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Jorge Bessa

O Apocalipse do Estado Islâmico


annabel lee
© 2017 Jorge Bessa

Todos os direitos desta edição estão reservados ao Autor.

annabel lee
www.editoraannabel.com.br
e-mail: editoraannabel@gmail.com

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E REVISÃO


Annabel Lee Produções Culturais

PREPARAÇÃO
Elisabete Vinas
CAPA
W. Padmé
REVISÃO
Edilson Fernandes da Cruz

B557a
BESSA, Jorge.
O Apocalipse do Estado Islâmico / Jorge Bessa.
Brasília : Annabel Lee, 2017.
266p
1. Religiões. 2. Governo. 3. Terrorismo. 4. Organizações de Inteligência. 5.
Espionagem I Título.
.

CDD 200
CDU 28-14
Embora pouco conhecidas, profecias e previsões apocalípticas
fazem parte do Alcorão, o livro sagrado do Islã, e dos Hadiths, um
corpo de conhecimentos atribuído ao profeta Maomé, que
constituem a base da fé muçulmana.
Teriam sido essas profecias o motor que transformou um
diminuto grupo de rebeldes iraquianos em um exército profissional
de terroristas que domina várias partes da Síria e do Iraque e
recebe apoio de jovens do mundo todo?
Neste livro, o escritor Jorge Bessa, um ex-oficial de Inteligência
que chefiou o Departamento de Contraterrorismo da ABIN, vale-se
de toda a sua experiência para examinar não só a questão
apocalíptico-religiosa da organização terrorista Estado Islâmico, mas
também sua ligação com todas as peças do intrincado xadrez das
relações internacionais no Oriente Médio envolvendo os países
muçulmanos, os Estados Unidos e seus aliados.
Ao analisar o conteúdo do Alcorão e de outras fontes
consideradas sagradas pelos muçulmanos, o Autor aponta para um
fenômeno preocupante: a crença, por parte de muitas lideranças
muçulmanas, mas principalmente do Estado Islâmico, de que o fim
do mundo está próximo e eles têm um importante papel a
desempenhar na grande batalha do Armagedon islâmico, o grande
Apocalipse há muito profetizado nas tradições sunitas e xiitas que
levará a um novo mundo onde somente os muçulmanos reinarão.
Sumário
Introdução
CAPÍTULO I
A complexidade de um mundo em evolução
CAPÍTULO II
Uma nova crença velha
Apocalipse e apocalipisismo
CAPÍTULO III
Século XXI – O século do terrorismo
A ameaça terrorista
O que é terrorismo
Causas do terrorismo
A Jihad islâmica
A escatologia islâmica
Os Hadiths
O Mahdi
Yawm ad-Din (O Dia do Juízo Final)
Os sinais dos tempos islâmicos
A Aparição do Dajjal – Anticristo
A segunda vinda de Jesus
A luta contra Gogue e Magogue
A aparição da Besta
Sinais no céu e na terra
A Ressurreição e as Três Trombetas
CAPÍTULO IV
O Estado Islâmico – Sua gênese e desenvolvimento
Wahabismo, a raiz ideológica do Estado Islâmico
A Arábia Saudita e o conflito entre xiitas e sunitas
A vertente militar do Estado Islâmico
Um espião por detrás do EI
O califado islâmico
A administração do Estado Islâmico
CAPITULO V
O Estado Islâmico é islâmico?
A estrutura de Inteligência do EI
Os espiões contra o Estado Islâmico
A vida nada fácil dos espiões
Os truques sujos da espionagem
O recrutamento no Estado Islâmico
Presente de um desertor
As escravas modernas do EI
O Estado Islâmico e a Internet
CAPITULO VI
O Apocalipse do Estado Islâmico
Dabiq – O local da Batalha Final
Um governo do Estado Islâmico
O Armagedon do Estado Islâmico
O retorno do Mahdi
CAPITULO VII
A presença de terrorismo no Brasil
Palavras finais
Literatura recomendada
Introdução

Em um mundo caracterizado pela complexidade, um novo fator


concorre para dificultar a vida dos responsáveis pelas organizações
de Inteligência e Segurança: entender e neutralizar as ameaças
representadas pelos atores não estatais, ou seja, aqueles que não
constituem Estados reconhecidos, mas atuam como tal, cujo
exemplo mais preocupante é a organização conhecida como Estado
Islâmico (EI).
Não bastassem as preocupações de ordem global, como a fome
no mundo, a proliferação nuclear e as alterações climáticas,
entender e opinar sobre o que está acontecendo no Oriente Médio
depois da invasão do Iraque pelas forças norte-americanas, da
ascensão do Estado Islâmico, da guerra civil na Síria e da chamada
“Primavera Árabe”, não é tarefa fácil para os profissionais dos
chamados Serviços Secretos, aqueles que têm a responsabilidade
de obter, processar e disseminar, em tempo hábil, aos dirigentes dos
países aos quais servem os alertas sobre as ameaças que pesam
sobre sua sociedade.
A complexidade e a velocidade das transformações na situação
política naquela conturbada parte do mundo exigem dos analistas de
Inteligência um acompanhamento diuturno de todas as fontes de
informações disponíveis, independentemente da posição político-
ideológica de cada uma. Para eles é importante examinar os fatores
que têm levado à radicalização naquela região, pois somente as
responsabilidades do colonialismo e do neocolonialismo europeu
não são suficientes para explicar os últimos acontecimentos. É falsa,
como os fatos estão a indicar, a presunção de que seja a presença
de Israel e sua política o fator de instabilidade na região, como
durante muito tempo se acreditou.
Uma declaração recente do ministro das Relações Exteriores do
Bahrein, Shaikh Khalid Bin Ahmad Al Khalifa, realizada em 12 de
abril de 2016, apontou o Irã como a ameaça maior ao seu país do
que Israel, jogando por terra a difundida acusação de que foi a
criação do Estado de Israel que deu origem a todos os conflitos na
região, ideia que conquistou muitos corações e mentes bem-
intencionadas do Ocidente, que sempre acreditam nas teses
recorrentes da luta em favor dos pobres e dos oprimidos do mundo.
Em um tom duro, Ahmad Al Khalifa disse que os países do
Golfo estão preparados para confrontar o Irã por sua política externa
e que Teerã deveria cessar o seu apoio a facções do Oriente Médio.
Disse Shaikh Khalid em uma entrevista ao canal Al-Arabiya,
baseado em Dubai:

Enviamos uma mensagem ao Irã e a todos os seus seguidores.


Estamos agora dispostos a confrontá-los e não teremos
nenhuma hesitação em defender nossos povos, estados,
interesses e irmãos na região, porque esta é uma questão vital
para nós.

Bahrein acusa o Irã de fomentar a instabilidade no país e de


fornecer armas para os militantes do Hezbollah libanês e a outros
grupos que se encontram por trás de vários ataques a bomba contra
as forças de segurança. O Irã nega as acusações.
Segundo um estudo da empresa de consultoria internacional
Burson-Marsteller divulgado em 12 de abril de 2016, entrevistas
presenciais realizadas entre janeiro e fevereiro deste ano com 3,5
mil homens e mulheres de países como a Arábia Saudita, Emirados
Árabes Unidos, Iraque, Egito, Líbia, Marrocos e Iêmen, 52% dos
entrevistados consideram o Irã como a maior ameaça no Oriente
Médio; já 50% consideram o EI como o principal obstáculo na
região.
Isso nos leva a refletir que, além da falta de democracia, das
perseguições político-religiosas e das debilidades da economia que
encontramos na maioria dos países da região, um outro grande
causador de instabilidade está longe de Israel: ele se trava no
interior do próprio muçulmanismo, representado no conflito entre
xiitas e sunitas.
O antigo antagonismo entre essas duas correntes religiosas do
islamismo, que se arrasta desde a morte do profeta Maomé, em
632, tem vitimado mais muçulmanos do que cristãos e judeus. Por
detrás desse conflito encontra-se também a rivalidade entre as duas
maiores potências regionais, a Arábia Saudita e o Irã, ou, em outros
termos, entre árabes e persas, sem esquecer as pretensões da
Turquia de voltar a desempenhar um papel de relevo, e a luta das
minorias, como os curdos, para alcançar a sonhada independência.
A situação no Afeganistão, no Iraque, na Arábia Saudita, na
Turquia e na Síria vem demonstrando o papel cada vez mais
destacado dos atores não estatais, principalmente das organizações
que, pelo seu Modus Operandi, são classificadas como terroristas.
Nesse rol, está incluído o recém-declarado Califado Islâmico, que
não pode ser considerado um Estado.
Um elemento novo para análise é o surgimento de um
componente apocalíptico nas guerras travadas pelo Estado
Islâmico.
Seitas apocalípticas como a do pastor Jim Jones e o suicídio
coletivo de seus seguidores em Jonestown; o suicídio coletivo de 16
membros da seita da Ordem do Templo Solar na colina de Isère, na
França; os Davidianos em Waco e os seguidores da seita Heaven’s
Gate são alguns dos exemplos do perigo que pode representar uma
liderança carismática exercendo um forte apelo apocalíptico sobre
pessoas ignorantes ou psicologicamente frágeis.
O problema é que no caso do Estado Islâmico, seus dirigentes
se valem de um exército ágil, guiado por um serviço secreto
eficiente, e não como um grupo de fanáticos visionários e
esquizofrênicos. O terrorismo por eles praticado se tornou mais
profissional e mais violento do que o de outros grupos, como a Al-
Qaeda.
Por outro lado, os militares dos Estados Unidos e de outros
países, que sempre prepararam seus exércitos para enfrentar
inimigos convencionais, em campos de batalhas convencionais e
com armas convencionais, sentem dificuldades para combater
adversários como o Estado Islâmico ou Al-Qaeda e sua forma
terrorista de atuação. Assim, foram forçados a adaptar sua estrutura
militar e de Inteligência ao novo desafio postado por essas
organizações jihadistas.
Cabe, pois, à Inteligência acompanhar as atividades dessas
organizações, analisando a biografia de seus dirigentes, seus
antecedentes, seus pontos fortes e fracos, suas intenções e
alianças, táticas e ameaças que representam, traçando os cenários
possíveis para cada conflito, ou intenções dos dirigentes desses
grupos armados, de forma a oferecer aos dirigentes políticos os
cenários mais plausíveis e as possíveis respostas a cada um deles.
Este livro foi composto com informações obtidas das chamadas
Inteligência de Fontes Abertas – que inclui livros, revistas e
publicações ostensivas –, com os conhecimentos acumulados em
minha experiência profissional, de quando atuei na Divisão de
Contraterrorismo da antiga Secretaria de Assuntos de Assuntos
Estratégicos da Presidência da República, além de contatos com
antigos Oficiais de Inteligência de outros países, com os quais
mantenho contato.
Nas páginas que se seguirão, examinaremos, mais
especificamente sob o enfoque da Inteligência, a ameaça terrorista
representada principalmente pela organização terrorista Estado
Islâmico (EI), e como ela afeta a paz e a segurança regional e
internacional. Veremos também o lado escatológico do islamismo do
EI e sua crença de que estão lutando a grande Batalha do
Armagedon; analisaremos seu nascimento e desenvolvimento até
chegar às conquistas territoriais que lhes permitiram criar um
Califado; seu método de recrutamento e capacidades militares e
administrativas também serão citados. Apresentarei também as
diferentes visões dos especialistas, de como combater o extremismo
violento do EI.
Será, pois, uma pequena contribuição de um velho Oficial de
Inteligência, que procura trazer ao leitor brasileiro a sua visão sobre
esse fenômeno que, apesar de aparentemente se encontrar distante
de nós, de repente pode se fazer presente.
Incluí um capítulo especial sobre a visão apocalíptica que
norteia as ações das principais lideranças dessa organização
terrorista, e mesmo de outras correntes do islamismo, que admitem
estar lutando a batalha final do Armagedon – a batalha do fim do
mundo – em que representam as forças do bem e o resto (sejam
muçulmanos de outras correntes, cristãos, judeus e membros de
outras nominações religiosas) representa as forças do mal que
devem a todo custo ser destruídas.
CAPÍTULO I
A complexidade de um mundo em evolução

Dizia Samuel Huntington, em seu livro O Choque de


Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial:

No mundo pós-Guerra Fria as bandeiras são importantes, e o


mesmo ocorre com outros símbolos de identidade cultural,
incluindo cruzes, luas crescentes e até mesmo coberturas de
cabeça, porque a cultura conta e a identidade cultural é o que
há de mais significativo para a maioria das pessoas. As pessoas
estão descobrindo identidades novas, e, no entanto, antigas, e
desfilando sob bandeiras novas, mas frequentemente antigas,
que conduzem à guerra contra inimigos novos, mas
frequentemente antigos.

Em 2001, após a invasão do Afeganistão pela coalizão de


tropas lideradas pelos EUA, o líder da Al-Qaeda, Osama Bin Laden,
fugiu apressadamente de sua casa, em Kandahar, deixando para
trás uma preciosidade: uma coleção de cerca de 1.500 fitas cassete
que constituíam uma verdadeira biblioteca em áudio daquela
organização.
Essas fitas foram analisadas por Flagg Miller, especialista em
literatura e cultura árabe da Universidade da Califórnia, que
compilou o resultado de seu trabalho no livro The Audacious Ascetic
(O Asceta Audacioso, em tradução literal), onde o autor apresenta
um Bin Laden um pouco diferente daquele combatente guerrilheiro
corajoso e viril, idealizado por muito candidato a terrorista.
Segundo Miller, as fitas são parte da história de construção de
um mito – Bin Laden –, o qual trabalhava muito na sua
autopropaganda, tentando mostrar a imagem de um lutador capaz,
embora usasse botas de marca no deserto e adorasse uma cozinha
sofisticada. Também nos aspectos político e religioso, Miller
descobriu que, àquela época, o verdadeiro inimigo para Bin Laden
não eram os EUA, mas sim outros muçulmanos, aqueles que não
seguiam cegamente sua interpretação radical do Islã e eram
acusados de não ter fé. Sua Jihad inicialmente deveria ser dirigida
contra quem não fosse um verdadeiro muçulmano, na sua
concepção.
Somente depois de ser deportado do Sudão e de perder sua
cidadania da Arábia Saudita por pressão dos norte-americanos é
que Bin Laden elege os Estados Unidos como “bode expiatório” e
passa a desenvolver um ódio mortal àquele país e a outros países
ocidentais. Isso fica claro em seus discursos de Tora Bora, onde se
mantinha refugiado, conhecidos como “Declaração de Guerra de Bin
Laden”.
É um recurso sempre usual a escolha de “um bode expiatório”
para nele projetar nossa raiva e frustrações. Assim como aconteceu
com Bin Laden, o mesmo ocorre hoje com a organização terrorista
Estado Islâmico: embora seu objetivo principal seja espalhar o ódio
e a luta contra seus rivais muçulmanos, é necessário fazer crer que
seu inimigo principal seja o Ocidente, sejam ele os Estados Unidos,
a França, a Rússia, ou qualquer país onde possam realizar seus
estúpidos atentados terroristas, matando aqueles a quem chamam
de “infiéis”.
Mas assim como aconteceu com Osama Bin Laden, onde os
serviços de Inteligência principais dos Estados Unidos
desenvolveram todos os esforços que conduziram a sua descoberta
e eliminação, também assim os serviços de Inteligência dos
principais países envolvidos na guerra contra o terrorismo são os
principais combatentes, no sentido de levantar informações que
levem à derrota do Estado Islâmico e de outras organizações que
utilizem o terrorismo como arma política ou religiosa.
Mesmo assim, sempre que acontece um atentado terrorista,
chovem acusações de que os Serviços de Inteligência são custosos
e ineficientes ao não preverem esses atentados, embora os
detratores não conheçam o que está sendo feito pelos agentes e
analistas de Inteligência e quantos atentados foram evitados pelo
trabalho deles. O que interessa é apontar um culpado. Passado o
trauma do atentado, eles acusam os mesmos Serviços de
possuírem poderes demais de investigação, o que representa uma
ameaça para a democracia e para as liberdades individuais: durma-
se com um barulho desses!
Infelizmente esses críticos parecem desconhecer que um
serviço de Inteligência não é composto por oráculos e adivinhos
dotados de poderes paranormais, e que a complexidade de um
mundo que vem passando por grandes transformações, das quais
participam múltiplos atores – entre os quais os terroristas são
apenas um dos elementos em jogo –, exige sim acompanhamento
permanente e agentes e analistas gabaritados. Além disso, esses
serviços precisam de verba e tecnologia, que muitas vezes lhes são
negadas.
Um bom analista da área de terrorismo tem de ter habilidades
multifacetadas: a formação de um diplomata, para acompanhar e
entender as grandes jogadas no imenso tabuleiro das relações
internacionais; a visão militar, para entender em que momento os
conflitos não resolvidos podem se transformar em conflitos armados;
a curiosidade investigativa de um bom jornalista, para descobrir as
intensões nas futuras jogadas dos contendores; e uma boa dose de
intuição, para desvelar o “Véu de Isis”, dando significado a cada
peça do jogo.
Ao assistir a verborragia de alguns clérigos muçulmanos na
atualidade, ou então dos próprios líderes da organização terrorista
Estado Islâmico (EI), é difícil não recordar o hipnótico fervor religioso
do Papa Urbano II no Concílio de Clermont-Ferrand (1095),
convocando os cristãos para uma guerra contra os “infiéis”
muçulmanos, a fim de reconquistar Jerusalém, dando início às
Cruzadas, expedições militares muitas vezes formadas por homens
mal orientados e mal alimentados que partiam da Europa cristã a fim
de combater os muçulmanos no Oriente.
Também ao ver as cenas chocantes das decapitações e a
exposição das cabeças em ponta de lanças espalhadas pelas
cidades conquistadas pelos terroristas do EI, de imediato me vêm à
mente as mesmas cenas descritas nos livros antigos, retratadas em
diversos filmes, que narram as barbaridades praticadas pelos
nobres cristãos europeus que, atendendo ao chamamento de
Urbano II, abandonaram suas casas e seus familiares para,
pretensamente, irem libertar a “Terra Santa”. Hoje, sabe-se que
havia outros interesses – menos religiosos, e mais econômicos – em
jogo.
A exemplo do que acontece hoje com os militantes do EI, que
carregam suas bandeiras negras de Khurasan, os participantes das
Cruzadas também levavam bandeiras marcadas com a cruz e
bordavam a cruz na própria roupa quando partiam para matar seu
pretenso inimigo. A cruz, o mesmo sinal que imortalizou o homem
que há dois mil anos pregava a paz e o perdão aos inimigos, era
utilizada para matar.
Da mesma forma que os Cruzados alegavam ter de libertar os
cristãos do poder dos turcos selêucidas e liberar o caminho para
peregrinações à “Terra Santa”, que havia sido por esses bloqueado,
hoje as lideranças do EI prometem liderar a cruzada final para
libertar as terras islâmicas da presença dos chamados infiéis, que
podem ser estrangeiros, mas são principalmente os muçulmanos
xiitas, seus desafetos religiosos.
Assim como muitos se inscreveram nas Cruzadas pelo simples
desejo de melhorar a vida – já que na Europa a população crescia e a
produção de alimentos não atendia às necessidades de todo o povo
–, também hoje muitos europeus e americanos se juntam às fileiras
do EI com o objetivo de melhorar de vida, dar vazão a seu espírito de
aventura ou simplesmente conquistar um lugar no céu, como fizeram
muitos cruzados atendendo à promessa de Urbano II.
Em 1095, o Papa Urbano e seus aliados na Reforma gregoriana
esperavam unir de novo todos os cristãos, pois a Cristandade,
desde o Grande Cisma do Oriente, tinha passado a estar dividida
em igreja do ocidente e igrejas do oriente. Hoje, em 2016, clérigos
xiitas e sunitas pregam a união de todos os muçulmanos sob sua
bandeira, assim como o Papa Francisco realiza uma aproximação
com a Igreja Ortodoxa. A Missão do Papa parece ser mais fácil!
O Papa esperava socorrer os maronitas, que eram católicos e
estavam sendo brutalmente perseguidos no monte Maron, no
Líbano, desde a invasão turca. Hoje as lideranças das organizações
terroristas Al-Qaeda, Estado Islâmico e Boko Haram, dentre outras,
e mesmo governos do Oriente Médio, travam guerras e criam
conflitos alegando querer salvar os muçulmanos alinhados com
suas crenças, que estariam sendo perseguidos pela facção
contrária.
Mas por que muitos analistas veem os muçulmanos, de uma
forma geral – e o Estado Islâmico em particular –, como a grande
ameaça à civilização ocidental na atualidade? Qual seria, afinal, a
grande diferença no aspecto religioso a separar cristãos e
muçulmanos? Afinal, para estes últimos, o Velho e o Novo
Testamento são verdadeiros e os grandes profetas do judaísmo são
também por eles prezados; o Alcorão, o livro sagrado dos
muçulmanos está repleto de cenas e referências contidas na Bíblia
cristã.
Ambas as religiões acreditam em um Juízo Final, na
ressurreição dos mortos, na ação do anticristo no final dos tempos,
em uma batalha final entre as forças do Bem e do Mal, no retorno de
Jesus e na vitória final de Deus, que reinará em um paraíso
terrestre. Por que então esse ódio e essa apartação também contra
cristãos e judeus?
Se hoje os combatentes islâmicos matam seus pretensos
inimigos aos gritos de Allahu Akbar (“Alá é Grande”), o mesmo
fizeram os católicos do rei Carlos IX, que matavam os huguenotes –
era como os católicos chamavam os seus opositores calvinistas na
França – gritando o nome de Deus, na cidade de Paris, em 24 de
agosto de 1572. Afinal o fanatismo e a intolerância sempre
estiveram presentes na história da humanidade, sendo uma das
facetas trágicas da personalidade humana, seja na política, no
futebol, ou na religião.
Se hoje um grupo de fanáticos muçulmanos invocando
equivocadamente o nome de Deus acredita que são os combatentes
enviados por Ele para preparar o retorno do Messias esperado – o
Madhi islâmico –, também fanáticos cristãos e judeus há décadas
sofrem de delírios e surtos psicóticos quando visitam Jerusalém,
imaginando que são Jesus, Maria ou Pôncio Pilatos,
autocrucificando-se e afirmando que atendem a um chamamento
divino, no fenômeno conhecido como “Síndrome de Jerusalém”.
Católicos e protestantes já se enfrentaram diversas vezes no
passado e ultimamente vinham convivendo relativamente bem no
plano religioso. Muçulmanos xiitas e sunitas também. O que, pois,
está causando o atual quadro de intolerância?
Embora seja utilizado pelos terroristas para justificar suas
atrocidades, não encontraremos no Alcorão a incitação à violência
nem ao crime. Isto decorre da interpretação que eles dão àquele
livro sagrado do islamismo. O mesmo também ocorre com os
interpretadores do Novo e do Velho Testamento, que entendem
precisar adaptar os textos sagrados aos dias de hoje, uma vez que
foram escritos há muitos séculos e em contextos históricos
diferentes.
Larissa Leiros Baroni, em artigo apresentado no UOL Notícias
de 7 de janeiro de 2016, apresenta a visão de vários especialistas
sobre o tema da incitação à violência baseada no Alcorão. Para
Pedro Lima Vasconcelos, professor de pós-graduação de História da
UFAL (Universidade Federal de Alagoas): “Dizer que muçulmanos
são radicais e propensos à violência é uma construção ideológica do
Ocidente”, e acrescenta:

Não quer dizer, porém, que os ataques em Paris não sejam


reais ou que as mortes não sejam reais. O que não se pode é
condenar toda uma comunidade por atos cometidos por
minorias.
Para Peter Demant, professor de História e Relações
Internacionais da USP (Universidade de São Paulo), autor do livro O
Mundo Muçulmano:

A maioria dos grupos terroristas da atualidade é formada por


muçulmanos, mas isso não significa que a maioria dos
muçulmanos seja terrorista.

Ela apresenta também uma visão palatável do historiador da


Penn State University (EUA) Philip Jenkins, autor de diversos livros
sobre o assunto e de um comparativo entre a Bíblia e o Alcorão.
Segundo ele, todas as religiões “crescem, amadurecem e passam
por um processo de esquecimento da violência original”, que passa
a se limitar ao campo das representações, ou seja, “aniquilar o
inimigo” ganha o significado de combate aos “próprios pecados”, o
inimigo interior.
Esse foi um processo que se passou no cristianismo e que
estava adormecido no Islã. Os debates teológicos da Igreja Católica
ocorreram séculos atrás, e de vez em quando o Papa dá uma
atualizada em certas interpretações dos textos sagrados dos
cristãos, modificando o pendor belicista existente no espírito dos
judeus à época em que foram escritos. Mesmo entre os judeus
existem interpretações radicais da Torá que sustentam as ações de
seus radicais.
O Oriente Médio sempre foi uma zona conturbada no tabuleiro
das grandes potências, principalmente por ser a fonte principal do
petróleo que abastece o mundo. A despeito dos rancores e
desconfianças que ficaram com o resultado da Guerra dos Seis
Dias, a política da região continuava como sempre foi.
Mas em 1979 um elemento novo atraiu a atenção dos
planejadores estratégicos e Oficiais de Inteligência de todo o
mundo: a revolução no Irã comandada pelo Aiatolá Sayyid Ruhollah
Musavi Khomeini, o líder espiritual e político da revolução que depôs
o então Xá do Irã Mohammad Reza Pahlavi e criou a República
Islâmica na antiga Pérsia, cujas consequências se espraiaram por
toda a região e perduram até hoje.
A importância dessa Revolução foi haver permitido que a
maioria dos muçulmanos acreditassem que o islamismo político
tinha capacidade para chegar ao poder. Segundo João Marques de
Almeida, em interessante análise na revista IPRI, com o descrédito
sofrido pelo nacionalismo árabe durante a década de 1970, as
sociedades muçulmanas assistiram, gradualmente, à substituição do
pan-arabismo pelo pan-islamismo como ideologia política de
massas. Para ele, a Revolução Iraniana confirmava dois dos pontos
centrais dos fundadores do islamismo radical: o poder tinha de ser
conquistado por meio da revolução e os Estado Unidos, na sua
condição de líder do mundo ocidental, eram o inimigo principal do
Islã.
Com essa mudança no cenário da região, novos
acontecimentos posteriores vieram tirar o sono dos analistas
encarregados do Oriente Médio: a chamada Primavera Árabe e,
dentro dela, a disputa pela liderança do mundo muçulmano entre
xiitas e sunitas.
Num mundo em que a capacidade dos analistas de Inteligência
em produzir boas informações é desafiada pela velocidade com que
a informação é disponibilizada para todos, o trabalho desses
profissionais tem de ser diuturno, pois qualquer erro de avaliação da
situação pode levar os estrategistas governamentais a tomarem
decisões erradas e comprometer todos os esforços para atingirem
seus objetivos.
É claro que muitas vezes o trabalho dos analistas da
Inteligência é desprezado por líderes delirantes, que colocam seus
interesses ideológicos acima dos interesses da nação. Esse foi o
caso de Luiz Inácio Lula da Silva, que orientado pelo seu assessor
para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, decidiu unir-se
ao Irã apenas para espicaçar o governo norte-americano, uma
atitude que tantos desgastes causou à diplomacia brasileira. Todos
os relatórios da Inteligência que sinalizavam em sentido contrário
foram deixados de lado.
Entenda-se que a situação no Oriente Médio envolve os
interesses nacionais das principais potências locais – Irã, Arábia
Saudita, Egito e Turquia – e que todos esses países possuem
alianças com as principais potências mundiais, Estados Unidos e
Rússia. Qualquer decisão equivocada pode minar confianças ou
desfazer alianças.
Vejamos, por exemplo, a situação dos Estados Unidos, um dos
principais “jogadores” naquela área, tendo de realizar uma
aproximação estratégica com o governo do Irã, de quem já foi
inimigo, mas tendo também de honrar compromissos com o
governante da Arábia Saudita, um dos seus principais aliados na
região, inimigo figadal do Irã. O Irã, xiita, e a Arábia Saudita, sunita,
ambos querendo dominar o mundo islâmico.
A União Europeia, por seu turno, hoje enfrenta dois grandes
problemas que causam preocupação à sua população: a presença
de jihadistas que podem perpetrar atentados como os realizados em
Paris no final de 2015, e o outro, ligado ao primeiro, que é o imenso
fluxo de refugiados vindos do Oriente Médio, principalmente da
Síria, fugindo da guerra civil, e que pode abrigar terroristas
disfarçados.
A Turquia também desempenha um importante papel, pois
ocupa uma posição estratégica, com os seus 900km de fronteiras
com a Síria, além de ser um portal para a Europa. O problema é que
esse país defende firmemente a corrente sunita do Islã, difundindo a
sua ideologia sectária e intolerante que muito auxilia os radicais
jihadista, principalmente o Estado Islâmico.
Nesse emaranhado de interesses divergentes, não podemos
deixar de assinalar a situação dos curdos, que não estão muito
preocupados com a fronteira e que, por combaterem o Estado
Islâmico, ao fim do conflito na Síria e no Iraque certamente
apresentarão sua conta, querendo uma parte do “butim” sob a forma
de reivindicações territoriais.
Depois de investir bilhões de dólares na sua equivocada
cruzada antiterrorista no Oriente Médio, atuando no Afeganistão,
Iraque e Síria, principalmente, independentemente de terem ou não
alcançado seus objetivos, os norte-americanos são acusados de
serem os culpados pelo surgimento e desenvolvimento da Al-Qaeda
e do Estado Islâmico, organizações terroristas que perturbam o
sono dos encarregados pela segurança tanto nos EUA como na
Europa, com suas investidas sanguinárias na região.
Acusado de ser covarde, indeciso e pouco pragmático em
relação aos desafios postados à sua mesa no salão oval da Casa
Branca, Barack Obama pareceu ter abandonado a postura belicista
das antigas águias do Pentágono e do Departamento de Estado, e
procurou poupar o dinheiro do contribuinte americano, dando mais
liberdade de ação a seus parceiros europeus e do Oriente Médio
para que resolvessem seus problemas.
Essa decisão, no entanto, teve os seus riscos, haja vista que a
crescente liberdade de ação dos governantes da área (como, por
exemplo, a Arábia Saudita) e a crescente periculosidade do Estado
Islâmico podem fugir de qualquer controle e acirrar ainda mais os
ânimos e as disputas.
As pessoas comuns podem se espantar com o que está
acontecendo naquela difícil região do planeta, mas os homens e
mulheres da Inteligência, não.
Lembro-me de quando chefiava o Departamento de
Contrainteligência, ao qual estava subordinada a Divisão de
Terrorismo na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência
da República – a atual ABIN –, e das preocupações que tínhamos
em acompanhar o tema terrorismo, e de desenvolver estudos
prospectivos em relação aos movimentos terroristas internacionais;
em surdina, mas de forma constante...
À maior parte dos jornalistas compete o acompanhamento da
pauta do dia, dos assuntos mais importantes naquele momento. Ao
pessoal da Inteligência, ao contrário, o acompanhamento dos
assuntos sob sua responsabilidade é diuturno, pois nunca se sabe o
que está se passando na cabeça de um terrorista nem onde será
realizado o próximo ataque.
As análises têm de ser atualizadas de acordo com a evolução
da situação, e a todo momento surgem fatos e personagens novos.
Uma pequena contrariedade de um dirigente de um país
estrategicamente interessante e que possa afetar sua vaidade, ou o
assassinato de uma liderança política ou religiosa, pode gerar crises
perigosas.
Por isso é absolutamente necessária a constante troca de
informações entre os diversos Serviços de Inteligência dos
diferentes países.
Quando tinha a responsabilidade pelo acompanhamento do
Terrorismo Internacional, visitei diversos serviços, como o Mossad
(Ha-Mōśād le-Mōdī`īn ū-le-Tafqīdīm Meyūhadīm – O Instituto para
Inteligência e Operações Especiais) de Israel, bem como outros
Serviços de Inteligência da região, como o do Egito, além de outras
fontes de interesse no Líbano, buscando troca de informações.
Reputo de grande importância um relacionamento de
Inteligência com Israel, pois eles produzem excelentes relatórios
sobre a situação na região, já que seus agentes se encontram
infiltrados nos principais países do Oriente Médio e nos diferentes
níveis de governo desses países.
Uma prova disso é o que foi noticiado no Middle East Monitor,
de 3 de outubro de 2013, no qual o ex-diretor da Divisão de
Inteligência do Exército de Israel, general Amos Yadlin, revelou que
os seus agentes se infiltraram em diversos países árabes,
principalmente no Egito. Yadlin também mencionou operações no
Iraque, Sudão, Iêmen, Líbano, Irã, Líbia, Palestina e Síria, afirmando
que haviam estabelecido redes de coleta de informações na Tunísia,
no Líbano e no Marrocos, e que essas redes são capacitadas para
ter influência positiva ou negativa no cenário político, econômico e
social nesses países.
Além disso, Israel possui uma frota de drones para coletar
informações de inteligência em Gaza, na Cisjordânia e em todo o
Oriente Médio. Drones também foram usadas para coletar
informações de inteligência durante os planos de Israel para lançar
ataques ao Irã. O problema é que os serviços de Inteligência dos
EUA e do Reino Unido invadiram as transmissões dos drones
israelenses e foram capazes de monitorar todas as operações
israelenses em Gaza, Síria e Irã.
Além do excelente relacionamento com a Central Intelligence
Agency – a CIA americana –, também realizamos acordos de
cooperação com o Serviço de Inteligência Externa da Rússia, o SVR
(transliterado em russo: Sluzhba Vneshney Razvedki), e com o FSB,
o Serviço Federal de Segurança da Federação Russa (Federal’naya
sluzhba bezopasnosti Rossiyskoi Federatsii), responsável pela
Inteligência interna da Rússia, ambas sucessoras do extinto KGB.
O grande problema é você saber usufruir ao máximo dessa
troca de informações, mas sempre com a preocupação de escoimar
delas as intenções ocultas do seu patrocinador, aquele que a
produziu e que as está entregando, que muitas vezes quer nos
conduzir a pensar como ele quer que pensemos, ou atuar como ele
quer que atuemos. Tudo tem um objetivo oculto nas relações
internacionais.
Por exemplo, seria ingênuo acreditar que o EI é a organização
terrorista mais violenta que já surgiu. Isto seria um erro, pois
estaríamos fazendo o jogo do inimigo. Nosso conhecimento sobre
as barbaridades por eles praticadas são baseados nos vídeos que
eles próprios produzem e distribuem, com rigor profissional. Isso é
parte importante de sua propaganda e eles se tornaram mestres em
incutir medo e respeito utilizando-se de todas as mídias para causar
pânico diante das barbaridades que cometem. Para eles é
importante mostrar o desprezo que têm pela vida: deles e a dos
outros.
Já as barbaridades cometidas pelos americanos no Vietnã, no
Iraque ou mesmo na prisão de Guantánamo eram cuidadosamente
escondidas. No Brasil, aqueles que há pouco governavam o país
realizavam décadas atrás o chamado “justiçamento dos
adversários”, ou mesmo de companheiros, sem clemência e sem
defesa, em julgamentos sumários que eram chamados de “justiça
revolucionária”, e que atendiam aos apelos da ideologia. Os
militares, por seu turno, também praticavam suas truculências.
Grande parte dos países ditos civilizados – e não somente a
Alemanha de Hitler, que foi apenas o pior – cometeram
barbaridades durante a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais.
Faz muita diferença?
A ideologia do Estado Islâmico é a religião. Ela manda, segundo
os interesses de seus interpretadores, que os inimigos do Islã sejam
sacrificados. Nessa visão simplória e maniqueísta do mundo, assim
como os ideólogos comunistas ensinavam que o mal do mundo
seria decorrente do capitalismo, a ser extirpado da face da Terra
para que o bem, o comunismo, preponderasse, ideia que ainda
influencia jovens do mundo todo, também os jihadistas islâmicos
defendem que todo não muçulmano deverá ser aniquilado para que
o bem, o Islã – xiita ou sunita, a depender da facção – instale o
Reino de Deus sobre a Terra.
Na Idade Média, empalavam-se os derrotados ou cortavam-se
suas mãos e seu órgão sexual para que não mais pegassem em
armas e não mais gerassem novos inimigos. No século XX, Hitler,
mais “discreto”, matou milhares em uma só fornada; e os
americanos, para não ficarem para trás, também mataram milhares
em alguns segundos, tempo necessário para que as bombas
atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki causassem seus
efeitos funestos.
Mas, a depender do público que os assista, os vídeos que
mostram a violência desses últimos eventos não causam grande
impacto. É diferente, diante deles, a reação dos brasileiros (e a de
alguns povos africanos que se encontram em guerras) da reação de
outras sociedades que se encontram em um estado civilizatório
mais avançado, portanto mais sensíveis à barbárie.
Justiçamento de bandidos no Brasil é aplaudido pela população.
Há poucas décadas, a polícia cortou e exibiu com orgulho a cabeça
dos cangaceiros do grupo de Lampião que haviam prendido,
exatamente como faziam os franceses com o produto de sua
guilhotina décadas antes.
Muito cuidado devemos ter ao empregar o termo “terrorista”, ou
“organização terrorista”, pois ele está sendo empregado por
diversos governantes para poder mais facilmente – e às vezes até
com o apoio estrangeiro – combater, prender e matar os seus
opositores políticos.
Uma situação que retrata bem isso ocorreu no Iraque em
fevereiro de 2011, quando dezenas de milhares de iraquianos foram
às ruas para protestar contra a corrupção que grassava no governo
do primeiro-ministro Nouri al-Maliki, e foram tachados de terroristas
e atacados pelas forças de segurança, episódio que deixou dezenas
de mortos e milhares de presos e torturados. Isso somente serviu
para lhes despertar simpatias pelos jovens jihadistas do EI que,
acreditavam, poderia libertá-los de tamanha violência.
Em dezembro de 2014, na Turquia, a Justiça emitiu uma ordem
de prisão contra o Imã Fethullah Gülen, ex-aliado e hoje um dos
maiores adversários do presidente Recep Tayyip Erdogan, e mais
três pessoas ligadas a ele. Exilado nos Estados Unidos desde 1999,
o clérigo de 73 anos era acusado de chefiar uma “organização
terrorista”, segundo a classificação do governo. O embate entre os
dois envolvia denúncias de corrupção supostamente praticadas por
Erdogan, que acusava Gülen de conspiração com o objetivo de tirá-
lo do poder.
Muito cuidado também se deve ter ao analisar a real
capacidade militar do EI. Hoje se sabe o descalabro que foi o
colapso total das forças de segurança do Iraque frente ao avanço do
Estado Islâmico, principalmente em Mossul, uma importante cidade
ao norte do Iraque, capturada praticamente sem luta. Os terroristas
infligiram uma derrota devastadora ao governo iraquiano, cujas
forças fugiram da cidade abandonando armas e uniformes.
Essa vitória do EI foi vista por muitos analistas como sendo
capaz de transformar a política do Oriente Médio, já que o EI se
mostrou capaz de conquistar e controlar uma grande parte do norte
do Iraque e norte da Síria. Outras vitórias se seguiram. O Estado
Islâmico parecia ser imbatível, um fato bastante explorado pela
máquina de propaganda e que servia para atrair aventureiros do
mundo todo.
No entanto, depois de uma década de êxitos retumbantes, a
partir do final do ano de 2015, a maré de sucessos começou a
mudar, e as tropas do Iraque, treinadas pelos EUA, descobriram que
a organização terrorista não era tão invencível como parecia. Aos
poucos, ela está perdendo muitos dos territórios conquistados e
passando a lutar na defensiva em diferentes fronts.
Nessa virada de situação, a Inteligência desempenhou um
papel fundamental e continua desempenhando, já que deve estar na
linha de frente de qualquer guerra. Na guerra contra o terrorismo do
Estado Islâmico, o acompanhamento permanente de suas
intenções, de suas atividades e da política de seus apoiadores é sua
função principal.
CAPÍTULO II
Uma nova crença velha

Um fenômeno preocupante que vem se alastrando rapidamente


nas últimas décadas, principalmente nos países muçulmanos, e que
tem sido pouco analisado pelos especialistas em terrorismo,
principalmente das organizações de Inteligência, é a crença em um
Juízo Final e em um Apocalipse sinalizador de que o fim do mundo
está próximo – e com ele a deflagração da “grande batalha do
Armagedon” entre o “Bem” e o “Mal”, profetizada em muitas das
tradições religiosas sunitas e xiitas, à semelhança do que ocorre nas
religiões judaico-cristãs.
Observa Dionísio Oliveira Soares, em interessante artigo
intitulado “A literatura apocalíptica: o gênero como expressão”, que
o interesse pela literatura apocalíptica cresce em tempos de crise,
como aconteceu após a Primeira Guerra Mundial, no século
passado, assim como no primeiro século da Era Cristã, e também
na época dos Macabeus da história de Israel (século II a.C.).
Segundo ele, durante muito tempo os escritos apocalípticos foram
tratados como fantasiosos, esotéricos, de difícil compreensão.
Somente no século XX é que a literatura apocalíptica e o
apocalipsismo passaram a ter maior importância, em razão da
constatação da grande participação desses escritos na formação do
pensamento cristão, a sua influência na fé e nas expectativas do
judaísmo.
Além das doutrinas judaico-cristãs, esse fenômeno tem estado
presente ao longo dos séculos também nas doutrinas religiosas
islâmicas. Mas o que preocupa na atualidade é o rápido crescimento
da crença sobre um próximo Apocalipse, contido no Islã, e a sua
incorporação ao discurso radical dos terroristas islâmicos, que vem
seduzindo muitos muçulmanos a juntarem-se a eles – pela
perspectiva de estarem lutando pelo bem dos muçulmanos em
obediência às orientações de Alá.
As crises sociopolíticas e religiosas que se têm abatido sobre o
Oriente Médio nos últimos anos, bem como as incertezas e temores
que elas despertam, formam a moldura onde o quadro das visões
apocalípticas é pintado com as tintas da violência.

Apocalipse e apocalipisismo

Segundo a Enciclopédia Britânica, o Apocalipsismo se refere à


visão escatológica e a movimentos que se concentram em
revelações enigmáticas sobre uma intervenção repentina, dramática
e cataclísmica de Deus na História, o julgamento de todos os
homens, a salvação dos fiéis eleitos e o eventual papel dos eleitos
de Deus em uma Terra e um Céu renovados.
Por essa definição, o Apocalipisismo implica uma visão
dualística na crença em um confronto final entre o Bem e o Mal, e
em que se aproxima um evento de proporções cataclísmicas para a
humanidade, no qual apenas um lado sairá vencedor: as forças do
Bem. Para esse evento, todos nós devemos nos preparar seguindo
as tradições proféticas do judaísmo, do cristianismo e do islamismo.
Nesse processo, os crentes podem desempenhar um papel
importante para antecipar esses eventos, lutando contra um
determinado inimigo que passa a ser demonizado e apontado como
o mal a ser destruído para que se alcance o Paraíso. Eles devem
escolher se lutam ao lado dos “filhos da luz” ou ao lado dos “filhos
das trevas”.
Destaca a especialista em religiões orientais Mary Boyce que o
termo apocalipse é apenas outra palavra para “revelação”, enquanto
apocalipsista significa “revelador”.
O termo apocalipse se tornou conhecido entre os cristãos em
razão do texto produzido pelo apóstolo João no livro do Apocalipse,
que compõe o Novo Testamento, significando Revelação. Profecia
por sua vez, tem sido definida como um tipo de conhecimento que
não pode ser apreendido por meio das faculdades comuns, mas sim
por revelação de uma divindade ou por algum outro meio
transcendental.
Muitos pensadores costumam analisar as descrições e
referências sobre um final de mundo apocalíptico apenas sob o
enfoque da literatura apocalíptica, sem maiores preocupações com
a possibilidade da realização do seu conteúdo. No entanto, já que
tantos profetas e pensadores do passado pertencentes às mais
importantes religiões do planeta afirmavam terem tido “revelações”
oriundas de um nível superior de consciência, creio ser interessante
pesquisar se essas profecias seriam passíveis de ocorrer,
confrontando-as com elementos que a ciência coloca à nossa
disposição.
A inquietude intelectual e científica me conduziu a analisar as
principais ocorrências proféticas contidas principalmente no Livro de
Daniel, no Velho Testamento, e o Apocalipse de João, contido no
Novo Testamento. O resultado dessas pesquisas e suas conclusões
foram apresentados nos livros Decifrando as Profecias de Daniel –
O Fim Mundo”, Decifrando as Profecias de João – A Batalha Final
do Armagedon”, e O Aquecimento Global – Uma Análise
Espiritualista, onde procurei esmiuçar o que diziam os profetas
antigos e modernos sobre o que se convencionou chamar de
Apocalipse, comparando-o com os eventos que ocorrem na
atualidade.
De uma forma geral, as mensagens apocalípticas envolvem a
revelação, por parte de uma entidade espiritual superior – Deus ou
seus auxiliares, se assim podemos nos expressar – de um evento
futuro que afetará toda a humanidade, transmitida através de uma
figura escolhida para tal fim – hoje chamada de Médium –
conclamando essa humanidade a trilhar um caminho de correção
ética e moral impecável, descrito nos livros religiosos de cada grupo,
que a levará a alcançar um mundo de paz e felicidade eternas.
Geralmente essas narrativas envolvem uma luta final entre o
“Reino de Deus” e o “Reino de Satanás” que deverá acontecer em
um período durante o qual a humanidade atravessará momentos de
grandes dificuldades e tribulações. Ao final, os “Bons” e “Justos”
terão sua recompensa: a permissão para ingressar em um novo
mundo regenerado, onde a paz e a cooperação serão a tônica, já
que Satanás terá sido destruído. Longe de significar o final da
História, isso seria o seu recomeço em bases mais evoluídas.
De um modo geral, os acadêmicos veem o Apocalipse apenas
como um gênero literário, uma narrativa com um sentido figurado
para representar a luta de libertação a ser travada por grupos ou
sociedades dominadas e marginalizadas contra um grupo ou nação
opressora. Essa interpretação foi explorada por líderes de
movimentos revolucionários ou libertários do passado – e também
pelos terroristas do Estado Islâmico – como justificação para suas
lutas de libertação contra seu oponente, o Satanás, representado na
figura do opressor.
Esse entendimento foi muito utilizado na revolução islâmica do
Irã, em que as classes pobres e marginalizadas foram mobilizadas a
lutar contra o Xá Reza Pahlevi, que para eles representava as
forças das trevas e da opressão ao povo, enquanto o aitolah
Khomeini estava do lado das forças muçulmanas revolucionárias
que exterminariam todo o mal do país.
Para os seguidores das religiões judaico-cristãs, a maioria das
referências a um Apocalipse está contida nos livros do Velho
Testamento, e geralmente surgiram nos momentos em que os
judeus se achavam subjugados e humilhados por um império
estrangeiro: em Daniel, submetidos aos babilônios, e em João,
dominados pelos Romanos. As profecias sobre apocalipses teriam
surgido como forma de dar esperanças de um futuro melhor aos
dominados.
Um detalhe muito explorado pelos terroristas do Estado Islâmico
é o fato de os apocalipses indicarem a continuidade da vida depois
da morte, prometendo aos que trilharam o Caminho da Luz, os
“Filhos da Luz”, a paz eterna e os deleites do Paraíso. Já para os
“filhos das Trevas”, ficam reservados a dor e o sofrimento nas altas
temperaturas do inferno, tudo após serem julgados por Deus.
CAPÍTULO III
Século XXI – O século do terrorismo

Em 11 de setembro de 2001, fui despertado por um chamado de


meu filho para assistir, na televisão, a algo que ele não estava
entendendo se era realidade ou ficção. Para meu espanto, o que
passei a assistir a partir daquele momento foi uma sucessão de
quatro ataques terroristas em pleno coração dos Estados Unidos da
América, Nova Iorque e Washington. Naquele momento, 19
terroristas que pertenciam à organização terrorista Al-Qaeda haviam
sequestrado quatro aviões e passaram a lançá-los contra alvos de
grande simbolismo para os norte-americanos, matando cerca de
3.000 pessoas.
Dois desses aviões, o American Airlines Flight 11 e o United
Airlines Flight 175, foram lançados sobre as torres norte e sul do
World Trade Center, em Nova Iorque, símbolo do poder econômico
dos EUA, que acabaram desabando. O terceiro avião, o Voo 77,
destinava-se a destruir o Pentágono, símbolo do poder militar
daquele país, mas atingiu apenas um pequeno setor. O último, o
United Airlines Flight 93, tinha como alvo o símbolo do poder
político, o Capitólio, em Washington, mas os terroristas não
conseguiram realizar seu intento graças à ação dos passageiros,
que buscaram dominá-los e fizeram com que o avião caísse em um
campo na Pensilvânia.
Infelizmente, após o 11 de setembro, grandes ataques terroristas
voltaram a acontecer, destacando-se os que atingiram a sede da
ONU em Bagdá (agosto de 2003); quatro trens em Madrid (março de
2004); um escritório e vários apartamentos em Al-Khobar, na Arábia
Saudita (maio 2004); o metrô de Londres (julho de 2005); uma zona
litorânea e um centro comercial em Bali (outubro de 2005); vários
locais de Mumbai (novembro 2008); os hotéis Marriott e Ritz-Carlton,
em Jacarta (julho 2009); e o metrô de Moscou (março 2010), além
dos ataques de janeiro e novembro de 2015 em Paris.
Antes de o Estado Islâmico exibir suas atrocidades, o
protagonismo foi da Al-Qaeda, que promoveu o 11 de setembro nos
EUA e os atentados em Madri e em Londres. Antes dela, porém,
quem estampava as manchetes de jornais do mundo todo era o
grupo libanês Hezbollah e os palestinos do Hamas. Mas antes do
Hamas existiram muitos outros grupos.
Apesar de todo o destaque dado às ações do Estado Islâmico,
a Europa teve mais ataques terroristas e mais mortes deles
decorrentes nas décadas de 70 e 80; antes, portanto, do EI existir.
Para os terroristas, estava iniciado o século de grandes ações
espetaculares que levariam medo e intranquilidade ao mundo
inteiro, principalmente aos habitantes dos Estados Unidos e dos
países europeus. Também, e por mais incrível que pareça, estava
sendo dado mais um passo no sentido de acelerar o desfecho de
um evento muito esperado por algumas lideranças das
organizações terroristas: O Fim do Mundo.

A ameaça terrorista

O fim da Guerra Fria no final da década de 1990 levou o mundo


a um novo ambiente de segurança global, marcado pelo maior foco
nas guerras internas do que nas guerras entre Estados.
O início do século XXI marca o surgimento de novas ameaças
globais que desafiam a comunidade internacional. Dentre elas, vem-
se destacando aquele mais imprevisível: o terrorismo. Em razão de
sua capacidade de se fazer presente em qualquer lugar do Globo e
de gerar medo e insegurança às populações dos diferentes países,
o terrorismo passou a constituir uma das principais ameaças à paz e
à segurança internacional na atualidade.
Os atentados da Al-Qaeda, em 11 de setembro de 2001, no
coração dos Estados Unidos, seguidos dos atentados no Continente
Europeu, que deixaram um grande número de vítimas, fez com que
o Ocidente despertasse para essa ameaça, agora mais próxima,
cujos meios de execução e estratégia utilizadas são variadas e
imprevisíveis, mostrando a vulnerabilidade dos países.
Os ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos foram uma
clara demonstração do desafio postado pelo terrorismo
internacional, quando homens sem nenhuma consideração à vida, a
sua e a do próximo, motivados apenas pelo ódio decorrente de suas
frustrações ou crenças religiosas, debocharam do poderio bélico das
grandes potências, mostrando quão simples é causar danos físicos
e psicológicos a baixo custo. Outros eventos, posteriores,
aumentaram a preocupação com a possibilidade de utilização de
armas nucleares e de outras armas não convencionais, pelos
Terroristas.
O terrorismo não é um fenômeno novo na história da
humanidade. A violência tem sido utilizada ao longo dos séculos
como instrumento na luta pelo poder e executada por reis, príncipes,
ditadores e outras lideranças políticas. No entanto, esse tipo de
violência se diferencia do terrorismo moderno, caracterizado pelo
uso de violência não apenas contra combatentes militares, mas
também entre os civis, com a deliberada intenção de causar terror e
pânico na população.
Sua expansão, na última década, está diretamente relacionada
ao crescimento de uma vertente islâmica que explora e difunde, à
exaustão, uma interpretação radical do Islã e de suas vertentes
apocalípticas, e que se opõe a qualquer tipo de intervenção no
universo dos valores muçulmanos, pregando o uso da violência –
guerra santa (Jihad) – como forma de defender, expandir e manter a
comunidade islâmica mundial.
Como dissemos, o terrorismo não é um fenômeno exclusivo dos
séculos XX e XXI. Ele pode ser assinalado há cerca de 2000 anos, à
época de Jesus, na Palestina, onde os zelotes utilizavam-se dessa
forma de luta contra a dominação Romana. Mas o uso dos termos
“terrorismo” e “terrorista” vai ocorrer apenas em 1795, relacionando-
se ao reinado de terror instituído pelo governo francês e usado para
descrever as ações dos jacobinos durante a Revolução Francesa.
Pouco a pouco, o termo “terrorismo” passou a ser aplicado às
atividades revolucionárias violentas em geral, mas sua utilização em
um sentido antigoverno vai aparecer em 1866, referindo-se à
Irlanda; e em 1883, referindo-se à Rússia.
De lá para cá, as atividades terroristas só vêm aumentando,
sendo hoje uma ameaça crescente que desperta preocupações
globais, haja vista que somente em 2014 mais de 32 mil pessoas
foram mortas em decorrência de atentados terroristas. Esse foi o
número mais alto registrado, de acordo com o Relatório Índice do
Terrorismo Global – 2015, lançado em Londres em 17 de novembro
de 2015, produzido pelo Instituto de Economia e Paz, um grupo de
análise internacional baseado na Austrália. Um aumento de 80% em
relação a 2013, quando terroristas mataram cerca de 18 mil
pessoas.
O Relatório destaca que os ataques terroristas estão
concentrados geograficamente em apenas cinco países, onde
ocorreu a maioria das mortes relacionadas em 2014: Afeganistão,
Iraque, Nigéria, Paquistão e Síria, que registraram 78% das mortes
e 57% de todos os ataques. Dentre esses, o Iraque destacou-se
com cerca de 10 mil mortes, o maior número já registrado em um
único país.
Ele destaca também que, com base nos dados do Banco de
Dados Global Terrorism Database, apenas dois grupos terroristas,
ISIS (atual EI) e Boko Haram, são corresponsáveis por 51% de
todas as mortes ocorridas em ataques terroristas reivindicados por
esses grupos. O Boko Haram, que prometeu sua lealdade ao EI,
tornou-se o grupo terrorista mais mortífero do mundo, causando
6.644 mortes em comparação com as 6.073 reivindicadas pelo EI.
Apesar do destaque que a mídia ocidental dá aos atentados
terroristas, apenas 2,6% das mortes em ataques de terror do século
21 ocorreram em países ocidentais, aí incluindo Estados Unidos,
Canadá, Austrália e países europeus. Excluindo-se aqueles que
morreram no 11 de Setembro, esse número é de apenas 0,5 %.
Apesar de os ataques em larga escala coordenados por grupos
terroristas internacionais (tais como o 11 de setembro e o recente
ataque mortal em Paris) chamarem grande atenção da mídia,
aqueles praticados pelos chamados lobos solitários – indivíduos ou
pequenos grupos de trabalho sem a ajuda de uma organização
maior – são responsáveis por 70% das mortes do terrorismo no
Ocidente, e esse número está aumentando. O atentado na Boston
Marathon é um exemplo de um ataque de lobo solitário, como foram
também os de 2011, na Noruega, que mataram 77 pessoas.
Relatório do Bureau de Contraterrorismo do Departamento de
Estado dos EUA aponta que houve 423 ataques terroristas
internacionais em 2000, um aumento de 8% em relação aos 392
ataques registrados durante 1999. Desde o ano 2000, o terrorismo
já causou a morte de cerca de 140 mil pessoas, aproximadamente
o mesmo número de pessoas mortas pela bomba atômica lançada
em Hiroshima pelos Estados Unidos da América em 1945. Enfim, o
ano de 2014 foi considerado o mais mortífero do século XXI.
Além do seu custo em vidas humanas, também tem aumentado
o custo econômico do terrorismo. Reconhecem os especialistas as
dificuldades para avaliar precisamente o impacto econômico do
terrorismo, pois é difícil avaliar, além dos custos diretos dessa
atividade (como a perda de vidas humanas e danos à propriedade),
os efeitos indiretos, como a redução da produtividade.
A França, por exemplo, perdeu a visita de milhares de turistas
em razão dos atentados terroristas de novembro de 2015. O que
está claro é que 2014 viu um grande aumento nos custos
associados ao terrorismo.
O relatório do Instituto de Economia e Paz estima que,
tomando-se por base aquele ano, o terrorismo custou à economia
global cerca de US52.900.000.000, não incluindo aí os
US114.000.000.000 que as agências de Inteligência e Segurança
Nacional dos diferentes países gastam no combate ao terrorismo.
No entanto, o mais perigoso e aparentemente incompreensível é o
ataque aos valores espirituais do Ocidente. A interpretação
equivocada de textos sagrados feita por grupos de terroristas impele
a uma cruzada religiosa de morte contra outras religiões,
principalmente o judaísmo e o cristianismo, não se admitindo
qualquer outra verdade que não seja a deles.

O que é terrorismo

A Organização das Nações Unidas (ONU) não se arrisca a dar


uma definição clara de terrorismo, preferindo dizer que

atos criminosos pretendidos ou calculados para provocar um


estado de terror no público em geral, num grupo de pessoas ou
em indivíduos para fins políticos são injustificáveis em qualquer
circunstância, independentemente das considerações de ordem
política, filosófica, ideológica, racial, étnica, religiosa ou de
qualquer outra natureza que possam ser invocadas para
justificá-los.

O art. 2º do projeto da Convenção Global sobre Terrorismo


Internacional da ONU faz a seguinte definição universal de
terrorismo:

Quando o propósito da conduta, por sua natureza ou contexto, é


intimidar uma população, ou obrigar um governo ou uma
organização internacional a que faça ou se abstenha de fazer
qualquer ato. Toda pessoa nessas circunstâncias comete um
delito sob o alcance da referida Convenção, se essa pessoa,
por qualquer meio, ilícita e intencionalmente, produz: (a) a morte
ou lesões corporais graves a uma pessoa ou; (b) danos graves
à propriedade pública ou privada, incluindo um lugar de uso
público, uma instalação pública ou de governo, uma rede de
transporte público, uma instalação de infraestrutura, ou ao meio
ambiente ou; (c) danos aos bens, aos locais, às instalações ou
às redes mencionadas no parágrafo 1 (b) desse artigo, quando
resultarem ou possam resultar em perdas econômicas
relevantes.

A ABIN segue a definição elaborada pela Comissão de


Relações Exteriores e Defesa Nacional (Creden) da Câmara dos
Deputados, que define terrorismo como:

[...] ato de devastar, saquear, explodir bombas, sequestrar,


incendiar, depredar ou praticar atentado pessoal ou sabotagem,
causando perigo efetivo ou dano a pessoas ou bens, por
indivíduos ou grupos, com emprego da força ou violência, física
ou psicológica, por motivo de facciosismo político, religioso,
étnico/racial ou ideológico, para infundir terror com o propósito
de intimidar ou coagir um governo, a população civil ou um
segmento da sociedade, a fim de alcançar objetivos políticos ou
sociais.

Também é o ato de:

Apoderar-se ou exercer o controle, total ou parcialmente,


definitiva ou temporariamente, de meios de comunicação ao
público ou de transporte, portos, aeroportos, estações
ferroviárias ou rodoviárias, instalações públicas ou
estabelecimentos destinados ao abastecimento de água, luz,
combustíveis ou alimentos, ou à satisfação de necessidades
gerais e impreteríveis da população. Trata-se de ação
premeditada, sistemática e imprevisível, de caráter
transnacional ou não, que pode ser apoiada por Estados,
realizada por grupo político organizado com emprego de
violência, não importando a orientação religiosa, a causa
ideológica ou a motivação política, geralmente visando destruir
a segurança social, intimidar a população ou influir em decisões
governamentais.
De acordo com o Cmt. Int. Paulo de Tarso Resende Paniago, da
Agência Brasileira de Inteligência, não existe consenso acerca da
definição de terrorismo. Apesar dos esforços da ONU para criar uma
definição, ainda não foi estabelecido um critério único para todos os
países, haja vista a dificuldade decorrente do fato de que uma
determinada definição de terrorismo possa servir a interesses
políticos, algumas vezes, desfavoráveis a outros Estados. Por isso o
estabelecimento de um consenso acerca do tema fica prejudicado.
A definição preferida pelo Departamento de Estado dos EUA
para terrorismo é:

[...] violência premeditada, politicamente motivada, perpetrada


contra alvos não combatentes por grupos subnacionais ou
agentes clandestinos, geralmente destinada a influenciar uma
audiência.

Já o FBI define terrorismo como o “uso ilegal de força ou de


violência contra pessoas ou bens para intimidar ou coagir um
governo, a população civil, ou qualquer segmento, na consecução
desses objetivos políticos ou sociais”.
No entanto, para os não especialistas, a definição técnica do
terrorismo não é de grande importância. Interessa sim o impacto
que seus atos tenham na vida, na propriedade e no modo de vida
das pessoas. Que o digam aqueles que sofreram os atentados nas
Torres Gêmeas do World Trade Center em 11 de setembro de 2001.
Mas... quais seriam as razões que poderiam levar pessoas ou
grupos a práticas que violentam nossa visão de civilidade?

Causas do terrorismo
Para a especialista Amy Zalman, especialista em terrorismo
global, existem duas causas principais para o terrorismo:
• a injustiça social e política: as pessoas escolhem o terrorismo
quando estão tentando reverter uma situação que percebem ser
uma injustiça social, política ou histórica em que tenham seus
direitos negados;
• a crença de que a violência ou sua ameaça será eficaz para
obter as mudanças pretendidas. Outra maneira de dizer isto é: a
crença de que meios violentos justificam os fins pretendidos. Muitos
terroristas declararam sinceramente que escolheram a violência
após longa deliberação, porque sentiram que não tinham outra
escolha.
Amy Zalman aponta ainda os seguintes motivos para o
terrorismo:

Político
• O terrorismo é empregado em um contexto da insurgência e
guerra de guerrilha. É uma forma de violência política organizada
por um exército ou grupo não estatal, em que seus promotores
utilizam o terrorismo como forma de modificar a organização atual
da sociedade. Nele se verificam grandes hostilidades sociais e
queixas entre os diferentes grupos étnicos, religiosos e linguísticos.
A presença de violência patrocinada pelo Estado, tais como
execuções extrajudiciais, terror político e abusos graves dos direitos
humanos são elementos que favorecem a opção pelo terrorismo.
Essa afirmação pode ser comprovada pelo Relatório do Instituto
para a Economia e Paz, publicado em novembro de 2015, segundo o
qual 92% de todos os ataques terroristas, entre 1989 e 2014,
ocorreram em países onde a violência política por parte do governo
foi generalizada, enquanto 88% de todos os ataques terroristas,
entre 1989 e 2014, ocorreram em países que estavam envolvidos
em conflitos violentos.
Estratégico
O emprego do terrorismo é escolhido como uma tática a serviço
de um objetivo maior. Nessa forma de luta, o mais fraco busca obter
vantagens contra exércitos mais fortes ou contra os poderes
políticos.

Psicológico (Individual)
Nesta modalidade, a autora tenta identificar se as motivações
psicológicas que levam um indivíduo a optar pelo terrorismo não
estariam relacionadas a uma determinada patologia psicológica.

Psicologia de grupo/Sociológico
Entende-se, neste caso, que os grupos, e não os indivíduos,
são a melhor maneira de explicar fenômenos sociais como o
terrorismo. Essas ideias, que ainda se encontram em elaboração,
procuram analisar a sociedade e as organizações em termos de
redes de indivíduos, e como as pessoas passam a se identificar tão
fortemente com um grupo, que chegam a perder o senso individual.

Socioeconômico
As explicações socioeconômicas do terrorismo sugerem que a
pobreza, a falta de educação ou a falta de liberdade política são
elementos que facilitam o recrutamento de pessoas para o
terrorismo. Alguns estudos revelam que as taxas de pobreza, os
níveis de escolaridade e a maior parte dos fatores socioeconômicos
associados ao terrorismo diferem entre os países mais e menos
desenvolvidos. No Ocidente, fatores socioeconômicos como o
desemprego juvenil e os crimes ligados às drogas se correlacionam
com o terrorismo. Nos países mais pobres, o terrorismo mostra
associações mais fortes com conflitos em curso, corrupção e
violência.

Religioso
Especialistas em terrorismo começaram a perceber, na década
de 1990, que uma nova forma de terrorismo alimentado pelo fervor
religioso estava em ascensão. As ideias religiosas como o martírio e
o Armagedon são escolhidas seletivamente e interpretadas
seletivamente de forma a buscar justificação nos conceitos e textos
religiosos para apoiar o terrorismo.
Na verdade, o terrorismo nasce e se nutre em países onde
geralmente todos esses fatores estão associados, destacando-se as
hostilidades sociais entre os diferentes grupos étnicos, religiosos e
linguísticos, graves abusos dos direitos humanos por parte do
Estado, com elevados níveis de violência, bem como a falta de um
Estado de Direito.
De todas as causas acima apresentadas, vamos nos
aprofundar no fator religioso, por entender que ele tem um grande
peso nos discursos e nas práticas de muitos líderes terroristas do
Oriente Médio, em particular os do Estado Islâmico (EI), chegando
a influenciar até mesmo dirigentes e lideranças políticas de alguns
outros países da região. Trataremos mais especificamente do
Estado Islâmico, analisando-o por duas vertentes que
fundamentam sua ideologia: o jihadismo e o wahabismo.
Para compor esse emaranhado de ideias que povoam a mente
de seus dirigentes e militantes é necessário ter uma visão acerca
da chamada Jihad islâmica, sobre o pensamento escatológico
islâmico e principalmente sobre alguns conceitos importantes em
sua crença, que muito se assemelha à dos cristãos: o “Fim dos
Tempos”, o “Juízo Final”, a “Ressurreição” e o “Julgamento Divino”.

A Jihad islâmica

Ultimamente se ouve falar muito em Jihad e Jihad islâmica,


apenas no sentido de uma guerra santa realizada por terroristas
islâmicos contra seus opositores, em particular os países ocidentais.
No entanto, o conceito de Jihad tem dois significados para o
islamismo: o primeiro implica uma luta interior pela melhoria
pessoal, que deve ser balizada pelo estrito respeito e cumprimento
das leis do islamismo, baseada nos ensinamentos do profeta
Maomé; implica também, a exemplo do que busca o cristianismo,
uma luta para transformar a humanidade por meio de um padrão
superior de pensamentos e ações, também sob a luz do Islã. Acima
de tudo, essa luta, ou esforço, objetiva desenvolver o espírito da
submissão a Deus, ou Alá.
No seu segundo significado, que tem sido muito mal-empregado,
a Jihad externa implica o emprego da força para levar os conceitos
de Maomé a outros povos do mundo não islâmico, como também fez
o cristianismo no passado. Representa o dever dos muçulmanos de
disseminar a fé muçulmana.
Vemos assim que a Jihad, no seu sentido mais espiritual, é
muito semelhante aos esforços preconizados tanto pelo cristianismo
como pelo hinduísmo, e mesmo pelo zoroastrismo, de tornar o
homem e o mundo melhores. Mas esse conceito sofreu
modificações pelos atuais movimentos terroristas que assolam o
Oriente Médio, que utilizam a ideia de uma Jihad islâmica, a
chamada Guerra Santa, contra todos os seus opositores, seja no
campo político como no religioso. Sobre essa vertente, cabem
alguns comentários.
Segundo Richard Landes, professor de História Medieval na
Universidade de Boston, o principal objetivo do jihadismo moderno,
que ele diz ser um movimento apocalíptico cataclísmico, é o domínio
do Islã no mundo todo, pois enquanto essa religião não for
implantada em todos os lugares, não haverá paz, algo semelhante
ao que diziam os antigos comunistas da União Soviética, os quais
afirmavam que era necessário que o comunismo fosse implantado em todo o
mundo, com a destruição completa do capitalismo, para que houvesse paz.
Para Landes, a versão moderna dessa antiga concepção do
islamismo se manifesta de duas formas: a primeira, por uma
violência explicita, que ocorre na maioria dos lugares onde maiorias
muçulmanas partilham fronteiras com outra cultura; a segunda, pela
demonização de seus adversários, mediante argumentos
milenaristas ou apocalípticos.
Landes explica que em culturas monoteístas e modernas, o
pensamento apocalíptico muitas vezes envolve antissemitismo e
exterminacionismo, conforme visto no holocausto dos judeus, que
para ele foi um ato apocalíptico. O jihadismo seria o exemplo
contemporâneo principal desse pensamento.
Para Amós Oz, escritor israelense cofundador do movimento
pacifista “Paz Agora”, vivemos em uma sociedade maniqueísta,
dividida entre o bem e o mal, branco ou preto, que representa uma
generalização da infantilização da espécie humana, de uma
sociedade baseada na satisfação e no gozo imediato, hedonista e
egoísta, que busca criar a ilusão de felicidade duradoura. Para ele,
trata-se de uma sociedade que consome uma cultura baseada na
ideia de “bandidos” e “mocinhos”, presente nos filmes de faroeste
americanos, que busca imortalizar a noção de “foram felizes para
sempre”. No entanto, o fanatismo é o sinal do desespero.
Para o historiador britânico Anthony Pagden, em sua análise
sobre os problemas do mundo contemporâneo, o alvo dos ataques
extremistas é o iluminismo. Ele adverte, porém, que é nele que
encontramos o antídoto contra esse mal. Diz esse autor:

Por mais que seus valores estejam sendo atacados por


elementos como os fundamentalistas americanos e o islamismo
radical – e inclusive não tão radical – isto é, pela religião
organizada, o iluminismo continua sendo a força intelectual e
cultural dominante no Ocidente. O iluminismo continua
oferecendo uma arma contra o fanatismo.

Oferecendo uma solução para o problema dos radicais


religiosos, Pagden ensina que “escapar da religião como uma forma
de organização foi o passo verdadeiramente original da
modernidade e do iluminismo”. Em crítica ao fanatismo religioso, ele
defende a existência de valores humanos comuns que não
dependam de nenhuma fé religiosa, e que os seres humanos
possam “libertar-se das restrições do tipo de normas morais
interessadas oferecidas pelas comunidades religiosas e suas
análogas ideologias laicas: o comunismo, o fascismo e, agora,
inclusive, o comunitarismo”.

A escatologia islâmica

O Islã é uma religião que procura unir os aspectos espirituais e


materiais da vida e regular não só a relação do indivíduo com Deus,
mas também as relações humanas na sociedade. Por isso,
podemos dizer que não existe apenas uma instituição religiosa
islâmica, mas também uma sociedade islâmica governada por
preceitos religiosos. Esse duplo caráter religioso e social do Islã
expressaria a vontade de Deus, que governaria seu povo mediante
seu próprio sistema de valores. Esse entendimento vai influenciar
fortemente o pensamento e as ações de muitos terroristas islâmicos,
como veremos, principalmente o pensamento apocalíptico, que
nada mais é do que a crença de que uma transformação cósmica do
mundo é iminente. Essa transformação pode assumir duas formas:
na primeira, o mundo vai acabar totalmente (escatologia); a outra
implica o aparecimento de um Messias salvador que instaura na
Terra um reino de paz e abundância (messianismo).
Antes de falar sobre as profecias do fim dos tempos do Islã, é
interessante conhecer as bases escritas sobre as quais elas se
assentam, começando pelos dois livros mais sagrados do Islã: o
Alcorão e a Suna.
Segundo a crença islâmica, o Alcorão é uma compilação de
revelações feitas por Deus (Alá) ao profeta Maomé, através do anjo
Gabriel, a partir do ano de 610. Essas revelações tornaram-se os
fundamentos da nova religião que surgia – o islamismo. Por ser
analfabeto, segundo alguns pesquisadores, o profeta Maomé
recitava as revelações de forma oral. Elas teriam sido depois
passadas à forma escrita por seus colaboradores, num trabalho que
se estendeu por 23 anos, até a morte do profeta em 632 A.D.
Após a morte do profeta, além do Alcorão, surgiu um outro livro,
a Suna, que literalmente significa: um claro ou bom caminho a ser
trilhado. A Suna é baseada principalmente em duas fontes
diferentes das tradições islâmicas: a primeira, e mais importante
para os objetivos deste trabalho, é a chamada literatura Hadith, uma
compilação de tudo o que Maomé disse, aceitou ou condenou, e
que por isso se tornou um guia seguro para qualquer muçulmano. A
segunda, chamada de Sirat (ou Sirah), é uma palavra árabe que
significa biografia. No contexto da do Islã, Sirah representa uma
biografia do profeta Maomé. Se o Alcorão foi ditado diretamente por
Deus e a Suna teria sido divinamente inspirada, então ela serve de
base para a interpretação do livro sagrado do Islã.

Os Hadiths

De acordo com a Enciclopédia Britânica, Hadit (ou Hadith) é o


registro das tradições ou ditos do Profeta Muhammad. É considerado
uma importante fonte religiosa sobre a lei e orientação moral,
perdendo em autoridade apenas para o Alcorão. Pode ser definido
como a biografia de Maomé perpetuada na memória de sua
comunidade para a sua exemplificação e obediência. O
desenvolvimento do Hadith ocorreu durante os três primeiros séculos
da história islâmica e seu estudo fornece um amplo leque de
ensinamentos sobre o espírito do Islã.
Sendo um registro das palavras e dos atos de Maomé, como foi
narrado por aqueles que estiveram em contato próximo com ele, o
Hadith é considerado uma parte importante da lei islâmica e seus
ensinamentos têm quase o mesmo peso daqueles contidos no
Alcorão.
Os Hadiths, não são considerados revelações partidas
diretamente de Alá, mas sim exaradas por Maomé e por outras
figuras respeitadas do Islã. Como o Alcorão fala muito pouco sobre
o “fim dos tempos”, os Hadiths são a principal fonte da escatologia
islâmica.
Em seu livro The Last Trumpet (A Última Trombeta, em tradução
livre), o pesquisador da escatologia islâmica Samuel Shahid realiza
um estudo comparativo entre a escatologia do Islã e a do
Cristianismo, tentando provar que os principais conceitos de
escatologia islâmica foram emprestados a partir das escrituras
hebraicas do Novo Testamento cristão e dos conceitos de
zoroastrismo. Segundo Shahid, os Hadiths foram compilados numa
época em que as autoridades islâmicas estudavam muito a Bíblia e
a literatura e tradições cristãs.
As seis coleções que são aceitas por muçulmanos sunitas são
as compilações de al-Bukhari; Muslin Ibn al-Hajjaj; Ibn Maja; Abu
Dawud; al-Tirmidhi (compilados em torno dos anos 800 d.C); e al-
Nisai (cerca de 900 d.C.).
Muitas das passagens dessa literatura teriam sido adaptadas ao
Islã. Por isso vamos encontrar grande similitude entre a escatologia
judaico-cristã e a escatologia islâmica. No entanto, vamos focar
nossa análise nos Hadiths apocalípticos.
Embora pouco conhecido dos ocidentais, o Islã também contém
muitos ensinamentos e profecias semelhantes àquelas contidas no
Velho e no Novo Testamento e que contemplam uma tribulação final
e uma batalha épica que fará a divisão final entre justos e ímpios.
Grande quantidade de literatura apocalíptica sunita e xiita foi
baseada em tradições anteriores que depois foram autenticadas
pelos doutores islâmicos, sendo muitas delas o resultado de
momentos de grande turbulência política e social que passaram a
ser vistas como o cumprimento de profecias, da mesma forma como
ocorreu com outras religiões.
Um exemplo disso é o fim do califado, que foi interpretado como
o cumprimento de várias profecias que previam a vitória muçulmana
sobre os bizantinos e a conquista de Constantinopla.
Pode-se dizer que a visão apocalíptica do Islã contempla dois
elementos básicos: o apocalipsismo – uma visão de mundo segundo
a qual existe uma expectativa iminente de transformação total do
mundo – e o messianismo, definido como a expectativa do
surgimento de um salvador divino. Nessa visão está embutida a
descrição do Armagedon islâmico (também chamado de fitnah,
malāim ou ghaybah no Islã) e a profecia sobre a vinda de um
Messias, o Madhi, que surgirá depois que lutas sangrentas,
massacres e muita destruição acontecerem, quando finalmente as
forças do bem destruírem todo mal.
Esse conjunto de crenças está influenciando grandemente os
terroristas principalmente do Estado Islâmico, bem como
governantes do Irã. Para entender melhor o tamanho da influência
dessas crenças religiosas no comportamento e nas ações dos
terroristas, vejamos alguns componentes desse pensamento: o
Messias, ou Madhi; o advento do Djjal, ou anticristo; o Juízo Final,
ou Yawm ad-Dim; e a Ressureição dos Mortos, ou Al-Qiyamah, pois
o Islã ensina que depois da morte vamos ser ressuscitados para o
julgamento final de Deus.

O Mahdi

Em uma entrevista à imprensa, referindo-se ao discurso que


pronunciara em 22 de setembro de 2011, na 65ª sessão da
Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o
então presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, declarou que teve
uma experiência sobrenatural quando foi banhado por uma luz vinda
do céu ao iniciar o seu discurso, e que permaneceu sobre ele
durante toda a sua apresentação.
Nesse discurso, Ahmadinejad surpreendeu não só os
ocidentais, mas também muitos iranianos, quando, durante sua
primeira apresentação nas Nações Unidas, ele orou para o retorno
do Imã Oculto, o Mahdi, figura messiânica do islamismo xiita. Em
sua fala, que segundo o aiatolá Ahmad Jannati, então presidente do
Conselho de Guardiães, foi inspirada por Deus, Ahmadinejad fez
uma série de referências ao “poderoso Senhor” que vai acelerar o
surgimento do “prometido,” e que vai “encher este mundo com
justiça e paz”. Posteriormente, em outro discurso, Ahmadinejad
declarou que sentiu que sua principal missão seria “preparar o
caminho para o ressurgimento da glória do Imam Mahdi, para que
Alá apresse a sua reaparição”. O ex-presidente estava se referindo
ao esperado retorno do messias do Islã – o Mahdi –, profetizado em
diferentes Hadiths.
A exemplo do que acontece no cristianismo, a escatologia
islâmica também tem o seu Messias, O Mahdi – “O Guiado por
Deus”, o redentor que é profetizado no Islã e que governará o
mundo antes do Al-Qiyamah (o Dia da Ressurreição) e do Yawm ad-
Din (o Dia do Julgamento. A crença popular na próxima aparição do
Mahdi está profundamente enraizada nas tradições islâmicas
sunitas e xiitas.
Os islâmicos sunitas tradicionalmente associam o Mahdi a um
descendente oficial da família do Profeta Maomé. E muitos dizem
que o Mahdi, iluminado pela Luz de Deus, vai conquistar o mundo e
será adorado em todos os lugares.
Embora não se encontre nenhuma referência direta ao Mahdi
no Alcorão, muitas autoridades eclesiásticas xiitas afirmam que ele
é inferido, a partir de diversas tradições, como sendo uma das
principais figuras nos eventos apocalípticos do “fim dos tempos”:
será ele quem vai derrotar o Anticristo e criar um reino de paz
eterna, bondade e justiça. Será ele o enviado de Alá para livrar o
mundo das forças do mal, auxiliado nesse intento pelo próprio
Jesus, que no caso ocupa uma posição secundária em relação ao
Mahdi.
Em diversos Hadiths, é dito que o Mahdi é herdeiro dos
conhecimentos de todos os profetas; é onisciente e está dotado de
toda autoridade emanada de Deus. Assim ele fará seu julgamento
dos homens da seguinte forma: os povos da Torá, de acordo com a
Torá; entre as pessoas do Evangelho, de acordo com o Evangelho;
entre as pessoas dos Salmos, de acordo com os Salmos; entre o
povo do Alcorão, de acordo com o Alcorão, o que parece um pouco
estranho.
A maioria dos muçulmanos no mundo é sunita, enquanto a
minoria xiita, estimada em cerca de dez por cento, se distribui
principalmente no Irã, parte no Iraque e parte no Líbano. A diferença
principal entre esses dois ramos do Islã diz respeito à divisão
ocorrida no século X em relação à natureza da liderança teocrática
do Islã. Para os xiitas, o líder do Islã deveria ser um descendente do
profeta Maomé, enquanto os sunitas entendem que os líderes
deveriam ser escolhidos por consenso.
Os xiitas acreditam no livre-arbítrio e acreditam que seus líderes
espirituais têm autoridade para interpretar a lei islâmica, enquanto os
sunitas preferem o conceito da predestinação, acreditando na
interpretação da lei islâmica que foi concluída no século X. Para
estes, o Mahdi é o sucessor de Maomé, que ainda está por vir.
Para os xiitas, o Mahdi nasceu, mas desapareceu, devendo
permanecer escondido da humanidade até reaparecer no fim do
mundo, em uma época de caos, carnificina e muita confusão – e que
muitos acreditam ser a época atual –, para restabelecer a retidão e a
justiça. Esta é a crença conhecida como Ocultação, ou o Imã Oculto.
Dentro do ramo xiita do Islã, houve doze imãs, ou líderes
espirituais, designados por Alá. Estes começaram com o imã Ali,
primo de Maomé, o qual reivindicou a sucessão depois de sua
morte. Por volta do ano 868 D.C., nasceu o “Décimo Segundo Imã”,
Muhammad Ibn Hasan Ibn Ali (ou Maomé al Mahdi), mas como seu
pai sofria uma grande perseguição, ele foi levado a se esconder,
para sua própria proteção. Quando tinha 6 anos de idade, ele saiu
da clandestinidade por ocasião da morte de seu pai, mas voltou a se
esconder, para só retornar de forma sobrenatural, um pouco antes
do dia do “Juízo Final”, para erradicar toda a tirania e opressão,
trazendo harmonia e paz à terra.
Existem muitas semelhanças entre o que diz a Bíblia e a teologia
islâmica no que se refere ao Mahdi: na Bíblia vamos encontrar que o
reino do Anticristo governará o mundo por sete anos, o mesmo tempo
que, segundo o Islã, o Décimo Segundo Imã governará o mundo. Os
muçulmanos acreditam que haverá três anos de muita confusão antes
da aparição do Décimo Segundo Imã; e a Bíblia se refere a três anos
e meio de Tribulação antes de o Anticristo se revelar e enganar a
humanidade, prometendo paz, mas fazendo a guerra, diferentemente
do Décimo Segundo Imã, que trará a guerra para obter a paz.
Será o Mahdi que irá restabelecer a justiça no mundo. Algumas
tradições islâmicas dizem que sua chegada vai coincidir com a
segunda vinda de Jesus Cristo, que irá ajudá-lo a vencer o Dajjal, o
“Falso Messias” ou Anticristo, na interpretação cristã. Sua função
será a de governar por cinco, sete ou nove anos – a depender do
intérprete do Hadith –, período em que irá estabelecer um sistema
moral de justiça e equidade a partir do qual as crenças
supersticiosas serão eliminadas.
Aqui há grande semelhança com o Apocalipse do Novo
Testamento, segundo o qual todo mal será eliminado da Terra e
restará apenas uma religião: a do Cristo. Segundo os ensinamentos
dos xiitas, a aceitação de Jesus pelo Mahdi será a forma de unir os
dois grandes ramos da família de Abraão.
De acordo com alguns Hadiths, o Mahdi esperado será um
reformador, um estadista que irá revolucionar o mundo conforme os
princípios do Islã, estando-lhe reservado o papel de estabelecer um
novo califado. Neste ponto, vamos identificar uma ligação muito
estreita entre essas profecias do islamismo com a visão religiosa
dos terroristas do Estado Islâmico.
Segundo alguns estudiosos do Islã, o termo al-Mahdi foi
utilizado desde o início apenas como um epíteto honorífico e sem
qualquer significado messiânico. Ao longo da história, muitos
personagens da política no mundo árabe autoproclamaram-se ou
foram proclamados Mahdi pelos seus seguidores. Mesmo na
atualidade, algumas lideranças muçulmanas tentam enquadrar-se
nesse papel, e alguns muçulmanos chegaram a acreditar que
Osama Bin Laden seria o Mahdi esperado.
Yawm ad-Din
(O Dia do Juízo Final)

Os muçulmanos acreditam que no fim dos tempos, Deus


descerá do céu para julgar todos os seres humanos, os quais terão
de responder pelos atos que praticaram, sejam eles bons ou maus.
De acordo com esses atos, Deus os julgará, distribuindo
recompensa ou punição. Todo mundo vai se curvar diante de Deus,
que decidirá quem terá condições de ganhar o Paraíso (Jannah), ou,
ao contrário, será condenado às penas do inferno (Jahannam).
A descrição do Dia do Juízo, que não é especificado no Alcorão,
de forma semelhante às profecias bíblicas, prevê, para o fim dos
tempos, a ocorrência de terremotos, movimentação de montanhas,
movimentos no céu, o Sol deixando de brilhar, estrelas que cairão
sobre a terra, os oceanos fervendo, sepulturas sendo abertas, a
terra revelando segredos ocultos, e as pessoas tentando fugir da
“Ira Divina”.
Para o pensamento islâmico tradicional, o Dia do Juízo Final
será precedido de uma batalha cósmica entre as forças de Satanás,
representada pelo falso messias, o al-Dajjal, e as forças de Deus,
liderados pelo Mahdi, que estará acompanhado de Jesus.
Nesse tempo, o profeta Maomé irá interceder junto a Deus para
que os todos os fiéis possam entrar no Paraíso, e Ele deverá ceder
aos pedidos do profeta fazendo com que isso de fato aconteça.
Também os anjos e os profetas vão interceder em favor daqueles
que foram condenados ao inferno, e Deus, na sua misericórdia,
salvará aqueles que tiverem o mínimo de fé.
O conceito de Paraíso para muitos muçulmanos corresponde
àquele contido em diversas tradições espirituais que contemplam
sete céus. O céu é dividido em diversos níveis: no mais alto nível,
Maomé estará sentado à direita de Deus em sua morada eterna;
Jesus estará no nível seguinte, seguindo-se os demais níveis, onde
estarão presentes os grandes nomes do Velho Testamento, como
Adão, João Batista, José, Enoque, Abraão e Moisés.
Para o resto da humanidade está reservado um jardim
semelhante ao Éden, onde os eleitos gozarão de merecidas
benesses celestiais. O mais importante, no entanto, e que seduz
muitos candidatos a homens-bomba, é a ideia de que aos
muçulmanos fiéis serão concedidas 40 virgens para seu deleite.
Mas para aqueles que lutaram pela Jihad, a guerra santa, está
reservada uma recompensa melhor: 72 virgens. O mais
interessante ainda é que, independentemente de quantas vezes
essas virgens façam sexo, elas retornarão à virgindade, numa
espécie de hímen complacente. O sexo não terá limites e as festas
serão intermináveis. Tal perspectiva serve como um poderoso
estímulo para que jovens islâmicos pobres e desiludidos queiram
lutar na Jihad ou se explodir em atentados terroristas.
O conceito de inferno, por seu turno, também obedece a sete
níveis diferentes, compreendendo o conhecido purgatório dos
cristãos, por onde muitos muçulmanos terão que passar, sendo os
demais reservados a cristãos, judeus, idólatras, hipócritas etc., que
serão eternamente torturados por demônios.
O Yawm al-Qiyamah literalmente significa “O Dia da
Ressurreição”. De acordo com o Islã, nesse dia todos os mortos
serão ressuscitados e levados à frente de Deus para o julgamento
final. O Alcorão descreve esse dia como sendo de felicidade para os
crentes e de terror para aqueles que não acreditam em Deus.
A crença nessa teologia faz com que o mundo islâmico aguarde
ansiosamente o seu salvador, o Mahdi prometido, que vai unir o
mundo islâmico e investir contra todos os que se recusam a se
submeter ao Islã, criando assim a paz e a segurança eternas. Esse
líder messiânico também irá liderar todas as nações da Terra na
construção de um império mundial islâmico governado pelo “ungido
de Deus” que utilizará a Sharia, a lei islâmica, para a execução da
justiça, da paz e da felicidade geral. Ante a situação caótica reinante
no Oriente Médio e em outras regiões do Globo onde a comunidade
muçulmana se faz presente, nada poderia se encaixar melhor nos
discursos e práticas daqueles que veem no uso da violência a única
forma de escapar da miséria e da humilhação, ou de realizar seus
objetivos políticos disfarçados sob a capa da religião.

Os sinais dos tempos islâmicos

As declarações de Ahmadinejad (antes citadas) não são


baboseiras místicas partidas de alguém em estado delirante. Elas se
inscrevem perfeita e claramente no pensamento apocalíptico
islâmico que norteia as ações de muitos dirigentes e terroristas
islâmicos. Mas para entender melhor o pensamento atual, é
necessário voltar algumas décadas atrás.
Entre os anos de 1978 e 1979, o mundo muçulmano
experimentou turbulências políticas e sociais que culminaram na
Revolução islâmica comandada pelo aiatolah Khomeini, no Irã.
Observam alguns especialistas que aqueles anos marcavam o início
do ano islâmico de 1400, o início de um novo século. Para muitos
tradicionalistas, aqueles eventos apontavam um momento de
mudanças generalizadas, no qual o esperado messias, o Mahdi, iria
retornar para comandar a guerra final do Armagedon islâmico.
Esse momento também coincide com a invasão soviética do
Afeganistão para apoiar o governo marxista daquele país. Isso
causou um movimento de resistência dos chamados mujahidins
afegãos, pertencentes ao grupo miliciano radical islâmico do
Taleban, liderado pelo príncipe saudita Osama Bin Laden, que
contou com o apoio dos Estados Unidos, pois o mundo vivia o auge
da Guerra Fria e os EUA apoiavam qualquer inimigo da União
Soviética, e vice-versa. É desse movimento que nascerá a Al-Qaeda.
O êxito da revolução do aiatolá Ruhollah Khomeini, depondo o
Xá do Irã, Mohammad Reza Pahlevi (acusado de ocidentalizar o
país e se afastar do Islã), e transformando o país em uma república
islâmica teocrática, soou como um aviso de que os tempos previstos
no Apocalipse haviam chegado, sendo saudado com entusiasmo
pelos grupos xiitas conservadores, o que foi habilmente capitalizado
por Khomeini para mobilizar o povo de acordo com seus interesses.
Naquele momento da Guerra Fria, todos viam no Movimento
Comunista um mal maior a ser combatido. Esse foi o erro de Reza
Pahlevi, que considerava o movimento dos radicais islâmicos um
mal menor. Estes, por seu turno, cada vez mais acreditavam que a
influência dos valores ocidentais sobre a população era incompatível
com os preceitos do Islã.
Foram inúteis e tardios os esforços do Xá para diminuir a
influência do Islã sobre a população, fazendo-a voltar-se para o
brilho e esplendor do antigo Império Persa. Khomeini conduziu os
muçulmanos como se eles fossem as forças do bem e da justiça
marchando para uma batalha de vida ou morte contra as forças do
mal, as tropas do Xá.
Observadores do messianismo islâmico afirmam que, embora
não se autoproclamasse claramente como o 12º Imã esperado pelo
messianismo islâmico, conforme analisamos acima, Khomeini
utilizou-se dos Hadiths que proclamavam o retorno do Mahdi
esperado, colocando-se como o personagem que iria preparar o
caminho para o retorno do Messias. Esse comportamento
messiânico não foi seguido por seus sucessores, Akbar Hashemi
Rafsanjani (1989-1997) e Mohammed Khatami (1997-2005), e só
retornou com a ascensão de Mahmoud Ahmadinejad ao poder em
2005.
Mas todo esse movimento envolvendo profecias islâmicas que
indicam a chegada dos tempos finais anunciados têm antecedentes.
No Novo Testamento dos cristãos, é relatado no Evangelho de
Mateus (Mateus 24) que Jesus, o Mestre de Nazaré, ao ser
perguntado por seus apóstolos sobre quando seria o “fim dos
tempos” (que muitos interpretam erroneamente como o fim do
mundo), apresentou uma série de sinais, eventos cósmicos e
terrenos, que indicariam a chegada desse momento apocalíptico.
Aproximadamente 60 anos depois, Jesus se manifesta, por
intermédio do Apóstolo João, projetando em sua mente a descrição
desses acontecimentos terríficos, que ficaram registrados no Livro
do Apocalipse, o último do Novo Testamento.
Antes de João, há cerca de 650 anos a.C., o profeta Daniel,
quando exilado na Babilônia com grande contingente de judeus
cativos, também recebeu mensagens psíquicas em estado alterado
de consciência que se referiam ao mesmo evento: o fim dos tempos,
um período em que todos os chamados “pecados” contra Deus
seriam por Ele julgados. Os culpados seriam lançados no fogo do
inferno e aqueles que seguiram os preceitos divinos gozariam das
delícias do Reino de Deus. Esses eventos estão relatados no Livro
de Daniel, no Velho Testamento, que procurei analisar em
Decifrando as Profecias de Daniel.
Os muçulmanos também têm o seu fim dos tempos, a exemplo
dos cristãos, que inclui a ressurreição dos mortos e o julgamento
final entre bons e maus.
Da mesma forma que Jesus listou os indicativos que
prenunciavam a chegada do fim dos tempos, a literatura sagrada do
Islã também apresenta alguns sinais que prenunciam a chegada
desse terrível momento, sinais esses que estão sendo aproveitado
pelas organizações radicais islâmicas para embasar suas ações
político-religiosas.
Existem dois tipos de sinais que denunciam a chegada desse
importante momento da escatologia islâmica, que estão divididos
em sinais maiores e menores. Os sinais menores podem ser
encontrados em mudanças que se verificam no comportamento da
sociedade, como a liberalidade sexual, o afrouxamento nos valores
éticos e morais – como a corrupção – e a prostituição das religiões,
que tudo fazem por dinheiro. Também inclui o surgimento dos falsos
profetas e o aumento no número de guerras, da mesma forma como
foi preconizado no Apocalipse dos cristãos.
Um fato estranho, e ao qual já nos referimos, é o anúncio da
segunda vinda de Jesus, que deverá atuar apenas como um auxiliar
do messias islâmico, o Mahdi, que irá combater o Anticristo, o Dajjal
da literatura islâmica.
O Mahdi representa os anseios e a esperança de libertação e
prosperidade dos muçulmanos, principalmente xiitas, que se sentem
oprimidos e perseguidos, seja por inimigos políticos externos, seja
por inimigos religiosos, que podem ser da facção contrária à sua.
Tal como também acontece no Apocalipse, o livro do Novo
Testamento que narra com maiores detalhes esses momentos
cruciais do fim dos tempos, os Hadiths não trazem uma ordem
cronológica sobre a sequência desses eventos. É exatamente a falta
dessa cronologia que faz com que muitos clérigos do Islã e
lideranças terroristas façam a interpretação que mais atendam a
seus interesses políticos ou religiosos.
Vejamos, com mais detalhes, os principais sinais que anunciam
a proximidade do fim dos tempos.

A Aparição do Dajjal – Anticristo

De uma forma muito semelhante à descrição da Besta, no


Apocalipse, os Hadiths se referem também a um Anticristo, uma
figura tenebrosa que possui apenas um olho e deverá surgir
fazendo-se passar por profeta e afirmando ter descendência divina.
Segundo a tradição, ele enganará a muitos, por sua piedade e seus
milagres, e sairá com um exército de 70 mil judeus e 70 mil tártaros,
que conquistarão todo o mundo, exceto Meca e Medina. Também de
forma semelhante às profecias bíblicas, onde um dia tem o
significado de um ano, o reinado do Anticristo irá durar 40 dias (40
anos) e ele irá apresentar uma marca na testa onde estará escrita a
palavra “infiel”. Sua aparente bondade esconde toda a crueldade
que lhe inunda a alma, e sairá pelo mundo enganando os incautos e
espalhando guerras.
Seu reinado, no entanto, será destruído por Jesus, que
retornará à Terra para lhe dar combate, derrotando-o finalmente “na
porta de Ludd”, a moderna Lod, localizado perto de Tel Aviv. Para
muitos interpretes dos Hadiths, a derrota do Anticristo também
implica o fim do povo judeu, e talvez por isso o ex-presidente do Irã,
Mahmoud Ahmadinejad, desejasse tanto o fim dos judeus e
declarasse não acreditar no Holocausto.
Enquanto muitos no Ocidente não se preocupam com esse tipo
de coisa, em muitos países islâmicos tudo é levada a sério. Um
exemplo disso ocorreu em 2006, quando o próprio Ahmadinejad
alertou seu povo para a necessidade de estarem preparados para a
vinda do Mahdi, evitando adotar aquilo que ele considerava o lixo
ocidental, que infecta a fé islâmica, como a corrupção e a
libertinagem.

A segunda vinda de Jesus

Segundo o Alcorão, Jesus (ou Isa) não foi crucificado, não


morreu e não ressuscitou (Sura 4: 156-159). Ele foi levado ao Céu,
de onde retornará para acabar com o reinado do Anticristo, o Dajjal,
segundo acreditam os muçulmanos sunitas. Já para os xiitas, o
Dajjal vai cair nas mãos do Mahdi. Depois disso, vencido o Dajjal
por Jesus ou pelo Mahdi, ocorrerá a invasão de Gog e Magog,
apresentadas como duas nações que têm um vasto exército.
Jesus então começará um governo teocrático que durará 40
anos, durante os quais ele se casa e tem filhos. No fim desses 40
anos, Jesus morrerá e será enterrado ao lado de Maomé, onde,
como todo mundo, aguardará o dia da ressurreição. É interessante
notar que quando Jesus morrer, todos os crentes também morrerão.
Embora pareça uma estória louca e completamente
inverossímil, a narrativa contém elementos interessantes em que se
misturam o Velho e o Novo Testamento, combinados com o Alcorão
e os Hadiths.

A luta contra Gogue e Magogue


Nas Suras 18:23 e 21:96 do Alcorão são feitas referências a
Gogue e Magogue, apresentadas como duas nações com um
exército gigantesco que irá invadir a Palestina e sitiar Jesus e seus
seguidores, que clamarão pela ajuda de Deus para salvá-los. Em
resposta, Deus enviará insetos mortais para acabar com os infiéis,
de modo semelhante aos gafanhotos citados por João no capítulo 9
do Livro do Apocalipse, que irão acabar com os exércitos dos
adversários. Com a derrota de Gogue e Magogue, Jesus irá
proclamar o Islã como a única religião verdadeira, o que provocará a
conversão geral dos cristãos. Sob o governo sábio de Jesus, que
durará 40 anos, finalmente as guerras serão extintas, a paz se
instalará e haverá abundância para todos na face da Terra,
renovada sob o signo do Islã, já que todas as outras religiões irão
desaparecer, ou, como está inscrito em João, no Novo Testamento:
“e haverá um só rebanho e um só pastor” (João 10:16). Alguns
Hadiths também dizem que Jesus fará peregrinações frequentes à
Meca, e após sua morte será enterrado em Medina, ao lado do
profeta Maomé.

A aparição da Besta

O Islã também tem a sua “Besta”, figura muito presente no


Apocalipse de João, que simboliza todas as qualidades inferiores do
ser humano: a maldade, o ódio, a vilania, o orgulho, a vaidade, a
sede de poder e dinheiro, dentre outras. Ela simboliza também os
maiorais dos reinos infernais sintetizados na figura de Satanás.
Segundo alguns Hadiths, a Besta se expandirá por todo o mundo
usando o anel de Salomão e a vara de Moisés, difundindo a sua
mensagem anticristã, e aqueles que a rejeitarem terão inscritos, em
sua testa, a palavra “infiel”.

Sinais no céu e na terra


A literatura apocalíptica islâmica também se refere a
determinados sinais que marcarão a chegado do fim dos tempos.
Da mesma forma que Jesus previu grandes terremotos e o
obscurecimento da luz solar por três dias, também a crença islâmica
se refere a uma espécie de fumaça, ou escuridão, que vai
obscurecer o mundo todo, ao mesmo tempo em que ocorrem três
grandes abalos de terra. No entanto, o mais estranho é uma
referência a um grande milagre que irá acontecer: o Sol nascerá no
Ocidente, evento que consta em muitas profecias das civilizações
egípcias, maias e astecas.

A Ressurreição e as Três Trombetas

Segundo a tradição islâmica, um anjo – Israfil ou Israfel –, o


anjo da música, irá tocar a trombeta que vai anunciar o Dia da
Ressurreição. Diferentemente do Apocalipse de João, no qual o
toque de sete trombetas anuncia os eventos do fim dos tempos, o
apocalipse islâmico prevê o toque de três trombetas: a primeira,
chamada de “a trombeta do terror”, parece alertar para eventos
terríveis para a humanidade; a segunda, chamada de “a trombeta do
desmaio”, anuncia a morte de toda a humanidade, momento em que
todo o universo se torna vazio, até que Deus crie um novo céu e
uma nova terra, como também é previsto no Livro do Apocalipse.
Após isso, a terceira trombeta será tocada, marcando o “Dia da
Ressurreição”, quando as almas de todos os mortos reassumem
novos corpos. O profeta Maomé será o primeiro ser humano a ser
ressuscitado, devendo se assentar à direita de Deus.
CAPÍTULO IV
O Estado Islâmico – Sua gênese e desenvolvimento

O que teriam a ver profecias apocalípticas, histórias sobre o fim


do mundo e uma batalha final das forças do Bem contra o Mal com
o fenômeno terrorismo? A resposta está na gênese e no
desenvolvimento de uma organização terrorista que se destaca pela
brutalidade, violência e messianismo de seus dirigentes, o Estado
Islâmico.
Em 2014, o grupo jihadista Estado Islâmico (EI) despontou na
cena internacional quando passou a ocupar grandes faixas do
território da Síria e do Iraque, tornando-se notório também por sua
brutalidade, que incluía assassinatos em massa, fuzilamentos de
prisioneiros, crucificação de cristãos, sequestros e decapitações.
Mais preocupante para o Ocidente, no entanto, foram seus
atentados terroristas que passaram a se espalhar pelo mundo.
As perguntas mais frequentes que sempre se ouve quando
acontece um atentado terrorista praticado pelo Estado Islâmico são,
dentre outras: O que é o Estado Islâmico? Onde seus terroristas
atuam? Quais são as suas intenções? Por que são tão violentos? Por
que odeiam o Ocidente etc. Como é possível que em pleno século
XXI uma organização híbrida – religiosa e militar – que defende uma
filosofia religiosa completamente dissociada da realidade atual pode
ter conquistado e ainda administrar territórios importantes da Síria e
do Iraque e ainda se constituir uma ameaça para o Ocidente?
Apresentaremos, a seguir, uma sucinta descrição dessa organização,
considerada terrorista pelas nações ocidentais e verdadeiros
guerreiros libertadores por muitos povos do Oriente Médio.
Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL), Estado Islâmico
do Iraque e da Síria (EIIS), Daesh ou, simplesmente, Estado
Islâmico, sua denominação atual, é uma organização jihadista
islamita de orientação wahabita que vem atuando militarmente no
Oriente Médio e praticando ações de terrorismo em diversas partes
do mundo. Seu nome em árabe, ad-Dawlat al-Islāmiyah fī al-Irāq wa
sh-Shām, leva ao acrônimo Da’ish, ou Daesh.
A história do Estado Islâmico se inicia por ocasião das revoltas
dos muçulmanos do Afeganistão contra a invasão daquele país
realizada pelas tropas da extinta União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS), por meio da criação, em 1999, do Al-Tawhid wa
al-Jihad (Monoteísmo e Jihad, em árabe), pelo radical jordaniano
Abu Musab al-Zarqawi.
Este foi o embrião do movimento islâmico revolucionário que
alguns anos depois se tornaria conhecido como Estado Islâmico,
conquistando nacos dos territórios do Iraque e da Síria que logo
seriam anunciados como parte de um Califado. Mas o que mais se
destacava na organização eram suas práticas cruéis e sanguinárias
de assassinatos em massa e decapitações dos inimigos.
Para a maioria dos analistas de terrorismo, o Estado Islâmico é
o resultado da desastrada invasão do Iraque pelas tropas dos
Estados Unidos, em 2003, sob a acusação de que existiam ligações
entre o regime de Saddam Hussein e a Al-Qaeda. Na verdade, essa
organização só cresceu no Iraque em razão do vácuo administrativo
e de segurança provocado pela política americana de desmantelar o
Exército de Saddam Hussein e dissolver o partido que o sustentava
no poder, o partido Baath. Nada assegura, no entanto, que se não
tivesse ocorrido a invasão americana, o mesmo processo de conflito
político-religioso deslanchado pelo movimento chamado “Primavera
Árabe” também não ocorreria no Iraque, levando ao
desmantelamento de velhas ditaduras, como aconteceu.
Um ano após a invasão norte-americana, em 2004, Zarqawi
prometeu lealdade a Osama Bin Laden e formou a Al-Qaeda do
Iraque (AQI), que se tornou uma força importante na insurgência.
Após a morte de Zarqawi, em 2006, foi criada uma organização que
foi chamada de Estado Islâmico do Iraque (ISI). No entanto, esse
braço iraquiano da Al-Qaeda utilizou-se de tamanha violência na
guerra civil ocorrida no Iraque entre 2006 e 2007, que suas
atrocidades contra os xiitas, curdos, e mesmo sunitas e
estrangeiros, foram condenadas por parte da população. Sem o
apoio desta, o ISI foi sendo progressivamente enfraquecido, graças
também ao aumento das tropas americanas e da criação do Sahwa
(Despertar), uma espécie de conselho das lideranças tribais árabes
sunitas que rejeitavam a brutalidade do ISI e passaram a combater
a Al-Qaeda do Iraque ao lado das tropas regulares iraquianas e das
forças ocidentais, o que colaborou para diminuir a violência sectária
no país.
Após a morte de Zarqawi, em decorrência de um bombardeio
norte-americano, ele foi substituído por Abu Ayyub al-Masri e Abu
Omar al-Baghdadi, mortos, por sua vez, em 2010. Atualmente o líder
supremo do EI é Abu Bakr al-Baghdadi, figura pouco conhecida e
sobre a qual existem muitas dúvidas.
Em 2010, Baghdadi, começou a reestruturar a capacidade do
ISI, passando, em 2013, a aumentar o número de ataques no
Iraque. Com a eclosão da guerra civil na Síria, o ISI se juntou à
rebelião com a criação da Frente al-Nusra, e em abril do mesmo ano
Baghdadi anunciou a criação do “Estado Islâmico do Iraque e do
Levante” (ISIS), uma fusão de suas forças no Iraque e na Síria. Os
líderes da al-Nusra e Al-Qaeda rejeitaram esse movimento, mas
combatentes leais a al-Baghdadi abandonaram a al-Nusra e
ajudaram o ISIS a permanecer na Síria.
A grande vitória do ISIS ocorreu em dezembro de 2013, quando
conquistaram a importante e milenar cidade de Faluja, no Iraque,
contando com o apoio de antigos aliados de Saddam Hussein.
Posteriormente, em junho de 2014, eles invadiram Mossul, a terceira
maior cidade do Iraque, e depois avançaram para o sul, em direção
a Bagdá, massacrando seus adversários e ameaçando erradicar
muitas das minorias étnicas e religiosas do país. No fim daquele
mês, depois de consolidar seu domínio sobre dezenas de cidades e
vilas do Iraque e do Irã, o ISIS declarou a criação de um Califado e
mudou seu nome para Estado islâmico (EI).
Uma das estratégias para eliminar seus concorrentes,
implantada no EI pelo seu líder, Zarqawi, foi a visão fundamentalista
do Islã, que interpreta de forma extremada a ideia de “takfir”, ou
seja, a prática da excomunhão segundo a lei islâmica: um
muçulmano declara outro muçulmano como apóstata, infiel,
podendo assim levá-lo à morte. Esse argumento serviu para que
Zarqawi e seus seguidores eliminassem muitos de seus
concorrentes muçulmanos de facções contrárias.
A importância de Zarqawi no movimento foi tamanha que até
hoje a revista oficial do Estado Islâmico – Dabiq – cita em todas as
suas edições uma pretensa “profecia” de Zarqawi, em que ele diz:
“A fagulha foi acendida aqui no Iraque e seu calor vai continuar a
intensificar-se, se Deus assim permitir”.
A eclosão da guerra civil na Síria, em 2011, formou o campo
propício para as atividades dos membros da Al Qaeda do Iraque,
que lá procuraram conquistar nacos de território onde pudessem
exercer seu poder e aplicar a lei islâmica – a Sharia –, o que exigia
a criação de um Califado, o que efetivamente veio a acontecer em
29 de junho de 2014.
Muitas são as razões para o sucesso do EI, desenvolvendo-se
rapidamente e conquistando pedaços de outros países, mas uma
delas parece ser bem real, principalmente quando é apresentada
por um homem da área de Inteligência, especialista no assunto: o
general Michael Flynn. Esse general serviu ao Exército dos Estados
Unidos por mais de 30 anos, tendo desempenhado também as
funções de diretor da Agência de Inteligência de Defesa, o órgão
mais elevado na Inteligência militar daquele país, e de vice-diretor
de Inteligência Nacional no governo Obama. Flynn, que também
atuou como comandante das Forças Especiais dos EUA no
Afeganistão e no Iraque, no período 2004-2007, declarou em
entrevista ao jornal alemão Der Spiegel Online de 7 de dezembro de
2015 que a ascensão do Estado Islâmico e as emoções cegas do 11
de Setembro levaram os Estados Unidos na direção errada em
termos estratégicos.
Referindo-se às ações internacionais do EI realizando ataques
em Paris, no Líbano e contra um avião russo na Península do Sinai,
Flynn declarou, de forma bastante honesta, que apesar de haver
todo tipo de avisos estratégicos e alertas táticos, muitos relatórios, e
até mesmo declarações dos dirigentes do EI, de que atacariam no
exterior, simplesmente ninguém os levou a sério.
O general também dizia acreditar que existia uma estrutura de
liderança do EI em cada país da Europa e provavelmente nos
Estados Unidos, como os fatos vieram a confirmar posteriormente.
Osama Bin Laden recomendava que sua organização deveria
atuar de forma mais difusa e operar em pequenos grupos, porque
assim seria mais difícil serem detectados e teriam mais facilidade
para agir.
Numa estrutura horizontal em que não existe uma figura
principal no topo da hierarquia, ataques podem acontecer sem
serem coordenados ou autorizados pela liderança central do EI.

Wahabismo, a raiz ideológica do Estado Islâmico

De acordo com os especialistas, o EI pode ser denominado uma


organização wahabista. Mas o que isto quer dizer?
O chamado wahabismo surgiu no século 18, quando
Muhammad ibn Abd al-Wahhab, teólogo e fundador do movimento
wahabista, tentou fazer com que o Islã retornasse a seus princípios
verdadeiros, pois achava que os muçulmanos tinham se distanciado
da verdadeira mensagem do Islã.
Wahhab começou a pregar o reavivamento do Islã entre os
beduínos de Najdi, afirmando que o declínio do mundo muçulmano
foi causado pelas perniciosas inovações estrangeiras, incluindo o
modernismo europeu e também elementos do Islã tradicional que
eram simplesmente estranhos aos isolados beduínos de Najdi. Ele
aconselhava que o Islã deveria ser purificado dessas influências,
colocando sua ênfase principal no tawhid (monoteísmo), e condenou
muitas das práticas muçulmanas tradicionais. Mas o que teve uma
forte influência sobre os terroristas do EI foi sua ênfase na Jihad.
A pregação de Wahhab não agradou à população local, que
acabou por expulsá-lo. Mas ele logo encontrou apoio junto ao
homem que governava uma pequena cidade vizinha, Muhammad
Ibn Saud, com quem fechou um acordo, em 1744, que iria
influenciar toda a região: Ibn Saud se comprometeu a apoiar Al
Wahhab política e militarmente. Assim conquistaram várias cidades,
sendo que no fim do século 18 já controlavam quase toda a
Península Arábica. Essa divisão de poder foi exitosa, pois enquanto
Muhammad Ibn Saud governava politicamente, al Wahhab colocava
em prática o que acreditava ser a verdadeira prática do Islã.
Essa visão rígida e conservadora de Wahhab, adotada nos dias
de hoje, levou os especialistas a classificá-lo como “o pai ideológico
do Estado Islâmico”. Para o professor Bernard Haykel, especialista
em Teologia e Lei Islâmica, o wahabismo “sempre foi descrito
popularmente como a mãe de todos os movimentos
fundamentalistas”, pois interpreta os textos islâmicos de uma forma
extremamente literal, condenando os outros muçulmanos que não
compartilhem dessa ideologia, diz Haykel.
Na concepção de Brahma Chellaney, em artigo na revista
Negócios, de 5 de janeiro de 2016, o wahabismo promove a
subjugação da mulher e a morte dos “infiéis”, e sua interpretação
perversa do Islão lhe dá o papel de mãe ideológica do terrorismo
jihadista, servindo de inspiração para organizações como a Al-
Qaeda, os Talibãs, o Boko Haram, a al-Shabaab, e o Estado
Islâmico, todos demonstrando grande hostilidade em relação aos
muçulmanos não sunitas e defendendo “um antimodernismo
romântico que remete para uma fúria niilista”, diz Chellaney.
Dessa união entre Saud e Wahhab surgiu a Arábia Saudita,
sendo essa a razão daquele país ainda ser um regime muito
fechado, seguindo um islamismo rigoroso. A divisão de poderes
ainda continua até hoje: o rei governa o Estado e os clérigos
dominam a religião, ensinando o respeito e a obediência aos
dirigentes. Uma composição boa para ambos os lados.
Analistas acreditam que essa fórmula serviu de antídoto contra
os movimentos revolucionários que surgiram nas décadas de 1960 e
1970 pelo mundo árabe.
Hoje a Arábia Saudita – que é uma monarquia absoluta
teocrática – é um grande polo irradiador do islamismo wahabista,
investindo grandes somas em dinheiro com o objetivo de difundir
sua visão do Islã por todo o mundo e assim conquistar adeptos.
Muitos analistas consideram o radicalismo da corrente wahabista
vigente na Arábia Saudita – considerada a mais radical do mundo
islâmico – responsável por muitos dos grupos extremistas que
atuam no Oriente Médio e em outras partes do mundo.
Alguns afirmam que, ao exportar o wahabismo, a Arábia Saudita
ajudou voluntariamente a conseguir recrutas para o Estado Islâmico.
Afirma Madawi al Rasheed, especialista em assuntos do Oriente
Médio, para quem a participação de jovens sauditas nos conflitos da
Síria e do Iraque não é surpreendente nem um acidente histórico:

O que vimos foi a propagação de uma linguagem revolucionária


que inspirou alguns indivíduos a cometer atrocidades em nome
do Islã.

De acordo com Rasheed, o regime da Arábia Saudita aprisionou


seus islamistas muçulmanos moderados e permitiu que seus radicais
fossem provocar o caos no Levante. Para ele, é incerto se os
radicais são direta ou indiretamente patrocinados pelo regime
saudita, mas o certo é que o regime difunde o seu ódio aos
muçulmanos xiitas dos regimes da Síria, do Iraque, do Líbano e do
Irã. Mas um fato inegável para ele é que, de Beirute a Bagdá,
radicais sauditas que se juntam ao EI e a outros grupos semelhantes
estão determinados a eliminar os seus inimigos e estabelecer o seu
Estado islâmico.
A criação da Arábia Saudita moderna é vista por Rasheed como
um projeto jihadista desde o início. A juventude saudita é doutrinada
na narrativa jihadista de que aquele país surgiu como resultado dos
esforços de um líder piedoso que salvou seu povo da blasfêmia e
erradicou crenças e práticas não islâmicas. Criado por jihads, o
governo da Arábia Saudita fecha-se internamente contra a
penetração de ideias perigosas, ao mesmo tempo em que apoia as
cruzadas jihadistas contra outros países.
Críticos da Arábia Saudita acusam seus dirigentes de
colocarem a religião a serviço do Estado, sendo esta a razão pela
qual muitos desses jovens estariam deixando o país para se unirem
a movimentos revolucionários que tenham uma outra visão do
islamismo e da política, na atualidade.
Brahma Chellaney afirma que “será impossível vencer a guerra
contra o terrorismo sem enfrentar o coração ideológico que inspira o
terror jihadista: o wahabismo. É preciso enfrentar o regime saudita, o
principal promotor dessa visão medieval do Islã”. Isto parece indicar
que, a menos que a expansão de ideologias perigosas como o
wahabismo seja interrompida, a guerra global contra o terror nunca
será ganha.
Chellaney acrescenta que a “Arábia Saudita vem financiando o
terrorismo islâmico desde que a explosão do preço do petróleo, na
década de 1970, exponenciou a riqueza do país”. Comprovação
disso estaria em um relatório do Parlamento Europeu, de 2013,
segundo o qual parte dos 10 bilhões de dólares (cerca de 9,2
bilhões de euros) investidos pela Arábia Saudita na “sua agenda
wahabita” no Sul e Sudeste da Ásia foram “desviados” para grupos
terroristas.

A Arábia Saudita e o conflito entre xiitas e sunitas

Para se entender melhor os conflitos do Oriente Médio, torna-se


necessário uma incursão na raiz do problema, ou seja, o secular
conflito que divide xiitas e sunitas na região. Na liderança desses
dois grupos, destaca-se, por um lado, a Arábia Saudita, de maioria
sunita, rival tradicional do Irã, que é, por seu turno, a maior liderança
xiita no Oriente Médio e apoia os movimentos xiitas em outros
países, ou seja, trata-se de uma disputa entre muçulmanos.
Tudo começou com um desentendimento político-religioso sobre
quem deveria suceder o profeta Maomé, desentendimento esse que
foi se agravando ao longo dos séculos. Iniciando-se por diferenças
teológicas, com o tempo essas diferenças passaram ao campo do
ódio pessoal, ressentimentos... e hoje se projetam no campo
geopolítico.
Embora compartilhem os fundamentos da doutrina islâmica, o
grupo minoritário, os xiitas, atualmente cerca de 10% dos
muçulmanos, achava que o sucessor do profeta deveria pertencer à
família de Maomé, tendo como pretendente Ali ibn Abi Talib, genro
do Profeta, casado com sua filha Fátima.
Já a grande maioria dos muçulmanos, estimada hoje entre 85%
a 90%, é sunita e acreditava que o califa líder da comunidade
muçulmana deveria deve ser nomeado por consenso da
comunidade. Diferentemente dos xiitas, os líderes religiosos sunitas
submetem-se ao controle do Estado.
O termo sunita deriva da palavra “Ahl al-Sunna”, pessoas
ligadas à tradição, referindo-se às práticas baseadas nas ações ou
nos relatos das ações do profeta Maomé e daqueles próximos a ele.
Assim, na hora de escolher um novo líder, os seguidores do
Profeta escolheram Abu Bakr, um antigo companheiro de Maomé,
que passou a usar o título de Califa (khalifa), o que não foi aceito
pelos xiitas, que consideravam Ali o candidato legítimo, por isso
criaram um grupamento político religioso denominado “Shiat Ali”, ou
partido de Ali.
Atualmente, um dos grandes problemas a dividir as duas
vertentes do islamismo é o fato de que em países chefiados por
sunitas, a grande massa de pobres e miseráveis são xiitas, como
era o caso do Iraque, o que os leva a se considerarem excluídos e
vítimas de perseguições e de opressão. É bem verdade que existem
facções sunitas radicais que preconizam a morte dos xiitas.
A Revolução de 1979, no Irã, e a ascensão do aiatolá Khomeini
deram esperanças aos xiitas de passarem a ser respeitados, porém
isso causou preocupações ao governo da Arábia Saudita, que não
deseja ver perto de suas fronteiras um governo inimigo apoiando
movimentos terroristas ou revolucionários xiitas apoiados pelo Irã.
A disputa entre iranianos e sauditas por influência política e
religiosa tem implicações geopolíticas que se estendem muito além
do Golfo Pérsico. Ela engloba quase todos os conflitos de grandes
proporções do Oriente Médio, principalmente pelo apoio do Irã a
grupos radicais, o que irrita os governos conservadores da região,
principalmente da Arábia Saudita, como vimos.
As relações entre os dois países nunca foram boas, e as
tentativas de predominância política e religiosa sempre estiveram
presentes em diversos conflitos ocorridos no Oriente Médio, mas
agravaram-se em janeiro de 2016, em razão da execução de 47
pessoas, dentre eles Nimr al-Nimr, um clérigo xiita que era um
destacado crítico ao governo saudita e passou a ser considerado
terrorista pelo governo saudita.
A morte do religioso causou violenta reação do governo
iraniano, gerando uma crise que ainda pode vir a ter sérias
repercussões, já que os iranianos prometeram vingança. O aumento
das tensões entre as duas maiores potências islâmicas do Oriente
Médio pode prejudicar o esforço internacional de pacificar a região,
uma vez que a Arábia Saudita tem o apoio dos Estados Unidos,
enquanto o Irã vem exercendo influência cada vez maior no Iraque e
na Síria, que goza do apoio russo.

A vertente militar do Estado Islâmico

O perfil mais conhecido dos militantes jihadistas do Estado


Islâmico, de serem terroristas e assassinos brutais e sanguinários,
frequentemente oculta suas raízes na história recente e violenta do
Iraque.
De acordo com Hassan Hassan, um analista e coautor do livro
Inside the Army of Terror, a crueldade do regime baathista de
Saddam Hussein, a dissolução do exército iraquiano após a invasão
liderada pelos Estados Unidos em 2003, a insurreição subsequente
e a marginalização dos sunitas iraquianos pelo governo dominado
pelos xiitas, tudo isso serviu para preparar a cena para o surgimento
do Estado Islâmico.
Os especialistas debitam a Paul Bremer, que foi chefe da
Autoridade Provisória da Coalizão entre maio de 2003 e junho de
2004, a responsabilidade pelo fracasso da missão americana no
país, a partir de suas decisões, hoje questionadas: a
“desbaathização” indiscriminada do setor público iraquiano e o
desmantelamento do Exército do Iraque.
Desprezando o conselho dos especialistas, Bremer determinou
a expulsão do serviço público de todos aqueles que eram membros
do Partido Baath, do ex-ditador Saddam Hussein, muitos dos quais
só se filiaram ao partido para desfrutar das boas graças dos
poderosos, como também acontecia na URSS com o Partido
Comunista. Mas a pior das decisões foi a de desmantelar todo o
aparato de segurança e defesa do país, acabando com o Exército,
com a Guarda Republicana e com a polícia secreta do país.
Estima-se que, do dia para a noite, quase um milhão de
pessoas que pertenciam à elite do país viram-se sem emprego, sem
prestígio e sem esperanças. Com o ódio gerado pela falta de
sensibilidade do invasor, a única solução, principalmente para os
militares, seria juntar-se aos insurgentes que começavam a pulular
por todo o país.
Uma dessas figuras foi Haji Bakr, morto em janeiro de 2014, que
tinha pertencido ao Serviço de Inteligência do governo de Saddam
Hussein. Humilhado, Bakr viu na oportunidade de se juntar ao EI a
sua chance de voltar a ser uma figura de importância. Foi assim que
Bakr recebeu a missão de estruturar as forças que depois seriam
conhecidas como Estado Islâmico.
Foi a partir da reunião de radicais islâmicos com oficiais das
forças armadas e dos serviços de Inteligência iraquianos que surgiu
o embrião militar do Estado Islâmico. Foi assim que, contando com
a experiência desses homens, que haviam dedicado anos
preservando o regime de Saddam Hussein, um pequeno grupo de
terroristas se transformou em uma força militar respeitável que
passou a acumular sucessos admiráveis.
Contando com um poderoso apelo de ordem religiosa – a sua
missão messiânica – e com a experiência dos oficiais militares, o EI
passou a conquistar fatias territoriais tanto na Síria como no Iraque.
Assim, em 29 de junho, foi criado o Califado islâmico, um sonho
distante e aparentemente irrealizável, alimentado por várias
lideranças islâmicas.
Abu Bakr al-Baghdadi autoproclamou-se Califa de todos os
muçulmanos na Grande Mesquita de al-Nuri.
Para assumir as funções de governo do novo território, a antiga
organização de insurgentes do Iraque assumiu a denominação de
Estado Islâmico, passando a atuar como um efetivo Estado,
cuidando das funções burocráticas e administrativas do Califado.
Sabe-se que quase todos os líderes do Estado Islâmico são ex-
oficiais iraquianos, incluindo os membros das suas comissões
militares e de segurança, e a maioria dos seus emires.
No entanto, ao iniciar o sonho de um novo Califado em pleno
século XXI, Baghdadi cometeu um grave erro: ao declarar-se Califa
de todos os muçulmanos e acusar os outros governos de apostasia,
ele provocou, de imediato, inimigos fortes e rancorosos, como a
poderosa Arábia Saudita, que disputa com o Irã a primazia pela
liderança do mundo islâmico.
As relativamente fáceis vitórias militares, o dinheiro fácil oriundo
dos poços de petróleo conquistado, as taxas cobradas dos
comerciantes, e uma máquina de propaganda profissional e
eficiente na difusão de seus feitos pelas redes sociais fizeram com
que muitos jovens pobres, e mesmo ricos ou de classe média, de
países europeus e africanos desejassem se juntar a esse exército,
que parecia invencível. Dessa forma, milhares de jovens passaram
a deixar seus países para se juntar ao EI, seduzidos pela
propaganda e pela possibilidade de se tornarem heróis vivos, ou
mortos importantes no reino divino.
O Estado Islâmico desenvolveu uma força de combate que
utiliza técnicas combinadas: táticas militares convencionais, guerra
de guerrilha e ataques distantes sobre os civis. No campo de
combate, enfrenta, de forma desequilibrada, o poderio de seus
principais adversários: os Estados Unidos, a França e a Rússia,
depois dos últimos atentados contra Paris e contra um avião russo,
além dos seus vizinhos regionais, como o Irã e a Arábia Saudita.
Não é fácil para os analistas de Inteligência dos principais
serviços de Inteligência do Ocidente compreenderem a conduta
pouco ortodoxa do Estado Islâmico. Sua máquina de propaganda é
eficiente, mas pouco se conhece do pensamento de seu líder, al-
Baghdadi, que se manifestou para as câmeras somente uma vez.
Quando se proclamou Califa al-Baghdadi, apareceu vestido com
uma roupa preta apropriada para um clérigo islâmico e proclamou o
Califado, num ato simbólico que transformou um conflito militar,
tático e localizado em uma guerra religiosa mais ampla.
As manifestações em vídeo através de sua revista eletrônica,
Dabiq, demonstram que a cúpula da organização tem sede por
guerras e não está nem um pouco interessada em paz. Sua visão
apocalíptica do mundo, ou do fim deste, parece indicar que ela não
pretende realizar nenhum tipo de mudança no modus operandi que
vem sendo empregado com sucesso.
Saja al-Dulaimi, ex-mulher de Abu Bakr al-Baghdadi, declarou,
em uma entrevista à televisão sueca “Expressen TV”, em abril de
2016, que ele era uma pessoa enigmática e com a qual não podia
ter uma discussão ou manter uma conversa normal: “Só dava
ordens”. Ela disse ainda: “Não notei nada que indicasse que estava
envolvido no movimento de resistência. Era um homem familiar.
Como pôde se transformar no emir da organização terrorista mais
perigosa do mundo é um mistério”. Mas parece que al-Baghdadi
quer ver mesmo é o sangue correr.
Na verdade, o grande desejo do EI é que os Estados Unidos e
seus aliados sejam arrastados para uma guerra terrestre,
particularmente na Síria.
Isto pode ser comprovado por ocasião da invasão do Iraque, em
2003, pelas tropas norte-americanas, quando o então obscuro
criador da célula terrorista que se transformaria no Estado Islâmico,
Abu Musab al-Zarqawi, satisfeitíssimo com a invasão americana,
declarou que ela era uma “bem-aventurada invasão”. Embora
muitos não entendessem o porquê dessa satisfação, posteriormente
ficou claro que ela se relacionava ao que ele considerava o
cumprimento das profecias que falavam na invasão dos exércitos
não muçulmanos que precederia o “fim do mundo”.
Se essa invasão acontecesse, o Estado Islâmico não só seria
capaz de declarar a sua profecia cumprida, mas também
transformar a ocorrência em uma nova campanha de recrutamento,
no exato momento em que o grupo terrorista parece estar perdendo
voluntários.
Jean-Pierre Filiu, especialista em assuntos do Oriente e autor
do livro Apocalypse in Islam, também concorda com a ideia de que a
entrada dos EUA em uma guerra terrestre seria a pior armadilha na
qual os norte-americanos poderiam cair. Isto daria aos combatentes
islâmicos a sensação de que eles não somente fazem parte de uma
elite, como também são uma parte importante na batalha final da
humanidade contra o Mal.
A dificuldade em compreender a estratégia do EI foi destacada
pelo major general Michael K. Nagata, comandante de operações
especiais dos Estados Unidos no Oriente Médio, que em entrevista
concedida em dezembro ao jornal The New York Times admitiu que
ele mal tinha começado a descobrir o apelo do Estado Islâmico.
“Nós não derrotamos a ideia”, disse ele. “Nós nem sequer
entendemos a ideia”.
Mesmo o presidente Obama certa feita se referiu ao Estado
Islâmico, como sendo um grupo “não islâmico”. Essa falta de
compreensão pode ter contribuído para erros estratégicos
significativos.
Para as mentes ocidentais que consideram encerrada a fase de
guerras religiosas que varreram a Europa há alguns séculos, são
estarrecedoras e inacreditáveis as notícias sobre a teologia e
práticas do Estado Islâmico. Muitos se recusam a acreditar que
ações tão retrógradas, ou apocalípticas, ainda possam estar sendo
executadas nos dias de hoje, e em nome de Deus.
O fato é que sob a liderança de Abu Bakr al-Baghdadi, o Estado
Islâmico do Iraque cruzou a fronteira, enviou inúmeros jihadistas
para combater as tropas do presidente sírio Bashar al-Assad e
ajudou a formar a Frente al-Nusra, uma organização ligada à Al-
Qaeda na Síria. Em 2013, Baghdadi anunciou a fusão dos dois
grupos – Estado Islâmico do Iraque e Frente al-Nusra – sob o nome
Estado Islâmico do Iraque e da Síria, ISIS, uma aliança de curta
duração.
Os dirigentes do EI ganharam tanta confiança que procuraram
tirar a dimensão regional que tinha o primitivo nome – Estado
Islâmico do Iraque e do Levante, que é a região da Síria –,
modificando-o para Estado Islâmico, já tendo em mente a criação do
califado que seria um passo importante para o retorno a um
grandioso império árabe-muçulmano.
O fato é que de brutalidade em brutalidade, de genocídio em
genocídio, de carnificina em carnificina, o Estado Islâmico vem
obtendo vitórias surpreendentes e já governa uma área maior que o
Reino Unido. Em setembro de 2014, segundo informações de
Matthew Olsen, então diretor do Centro Nacional de
Contraterrorismo dos EUA (NCTC), o EI controlava uma área
semelhante em tamanho ao Reino Unido, ou cerca de 210.000km2.
No ano seguinte, segundo dados do departamento de defesa
dos EUA, o EI já não podia operar livremente em cerca de 20-25%
de áreas povoadas no Iraque e na Síria, dado que teve a área sob
seu domínio reduzida a aproximadamente 15.000-20.000km2 do
território iraquiano, ou seja, cerca de 30-37% do que controlava em
agosto de 2014. Também na Síria houve redução do território sob
seu controle, que passou a ser de apenas 2.000-4.000km2, ou cerca
de 5-10%. Ultimamente eles vêm perdendo território e cidades
importantes, como Ramadi.
Quanto ao número de combatentes, segundo informações
prestadas em fevereiro de 2015 por James Clapper, diretor nacional
de Inteligência dos Estados Unidos, o EI conseguiu reunir entre 20
mil e 32 mil combatentes no Iraque e na Síria. Admite-se que esse
número tenha diminuído com as mortes provocadas pelos ataques
aéreos da coalizão liderada pelos EUA, que começou em agosto de
2014, o que foi confirmado pelo vice-secretário de Estado dos EUA,
Antony Blinken, o qual afirmou, em junho de 2015, que mais de 10
mil combatentes do EI haviam sido mortos.
Com essas pesadas baixas, o EI foi forçado a estabelecer o
serviço militar obrigatório em algumas áreas, e os especialistas têm
dúvidas sobre a fidelidade dos recrutados, muitos dos quais
estariam entrando para as fileiras do EI apenas por medo, e não por
ideologia ou crença religiosa. O EI também recebe o apoio de
voluntários estrangeiros, conforme será apresentado adiante.
Segundo o último relatório de Inteligência dos EUA, divulgado
pela Casa Branca em 4 de fevereiro, o número de combatentes do
EI foi reduzido a cerca de 19 mil a 25 mil, uma significativa redução
em relação ao relatório anterior, que estimava entre 20 mil e 31 mil o
número de soldados da organização atuando na Síria e no Iraque.
Deserções e mortes em combate são apresentadas como as causas
dessas baixas, e seria um atestado de que a estratégia norte-
americana estaria sendo exitosa, segundo avaliação de Josh
Earnest, porta-voz da Casa Branca.
Earnest acrescentou que o EI estava tendo mais dificuldade que
antes na reposição de suas fileiras, chamando a atenção para a
necessidade de a comunidade internacional cooperar para deter o
fluxo de combatentes estrangeiros que se deslocam para a região.
Apesar disso, ou mesmo por isso, como forma de mostrar que
ainda é forte, no final de 2015 o EI começou a reivindicar ataques
terroristas fora de seu território, derrubando incompreensivelmente
um avião de passageiros da Rússia, um forte aliado da Síria, em que
morreram 228 pessoas; causando noites de horror em Paris, em 13
de novembro, quando 128 pessoas foram assassinadas; e também
assumindo explosões em Beirute, a capital libanesa.
Para desfazer a crença de alguns analistas mais desavisados
de que o EI era apenas uma ameaça local e não executaria ações
terroristas em solo norte-americano, lançaram o atentado em San
Bernardino, na Califórnia, considerado o pior desde o 11 de
setembro de 2001.
Por seu turno, o presidente francês, François Hollande,
descreveu o ataque a Paris como “um ato de guerra” e passou a
reunir os países ocidentais para realizarem uma cruzada contra o
EI. A Rússia também decidiu vingar seus cidadãos e também
intensificou o fogo aéreo contra o EI.
Em 22 de março de 2016, o EI voltou a ser manchete quando,
em declaração divulgada pela agência de notícias Amaq, que
recebe informações diretamente do EI, eles assumiram a autoria de
explosões, uma delas executada por um homem-bomba, que
deixaram dezenas de mortos e centenas de feridos em Bruxelas. Os
atentados atingiram o aeroporto e a estação de metrô central de
Maelbeek, na capital belga, perto de edifícios da União Europeia.
Toda essa reação inevitavelmente levará a um enfraquecimento
muito grande do EI, o que permitirá que as tropas da Síria e do
Iraque possam combatê-los em melhores condições e, quem sabe,
até vencê-los. É de se esperar que sua expansão seja detida e que
até retroceda. No entanto, não podemos nos iludir com a ideia de
uma erradicação total dessa organização.
O enfraquecimento do EI se torna a cada dia mais perceptível.
Relatório do Jane’s Terrorism & Insurgency Centre, datado de 16 de
março de 2016, mostra que o enfraquecimento do grupo atinge
também sua fonte de recursos. Eles perderam vários de seus
campos de petróleo, tomados pelas forças curdas e de Bashar al-
Assad, e muitas de suas pequenas refinarias e caminhões-tanque
foram inutilizados pelos bombardeios da coalizão internacional.
A fuga em massa de pessoas das regiões sob domínio do EI
reduziu a arrecadação de impostos por ele realizada, servindo
também para diminuir ainda mais as finanças do grupo. Eles
também deixaram de receber as receitas da venda de eletricidade
ao perderem o controle sobre uma grande represa na Síria.
Também deve-se levar em conta que, pouco a pouco,
experientes líderes militares estão morrendo em combate.
Em 25 de março de 2016, o secretário de Defesa dos Estados
Unidos, Ash Carter, anunciou que Abd al-Rahman Mustafa al-
Qaduli, considerado o segundo na cadeia de comando do EI, havia
sido morto em um ataque dos EUA. Considerado um alvo de grande
importância para os EUA, al-Qaduli servia como ministro de
Finanças e uma espécie de encarregado por alguns assuntos
exteriores do EI, informou Carter.
Os especialistas o consideram um verdadeiro ideólogo do EI,
com muita experiência jihadista e influência sobre muitos
combatentes. Hisham al-Hashimi, um especialista em Iraque,
considera Baghdadi o cabeça do Estado Islâmico, mas al-Qaduli era
a alma, por isso sua morte é considerada uma perda inestimável
para a organização.
Este também foi o caso de Abu Omar al-Shishani, também
conhecido como Omar, O Checheno, uma espécie de conselheiro
militar muito próximo do líder do Estado Islâmico, Abu Bakr al-
Baghdadi, e que seria uma espécie de “ministro da Guerra” do EI,
segundo foi anunciado pelo Observatório Sírio dos Direitos
Humanos em 10 de março de 2016.
Em 2014, al-Hashimi assumiu altas funções militares após a
morte de Haji Bakr. Os EUA haviam oferecido uma recompensa de
alguns milhões de dólares por informações que levassem a ele, o
valor mais alto oferecido pela cabeça de um líder do EI depois da de
Abu Bakr al-Baghdadi, que está avaliada em US $ 10 milhões.
As mortes de Omar al-Shishani e de al-Qaduli podem ser uma
resposta positiva à estratégia norte-americana de colocar pressão
sobre o EI, eliminando suas lideranças e apoiando pelo ar as forças
terrestres locais. No entanto, apesar da importância da morte de
importantes líderes militares do EI, isso não implica que a
organização esteja acabada; outras lideranças surgem para
substituí-las, as quais, embora sem experiência, darão seguimento à
guerra.
É possível que os militares americanos aumentem sua
participação direta na guerra contra o EI. Os militares apresentaram
ao então presidente Barack Obama um leque de opções militares
objetivando apoiar a recaptura da cidade de Mossul, no Iraque, uma
vez que analistas da Inteligência militar não acreditam na
capacidade do Iraque para retomá-la ainda em 2016.
Confirmando essa expectativa, em 9 de março de 2016, o gen.
Joseph Votel, comandante da US Special Operations Command,
informou a um comitê do Senado que adotaria uma linha mais
agressiva contra o EI na Síria, sugerindo o envio de mais tropas e
equipamentos. Votel disse aos legisladores que apoiava um plano
para treinar e armar os rebeldes sírios moderados que estavam
lutando contra o grupo terrorista.
O objetivo maior de Votel, além de recuperar Mossul, é expulsar
o EI de Raqqa, que foi transformada em capital do califado, e para
isso deverão ser alocados recursos adicionais. O então secretário
de Defesa Ashton Carter definira a recaptura de ambas as cidades
como uma meta fundamental para a guerra em 2016.
A medida que a situação no Oriente Médio tende a se
estabilizar, menos espaço para manobras resta aos os radicais
terroristas, que passam então a perpetrar atentados no exterior
como forma de mostrar prestígio e poder. Quanto a isso, a
capacidade do EI em recrutar principalmente os pobres e miseráveis
de vários cantos do mundo, inclusive da Europa, faz supor que seu
estoque de homens-bomba ainda pode durar.
À época, o resultado das eleições no Irã fortaleceu os setores
mais preocupados com a difícil situação econômica do que com as
intrigas e futricas religiosas ou com as alucinações delirantes do ex-
presidente Mahmoud Ahmadinejad, aquele que negava o
Holocausto e recebia bênçãos de Alá enquanto discursava na ONU
apresentando-se como o homem que estava preparando o retorno
do Messias islâmico.
No entanto, a postura mais aberta do presidente Hassan
Rowhani, que busca a reinserção do país na comunidade
internacional e o fim das sanções econômicas, tirando o país do
isolamento, não agrada aos setores mais radicais, como os
membros da Guarda Revolucionária, considerado um dos mais
duros do regime do Irã, que numa demonstração de força lançaram
recentemente projéteis com capacidade para atingir Israel.

Um espião por detrás do EI

Vimos, em outro capítulo, que um grande fanatismo religioso


orienta muitas das ações da organização terrorista conhecida como
Estado Islâmico. No entanto, reportagem publicada pela revista
alemã Der Spiegel de 18 de abril de 2015 mostra que nem só de fé
vive o EI, mas também do conhecimento e de estratégias de
espionagem desenvolvidas por um ex-oficial de Inteligência de
Saddam Hussein.
A reportagem retrata uma organização que, embora
aparentemente impulsionada pelo fanatismo religioso, era na
verdade conduzida por um homem frio e calculista chamado Samir
Abd Muhammad al-Khlifawi, que também atendia pelo pseudônimo
de Haji Bakr, pelo qual era mais conhecido, e Mujahid Sheikh, o
comandante, Abu Bakr al Iraqi, entre seus pares do EI.
Bakr, um ex-coronel do serviço de Inteligência da força de
defesa aérea de Saddam Hussein, tornou-se revoltado e
amargurado depois que o exército iraquiano foi dissolvido pelos
comandantes norte-americanos no país e se juntou à Al-Qaeda no
Iraque, participando da insurgência iraquiana. Preso pelas tropas
dos EUA, foi feito prisioneiro no Campo Bucca, onde ficavam os
extremistas mais perigosos, considerado o “Berço do Estado
Islâmico”, onde conheceu muitos dos homens que iriam formar a
liderança do então ISIL, incluindo Abu Muslim al-Turkmani, Abu
Abdulrahman al-Bilawi e o futuro líder Abu Bakr al-Baghdadi.
O Campo de Bucca, que era chamado de escola da Al-Qaeda,
foi o local onde toda a alta cúpula do EI e muitos jihadistas deram
início a planos de vingança contra os EUA. Na verdade, nesse retiro
forçado, oficiais do extinto exército de Saddam Hussein e jihadistas
radicais uniram suas habilidades tanto na arte militar como no
estudo da religião, numa comunhão de forças que formou o embrião
do Estado Islâmico.
Após a sua libertação, Bakr alcançou uma posição de liderança
no Estado Islâmico do Iraque (ISI), assumindo o conselho militar do
grupo após a morte de altos comandantes como Abu Omar al-
Baghdadi e Abu Ayyub al-Masri pelas forças dos EUA, em 2010.
Dessa forma, acabou se tornando o cérebro estrategista do EI.
A reportagem do Der Spiegel, intitulada “Arquivos secretos”, é
baseada em documentos que seriam de autoria de Haji Bakr e
revela a estrutura do Estado islâmico. Esses documentos,
compostos por 31 páginas de cartas manuscritas que foram
apreendidas pelos rebeldes na cidade síria de Aleppo no início do
ano passado, revelam um plano meticuloso para o estabelecimento
de um califado islâmico no norte da Síria, onde seriam empregadas
as técnicas aprendidas no regime de Hussein, incluindo a vigilância,
a espionagem, o assassinato e o sequestro.
Os documentos confirmavam informações fornecidas por
desertores do EI, de que um grande número de ex-oficiais e agentes
da Inteligência do regime de Hussein tinha sido absorvido por
aquela organização durante a sua campanha sangrenta para
estabelecer um califado. Neste plano, Bakr apontava as
responsabilidades individuais de cada um dos participantes no
projeto do califado.
De acordo com Christoph Reuter, autor da reportagem, os
documentos não eram um manifesto de fé, mas sim um plano
tecnicamente preciso para a criação de um Estado islâmico, um
califado, executado por uma organização que muito se assemelhava
a uma agência de Inteligência, como a conhecida Stasi da
Alemanha Oriental, ou o KGB, da extinta União Soviética.
O relatório documentava os movimentos de Bakr desde a queda
do exército iraquiano, em 2003, após a invasão do Iraque pelas
tropas norte-americanas, até sua morte, ocorrida em 2016. No
período compreendido entre 2006 e 2008, ele esteve detido em
centros de detenção norte-americanos – incluindo Abu Graib – até
se tornar o personagem de grande influência na criação do ISIS, em
2010.
Bakr supostamente trabalhou com um pequeno grupo de ex-
oficiais de Inteligência iraquianos para colocar Abu Bakr al-Bagdhadi
à frente da organização, com o objetivo de dar ao grupo uma “face
religiosa”, enquanto o próprio Bakr era descrito como um
nacionalista, em vez de um islamita. Ele também é acusado de ter
organizado um expurgo interno, incluindo dezenas de assassinatos
de lideranças rivais e dissidentes, a fim de solidificar o controle do
grupo por al-Baghdadi.
Assim, o sucesso obtido pelo grupo terrorista se deveu a uma
combinação das crenças religiosas fanáticas do grupo religioso, com
os cálculos estratégicos desenvolvidos por Bakr, em sua meta de
invadir o norte da Síria e parte do Iraque. Ele inclusive teria viajado
para a Síria, em 2012, para escolher a região do país para onde
enviaria os combatentes estrangeiros novatos da Arábia Saudita,
Tunísia e da Europa, que lutariam ao lado de experientes
combatentes chechenos e uzbeques nas campanhas militares do EI.
Bakr teria sido morto durante combates com os rebeldes sírios
em janeiro de 2014, depois que seu plano de conquista foi
implementado. Ele teria sido o cérebro que desenvolveu os planos
meticulosos para as conquistas e administração dos territórios na
Síria e Iraque conquistados pelo EI e que se transformariam no
controverso Califado Islâmico.

O califado islâmico
Em 29 de Junho de 2014, o Estado Islâmico anunciou
oficialmente a criação de um Califado – um estado sem fronteiras e
sob o domínio do califa – nas zonas conquistadas do Iraque e Síria,
e que Ibrahim Awad Ibrahim al-Badri al-Samarrai, mais conhecido
como Abu Bakr al-Baghdadi seria o seu Califa. A partir daí, a
organização, que se chamava Estado Islâmico do Iraque e do
Levante (EIIL), passou a se chamar apenas Estado Islâmico (EI),
pedindo a todos os muçulmanos do mundo que jurassem lealdade a
seu chefe, o Califa al-Baghdadi.
Posteriormente, Abu Bakr al-Baghdadi entrou no púlpito da
Grande Mesquita de al-Nuri, em Mossul, para autoproclamar-se o
primeiro Califa da atual geração, surpreendendo boa parte do
mundo islâmico. O Califa é um líder político e religioso do povo
muçulmano e é visto como um sucessor do profeta Maomé, herdeiro
de um regime que existiu desde a época do profeta até março de
1924, quando o presidente turco Mustafa Kemal Atatürk aboliu
constitucionalmente a instituição do califado.
Para muitas lideranças muçulmanas, a criação de um Califado
poderia significar a unidade muçulmana, já que é a única forma de
governo que tem a total aprovação na teologia islâmica tradicional,
mas para aqueles que conhecem o pensamento escatológico
islâmico, a criação desse Califado tinha outro sentido: sua instalação
era uma necessidade fundamental para o surgimento do messias
islâmico – o Mahdi.
É importante salientar, para quem não conhece bem a história
islâmica, que o Mahdi é o “messias muçulmano” e só pode se
manifestar quando um califado islâmico estiver constituído, de
acordo com os Hadiths. Para ter validade, esse califado tem de ter o
reconhecimento dos clérigos religiosos, o que até agora não
aconteceu; pelo contrário, outros líderes estão desautorizando al-
Baghdadi e tentando criar seu próprio califado.
Diz o professor Pio Penna, da Universidade de Brasília (UnB),
diretor-geral do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (Ibri):
Os dirigentes do Estado Islâmico não reconhecem a
legitimidade dos Estados que foram implementados no Oriente
Médio a partir dos interesses ocidentais, e então,
simbolicamente, por exemplo, queimam os passaportes, as
identidades nacionais. Eles querem criar uma identidade árabe,
mas com base numa sustentação sunita do Islã.

O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, o ex-vendedor


de rua que se tornou presidente do país, vem trabalhando no
sentido de também criar um califado em Istambul, com a intenção
de tentar reconstruir o Império Otomano. A Turquia foi a sede do
último califado, abolido em 1924, depois de durar 400 anos. No atual
contexto de guerra religiosa no Oriente Médio, isto tem um valor
simbólico muito grande, pois desde 1516 o império otomano
manteve Israel como um território conquistado e expandiu o
islamismo às áreas sob sua dominação. É conhecido o ódio que
Erdogan devota a Israel.
O sheik Yusuf al-Qaradawi, presidente da União Internacional
de Sábios Muçulmanos, que representa um dos maiores grupos de
estudiosos muçulmanos em todo o mundo, anunciou que um novo
califado com sede na Turquia deve ser estabelecido sob a forma de
uma federação ou confederação, que será governada pela Sharia, a
Lei Islâmica. Em 17 de agosto de 2014, em entrevista à Televisão
turca, ele declarou: “A Turquia é o Estado Califado, e Istambul a sua
capital”, acrescentando: “a Turquia une a religião e o mundo árabe
[wahabistas sunitas] e persas [xiitas], Ásia e África, e ele [o Califado]
deve basear-se nesta nação [Turquia].
Minimizando a importância de Abu Bakr al-Baghdadi quando se
declarou califa, al-Qaradawi apontou o presidente Erdogan como o
novo Califa dizendo: Erdogan é o homem de Estado, um líder que
conhece o seu senhor”, e depois acrescentou: “Erdogan terá
sucesso porque Alá, Gabriel, Salih Al-muminin (os Justos dos Fiéis)
estão com ele, e depois que a Hoste Angélica aparecer”.
Em várias oportunidades, al-Qaradawi tem minimizado a
importância do EI e de seu Califa, declarando que: ”a sucessão
anunciada pela organização do Estado Islâmico (ISIS) no Iraque e
Síria não têm significado e não satisfaz as condições exigidas para
ser um Califado”. Mas, para ele, esse problema será resolvido pelo
Califado da Turquia. Criticando diretamente a criação do Califado do
EI, al-Qaradawi acrescentou:

O anúncio de um Califado não é um direito de qualquer facção,


porque esta função em cada nação muçulmana é um direito
apenas dos estudiosos para indicar o governo legítimo em tais
assuntos.

O Alcorão diz claramente que os muçulmanos precisam


obedecer a “Deus, Seu Mensageiro, e as pessoas de autoridade”.
Mas deve-se destacar que a criação do Califado turco parece
também estar relacionada com as profecias do fim do mundo, já que
declarou: “o exército angelical em breve descerá sobre a Terra”,
obviamente depois do estabelecimento do novo Califado na Turquia.
Ao que parece, tanto o EI como os clérigos turcos não querem
perder a primazia de sediar a vinda do Messias, por isso foi
declarada uma guerra de fatwas entre eles.
Em resposta ao questionamento que al-Qaradawi fez em
relação à legitimidade de Abu Bakr al-Baghdadi para ser o Califa do
mundo muçulmano, o EI acusou a Irmandade Muçulmana de
“apóstatas” e “seguidores da teologia da bruxaria”, um termo
altamente negativo no islamismo.
Para complicar o quadro, alguns sites árabes passaram a
difundir a notícia de que al-Baghdadi seria na verdade um agente do
Mossad, o serviço secreto de Israel, infiltrado no Estado Islâmico.
O certo é que, dentro de áreas que domina, o EI implantou uma
estrutura administrativa denominada Conselhos, dos quais os mais
importantes são o econômico, o religioso, o de segurança, o de
comunicações e talvez o mais preocupante para a população, o
legal, uma espécie de judiciário regido pela interpretação estrita da
Sharia, onde as adúlteras são apedrejadas até a morte, as mulheres
são obrigadas a usar véus completos, decapitações são
apresentadas como espetáculo público, e os não muçulmanos são
forçados a escolher entre o pagamento de um imposto especial, a
conversão, ou a morte.
Os terroristas do EI consideram a área dominada, que constitui
o Califado, um verdadeiro Estado soberano. Assim, forçaram o
jornalista norte-americano James Foley, decapitado em agosto de
2014, a dizer, antes de morrer, referindo-se aos americanos:

Vocês tramaram contra nós e saíram de seu caminho para


achar motivos para interferir em nossos assuntos. Hoje, a sua
força aérea militar está nos atacando diariamente no Iraque.
Seus ataques causaram baixas entre os muçulmanos. Vocês já
não estão combatendo uma insurgência. Somos um exército
islâmico e um Estado que foi aceito por um grande número de
muçulmanos em todo o mundo. Portanto, na prática, qualquer
agressão ao Estado Islâmico é uma agressão aos muçulmanos
de todos os ramos de atividade que aceitaram o Califado
Islâmico como sua liderança. Portanto, qualquer tentativa sua,
Obama, de negar aos muçulmanos seus direitos de viver em
segurança sob o Califado Islâmico resultará em derramamento
do sangue do seu povo.

Dito isso, o executor decapita o jornalista.


Na verdade, os dirigentes do EI se posicionam como se
pertencessem a uma formação religiosa supranacional, tendo
retirado todas as referências à Síria e ao Iraque dos livros de estudo
nas escolas nos territórios controlados e eliminaram a fronteira entre
a Síria e o Iraque nas áreas que controlam.
Muito embora al-Baghdadi e seus terroristas do EI sonhem que
de fato estão dirigindo um Estado constituído, isso claramente não
tem nada a ver com a realidade, pois o seu califado jamais foi
reconhecido internacionalmente por qualquer nação. Qualquer
autoridade se recusaria a reconhecer o chefe de um grupo de
assassinos cortadores de cabeça como chefe de Estado. Esse
sonho a cada dia vai se desvanecendo, à medida que as tropas da
coalisão internacional vão recuperando as áreas roubadas pelo EI.

A administração do Estado Islâmico

Uma das principais fontes de recursos para o EI administrar as


áreas que se encontram sob seu domínio, e tentar atender às
expectativas de sua população, é oriunda do ouro negro, a mesma
cor das bandeiras da organização, que dele se serve para financiar
seu projeto megalomaníaco de um Califado, alimentar sua máquina
de guerra e fornecer eletricidade para as cidades: o petróleo.
Tamanha é sua importância como fonte de receita para os
jihadistas que o EI é jocosamente chamado de Isis Inc, uma espécie
de estatal do petróleo semelhante à Petrobras ou a outras grandes
companhias petrolíferas do mundo. É claro que essa importância
também é conhecida pelas forças da coligação militar internacional
que lutam contra o Estado Islâmico. Por isso, o comércio de petróleo
tem sido declarado como um dos principais alvos a ser destruído
pela coligação militar internacional que luta contra o grupo.
Várias fontes concordam que o comércio de petróleo
movimentado pelo EI em pelo menos oito campos rende-lhe milhões
de dólares, que podem financiar jihadistas em todo o mundo. Mas
isso representa também um dilema para seus inimigos que têm de
decidir como derrubar o Califado sem desestabilizar a vida dos
milhares de civis que se encontram em áreas sob controle do EI?
A decisão dos americanos de cortar essa fonte de receita
bombardeando instalações e caminhões de distribuição que
transportam o ouro negro parece começar a dar resultados. Ao que
parece, os tempos de bonança do EI estão chegando ao fim.
Segundo um artigo publicado pelo jornal El Mundo, uma séria
crise está levando a organização a cortar salários e a vender terras
como forma de conter custos, possivelmente em razão do corte de
suas fontes de financiamento.
A fonte da informação seria Hashem al Hashimi, assessor do
governo iraquiano, que afirma que os dirigentes do EI “viram-se
obrigados a reduzir pela metade o salário dos dirigentes e em 30% o
de todos os soldados e militares”, referindo-se à situação em
Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, que está sob controle do
grupo desde junho de 2014.
Além dos cortes salariais, o Estado Islâmico também está
realizando vendas de propriedade confiscadas de cidadãos cristãos,
que foram obrigados a sair da cidade depois da chegada do grupo
terrorista em 2014.
Disse o assessor do governo iraquiano:

Os preços dos alimentos sobem diariamente e o Estado


Islâmico tenta compensar as perdas com o aumento de
impostos. A saúde também já começou a sentir. Os
medicamentos estão ficando mais caros e as cirurgias estão
reservadas para quem pertence ao Estado Islâmico.

Ainda de acordo com a publicação, os cortes de despesas


também estão sendo aplicados em território sírio. Neste caso, os
bombardeios a refinarias e caminhões de transporte de petróleo – a
maior fonte de rendimento do Estado Islâmico, seguido do tráfico de
antiguidades e resgates por rapto de pessoas – atingiram de forma
contundente as finanças do califado.
CAPITULO V
O Estado Islâmico é islâmico?

Muitas críticas têm sido feitas em relação à seguinte questão: o


Estado Islâmico é mesmo islâmico? Ou seja, o discurso político de
seus líderes e suas práticas estariam de fato de acordo com a fé
islâmica e com os ensinamentos deixados por Maomé, ou o termo
islâmico está sendo utilizado indevidamente?
Ao que parece, os líderes do EI se veem como muçulmanos e
parecem seguir os ensinamentos e as exigências do Islã. Neste
sentido, seriam de fato islâmicos. No entanto, quando se analisam
muitas das ações do grupo, verifica-se que elas não estão
autenticamente de acordo com os preceitos dessa religião, não
refletindo os princípios doutrinários do islamismo.
Mais ainda, eles não representam o pensamento da maioria
dos outros muçulmanos, pois extraem seletivamente dos textos e
tradições islâmicas aquilo que lhes interessa, repudiando o que
consideram crenças desviadas dos outros muçulmanos, estando,
portanto, em desacordo com aquilo que muitos outros muçulmanos
entendem como genuinamente islâmico.
Uma violência brutal como o estupro e a escravização de
mulheres, por exemplo, é apoiada e até disciplinada por clérigos do
EI, que se apoiam em interpretações raciais dos ensinamentos do
profeta Maomé. Islâmicos moderados, no entanto, não mais
admitem essas práticas nos dias de hoje, como muitos judeus e
cristãos não aceitam os preceitos de Moisés de matar todos os
inimigos e escravizar sexualmente as mulheres jovens.
Muitos líderes islâmicos não reconhecem autoridade nas
interpretações e ações do EI, não admitindo que essa organização
seja representante da maioria dos muçulmanos. Assim, como
acontece com os cristãos seguidores da Igreja Católica Romana e
seus concorrentes evangélicos, cabe a eles decidirem sobre quem
está efetivamente sendo fiel a Alá, e a Maomé.
Diversas reações contra a interpretação radical dos livros
sagrados do Islã realizadas pelos clérigos do EI já se fazem sentir.
Segundo foi publicado em 1º de outubro de 2014 no site de
Ryan Mauro, especialista em Oriente Médio do Projeto Clarion, uma
carta assinada por 126 estudiosos muçulmanos internacionais foi
difundida à imprensa, refutando os argumentos teológicos do EI,
embora defendendo o objetivo de reconstrução de um Califado onde
a lei imperante seria a Sharia, a Lei Islâmica, incluindo suas
punições brutais (hududs), fixadas no Alcorão e nos Hadiths, sendo,
portanto, obrigatórias.
Os subscritores concordam que um califado é uma obrigação
para a comunidade islâmica. No entanto, um novo califado exige o
consenso dos muçulmanos, e não apenas “daqueles em um
pequeno canto do mundo”, dizia a carta. A crítica principal ao
Estado Islâmico feita pelos estudiosos é a de que o grupo terrorista
não segue os procedimentos corretos para garantir a justiça e a
misericórdia.
Uma contestação inesperada ao EI aparece em um filme de 90
minutos, produzido na Indonésia – o país de maior população
muçulmana do mundo –, lançado em 26 de novembro de 2016, que
constitui um vigoroso repúdio religioso às práticas do Estado
Islâmico.
Um artigo de Joe Cochran, publicado no jornal The New York
Times de 28 de novembro de 2015 apresenta a opinião de A.
Mustofa Bisri, líder espiritual do grupo Nahdlatul Ulama, uma
organização muçulmana indonésia que alega contar com mais de 50
milhões de membros:

A disseminação de um entendimento raso do Islã torna essa


situação crítica, à medida que elementos altamente estridentes
da população muçulmana em geral – os grupos extremistas –
justificam seu comportamento bronco e frequentemente
selvagem alegando agir de acordo com a orientação de Deus,
apesar de estarem terrivelmente errados.

Mustofa Bisri acrescenta que de acordo com a visão sunita do


Islã “cada aspecto e expressão da religião deve estar impregnado
de amor e compaixão, e promover a perfeição da natureza humana”.
A reportagem afirma que essa mensagem de tolerância é o tema
principal da campanha do grupo contra o jihadismo, que será
realizada online, e em salões de conferência de hotéis e centros de
convenção da América do Norte, Europa e Ásia.
Referindo-se às vozes discordantes do islamismo, Bonar Tigor
Naipospos, vice-presidente do conselho executivo do Instituto
Setara para Democracia e Paz em Jacarta, declarou:

Eles querem mostrar à sociedade indonésia: “Veja, somos


islâmicos e temos valores universais, mas também respeitamos
as culturas locais. Não somos como o Islã do Oriente Médio”.

A estrutura de Inteligência do EI

Um nome se destaca na criação da estrutura de Inteligência do


Estado Islâmico: Samir Abd Muhammad al-Khlifawi, o Haji Bakr, o
“Senhor das Sombras”, como alguns o chamavam, um ex-coronel
do Serviço de Inteligência da força de defesa aérea de Saddam
Hussein, ao qual já nos referimos em capítulo anterior. Bakr saiu do
ostracismo ao qual foi relegado após a invasão norte-americana
para despontar como o homem forte que planejou e executou a
tomada de pedaços do território da Síria e do Iraque, elegeu al-
Baghdadi para Califa, criou as bases do Califado Islâmico e também
a estrutura para a sua manutenção e expansão – os Serviços
Secretos.
A estrutura de Inteligência do Estado Islâmico ainda é pouco
conhecida, mas hoje se sabe que ela foi montada com os
conhecimentos e mesmo com os profissionais que pertenceram à
Mukhabarat, o serviço secreto de Saddam, que abandonaram o país
logo após o 9 de abril de 2003, data em que as tropas norte-
americanas entraram em Bagdá.
As roupas pretas usadas pelos membros do EI e a violência
com que agem, que se tornaram sua marca registrada, parecem ser
uma imitação dos Fedayeen, uma força paramilitar criada em 1990
por Saddam Hussein para lutar contra qualquer inimigo. Os
Fedayeen eram considerados as forças mais leais ao governo de
Saddam, e por isso foram utilizados contra opositores internos. Os
Fedayeen também desempenharam um papel importante na guerra
de 2003, resistindo à invasão americana.
À medida que surgem mais e mais informações, cada vez mais
se tornam claras as conexões entre o antigo governo de Saddam e
o Estado Islâmico: suas táticas, sua brutalidade e seu controle sobre
a população por meio de um aparato de Inteligência e segurança
copiados do antigo regime, agora empregado nas áreas dominadas
que compõem o Califado Islâmico.
Sabe-se que Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do Estado Islâmico,
colocou alguns iraquianos em muitas posições de liderança dentro
de sua organização e no funcionamento do seu califado. Assim,
para manter o controle da população e administrar as atividades de
Inteligência e contrainteligência, particularmente a
contraespionagem, nada melhor do que entregar essa tarefa a quem
era especialista no assunto: um ex-membro da Inteligência Militar de
Saddam: Haji Bakr.
A Mukhabarat tinha também as missões de contraespionagem
doméstica e de atividades clandestinas, e ficou famosa pela forma
como seus membros sabiam tudo da sociedade iraquiana por meio
de um ativo sistema que buscava informações nas escolas,
mesquitas, ruas e reuniões do partido Baath. Tudo era gravado e
guardado para ser usado quando necessário.
O plano de recrutamento e espionagem obedecia os seguintes
passos: o grupo procurava obter apoio das pessoas por meio do
Da’wah, uma palavra árabe que significa convidar ou convocar
alguém. Esse termo é frequentemente usado para descrever
quando os muçulmanos compartilham sua fé com os outros, a fim
de ensinar-lhes mais sobre o Islã. Dentre aqueles que vinham ouvir
as palestras e participar de cursos sobre a vida islâmica, um ou dois
eram selecionados e instruídos a espionar sua aldeia e obter uma
ampla gama de informações.
Muitas das práticas realizadas pelo EI são imitações das que
eram praticadas em 1994, quando foi lançada a Campanha de Fé,
do ditador Saddam Hussein, que introduziu no país os rigorosos
preceitos do Islã. As amputações de membros passaram a ser
aplicadas em casos de roubo, e nos últimos dois anos de seu
governo uma campanha de decapitações visou principalmente as
mulheres suspeitas de prostituição, matando mais de 200 pessoas,
segundo denúncias de grupos de direitos humanos.
Vídeos promocionais produzidos na era Hussein apresentam
cenas semelhantes às que hoje são transmitidas pelo Estado
Islâmico, mostrando a formação Fedayeen, que marchava com
máscaras pretas praticando decapitações públicas.
De acordo com Liz Sly, do jornal The Washington Post, quase
todos os líderes da EI são ex-oficiais iraquianos, incluindo os
membros das comissões militares e de segurança, e a maioria dos
seus emires. Segundo ela, um ex-emir do EI disse que na Síria:

Todos os tomadores de decisão são iraquianos, e a maioria


deles são ex-oficiais do exército. Esses oficiais estão no
comando, e são eles que fazem as táticas e os planos de
batalha”, diz Liz, “Mas os próprios iraquianos não lutam. Eles
colocaram os combatentes estrangeiros nas linhas de frente.

Segundo analistas da Inteligência, os melhores oficiais do


antigo regime de Saddam Hussein estão agora em funções militares
do EI, razão pela qual eles se mostram tão fortes nas áreas de
Inteligência e no campo de batalha.
Voltando ao Serviço de Inteligência do EI, sabe-se que seu
crescimento se deu com a abertura de centros islâmicos que não
tinham qualquer ligação aparente com o grupo militante. Esses
centros foram o ponto de apoio ideal para que realizassem a
identificação e o recrutamento de seus futuros agentes.
Eles também serviam para realizar a coleta de informações
sobre possíveis rivais e também funcionavam como depósitos de
armas e alojamentos para os jihadistas, assim que a organização
começou a consolidar seu domínio sobre o território.
Apesar de toda a atenção que vêm despertando pouco se sabe
sobre a estrutura e o funcionamento dos Serviços de Inteligência do
Estado Islâmico. Mas um desertor que usa o pseudônimo de Abu
Khaled, que pertenceu ao setor de Inteligência da organização,
lançou um pouco de luz sobre sua constituição interna, revelando ao
jornalista Michael Weiss, do jornal Dayle Beast, os métodos de
espionagem por eles empregados e que ajudou a construir o
“Estado Islâmico”.
Estruturado à semelhança da Mukhabarat ou das agências de
Inteligência dos tiranos árabes tradicionais, a estrutura de
Inteligência e Segurança – Amniyat – do Estado Islâmico é de vital
importância para a sobrevivência do EI, e funciona como a sua
polícia secreta.
Essa estrutura é composta por quatro agências separadas,
cada uma com o seu próprio papel: o Amn al-Dakhili, equivalente a
um Ministério do Interior, responsável pela segurança em cada
cidade; a Amn al-Askari, ou Inteligência militar; e a Amn al-Kharji,
com as funções de Inteligência externa, espionagem, infiltração e
perpetração de operações terroristas, que estaria por detrás da
surpreendente expansão do EI por toda a Síria, apesar de ser
forçado a combater inimigos em várias frentes. Por fim, temos a
Amn al-Daula, a segurança do Estado, cujas funções estariam mais
próximas às de uma polícia federal (como o Shin Bet de Israel ou o
FBI, nos EUA), responsável pela execução de operações de
contrainteligência (em especial a contraespionagem de agentes
estrangeiros), interceptando comunicações (telefonemas ou
conexões de Internet não autorizados).
O grupo infiltra seus agentes treinados nas áreas ou círculos de
interesse da organização para obter informações potencialmente
úteis a suas operações. A exemplo do que acontecia com o extinto
KGB, na União Soviética, e seus homólogos do Leste Europeu, seus
agentes procuram saber tudo sobre a vida de cada cidadão, rico ou
pobre, procurando descobrir qualquer informação que possa ser
usada para fins de chantagem e extorsão.
Apresentamos, a seguir, um exemplo das informações
necessárias que os chefes locais da Inteligência têm de obter:
• relação das famílias e dos cidadãos mais poderosos da
comunidade, com o objetivo de cooptação ou eliminação da
liderança sociopolítica;
• fluxos de renda de indivíduos poderosos, de forma a extorqui-
los sob ameaças de morte;
• nomes dos líderes dos grupos rebeldes locais e sua
capacidade em armamento, para avaliar seu potencial de oposição
armada, bem como sua orientação político-religiosa;
• condutas ilegais ou imorais (de acordo com as leis islâmicas)
de rebeldes e ativistas, que possam ser usadas para fins de
chantagem.
Corrupção e comportamento homossexual são considerados
uma grande vulnerabilidade. Além disso, informações sobre
adultério, ateísmo e alcoolismo são de grande importância apara os
agentes do EI.
De acordo com Abu Khaled, o EI está dedicando recursos para
se infiltrar em outros grupos anti-Assad em toda a Síria, a fim de
expandir seu “Califado”. Abu Khaled disse que o Estado Islâmico
está fornecendo dinheiro e mão-de-obra para a cooptação de
grupos rebeldes em toda a Síria, mesmo aqueles que se anunciam
como de orientação político-religiosa secular ou moderada.
Outra prática utilizada é a implantação dos chamados agentes
adormecidos, que ficam inoperantes até serem chamados para
manipular grupos rivais em todo o país. Essa técnica é a mesma
utilizada nos campos de batalha do EI na Síria e no Iraque.
A prática consiste em colocar esses agentes nas fileiras
superiores de grupos militantes rivais: por exemplo, treinam
recrutadores sírios e depois os enviam de volta a sua organização
de origem dando-lhes de US $ 200.000 a US $ 300.000. Assim, com
bastante dinheiro, rapidamente atingem altas posições. São os
chamados agentes de influência, que de fato conseguem influenciar
o comportamento de outros grupos, de acordo com os interesses do
EI, além de recolher informações úteis.
Informações fornecidas por outros desertores do EI dão conta
de que a nova orientação da organização em relação aos
estrangeiros é no sentido de que eles podem servir melhor à causa
permanecendo em seus países e executando atentados terroristas
como aqueles que vimos acontecer na França e na Bélgica.
A vantagem, neste caso, é que seus nomes não se encontram
em nenhuma lista de suspeitos, estando fora, portanto, da mira das
autoridades de segurança. Assim, muitos países estão albergando
em seu seio células recrutadas pelo EI que se encontram
dormentes, prontas a serem despertadas quando houver
necessidade.
Finalmente, podemos dizer que a estrutura de Inteligência do
Estado Islâmico segue o padrão das ditaduras já conhecidas que
funcionavam nos países sob regime marxista, por seu forte
componente repressor. Analisando as funções dos diferentes
componentes dessa estrutura, é difícil não compará-la com as
estruturas do KGB, na União Soviética, e da Stasi, na Alemanha
Oriental, dentre outras, mais voltados à vigilância e ao controle
interno de seus cidadãos.
Muitos dos líderes que conduziram a expansão militar do EI
para a Síria foram treinados pelo KGB e tinham experiência de
trabalhar em favor de um governo autoritário como o de Saddam
Hussein. Isto explica porque eles superaram a Al-Qaeda na Síria,
que não foi capaz de conquistar áreas, identificar, cooptar ou
eliminar aqueles que resistissem, e de controlar a população, como
faz o EI. Tampouco tiveram habilidades em realizar a espionagem, a
contraespionagem e a propaganda, como realiza, com sucesso, o
Estado Islâmico.
Mas como sempre acontece nesses casos, com o passar do
tempo as pessoas começam a descobrir as mentiras de seus
dirigentes e a se sentir mal com os excessivos controles sobre a
vida de cada cidadão, percebendo-se cativos e fechados em sua
própria sociedade. Também ocorre da população não mais aceitar o
papel de fazer delação sobre tudo e sobre todos, o que provoca um
clima de medo e desconfiança mútua, como vimos acontecer com a
ação da Stasi na Alemanha Oriental, onde havia quilômetros de
arquivos cheios de casos de delações, intrigas e futricas.
Também concorre para azedar o humor da população a
presença dos jihadistas estrangeiros que gozam de várias benesses
e se imiscuem na vida dos cidadãos dizendo como eles devem se
vestir ou se comportar, o tamanho do cabelo e da barba, além de
denunciá-los pelos mínimos deslizes. Tudo isso serve para corroer
os pilares de uma sociedade que deveria ser cooperativa, além de
aumentar o ódio contra os pretensos libertadores.

Os espiões contra o Estado Islâmico

Já me referi, em diversas partes deste livro, sobre a importância


do produto de uma Agência de Inteligência no assessoramento do
presidente da República, alertando-o sobre os óbices que possam
se contrapor aos objetivos governamentais em todos os campos do
Poder Nacional, particularmente nos de Segurança e Defesa.
No caso do combate ao terrorismo, não poderia ser diferente.
Será pelo trabalho de seus analistas e agentes que se pode esperar
vencer essa guerra, particularmente contra o EI.
Comecemos com um dos maiores Serviços do mundo e um dos
mais envolvidos nos conflitos do Oriente Médio, a Central
Intelligence Agence (CIA) norte-americana.
Há algum tempo, muitos especialistas em Inteligência e ex-
agentes da CIA e do Pentágono criticavam o fato de que o
Departamento de Defesa tinha em grande parte abandonado o uso
da chamada Human Intelligence (HUMINT, a Inteligência humana,
obtida por intermédio dos chamados “agentes secretos” ou de
colaboradores) contra o Estado Islâmico e a Al-Qaeda, optando pelo
emprego de “meios técnicos” – interceptação eletrônica,
rastreamento pela Internet e vigilância por drones, dentre outros.
Isto aconteceu na guerra do Afeganistão e depois prosseguiu no
Iraque e na Síria. Um antigo amigo meu que pertence àquela
organização e que atuou no Afeganistão me informou que os
comandantes militares na área davam preferência aos “meios
técnicos” – que demandavam muito mais tempo para acompanhar o
inimigo – em lugar das operações com agentes, cujos resultados
podem ser mais rápidos e compensadores.
Um dos fundamentos da espionagem, o recrutamento e a
gestão de espiões, segundo eles, tinha sido praticamente relegado a
um segundo plano, optando-se por acordos de cooperação com os
serviços de Inteligência amigos, como os de Israel, Jordânia,
Paquistão e Arábia Saudita. O problema é que muitos dos membros
de alguns desses Serviços não são confiáveis e sua lealdade é
questionada. Um exemplo disso ocorreu em 2009, quando um
espião cedido à CIA pela Inteligência jordaniana para se infiltrar no
círculo íntimo da Al-Qaeda acabou por se tornar um agente duplo, e
se explodiu em uma base da CIA no Afeganistão, matando sete
americanos, um jordaniano e um afegão.
William Hill, o único ex-agente da CIA no Congresso e membro
do Comitê de Segurança da Casa, que atuou naquela região,
defende que as operações de espionagem tradicionais contra o EI
devem ser reforçadas. Ele recebeu o apoio do general Joseph
Dunford, presidente do Joint Chiefs of Staff, para quem é
dramaticamente necessária a coleta de Inteligência, pois, segundo
ele, só isso fará com que as operações sejam mais eficazes.
Muitas críticas também têm surgido por parte de antigas
autoridades da CIA em relação à capacidade das agências de
Inteligência norte-americanas em realizar aquilo que é chamado boa
Inteligência, ou seja, relatórios de alta qualidade para os decisores.
Essas agências também são acusadas de não preverem
adequadamente as intenções e as capacidades do Estado Islâmico,
um erro que poderia deixar o país vulnerável a ataques daquela
organização extremista.
Derek Harvey, um ex-assessor da Defense Intelligence Agency
(DIA) em relação ao Iraque, mais tarde conselheiro do Pentágono
sobre o Afeganistão e Paquistão, afirmou que os relatórios
produzidos pelas Agências de Inteligência dos EUA eram
perigosamente falhos. Segundo ele, os ataques terroristas lançados
contra os países ocidentais não eram perpetrados pelos lobos
solitários, como se imaginava, mas faziam parte de uma estrutura
de comando mais ampla que pertencia ao próprio califado.
De fato, parece que algo anda errado com a Inteligência
americana. Cada vez mais se avolumam críticas de ex-agentes da
CIA sobre o desempenho da Agência em sua guerra contra o
terrorismo no Afeganistão, na Síria e no Iraque.
Este é o caso de Douglas Laux, um agente da CIA que lançou
recentemente um livro, Left of Boom, em que revela falhas nas
Operações de Inteligência realizadas no Afeganistão e na Síria.
Laux cita as dificuldades para trabalhar com diferentes países da
região, no sentido de enviar armas para ajudar os diversos grupos
rebeldes que estavam lutando na Síria. Essas dificuldades estavam
relacionadas à pouca capacidade da Agência em controlar as brigas
e traições entre sauditas, catarianos e outros árabes.
Um ponto denunciado pelo ex-agente são as missões
conflitantes entre militares e agentes de Inteligência civis, cada um
trabalhando com um objetivo distinto, o que torna pífios os
resultados. Laux diz ainda sobre outro aspecto que envolve a vida
de um agente em atividade em zona de guerra, que é o desgaste
psicológico e emocional, que leva alguns à drogadição, além de
interferir em sua produtividade.
De fato, imagino a complicação que deve ser operar em um
ambiente hostil, cercado de aproveitadores locais que vendem cada
fragmento de informações – os americanos estavam desesperados
por Inteligência e alguns afegãos estavam explorando esse
desespero para encher seus bolsos –, orientado por chefes que não
se entendem, mesmo trabalhando para um mesmo objetivo.
Muitos Serviços de Inteligência estão se voltando para outras
áreas de interesse. O serviço alemão, por exemplo, atua em outros
países para tentar identificar os terroristas do EI que se misturam
aos refugiados que buscam aquele país. A agência de Inteligência
alemã tem certeza de que agentes do Estado Islâmico estão
infiltrados entre os refugiados.
Hans-Georg Maassen, chefe da agência de Inteligência interna
da Alemanha, o BfV (Bundesamt für Verfassungsschutz, ou Bureau
Federal para a Proteção da Constituição) afirmou que as forças de
segurança do país frustraram um potencial ataque em Berlim.
Afirmou ainda que os ataques terroristas em Paris em novembro
passado haviam comprovado que o Estado Islâmico havia infiltrado
terroristas entre os refugiados que fogem para a Europa.
Já a Inteligência francesa, a Direction Générale de la Sécurité
Extérieure (DGSE), cada vez mais se envolve no conflito da Líbia,
que mergulhou no caos após a queda do ex-ditador Muammar
Gaddafi. As operações francesas visam a combater a penetração
cada vez maior dos jihadistas do Estado Islâmico, realizando
missões de infiltração em áreas urbanas e rurais, penetração nas
fileiras da guerrilha e libertação de reféns. Temem os especialistas
franceses, no entanto, que operações secretas, como as que
estavam sendo realizadas, podem abrir caminho para um
envolvimento mais profundo. Mas, se por um lado Serviços de
Inteligência se unem para combater o EI, outros o apoiam, com é o
caso do Serviço de Inteligência da Turquia.
Há muito se desconfiava que a Turquia apoiava secretamente o
Estado Islâmico, fornecendo armas e treinando seu pessoal. Em
dezembro de 2015, circularam notícias de que 150 militantes do EI,
de origem turca, capturados por forças curdas Peshmerga haviam
sido treinados por membros da Inteligência Turca.
O jornal ADW News de 7 de janeiro de 2016 noticiou que
serviço de Inteligência sírio havia lançado um documento provando
que o Serviço de Inteligência Turco (MIT) contratou pessoas na Síria
para recolher informações e fornecer suporte operacional de
Inteligência para o EI.
De acordo com a agência de notícias al-Hadath, documentos
recém-descobertos pertencentes ao Serviço de Inteligência turco
comprovam sua ligação com o recrutamento, apoio em Inteligência
e formação de equipes de terrorismo.
As organizações curdas na Turquia acreditam que os dois
grandes ataques do Estado Islâmico em comícios da maioria curda,
em Suruc e em Ancara, tinham por objetivo apoiar a reeleição do
presidente Erdogan, e que agentes do MIT com grande influência no
EI teriam tomado parte dessas conspirações.
Como se sabe, o pior atentado terrorista na história da Turquia
moderna foi realizado por agentes do EI nas ruas de Ancara,
quando morreram mais de 100 pessoas, o que reforçou as
afirmativas da organização de que para eles não existem fronteiras,
e que podem chegar a qualquer lugar, quando e como quiserem.
Mas não é somente de atentados que se ocupam as agências
de Inteligência no Oriente Médio: a região é um verdadeiro ninho de
espiões de todas as nacionalidades.
Em 8 de julho de 2015, o jornal Egypt Dayle News informou que
as Forças Armadas do Egito haviam capturado agentes secretos da
Turquia trabalhando com terroristas do EI na região norte do Sinai,
onde preparavam operações terroristas e de guerrilha levadas a
cabo pelo Estado Islâmico. Um dos capturados foi Ismail Aly Bal, um
coronel da Organização Nacional de Inteligência da Turquia,
coordenador de Operações de Campo, o que comprovaria a
participação da Turquia em tentativas de desestabilizar o Egito e no
treinamento de militantes do EI.
Um alto funcionário do Ministério das Relações Exteriores disse,
mais tarde, que o Egito poderia provar que a Turquia estava
apoiando uma filial do Estado Islâmico no Sinai, bem como
terroristas da organização Irmandade Muçulmana e do Hamas.
Estas provas seriam as imagens de quatro agentes da Inteligência
da Turquia presos no Sinai, comandados pelo coronel Ismail.
Fontes do Mossad israelense também acusaram o governo
turco de permitir a construção de três campos de treinamento para
extremistas em território fronteiriço com a Síria e o Iraque,
supervisionados por agentes do serviço secreto turco. Tudo isso
parece comprovar as suspeitas de que existe uma aliança secreta
entre a Turquia e o Estado Islâmico, bem como com outros grupos
radicais islâmicos que combatem na Síria e no Iraque.
As relações entre Egito e Turquia ficaram estremecidas desde
que o presidente Mohammed Mursi, líder da Irmandade Muçulmana,
foi derrubado do poder por al-Sisi. O governo turco considerou essa
ação um golpe de Estado e recebeu muitas lideranças e militantes
da Irmandade Muçulmana.
Mas não é só a Turquia que é acusada de ajudar os jihadistas
do EI. Seguindo o preceito “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”,
Israel também estaria dando apoio ao EI, por mais incrível que isso
possa parecer, segundo reportagem publicada na edição on-line do
tabloide Veterans Today, em sua edição de 4 de maio de 2016.
Segundo a reportagem, o assessor de Segurança do Estado-
Maior das Forças Armadas do Irã, general Rastegarpanah, criticou
Israel por apoiar os grupos terroristas nos países da região,
especialmente a Síria e o Iraque. “Se não fosse o apoio de
Inteligência de Israel para os terroristas, os grupos terroristas na
Síria certamente teriam sido destruídos por volta de 2 a 3 anos
atrás”, disse o militar.
Segundo Rastegarpanah, as organizações dissidentes que
estão enfrentando o governo sírio são financiadas pelos órgãos de
Inteligência de Israel, que lhes fornecem munição e até hospitais de
campanha. Em abril de 2016, o ministro da Defesa iraniano,
brigadeiro-general Hossein Dehqan, denunciou na Conferência de
Moscou sobre Segurança Internacional que grupos terroristas
estavam sendo apoiados pelos EUA, Israel e Arábia Saudita.
Como se vê, a classificação de “terrorista” depende muito dos
interesses de quem acusa, mas, como observa um experiente
Oficial de Inteligência da ABIN, nunca se soube de um atentado
praticado pelo Estado Islâmico contra Israel. Portanto, as acusações
dos militares iranianos tanto podem fazer parte de uma campanha
de desinformação da Inteligência militar daquele país, como ainda
retratar manobras diversionistas dos israelenses.

A vida nada fácil dos espiões

A vida dos espiões nunca foi fácil, exigindo sempre muita


renúncia, espírito de sacrifício e uma boa dosagem de patriotismo.
Ser descoberto faz parte do jogo, e a punição geralmente varia de
prisão a pena de morte. Mas para o Estado Islâmico, o ato de
espionar ou a simples suspeita de que alguém está realizando
espionagem é motivo suficiente para que seus propagandistas
coloquem a cabeça para funcionar e inventem formas cruéis de
matar os acusados e de divulgar isso em vídeos repulsivos nas
redes sociais.
Da mesma forma como acontecia em regimes ditatoriais como a
extinta URSS, Alemanha Oriental, além de China e Cuba
atualmente, dentre outros, também os dirigentes do Estado Islâmico
são extremamente preocupados com a possibilidade de serem
infiltrados ou espionados por agentes estrangeiros. Assim a
perseguição a supostos ou reais espiões é uma verdadeira paranoia
dentro do EI, podendo até atingir seus próprios membros. Qualquer
suspeita de colaboração com os Serviços de Inteligência
estrangeiros é punida com a morte.
Também como ocorria nesses países, pouco a pouco o EI vai
tendo necessidade de aumentar a vigilância sobre a população, daí
a necessidade de recrutar frequentemente novos agentes.
Da mesma forma que nos países sob regime comunista, a
doutrinação é uma parte importante do treinamento dos agentes.
Informação publicada no jornal Heavy, em sua edição eletrônica
de 23 de junho de 2015, citando fontes do Wall Street Journal,
comentou a forma bizarra das execuções praticadas pelo EI,
mostrando vídeos de propaganda de execuções brutais de 15
supostos espiões iraquianos.
O vídeo, com cerca de 7 minutos, mostra combatentes do EI
que conduzem três homens com as mãos amarradas atrás das
costas. Eles estão vestidos com os macacões laranja dos
prisioneiros e são enfiados em um carro. Em seguida, um homem
mascarado explode o carro com uma granada-foguete. Podem-se
ouvir os homens gritando enquanto o carro queima. As vítimas
foram acusadas de fornecer informações que ajudaram a coalizão
internacional liderada pelos Estados Unidos a lançar ataques aéreos
que atingiram alvos em Mossul, cidade controlada pelo EI.
O vídeo mostra ainda uma segunda execução, na qual
terroristas mascarados carregam cinco homens acusados de serem
espiões, acorrentados em uma gaiola fechada com cadeados. A
gaiola é levantada ao lado de uma piscina cheia de água e, em
seguida, eles a baixam lentamente até que os quatro homens
fiquem submersos. Uma câmera subaquática mostra os homens
gritando e lutando para escapar. Depois de algum tempo, a gaiola é
suspensa e os homens são vistos espumando pela boca.
Na parte final do vídeo, sete homens estão amarrados e são
obrigados a se ajoelhar. Um colar de explosivos é amarrado em
torno do pescoço deles. Em seguida, os explosivos são detonados,
cortando suas cabeças.
O vídeo também mostra os supostos espiões confessando seus
alegados crimes de espionagem antes de suas execuções. Em
outro vídeo grotesco divulgado pelo EI, intitulado “A dissuasão dos
espiões 1”, publicado pelo Heavy de 17 de junho de 2015, outro
suposto espião aparece sendo crucificado por um jihadista.
Em 4 de janeiro de 2016, o jornal Japan Times publicou a
informação de que o grupo Estado Islâmico ameaçou a Grã-
Bretanha em um vídeo postado na Internet que mostrava a morte de
cinco “espiões” que supostamente trabalharam para a coalizão
internacional no Iraque e na Síria.
O vídeo mostra os cinco homens em Raqqa, capital do
autodeclarado Califado Islâmico, confessando a realização de atos
de espionagem.
As “confissões” dos cinco não identificam claramente para quais
países eles trabalhavam, mas sugere que seria para a coalizão
internacional. As acusações foram de que eles passaram vídeos e
fotos das condições de vida em Raqqa, na Síria, para pessoas na
Turquia, além de monitorar os movimentos dos soldados do EI.
No vídeo, a sequência mostra os cinco homens vestindo os
típicos macacões laranja dos prisioneiros, ajoelhando-se diante de
cinco combatentes mascarados, todos com uniformes militares e
armados com pistolas. Depois que um porta-voz lança insultos
contra o então primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron, os
cinco homens são mortos com uma bala na cabeça.
Em 2 de dezembro de 2015, o EI divulgou novo vídeo
mostrando a decapitação de um homem identificado como Khasiev
Magomid, um suposto espião russo do Serviço Federal de
Segurança (FSB), da Rússia, na cidade de Raqqa. Da mesma forma
que em outros vídeos, em que combatentes lançam ameaças contra
dirigentes de países importantes, neste caso um soldado lança
ameaças contra Vladimir Putin e seus familiares. Um alto funcionário
do FSB em Moscou negou que Magomid fosse um agente do FSB,
e a agência Reuters informou que, oficialmente, o governo de
Moscou não listou nenhum dos seus cidadãos que estivesse em
cativeiro do EI; portanto, é possível que se tratasse apenas de um
informante daquela organização.
Os truques sujos da espionagem

Em 27 de outubro de 2015, outra notícia publicada pelo


Veterans Today, um tabloide cuja reputação não pode ser avaliada,
causou preocupações entre algumas lideranças muçulmanas.
Segundo a notícia, um relatório de 2014 aponta o proclamado califa
do EI, Abu Bakr al-Baghdadi como sendo na verdade um judeu,
agente do Serviço de Inteligência de Israel, o Mossad, cujo nome
verdadeiro seria “Simon Elliot”, ou “Elliot Shimon”. Sua infiltração
nas fileiras dos terroristas fazia parte de um plano da Inteligência
americana, a CIA, juntamente com Israel, para desestabilizar a
situação política no Oriente Médio.
O plano, que teria sido descoberto pela Inteligência iraniana,
previa a infiltração de agentes na estrutura civil e militar dos países
considerados ameaça à Israel, de forma que este último se
beneficiasse da intervenção dos EUA na região.
O tabloide acrescenta que al-Baghdadi tem colaborado com os
serviços secretos americanos, britânicos e de Israel no sentido de
criar uma organização capaz de atrair extremistas do mundo inteiro.
O chamado “Elliot” teria sido recrutado pelo Mossad e treinado
em espionagem e guerra psicológica contra as sociedades árabes e
islâmicas. A informação teria sido obtida de Edward Snowden, o ex-
funcionário terceirizado da CIA que publicou milhares de
informações confidenciais que havia subtraído criminosamente dos
computadores da Inteligência norte-americana, principalmente da
Agência de Segurança Nacional (a NSA, em inglês)
A notícia parece se tratar claramente de desinformação,
possivelmente realizada pelo Mossad para minar a confiança dos
militantes do EI em seu líder maior. Nenhuma outra fonte confirma
as alegações do Veterans Today, e Snowden aparece na história
apenas como uma tentativa de dar credibilidade à estória.
Analisando-se sob a ótica da Inteligência, seria muito difícil a
realização de uma operação desse tipo, que na linguagem
operacional exigiria uma Estória-Cobertura profunda, difícil de ser
mantida por muito tempo, haja vista que o acusado tem todo um
antecedente, seja nas prisões onde ficou, seja na vida entre seus
colegas de juventude, bastante documentado e testemunhado por
seus companheiros de época. O objetivo de causar desconfiança
pode até ter obtido algum êxito, mas somente entre aqueles que não
pertencem ao círculo mais íntimo de al-Baghdadi.

O recrutamento no Estado Islâmico

Pessoas comuns do mundo todo ao assistirem pela televisão às


atrocidades cometidas pelo Estado Islâmico perguntam-se como
indivíduos aparentemente normais podem optar por se envolver em
tal tipo de violência, abandonando seu país, seus parentes e amigos
e viajando grandes distâncias para se juntar ao grupo terrorista.
Muitos deles, como o inglês “Jihad John”, depois de aparições
espetaculares em vídeos onde degolava pessoas que
aparentemente não lhe fizeram mal, já morreram em combate, sem
honra nem glória, se é que existe glória em degolar inocentes.
Outros estrangeiros participam em ações de formação de quadros,
captação de recursos, disseminação do ódio e de visões radicais do
Islã, planejando e executando a violência terrorista.
No período da Guerra Fria, uma das grandes preocupações dos
grandes serviços de Inteligência era recrutar agentes do Serviço
adverso e transformá-los em Agentes Duplos; a outra, e talvez mais
importante, era infiltrar agentes nas organizações adversárias e
torcer para que eles não fossem descobertos. Essas são as armas
da espionagem que continuam sendo necessárias para que se
possa obter informações que permitam melhor compreender o
inimigo e se prevenir de atentados, no caso das organizações
terroristas.
A história da espionagem está cheia desses personagens. Eu
mesmo tenho boas lembranças de alguns com os quais trabalhei,
que muito ajudaram o Ocidente a entender os pensamentos e
intenções dos soviéticos em todo o mundo, conhecer seus agentes
e seu modus operandi, o que auxiliou a acabar com a
aparentemente invencível União das Repúblicas Socialistas
Soviética.
Ao escrever este livro sobre o Estado Islâmico, é impossível não
fazer um paralelo entre a ascensão do Estado Islâmico e o início do
comunismo na Rússia, no início do século passado, então imersa no
atraso e na pobreza de sua população, humilhada com as
sucessivas derrotas durante a Primeira Guerra Mundial, o que levou
à derrocada da Dinastia dos Romanovs, que reinou absoluta por
300 anos e findou com o assassinato do tímido Tzar Nicolau II e de
toda a família imperial.
Àquela época, quando o comunismo dava seus primeiros
passos, a ideia de uma nova sociedade na qual haveria alimento,
igualdade e justiça para todos, muito bem retratada pelo jornalista
americano John Reed em sua obra Os Dez Dias que Abalaram o
Mundo, serviu para atrair milhares de europeus e americanos
àquele país, para testemunhar e auxiliar na construção dessa nova
sociedade. O desengano que se seguiu frustrou aquelas pessoas,
muito idealistas mas pouco pragmáticas, que enfrentaram vários
desafios para ajudar na utópica construção do primeiro Estado
socialista da história.
Hoje vejo claramente no Oriente Médio uma situação parecida,
em que déspotas, esclarecidos ou não, fazem guerra a seus
vizinhos – como no caso de Saddam Hussein e sua guerra contra o
Irã e a invasão do Kuwait –, esquecendo-se de que sua pobre
população quer participar do progresso do país, e não é atendida;
como no caso de Mohammad Reza Pahlavi, ex-xá do Irã, que
pensava, ao ocidentalizar o país, que estava melhorando a vida da
população, até ser destronado pela revolução de 1979.
Outros viviam em um mundo de ilusões e perversões, como o
falecido dirigente líbio Mohamar Khadafi, autoproclamado Guia da
Revolução, que estuprava jovens virgens e depois as mantinha em
um harém especial; sodomizava jovens rapazes de sua guarda
pessoal e procurava seduzir e obter, por qualquer meio, os favores
sexuais das mulheres que lhe interessassem.
Talvez seja a revolta contra essas iniquidades e a tentativa,
sempre presente entre os jovens, de modificar o mundo – para o
bem ou para o mal – que faz com que milhares deles acorram ao
Oriente Médio, muitas vezes levando a família, para se juntarem e
combaterem ao lado do Estado Islâmico. É claro que seria infantil
pensar que só esses bem-intencionados ou fundamentalistas
religiosos se juntam ao EI, esquecendo-se dos aventureiros
sedentos por sangue, movidos por simples interesses egoicos.
Enquanto no passado tanto a União Soviética como outras
organizações marxistas espalhadas pelo mundo lutavam por uma
ideologia política, organizações como a Al-Qaeda e o Estado
Islâmico, dentre outras, lutam, pretensamente, por uma crença
religiosa. Mais problemático ainda é quando essa crença religiosa
os faz acreditar que estão lutando a verdadeira guerra do
Armagedon, concorrendo para a criação de um novo mundo sob as
bênçãos de Deus e a justiça do Islã, quando o mal e a exploração
deixarão de existir. A única diferença do comunismo na URSS era o
ateísmo de Estado.
O fato de pessoas viajarem para outros países para lutar em
conflitos que lá se realizam não é algo novo. Desde a Antiguidade, a
história nos mostra pessoas se deslocando para se unirem a
exércitos ou governos com os quais têm simpatia, seja para lutar
contra um inimigo comum, seja motivadas pela crença de que uma
guerra pode ser justificada por razões morais ou religiosas.
Em muitos casos, basta a retórica inflamada de um líder
carismático para atrair milhares de seguidores para uma causa, por
mais violenta que seja, como no caso de Adolf Hitler, Vladimir Lênin
ou Joseph Stalin. Em outros casos, os indivíduos são atraídos pela
propaganda, realizadas na atualidade, principalmente pelas redes
sociais, graças às facilidades da Internet. O EI tem contado com o
reforço de combatentes estrangeiros que a eles vão se juntar por
ideologia ou por espírito de aventura.
Em outubro de 2015, o diretor do Centro Nacional de
Contraterrorismo dos EUA, Nicholas Rasmussen, informou ao
Congresso dos Estados Unidos que o Estado Islâmico tinha atraído
mais de 28 mil combatentes estrangeiros, dentre os quais 250
americanos. Sabe-se também que é grande o número de europeus,
homens e mulheres, que estão se juntando ao grupo, como veremos
adiante.
O Relatório de Ameaças Terroristas sobre o Canadá, de 2014,
aponta a Síria como um grande teatro de operações para terroristas
que está atraindo extremistas de todo o mundo. A maioria são
homens jovens provenientes de regiões do norte da África e do
Oriente Médio, mas uma minoria significativa está viajando da
Europa, Austrália e América do Norte. Segundo o relatório, algumas
estimativas apontam o número de 6 mil estrangeiros atuando em
grupos militantes e terroristas na Síria.
O número exato de viajantes extremistas que participam do
conflito na Síria é difícil de determinar, mas acredita-se ser maior do
que o número que viajou para os conflitos no Afeganistão ou no
Iraque. A grande preocupação para os países ocidentais é saber em
que parte daquele país eles estão sendo treinados, haja vista a
possibilidade de retornarem a seus países de origem para
praticarem atentados.
Estudos realizados pelo Centro Internacional para o Estudo da
Radicalização Política e Violência (ICSR, na sigla em inglês), com
sede em Londres, e do Grupo de Soufan, sediado em Nova York,
sugerem que enquanto cerca de um quarto dos combatentes
estrangeiros são provenientes do Ocidente, a maioria é de países
árabes vizinhos, como Tunísia, Arábia Saudita, Jordânia e Marrocos.
Mas voltamos à pergunta: o que leva jovens europeus, norte-
americanos ou de outras nacionalidades a abandonarem tudo para
se juntarem ao EI?
A desculpa sempre recorrente é a pobreza, a falta de
oportunidades, o combate às iniquidades do mundo etc. Nunca vi
ninguém dizer que mata apenas para satisfazer seu espírito
assassino, um instinto inato que prepondera em alguns indivíduos,
como aqueles que, além de matar, colocam seus filhos, crianças
ainda, para assassinar friamente prisioneiros, como aparece em
vários vídeos do EI.
Os norte-americanos, muitas vezes com uma visão distorcida
do mundo, acham que todos deviam vê-lo da mesma forma
observada por eles, e assim muitas vezes apresentam respostas
simplórias para problemas complexos.
É o caso do então secretário de Estado dos EUA, John Kerry,
que acredita que os valores americanos acabarão por derrotar os
terroristas, só não explicando porque muitos americanos e europeus
de classe média não se deixaram contagiar por esses valores e se
juntam ao EI.
Uma resposta razoável nos é dada por Eva Borreguero,
professora de ciência política da Universidade Complutense de
Madri, que diz:

Na atualidade, o islamismo radical, como qualquer proposta


subversiva, proporciona uma via de empoderamento aos
jovens, tanto europeus como do mundo muçulmano, que
enfrentam uma crise de identidade e a ameaça real de
marginalidade em suas sociedades.

Mais realista se manifesta Shlomo Ben-Ami, ex-ministro


israelense de Relações Exteriores, hoje vice-presidene do Centro
Internacional para a Paz, em Toledo, Espanha, para quem “o
problema fundamental consiste em uma luta existencial entre
Estados absolutamente disfuncionais e um tipo obscenamente
selvagem de fanatismo teocrático”. Outra resposta bastante lúcida é
oferecida por Mohamed bin Rashid Al Maktum, primeiro-ministro dos
Emirados Árabes Unidos, que diz:

Só uma coisa pode deter uma juventude suicida que está


disposta a morrer pelo EI: uma ideologia mais sólida que a guie
pela senda correta e a convença de que Deus nos criou para
melhorar nosso mundo, não para destruí-lo.
Analisando sob o enfoque da Inteligência, o que ocorre é uma
velha e eficiente técnica, talvez uma das mais importantes no campo
da espionagem: o recrutamento de agentes, seja para fins de
espionagem, seja para atuarem como terroristas. As motivações
podem ser as mais diversas.
Os aliciadores, ou recrutadores, do EI atuam em universidades
da Europa disfarçados em grupos de estudos para aliciar estudantes
estrangeiros, conforme noticiado pelo jornal Folha de S. Paulo em
sua edição de 14 de março de 2016.
O jornal narra a experiência de um estudante do programa
Ciências sem Fronteiras que viajou para estudar na Espanha. Com
pouco dinheiro e sem amigos, ele conheceu integrantes de um
grupo de estudos islâmicos que o acolheram como uma família.
Após frequentar várias reuniões, ele acabou se convertendo ao
islamismo. Os círculos de estudos islâmicos radicais existem em
vários países, sendo os maiores na Bélgica e na Tunísia, e são
formados predominantemente por estrangeiros.
Seguindo o modelo clássico nesses casos, o recrutador
repassou o novo recrutado a outros dois elementos, que se
apresentaram como recrutadores do Estado Islâmico, cujos alvos
principais eram jovens em torno dos 25 anos, de diferentes
nacionalidades, que tivessem acesso fácil a países da Europa e aos
Estados Unidos. Os principais alvos dos recrutadores são jovens
estrangeiros com pouco dinheiro e com problemas de adaptação
social.
Ao jornalista da Folha, disfarçado em pretenso candidato, os
recrutadores apresentaram duas opções de ação: seguir para a
Síria ou trabalhar como agente em países ocidentais. Em ambos os
casos o jovem seria financiado pelo grupo.
Segundo a reportagem, os aliciadores tentaram, sem sucesso,
convencer o jovem a ficar ou atuar em grupos na Tríplice Fronteira
entre Brasil, Paraguai e Uruguai, uma região que há tempos é
suspeita de abrigar uma rede de financiamento a grupos terroristas.
Nos tempos da Guerra Fria, época em que me ocupei mais
diretamente da contraespionagem e do contraterrorismo, um dos
grandes objetivos de qualquer serviço de Inteligência era descobrir a
identidade dos agentes da espionagem adversa e, na busca desse
objetivo, diversas técnicas eram empregadas, mas principalmente o
recrutamento do agente adverso.
De vez em quando, éramos surpreendidos por pessoas que se
apresentavam deliberadamente para trabalhar para nós oferecendo
documentos sigilosos apenas por estarem desiludidas com a
ideologia dos governantes de seu país. Assim, obtínhamos
excelente material, verificando apenas se não era uma tentativa de
desinformação por parte do Serviço adversário.
De um modo geral, os resultados obtidos eram divididos com os
Serviços aliados, principalmente quando se tratava da identificação
dos agentes adversários em missão de espionagem, que assim
podiam monitorar esses agentes quando estivessem atuando em
seu país, neutralizando suas atividades.
Essa mesma orientação, creio, deve estar sendo seguida no
que diz respeito ao nome de terroristas identificados ou de suspeitos
de terrorismo que possam auxiliar no trabalho dos setores de
contraterrorismo dos diferentes Serviços de Inteligência. No entanto,
documentos confidenciais e relação de terroristas podem também
cair do céu.

Presente de um desertor

Em março de 2016, o canal de televisão britânico Sky News


anunciou que um desertor jihadista decepcionado havia entregue a
um jornalista na Turquia um dispositivo de USB contendo
formulários com o nome de 22 mil membros do Estado Islâmico,
com seus endereços, telefones, contatos familiares e até tipo
sanguíneo.
O desertor seria um membro do Exército Livre da Síria,
organização contrária ao regime de Bashar al-Assad, que se
integrou ao Estado Islâmico, verificando depois que este havia se
convertido em reduto de antigos soldados iraquianos do Partido
Baath, do ditador Saddam Hussein.
Os formulários continham preciosas informações pessoais que
os voluntários interessados em ingressar no EI preenchiam para se
juntar ao grupo, e haviam sido roubados do chefe da polícia da
organização na localidade onde atuava. A documentação continha
informações sobre numerosos jihadistas na Europa, Estados
Unidos, Canadá, África do Norte e Oriente Médio que ainda não
haviam sido identificados pelas autoridades de contraterrorismo.
O valor maior desses documentos, segundo o ministro do
Interior alemão, Thomas de Maziere, reside no fato de que a lista
serviria para “realizar investigações mais rápidas, mais claras, e
conseguir sentenças de prisão mais duras”, além de ajudar a
“entender melhor as estruturas da organização”. Richard Barrett, ex-
diretor de operações antiterroristas do Serviço de Inteligência
britânico também considerou esse vazamento “um golpe fantástico”
contra o EI.
Este verdadeiro presente para as autoridades de segurança e
Inteligência constituiu uma terrível falha de segurança do Estado
Islâmico, e poderá ter efeitos altamente danosos à sua estrutura e
às suas células em outros países, além de facilitar a vida de
numerosos combatentes do contraterrorismo por todo o mundo.

As escravas modernas do EI

Em uma das edições da revista Dabiq, órgão de divulgação e


propaganda do EI, um artigo justificava a escravização da minoria
Yazidi, um povo que vivia no noroeste do Iraque, subjugado pelos
soldados da organização, com base em um antigo costume de usar
mulheres e crianças como prêmios de guerra. As jovens mulheres e
as crianças Yazide foram divididas como espólio de guerra entre os
soldados invasores.
É bem verdade que Moisés, o libertador do povo Judeu,
mandava matar os prisioneiros homens e velhos e escravizar
sexualmente as mulheres jovens como despojos de guerra, como se
pode comprovar na própria Bíblia:

Então, Moisés indignou-se contra os comandantes das forças,


chefes de milhares e chefes de centenas, que voltavam desta
missão de guerra. Questionou-lhes: “Por que deixastes com
vida todas essas mulheres? Foram elas que seguiram o
conselho de Balaão e induziram os filhos de Israel a se
perverterem contra Deus, o Eterno, no caso de Peor, de modo
que uma praga feriu a congregação do SENHOR. Agora,
portanto, matai todas as crianças do sexo masculino. Matai
igualmente todas as mulheres que tiveram relações sexuais.
Não conserveis com vida senão as meninas e as moças
virgens; elas vos pertencem. (Nm 31: 14-18).

A grande diferença é que isso se passou há mais de 3.500


anos. Hoje dispomos de uma Daclaração Universal dos Direitos
Humanos e de legislações civilizatórias que proíbem essa infâmia
ainda praticada pelos soldados do EI.
Demonstrando o seu desprezo pelas conquistas da civilização,
o artigo defende o retorno da escravidão dos conquistados de outra
religião, que segundo eles havia caído em desuso apenas pelo
desvio do verdadeiro Islã. O que eles consideram como “o
verdadeiro Islã” é a sua interpretação radical e fora de tempo dos
ensinamentos de Maomé.
Os Yazidis são acusados de serem “adoradores do diabo”
apenas porque seguem uma religião derivada do zoroastrismo,
antiga religião da Pérsia. Por isso são perseguidos e escravizados.
No referido artigo, os modernos escravocratas se defendem
dizendo que apenas seguem uma prática do profeta Maomé que, ao
escravizar as mulheres e forçá-las ao casamento, seria também
uma forma de proteger os homens de cometer adultério.
Diversos depoimentos de mulheres Yazidis dão conta do
sofrimento e humilhação a que são submetidas, vendidas como
mercadoria e violentadas por quem as adquire. Para evitar que
engravidem e não possam ser vendidas posteriormente, quando
seus donos enjoarem-se delas, recebem, à força, remédios
anticoncepcionais.

O Estado Islâmico e a Internet

Nos idos de 1969, em plena Guerra Fria, foi criada a rede


mundial de computadores, a Internet, nos Estados Unidos, chamada
então de Arpanet. Tinha o objetivo militar de manter as
comunicações das forças armadas norte-americanas em caso de
ataques inimigos que destruíssem seus meios normais de
telecomunicações.
Durante as décadas de 1970 e 1980, a Internet também serviu
como um importante meio de comunicação entre estudantes e
professores universitários, principalmente dos EUA, interligando os
laboratórios de pesquisa.
Naqueles áureos tempos, no entanto, ainda não tendo acesso à
Internet, o terrorista Osama Bin Laden se utilizava das populares
fitas cassetes – que para as novas gerações é apenas uma peça de
museu – para difundir e compartilhar conhecimentos, comunicados
e orientações entre seus seguidores. Utilizada com fins de
propaganda e proselitismo político-religioso, as fitas cassetes eram
um meio ideal de comunicação, pois elas podiam ser copiadas e
difundidas sem que os censores atentassem para o seu conteúdo,
pois pensavam se tratar de música.
Há cerca de 20 anos, ao verificar o rápido crescimento da
Internet e as facilidades que ela apresentava, tanto para o bem
como para o mal, incluí em minhas palestras de Contrainteligência a
hipótese do ciberterrorismo, ou seja, a utilização do espaço
cibernético para objetivos terroristas. Dizia, à época, que a grande
vantagem da Internet nessa guerra era que os “Information Warriors”
– guerreiros da informação – tinham a seu dispor uma arma simples
e barata, mas de grande poder: o mouse de um computador.
Àquela época, o Estado Islâmico ainda não existia, mas os
planejadores estratégicos de vários países já se preocupavam com
os desvios criminosos que a Internet iria sofrer. De fato, os jovens
terroristas do EI e de outros grupos logo passariam a explorar esse
filão, principalmente utilizando as redes sociais, travando combates
não somente em terra, mas também no ciberespaço.
Em palestra proferida na Escola Superior de Propaganda e
Marketing (ESPM) sobre “Terrorismo e Novas Mídias”, em novembro
de 2011, o professor israelense Gabriel Weimann, da Universidade
de Haifa, em Israel, discorreu sobre o crescente uso da Internet e da
tecnologia por parte das organizações terroristas. Weismann sabia o
que estava falando já que coordena uma ONG que monitora os sites
das organizações terroristas.
Weismann observou que o número dessas organizações não
para de crescer: se em 1998 eram apenas 12 sites, hoje passam de
7.800. Para ele, o motivo desse crescimento é a facilidade de
comunicação que a Internet conferiu aos terroristas, além do
anonimato e interatividade que a plataforma oferece. Some-se a
isso a segurança nas comunicações oferecidas por programa de
criptografia desenvolvido pelos técnicos dessas organizações, que
dificultam o trabalho das autoridades.
É bem verdade que os oficiais de Inteligência dos diferentes
países já compreenderam a ameaça que representa o
ciberterrorismo, bem mais que os políticos e planejadores
estratégicos, passando a rastrear esses sites e a utilizá-los como
uma boa fonte de informações primárias, o que tem dado bons
resultados.
O United States Peace Institute divulgou um estudo sobre
“Terrorismo Moderno e a Internet” alertando que o terrorismo na
Internet é um fenômeno muito dinâmico: sites surgem e
desaparecem de repente, modificam frequentemente seus formatos,
e, em muitos casos, parecem desaparecer por mudar seu endereço
online, mas mantendo o mesmo conteúdo.
O Relatório lista algumas das vantagens do uso da Internet
pelos terroristas: acesso fácil; pouca ou nenhuma regulamentação,
censura ou outras formas de controle por parte do governo;
potencial para atingir grandes audiências em todo o mundo;
anonimato na comunicação; fluxo rápido de informações; baixo
custo de manutenção na web; ambiente multimídia (a capacidade de
combinar textos, gráficos, áudios e vídeos e permitir aos usuários
baixar filmes, músicas, livros, cartazes, e assim por diante); e a
capacidade de se ajustar à cobertura dos meios de comunicação de
massa tradicionais, que usam cada vez mais a Internet como fonte.
O Instituto também identificou oito diferentes maneiras de os
terroristas utilizarem a internet, embora, por vezes, elas se
sobreponham. São elas:
Guerra psicológica – O terrorismo tem sido muitas vezes
conceituado como uma forma de guerra psicológica, e certamente
os terroristas procuraram levar esse tipo de guerra para a Internet,
seja para fins de propaganda, seja para espalhar desinformação,
difundir ameaças destinadas a causar medo e desespero, e
disseminar imagens de suas ações – como o brutal assassinato dos
jornalistas americanos Daniel Pearl, sequestrado e morto em
fevereiro de 2002 por terroristas da organização Al-Qaeda, em
Karachi, no Paquistão, e James Wright Foley, decapitado por um
militante do Estado Islâmico, eventos esses que foram reproduzidos
em vários sites terroristas.
Também podem lançar ataques psicológicos visando a criar o
medo do ciberterrorismo, o “Cyberfear”, gerando preocupações com
a possibilidade de um ataque através de um computador, como, por
exemplo, derrubar aviões, desativar sistemas de controle de tráfego
aéreo, ou afetar economias nacionais interrompendo ou destruindo
os sistemas informatizados que regulam os mercados de ações.
A internet pode servir também para exagerar a importância do
grupo terrorista ou de suas ações, ao disseminar ameaças de difícil
concretização. A Al-Qaeda, por exemplo, desde 11 de setembro de
2001 anuncia em seus sites um iminente “grande ataque” contra
alvos norte-americanos, o que recebe uma considerável cobertura
da mídia, ajudando a gerar um sentimento generalizado de medo e
insegurança entre os norte-americanos.
Publicidade e Propaganda – Até o advento da Internet, o
objetivo das organizações terroristas em chamar a atenção
dependia da atenção da televisão, do rádio ou da mídia impressa,
que muitas vezes não tinham muito interesse nesse assunto. Após o
seu surgimento, a Internet se apresentou como uma grande
oportunidade para os terroristas fazerem publicidade de suas ações,
pois não mais precisavam contar com a visão crítica e os interesses
dos editores ou dos magnatas das mídias.
Assim, com a criação de seus próprios sites, os terroristas
passaram a decidir sobre o que publicar e de que forma publicar, o
que implica sacralizar suas ações, por mais macabras que sejam, e
demonizar as ações de quem os combate ou deles discorda. Além
de exaltar suas ações, os sites sempre abordam questões muito
caras aos ocidentais: restrições à liberdade de expressão e “prisão
arbitrária” de seus companheiros, realizada pelas forças de
segurança, por eles considerados presos políticos ou mártires.
Nesses sites, as ações terroristas são apresentadas como uma
forma de defesa dos fracos contra o aparato opressor do inimigo,
seja ele um Estado ou uma organização, que os força a responder
com violência à violência que sofrem em seus direitos, liberdades e
escolhas religiosas. As ações das autoridades de contraterrorismo
são tachadas de “abate”, “assassinato” e “genocídio” contra o
terrorista ou a organização terrorista, que, numa inversão de
valores, aparecem como perseguidos por defenderem a liberdade
dos mais fracos. Dessa forma, tentam transferir a responsabilidade
pelo uso da violência do terrorismo a quem os combate.
Pedro de Santi, chefe do departamento de Humanidades e
Direito da ESPM-SP, faz uma análise psicanalítica da propaganda do
EI em seus vídeos na Internet, referindo-se à sedução mórbida que
os vídeos causam nas pessoas: “A violência é primitiva; a veiculação
é contemporânea; e a morbidez, humana. Existe algo de irresistível
nesses vídeos”, disse ele em um encontro sobre terrorismo
patrocinado pela ESPM.
Ao analisar as decapitações, Pedro de Santi lembra o exemplo
de Davi e Golias, em que o menor supera o maior: é a mesma lógica
utilizada pelo EI, que desperta o interesse do público e dos futuros
recrutados.
Muitos dos vídeos de propaganda divulgados pelo EI estão
relacionados a sua visão delirante de que o fim dos tempos já
chegou e eles estão apenas cumprindo as profecias contidas nos
Hadiths, lutando a batalha final do Armagedon contra os “cruzados”,
os estrangeiros. Um deles, lançado no final do ano passado, mostra
os combatentes do grupo terrorista marchando sobre Roma para
combater os infiéis que se opõem ao Daesh, um outro nome para o
EI.
O título do vídeo, “Encontro em Dabiq”, refere-se à crença do EI
de que a “batalha final” do Armagedon terá lugar entre muçulmanos
e cristãos na cidade de Dabiq, na Síria. Com produção impecável, o
vídeo mostra tanques e outros veículos de guerra enquanto os
soldados se preparam para realizar a invasão de Roma, que irá
desencadear a guerra apocalíptica do Armagedon e envolver toda a
humanidade (o que culminará com o “Juízo Final”, após o que
haverá a ressureição dos justos por Deus).
Os vídeos do EI fazem muito sucesso entre os jovens de bairros
pobres, ao enaltecer os “mocinhos” barbudos que libertam os
injustiçados e promovem a vontade de Alá. No entanto, autoridades
ocidentais e grupos de hackers já estão em combate cibernético
contra os terroristas.
A edição eletrônica do jornal Folha de São Paulo de 13 de
março de 2016 apresenta a atuação do EI na Internet como Califado
Midiático (a forma como a organização divulga sua mensagem pelo
mundo), classificando-a nas seguintes categorias:
Vídeos – o EI teria publicado mais de 920 campanhas
audiovisuais, realizadas por 33 produtoras, durante 22 meses. As
cenas são similares ou inspiradas em filmes e games — como a
saga “Jogos Vorazes” ou o jogo “Call of Duty”;
Notícias – O Estado Islâmico divulga suas ações por meio de
mensagens curtas, como as de uma agência de notícias. Elas
costumam seguir o mesmo formato e estética, com repetidas
referências religiosas (ocidentais, por exemplo, são mencionados
como “cruzados”);
Revistas – O EI publica uma série de revistas, sendo a principal
delas a Dabiq, produzida com design e conteúdo sofisticados. A
organização terrorista anuncia suas atividades nessas revistas e
explica, com argumentos teológicos, suas ações;
Twitter – A reportagem cita que existem cerca de 90 mil contas
afiliadas ao Estado Islâmico no Twitter. Esses perfis são
constantemente bloqueados pela empresa — em abril, por exemplo,
divulgou-se que 10 mil usuários foram deletados por publicarem
“ameaças violentas” na rede.
Outros meios – A organização utiliza também outras redes
sociais e meios, como o Facebook e o Telegram. Seus membros,
inclusive, desenvolveram um aplicativo próprio para smartphones.
Além disso, há presença do Estado Islâmico em páginas de
discussão online
Em 8 de janeiro de 2016, a Agência Reuters publicou que o
governo norte-americano havia anunciado a criação de uma força-
tarefa contra o extremismo online no mesmo dia em que executivos-
chefes de empresas de tecnologia americanas se reuniram com
altos funcionários de segurança nacional para discutir formas de
impedir o uso da Internet por extremistas.
Essa colaboração com as empresas de tecnologia tem por
objetivo combater o uso das mídias sociais por parte do EI para
“recrutar, radicalizar e mobilizar” seus seguidores, e encontrar
formas de utilizar a tecnologia para bloquear adesões a redes
extremistas, e para identificar padrões de recrutamento.
Para os especialistas, segundo a Reuters, o uso da Internet por
parte do EI não tem precedentes. Estudo do instituto Brookings,
realizado em 2015, estima que o EI tenha operado pelo menos 46
mil contas na rede social Twitter durante um período de três meses
naquele ano. O Twitter, que vinha recebendo críticas por não
colaborar com as autoridades, decidiu proibir explicitamente a
“conduta odiosa”.
A conduta de muitas empresas em não colaborar sob a
alegação de ter a obrigação de resguardar a privacidade de seus
clientes vem sofrendo críticas a cada dia.
Por sua vez, o Conselho de Segurança da Rússia vem
considerando a estratégia de usar clérigos islâmicos e redes sociais
para fazer campanhas de contrapropaganda ao recrutamento de
jovens por terroristas. Segundo publicou a revista de atualidades
russas Sputnik, citando o serviço de imprensa do Conselho de
Segurança russo:

Métodos para evitar o recrutamento de cidadãos para as fileiras


das organizações terroristas, incluindo a campanha de
contrapropaganda que envolverá organizações religiosas que
unem representantes do clero tradicional muçulmano,
organizações públicas, meios de comunicação e redes sociais
foram discutidos.

É uma guerra entre gato e rato. As principais redes sociais têm


realizado pesquisas profundas para identificar perfis e grupos de
jihadistas de forma a bloqueá-los, tentando assim dificultar a
comunicação entre eles. No entanto, as autoridades já descobriram
que quando ocorre um bloqueio de algum perfil nas redes sociais,
os terroristas passam a usar hashtags padrão em todas as redes
para se comunicarem com os potenciais recrutas.
Os terroristas descobriram, a duras penas, que assim como
acontece no campo da espionagem, o grande problema de serem
descobertos é mediante falhas e debilidades nas comunicações, e
passaram então a usar diversos programas e dispositivos de
segurança em computadores e celulares, como o IP (o RG do
computador online), e navegadores anônimos como o Tor, usados
para chegar à “Deep Web”, Internet profunda, onde sites, fóruns e
comunidades não podem ser detectados pelos motores de busca
comuns, como o Google.
Nas comunicações via celular são utilizadas tecnologias de
criptografia, que no passado eram utilizadas apenas pelas agências
de Inteligência e por algumas outras categorias de interessados que
não desejam que suas comunicações sejam decodificadas. Isto não
chega a constituir um problema intransponível, pois os
supercomputadores utilizados pelos governos, que realizam trilhões
de operações por segundo, podem quebrar muitas das codificações
realizadas, a depender apenas de tempo.
CAPITULO VI
O Apocalipse do Estado Islâmico

Em 16 de novembro de 2014, jornais de todo o mundo


estamparam uma cena pungente e humilhante que causou choque e
revolta no Ocidente: o jornalista norte-americano Peter Kassing com
um uniforme de prisioneiro cor amarelo-ouro e um soldado do
Estado Islâmico a seu lado, segurando a faca com a qual iria
degolá-lo logo em seguida. “Aqui estamos nós, enterrando o
primeiro cruzado americano em Dabiq, esperando ansiosamente
para o restante de seus exércitos chegar”, anunciou o carrasco.
Posteriormente, aquela organização terrorista liberou um vídeo
com todos os detalhes da decapitação, da mesma forma como faria
com vídeos de vítimas posteriores, filmado e produzido com
detalhes técnicos profissionais. O vídeo, repleto de cânticos
islâmicos, retrata soldados do EI – alguns montados em tanques e
caminhões – que avançavam em direção ao Coliseu, em Roma,
enquanto imagens da bandeira do EI são levantadas por todo o
Oriente Médio e Norte da África. Em seguida, é anunciada a queda
do Ocidente.
As cenas do vídeo provocaram repulsa e declarações
indignadas de governantes de diversos países, mas um detalhe
passou despercebido a muitos: a cena de fundo, escolhida para o
dantesco assassinato, era Dabiq, uma pequena cidade com pouco
mais de 3 mil habitantes, situada no norte da Síria, a cerca de 40km
a nordeste de Aleppo e 10km ao sul da fronteira da Síria com a
Turquia, conquistada pelo EI em agosto de 2014.
Segundo os historiadores, a cidade foi o local da batalha de
Marj Dabiq, ocorrida em 24 de agosto de 1516, quando o sultão
Selim I derrotou os exércitos mamelucos na batalha de Marj Dabiq.
A batalha foi parte da guerra otomano-mameluca (1516-1517),
ocorrida entre o Império Otomano e o Sultanato Mameluco, que
terminou com a vitória otomana, na qual esse povo conquistou a
maior parte do Oriente Médio e foi decretado o fim do sultanato
mameluco, dando aos otomanos o controle de toda a região da
Síria, Egito e Palestina.
Mas, por que Dabiq é tão importante para a máquina de
propaganda do EI? A resposta exige um pouco de conhecimento
sobre a escatologia islâmica.

Dabiq – O local da Batalha Final

Armagedon, que significa tão somente “Monte de Megido”,


passou para a história cristã como o local onde deverá acontecer a
grande batalha final entre os seguidores de Jesus Cristo,
representando as forças do Bem – chamadas de as forças do
Cordeiro – e todos aqueles que se opõem a essas forças –
chamadas de forças do Mal (ou forças do Anticristo). Milhões de
pessoas vão se envolver nessa batalha do Armagedon, da qual
participarão todos os reis e nações da Terra, que unirão suas forças
para lutar contra Cristo. Essa profecia está contida no Livro do
Apocalipse, capitulo 16, versículos 14 e 16, que diz:

Porque são espíritos de demônios, que fazem prodígios; os


quais vão ao encontro dos reis da terra e de todo o mundo, para
os congregar para a batalha, naquele grande dia do Deus Todo-
Poderoso. (Ap. 16:14).
E os congregaram no lugar que em hebreu se chama
Armagedon. (Ap. 16:16).

É possível que o apóstolo João, ao se referir ao Monte de


Megido, quisesse nisso simbolizar as muitas lutas e eventos
históricos que ali aconteceram e que foram registradas pelo povo
judeu. São registradas muitas dezenas de batalhas ocorridas
naquela região, nas quais os judeus saíram vencedores. Talvez por
esse histórico, o Vale do Armagedon virou referência simbólica para
a batalha do fim dos tempos.
Os dirigentes do Estado Islâmico, que acreditam firmemente na
escatologia islâmica, também escolheram o seu Armagedon,
assinalando a cidade de Dabiq como um dos dois possíveis locais
para uma batalha épica entre invasores cristãos – que compreende
principalmente os EUA e os países europeus – e os muçulmanos,
que resultará, obviamente, em uma vitória muçulmana.
Mais importante ainda, essa batalha marcará o início do “fim
dos tempos”, preconizado pelos Hadiths. Somente isso explica
porque o Estado Islâmico travou uma grande batalha para
conquistar a cidade, já que Dabiq não possui grande interesse em
termos estratégico-militares – embora se localize perto da fronteira
da Turquia –, mas pode representar o caminho que levará ao céu.
Um dos Hadiths mais importantes, o de Abu Hureyrah, um
companheiro de Maomé, declara:

A Última Hora [o fim dos tempos] não virá até que os romanos
[os americanos e seus aliados] pousem em al-A’maq ou em
Dabiq. Um exército consistindo dos melhores [soldados] dos
povos da terra nesse momento virá de Medina.

Para os pensadores do EI, este Hadith seria uma evidência de


que a insurgência e a intervenção internacional na Síria foram
profetizadas por Maomé.
Mais adiante, prossegue o Hadith:

Eles então vão lutar, mas um terço do exército vai fugir, e Deus
jamais os perdoará. Um terço [do exército] será constituído de
excelentes mártires, aos olhos de Deus, e serão mortos, e o
outro terço, que jamais será posto em julgamento, vai ganhar e
conquistar Constantinopla.
Após a batalha, Jesus, que é descrito como muçulmano, vai
“descer” dos céus e levá-los em oração.
O Estado Islâmico de fato acredita na grande batalha que se
realizará em Dabiq, ocasião em que o Messias islâmico, o Mahdi
esperado, irá conduzir todo o povo islâmico à vitória final contra as
forças que se opõem aos muçulmanos. Tanto acredita que escolheu
a cidade como pano de fundo para as suas execuções, e
denominou a sua revista online de propaganda como Dabiq. Nela,
em cada edição, é difundida a noção de que a batalha do fim do
mundo se aproxima. Amaq, o nome da outra cidadezinha da Síria, é
o nome que os propagandistas escolheram para a sua agência de
notícias.
Os editores da revista justificaram a escolha do nome porque,
segundo eles, a área terá “um papel histórico nas batalhas que
levarão até a conquista de Constantinopla, e em seguida, de Roma”.
Mas primeiro o Estado Islâmico tem de “purificar Dabiq” da “traição”
dos outros rebeldes sunitas que a ocupavam e “levantar a bandeira”
do Califado sobre sua terra. Talvez eles acreditem piamente em uma
Sura do Alcorão que diz: “Não existe cidade alguma que não
destruiremos antes do Dia da Ressurreição ou que não a
castigaremos severamente; isto está registrado no Livro” (Alcorão -
Sura 17:58).
É essa certeza na vitória final conduzida pelo Mahdi que os têm
feito realizar ações de grande audácia em termos militares. Parecem
efetivamente acreditar que sua inferioridade numérica ou
tecnológica será contrabalançada pelo apoio divino. Isso tem
servido como forte estímulo de atração para muçulmanos fiéis de
outros países, aventureiros e jovens europeus e de outras
nacionalidades, que buscam se juntar ao EI: se viverem, ajudam a
cumprir as profecias, ao participar de um dos momentos mais
importantes da história da humanidade, e também receberão sua
parte no butim da guerra celestial; se morrerem, as virgens e as
delicias sexuais do Paraíso os esperam.
Os clérigos e dirigentes do EI se baseiam também em um
Hadith atribuído ao profeta Maomé segundo o qual o Dia do Juízo
virá depois que os muçulmanos derrotarem Roma em Dabiq ou em
Al-Amaq, as duas cidades localizadas perto da fronteira turca. No
vídeo de execução de Peter Kassing, distribuído fartamente pelo
departamento de propaganda do EI, à medida que as cenas vão-se
passando, um locutor aproveita para fazer o marketing das futuras
ações do grupo, dizendo: “Aqui estamos, enterrando a primeira
Cruzada americana em Dabiq, esperando ansiosamente pela
chegada do resto de seus exércitos”.
O vídeo também apresenta o trecho de um sermão de Abu
Musab al-Zaraqawi, o líder da Al-Qaeda no Iraque, morto em junho
de 2006 em um ataque dos Estados Unidos, no qual ameaçava: “A
centelha foi acesa aqui no Iraque, e seu calor vai continuar a
intensificar-se … até que ele queime os exércitos dos cruzados em
Dabiq”. Também se ouve do locutor um desafio aos Estados Unidos:
“Estamos esperando por vocês em Dabiq”.
Outras referências a Dabiq estão contidas em vários outros
Hadiths. Eles também podem estar relacionados mais
particularmente com as Cruzadas, em especial a segunda, em que
as tropas cristãs sofreram sucessivas derrotas para Zengi, senhor
de Alepo e Mossul, que em 1144 iniciou o processo de reconquista
de Edessa. Após a sua morte, seu herdeiro, Nur ad-Din,
reconquistou Edessa dos cristãos, em 3 de novembro de 1146.
Como bem observa William McCan, especialista em Oriente
Médio e terrorismo, autor do livro The ISIS Apocalypse: The History,
Strategy, and Doomsday Vision of the Islamic States (O Apocalipse
do ISIS: A História, Estratégia e Visão Apocalíptica do Estado
Islâmico, em tradução livre), em um artigo publicado no site do
Brookings Institution Press, em 3 de outubro de 2014, as profecias
sobre Dabiq não figuravam com destaque na propaganda do Estado
Islâmico até Abu Musab al-Zarqawi mencioná-la como o local da
faísca que tinha sido acesa no Iraque. Depois disso, o próprio líder
do Estado Islâmico, Abu Umar al-Baghdadi citou a profecia em uma
de suas declarações. Mas foi somente em 2014 que o Estado
Islâmico passou a se concentrar em Dabiq em sua propaganda.
Escolhido o local do combate, restava aos propagandistas do EI
escolherem os atores que iriam fazer parte do enredo, assim os
Estados Unidos da América passaram a desempenhar o papel de
uma Nova Roma e o presidente Barack Obama foi apontado como o
“cão de Roma”, nos vídeos do EI, pois, na interpretação deles, os
EUA são o equivalente moderno do Império Romano e sua ação
militar no Oriente Médio corresponde à realização das profecias
contidas nos Hadiths. Assim se explica esse interesse do EI em
desafiar as tropas americanas para um combate em Dabiq e talvez
a recusa dos EUA em entrar nesta peleja.
O perigo desta certeza do Estado Islâmico é que a vitória das
forças do Bem, ou seja, as tropas do EI, implica a eliminação total
dos inimigos que estão no caminho do retorno do Mahdi, ou seja, os
Estados Unidos, e o outro principal inimigo do Islã, Israel. Também
preocupante nesse tipo de crença profética é a ideia de que
nenhuma ameaça vai impedir a realização dos objetivos dos
terroristas do EI, pois, em qualquer situação, eles poderão receber
apoio divino para que se cumpra a profecia.
Em artigo publicado no site do The Clarion Project, em 18 de
novembro de 2014, Ryan Mauro, analista de segurança nacional
daquele projeto, apontava para o paralelo traçado entre os detalhes
das profecias e as próprias ações do Estado Islâmico. Um Hadith
afirma que Dabiq será controlada pelos “melhores” soldados
islâmicos de Meca, na Arábia Saudita. Eles irão capturar os
“romanos” – no caso os americanos –, o que levará a um ataque
estrangeiro.
Neste sentido, segundo Ryan, as decapitações do Estado
Islâmico de Peter Kassig e de outros americanos não seriam apenas
ações justificáveis pela Jihad, mas seriam também atos concebido
para provocar a ira e uma agressão sobre eles, conforme
profetizado. Portanto, a resposta militar dos EUA seria realmente
desejável, uma vez que cumpriria essa profecia.
MacCants, já citado, aponta para a dificuldade de realização
dessas profecias, já que são os muçulmanos turcos, e não os infiéis,
que controlam a Constantinopla de hoje, Istambul, e eles trabalham
em cooperação com os “romanos infiéis”, os Estados Unidos, contra
os terroristas do Estado Islâmico. Para MacCants, as profecias de
Dabiq devem sofrer um ajuste para se encaixar aos eventos
contemporâneos, pois é inevitável uma derrota do Estado Islâmico
em Dabiq, caso venham a enfrentar “Roma”, que também não
acredita na aplicabilidade da profecia. Mas, ironiza ele, no
imaginário apocalíptico, fatos inconvenientes raramente impedem a
gloriosa marcha para o fim do mundo.
Para Ryan Mauro, os EUA e seus aliados não devem evitar o
enfrentamento direto com o Estado Islâmico por causa da
preocupação de que isso irá reforçar suas reivindicações proféticas,
pois a segurança nacional e os direitos humanos estão em jogo. Em
vez disso, alerta ele, os EUA podem virar o jogo usando a própria
profecia, pois ela só teria valor se as forças terrestres norte-
americanas marchassem sobre Dabiq e fossem derrotadas pelas
tropas do EI.
Se, ao contrário, os EUA não enviarem tropas terrestres para
Dabiq, fortalecendo ao mesmo tempo os adversários muçulmanos
do Estado Islâmico, e os forçando a derrotá-los de maneira decisiva,
as proclamações dos terroristas sobre o cumprimento profético
serão desacreditadas, diz Ryan.
Em setembro de 2014, o presidente Barack Obama anunciou
sua intenção de “degradar e, em última instância, destruir” o EI,
ordenando uma campanha aérea no Iraque e na Síria, com apoio do
Canadá, França, Reino Unido e vários países árabes. No caso da
Síria, Obama acreditava que não haveria uma solução no combate
ao EI enquanto Assad permanecesse no poder, pois sua presença
impedia a união dos diferentes grupos no combate àquela
organização terrorista. Essa posição hoje se modificou.
Alguns analistas da área de terrorismo acreditam que,
independentemente do sucesso que uma intervenção terrestre
possa ter, o simples fato de ela ocorrer iria confirmar a visão
profética dos terroristas do EI.
Para esses analistas, o problema fundamental dos islamitas que
buscam desencadear os eventos do fim dos tempos permanecerão.
O Estado Islâmico pode até ser destruído, mas outros grupos
semelhantes irão surgir, com a mesma visão teológica apocalíptica.
Por outro lado, toda essa mentalidade de se cumprir a profecia
através da guerra poderia ser desafiada pela busca da paz com os
muçulmanos e com o entendimento tradicional das profecias
islâmicas.

Um governo do Estado Islâmico

Uma das maiores críticas que se faz sobre o EI é o terror e a


brutalidade que emprega contra seus inimigos. São recorrentes as
denúncias sobre estupro, uso do medo para se fazer obedecido,
emprego de crianças como soldados ou como mártires do Islã, além
da escravidão sexual de mulheres pertencentes às minorias étnicas.
Mas temos de convir que o EI não é mais somente uma organização
terrorista, mas também exerce o papel de governo e de gestor dos
serviços públicos nas áreas por ele dominadas. A sua eficiência na
administração pública pode favorecer a sua aceitação por parte da
população das localidades sob seu comando, e mesmo expandir
essa dominação a outras áreas onde a corrupção e o caos
substituem a presença do Estado.
É fato que nas áreas que dominou o EI já encontrou estruturas
públicas e burocracias em pleno funcionamento, as quais, em sua
maioria, eram corruptas, como corruptos eram os governos aos
quais serviam. Em uma situação de guerra, onde o caos e a
anarquia se instalaram nas regiões em litígios, a presença do EI,
além de preencher o vácuo deixado pela derrocada do governo
regular, acreditam alguns, trouxe certa estabilidade, haja vista
diversos depoimentos de pessoas que vivem sob o jugo daquela
organização.
Também não podemos esquecer as barbaridades e a
truculência empregados por esses governos, principalmente o de
Saddam Hussein, no Iraque, e o de Bashar al-Assad, na Síria. Ainda
repercutem as notícias sobre o emprego de armas químicas sobre a
população rebelde da Síria, perpetrada por Assad, e ninguém
esquece a violência e a tortura praticadas por Saddam Hussein e
seu filho Uday Hussein. Mesmo depois da queda de Saddam as
coisas não melhoraram muito para a população, nem tornaram o
mundo mais seguro.
Algumas pessoas que vivem sob a autoridade do Estado
Islâmico dão declarações favoráveis ao grupo. Uma delas, sempre
sem se identificar, por extrema cautela, disse que a vida pode ser
brutal sob as ordens do EI, mas pelo menos parece mais estável:
“Aqui eles estão implementando os regulamentos de Deus: o
assassino é morto; o adúltero é apedrejado; e as mãos do ladrão
são cortadas”. No Brasil de hoje também se ouvem em diversas
camadas da população frases semelhantes, que denunciam a
falência da segurança pública em praticamente todos os Estados e
o anseio por segurança.
Vários depoimentos que circulam em vídeos pela Internet
parecem dar razão à velha questão do “bode na sala”. Depois de
todo o caos, desordem e sofrimentos deixados pela guerra, o que a
população quer é paz e um Estado que funcione minimamente,
desejo que, parece, o EI está atendendo.
A simplicidade e rapidez do sistema judiciário baseado na Lei
Islâmica, a Sharia, faz com que muitos moradores apoiem o EI e
sua forma de administrar o Estado, algo muito semelhante ao que
fizeram russos e chineses, dentre outros, em suas revoluções
comunistas. O conhecido “Paredon” de Fidel Castro, em Cuba, fazia
justiça rápida e barata, embora cega e surda.
O Estado Islâmico, não somente nos vídeos de propaganda
como em ações práticas, trouxe um pouco de estabilidade e
esperança de que as coisas poderiam melhorar. Assim, enquanto o
Ocidente procura uma solução militar que destrua de vez o EI, os
cidadãos das localidades por eles administradas buscam apenas um
governo sem violência e corrupção. Sob esse ponto de vista,
observa-se que não é somente a opção militar que decretará o êxito
na contenção do terrorismo no mundo.
Segundo Stephen M. Walt, professor de Assuntos Internacionais
da John F. Kennedy School of Government de Harvard, o EI deve
ser visto como uma organização revolucionária que está envolvida
na construção de um Estado. É o mesmo argumento que as
organizações comunistas utilizavam para justificar suas utopias: a
construção de um Estado comunista de bem-estar geral.
O certo é que, a despeito do intenso bombardeio aéreo, o EI
ainda consegue resistir, continuando no controle de algumas áreas
da Síria e do Iraque, incluindo Mossul, a segunda maior cidade do
Iraque, embora o Iraque tenha anunciado, em 24 de março de 2016,
que lançou uma ofensiva para reconquistá-la, já que a cidade é o
principal alvo da campanha para recuperar o controle dos territórios
conquistados pelo EI desde 2014.
Uma intervenção estrangeira em larga escala pode reverter e
eliminar o Estado Islâmico, mas acredita-se que apenas a solução
militar não é o bastante, sendo absolutamente necessário que haja
a reconciliação nacional entre os diferentes grupos que lutam pelo
poder: os sunitas, no Iraque, que continuam inimigos dos xiitas que
controlam o país, e na Síria uma solução relativa à presença de
Bashar al-Assad, o lado forte de uma guerra civil que já matou
centenas de milhares de pessoas.
Mas como disse John E. McLaughlin, ex-vice-diretor da CIA,
apesar de suas táticas brutais terem alimentado a sensação de que
o Estado Islâmico está destinado ao fracasso, seu desaparecimento
não é inevitável. “O mal não é sempre derrotado”, disse ele.
McLaughlin acredita ser difícil imaginar o Estado Islâmico se
tornando um Estado legítimo, com o funcionamento dos aeroportos
e passaportes, mas, acrescentou, “não é inconcebível”.
Outro ponto em que a maioria dos analistas de terrorismo
concordam é que, caso se consiga destruir o Estado Islâmico, logo
outra organização semelhante ou até mais perigosa surgirá para
substituí-la, da mesma forma que o EI ocupou o lugar da Al-Qaeda
no Iraque. Sem a pacificação do país, qualquer resultado será
temporário, uma vez que esses grupos nascem e se estabelecem
em regiões em conflito.
No mesmo sentido, mas referindo-se a outro país, manifestou-
se o sheikh Rached Ghannouchi, cofundador e presidente do
Ennahda, um partido da Tunísia que, em entrevista para a Agência
de Notícias Anadolu, disse que seu país rejeita qualquer intervenção
militar na Líbia, reiterando que “crises não são resolvidas pela
guerra, mas por soluções políticas e pacíficas”. Para ele, as guerras
são “seguidas por catástrofes”.

O Armagedon do Estado Islâmico

Em março de 2016, o Armagedon que o Estado Islâmico


pretendia impingir aos outros parece ter-se voltado contra ele
próprio na figura dos bombardeios da coalizão internacional
coordenada pelos Estados Unidos – “o cão infiel”, que lhe infligiram
pesadas baixas e perda de territórios que havia conquistado. Estaria
o poderoso e aparentemente invencível grupo terrorista perdendo a
batalha final que pensava levar ao mundo todo? Estaria a estratégia
escolhida pelo presidente Obama dando certo?
Os objetivos estratégicos dos Estados Unidos definidos pelo
presidente Obama previam primeiro desgastar e, posteriormente,
derrotar o Estado Islâmico utilizando vários meios, incluindo a ação
militar direta e o apoio às forças locais. Também eram previstos
esforços diplomáticos para reconciliar as facções sírias e iraquianas
em litigio, bem como encontrar uma solução negociada para o
conflito na Síria.
Parece que os norte-americanos aprenderam a não repetir o
mesmo erro que cometeram por ocasião do 11 de setembro, quando
o clima emocional gerado pelos atentados terroristas que destruíram
o World Trade Center forçou a tomada de decisões equivocadas,
conforme admitiu o ex-dirigente da Inteligência militar dos EUA,
general Michael Flynn, quando disse em entrevista ao jornal Der
Spiegel:

Nós fomos muito burros. Não entendemos quem tínhamos ali


naquele momento. Quando o 11 de Setembro aconteceu, a
emoção tomou conta, e nossa resposta foi: “de onde vêm esses
pulhas? Vamos matá-los. Vamos pegá-los. Em vez de perguntar
por que eles nos atacaram, nós nos perguntamos de onde eles
vinham. Então estrategicamente avançamos na direção errada.
Em vez de nos perguntarmos por que o fenômeno do terror
aconteceu, estávamos à procura de locais. Esta é uma grande
lição que devemos aprender para não cometer os mesmos
erros novamente.

Nos últimos meses de 2015 e início de 2016, o EI passou a


sofrer vários revezes, tanto no Iraque quanto na Síria, lançados
pelas forças da coalizão internacional, que realizaram pesados
ataques às forças do EI, matando alguns de seus principais
dirigentes. Até a Rússia lançou pesados e eficazes bombardeios
para ajudar Assad, seu antigo aliado.
Militares norte-americanos estimaram que a perda de militares
competentes, pela experiência e ligações que tinham, representa
uma mão de obra especializada difícil de ser substituída. Uma delas
foi Khalil Ahmad Ali al Wais, emir da província de Kirkuk, mais
conhecido por seu pseudônimo Abu Waddah, que dirigia os serviços
de comunicação interna do EI. A outra era Yunes Kallach, “emir
financeiro adjunto” do EI, morto em Mossul, segundo as autoridades
do Pentágono. Além da falta desses militares especializados, o EI
ainda tem de resolver as divisões internas que parecem começar a
surgir entre os que pretendem substituir as lideranças mortas, o que
sempre causa desgastes e ciúmes.
Para agravar ainda mais a situação, além das perdas em
pessoal, o Estado Islâmico passou também a perder os territórios
conquistados em 2014.
Em fevereiro de 2016, o exército iraquiano retomou a cidade de
Ramadi, no Iraque; na Síria, uma coalizão de rebeldes árabes e
curdos conquistou um importante alvo estratégico no norte do país,
forçando as tropas do EI a ficarem na defensiva. A retomada de
Ramadi pelas forças iraquianas foi celebrada como um grande golpe
para o EI e como um grande sucesso da estratégia norte-americana
de utilizar bombardeios aéreos para abrir caminho para as forças
terrestres locais. Militares de alta patente declararam que 30% do
território dominado pelo EI já havia sido recuperado.
Em Raqqa, a pretensa capital do EI, o bombardeio da aviação
russa vem causando grandes prejuízos aos terroristas, e o primeiro-
ministro do Iraque, Haider al-Abadi, declarou que 2016 como o ano
em que o Estado Islâmico seria eliminado do Iraque. Várias
autoridades militares norte-americanas disseram que a retomada de
Mossul não seria fácil e que demandaria mais de um ano. Por outro
lado, as autoridades iraquianas mostraram-se muito otimistas,
particularmente pelos sucessos obtidos, prometendo recuperar
Mossul.
De fato, parece que a derrota final dos terroristas é apenas uma
questão de tempo. No entanto, segundo os especialistas das
Agências de Inteligência, o grande problema que vislumbram será o
momento pós-Estado Islâmico, quando será necessário fazer a
reconstrução de tudo o que foi destruído por ambos os lados, pois
quando não são as bombas dos aviões, são as bombas dos
terroristas que destroem o que podem, na velha política de “terra
arrasada”, destruindo pontes e colocando minas em tudo o que
possa ser utilizado pelos inimigos.

O retorno do Mahdi

Mas nem só de destruição e mortes vive o Oriente Médio, em


especial a Síria e o Iraque, com a presença apocalíptica do Estado
Islâmico. Segundo a doutrina apocalíptica adotada por seus líderes,
depois do confronto final entre as forças do Bem – o Estado Islâmico
– e as forças do Mal – os Estados Unidos e seus aliados –, o Mahdi
esperado nas tradições islâmicas surgiria trazendo a paz e a
concórdia, inaugurando um período de progresso geral para todos os
muçulmanos. Parece que essa profecia pode estar se cumprindo às
avessas do que preconizavam os líderes do EI, e pode haver motivos
para otimismo.
Em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo” de 10 de
fevereiro de 2016, a professora canadense Bessma Momani, autora
do livro Arab Dawn (Alvorecer Árabe, em tradução livre),
diferentemente de todas as expectativas negativas em relação ao
Oriente Médio em razão dos conflitos por todos os lados, afirmou
que o futuro daquela região ainda pode ser muito bom.
Segundo a reportagem, Momani, que é pesquisadora no Centro
para Inovação na Governança Internacional, reconhece:

Há desafios imensos para a segurança e a economia da região,


mas há também índices pouco mencionados, que, vistos em
conjunto, mostram uma geração cosmopolita, educada e
empreendedora – ainda comprometida com a mudança política,
apesar dos recentes fracassos em países como Síria, Líbia e
Iêmen.

Mas, diz ela: “Estou olhando para o futuro. Nenhuma região fica
para sempre em situação de conflito”.
Momani realiza análises demográficas, muitas vezes ignoradas,
mas que para ela são de grande importância para analisar um futuro
para o Oriente Médio. Essas análises indicam que existe uma alta
porcentagem de jovens matriculados na universidade em países
como a Arábia Saudita, por exemplo. No Líbano, mais de um terço
dos empreendedores são mulheres, e as populações estão cada
vez mais urbanas e com mais acesso à Internet. Outro dado
importante por ela destacado é que quase 20% dos árabes têm
entre 14 e 25 anos, e em países como o Iêmen metade da
população tem menos de 15 anos, ou seja, “em breve essa geração,
se bem preparada, ocupará posições de poder em seus países”.
Embora admita que a chamada Primavera Árabe não trouxe
transformações significativas de regime em grande parte da região,
Momani não admite que a região esteja estancada, pois “houve uma
revolução social e cultural, e não acho que a revolução política já
tenha terminado”, afirmou. Ainda segundo a reportagem, um dos
fatores que a deixam otimista é o fortalecimento da sociedade civil em
países como Síria e Líbano. “Não são movimentos institucionalizados.
São informais, cotidianos. Não há líderes nem hierarquias”, diz. Para
ela, o próprio empreendedorismo é outro sinal de que as pessoas não
querem mais ficar a reboque do Estado, pois “os jovens estão
dizendo que não precisam do governo, que podem fazer da maneira
deles”.
Uma observação de Momani que considero de grande
importância é que a juventude árabe hoje é “mais espiritual do que
propriamente religiosa”, aprendendo a religião através dos sermões
no Youtube. Por isso não vão mais à mesquita, o que seria um
elemento positivo porque abriria espaço ao combate à radicalização
no Oriente Médio.
Finalizando sua entrevista, Momani faz uma observação que
deveria ser levada em conta por todos os que analisam a situação
do Oriente Médio. Diz ela:

Prestamos atenção ao terrorismo, à violência, à radicalização.


Tratamos da região como uma questão de segurança e nos
esquecemos dos indivíduos. Assim, damos a entender que não
existe ninguém. Retiramos a faceta humana.

Sob meu ponto de vista, Momani tem uma certa razão. Ao


militar cabe derrotar o inimigo pela força das armas; aos políticos e
diplomatas, cabe vencer o inimigo, ou adversário, pela força da
argumentação, o que nem sempre é possível no auge de um
conflito. Além disso, os estrategistas da política e da diplomacia dos
países hegemônicos não podem esquecer que há muitos anos o Islã
tem uma relação difícil com o Estado, o que é agravado pelos
antecedentes de opressão política do Oriente Médio por parte das
potências estrangeiras e ao apoio que elas deram às monarquias
absolutistas e mesmo às ditaduras seculares.
É claro que ninguém pode dar apoio aos radicais extremistas;
ninguém quer um Estado governado por assassinos barbudos, mas
se o objetivo é alcançar a paz e o progresso, cabe a essas
potências apoiar os milhões de muçulmanos não violentos.
O principal desafio aos líderes dos países árabes envolvidos em
conflitos é centrar seus esforços na busca de atendimento das
demandas dos jovens de hoje, que é essencialmente um desafio de
desenvolvimento, e o direito de manifestar pacificamente seus
anseios e opiniões.
O problema de muitas Agências de Inteligência é que muitas
vezes seus espiões cultivam excelentes relações com as
autoridades políticas e militares nos países onde atuam, mas não
compreendem os anseios e dificuldades dos jovens que saem em
protestos pelas ruas, sendo muitas vezes tachados de terroristas ou
subversivos. Também parecem não entender o apelo diferente que o
EI vem utilizando e que vem arrebanhando muitos jovens
desiludidos ou derrotados do mundo todo. Por exemplo, al-Baghdadi
de Zarqawi, que liderou a Al-Qaeda no Iraque entre 2003 e 2006,
conseguia atrair uma média de 150 combatentes estrangeiros por
mês, procedentes de uma dezena de países, que acorriam ao seu
chamamento.
Já o EI, até recentemente, recebia uma média de 1.500
combatentes por mês, procedentes de mais de cem nações, de
acordo com fontes da Inteligência. A diferença é que seus
marqueteiros sabem usar o computador de uma maneira eficiente, o
que o torna uma arma poderosa na era da informação.
Uma recomendação bastante realista parte de um veterano
oficial da Inteligência, o já citado general Flynn, para quem uma
estratégia global para derrotar os terroristas deve objetivar tirar
territórios do Estado Islâmico, caçar e eliminar sua liderança,
quebrar suas redes, barrar suas operações de financiamento até
que a normalidade seja estabelecida, de forma a oferecer segurança
e estabilidade para o retorno dos refugiados, o que deverá
demandar anos. Essa estratégia está sendo realizada pontualmente
e parece estar obtendo sucesso.
Também é necessário substituir a ideia de invasão dos infiéis
em terras islâmicas – o que está na base do pensamento
apocalíptico do EI – e buscar colaboração com todo o mundo árabe
na resolução dos problemas, tratando-os como parceiros e
respeitando suas idiossincrasias religiosas. A estratégia de deixar os
ataques por terra sob a responsabilidade das forças locais,
fornecendo apenas suporte aéreo e treinamento, parece estar
dando certo neste momento, o que serve para elevar o moral das
tropas locais envolvidas.
CAPITULO VII
A presença de terrorismo no Brasil

De acordo com o último censo realizado pelo Instituto Brasileiro


de Geografia e Estatística (IBGE), o número de muçulmanos no
Brasil cresceu 29,1% de 2000 a 2010, existindo no Brasil cerca de
35.167 deles.
Segundo o IBGE, as regiões com maior concentração de
muçulmanos compreendem o Estado de São Paulo, em primeiro
lugar, seguido do Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e
Minas Gerais.
Pelos dados da Federação das Associações Muçulmanas do
Brasil (Fambras), esse número saltou de 600 mil em 2010 para
entre 800 mil e 1,2 milhão em 2015. Esse aumento se deve, em
grande parte, à curiosidade despertada em relação ao Estado
Islâmico pela grande mídia e pelas redes sociais. A Internet é o
meio mais utilizado para obter informações ou para travar os
primeiros contatos com outros seguidores da religião.
De acordo com a Federação das Associações Muçulmanas do
Brasil (Fambras), o número de mesquitas e musalas (salas de
oração islâmicas) no Estado de São Paulo cresceu cerca de 20%
em 2015, o que se deve, em boa medida, à chegada de refugiados
muçulmanos, bem como pela conversão de brasileiros que
passaram a se interessar pelo Islã em razão da sua grande
exposição na mídia, em face das barbaridades perpetradas pelo
Estado Islâmico.
Muitas pessoas se convertem ao islamismo depois de travarem
relações com muçulmanos ou por causa da Internet, ao lerem temas
sobre essa religião. Somente no ano passado, quando aumentaram
as publicações envolvendo o muçulmanismo e o EI em particular, o
número de centros islâmicos em São Paulo – que abriga a maior
comunidade muçulmana do país – subiu 20%. Admite-se que em
todo país existam cerca de uma centena de centros islâmicos.
Embora procurem manter-se distantes das facções radicais do
islamismo e evitem trazer para o Brasil os ódios e as idiossincrasias
das facções em luta no Oriente Médio, as lideranças têm-se
empenhado em realizar um trabalho de divulgação do islamismo em
todo o Brasil, de forma a tentar desfazer a imagem radical da
religião, além da cooptação de novos adeptos. O vice-presidente da
Fambras se preocupa com a associação que as pessoas possam
fazer do terrorismo com o Islã, por isso publicamente demonstra seu
repúdio ao EI.
É bem verdade que durante muitos anos as comunidades
muçulmanas no Brasil viviam em relativa paz, mantendo-se
afastadas dos conflitos do Oriente Médio, posição essa que parece
mais difícil de manter nos tempos de Internet e da sociedade da
informação.
Em 9 de abril de 2012, em depoimento na Comissão de
Relações Exteriores, um dos maiores especialistas brasileiros em
terrorismo, o Dr. Márcio Paulo Buzanelli, acabou com uma falácia
que é repetidamente apresentada por autoridades do governo
brasileiro, a de que não existe ameaça de terrorismo em relação ao
Brasil. Para ele, existe um risco real de terrorismo no Brasil.
Buzanelli sabe o que diz. Com mais de trinta anos dedicados à
atividade de Inteligência e com profundo conhecimento sobre
história e cultura islâmica, ele chefiou o Departamento de Terrorismo
da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) antes de assumir a
diretoria-geral daquela organização. Segundo ele, é falsa a
impressão de que o terrorismo é uma ameaça distante para o Brasil.
A globalização e a facilidade das viagens aéreas facilitam a
realização de ataques em qualquer parte, e o Brasil precisa observar
essas ameaças e dar a resposta devida, dizia Buzanelli.
Embora a Copa do Mundo e as Olimpíadas-2016 tenham se
passado sem incidentes dessa ordem, realizações dessa natureza
inevitavelmente nos fazem recordar o atentado terrorista da
organização Setembro Negro contra os atletas israelenses na
Olimpíada de Munique, em 1972, que inaugurou a era do terrorismo
em grandes eventos.
De fato, por ocasião dessas competições os olhos do mundo
ficam voltados para o país patrocinador, o que também atrai os
olhares dos terroristas, uma vez que tudo o que querem ao praticar
seus ataques é a propaganda gratuita que a mídia possibilita, ao
lhes dar grande visibilidade. Muitos jornalistas ficam divididos entre
a necessidade de divulgar um fato jornalístico e a possibilidade de
estarem sendo usados pelos terroristas, o que requer muita
responsabilidade e equilíbrio.
Para fazer frente a esse desafio, foi criado um Centro Integrado
Antiterrorismo que contou com a presença de diversas agências de
inteligência estrangeiras para a troca de informações e alertas sobre
possíveis ameaças de atentados. Foi realizada a análise dos perfis
de cerca de 700 mil convidados para as Olimpíadas e de mais de
um milhão de estrangeiros esperados para o evento, visando a
identificar potenciais suspeitos de terrorismo.
A preocupação deu-se não só com os que chegavam como
visitantes, mas também com aqueles que já se encontravam aqui.
Muito embora não se conheça nenhuma organização terrorista
genuinamente brasileira, algumas organizações e movimentos ditos
sociais empregam, em suas lutas, uma forma de ação muito
semelhante à de grupos terroristas, a fim de chamar a atenção para
os seus objetivos políticos.
Relatórios das áreas de Inteligência reconhecem a presença no
país das seguintes organizações terroristas islâmicas e suas
afiliadas: Al-Qaeda; Jihad Media Battalion, Jihad Islâmica, Al-
Gama’a Al-Islamiya e o Grupo Islâmico Combatente Marroquino. O
Hezbollah e o Hamas não são considerados organizações
terroristas pelas autoridades brasileiras.
A maioria dos membros dessas organizações se localizam na
região da Tríplice Fronteira: fronteiras do Paraguai e Argentina com
o Brasil, onde existe uma grande concentração de imigrantes
oriundos do Oriente Médio. A área tem sido acompanhada de perto
por oficiais de Inteligência de diversos países, os quais solicitam que
o Brasil participe mais na luta internacional contra o terrorismo.
Tamanha preocupação se deve ao fato de que a região serve
para o homizio de terroristas e a arrecadação de fundos, já que
grande parte dos muçulmanos na área são comerciantes bem-
sucedidos. Para Arfam Szubin, diretor do Escritório de Controle de
Ativos Estrangeiros do Tesouro americano, a Tríplice Fronteira “é
hoje uma artéria financeira do Hezbollalh”, como escreveu em
relatório enviado ao Departamento de Estado dos EUA.
A ABIN descobriu que em 1995 Bin Laden e Khalid Shaikh
Mohammed, que o ajudou a planejar a destruição do World Trade
Center em 11 de setembro de 2011, estiveram em Foz do Iguaçu.
Além do mais, existem naquela região quadrilhas
especializadas na falsificação de passaportes e na preparação de
casamentos fraudulentos, apenas para que elementos procurados
em outros países consigam permanência no Brasil. Os interessados
escolhem moças pobres e mães solteiras pagando-lhes razoáveis
somas em dinheiro para que elas participem da fraude, permitindo
que sejam reconhecidos como o pai verdadeiro de seus filhos.
Assim eles se tornam legalmente pais de filhos brasileiros e, por
isso, não podem ser extraditados.
De acordo com informações da Inteligência, o bando era
chefiado pelo libanês Jihad Chaim Baalbalti e pelo jordaniano Sael
Basheer Yahya Najib Atari, um importante líder muçulmano de Foz
do Iguaçu, com quem a Polícia Federal encontrou passaportes
roubados ou falsificados que aparentemente seriam vendidos para
militantes radicais islâmicos procurados pelas autoridades de outros
países. Isso lhes permitiria viajar sem despertar suspeitas. Ambos
foram presos e responderam a processo policial.
Fontes de Inteligência dos EUA apontam que cerca de vinte
militantes da Al-Qaeda, do Hezbollah, do Hamas, do Grupo Islâmico
Combatente Marroquino e do egípcio al-Gama’a al-Islamiya usam
ou usaram o Brasil como esconderijo, centro de logística, fonte de
captação de dinheiro e planejamento de atentados. Também um
relatório do Soufan Group, uma consultoria de Inteligência baseada
em Nova Iorque publicou, no início de 2015, que havia três
brasileiros e 23 argentinos entre os combatentes do Estado
Islâmico. O relatório não dava mais detalhes sobre quem seriam
essas pessoas.
Mais recentemente, em abril de 2016, a Agência Brasileira de
Inteligência (ABIN) confirmou uma ameaça ao Brasil, publicada em
novembro em conta no Twitter vinculada a Maxime Hauchard, um
francês que foi para a Síria em 2013 e juntou-se às fileiras do EI.
Hauchard, conhecido como “O Carrasco”, é suspeito de ser um dos
terroristas que aparecem em vídeos que exibem a decapitação de
pessoas sequestradas ou feitas prisioneiras pelo EI. A mensagem,
confirmada pelo diretor de Contraterrorismo da ABIN, Luiz Alberto
Sallaberry, dizia: “Brasil, vocês são nosso próximo alvo”. Ela foi
publicada na rede dias depois dos ataques terroristas em Paris.
A ABIN monitorava indivíduos que tinham jurado lealdade ao EI
e que poderiam agir por ocasião dos Jogos Olímpicos do Rio de
Janeiro, em agosto de 2016, e constatou o aumento no número de
adesões de nacionais brasileiros ao Estado Islâmico. Disse
Sallaberry:

Quando uma pessoa faz o juramento ao califado e se torna


autoproclamada, ela está disposta a cometer qualquer atentado
violento em nome do grupo. A ordem não precisa ser
presencial, pode ser via Internet.

Este pode ser o caso do físico francês Adlène Hicheur, que


chegou ao Brasil em 2013 como bolsista do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), passando a atuar
posteriormente como professor da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), depois de ter sido preso e condenado a cinco anos
de prisão na França, em 2009, sob a acusação de planejar
atentados terroristas. Seus antecedentes e sua condenação não
foram motivos suficientes para barrar seu ingresso no país.
A revista Época de 8 de janeiro de 2016 apresentou uma
grande reportagem em que mostra uma série de e-mails
criptografados por um programa chamado Asrar, criado pela Al-
Qaeda para trocar informações e armazenar conversas sigilosas,
trocados entre Hicheur e um suposto controlador, apelidado de
“Phenix Shadow”, mas que na verdade era, de acordo com a polícia
francesa, Mustapha Debchi, considerado um membro da Al-Qaeda
na Argélia. As mensagens foram decodificadas pela Inteligência
francesa.
Dentre as várias mensagens, um dos e-mails mostrou que
“Phenix Shadow” perguntou a Hicheur se ele estaria disposto a fazer
um ataque suicida, proposta que ele recusou. No entanto, o fator
determinante para a sua prisão foi a sua resposta positiva a uma
proposta de “Phenix”, na qual o recrutador perguntou se ele estaria
disposto a trabalhar em uma “unidade de ativação” na França.
Hicheur, além de responder afirmativamente, ainda apresentou
proposta de:

Executar assassinatos com objetivos bem estudados:


personalidades europeias ou personalidades bem definidas que
pertençam aos regimes incrédulos (em embaixadas e
consulados, por exemplo).

Por casos como esse, aquela Agência tem manifestado maior


preocupação com a probabilidade de o Brasil vir a ser também alvo
de ataques terroristas. O alerta aumentou nos últimos meses em
razão dos últimos atentados ocorridos na Europa, e as autoridades
admitiram à época que a principal ameaça aos Jogos Olímpicos
poderia vir dos chamados lobos solitários, que apesar de atuarem
sob a orientação de algum grupo radical têm independência para
realizar suas ações, não havendo necessidade do apoio de uma
célula terrorista ou de outra organização.
A maior preocupação da ABIN era com a possibilidade de ações
terroristas ocorrerem durante a passagem da tocha olímpica por 300
cidades brasileiras, haja vista a participação de um grande número
de pessoas nesse tipo de evento, constituindo-se um desafio à
segurança. Felizmente nada aconteceu, provavelmente graças aos
esforços de todos os responsáveis pela segurança do evento, aí
incluídos os oficiais de Inteligência.
Talvez por isso Buzanelli alertava para a possibilidade de
atentados por parte de grupos islâmicos radicais como a Al-Qaeda e
de outras organizações terroristas que se voltaram para a prática de
pequenos, mas mortíferos, atentados. Com o sucesso dos ataques
do EI no exterior, a Al-Qaeda, não querendo ficar para trás, voltou a
realizar ataques.
Uma anomalia difícil de entender foi o pouco interesse do
governo do Partido dos Trabalhadores (PT) em relação ao
terrorismo, que passou a ter importância secundária na ABIN,
desprezando anos de trabalho e a experiência de seus analistas
nesse tema. O mesmo ocorreu na Polícia Federal, que havia criado
um setor de Contraterrorismo que foi desativado em 2009, sendo o
seu quadro de especialistas distribuído por outras unidades da
organização.
Percebeu-se, nessa conduta irresponsável, a influência da
ideologia sobre os interesses maiores do Estado e da sociedade
brasileira, já que a esquerda política apoia qualquer iniciativa que
sirva para irritar ou contrariar os Estados Unidos, considerado o
grande inimigo da humanidade, além de ser acusado de ser o autor
das pressões para que se aprovasse uma lei antiterror.
A diplomacia brasileira também adotou uma linha de tolerância
em relação a algumas organizações que se valiam de ações
terroristas, como o Hezbollah e o Hamas, que passaram a não ser
consideradas organizações terroristas. Esse desatino chegou ao
ponto de o secretário nacional de Justiça do governo Lula, Pedro
Abramovay, defender que não havia necessidade de criação de uma
lei que tipificasse o crime de terrorismo e de uma legislação para o
combate ao financiamento do terrorismo, o que, para ele, já estava
garantido na legislação do país.
O fantasma que pairava sobre a cabeça dos responsáveis pelo
contraterrorismo dizia respeito ao fato de o Código Penal brasileiro
ser antiquado e não tipificar o crime de terrorismo, apesar de o país
ser signatário de convenção da ONU nesse sentido. Esse problema
foi resolvido com a aprovação de uma lei específica que define o
terrorismo como crime, e que veio a preencher essa lacuna.
É ponto comum entre as pessoas ligadas ao problema que
somente quando acontecer um atentado no Brasil os governantes
sairão de sua crença infantil e irresponsável de que o Brasil jamais
será palco de ações terroristas. Não existe nenhum indicativo,
nenhuma promessa nem declaração das organizações terroristas de
que não irão executar ações no Brasil. Somente com a aproximação
da Copa, e por pressão de outros países é que o governo passou a
levar a sério essa possibilidade.
A revista Veja, em sua edição de 11 de janeiro de 2015,
apresentou extensa reportagem em que demonstrava, com dados
da Polícia Federal, que uma rede de Terror tinha implantado suas
bases no Brasil. Segundo a reportagem, a Polícia Federal tinha
provas de que a Al-Qaeda e outras quatro organizações extremistas
usavam o país para divulgar propaganda, planejar atentados,
financiar operações e aliciar militantes.
Na verdade, essas organizações se valiam do vazio legal
existente na legislação brasileira, que permitiu a instalação e a
expansão das atividades de reconhecidos apoiadores do terrorismo
no mundo. A inação do Estado deixava os representantes das áreas
de Inteligência e Segurança sem instrumentos para coibir essa
presença indesejável, sendo difícil dizer qual é a extensão da
presença dessas organizações no país.
Esse foi o caso do libanês Khaled Hussein Ali, considerado um
dos chefes do segmento de comunicações online da Al-Qaeda,
chamado Jihad Media Battalion (JMB), que tem presença em 17
países e difunde as comunicações dos líderes da Al-Qaeda, bem
como os ataques realizados. Valendo-se da legislação brasileira, ele
se casou e teve uma filha brasileira, o que lhe deu o direito de morar
no Brasil. Ele residiria em São Paulo, onde levava uma vida dupla.
Baseada em informações fornecidas pelo Federal Bureau
Investigation (FBI), a Polícia Federal norte-americana, de que
Hussein Ali lideraria a JMB, a Polícia Federal passou a investigá-lo,
o que culminou com sua prisão, em 24 de abril de 2009. Os Policiais
Federais encontraram diversos arquivos em seu computador –
protegido pelo programa de criptografia da Al-Qaeda, o Mojahideen
Secrets 2.0 – que comprovavam sua posição de liderança na
organização terrorista. Também por seus e-mails puderam
comprovar suas ligações com guerrilheiros afegãos, possivelmente
pertencentes à organização terrorista Talibã.
A Polícia Federal encontrou ainda em seu computador spams
enviados aos Estados Unidos de incitação ao ódio a judeus e
negros. Isso motivou o seu indiciamento apenas por racismo,
incitação ao crime e formação de quadrilha, uma vez que ele não
pôde ser acusado de terrorismo, pois nessa época não existia uma
legislação específica para esse crime, já que o Código Penal
Brasileiro não previa esse delito. Ele ficou preso por 21 dias, sendo
depois liberado pela justiça.
Outro suspeito citado pela reportagem é Hesham Ahmed
Mahmoud Eltrabily, apontado pelo Egito como participante da
chacina de 62 turistas que visitavam as ruínas de Luxor, em 1997.
Contra Eltrabily foi emitida pela Interpol uma ordem de prisão e ele
foi capturado em São Paulo, cinco anos depois. No entanto, o
Supremo Tribunal Federal negou sua extradição, alegando
fragilidade nas provas apresentadas pelo governo egípcio.
Também é citado o caso de Mohamed Ali Abou Elezz Ibrahim
Soliman, que pertenceria à célula brasileira do al-Gama’a al-
Islamiya, subordinada à Al-Qaeda, que também foi sentenciado no
Egito por participar do atentado de Luxor. Ele foi preso em 1999,
mas teve sua extradição negada pelo Supremo Tribunal Federal em
razão de erros na instrução do processo.
Foi citado também o iraniano Mohsen Rabbani, acusado de
arquitetar os atentados contra instituições judaicas que vitimaram
114 pessoas em Buenos Aires nos anos de 1993 e 1994. Rabbani,
que era funcionário do governo iraniano, estava sendo procurado
pela Interpol mas entrou e saiu do Brasil possivelmente com
passaportes falsificados. De acordo com a ABIN, ele teria recrutado,
pelo menos, duas dezenas de jovens do interior de São Paulo,
Pernambuco e Paraná para cursos de “formação religiosa” em
Teerã, uma forma conhecida de recrutar e treinar terroristas.
Quem sabe não teria razão o procurador da República Dr.
Alexandre Camanho de Assis, que coordena o Ministério Público em
13 Estados e no Distrito Federal. Ele diz: “Sem que ninguém
perceba, está surgindo uma geração de extremistas islâmicos no
Brasil”. Deve-se atentar, porém, que a grande maioria da
comunidade muçulmana no Brasil, principalmente em Foz do
Iguaçu, condena o terrorismo e não pretende dar apoio a seus
membros radicais.
Há alguns anos, quando me encontrava à frente da Divisão de
Contraterrorismo na antiga Secretaria de Assuntos Estratégicos da
Presidência da República, desenvolvíamos operações de
Inteligência na região da Tríplice Fronteira – a exemplo do que
faziam, e devem continuar a fazer, agentes dos mais diversos
serviços de Inteligência do planeta – visando a identificar e
neutralizar a presença de suspeitos ou de pessoas com
reconhecidas ligações com o terrorismo internacional.
Àquela época, foi constatada a presença de diversos suspeitos
de terrorismo que iam para a região em busca de homizio. Além do
mais, confirmou-se que membros das comunidades muçulmanas
contribuíam financeiramente para organizações terroristas, restando
a dúvida se sabiam ou não da destinação do dinheiro.
Também é emblemático o caso de Wilson Roberto dos Santos,
o brasileiro que esteve diretamente envolvido no atentado terrorista
que destruiu a Associação Mutual Israelense (AMIA) em Buenos
Aires, Argentina, em 19 de julho de 1994, no qual morrerem 86
pessoas.
Dias antes do atentado, Wilson procurou os consulados de
Israel, do Brasil e da Argentina em Milão (Itália) avisando que um
novo ataque ocorreria contra um alvo judaico em Buenos Aires.
Teria sido ele quem providenciou o material para a confecção das
bombas, adquirido em Foz do Iguaçu, na região da Tríplice
Fronteira. Em depoimento à polícia argentina, o brasileiro denunciou
uma ex-namorada, a iraniana Nasrim Mokhtari, que teria sido
plantada na Argentina pelo serviço secreto do Irã para aproximar-se
de políticos influentes e preparar ações terroristas.
Em novembro de 1994, em entrevista à revista IstoÉ, ele
acusou Mokhtari de ser a principal suspeita de participar dos
atentados contra a Embaixada de Israel em Buenos Aires, em 1992,
e contra a sede da AMIA, e também de chefiar uma célula terrorista
iraniana que estaria por trás dos ataques. Ela, por seu turno,
também acusava Wilson Roberto de ter se envolvido em atividades
“estranhas”.
Em 1986, quando assumi a chefia da Contrainteligência, reabri
o caso da AMIA, que estava arquivado por não se ter reunido
elementos de convicção contra Wilson Roberto. Reuni-me com
oficiais de Inteligência da Secretaria de Inteligência del Estado
(SIDE), da Argentina, para troca de informações e atualizações
sobre o paradeiro do suspeito, que para os argentinos estava
seriamente implicado no atentado.
Após muitas investigações, todas as pistas que tínhamos para
encontrar Wilson Roberto foram infrutíferas, bem como os esforços
para determinar sua participação naquele triste episódio. Pouco
tempo depois, retirei-me do serviço ativo, não tendo mais
informações sobre o que foi apurado sobre a efetiva participação do
brasileiro naquele ato terrorista.
O promotor argentino Alberto Nisman, que em 18 de janeiro de
2015 foi encontrado morto com um tiro na cabeça no seu
apartamento, estudou obsessivamente o caso AMIA e concluiu que
o atentado havia sido patrocinado pelo governo do Irã e executado
por cidadãos daquele país. Até hoje pairam dúvidas sobre seu
assassinato: para uns, ele foi assassinado; para outros, cometeu
suicídio.
Ultimamente tenho acompanhado, pela imprensa, notícias sobre
a presença frequente de suspeitos de envolvimento com o
terrorismo em trânsito pelo Brasil, fazendo pregações em Mesquitas
ou em centros de cultura muçulmana.
Este é o caso de Muhammad al-Arifi, que segundo reportagem
da Veja de 26 de fevereiro de 2016 esteve em visita a favelas de
São Paulo. Diz a revista que al-Arifi foi proibido de entrar em trinta
países da Europa e é acusado de aliciar jovens para o Estado
Islâmico e de fazer discurso de ódio para milhões de seguidores na
Internet. Esse chamamento para a guerra seria feito a partir das
mesquitas, as igrejas dos muçulmanos, local onde os líderes
religiosos radicais apresentam a morte de seus desafetos como uma
forma de cumprir a vontade de Deus.
Ressalte-se que o terrorismo não é um produto direto do Islã,
mas o resultado do que está sendo ensinado em muitas madrassas,
as escolas islâmicas, onde as crianças são educadas sob um
enfoque fundamentalista e a religião é apresentada como a solução
para qualquer problema. Essa formação de base ensina às crianças
a olharem para o mundo, e principalmente para o Ocidente, de
maneira intransigente e radical, e a Jihad, a guerra santa, é
mostrada como a única solução.
Al-Arifi é um clérigo conhecido em todo o mundo, possuindo
grande número de seguidores nas redes sociais do Oriente Médio,
por isso suas declarações têm grande influência sobre os
muçulmanos. Em razão disso, suas pregações radicais em favor da
Jihad podem propiciar a conversão de brasileiros ao islamismo e o
recrutamento de simpatizantes para se juntarem ao EI.
A escolha de favelas para sua pregação, lugares onde a
pobreza e a violência propiciam um terreno fértil para ideias radicais,
parece não ter sido obra do acaso: é nesse ambiente que os
jihadistas conseguem aliciar jovens revoltados e desesperançados.
Por essa razão, governos de vários países consideram indesejável a
presença de al-Arif, como fez o governo inglês, que proibiu sua
entrada no Reino Unido, considerando-o uma ameaça à segurança
daquele país.
A luta contra o terrorismo exige que a comunidade de
Inteligência esteja atenta ao que os clérigos radicais muçulmanos
estão espalhando pelo mundo, pois o Brasil seguramente não está
imune a essa pregação radical. A depender do tipo de pregação
feita por al-Arifi aos jovens e crianças paulistas, podemos estar
assistindo impassíveis à pregação, em nosso país, do ódio e de
conceitos equivocados do islamismo, que levam à violação dos
direitos das mulheres, à homofobia, ao antissemitismo e ao
terrorismo.
Nos dias de hoje, por não mais pertencer ao serviço ativo da
ABIN, não posso fazer afirmações peremptórias sobre o nível das
medidas de contraterrorismo, como o controle em portos e
aeroportos, ou sobre o monitoramento de terroristas ou suspeitos de
terrorismo infiltrados na comunidade muçulmana no Brasil. Mas
parodiando a afirmação de que “o preço da liberdade é a eterna
vigilância”, poderíamos dizer que “o preço da segurança é a eterna
vigilância”, e na linha de frente desse combate devem estar os
oficiais de Inteligência dessa organização.
Palavras finais

A cada dia e a cada novo ataque das forças da coalizão


internacional, observa-se um enfraquecimento do Estado Islâmico.
No entanto, o fato de ter simpatizantes em vários outros países,
inclusive na Europa e nos Estados Unidos, a quem ameaçam com o
emprego da violência do terrorismo, ainda faz do EI uma ameaça à
segurança regional e internacional, principalmente no Oriente Médio
e na África.
Os últimos atentados na França e na Bélgica mostram que,
embora sofrendo reveses na Síria e no Iraque, o grupo ainda tem
capacidade para planejar e executar ataques longe de suas bases,
ameaçando os interesses dos EUA e de seus parceiros no exterior.
Os esforços diplomáticos da comunidade internacional para
reconciliar as facções sírias e iraquianas, atualmente em curso,
apesar das dificuldades, parecem estar alcançando êxito. No
entanto, não se pode deixar iludir: o confronto com o Estado
Islâmico pode ser prolongado, dispendioso, violento e desafiador,
conforme concluíram militares e diplomatas de diversos países.
Enquanto o conflito persistir, continuarão os debates
envolvendo uso da força militar, privacidade e liberdades civis,
compartilhamento de inteligência, imigração, identidade, liberdade
religiosa, negociação diplomática e prioridades estratégicas
nacionais, conforme aponta o Report: ISIS and US Policy, de 30 de
novembro de 2015, do Wilson Center.
As razões que contribuíram para a ascensão do Estado Islâmico
continuam a existir naquela região conflituosa. No entanto, parece
estar ocorrendo um equilíbrio das forças envolvidas, que podem
auxiliar na sua queda, mas seria pouco realista acreditar na sua
derrota total.
Seu enfraquecimento militar e financeiro impede sua expansão
territorial e o atendimento das demandas da população sob seu
domínio, mas não impede que continuem a realizar atentados
espetaculares além-fronteiras como forma de mostrar que ainda são
fortes e manter o moral das tropas em nível elevado, o que contribui
para continuar a atrair novos recrutas. No entanto, sua mensagem,
hoje, é muito diferente. Eles não podem mais alegar que são um
movimento que atua sob inspiração divina, pois sabem que não
passam de uma organização terrorista criminosa.
Os atentados na Europa e em São Bernardino, na Califórnia
(EUA), mostram o perigo que representa a disseminação das redes
terroristas por outros países e as dificuldades enfrentadas pelos
serviços de Inteligência e Segurança para acompanhá-las. A
abolição das fronteiras internas nos países membros da União
Europeia e a livre circulação nesses países facilitam os movimentos
dos terroristas, mostrando o tamanho desse desafio.
No entanto, seguindo as ideias que norteiam seus dirigentes,
parece que o Apocalipse do Estado Islâmico está em plena
execução, mas eles estão perdendo a batalha do Armagedon – não
para as forças do Mal, contra quem esperavam lutar, mas para as
forças da liberdade de religião e de pensamento. As trombetas já
soaram e o dia do Juízo Final deles se aproxima. Que Mahdi e Alá
se apiedem de suas almas.
Literatura recomendada

AMANAT, Abbas. Imagining the End: Visions of Apocalypse from


the Ancient Middle East to Modern America.
AMIR-MOEZZI, Mohammad Ali. The Spirituality of Shi’i Islam:
Beliefs and Practices.
APOCALIPSISMO: coletânea de estudos. São Leopoldo : Sinodal,
1983.
BALLARD, Martin. End-Timers: Three Thousand Years of Waiting
for Judgment Day.
BESSA, Jorge da Silva. Decifrando as profecias de Daniel: O
Juízo Final. Brasília-DF : Thesaurus, 2013.
____ Decifrando as profecias de João: A Batalha Final do
Armagedom. Brasília-DF: Thesaurus, 2013.
BOUZON, Emanuel. As raízes judaicas da escatologia
neotestamentária.
CARO, José Manuel Sánchez. História, narrativa apocalíptica.
São Paulo : Ave-Maria, 2004.
COHN, Norman. Cosmos, caos e o mundo que virá: as origens
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COLLINS, John J. The apocalyptic imagination: an introduction to
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Disponível em:
https://cesarmangolin.files.wordpress.com/2010/02/samuel_huntingt
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Inteligência. v. 3, n. 4 (set. 2007). Brasília-DF : ABIN, 2005.
RICHARDSON, Joel. Anticristo. O Messias esperado pelo Islã: Um
Estudo da Escatologia Bíblica e Islâmica. Disponível em:
http://www.joelstrumpet.com/wp-content/uploads/2015/08/AntiCristo-
O-Messias-esperado-pelo-Isla.pdf. Acessado em 116 de dezembro
de 2015.
SACHEDINA, Bdulaziz Abdulhussein. Islamic Messianism: The
Idea of Mahdi in Twelver Shi’ism.
O Autor

Jorge Bessa, 64 anos, nasceu em Belém do Pará. Graduado


em Economia e pós-graduado em Educação a Distância, formou-se
também em Medicina Tradicional Chinesa e em Psicanálise,
profissões que exerce até hoje, ao lado da carreira de escritor.
Especialista em assuntos relacionados à Atividade de
Inteligência e de Planejamento Estratégico, chefiou os
Departamentos de Contraespionagem e de Contraterrorismo da
atual Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Com o passar dos
anos, passou a estudar os assuntos metafísicos e espiritualistas,
tentando estabelecer pontes entre ciência e espiritualidade.
Escreveu 15 livros, alguns relacionados à atividade de
Inteligência de Estado, e outros ligados às áreas de saúde mental, a
exemplo de Jesus, o maior médico que já existiu e Medicina
emocional.

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