido, por Pompeo Batoni (1747).

Além da desejável leitura integral de Eneida, vale também ver e ouvir a ópera em três atos Dido e Eneias
(1689), de Henry Purcell (1659-1695), com libreto de Nahum Tate (1652-1715). A ópera apresenta o Canto IV
de Eneida, que narra o mito do amor trágico entre Eneias e a rainha de Cartago, Dido, que se imola após
saber que ele partirá para cumprir o destino que os deuses lhe haviam traçado.

Dido tem uma importante simbologia na Eneida. Ela, afinal, simboliza:

O poder de Cartago, uma das maiores potências militares e comerciais de seu tempo, destruída pelo
exército romano em 146 a.C., no desfecho da Terceira Guerra Púnica.

A mulher do Oriente na figura de Cleópatra (69 a.C.-30 a.C.), rainha do Egito, a qual, em vão, se uniu ao
general romano Marco Antonio (83 a.C.-30 a.C.) para se proteger de Roma. Ela teria se suicidado, tal como
Dido, por não aceitar ser levada e exibida em procissão triunfal como uma das glórias da vitória romana.

Comentário
Ovídio, o próximo poeta a ser estudado, também revisitou o mito de Dido n’As heroínas (Heroides).

Metamorfoses de Ovídio
A obra intitulada Metamorfoses (8 d.C.), de Ovídio (47-17 d.C.), é um longo poema épico-mitológico. Ele está
dividido em 15 livros escritos em versos em hexâmetros dactílicos, ou seja, no padrão do metro épico, do
qual fazem parte cerca de 250 pequenas narrativas poéticas.
Ovídio recupera toda a tradição épica de Homero e Hesíodo (séc. VIII-VII a.C.),
Apolônio de Rodes (295 a.C.-215 a.C.) e Virgílio, seu contemporâneo, e consegue
produzir uma verdadeira bíblia da mitologia dada a riqueza do repertório que reúne:
dos primórdios, como os mitos cosmogônicos do poema Teogonia, de Hesíodo, até
as fábulas romanas.

Nos primeiros versos do Livro I, o poeta revela o seu intento: contar como os seres assumiram novas
formas. Atribui a transformação aos deuses, a quem ele pede um favorecimento na condução do poema
para que, de modo ininterrupto, consiga narrar da origem do mundo até o seu tempo.

Apolo e Dafne, por Piero del Pollaiolo (1480).

Dessa forma, o poeta latino expõe, de modo poético, um número grande de micronarrativas com enfoque
nas mutatas formas in noua corpora (“formas em outros corpos mudadas”), algo muito presente nos mitos
em que deuses e homens transfiguram-se em plantas, animais, pedras e rios.

Do ponto de vista formal, Ovídio também operou uma metamorfose no gênero literário, pois existe uma
mistura do lírico, do trágico, do cômico e do épico em Metamorfoses, algo incomum nas literaturas de índole
clássica. Embora essa obra contenha muitas narrativas míticas, elas não se sucedem sem um
encadeamento narrativo. É evidente que o tema da transformação já constitui um elo entre essas narrativas,
mas Ovídio mostra o seu engenho com mais refinamento ainda.

Uma sequência interessante é aquela na qual o poeta narra o nascimento dos seres e das feras pós-dilúvio,
criando um fio condutor para a história de Píton, a serpente aniquilada por Apolo. Tal episódio, por sua vez,
suscita um comentário sobre os jogos píticos feito exclusivamente para mencionar que ainda não existia a
coroa de louros como prêmio a ser colocado na cabeça do vencedor, preparando, dessa forma, o
encadeamento com o mito de Dafne e Apolo/Febo.

Para que o contato com o texto de Ovídio, ainda que traduzido, possa ser estabelecido, apresentaremos
adiante a metamorfose da ninfa Dafne em loureiro durante a sua fuga de Apolo.

Atenção!
Habilmente descrito por Ovídio, esse movimento da metamorfose foi capturado em mármore pelo artista
barroco Gian Lorenzo Bernini (1598-1680), que, em tamanho natural, esculpiu Apolo e Dafne (1622-1625).

Confira alguns versos:

Dafne foi o primeiro amor de Apolo,


A ninfa filha de Peneu, a quem
O dirigiu não a Fortuna incerta,
Mas sim a cruel ira de Cupido.

Febo, soberbo da recém vencida


Píton, viu o menino com seu arco,
Fletindo as pontas pelo fio teso,
E lhe falou: “A que te irão servir,
Menino lépido, tais graves armas?
[...]

Cupido então: “A tudo ferem, Febo,


Tuas flechas, e a ti ferem as minhas,
[...]

Disse e, fendendo o ar co’ agudas penas,


Pousou alígero ao frondoso alcácer
De Parnaso, tirou de sua aljava
Duas flechas de efeitos diferentes:
Aquela faz, esta repele amor:
Áurea a que faz luzindo à ponta fina
[...]

Assim assente o pai, mas o que queres,


Dafne, tua beleza veda a ti,
E tua forma nega o que suplicas:
Apolo a ama e à vista dela anseia
Pela união conubial, e espera
Por aquilo que tanto anseia, assim
O iludem suas próprias predições.
[...]

Apolo vê os cabelos de Dafne soltos ao pescoço e


Diz: e se os penteasse? Vê seus olhos
Vibrarem flamejantes como os astros,
Observa os lábios, cuja vista apenas
Não lhe é bastante; louva os dedos, mãos,
Os braços que se estendem nus aos ombros,
“Talvez melhores se cobertos?”, pensa…
E ela foge, mais célere que o ar,
Nem se detém às súplicas de Apolo:
“Ó ninfa, para! rogo-te, não sigo
Como inimigo! ninfa, para! Assim
A ovelha foge ao lobo, assim o cervo
Foge ao leão, assim as pombas à águia,
Assim qualquer um foge ao inimigo:
Amor é a causa que me faz seguir!
Ai de mim se caíres inclinada,
Indigna de feridas, se teus pés
Encontrarem espinhos ao caminho
E eu te causar imerecidas dores!
[...]

Querendo dizer mais o deus Apolo,


Foge-lhe a ninfa em passo trepidante,
Deixando ao curso esclusa a sua fala.
O corpo dela se desnuda ao vento,
Vibram-lhe as vestes e a suave brisa
Impele para trás os seus cabelos:
Tão bela Dafne lhe parece em fuga…
Porém o deus não se contém ao zelo,
E enquanto lhe aconselha amor loquaz,
Apressa o passo impetuoso a ela.
[...]

Assim vão Febo e Dafne: àquele move


Sua esperança e a esta o seu temor.
Porém o que a persegue, guarnecido
Pelas asas do amor, é mais veloz,
Não para e, estando na iminência dela,
Chega a soprar-lhe a coma solta atrás.
Findada a força, a ninfa empalidece.
Vencida pelo esforço de escapar,
Dirige o olhar às ondas do riacho:
“Ó pai, se tens mesmo o poder dos rios,
Concede ajuda àquela cuja forma
Por ser tão bela não pode ser vista,
E faz perder-se enfim a transformando!”

Assim mal Dafne finda sua prece


E súbito um torpor lhe invade os membros:
Fina casca lhe cinge o seio ameno,
Se faz em folhas seu cabelo e em ramos
Os seus braços; seus pés, antes velozes,
Se fixam lentamente ao solo em rígidas
Raízes e ao seu rosto todo envolto
Nada resta senão um brilho escuso.

Ainda Apolo a ama e põe a mão


Direita sobre o tronco: lhe é possível
Sentir pulsar o coração de Dafne.
E envolvendo as ramagens com seus braços,
Beija a madeira, que recusa os beijos.

Diz-lhe o deus então: “Já que não podes


Ser minha esposa, tu serás minha árvore.
Te portarei, ó louro, para sempre
Na lira, nos cabelos e na aljava.
Estarás entre os líderes do Lácio,
Com leda voz a modular vitórias
E a ver do Capitólio imensos faustos.
Disposta à entrada do palácio augusto,
Serás fiel vigia dos portões
E, ao centro, irás velar pelo carvalho.
Sobre meus cachos tenros não cortados,
Tu portarás da fronde eterna glória.”

Calou-se enfim; e, com aqueles ramos,


Pareceu-lhe o laurel ter assentido,
Meneando no topo as suas folhas.
(OVÍDIO. Metamorfoses. Trad. Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017, 452-567)

É importante saber que cada mito possui muitas tradições e versões diferentes. Há certamente as mais
consagradas, que se tornam fontes de referência para escritores e artistas das gerações seguintes, como
aconteceu com Teogonia, de Hesíodo, e Metamorfoses.

Ovídio tinha como intento superar a tradição e, em certa medida, conseguiu. Uma
das mais admiradas sínteses cosmogônicas encontrava-se em Teogonia, obra na
qual Hesíodo não associou a ideia do deus primordial Caos à confusão e à
desordem.

Pelo contrário: esse deus se associava à ideia de separação, amplidão e espaço vazio primordial. Ovídio
recobriu Caos com as figuras da desordem. Tal versão se consolidou como uma nova tradição na literatura,
nas artes e até nos dicionários.

Para finalizar, em um amplo arco que começa com o Caos e termina com o destino de Júlio César,
Metamorfoses atende a todos os pressupostos de uma obra clássica (entre elas, a universalidade e a
temporalidade), conseguindo ultrapassar mais de dois milênios com o vigor e a atualidade que somente os
grandes clássicos conseguem manter.
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Eneida e Metamorfoses
Assista agora a um vídeo que trata de algumas das principais contribuições literárias da Roma Antiga:
Eneida, de Virgílio, e Metamorfoses, de Ovídio.
Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

Eneida pode ser considerada uma epopeia para Roma, porque

reflete os valores da cultura grega no contexto latino a partir da exaltação da


A
democracia e da rejeição ao imperador.

foi escrita em latim por poetas romanos contratados pelo imperador com a finalidade
B
de rejeitar a mitologia grega.

apresenta temáticas relacionadas com acontecimentos históricos ocorridos


C
exclusivamente na cidade.

D foi concebida e escrita por Remo e Rômulo, fundadores da cidade de Roma.


espelha, por meio de recursos literários e de figuras míticas, a cidade romana e seu
E
imperador Otávio Augusto.

Parabéns! A alternativa E está correta.

Eneida, seguindo o modelo homérico de epopeia, representa mitologicamente a cidade romana e seu
imperador. A obra foi escrita pelo poeta latino Virgílio para contar a saga de Eneias.

Questão 2

A obra Metamorfoses pode ter seu título justificado, pois

A narra poeticamente as transformações pelas quais passa seu autor, Ovídio.

B conta poeticamente as transformações dos seres, mudança atribuída aos deuses.

conta poeticamente as mudanças dos deuses da mitologia romana em divindades da


C
mitologia grega.

desenvolve um poema em que o lírico, épico, o trágico e o cômico se mantêm


D
inalterados e não se misturam.

narra, de forma histórica e documental, as transformações por que passaram os


E
romanos.

Parabéns! A alternativa B está correta.

Ovídio conta, por intermédio de mitos e linguagem poética, além de misturar diferentes gêneros
literários, o modo como os serem passam por mudanças e assumem novas formas. Essas
metamorfoses são atribuídas às divindades da mitologia romana.
Considerações finais
Conhecer a arte e a literatura da Antiguidade Clássica é uma condição para se compreender bem o que se
produziu depois dela, seja na literatura, no teatro, na pintura, na escultura, na música ou, mais recentemente,
no cinema, nos jogos digitais, na psicanálise e até mesmo na publicidade.

Por isso, você estudou neste conteúdo diferentes manifestações artísticas da Grécia e da Roma antigas ao
verificar as características e as dimensões estéticas dessa riquíssima produção. Nela, podemos encontrar
clássicos, entre outras criações artísticas e literárias, como a Ilíada e a Odisseia, de Homero; Eneida, de
Virgílio; e Metamorfoses, de Ovídio.

Esperamos que esses estudos sejam um fator de motivação para você ler alguns desses clássicos da
cultura ocidental!

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Podcast
Para encerrar, ouça sobre os principais aspectos relacionados com a arte e a literatura na Antiguidade
Clássica.
Referências
BRANDÃO, R. O. A tradição sempre nova. São Paulo: Ática, 1976.

GRIMAL, P. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand, 1993.

HAUSER, A. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

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Leia este artigo para aprofundar seus estudos sobre a Ilíada:

VERNANT, J.P. A bela morte e o cadáver ultrajado. Discurso. n. 9. USP. 1978.

Assista ao filme sobre a guerra de Troia em que Brad Pitt interpreta Aquiles e Orlando Bloom, Páris:

TROIA. Direção de Wolfgang Petersen. EUA: Warner Bros., 2004. 163 min.

Veja os seguintes vídeos (no formato de entrevista) disponibilizados pela Univesp em seu canal no
YouTube:

Literatura universal – Odisseia (Homero) - André Malta - Pgm 02.

Literatura fundamental 12 – Eneida – Paulo Martins.

Literatura fundamental 35 – Metamorfoses, de Ovídio, com Alexandre Hasegawa.

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