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nelson rosário de souza

A IGREJA CATÓLICA

PROGRESSISTA E A PRODUÇÃO DO

MILITANTE

CARTOGRAFIA DE UMA AFINIDADE ELETIVA POLÍTICO-

RELIGIOSA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso de

Pós-graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Orientador: Prof. Dr. Antônio

Flávio Pierucci.

SÃO PAULO

1993
Para Neusa, cúmplice no trabalho e no prazer.

Para Caio - que a vida o invada a cada dia.

Para meu pai e minha mãe, pelo apoio e pelo

carinho.
"A infelicidade dos homens nunca deve ser um

resto mudo da política." (FOUCAULT Apud ERIBON, 1990, p.

260)
RESUMO

Este trabalho estuda de que forma as práticas

político-religiosas próprias da igreja católica

progressista produzem o militante. O encontro entre a

prática política de esquerda e religião católica, no

Brasil, é entendido aqui como uma afinidade eletiva, não

havendo, portanto, a determinação de uma instância sobre

a outra. Trata-se de uma combinação que alimenta e ao

mesmo tempo é reproduzida pelas técnicas militantes. O

principal conceito que orienta esta investigação é o de

'poder pastoral', conceito este construído por Michel

Foucault (FOUCAULT, 1990).

Neste trabalho são analisadas entrevistas feitas

com militantes católicos progressistas, bem como

documentos produzidos por e/ou para os militantes. A

investigação permite concluir que certas práticas de

poder pastoral constituem um 'militante total', cuja

atuação se faz num campo caracterizado por uma totalidade

duplamente reforçada pelo encontro de energias políticas

e religiosas.
AGRADECIMENTOS

No transcurso deste trabalho muitos foram os que

prestaram sua colaboração. Gostaria, neste momento, de

manifestar publicamente minha gratidão a estas pessoas,

mesmo correndo o risco de cometer omissões injustas.

A Antônio Flávio Pierucci, por ter-me aceito como

orientando com muito empenho e dedicação, apontando e

corrigindo com paciência muitas das minhas deficiências.

Pela crítica e pelas ricas sugestões durante todas as

etapas da pesquisa. Por sua clareza e seu conhecimento,

que me foram fundamentais na elaboração deste trabalho.

Aos professores que participaram da banca do

Exame de Qualificação, José Carlos Bruni e Sérgio França

Adorno de Abreu, por mostrarem, através das suas

argüições, os limites e possibilidades do objeto e da

problematização proposta.

Aos colegas professores do Departamento de

Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná, pelas

críticas e sugestões apresentadas no seminário de

pesquisa.

Aos colegas professores do Departamento de

Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina,

pelo importante apoio dado para o cumprimento dos

créditos de mestrado.
À professora Maria Helena Oliva Augusto e aos

alunos do mestrado da USP, que, nos seminários de projeto

contribuíram com o trabalho apontando seus problemas,

apresentando idéias valorosas e questões sugestivas.

Ao colega Paulo Astor Soethe, que com paciência

revisou o texto e apresentou sugestões muito úteis.

Ao amigo Marcos César Alvarez, por acompanhar o

início do meu trabalho, propor caminhos e discutir

problemas, ajudando a clarear algumas idéias.

Ao amigo José Júlio Nunes Ferreira, por acreditar

no meu potencial, pelo incentivo e pelo fundamental apoio

nos momentos decisivos da minha carreira acadêmica.

À minha família, por "segurar as pontas" nos

momentos em que estive absorvido pelo trabalho.

Por fim, ao CNPq (Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico), que por dois

anos e meio financiou esta pesquisa.

São Paulo, agosto de 1993.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................... 01

CAPÍTULO I
O MILITANTE ........................................ 05
I.1. - Origem e significado ...................... 05
I.2. - O militante calvinista .................... 10
I.3. - O militante de esquerda ................... 13
I.4. - Reflexões atuais sobre o militante ........ 23

CAPÍTULO II
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E METODOLÓGICA. OBJETO DA
PESQUISA ........................................... 37
II.1. - Sobre o conceito de afinidade eletiva e
tipo ideal ................................ 37
II.2. - Foucault e o conceito de poder disciplinar. 43
II.3. - A concepção de poder pastoral ............. 54
II.4. - O objeto da pesquisa ...................... 59
CAPÍTULO III
A EMERGÊNCIA DO MILITANTE DA IGREJA CATÓLICA
PROGRESSISTA ....................................... 64
III.1. - O modelo dominação e libertação ........... 64
III.2. - A evangelização da política ............... 68
III.3. - O catolicismo integral .................... 70
III.4. - O catolicismo de esquerda ................. 78
III.5. - Os militantes católicos progressistas e os
movimentos sociais ........................ 89

CAPÍTULO IV
A PRODUÇÃO POLÍTICO RELIGIOSA DO MILITANTE
CATÓLICO PROGRESSISTA.............................. 99
IV.1. - O militante total ........................ 101
IV.2. - O esquecimento de si ..................... 107
IV.3. - Desterritorialização ..................... 109
IV.4. - Motivação para o engajamento ............. 112
IV.5. - A exposição de si ........................ 116
IV.6. - O saber como dever ....................... 122
IV.7. - O dever da ação .......................... 126
IV.8. - O corpo treinado ......................... 137
IV.9. - A revolução integral ..................... 139
IV.10. - Inserção plural para um fim total ........ 147
IV.11. - Revisão metódica de vida ................. 153
IV.12. - A resistência do 'eu' .................... 162
IV.13. - O poder como serviço ..................... 173

CONCLUSÃO ......................................... 179

BIBLIOGRAFIA ...................................... 185

FONTES ECLESIAIS .................................. 191


INTRODUÇÃO

______________________________________________________

"Ele nasceu militante (...). Ele consagra todo seu

tempo, todo seu pensamento, a totalidade da sua atenção à

ação pelo partido, ele não guarda uma hora para si, ele

sacrifica 'a priori' toda vida pessoal ..." (Vailland, Drole

de Jeux, 1945, p. 162, Apud Centre National de la Recherche

Scientifique, Trésor de la Langue Française, Paris,

Gallimard, 1985, p. 821)

Os dilemas enfrentados pelas organizações operárias

de esquerda (partidos, sindicatos e associações) e as

peculiaridades dos recentes movimentos sociais são temas que

têm estimulado a reflexão dos intelectuais das ciências

humanas. O problema de fundo que impulsiona estes trabalhos

diz respeito às potencialidades das lutas sociais na

sociedade moderna. Pensar esta questão no Brasil exige uma

investigação rigorosa sobre o papel da igreja católica, a

qual esteve e está presente nos contextos de mobilização

política popular. Foi assim nas décadas de 60, 70 até o

início dos anos 80; e, com menos intensidade, ainda hoje os


movimentos sociais têm participação significativa de

católicos que tiveram a sua formação política nas próprias

associações leigas da igreja.

Nossa análise tem como ponto central as 'operações'

que formam o militante católico politizando-o pela esquerda.

A nosso ver são mecanismos positivos de poder e saber que,

ao encontrarem um espaço ótimo de atuação na confluência en-

tre as práticas políticas e religiosas, produzem este mili-

tante plenamente convencido do seu papel social, portador de

um saber e politicamente ativo ao extremo. Nossa preocupação

é entender como estas forças operam a constituição do mili-

tante católico progressista e, num segundo plano, indicar

por que esta conexão político-religiosa mostrou-se perti-

nente. A afinidade eletiva entre política e religião, neste

caso, parece nutrir-se da junção dos mecanismos totalizado-

res presentes tanto em certas organizações políticas de es-

querda quanto no catolicismo social, criando disciplinas,

'verdades' e técnicas capazes de formar um militante total,

revestido de uma totalidade duplamente reforçada, por um

lado pela política e por outro pela religião.

No capítulo II explicitamos o referencial teórico-

metodológico e os conceitos que serviram de instrumento para

esta investigação. Os conceitos de 'tipo ideal' e de

'afinidade eletiva' nos foram fornecidos por Max Weber.

Nosso instrumental teórico, porém, foi buscado principal-


mente na obra do pensador francês Michel Foucault, mais es-

pecificamente na sua reflexão sobre o 'poder', o 'saber' e o

'sujeito'. A partir deste referencial e da delimitação do

objeto de pesquisa (o militante da esquerda católica) expli-

citam-se o problema que motiva a pesquisa (como este

'sujeito' é produzido, que mecanismos atuam na sua formação,

por que ele se constitui) e a hipótese que orienta a inves-

tigação (qual seja, a de que operações de poder positivo

constituem este 'militante total' político e religioso).

Amparados neste instrumental teórico-metodológico

tentamos refutar a noção que compreende o 'sujeito' como um

elemento pré-estabelecido e envolvido pelas leis do

'progresso' entendido como uma sucessão evolutiva promovida

pela 'razão'. Não nos satisfazemos, portanto, com as expli-

cações que atribuem a formação do militante a um processo

progressivo de conscientização de um sujeito coletivo, ou à

aquisição de uma ideologia.

No capítulo I, intitulado 'O Militante', são

apresentadas as características gerais do militante político

moderno em termos 'típicos ideais'. Trata-se, portanto, de

um recorte que valoriza certos aspectos presentes na

realidade e na bibliografia sobre o militante, e que virão

fundamentar nossa hipótese de resposta. Neste capítulo

enfatizamos alguns contextos em que o militante surge e os

debates clássicos entre intelectuais de esquerda que se


preocuparam com os riscos oferecidos pelo processo de

formação do militante revolucionário e com os efeitos

inesperados da sua atividade. Desta tematização emergem

novas pistas para a investigação do militante principalmente

a partir das contribuições de Castoriadis, Lefort e do

próprio Foucault.

No Capítulo III fazemos uma reflexão sobre as con-

dições que propiciaram a esquerdização de setores da igreja

católica brasileira. Também são mostrados ali os in-

gredientes que, combinados, possibilitaram a constituição da

corrente católica chamada aqui 'igreja progressista' e do

seu militante, intelectual e ativo. São análises que procu-

ram escapar às explicações deterministas e, ao mesmo tempo,

enfatizar a dinâmica própria das forças político-religiosas.

Ainda neste capítulo procuramos situar o militante

da igreja católica progressista no quadro de mobilização po-

lítica que marca a sociedade brasileira nas décadas de 60,

70 e 80. Neste momento efetivou-se uma confluência político-

religiosa de esquerda e emergiram os primeiros sinais de no-

vas técnicas disciplinares racionalizadoras da conduta, num

sentido mobilizador e numa direção inovadora.

O quarto e último capítulo da tese contém a análise

empírica propriamente dita. Trata-se de uma investigação so-

bre as condições atuais de constituição do militante da

igreja católica progressista a partir da análise de dezes-


sete entrevistas realizadas no decorrer do ano de 1990, com

militantes formados nas organizações de base deste setor da

igreja católica, na Região Metropolitana de Curitiba. Também

foram analisados documentos impressos - boletins, jornais,

materiais para cursos de formação etc. - produzidos pelas

organizações de base da igreja progressista em diferentes

regiões do país. Outra fonte de dados para este estudo es-

teve em algumas obras dos principais representantes da teo-

logia da libertação.
CAPÍTULO I

O MILITANTE

____________________________________________________

________

"As questões 'quem milita, por que e como' pra-

ticamente não foram abordadas... tampouco foram levantadas

as questões que surgem no nível dos grupos militantes, que

estão longe de formar grupos de trabalho racionais e

transparentes". (CASTORIADIS, 1985, p. 187)

I.1. - ORIGEM E SIGNIFICADO

Um olhar prévio e breve sobre os significados e a

origem da palavra 'militante' nos revela alguns sentidos

interessantes e possibilita estabelecer relações que não

devem ser desprezadas, pois certamente acompanharam desde

cedo não só o termo mas a própria experiência militante e,

ao que tudo indica, não se desfizeram de todo.


A definição que parece mais adequada aos nossos

interesses apresenta o militante como aquele que defende

ativamente uma causa, entra em combate para ver vitoriosas

as idéias do grupo a que pertence. Na sua origem o adjetivo

militante deriva do latim 'militare', verbo que começa a ser

empregado na linguagem teológica a partir da Idade Média,

entre os séculos XIII e XV1. Neste momento o adjetivo

'militante' qualifica a igreja. É interessante sublinhar

este uso inicialmente religioso do termo. Só por volta do

1 Entendemos perfeitamente que a experiência de

dedicação a uma causa não é inaugurada com a criação do

termo 'militante'. Entretanto, a análise, ainda que breve,

do momento da designação desta prática pode contribuir para

o seu entendimento. Para este fim consultamos: Fontinha,

Rodrigo. Novo Dicionário Etimológico da Lingua Portuguesa.

Porto: Editorial Domingos Barreira; Bueno, Francisco da S.

Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua

Portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1966; Cunha, Antônio G. da.

Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982; Bloch, Oscar e

Wartburg, Walter. Dictionnaire Étymologique de la Langue

Française. Paris: Presses Universitaire de France, 1968;

Centre National de la Recherche Scientifique. Trésor de la

Langue Française. Paris: Gallimard, 1985.


século XIX é que a palavra militante emerge no vocabulário

político.

Já nesse sentido primitivo de qualificação de um

conjunto de fiéis católicos como militantes, o termo

vincula-se à idéia de combate contra os inimigos pelo

triunfo de uma causa única, pela conquista da salvação final

num (outro) mundo totalmente novo. Essa salvação exige a

dedicação total da pessoa à luta terrestre que pode durar

uma eternidade e que submete e dá sentido a todas as demais

esferas da vida.

No século XVII o termo militante passa a ser

utilizado para definir o soldado de milícia, o profissional

das armas, que guerreia para alcançar o objetivo final pré-

estabelecido. Seria necessário uma pesquisa profunda da

palavra e da experiência militante para que se pudessem

estabelecer relações mais precisas; entretanto, pode-se

dizer a título especulativo que o 'exército' (entendido aqui

como força armada permanente) investiu na prática militante

religiosa, organizando-a no sentido moderno do termo

'militar', treinando o soldado para ser um combatente

disciplinado, ciente do seu dever, voluntarioso,

persistente, tenaz, e formando-o para ter um comportamento

de obediência e respeito à hierarquia, para estar totalmente

entregue à organização e subordinado a um objetivo final.

Atentemos para o fato de que 'militar' designa também a


atividade intelectual de planejar a estratégia adequada para

atingir o alvo, ou seja, para obter o sucesso na luta.

Só por volta do século XIX, como dissemos, é que a

palavra 'militante' passa a ser utilizada para nomear aquele

que milita numa organização partidária ou sindical, aquele

que abraça as tarefas políticas (materiais e intelectuais)

necessárias para o triunfo de uma causa, para a transfor-

mação total da sociedade. Parece pertinente perguntar,

desde já, se neste seu sentido moderno o termo 'militante'

indicaria uma ruptura radical com a experiência religiosa e

militar ou, em grande medida, representaria uma continui-

dade, um reaproveitamento de certas práticas e saberes reli-

giosos e militares agora no campo de batalha político, da

mesma forma que, noutros tempos, as cruzadas religiosas po-

dem ter servido de laboratório para a confluência de práti-

cas religiosas e militares.

Este olhar sobre a origem e o significado do termo

'militante' mostra a pertinência de se perguntar ao mili-

tante político moderno, aparentemente guiado pela razão, o

que ele tem de religioso. Parece interessante questionar até

que ponto as experiências religiosas e militares se mescla-

ram e contribuiram para a formação das práticas políticas

contemporâneas. Dentro dos limites deste trabalho privile-


giou-se a análise da conexão político-religiosa própria da

igreja católica progressista.2

É, portanto, o militante abrigado sob o manto da ala

progressista da igreja católica brasileira que nos suscita

indagações. O mistério sobre as forças que colocam este mi-

litante em atividade instiga nossa curiosidade. As práticas

que o atravessam trazem consigo um potencial de persuasão

coletiva. Nos caminhos recentes da história a atividade mi-

litante concretizou-se em diferentes momentos e sob diversas

formas. Não raras vezes observou-se a mobilização de verda-

deiros 'exércitos voluntários', convencidos da sua missão,

entregues de corpo e alma à tarefa de revolucionar a socie-

dade. A investigação deste militante específico, motivado

pelo discurso da igreja católica progressista, que proclama

a libertação dos pobres, a organização dos trabalhadores, a

tomada de consciência dos dominados e a emancipação dos

despossuídos, tem como etapa primeira e elucidativa a cons-

trução do 'tipo ideal' militante3.

2 Para uma definição de 'igreja católica

progressista' verificar o capítulo III (página 78) deste

trabalho.

3 Os fundamentos teóricos deste recurso metodológico

que contribuiu para o recorte do nosso objeto e orientou a

nossa coleta de dados podem ser encontrados no primeiro ítem


A prática material e intelectual do militante não

emerge necessariamente num conjunto de pessoas, ela não

acontece exclusivamente num grupo organizado. Acrescente-se

que são múltiplas as motivações que ao longo da história

conduziram os indivíduos a dedicar suas vidas a determinadas

causas. Contudo, entre as diversas ações que poderiam ser

classificadas como 'militantes', aquelas que contagiaram uma

coletividade são as que imprimiram a sua marca na história,

e é sobre estas que recairá nosso interesse. Estes grupos

que agem de forma decidida para alcançar objetivos axiológi-

cos que ultrapassam os limites individuais e os interesses

egoístas muitas vezes foram patrocinados por uma instituição

ou rapidamente sofreram o seu investimento. O referencial

do capítulo II desta dissertação. Na construção deste 'tipo'

desprezamos certos grupos de ativistas políticos portadores

de características diferentes das que definimos previamente,

de acordo com nossos interesses, como sendo definidoras do

'militante ideal'. Neste trabalho de seleção utilizamos

observações empíricas preliminares e o material encontrado

na bibliografia sobre o tema. Com o auxílio desta definição

prévia e provisória, procuramos localizar algumas

manifestações militantes significativas e a problemática que

as envolve. Este percurso permite demarcar a perspectiva que

nos orienta e, através do contraste, possibilita a análise

empírica do militante católico progressista.


que a presente pesquisa assume e as características do ob-

jeto que ela circunscreve conduzem a uma abordagem que pri-

vilegia as manifestações militantes coletivas, organizadas

institucionalmente, e que têm a propriedade, ou a pretensão,

de negar o mundo existente pela via revolucionária.

Seguramente as agremiações de cunho revolucionário

não se apresentam como único canal de formação ou circulação

do militantismo (SUBILEAU, 1981, p. 1041). Configurando-se

como prática social esta ação pode ser empreendida por

grupos conservadores radicais, reacionários, ou, até mesmo,

por organizações de tipo comunitário que não têm como

objetivo conquistar ou conservar o comando de instituições

que detenham o poder público. Todavia, o fenômeno da mili-

tância alcançou maior projeção, desenvolvimento e eficácia

quando ergueu-se como empreendimento contestador e, princi-

palmente, nos casos em que foi concebido em instituições que

planejavam um novo mundo a partir da negação da sociedade

presente. O espírito transformador da realidade foi, na

maior parte das vezes, a motivação fundamental para agregar

o maior número de militantes possível e impulsionar ao má-

ximo as suas práticas no tempo e no espaço.

Este espírito é típico do mundo moderno. É sabido

que indivíduos com desejo de mudar ou negar o mundo à sua

volta sempre existiram, em qualquer época, em qualquer

lugar. Mas militantes tal como aqui entendemos, estes são


típicos da modernidade. A vontade popular de participação

nos destinos da sociedade emerge sobre os escombros da era

feudal e se estabelece como pilar do sistema político engen-

drado no processo de ascensão da burguesia. Neste sentido é

que militância confunde-se com modernidade e, no nosso en-

tendimento, realiza-se em toda a sua plenitude quando contém

entre os seus ingredientes uma visão de mundo que se entende

revolucionária.

I.2. - O MILITANTE CALVINISTA

Não deixa de ser curioso o fato de uma das primeiras

manifestações desta moderna militância, deste radicalismo

político, ter ocorrido a partir de uma motivação religiosa

que introduziu transformações essenciais na maneira de os

cidadãos verem e fazerem política. Trata-se da combinação

político-religiosa presente na Reforma protestante, mais es-

pecificamente no calvinismo. Num estudo inspirado na inves-

tigação feita por Weber sobre a afinidade eletiva entre

ética protestante e o espírito do capitalismo moderno, Mi-

chael Walzer analisa a emergência do 'saint' calvinista a

partir da combinação entre protestantismo e política

(WALZER, 1987).

Para Walzer, as organizações e aspirações radicais

da revolução inglesa remontam ao calvinismo, pois nele já

estavam presentes as idéias-chave que rivalizam com o


sistema tradicional e propiciam o florescimento de uma ação

política radical. A organização partidária, a atividade

política metódica, caracterizada pelo radicalismo ideológico

e pela vontade de transformação social, são fenômenos que

não surgem antes do século XVI. A idéia de homens escolhidos

para uma tarefa política, empenhados num trabalho contínuo

de ação e reflexão, disciplinados e conscientes é um traço

marcante que os 'saints' imprimem à sociedade. A luta para a

construção de uma 'república cristã' exigiu uma organização

disciplinada, formadora dos 'saints'. Pela primeira vez

ocorreu um deslocamento da ação política do nível individual

para o coletivo. Os conceitos de 'consciência' e 'trabalho'

foram combinados e introduzidos na atividade política.

O inédito do calvinismo é o encorajamento à partici-

pação através de um discurso que apresenta como um dever do

cristão, mesmo leigo, a ação política. A novidade está tam-

bém no emprego de meios e métodos racionais, como: a im-

pressão de jornais, a confecção de normas e regulamentos de

conduta, a ocupação de cargos estratégicos na sociedade;

tudo para atingir um fim político-religioso. É uma religião

eminentemente social; sua preocupação com o reino da terra e

com a transformação deste reino levou-a à elaboração de uma

doutrina da disciplina e da obediência, necessárias para or-

ganizar a ação coletiva que realizaria este projeto terres-

tre. Pois para Calvino a sociedade, que é repressão e domi-


nação, funciona como remédio ao pecado. O homem não deve so-

nhar com a reconciliação com Deus, mas apenas aliviar o seu

sofrimento e a sua angústia através da obediência às regras

da sociedade política e às autoridade estabelecidas. Con-

tudo, como a repressão não é suficiente para neutralizar os

ímpetos negativos da natureza humana pecadora, é necessário

um suplemento de controle pela disciplina. Segundo Calvino,

assim como a repressão proporciona a paz social, a disci-

plina política contribui para a paz da alma, e ambas aliviam

a angústia do pecado. Mas a obediência deve ser consentida,

voluntária, não basta a aceitação passiva da repressão, o

cristão deve também desejá-la. Como salienta Walzer:

"Calvino tem consciência aguda do aumento gigantesco de con-

trole social que se obteria se se conseguisse que os homens

experimentassem o desejo deste controle e o consentissem em

seu coração" (WALZER, 1987, p. 64). É interessante notar

como as idéias de obediência e disciplina estão presentes

desde cedo na organização de grupos que militam pela trans-

formação da sociedade.

A obediência às leis demonstra que os homens

receberam a graça oferecida por Deus, e os caracteriza como

escolhidos, como construtores da nova sociedade. Esta

contradição entre aceitar o estabelecido e constituir o novo

é resolvida a partir da máxima de Calvino, tirada do Novo

Testamento, que diz: "Obediência a Deus e não aos homens".


Aqui está um álibi para a ação radical: obedecer a Deus pode

significar lutar para a construção da república cristã; a

revolta, tanto quanto a imposição da ordem, pode representar

a vontade de Deus. A legitimidade da ação empreendida só

pode ser verificada posteriormente, posto que a vitória na

resistência, na luta desencadeada, é que vai ratificar para

o 'saint' a condição de escolhido de Deus. Tanto quanto o

êxito nos negócios.

Assim como Weber, Walzer considera o calvinismo como

um aspecto do processo histórico de modernização. O calvi-

nismo rompe com a tradição feudal também pelo fato de ensi-

nar a ação política popular, constituir uma organização se-

cular para a reivindicação, participar da construção do Es-

tado moderno.

A forma de agir e de pensar calvinista apresenta

então este viés, qual seja, o de estar intimamente

relacionada ao espírito da classe burguesa revolucionária,

propagadora de um apelo à transformação social através da

participação popular no processo político. Apelo este que

teve seu momento de maior expressão na 'Revolução Francesa'.

Contudo, após a burguesia completar sua obra revolucionária

e se instalar no poder, o chamamento à ação popular

organizada perde o seu conteúdo negador das instituições

vigentes. A partir deste momento, a participação militante,

quando ainda é incentivada por esta classe, ganha uma


coloração formal de mera sustentação do sistema político

instalado, de lubrificação das instituições representativas

que fazem funcionar a sociedade do contrato. Fazer parte de

um partido burguês passa a significar contribuir para a

conservação da ordem estabelecida. O ímpeto e a força

militante declinam consideravelmente nas agremiações

burguesas pós-revolucionárias, pois é o cenário conflituoso

que alimenta a militância.

I.3. - O MILITANTE DE ESQUERDA

Duverger é um dos autores que constata a repulsa das

organizações políticas burguesas, especialmente os partidos,

pela ação coletiva (DUVERGER, 1970, p. 57-61). Quando os se-

tores conservadores da sociedade manifestam algum interesse

por esse tipo de ação, geralmente trata-se de um ativismo

meramente eleitoral, de caráter temporário. A burguesia

tende a enquadrar na esfera privada os problemas relaciona-

dos aos grupos menos favorecidos economicamente: a solução

para estes problemas dependeria de um esforço pessoal e não

de uma ação coletiva organizada. As agremiações de cunho po-

pulista também são capazes de mobilizar as massas, mas o fa-

zem, via de regra, sem a preocupação de organizá-las, enu-

cleá-las e educá-las politicamente para a participação efe-

tiva num processo político de transformação radical da so-

ciedade.
Este fechamento do espaço burguês para a ação mili-

tante contestadora não significou um refluxo ou um declínio

desta prática propriamente dita. Pelo contrário, um solo di-

ferente apresentou-se fértil para o desenvolvimento de expe-

riências inéditas de organização do movimento coletivo revo-

lucionário. A partir de meados do século XIX as agremiações

socialistas começam a se constituir como organizações de

grande participação popular, que, por necessitarem do mili-

tante, criam técnicas para arregimentá-lo e formá-lo, pro-

porcionando ricos debates sobre o seu papel.

Entre as associações de esquerda que floresceram com

intenso dinamismo mobilizando uma grande massa de trabalha-

dores, com o objetivo pré-planejado de conquistar o poder e

revolucionar a sociedade, destaca-se o partido político. O

debate clássico entre Lênin e Rosa Luxemburgo a respeito da

organização revolucionária permite que se reconheça a impor-

tância conferida à constituição do militante e a diversidade

de concepções quanto ao papel do mesmo na luta política4.

4 O fato de as instituições de esquerda investirem

na formação do militante revolucionário não garante que este

fim seja atingido e tampouco assegura um distanciamento com

relação às práticas conservadoras. Aliás, reflexões intensas

se constituíram a partir da constatação de que muitas destas


Lênin, que estava envolvido no processo re-

volucionário russo na passagem do século, parte da suposição

de que a massa de trabalhadores, que age quase que esponta-

neamente na luta cotidiana contra os patrões pela melhoria

das suas condições econômicas, não tem possibilidade de

criar uma teoria revolucionária (LÊNIN, 1979, p. 34-45).

Esta só poderia ser fruto da atividade de um grupo de

intelectuais. A conscientização da classe operária, etapa

necessária para a superação do economicismo e do

espontaneismo, deveria ser feita de fora desta luta

voluntarista, pelos membros de uma organização

centralizadora caracterizada pela disciplina e motivada pela

teoria revolucionária. Segundo Lênin, os componentes deste

grupo deveriam ser profissionais da revolução, militantes

especializados e com dedicação total. Uma vanguarda

consciente e homogênea asseguraria um movimento revolucioná-

rio sólido, estável e contínuo; sua ação de conscientização

e também de recrutamento de novos revolucionários junto à

massa impediria que esta fosse manipulada de forma demagó-

gica. Para ele, a centralização das tarefas não cercearia a

participação da massa, ao contrário, a facilitaria e a re-

forçaria. Enfim, ele sugere o cuidado de não se confundir as

agremiações voltadas para o grande público, como os sindica-

organizações perpetuaram formas de dominação. Em parte este

problema também motiva o nosso trabalho.


tos, os círculos operários, etc., com a organização revolu-

cionária. Todas são necessárias e se complementam, mas esta

última é composta por homens que consagram todo o seu tempo

à ação revolucionária e "... estes homens devem ser forjados

com paciência e tenacidade até se converterem em revolucio-

nários profissionais" (LÊNIN, 1979, p. 44). Reforçando a

idéia segundo a qual não se pode confundir qualquer ativi-

dade contestadora com a ação revolucionária, acrescenta:

"Nossa tarefa não consiste em advogar que o revolucionário

seja rebaixado ao nível de artesão, mas elevar o artesão ao

nível de revolucionário" (LÊNIN, 1979, p. 45). A luta espon-

tânea da massa operária não torna supérflua a organização de

revolucionários, pois aquele movimento, segundo Lênin, só se

caracteriza como 'luta de classes' quando na sua direção es-

tiver a vanguarda do proletariado, ou seja, a sólida organi-

zação dos revolucionários.

Lênin está preocupado com a formação do militante

especializado, o revolucionário profissional, disciplinado,

que se distingue da massa, participa de uma organização ri-

gidamente regulada e tem uma missão histórica a desempenhar.

Parece importante sublinhar esta idéia de militante como

membro de uma vanguarda política e intelectual, um sujeito

escolhido e treinado para, de forma disciplinada, contribuir

para a realização de um (e somente um) objetivo histórico.


Gostaríamos de salientar que estas idéias

concretizaram-se não só na realidade revolucionária da Rús-

sia, mas também noutros contextos. Por que não dizer, até

nossos dias5.

Um exemplo mais recente do vigor das idéias de Lênin

está nas recomendações de Guevara sobre a tarefa do mili-

tante do partido na consolidação da Revolução Cubana

(GUEVARA, 1981, p. 166-199). Ele alerta para o fato da to-

mada do poder político não encerrar a revolução, pois o

risco da invasão imperialista exige que se prossiga na cons-

cientização das massas e na dedicação intensiva ao trabalho

para a construção do socialismo. A vanguarda que se sacri-

fica em troca apenas do reconhecimento dos companheiros, e

nesse trabalho silencioso assume o papel de condutora do

processo, serve de espelho para a sociedade. Esse militante

que está à frente do partido não vê o trabalho como sacrifí-

cio, porque possui um interesse novo, desempenha esta ativi-

5 A efetivação de concepções como a de Lênin

suscitou ricas controvérsias sobre o papel das vanguardas e

dos intelectuais na luta revolucionária. A reprodução destes

debates exigiria uma investigação à parte. Dadas as

limitações e a perspectiva deste trabalho selecionamos

alguns autores que no debate enfocaram aspectos

interessantes sobre a atividade militante.


dade como um dever, não uma obrigação imposta, um dever in-

ternamente consciente. Assim, acrescenta Guevara, as ativi-

dades enfadonhas ganham novo significado, transformam-se "em

coisas importantes e substanciais, em algo que ele não pode

deixar de fazer sem sentir-se mal: aquilo que é chamado de

sacrifício. E então, para um revolucionário, o fato de não

estar fazendo sacrifício é o verdadeiro sacrifício. Quer di-

zer que as categorias e os conceitos mudam" (GUEVARA, 1981,

p. 171). E muda também, como pode-se perceber, o próprio ho-

mem transformado em militante.

Tanto Lênin quanto Guevara consideram que o partido

de vanguarda, com a ação exemplar de seus militantes, pode

catalisar o processo de desenvolvimento histórico de uma so-

ciedade. Isto é possível através da consciência e do traba-

lho. A vanguarda deve despertar a massa, mobilizá-la, impul-

sionar o movimento, gerar o entusiasmo para a luta. A tarefa

fundamental é a educação "revolucionária" para que a ação

heróica se reproduza de forma total no dia-a-dia dos traba-

lhadores.

A efetivação do socialismo exigiria, segundo

Guevara, uma transformação na consciência. E para isto ele

aproveita as técnicas de formação e educação que o ca-

pitalismo aplica sobre os indivíduos no processo de conven-

cimento e incorporação dos mesmos à sociedade. A diferença,

segundo ele, é que no socialismo esta educação é verdadeira.


Essa operação se dá paulatinamente, alguns homens se cons-

cientizam e pressionam os demais para assumirem a nova so-

ciedade. A vanguarda, ideologicamente mais avançada que a

massa, deve estimulá-la. "Enquanto nos primeiros se dá uma

mudança qualitativa que lhes permite se sacrificar..., os

segundos apenas seguem e devem ser submetidos a estímulos e

pressões de certa intensidade; é a ditadura do proletariado

que se exerce não somente sobre a classe derrotada, mas tam-

bém individualmente sobre a classe vencedora...." O êxito

total exige a "existência de instituições revolucionárias...

que permitam a seleção natural daqueles destinados a cami-

nhar na vanguarda e que concedam o prêmio aos que cumprem e

o castigo aos que atentem contra a sociedade em construção"

(GUEVARA, 1981, p. 182). Atentemos aqui para o valor dado à

instituição no seu papel de selecionar e formar o militante

que servirá de exemplo e instrumento para a construção da

nova sociedade.

Preocupado com a formação do militante re-

volucionário, Guevara chega a descrevê-los de forma entu-

siasta como homens que são gerados por "grandes sentimentos

de amor... possuidores de uma tarefa magnífica mas também

angustiante". Vivem o drama de "... unir um espírito

apaixonado a uma mente fria...". E prosseguindo a sua carac-

terização dos dirigentes da luta revolucionária, diz que

eles "... têm filhos que em seus primeiros balbucios não


aprendem a chamar o pai; mulheres que devem ser parte do sa-

crifício geral de sua vida para levar a revolução ao seu

destino; o marco dos amigos corresponde estritamente ao

marco dos companheiros da revolução. Não há vida fora dela"

(GUEVARA, 1981, p. 188-189, grifo nosso). A dedicação pela

causa, o sacrifício em nome da nova sociedade, o altruísmo

radical são as marcas deste militante que Guevara acredita

ser produto e agente da revolução.

Rosa Luxemburgo (LUXEMBURGO, 1979) critica a forma

leninista de pensar o processo e a organização

revolucionária, a qual pode gerar uma autocracia partidária

que tende a atuar contra a criatividade espontânea das

massas. No seu modo de entender, a organização revo-

lucionária só pode ser forjada na luta de classes, não deve

existir anteriormente a ela e ter a falsa pretensão de

transmitir uma tática pré-elaborada para uma massa obe-

diente. A centralização nunca pode significar a submissão

cega do militante a um comitê dirigente. Segundo Luxemburgo,

o recrutamento do exército revolucionário se faz na luta, a

formação da organização e o progresso da consciência

caminham juntos. "A social-democracia não está ligada à

organização da classe operária", seu centralismo, portanto,

é de natureza diferente, só pode ser "... a imperiosa

concentração da vontade da vanguarda consciente e militante

da classe operária, diante de seus grupos de indivíduos". É,


por assim dizer, "um autocentralismo do estrato dirigente do

proletariado..." (LUXEMBURGO, 1979, p. 50). No caso russo,

segundo ela, a impossibilidade desse 'autocentralismo' não

justificaria sua substituição por um comitê centralizado e

com poderes absolutos.

Prosseguindo sua análise crítica, Rosa Luxemburgo

discorda da possibilidade aventada por Lênin de

aproveitamento da disciplina capitalista, incorporada pelo

proletário, para a formação da vanguarda revolucionária. A

disciplina da fábrica, da burocracia, enfim, do Estado

burguês centralizado, que é inculcada pela educação

capitalista, se alicerça na paralisia do pensamento e da

vontade do trabalhador, é reprodução automática de um corpo

mecanizado, portanto totalmente diferente da disciplina

enquanto "coordenação espontânea dos atos políticos

conscientes de uma coletividade" (...) "O que pode haver de

comum entre a docilidade bem guiada de uma classe oprimida e

a rebelião organizada de uma classe que luta por uma

emancipação integral?" É só com a superação da obediência e

da servidão "... que a classe operária pode adquirir o

sentido de uma nova disciplina, da autodisciplina livremente

consentida pela social-democracia" (LUXEMBURGO, 1979, p.

51). A centralização não deveria ser um modelo para

aplicação em qualquer momento da luta revolucionária, sua

função não seria controlar as massas; ao contrário, a


educação política dos trabalhadores, forjada na luta, seria

condição prévia do centralismo. Sem ela estariam abertas as

portas para o oportunismo, para o cerceamento da atividade

partidária. A argumentação desta pensadora coloca à mostra

alguns problemas relacionados à idéia de uma vanguarda

militante, 'consciente' e 'conscientizadora'. Problemas que

dizem respeito à sua formação, à sua autoridade e

legitimidade.

Neste debate sobre o grau da centralização e da

democracia na organização revolucionária, e sobre quem

comandaria o processo (uma vanguarda ou o conjunto dos tra-

balhadores conscientes), uma questão parece dirigir o pensa-

mento, principalmente, de Luxemburgo: Como combater por uma

sociedade livre sem que o processo de luta implique em vio-

lentar a liberdade? E, diante da afirmação de que os mili-

tantes devem se formar na luta, fica a pergunta: Como se dá

esta formação concreta e cotidiana do militante? Ou seja, as

indagações de Rosa Luxemburgo sobre os controles capitalis-

tas presentes na ação da 'vanguarda operária' sugerem, de

certo modo, a necessidade de uma reflexão interna sobre a

formação do militante. Isto nos parece relevante.

Castoriadis é um pensador que retoma este problema e

que, desde 1959, constata o fato de os organismos consti-

tuídos para a libertação do proletariado terem se transfor-

mado em instituições burocráticas e autocráticas, onde se


reproduziam a exploração e a dominação (CASTORIADIS, 1985).

Ainda assim, ele acreditava na possibilidade de o proleta-

riado, através da sua ação, construir uma organização revo-

lucionária que fosse ao mesmo tempo o resultado e o ins-

trumento da sua autonomia, pois a revolução socialista cor-

responderia segundo ele, ao proletariado dirigindo e obede-

cendo a si mesmo. Só da luta poderia emergir a solução para

os problemas que envolvem as instituições operárias. Para as

organizações operárias oprimirem, como vinham fazendo, teria

sido necessária, ainda conforme Castoriadis, uma dose de

consentimento dos militantes e da maioria dos membros da

classe trabalhadora, teria sido necessário haver a cons-

tituição de um militante que se reconhecesse como sabedor do

destino da história e que se colocasse como guia do proleta-

riado, por que não dizer, de um militante total. Novamente

trata-se dos problemas advindos da formação de uma vanguarda

que acredita conhecer 'a priori' o segredo da salvação de

todos e que se legitima a si própria, a partir da sua dedi-

cação e do seu saber, como condutora dos trabalhadores.

De acordo com Castoriadis, as agremiações de

trabalhadores, na sua degenerescência, incorporaram pro-

cedimentos típicos da sociedade capitalista. Os militantes

adotaram o modelo de organização próprio desta sociedade e

dividiram-se, por um lado, numa elite de técnicos detentores

da ciência da revolução (um saber integral sobre a história


passada e futura) (CASTORIADIS, 1985, p. 162 e 163) e, por

outro, num grupo de meros executores de tarefas práticas. Ou

seja, o tratamento técnico de questões políticas (como o

planejamento estratégico da luta) introduziu na organização

operária os especialistas, e, como conseqüência, a divisão

do trabalho. A classe operária passou a ser dirigida por

técnicos e a aceitar passivamente tal situação. Esta

burocratização que corrói a teoria, o programa, a função e a

estrutura do partido , minando a atividade militante, não

seria, segundo ele, própria só de organizações stalinistas,

totalitárias. Para este autor, mesmo aquelas associações

mais democráticas, ao assumirem os mecanismos formais da de-

mocracia burguesa, como a eleição direta dos comitês pela

maioria dos delegados, sem a possibilidade de controlar os

eleitos ou destituí-los, não vão além de propiciar a conso-

lidação de minorias dirigentes que monopolizam o poder.

"Qualquer que seja o grau de democracia formal existente no

interior da organização, os militantes terão consciência de

que cabe aos especialistas avaliar a situação objetiva e

dela deduzir a linha que se impõe; a atividade dos militan-

tes, então, consistirá... em executar o que os políticos

tiverem decidido" (CASTORIADIS, 1985, p. 164).

Castoriadis repudia a idéia de a degenerescência das

organizações operárias ser um desvio, um acidente, um erro

ou uma traição. Esta situação representa antes a permanência


do capitalismo no proletariado: "... do capitalismo não como

corrupção dos chefes através do dinheiro, mas como ideolo-

gia, como tipo de estruturação social e de relações entre

homens. Ela manifesta a imaturidade do proletariado em re-

lação ao socialismo" (CASTORIADIS, 1985, p. 169). Ao subli-

nhar a parcela de responsabilidade dos operários e dos mili-

tantes no processo acima descrito, ao mesmo tempo que joga

nova luz na questão, Castoriadis prepara o terreno para

apresentar o seu caminho para a superação do problema.

Para o Castoriadis da fase que vem sendo descrita o

proletariado estava num processo de desenvolvimento autônomo

rumo ao socialismo. Mas este desenvolvimento não seria con-

tínuo e sim contraditório, pois se efetivaria na batalha

constante contra o capitalismo. A luta do operário seria

também contra o que existe de capitalismo em si mesmo. "A

ação do proletariado produziu a burocracia" e se a sua expe-

riência de luta contra a exploração prosseguir, ela se vol-

tará "contra a burocracia como sistema, como tipo de re-

lações sociais, como realidade e como ideologia correspon-

dente" (CASTORIADIS, 1985, p. 172). O desenrolar da luta

exigiria novas e diferentes organizações, onde o militante e

o operário fossem autônomos e criativos. E a consciência

para tal empreendimento não viria, no pensar de Castoriadis,

de desdobramentos teóricos, mas da experiência cotidiana dos

trabalhadores. A democracia da nova organização se faria


através da participação de todos os seus membros, mas não de

uma participação entusiasta; o militante executaria, dentro

dos seus limites e possibilidades, apenas o que foi determi-

nado pelo conjunto dos membros da organização e seria por

estes controlado. Segundo Castoriadis, não existem garantias

teóricas de que a nova organização não se burocratize. A

única garantia está na maior participação possível de todos.

Num adendo mais recente (1974), diante da per-

manência das dificuldades para a constituição de um mili-

tante operário autônomo e criativo, Castoriadis levanta pro-

blemas que carecem de investigação:

"As questões 'quem milita, por que e como'

praticamente não foram abordadas ... tampouco foram

levantadas as questões que surgem no nível dos grupos mili-

tantes, que estão longe de formar grupos de trabalho racio-

nais e transparentes" (CASTORIADIS, 1985, p. 187).

Dono de uma reflexão crítica temperada pelo

otimismo, Castoriadis consegue suscitar questões originais e

inquietantes. Seu pensamento não aceita o modelo fácil que

atribui ao sistema capitalista e seus aparelhos opressivos a

única responsabilidade pela burocratização do partido operá-

rio. Existe uma tensão na sua análise. Ao mesmo tempo em que

ele aceita o pressuposto de que o proletariado está num pro-

cesso de autonomização, imputa não só à sua passividade mas

também à atividade de uma vanguarda militante a responsabi-


lidade pelos obstáculos que paralisam a caminhada rumo à li-

berdade e à autonomia. Neste sentido, Castoriadis afirma

(apontando o caminho da degenerescência das organizações

operárias): "Por um lado, os militantes revolucionários con-

servaram-se em parte, ou se tornaram, prisioneiros das re-

lações sociais e da ideologia capitalistas. Por outro, o

proletariado conservou-se igualmente marcado por elas e

aceitou ser o executante de suas organizações" (CASTORIADIS,

1985, p. 171). Esta concepção do militante como um sujeito

que vai sendo 'aprisionado' pela sua própria atividade é

algo que não se deve desprezar.

Acrescente-se que este militante que se apresenta

como o detentor do segredo da história, portanto como um

'sujeito absoluto', tem o suporte teórico na concepção mar-

xista da emergência de um 'homem total', capaz de suprimir o

imponderável do social e dominar plenamente a sua própria

história (CASTORIADIS, 1982, p. 133-137). Este é outro

aspecto a ser valorizado nesta reflexão sobre o militante.

A análise feita por Castoriadis induz a um desloca-

mento na forma de problematizar o 'militante', e isto é fun-

damental. De certo modo, este pensador sugere que não se

deve supervalorizar as forças repressivas, externas, que

oprimem 'o militante', o alienam e o fazem dominado. Olhar

os mecanismos positivos, também presentes, e que operam in-


ternamente na formação do militante pode ser um recurso elu-

cidativo.

I.4. - REFLEXÕES ATUAIS SOBRE O MILITANTE

Prosseguindo neste trajeto de caracterização do

perfil militante, mais especificamente daquele que atua nas

organizações de esquerda6, podemos enfatizar melhor, com a

ajuda da bibliografia recente, os elementos que permitem a

sua definição prévia e ideal.

Este 'sujeito' não é apenas um adepto ou

simpatizante da organização. Sua ação não é esporádica mas

permanente, contínua, é atividade diária a favor da

agremiação. O objetivo principal desta dedicação quase

6 Não se pode afirmar que todas as organizações de

esquerda têm como característica a atividade totalizadora.

Como o leitor já deve ter percebido, procuramos, através da

obra de alguns pensadores, apontar os 'riscos' virtuais ou

efetivos de formação de um 'militante total' e as formas

usuais de problematização desta experiência. Ao invés de

traçar uma tipologia das organizações de esquerda que

reproduzem o 'militante total' achamos mais oportuno, como

se poderá observar mais adiante, investigar os mecanismos

que operam a produção deste sujeito a partir do caso

específico da igreja católica progressista.


sempre exclusiva não é conquistar benefícios pessoais, mas

ela se faz por uma causa maior, coletiva, uma missão com a

qual ele se identifica totalmente e pela qual ele se

apaixona.

A posição hierárquica do militante é geralmente

intermediária entre os dirigentes e os demais membros da

instituição. Em certos casos ele comanda a organização da

massa. O militante executa ordens, desempenha tarefas que

podem ser: formação e difusão de idéias, recrutamento de

novos adeptos (militantes em potencial), conscientização,

educação política das massas, condução das campanhas

eleitorais, etc. Duverger ressalta que a atividade do

militante é mais propícia nos órgãos de base, nas células da

organização, e parece não correr riscos quem afirmar que

quanto mais homogêneo o espaço, mais propícios e mais

eficazes são as técnicas e os meios de enquadramento, "como

os que se encontram nas células comunistas, nas organizações

de base corporativa (...) ou nos movimentos 'especializados'

da Ação Católica: J.O.C., J.E.C., J.A.C." (DUVERGER, 1970,

p. 148). Podemos acrescentar que, de certo modo, a atividade

militante visa criar, ou reproduzir, este meio homogêneo, e

isso é significativo.

A participação do militante é intensa e tende a

ocorrer em mais de um organismo, pois prevalece a idéia de

que a luta é permanente e se dá em várias frentes. A


associação não é uma parte da vida do militante. Ao con-

trário, os vários elementos que compõem a vida do militante

- trabalho, lazer, família, relações afetivas - só ganham

sentido a partir da organização. Esta absorve todo o tempo e

o espaço do militante, toda a sua pessoa, incidindo

totalmente sobre o seu corpo. Entendemos que esta

característica do 'militante' pode ser chamada de essencial.

Somado a este enquadramento material do indivíduo

(onde a vida pública e privada se dissolvem uma na outra

para dar lugar à vida da organização), temos um enqua-

dramento espiritual, representado pela absorção de um quadro

explicativo do mundo, o que podemos chamar, no sentido mais

forte, de 'visão de mundo'. Duverger classifica esta organi-

zação, que absorve totalmente não só as atividades do mili-

tante, mas também o conjunto do seu pensamento, de totalitá-

ria (DUVERGER, 1970, p. 152-159). Ele sugere que nestes ca-

sos a organização (e os laços de solidariedade que a envol-

vem) assume um caráter sagrado, para a qual o militante deve

reverência e respeito. O que não deixa de ser um sinal de

conexão político-religiosa.

Também são sugestivas, a este respeito, as idéias de

Abel Janniére (JANNIÉRE, 1979). Ele apresenta observações

gerais sobre a militância e o militante. Considera que os

primeiros traços de uma militância estariam nas grandes re-

ligiões de salvação que floresceram no século VI a.C., onde


pela primeira vez alguns homens se sentiram convictos

(conscientes) de deterem o segredo da felicidade e da sal-

vação de todos. Esta é, ao que tudo indica, uma das chaves

para compreender a atividade militante. Apesar das transfor-

mações ocorridas, este elemento parece estar presente, como

Janniére nos diz, no militante partidário de hoje. Sua aná-

lise contrapõe este ao militante ordinário. Enquanto aquele

tem como referência um sistema de pensamento totalizador e é

membro de uma organização, uma seita, um partido ou uma

igreja (que lhe confere autenticidade e poder para figurar

como um intermediário junto aos não adeptos ou simpatizan-

tes), este tem uma justificativa para sua ação apenas cir-

cunstancial, não pretende revolucionar a sociedade, mas sim-

plesmente melhorar as condições de vida neste próprio mundo,

e suas motivações podem ser até egoístas. O militante parti-

dário, do partido revolucionário, luta para a transformação

radical da sociedade. Se em ambos podemos encontrar fé,

neste ela se combina às convicções racionais: de que a his-

tória tem um caminho que se pode conhecer, e que é possível

e necessário intervir nos rumos desta história. Esse mili-

tante assume como um dever conclamar os outros para este

longo combate, conscientizar, impor a sua grade inter-

pretativa do mundo, que, como se percebe, mistura análise

científica, inserções morais, convicções políticas e reli-

giosas.
Para convencer-se e convencer os demais da

necessidade e do sentido de um combate é preciso definir

claramente o inimigo. Diante da evidência do hostil é que se

fortalece a 'ideologia' totalizadora, é no confronto com o

inimigo irredutível que as dúvidas se calam. Para Janniére,

atualmente as imagens de comunhão simbólica, entusiasmo e

calor afetivo, que compõem a vida do militante partidário,

sofrem progressivamente um desgaste, ocasionando uma

diversificação de grupos ideológicos. A militância enquanto

uma atividade total se vê, cada vez mais, corroída pelo

caráter crescentemente setorial das novas lutas sociais.

A bibliografia francesa é rica em estudos sobre a

condição do militante. Significativamente, muitas são as

análises que abordam o Partido Socialista e o Partido

Comunista Francês (PCF). Boa parte destas pesquisas é de

caráter quantitativo e traça um perfil sociográfico dos

militantes (BOURDIER, 1976; PORTELLI, 1976; CAYROL, 1978;

PLATONE, 1976; DAGNAUD, 1981). Alguns autores apresentam

reflexões sugestivas.

Preocupado com o enfraquecimento das bases teóricas

leninistas do PCF, em meados da década de 60 (processo rela-

cionado aos acontecimentos na China e com a integração do

partido ao jogo político eleitoral), Daniel Mothé (MOTHÉ,

1966, p. 390-397) aponta as repercussões desta crise sobre o

militante que, afinal, se formava disciplinado nas suas ta-


refas e convencido de seus deveres, com base naquela teoria.

Ele lembra que o militante comunista é feliz e seguro porque

possui um conjunto de verdades, mas também por ter consciên-

cia de pertencer a uma grande força (política). A sua lógica

(algo mais que um conjunto de respostas prontas) é a de opo-

sição de termos do tipo consciência/alienação, operá-

rio/burguês, luta/inércia etc. E recorrendo a este

'referencial teórico' (às vezes em silêncio) que ele dissipa

as dúvidas que o ameaçam. Para ele a organização é a única

força capaz de enfrentar o inimigo maior, o capitalismo e

suas injustiças, e desta verdade última e total emerge a

confiança nas decisões e nos caminhos escolhidos pelo par-

tido. Segundo Mothé, a crise que se configurava no PCF es-

tava relacionada ao questionamento do seu conjunto de verda-

des. Um sinal deste desequilíbrio era a ausência do mili-

tante no debate político com as agremiações adversárias. No

entanto, sua sólida formação foi capaz de mantê-lo junto ao

partido mesmo neste momento, ainda que restringindo-se à ta-

refa de conservar o poder interno da organização. É impor-

tante notar, entre outras coisas, como Mothé é mais um pen-

sador a enfatizar a posse de uma verdade total e final como

elemento fundamental na mobilização militante.

Uma análise que focaliza a formação do militante foi

empreendida por dois autores (DERVILLE e CROISAT, 1979) que

se basearam em dados colhidos através de enquetes aplicadas


aos militantes de algumas células do PCF em 1977 e 1978.

Eles constataram que o partido é um agente insubstituível de

socialização. Ele ocupa espaços não preenchidos por organi-

zações como a escola, por exemplo. Usando o expediente das

reuniões de célula, da luta cotidiana e da imprensa partidá-

ria, o PCF promove a integração do indivíduo. Isto pode

ocorrer até mesmo antes do ingresso oficial no partido,

ainda na infância, através da família comunista. Este fato

explica a aparente incompletude que os canais de sociali-

zação do partido apresentam. Nas reuniões de célula, por

exemplo, a freqüência é fraca, grande parte do tempo é usada

para discussões em torno de questões materiais, o máximo que

se aprende são detalhes sobre a organização partidária e o

centralismo democrático. Quase não ocorrem debates sobre

conteúdos cognitivos e, quando acontecem, acaba predominando

a unanimidade em função da influência dos altos escalões, da

confiança que o militante tem no partido e da certeza na vi-

tória final (que exige a unidade de todos em torno dos tra-

balhadores). Estes órgãos revelam portanto uma outra função:

são locais de reforço dos laços afetivos e comunitários,

onde a reflexão coletiva dá sentido à vida, onde se adquire

a segurança e a confiança que brotam da certeza de se estar

contribuindo para a transformação da história, com a histó-

ria a seu favor. É importante ressaltar esta socialização

promovida pelo partido, esta integração institucional que


apesar de parecer incompleta, por apresentar lacunas teóri-

cas, é suficiente para renovar a confiança e reforçar a

identidade total do militante com a organização.

Ernesto Laclau é um dos autores que refletem sobre o

declínio dos movimentos sociais totais. Num artigo interes-

sante (LACLAU, 1986), ele sugere que a emergência dos 'novos

movimentos sociais' explode a noção segundo a qual todas as

lutas sociais evoluem politicamente à medida que integram

suas reivindicações numa instituição comum e central. Ou

seja, com a dissimulação do político ao longo de diferentes

práticas sociais impõe-se um declínio à crença (milenarista)

na existência de um campo único gerador dos antagonismos so-

ciais que por sua vez fatalmente estariam representados num

espaço político unificado. Segundo ele, os 'novos movimentos

sociais' - feministas, ecológicos, dos negros, dos homosse-

xuais, enfim dos grupos 'marginais'- colocam em xeque o mo-

delo total de sociedade, tendo em vista que os seus objeti-

vos são singulares e abrangem relações sociais específicas.

Com esta pulverização do político soltam-se os laços que

tentavam amarrar as diferentes lutas a uma visão determinada

e fechada de sociedade e a uma estratégia única de ação. Se-

gundo ele, é neste sentido que os 'novos movimentos sociais'

apresentam um potencial radicalmente democrático, "na medida

em que cada arranjo social 'global' representa somente o re-

sultado contingente de operações de barganha entre a plura-


lidade de espaços, e não uma categoria básica, a qual deter-

minaria o significado e os limites de cada um destes espa-

ços" (LACLAU, 1986, p. 46). Então, os 'novos movimentos so-

ciais' apresentam o predicado fundamental da preservação da

diversidade, eles não buscam uma identidade total e dura-

doura dos seus agentes através de categorias como o

'trabalho' ou qualquer outra.

Se o vetor atual é este, de um ator político

'descentralizado' e 'destotalizado', fica evidente uma con-

traposição desta tendência característica de uma nova es-

querda analisada por Laclau com o movimento de energias que

constituem o militante da esquerda católica, pois, como es-

tamos vendo, este se faz vinculando-se a uma visão de mundo

total e a uma prática totalizadora. Permanece a dúvida sobre

quais são os elementos que se combinam, e sobre como se

opera esta relação que ainda constitui com tanto vigor um

militante total, ligado ao velho universo dos movimentos de

esquerda.

O perigo da construção de sociedades totalitárias e

o risco que se antepõe à democracia através da reprodução do

discurso total são temas presentes também na obra de Claude

Lefort (LEFORT, 1990). Este autor define de uma forma muito

interessante o discurso totalitário, caracterizando-o como

político em toda a sua extensão. Sua realização se dá na

identificação plena do Estado com a sociedade civil, ou me-


lhor, no sufocamento deste segundo elemento pelo primeiro.

Na sociedade totalitária o Estado ocupa plenamente os espa-

ços, e o processo de socialização resume-se em uniformizar a

diversidade através de um modelo comum de submissão. Em sua

análise Lefort sugere que esta manobra, e isto nos parece

fundamental, não se efetiva enquanto um empreendimento da

ideologia burguesa. Não se trata de um mecanismo de oculta-

mento que promove uma separação entre o ser e o aparecer.

Esta operação totalitária não se realiza "nos limites de um

comentário que exploraria sua distância com respeito ao real

para designá-lo em sua verdade, mas difundindo-se nos cir-

cuitos da socialização, elaborando sistemas de signos cuja

função representativa já não é mais assinalável, apossando-

se dos atores para inscrevê-los nestes sistemas, de tal

sorte que o discurso fala (quase) através deles e abole

(quase) o espaço, certamente indeterminado, mas sempre pre-

servado pela ideologia burguesa, entre a enunciação e o

enunciado. O partido de massa é o órgão por excelência do

totalitarismo". O partido, mas também os sindicatos e as as-

sociações, numa espécie de inversão da noção de represen-

tação liberal, imprimem a marca do Estado em toda a rede so-

cial, produzindo uma 'homogeneidade' do corpo político. O

totalitarismo supera a ameaça de inércia que o instituído

apresenta através da polarização rumo ao futuro, polarização

essa capaz de resgatar o ativismo. A nomeação de um 'fim


único' a ser alcançado pela atividade militante injeta dina-

mismo nesta totalização e, no nosso entendimento, contribui

para a sua reprodução.

Lefort indica que, para encarnar e reproduzir esta

ação, a "ideologia totalitária" investe num sujeito determi-

nado. "Nada esclarece melhor este fenômeno (da transformação

do discurso ideológico em discurso do partido) do que a for-

mação de um tipo novo de agente social, o militante, em cuja

figura se pode enxergar a inscrição do sujeito no discurso

que se supõe falado por ele. O militante não está no partido

como num meio determinado com fronteiras visíveis; ele é em

si mesmo um representante do partido; bebe na fonte a possi-

bilidade de liberar-se dos conflitos..., a possibilidade de

encarnar em sua pessoa a generalidade do social" (LEFORT,

1990, p. 327-329).

Este militante vestido de partido funciona, segundo

Lefort, como um intermediário que permite à instituição des-

pejar sua verdade homogeneizadora sobre um social totali-

zado. A pertinência da análise lefortiana revela-se, a nosso

ver, ao visualizar o poder e o saber que, de certo modo, en-

volvem, penetram e reproduzem este militante com uma incrí-

vel capacidade de institucionalizar os conflitos e normati-

zar o social. A eficácia do militante está na sua habilidade

para imprimir os signos da totalidade na prática social. A

estratégia da totalização efetiva-se pela lógica da norma. A


multiplicação do poder centralizado é conseqüência da sub-

missão social ao imperativo da organização, o qual possibi-

lita a dissolução das diferenças, inclusive aquela entre o

sujeito e a lei. A racionalidade totalitária manifesta o de-

sejo de nivelar o instituinte e o instituído, a vontade de

controlar o imprevisível e dominar o devir, o que, sublinha

Lefort, implica em abolir o histórico na história (LEFORT,

1990, p. 333).

Atentemos para o fato de Lefort sugerir que este

militante que aciona os mecanismos totalitários (aliás, de

acordo com ele, operados de forma mais eficaz na sociedade

comunista) forma-se a si mesmo no próprio movimento de ins-

tauração da ideologia totalitária. Mais precisamente, este

militante "profere a norma, concentra as virtudes do ati-

vismo e encontra impressos em si mesmo o vocabulário e a

sintaxe de seu discurso, de tal maneira que se constitui a

si mesmo na operação da ideologia" (LEFORT, 1990, p. 328).

Lefort constrói a sua reflexão preocupado com o fun-

cionamento das sociedades totalitárias já constituídas,

principalmente as que se apresentam como comunistas. Nosso

objeto é de uma ordem diversa, mas Lefort oferece pistas su-

gestivas e induz a questões que podem iluminar a nossa in-

vestigação: se o militante em geral apresenta a caracterís-

tica da totalidade, e se o contexto totalitário não só ofe-

rece circunstâncias ótimas para a constituição deste agente


mas também exige a sua formação, não estaria o militante da

igreja católica progressista sendo operado por energias to-

talizadoras? Em nosso modo de entender estas forças que en-

volvem o militante não são exclusivamente repressivas, mas

se encontram dispersas, difusas, na sociedade. Neste caso

não precisamos lançar mão da noção lefortiana de 'discurso

ideológico', mas iremos partilhar a sua idéia de que o mili-

tante não é o resultado, ou o mero efeito, de uma operação

da ideologia burguesa.

Seria possível falar que a igreja católica progres-

sista investe numa socialização totalizadora?7 Esta questão

7 É necessário esclarecer o sentido que estamos

atribuindo à idéia de 'totalidade'. Primeiramente, quando

relacionamos a atividade militante à prática 'totalitária',

o fazemos muito menos no sentido de uma repressão

centralizada que esta palavra traz consigo e muito mais no

sentido de uma homogeneização completa dos espaços, de uma

ocupação plena das diferentes instâncias pela esfera

política (ou político-religiosa). Por 'totalização' queremos

expressar, portanto, a dissolução do indivíduo no coletivo e

do privado no público, o 'esquecimento de si' em nome da

entrega à organização e à luta por um objetivo único e

final, por fim, a crença no conhecimento dos destinos da

história. A 'totalidade' própria da experiência militante,


circunda o problema da constituição do militante e por isso

será considerada no terceiro capítulo desta dissertação.

Antes de prosseguirmos nestas questões, convém ainda

analisar como Michel Foucault, um pensador singular e bas-

tante atual, enfrentou este tema moderno que é o militante.

Michel Foucault não produziu uma obra específica

sobre o militante. Entretanto, sua postura original,

distante tanto do marxismo como da teoria política clássica,

fez emergir no seu trabalho algumas reflexões importantes a

respeito da militância, ou, mais precisamente, sobre o papel

dos intelectuais diante dos enfrentamentos políticos. Essas

conforme estamos caracterizando aqui, é diferente daquela

trabalhada pelo organicismo positivista. Durkheim (DURKHEIM,

1978), por exemplo, refere-se a uma totalidade integrada,

aberta e funcionando em tensão, o que impede que qualquer

uma das partes eleve-se à condição de um poder soberano e

pleno. Neste caso cada instituição funcionaria por

referência às demais, a dependência mútua nivelaria todas as

partes. É o inverso da atividade que investigamos, onde

desde a sua formação o militante, com suas crenças e

verdades, borra os limites entre o público e o privado,

entre o político e o religioso, derruba as fronteiras entre

os domínios parciais, quebra as tensões e polaridades

próprias da sociedade burguesa e encontra o sentido pleno

para sua vida na totalidade que ele ajudou a construir.


reflexões podem ser encontradas em algumas entrevistas e

debates (FOUCAULT e DELEUZE, 1988) e não estão, de forma al-

guma, separadas da prática militante deste pensador, a qual

se configurou como uma atividade distinta da ação política

tradicional. Trata-se de um posicionamento crítico e coe-

rente com a sua concepção inovadora de poder.

No seu percurso teórico e militante Foucault assume

uma postura crítica diante das associações de esquerda con-

centradoras da ação política e hierarquicamente constituídas

com o objetivo de combater um poder central, estaticamente

localizado no aparelho de Estado. À totalização teórica das

lutas, ao impulso de dizer o significado dos enfrentamentos,

Foucault opõe ações teóricas precisas. Em oposição ao

'intelectual total' e sua prática globalizante, Foucault

apresenta um 'intelectual específico' (ERIBON, 1990 p. 240),

por que não dizer, um 'militante singular', que participa de

combates precisos, de lutas parciais contra as manifestações

microfísicas do poder.

Estes posicionamentos originais e estas reflexões,

de certo modo, críticas do 'militantismo total' aparecem

como uma primeira pista sobre a conveniência de ampararmos a

nossa investigação do 'militante católico progressista' no

referencial teórico-metodológico foucaultiano. Uma análise

das concepções deste pensador poderá evidenciar os conceitos

que servem como ferramentas eficazes para a compreensão do


militante da igreja progressista e das relações político-

religiosas que o envolvem.

Sua preocupação de pensador e militante é apontar a

legitimidade das múltiplas batalhas contra o poder, que

ocorrem na dispersão do social ao largo da luta entre explo-

rados e exploradores, esta muitas vezes eleita por partidos

e sindicatos como a principal. A eleição do confronto entre

dominantes e dominados para funcionar como matriz de todas

as lutas acaba por reproduzir as relações de poder, pois

solicita operações totalizadoras. Para Foucault nem o poder,

tampouco a resistência, tem um lugar privilegiado para o seu

exercício; logo, o estabelecimento da destruição de um

'poder central' como objetivo essencial de uma luta acaba

por ligar-se a procedimentos de exclusão e condenação de ou-

tras falas e atitudes de resistência aos procedimentos mi-

crofísicos do poder.

Os confrontos permanentes e dispersos, que

caracterizam o jogo de poder, segundo Foucault, têm a

peculiaridade de produzir verdades, e aí devem se dar o

combate, as resistências. Sendo mais preciso, é neste ponto

que o intelectual tem um papel a desempenhar. Ele deve

mostrar e questionar a racionalidade que envolve as relações

de poder. Deve apontar o poder ali onde ele aparece sob

outras formas, com outros nomes, e viabilizar a emergência

na cena política de outros enunciados, opostos ao discurso


de poder. O intelectual deve possibilitar a circulação das

falas da resistência.

Isto significa dizer que não é função do intelectual

operar uma totalização entre a teoria e a prática, buscar o

pleno sentido ou a orientação definitiva de uma na outra. A

teoria não é a resposta refletida de uma determinada prá-

tica; a relação entre teoria e prática é muito mais parcial,

uma relação mais de revezamentos do que de determinação. Os

múltiplos enfrentamentos locais exigem teorias singulares

que diante de obstáculos cedem lugar à prática; esta, por

sua vez, não é a aplicação da teoria; ambas são na verdade

ações distintas e combinadas. Para Foucault os intelectuais,

as supostas 'vanguardas', não poderiam se colocar como re-

presentantes dos que lutam, como a consciência deles ou como

portadores da sua verdade. Isto porque, como bem expõe De-

leuze na sua conversa com Foucault, a palavra e a ação não

precisam ser legitimadas por alguma entidade centralizadora

e de vanguarda, as resistências locais constituem teorias

específicas e atores múltiplos: "Não existe mais represen-

tação, só existe ação: ação de teoria, ação de prática em

relações de revezamento ou em rede" (FOUCAULT e DELEUZE,

1988, p. 70).

Logo, o papel do intelectual não é revelar a

verdade às massas como se elas fossem inconscientes, ou

falar em seu nome. O intelectual deve contribuir para que o


saber dos que lutam não seja barrado pelas práticas de

poder. Neste sentido, Foucault responde a Deleuze, que

"... a teoria não expressará, não traduzirá, não

aplicará uma prática: ela é uma prática. Mas local e

regional, como você diz: não totalizadora". (FOUCAULT e

DELEUZE, 1988, p. 71)

Ao intelectual engajado não cabe produzir uma teoria

'sobre' a luta, elaborada em nome de valores superiores e

objetivos ideais. Muito ao contrário, sua tarefa consiste

em, aproveitando-se da sua posição estratégica no aparelho

de informação, permitir que o saber 'da' luta, dos que vivem

o exercício do poder, penetre neste sistema de informação.

Uma teoria não deve pretender desmistificar o inconsciente,

e sim vasculhar os segredos, denunciar as verdades, as ra-

cionalizações acopladas ao poder e que viabilizam o seu

exercício.

A unidade das lutas locais, a ligação entre os

ilegalismos regionais que resistem ao poder, não deve ser

buscada numa totalização teórica. Não existe uma classe que,

em função da sua 'missão histórica', tenha uma posição

privilegiada na luta contra o poder e que seja capaz de

encampar as outras formas de resistência. Como explica

Deleuze,

"(diante da) política global do poder se fazem

revides locais, contra-ataques, defesas ativas e às vezes


preventivas. Nós não temos que totalizar o que apenas se

totaliza do lado do poder e que só poderíamos totalizar

restaurando formas representativas de centralismo e de

hierarquia. Em contrapartida, o que temos que fazer é ins-

taurar ligações laterais" (FOUCAULT e DELEUZE, 1988, p. 74).

A necessária unidade dos múltiplos revides locais

deve ter, portanto, o caráter de uma fraternização, de uma

vinculação transversal. Foucault complementa o raciocínio de

Deleuze afirmando:

"... a generalidade da luta certamente não se faz

por meio da totalização de que você falava há pouco, por

meio da totalização teórica, da 'verdade'. O que dá

generalidade à luta é o próprio sistema do poder, todas as

suas formas de exercício e aplicação" (FOUCAULT e DELEUZE,

1988, p. 78).

Estas considerações abrem o caminho para uma busca

na obra foucaultiana do instrumental metodológico que nos

permite analisar o militante da igreja católica progres-

sista.
CAPÍTULO II

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E METODOLÓGICA. OBJETO DA

PESQUISA.

__________________________________________________________

"O poder passa através do indivíduo que ele

constituiu". (FOUCAULT, 1988, p. 184)

II.1. - SOBRE O CONCEITO DE AFINIDADE ELETIVA E

TIPO IDEAL

O mapeamento realizado no primeiro capítulo

demonstra, entre outras coisas, que a militância política é

um fenômeno moderno, que aparece, entretanto, em

determinados momentos, e significativamente na sua origem,

mesclada com procedimentos religiosos. A formação da igreja

católica progressista, fruto de uma combinação político-

religiosa, caracterizada pela produção de militantes de


esquerda, não deve ser vista, portanto, como um fato cujos

ingredientes sejam totalmente inéditos. Logo, parece-nos

oportuno investigar a igreja progressista, e o seu

significado no conjunto da experiência política atual, par-

tindo de um ponto de vista e utilizando instrumentos concei-

tuais que possam contribuir para explicar a oportunidade

desta engrenagem político-religiosa, bem como a especifici-

dade dos seus mecanismos e dos seus procedimentos, à luz dos

desdobramentos históricos.

O referencial teórico-metodológico escolhido

possibilita, como veremos, deslocar a problematização sobre

a militância. Aliás, a necessidade desta tarefa foi

enfatizada no capítulo anterior. Ou seja, pressupor um

sujeito militante que segue o caminho evolutivo da

libertação e procurar os sinais de um poder repressivo que

se impõe a ele do exterior, ideologicamente, com o objetivo

de dificultar a sua trajetória, parece ser pouco elucidativo

justamente porque o pesquisador assim orientado não percebe,

ou não explica satisfatoriamente, a presença de

procedimentos de dominação na própria atividade militante. O

deslocamento que orienta a presente investigação permite que

se coloque como questão as práticas que constituem, num

mesmo movimento, uma articulação entre política e religião e


o militante que a reproduz.8 Além disso, pensar a

participação política a partir da igreja progressista se faz

oportuno, se não por outros motivos, ao menos porque ali os

ingredientes originais da militância aparecem atualizados e

intensificados certamente pelo fato de o militante

encontrar-se intermediado por forças mobilizadoras de ordem

política e religiosa.

O conceito weberiano de 'afinidade eletiva' é o pri-

meiro instrumento teórico de que vamos nos valer para o en-

tendimento deste campo de forças que envolve o militante ca-

tólico progressista. Não parece eficiente pensar o encontro

político-religioso próprio da igreja progressista como o re-

sultado da influência unilateral de uma dimensão sobre a

outra, ou da força de atração exclusiva e preferencial entre

elas. Tampouco mostra-se prudente procurar o determinante

desta simbiose numa base exterior única e fundante. Isto não

só em razão de não existir dado objetivo que garanta a pri-

8 A partir do referencial teórico aqui exposto,

realizamos (conforme foi explicitado na introdução)

dezessete entrevistas com militantes formados nas

organizações de base da igreja católica progressista. A

análise destas entrevistas e do material produzido pelos (e

para os) militantes está contida no capítulo IV desta

dissertação.
mazia de qualquer das esferas envolvidas na relação, mas

também porque esta busca pouco ajudaria no estudo dos meca-

nismos internos à igreja progressista. Neste sentido, é mais

eficaz assumir que uma multiplicidade de fatos contribui

para que política e religião se coloquem frente a frente e

pensar, a partir daí, quais práticas emergem deste encontro

e favorecem, não uma repulsão, mas uma eleição mútua de afi-

nidades, uma conjugação de 'interesses' capaz de gerar novos

elementos e procedimentos reprodutores desta combinação.

O próprio Weber, quando forjou o conceito de

'afinidade eletiva', tinha o interesse em superar as dis-

torções impostas à noção de causalidade tanto por um

'naturalismo positivista' (crente na existência de uma base

empírica unívoca que possibilitaria a formulação de relações

causais definitivas no âmbito das ciências sociais), quanto

pelo determinismo econômico que buscava numa suposta base

material pré-dada a explicação para todos os fenômenos so-

ciais. (COHN, 1979, parte II)

Para Weber, a única base empírica que possibilita

alguma compreensão da realidade social é a eterna disputa

entre os homens - diante da escassez de bens materiais e

simbólicos - para o estabelecimento de relações de dominação

e suas respectivas formas de legitimação. Segundo ele, esta

luta compreende valores infinitos e confere sentidos múlti-

plos às ações dos agentes, não sendo possível nomear uma


causa determinante e uma explicação definitiva sobre qual-

quer fenômeno social, pois não existe um sentido imanente à

história. Daí a utilidade da noção de afinidade eletiva para

a leitura do sentido de ações motivadas pela articulação en-

tre diferentes esferas.

No caso, por exemplo, da combinação político-reli-

giosa, este conceito permite superar a idéia ingênua segundo

a qual a racionalidade política moderna romperia paulatina-

mente, e de forma total, com os tradicionais mecanismos re-

ligiosos de dominação, impondo, unilateralmente, as suas

determinações. A afinidade eletiva sugere que o encontro de

diferentes níveis deve sua existência a um condicionamento

mútuo e a uma determinação múltipla relacionada às experiên-

cias nas esferas vizinhas. Afasta-se com isto qualquer ex-

plicação que valorize uma relação unívoca de causa e efeito

ou noções superficiais como influência de um elemento sobre

o outro.

Michael Löwy, ao recuperar este conceito weberiano

(LÖWY, 1989), reafirma a sua utilidade para casos em que o

pesquisador não se satisfaz com a idéia de uma forma consti-

tuindo-se como simples expressão de outra. Isto porque nos

termos da afinidade eletiva o que ocorre não é a simples

troca de caracteres por dimensões separadas e estáticas. A

adoção deste conceito permite, por exemplo, ir além da sim-

ples nomeação dos traços religiosos (fanatismo, doutrinação


hierárquica, dogmatismo etc.) presentes nas organizações po-

líticas. Ele possibilita reconhecer o caráter dinâmico da

combinação, a positividade da eleição recíproca de dois pó-

los que, interligados, geram atividades e energias capazes

de criar elementos, despertar atitudes, ativar vontades num

movimento que se auto-reproduz. Este conceito expressa, por-

tanto, uma confluência dinâmica, uma ligação interna que

transcende o mero empréstimo de elementos de uma dimensão

pela outra e, ao se efetivar, apresenta mecanismos e signi-

ficações próprias. Löwy ainda enfatiza que "a afinidade ele-

tiva não se dá no vazio ou na placidez da espiritualidade

pura: ela é favorecida (ou desfavorecida) por condições

históricas e sociais". (LÖWY, 1989, p. 18)

Para compreender as condições e os mecanismos que

operam a conexão político-religiosa, outro conceito

weberiano é bastante útil, como ficou demonstrado no

primeiro capítulo. É o conceito de 'tipo ideal'. Trata-se de

um recurso com valor heurístico. Esse conceito não é um

'fim', é apenas um 'meio', um instrumento através do qual

torna-se possível estabelecer uma relação causal hipotética

a respeito de determinada ação, ou seja, apontar as

prováveis relações de sentido da conduta de um agente. É

esta aplicação do 'tipo ideal' que nos interessa.

Uma construção em termos 'típicos ideais' não é

generalizante, ela não se faz a partir de características


gerais presentes no agente em questão, tampouco utiliza como

material os traços médios deste sujeito. O 'tipo ideal' tem

a peculiaridade de ser um conceito singular,

individualizante, genético e não genérico, pois na sua

elaboração o pesquisador retém unilateralmente os traços que

ele considera essenciais, típicos. Ou seja, o pesquisador

conserva as linhas que a partir da sua perspectiva aparecem

como significativas para iluminar as relações que envolvem

determinada conduta, que viabilizam o encadeamento de

determinados fatos, enfim, que contribuem para esclarecer a

racionalidade interna de uma ação. É, portanto, um conceito

principalmente caracterizador, que não pretende representar

a média de características que compõem um fenômeno, mas

apresentar uma unidade compreensiva (objetivamente possível)

para um fenômeno particular. (COHN, 1979, parte II)

O 'tipo ideal', necessário e provisório, é útil por

permitir a formulação de conexões de sentido que irão orien-

tar a investigação empírica de uma realidade específica, in-

vestigação esta que poderá atestar, pelo contraste entre o

'ideal' e o 'real', não a verdade ou falsidade do conceito e

sim a sua validade enquanto instrumento explicativo. Assim é

que valorizamos certos aspectos da conduta militante (como a

totalização) e colocamos em evidência determinada relação

(político-religiosa) que, associadas, servem de orientação


para nossa pesquisa, que visa compreender a atividade deste

militante específico, católico progressista.

Mas as condições de realização e reprodução da

afinidade político-religiosa que caracteriza a igreja

católica progressista e envolve a conduta militante não

devem ser buscadas, como já foi mencionado, na

'consciência', nos planos ou objetivos de sujeitos pré-da-

dos, sejam eles grupos, classes ou instituições. A matriz

que opõe de forma absoluta os termos 'dominação' (estatal,

centralizada e repressiva) e 'libertação' (progressiva de

sujeitos em luta) tem sido pouco explicativa, na justa

medida em que estabelece relações de exterioridade entre um

sujeito previamente constituído e o processo geral da

produção capitalista. O encontro político-religioso é, antes

de tudo, uma articulação de práticas que não só não esgotam

seu sentido na ação dos sujeitos, mas constituem estes

próprios sujeitos. Práticas positivas, portanto, que estão

presentes nas diferentes esferas da vida social e podem

elucidar a fusão político-religiosa formadora da igreja

progressista.

É na obra de Michel Foucault que encontramos, não

por acaso, o referencial capaz de orientar a investigação

sobre as práticas que promovem a atração político-religiosa

própria da igreja progressista e põem em atividade o seu

militante.
Foucault, ao longo das suas obras, fez a crítica da

concepção de sujeito como um pré-dado e demonstrou que a

formação deste sujeito é perfeitamente compreensível, pois

se dá no entrecruzamento das práticas sociais que são, ex-

plicitamente, práticas de poder. Poder que não se exerce ex-

clusivamente através de uma mecânica política e repressiva,

não está fundado unicamente no registro da lei e não deriva

de uma instituição centralizada, mas funciona articulado a

procedimentos positivos, disciplinares, distribuídos no so-

cial e que têm uma dívida histórica com as práticas pasto-

rais do cristianismo primitivo.

II.2. - FOUCAULT E O CONCEITO DE PODER

DISCIPLINAR

Os comentaristas da obra foucaultiana costumam

afirmar que a reflexão deste pensador sobre as relações de

poder compreende uma segunda fase dos seus estudos,

representada principalmente, pela obra 'Vigiar e Punir'

(FOUCAULT, 1987), quando ele teria feito uma genealogia do

poder. Nesta sua análise Foucault empreendeu investigações

singulares e historicamente determinadas, que lhe

confirmaram não ser a dominação um processo exclusivamente

global. Ela não se esgota na exploração econômica, não se

explica pela alienação da consciência e tampouco emana

unicamente de um foco central, hierarquicamente superior,


estaticamente localizado e regido pelos interesses de uma

classe ou qualquer outro grupo social. Enfim, para Foucault

a dominação não se restringe ao exercício da repressão

regulada pelas regras jurídico-políticas contidas nas

fronteiras do aparelho de Estado ou de qualquer outra

instituição.

Em oposição a esta perspectiva, Foucault desenvolve

um instrumental de análise que lhe permite dar conta das re-

lações de dominação que ultrapassam o alcance do poder sobe-

rano fundado na lei. Isto implica uma nova concepção de po-

der que, apesar de não ignorar a dimensão jurídica da domi-

nação, prioriza a investigação das suas manifestações capi-

lares presentes na sociedade moderna.

Este poder, ao qual Foucault refere-se como

disciplinar, está disperso no corpo social, distribuído numa

rede molecular e produtiva. Não ocupa, portanto, um lugar ou

nível privilegiado, tampouco tem um ponto de origem fixo.

Esta rede microfísica de relações de poder não se impõe

sobre a sociedade, mas antes se dispõe em toda a dimensão do

social; seus mecanismos e efeitos não estão localizados nas

instituições, ainda que sofram o seus investimentos. Para

ele as relações de poder não devem ser vistas como restritas

a um campo superestrutural, pois elas são imanentes às

relações econômicas, de conhecimento, sexuais etc. O poder

não está a serviço das relações econômicas, ou quaisquer


outras: ele se institui conjuntamente a elas, ele é

produtivo. A partir desta perspectiva é mais correto afirmar

que os exercícios de poder fluem estrategicamente no espaço

compreendido entre as grandes manobras institucionais e os

corpos dos indivíduos.

O olhar foucaultiano nos ensina que para explicar o

poder e seus efeitos devemos superar o modelo de um 'centro

transmissor de poder'. Convém pensar num 'tecido de poder'

ou em 'micropoderes' que funcionam por mecanismos específi-

cos, dissimulados e combinados, movidos por energia própria

e que, por isso, escapam às tentativas de classificá-los

como simples extensões do Estado.

Não sendo localizável numa instituição geradora, o

poder tampouco deve ser considerado como um instrumento ma-

nipulável ou passível de ser possuído. Não existe alguém

'com' ou 'sem' poder, apenas práticas de poder específicas e

heterogêneas, relações de força historicamente determinadas,

que no seu jogo atravessam os indivíduos e as instituições,

ora objetivando-os numa posição, ora noutra. Grosso modo

pode-se dizer que não existe 'o poder', e efetivamente Fou-

cault o diz:

"Sem dúvida devemos ser nominalistas: o poder não é

uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa

potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma


situação estratégica complexa numa sociedade determinada".

(FOUCAULT, 1985, p. 89)

Neste sentido, a idéia de que o poder se exerce

sobre os que não o têm é falaciosa. O poder não aprisiona os

desprovidos de poder, isto porque não existe alguém sem

poder, mas, no máximo, alguém que está fora do seu circuito,

alguém que não foi ainda interpelado pelo jogo estratégico

do poder. Ao interpretar Foucault, Deleuze sublinha a sua

crítica à noção de poder como objeto passível de

apropriação:

"Ele (o poder) é menos uma propriedade que uma

estratégia, e seus efeitos não são atribuíveis a uma

apropriação, 'mas a disposições, a manobras, táticas,

técnicas, funcionamentos'; 'ele se exerce mais do que se

possui, não é o privilégio adquirido ou conservado da classe

dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições

estratégicas'". (DELEUZE, 1988, p. 35)

O poder não obedece, portanto, ao modelo da paz, não

emerge para pôr fim à guerra, ou como prêmio aos vitoriosos,

aos mais fortes, que através dele confirmariam legalmente a

sua dominação. Se existe uma matriz que reflita as relações

de poder, esta é, justamente, a do conflito permanente, a da

guerra prolongada por outros meios, enfim a do campo de for-

ças que se cristaliza, dentro ou fora das instituições, sem

uma direção prévia. Logo, o poder não é uma relação que se


impõe de fora aos seus objetos. Ele não funciona essencial-

mente pela repressão. Ao contrário, o que permite ao poder

sobreviver e ser forte é o seu caráter positivo, o seu exer-

cício como uma rede produtiva de: coisas, desejos, prazer,

saber e mais poder. O poder mobiliza, investe, cria sem ces-

sar as matérias do seu exercício, matérias que não existem

como dados prévios, naturais e inertes à intervenção de um

poder que lhes chegaria do exterior (EWALD, 1975, p. 1252).

O caráter muito mais produtivo do que repressivo

deste poder delimitado por Foucault é explicado com

habilidade por Deleuze quando este nos diz:

"A violência realmente exprime o efeito de uma força

sobre qualquer coisa, objeto ou ser. Mas ela não exprime a

relação de poder, isto é, a relação da força com a força,

'uma ação sobre uma ação'. Uma relação de forças é uma

função do tipo 'incitar, suscitar, combinar...'. No caso das

sociedades disciplinares dir-se-á: repartir, colocar em

série, compor, normalizar. A lista é indefinida, variável

conforme o caso. O poder 'produz realidade', antes de re-

primir. E também produz verdade, antes de ideologizar, antes

de abstrair ou de mascarar". (DEULEUZE, 1988, p. 39)

Esta positividade dinâmica do poder exige que o in-

vestigador o conceba como exercício material, como atividade

física, como batalha, confronto corpo a corpo, para a

constituição de um 'corpo político'. Logo, o que este poder,


ou o conjunto das relações de poder, produz é, fundamental-

mente, sujeição. Para Foucault o indivíduo não é o ponto de

partida da sociedade, mas o seu efeito. As relações

disciplinares distribuídas no tecido social individualizam e

criam os sujeitos. Neste sentido ele afirma:

"É preciso se livrar do sujeito constituinte,

livrar-se do próprio sujeito, isto é, chegar a uma análise

que possa dar conta da constituição do sujeito na trama

histórica". (FOUCAULT, 1988, p. 7)

Dominantes e dominados não devem ser vistos como su-

jeitos pré-dados, anteriores às relações de poder e propul-

sores destas relações, portadores de planos e objetivos pre-

viamente elaborados. Trata-se de estudar a própria relação

internamente, tomá-la como constituinte e investigar como as

relações de sujeição, em cada contexto, fabricam, a partir

de uma diversidade de vontades, forças, desejos, matérias e

pensamentos, um corpo homogêneo de sujeitados.

Na passagem seguinte, Foucault esclarece a sua forma

peculiar e criativa de conceber a trama que envolve o indi-

víduo e o poder:

"O poder deve ser analisado como algo que circula,

ou melhor, como algo que só funciona em cadeia... nunca é

apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se

exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só

circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e


de sofrer sua ação... Em outros termos, o poder não se

aplica aos indivíduos, passa por eles... O indivíduo é um

efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de

ser um efeito, é o seu centro de transmissão. O poder passa

através do indivíduo que ele constituiu". (FOUCAULT, 1988,

p. 183 e 184 - grifo nosso)

O poder disciplinar funciona promovendo uma inversão

de forças, suas relações produzem sujeitos na exata medida

em que normalizam, homogeneízam uma multiplicidade perigosa

de indivíduos antes entregues a forças não controladas e,

portanto, improdutivas. Esta homogeneização contém a pecu-

liaridade de se fazer através de uma intervenção individua-

lizada e produtora de saber.

Antes de esclarecermos as características desta

intervenção é preciso atentar para um ponto importante.

Entender o sujeito como um efeito das relações de poder

implica amenizar o caráter subjetivo que possa existir

nestas relações. Os alvos fixados pelo poder em seu

exercício tático, as suas intenções estratégicas, são

passíveis de explicação, mas não seguem uma orientação

subjetiva. Não existe uma racionalidade teleológica do

poder, apenas problemas pontuais e conjunturais,

resistências localizadas, que exigem reviravoltas, desvios,

soluções não previsíveis e percursos improvisados. Logo, a

compreensão do poder deve ser buscada nos seus próprios


procedimentos, neste jogo que, em grande parte, ultrapassa

as intenções, os objetivos e o controle por parte dos

indivíduos. Portanto, este poder entendido como exercício

bélico, como maquinaria capilar atuante no cotidiano, que

obedece a estratégias e constrói certos objetivos, não

esconde às suas costas um sujeito planejador que o detenha e

o determine.

Como dizíamos, o poder disciplinar cria sujeitos, e

o faz procedendo a uma intervenção que passa por um elemento

mínimo, o corpo do indivíduo. As práticas disciplinares

reinventam o uso do corpo, não reprimem as suas forças, mas

procuram domá-las e dotá-las de uma funcionalidade adequada

ao poder. Ao invés de uma contenção trata-se de promover uma

recomposição das forças no sentido de obter uma maior utili-

dade econômica e política. O poder disciplinar em seu exer-

cício elege o corpo humano como alvo e o treina, exercita,

domestica, enfim, constitui uma individualidade não pela re-

pressão (que deve ser considerada seu limite, sua forma

frustrada), mas pelos efeitos positivos que produz no plano

do desejo e do saber.

Trata-se de um investimento político minucioso, téc-

nico, detalhado, que se dá ao nível das 'ínfimas materiali-

dades' e, em oposição ao movimento geral de dominação sobre

uma massa indistinta, escolhe o corpo para, de forma calcu-

lada e através de uma maquinaria de poder do tipo 'controle


e estimulação', torná-lo adestrado, obediente e útil. Como

explica Foucault:

"A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos

econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em

termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela

dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma

'aptidão', uma 'capacidade' que ela procura aumentar; e

inverte por outro lado a energia, a potência que poderia

resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita"

(FOUCAULT, 1987, p. 127).

Este poder abrange as singularidades, as minúcias e

através de técnicas como o exame, a confissão, a observação,

ele esquadrinha, classifica, mede desvios, hierarquiza, en-

fim, utiliza, inventa, adapta diferentes procedimentos que,

em cada caso, podem trazer à luz os desejos, as vontades, os

impulsos, as forças do corpo passíveis de serem normaliza-

das, educadas, reduzidas a uma atividade programada, previ-

sível, útil e livre de qualquer perigo, ou pelo menos de te-

rem a sua periculosidade amenizada. Esta normalização pode

vincular-se tanto a uma produtividade econômica, quanto ao

controle da atividade política ou a qualquer outro objetivo

estrategicamente interessante à reprodução do próprio poder.

O poder disciplinar constitui-se, então, num corpo

político, um conjunto de operações físicas e microfísicas

que definem como se pode ter o domínio sobre os corpos dos


outros, não apenas para que façam o que se quer, mas para

que operem como se quer, conforme uma eficácia pré-

determinada. Sendo o poder um corpo político, produtor de

sujeição, seu estudo requer uma 'anatomia política'. Mas,

como explica Ewald, a anatomia política não é só uma

perspectiva de análise do poder (perspectiva, diga-se de

passagem, que assume o ponto de vista do corpo submetido); a

anatomia política "é também uma maneira de o poder se

exercer. Deste ponto de vista ela se confunde com um corpo

político". (EWALD, 1975, p. 1238)

O exercício do poder como anatomia política se faz

pela intervenção minuciosa, calculada, infinitesimal sobre

os corpos com a particularidade de produzir saberes sobre

eles. Saberes que se articulam com o poder para promover o

assujeitamento. Saber e poder, portanto, se dão concomitan-

temente nas práticas sociais. O poder no exercício de captu-

rar o corpo, mobilizá-lo, animá-lo, dar ocupação às suas

forças, enfim, no investimento que faz para constituir um

corpo voluntário, cria também uma consciência, uma moral,

forja a alma de que o corpo precisa para 'viver' e

'produzir' segundo a ótica do poder.

Ao corpo submetido corresponde, portanto, uma alma,

mas não como uma entidade espiritual que se opõe ao materia-

lismo do poder. Mais uma vez é possível recorrer a Ewald e

sua análise sobre a 'anatomia política' foucaultiana, onde


este pensador explica que nas relações de poder só existe

confronto físico, embate de corpos, e o próprio pensamento,

neste sentido, está impregnado deste caráter material, seja

funcionando como instrumento da tomada dos corpos pelo po-

der, seja como efeito do poder (EWALD, 1975, p. 1253). Sendo

assim, não é pertinente insistir na oposição entre matéria e

espírito, o segundo termo aparecendo como reflexo do pri-

meiro. As relações de poder são essencialmente materiais e

ocorrem numa troca incessante entre a realidade material do

corpo e a realidade material da alma.

Através de técnicas, rituais, cerimônias, eventos

diversos, as relações de poder fabricam 'homens' de corpo e

alma. Logo, o saber não serve de apoio, de representação a

um poder que lhe seria exterior. Tampouco devemos ver nesta

relação uma investida do poder para aprisionar a razão ou

submeter a verdade como garantia da sua sobrevivência.

A 'anatomia política', a perspectiva genealógica,

informa que o jogo de forças produz objetos de saber,

modelos de verdade que têm uma vigência nas práticas de

poder. O poder engendra o saber, e este só existe vinculado

às práticas de poder. Ao colocar as coisas desta forma

Foucault constrói os conceitos necessários para superar o

mito ocidental que opõe o poder à verdade. A própria

interpelação feita ao saber sobre a sua qualidade de

verdadeiro ou falso, científico ou ideológico, fica, a


partir desta perspectiva, vazia de sentido. Acrescente-se

que deste ponto de vista o saber não emerge na consciência

de um sujeito como representação da sua situação econômica,

ou de qualquer outra 'realidade',

"... a genealogia considera o saber na sua ma-

terialidade, como prática, como acontecimento, como peça de

um dispositivo político. E somente assim, como peça de um

dispositivo político, se articula com a estrutura

econômica". (ABREU, 1985, p. 28 e 29)

Posicionar-se nesta perspectiva implica reconhecer

que a verdade não é o instrumento de libertação do sujeito,

assim como a ideologia não é um dos grilhões que o

aprisionam. As relações de poder constituem tanto os

sujeitos quanto as verdades e seus efeitos poderosos. Se

queremos compreender o conhecimento, o 'saber', devemos

reconhecer a sua materialidade e perguntar-nos sobre as suas

relações estratégicas, sobre a sua ambição de poder. Ou

seja, a 'anatomia política' empreende uma investigação sobre

como as relações de força que atravessam a sociedade

engendram domínios de saber que realimentam o jogo de poder

e vice-versa. Como argumenta Ewald, Foucault nos ensina que

não se deve

"separar a verdade dos procedimentos da sua

produção, e que estes procedimentos são tanto procedimentos

de saber quanto procedimentos de poder. Que não existe


verdade(s) independente das relações de poder que a

sustentam e que ao mesmo tempo ela reconduz e reforça, que

não existe verdade sem política da verdade, que toda

afirmação de verdade é indissoluvelmente peça, arma ou

instrumento dentro das relações de poder". (EWALD, 1975, p.

1230)

Foucault lança uma pergunta sobre o tipo de

assujeitamento que uma verdade produz. Interroga o saber não

exclusivamente sobre a sua fundamentação empírica, mas sobre

a sua função e intenção bélica. A abordagem foucaultiana nos

ensina a olhar o saber como peça de um jogo estratégico,

como momento de um exercício tático e, fatalmente, nos

conduz à investigação sobre a eficácia deste saber num

determinado campo de batalha.

Ao supor que as relações de poder e saber desdobram-

se como um exercício bélico, Foucault trata de apresentar a

resistência como um elemento intrínseco a estas relações.

Isto significa, por um lado, que o poder, justamente por não

ser uma força exterior ao indivíduo, nunca subjuga o sujeito

plenamente, jamais o submete de forma definitiva e absoluta.

Por outro, que a resistência não tem como origem um lugar

privilegiado fora do alcance das relações de poder. Tal lu-

gar não existe, não que o poder tudo domine inexoravelmente,

mas pelo fato de os pontos de resistência constituírem-se


como termos correlatos à rede de poder em suas múltiplas

manifestações.

O 'dominado' na sua resistência percorre, por mais

paradoxal que possa parecer, os caminhos traçados pelo

próprio poder, tira dele a sua energia, não encontra forças

em outro lugar a não ser nas próprias relações de poder.

Como vimos, o poder disciplinar ao tomar o corpo do

indivíduo tenta sujeitá-lo não através da interdição, mas de

mecanismos positivos, como o exame. Este último possibilita

a percepção e a construção de saberes, que retornam sobre o

corpo sob forma de normas e regras de conduta que levam o

indivíduo não só a agir, mas a pensar e até a desejar

segundo a fórmula do poder. É isto que conduz, conforme

explica Ewald, o 'normal' a rejeitar o 'anormal', o íntegro

a excluir o marginal, o razoável a afastar o louco (EWALD,

1975 p. 1249). Ocorre, entretanto, que o poder, para

funcionar e produzir seus efeitos, precisa ceder energia ao

próprio sujeito. Para que as relações de poder se reproduzam

através dos corpos que constituem, faz-se necessário doar-

lhes poder. É investindo em nossas próprias necessidades que

o poder encontra energias para produzir seus efeitos. Aí

está o dilema do poder, toda sua força e sua fraqueza, pois

ao ceder energia para efetivar-se o poder vive uma incerteza

quanto a sua realização. Daí a


"possibilidade permanente de revezes (retournements)

e desvios de poder, a necessidade da batalha perpétua, o

princípio da gestão dos ilegalismos e das resistências. Os

processos de poder acontecem dentro de um processo de

'avalanche': quanto mais eles produzem, mais eles devem

submeter, gerir e assim por diante". (EWALD, 1975, p. 1258)

Produzir a docilidade, aumentando as forças úteis do

indivíduo e controlando os efeitos políticos perigosos desta

cessão de energia, este é o ritmo que o poder tenta imprimir

para solucionar o seu dilema. No seu exercício o poder cria,

portanto, as práticas de resistência, as condições de opo-

sição, de reação, que são parte integrante das suas táticas

e estratégias. Logo, não encontramos no referencial foucaul-

tiano uma esfera de poder e outra de resistência, temos ape-

nas o poder que organiza tanto a sua atividade quanto a re-

sistência que está inserida nas próprias relações de poder:

tratam-se de termos inseparáveis.


II.3 - A CONCEPÇÃO DE PODER PASTORAL

Sem dúvida o poder disciplinar que intervém ao nível

dos corpos para torná-los produtivos encontra condições ex-

tremamente favoráveis para sua reprodução na sociedade capi-

talista, onde vigora um 'Estado de governo' que tem por fi-

nalidade gerenciar a massa da população como um todo e indi-

vidualmente. Entretanto, como mostrou Foucault em alguns es-

tudos preliminares (FOUCAULT, 1988 e 1990), a procedência

deste poder disciplinar deve ser buscada no modelo arcaico

do pastorado, presente já nas sociedades orientais antigas,

desenvolvido posteriormente pelos hebreus e constituído pelo

cristianismo, ao longo da Idade Média e mesmo na atualidade,

como uma importante 'tecnologia de poder'.

O pastorado tematizado pelos textos hebreus e

recuperado pelo cristianismo tem como característica o

exercício de um poder baseado na relação entre um pastor e o

seu rebanho. Relação peculiar esta justamente por supor um

poder que não se exerce sobre um território e tampouco tira

sua energia da posse da terra. Trata-se de uma prática que

se efetiva junto a indivíduos reunidos para serem guiados à

terra prometida, à salvação. Nesta trajetória o pastor deve

não só apontar o melhor caminho, como velar contra os

perigos, alimentar, evitar a dispersão, enfim, entregar-se

totalmente e sem interesses egoístas ao cuidado do rebanho

como um todo e individualmente. (FOUCAULT, 1990)


O pastorado supõe, portanto, uma relação de

dependência estrita do rebanho para com o pastor que o reúne

e o guia. A própria existência do pastor justifica-se porque

sem ele o rebanho não conseguiria prosseguir o seu caminho

de forma autônoma e fatalmente se dissolveria por força da

dispersão. A permanência do grupo, a continuidade do

rebanho, está diretamente vinculada à atividade contínua do

pastor, ao seu cuidado diário e singular, não sobre uma

massa indistinta, mas sobre cada membro do rebanho com o

objetivo de garantir o sustento e a salvação última de todas

as ovelhas, uma a uma. Como explica Foucault:

"O modo como o pastor salva o seu rebanho é bem

diferente. Não se trata apenas de salvar todos os

indivíduos, em conjunto, na iminência do perigo. É uma

questão de benignidade constante, individualizada e final".

(FOUCAULT, 1990, p. 80)

O exercício deste poder pastoral aparece para o

pastor como uma dívida religiosa, uma devoção que os

escolhidos devem assumir. O pastor, para cumprir bem o seu

dever (leia-se permitir o fluxo eficiente do poder), precisa

saber das necessidades específicas de cada ovelha. Dele

exige-se que perscrute cada indivíduo, para que através do

conhecimento possa cuidar da vida de todos e garantir uma

caminhada progressiva rumo à salvação.


O investimento feito pelo cristianismo no tema do

pastorado proporcionou o aperfeiçoamento deste enquanto

tecnologia de poder. O cristianismo inovou ao exigir do

pastor a prestação de contas das atitudes e acontecimentos

que envolvem cada indivíduo. Todo mérito ou pecado de cada

ovelha passou a ser considerado de responsabilidade também

do pastor, ele responde pelos desvios individuais e

coletivos, a salvação do rebanho é a sua salvação.

A obediência ganha um sentido peculiar no pastorado

cristão, oposto ao significado que lhe era dado pelo pensa-

mento grego, por exemplo. A submissão não se faz pela obser-

vação de uma vontade coletiva ou pela aceitação de uma lei,

mas se efetiva como resultado da vontade do pastor, como uma

submissão pessoal, portanto. A obediência aparece como um

fim em si, não como um meio para atingir determinado obje-

tivo. Ser obediente é ser virtuoso.

Foucault observa ainda a intensificação, no cristia-

nismo, da exigência de um conhecimento individual sobre as

ovelhas. O pastor deve informar-se detalhadamente sobre cada

ovelha, suas necessidades, vontades, atividades, seus peca-

dos públicos, seus desvios secretos e também seus progres-

sos.

Para atingir seus objetivos de saber, o cristianismo

investiu em dois instrumentos do mundo helênico: o exame de

consciência e a direção de consciência. Estas práticas foram


adaptadas aos problemas e desequilíbrios conjunturais do

cristianismo. A direção de consciência, de atividade esporá-

dica transformou-se em exercício permanente de condução do

rebanho pelo pastor. Já o exame de consciência, de instru-

mento para o cultivo da consciência de si constituiu-se em

prática de exposição completa do indivíduo ao seu guia.

Vemos então, pela primeira vez na história, conforme

alerta Foucault, a organização pelo pastorado cristão de

procedimentos que relacionam obediência total, conhecimento

de si e confissão ao outro. Procedimentos que daí em diante

não mais foram desprezados, sofreram adaptações ou rearran-

jos conforme as exigências circunstanciais, de modo a viabi-

lizar o aproveitamento da sua capacidade de fazer funcionar

um poder contínuo e positivo sobre a vida através da demons-

tração da verdade particular de cada indivíduo.

Esta tecnologia pastoral gerenciadora de homens foi

valorizada e ganhou dinamicidade não em oposição ao poder

estatal que se exerce sobre a massa dos cidadãos e está

fundamentado na concepção jurídica de soberania. Muito ao

contrário, a articulação entre o poder político do Estado,

cuja função é estabelecer uma unidade legal, e o poder pas-

toral, caracterizado pela ocupação contínua com a vida de

todos e de cada um, é um traço marcante do processo de domi-

nação próprio à formação da sociedade contemporânea.


Este reaproveitamento do poder pastoral, sob a forma

de poder policial, disciplinar, enfim, micropoder, e sua

combinação com o poder soberano efetivaram-se de maneira a

reforçar o poderio do Estado através de uma intervenção so-

bre o homem, seu corpo e sua vida. Isto ocorre porque a me-

cânica pastoral se apóia numa economia de poder singular e

inédita que, simultaneamente, propicia o crescimento das

forças dominadas e o aumento da força e da eficácia de quem

as domina.

A partir desta reflexão Foucault tenta mostrar que

não se deve olhar o poder como um atributo exclusivo do

Estado, que por obra de um contrato ou da violência se impôs

ao homem escravizando sua individualidade. Sem o exercício

cotidiano e capilar do poder, nenhuma dominação geral se

estabeleceria. Sem dúvida as formas gerais de dominação

existem e se relacionam com as táticas locais, mas não como

uma determinação unívoca e sim como um condicionamento

recíproco.

"Nenhum 'foco local', nenhum 'esquema de

transformação' poderia funcionar se, através de uma série de

encadeamentos sucessivos, não se inserisse, no final das

contas, em uma estratégia global. E, inversamente, nenhuma

estratégia poderia proporcionar efeitos globais a não ser

apoiada em relações precisas e tênues que lhe servissem, não


de aplicação e conseqüência, mas de suporte e fixação".

(FOUCAULT, 1988, p. 95)

É possível afirmar que o conjunto de processos que

possibilita o advento da sociedade capitalista inventa tam-

bém, a partir de um investimento nas práticas pastorais, no-

vas relações de poder, relações disciplinares, não submeti-

das ao registro da soberania, mas a ele articuladas. É esta

complementaridade entre os procedimentos heterogêneos da lei

e da norma, do contrato e da tutela, do direito e do cuidado

que faz a disciplina aparecer como um não poder e exercitar-

se de forma mais eficaz, minuciosa e abrangente. Como ex-

plica Foucault:

"Um direito de soberania e um mecanismo de

disciplina: é dentro destes limites que se dá o exercício do

poder (...). As disciplinas veicularão um discurso que será

o da regra, não da regra jurídica derivada da soberania, mas

o da regra "natural", quer dizer, da norma; definirão um

código que não será o da lei, mas o da normalização,

referir-se-ão a um horizonte teórico que não pode ser de

maneira alguma o edifício do direito mas o domínio das

ciências humanas; a sua jurisprudência será a de um saber

clínico". (FOUCAULT, 1988, p. 189).

Depreende-se destas afirmações que as práticas

disciplinares, os procedimentos pastorais, enquanto

exercícios de poder que funcionam examinando, produzindo e


fazendo circular as 'verdades', têm seu referencial nas

ciências humanas; ciências estas que fabricam o homem ao

mesmo tempo como sujeito consciente e objeto de

investigação. Neste sentido as ciências humanas decompõem e

recompõem os corpos orientadas pelo princípio da melhora

progressiva, ou seja, da trajetória evolutiva do sujeito e

da história como decorrência do próprio jogo de exposição e

produção da verdade. Seguindo este referencial, as ciências

humanas assinalam as deformações, sugerem caminhos de

superação e engendram almas e corpos corrigidos,

(re)formados segundo as normas adequadas a cada experiência.

Os confrontos permanentes que constituem a sociedade

são alimentados pela produção de verdades. Diante desta

constatação Foucault recomenda uma inversão metodológica que

implica olhar as ciências humanas não pelo prisma de sua

maior ou menor capacidade de explicação do 'real', mas ques-

tionando o seu papel na racionalização de determinadas re-

lações de poder.

Estas são as linhas gerais de uma perspectiva

teórica que deve funcionar menos como um modelo total,

dotado de conceitos definitivos a serem aplicados à

realidade, do que como um conjunto de princípios hipotéticos

de análise das situações estratégicas de poder. Como vimos,

Foucault não constrói uma teoria geral do poder, tarefa a

seu ver impertinente. Neste sentido procuramos adotar suas


concepções como princípios básicos capazes de orientar a

construção do nosso objeto, e utilizar os seus conceitos

como ferramentas de análise na medida em que se mostraram

úteis e adaptáveis à investigação da igreja progressista e

do seu militante.

II.4. - O OBJETO DA PESQUISA

O referencial foucaultiano abre caminho para pensar

o que 'permaneceu' do cristianismo nas práticas de poder e

de saber da sociedade moderna. Esta perspectiva possibilita

uma nova abordagem do encontro entre o político e o

religioso próprio da igreja católica progressista. Tomar

este vínculo como uma afinidade eletiva implica justamente a

utilização de um referencial teórico que não tome os dados

como pré-existentes à relação que os determina e não busque

uma causa determinante e os conseqüentes efeitos de um

fenômeno. O ponto de vista da anatomia política valoriza a

análise das próprias relações, entendendo-as como

constituintes. Logo, esta pesquisa não partiu de uma matriz

do tipo "dominantes contra dominados" para circunscrever e

explicar o seu objeto; procurou-se investigar os meios, as

práticas, as relações, enfim, as combinações que colocam os

sujeitos em determinada posição.

Sendo assim, esta investigação não assumiu a igreja

católica como uma instituição sujeito, detentora de poder,


que se adapta para cumprir sempre uma mesma função pré-

estabelecida, do tipo 'aperfeiçoar a dominação sobre o

povo'. Tampouco partiu do pressuposto de que a igreja pro-

gressista é um efeito da evolução da consciência católica

rumo a um projeto mais humano e libertador.

Esta instituição, como todas as outras, é, a cada

momento, o resultado do jogo de forças estabelecido num dado

contexto histórico e social. No tabuleiro da história emer-

gem os enfrentamentos, as situações estratégicas, os proble-

mas, que oferecem caminhos duvidosos, sedutores, exigem a

ocupação dos espaços e conduzem a posicionamentos nem sempre

planejados pelos intelectuais ou pelos ocupantes dos cargos

institucionais. Partindo destas considerações, não convém

indagar unilateralmente sobre os planos da hierarquia cató-

lica, por exemplo. Importa perguntar quais práticas coloca-

ram uma parte significativa dos católicos brasileiros, num

determinado momento, como militantes de esquerda. Indagar

sobre a racionalidade que se articula a estas práticas e

ainda sobre as circunstâncias estratégicas que propiciaram

tal situação.

O olhar não deve se restringir à igreja católica

progressista e seus aparelhos, ou seja, ao nível instituído,

justamente porque não se 'localiza' ali o poder. Sendo as-

sim, privilegiamos nesta análise as relações dispersas, a

aplicação de certas técnicas, enfim, as intervenções sobre


os corpos militantes, a ativação destes corpos como parte de

um conjunto de estratégias e táticas de poder. Acreditamos,

portanto, que as práticas inerentes à igreja progressista

são positivas (constitutivas) e de uma ordem político-reli-

giosa, mais precisamente uma conjugação peculiar entre os

exercícios da soberania e do pastorado cristão, sendo que

este encontro recruta e ativa o militante, buscando renovar,

a partir desta atividade, os seus efeitos de poder.

Priorizou-se a investigação da atividade do

militante católico de esquerda, pois, através deste

empreendimento, pode-se iluminar o problema da formação

deste militante pastor a partir da afinidade entre forças

políticas e religiosas e, ao mesmo tempo, entender como esta

atividade perpetua ou não este circuito de poder político-

religioso. Ou seja, acreditamos que na atividade do

militante se revelem os procedimentos de poder presentes na

igreja progressista. O que implica perguntar não como o

militante ordena o seu agir, e sim por que ele atua, quais

elementos de poder e de saber fazem o seu corpo ativo, a

qual situação estratégica sua atividade responde. Quer dizer

que pretendemos estudar o militante não como portador

exclusivo e definitivo da racionalidade, como um indivíduo

que se auto-esclarece, mas como sujeito envolvido pelas

táticas de poder e saber que se expõem no jogo da sua

constituição.
Imaginamos que a articulação destas práticas

heterogêneas, da tutela religiosa e do contrato político,

acentua no militante católico progressista certas

características já presentes no militante partidário e

tematizadas por diferentes pensadores, conforme observamos

no primeiro capítulo. Características como a entrega

absoluta a uma causa e a conseqüente totalização da

atividade política. Tal totalização resulta de uma

intervenção individualizada e contribui para renovar o

funcionamento conjugado entre as forças políticas e

religiosas.

Acreditamos que os procedimentos estratégicos que

visam à tomada do poder político, presentes na igreja

progressista, estão articulados a exercícios de poder

pastoral, um conjunto de práticas alimentando-se mutuamente

com objetivo de fortalecer a dominação. Isto se dá na justa

medida em que as práticas pastorais, ao injetarem mais vida

no militante, aumentam o controle sobre ele no sentido de

produzi-lo ativo, dedicado e totalizado. Esta produção,

contudo não está plenamente garantida, pois a energia cedida

ao militante gera desequilíbrios, resistências, problemas de

poder que exigem adaptações, desvios, rearranjos das forças

no tabuleiro.

Como já foi mencionado, queremos investigar como se

dá este jogo, quais as práticas que objetivam o militante


católico progressista e reproduzem a afinidade eletiva entre

política e religião, qual a racionalidade ou o conjunto de

verdades que fazem o militante agir como líder político e

como pastor de ovelhas.

Buscando alternativas à polarização "dominantes e

dominados", tentaremos estudar as práticas de poder que

colocam os fiéis católicos, ou pelo menos parte deles, como

soldados pastores empenhados na luta pela 'libertação' e

pela 'salvação'. Seguindo este caminho, é importante

desenhar, ainda que em esboço, o campo de forças que criou

ao longo da história a oportunidade estratégica para a

emergência da igreja católica progressista, e posteriormente

fazer a anatomia das práticas que hoje a constituem. Trata-

se de práticas de poder-saber, pois são as relações de poder

que constituem a ação político-religiosa como objeto de

saber e, inversamente, é esta ação que se torna alvo de

poder porque é passível de um investimento de saber. Neste

sentido, procuraremos apontar no capítulo III algumas das

condições que propiciaram o encontro entre a política e a

religião a partir de certas transformações históricas e

encaminharam a formação da igreja católica progressista. No

capítulo IV vamos nos deter no conjunto de práticas que

reproduzem esta afinidade eletiva, utilizando-nos para isso

de entrevistas feitas com militantes católicos, bem como da


análise de documentos produzidos pelos e para os militantes

e da observação de algumas das suas atividades.

Dados os limites do trabalho, optamos por

privilegiar, nesta articulação político-religiosa, a análise

das práticas pastorais, ou seja, a dimensão dos

micropoderes, apontando apenas algumas das suas ligações com

os procedimentos e movimentos políticos mais gerais.


CAPÍTULO III

A EMERGÊNCIA DO MILITANTE DA IGREJA CATÓLICA

PROGRESSISTA

_____________________________________________________

"Quem poderia prever, quem ousaria sonhar que o

messianismo em que se bipartiu a religião do cristo (reforma

e contra-reforma) iria medrar no terreno sáfaro das reivin-

dicações materialistas do marxismo?" (Andrade, Osvald de, "A

Crise da Filosofia Messiânica", in: Idem, Do Pau-Brasil à Antropofa-

gia e às Utopias, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970,

p. 120)

III.1. - O MODELO DOMINAÇÃO E LIBERTAÇÃO


Investigar a constituição do militante da igreja

católica progressista9 não exige uma revisão pormenorizada

da história desta instituição; contudo parece pertinente

reportar-se às manifestações político-religiosas que

ocorreram no passado recente, no Brasil, e às diferentes

posturas no interior da igreja católica frente a estes

episódios.

Grande parte dos estudos sobre a história da igreja

católica no Brasil opta por um enfoque macro desta insti-

tuição, localizando-a no movimento de transformação econô-

mica, política, cultural e social no país e no mundo. Por

isso, talvez, existe nestas análises uma valorização da di-

mensão política, ou seja, das relações entre igreja e Es-

tado.

9 É importante distinguir 'religiosidade católica',

enquanto um conjunto de práticas e disposições referentes ao

sagrado e encontradas na população, de 'igreja católica', a

principal instituição responsável pelas manifestações

religiosas do cristianismo no Brasil. Usaremos o termo

'igreja católica' no sentido de 'igreja oficial', compre-

endendo a postura dominante na instituição. Para nos

referirmos a outros agrupamentos católicos, internos ou

externos à igreja, usaremos outras designações.


Muitos estudos são feitos por intelectuais

comprometidos com a igreja católica progressista. O

historiador Hoornaert é um exemplo. Faz referência constante

a um catolicismo oficial que pactua com o poder, que ele

julga condenado ao desaparecimento, e a um cristianismo que

brota do povo e é pensado, por isto, como autêntico e como

possibilidade de evolução do catolicismo (HOORNAERT, 1978,

cap. I). Uma análise mais recente (DELLA CAVA, 1986),

preocupada com os posicionamentos da igreja católica diante

do Estado autoritário brasileiro, pensa a instituição

católica dividida internamente entre progressistas e

conservadores. Esta divisão aparece como resultado das

atitudes diferenciadas com relação ao envolvimento político,

ou de apoio aos grupos dominantes, ou de opção pela luta

libertadora dos oprimidos.

Mainwaring critica as simplificações que reduzem a

igreja católica a uma instituição em contínua adaptação para

defender seus interesses, dentre eles o de auto-reprodução.

Ele discorda daqueles que remetem apressadamente a questão

da igreja ao modelo da luta de classes e classificam reli-

gião como ideologia, ligando-a irremediavelmente ao princí-

pio da dominação. Este autor realça a luta pela hegemonia

entre os diferentes modelos que co-habitam na igreja brasi-

leira e sublinha as influências que esta instituição sofre

pelos conflitos que ocorrem no meio social. Isto, segundo


ele, demonstra que a igreja pode também posicionar-se ao

lado dos dominados. Percebemos, portanto, que ele como os

demais autores, guardadas as diferenças, permanece preocu-

pado em entender as transformações da igreja pensando o seu

posicionamento diante do poder político do Estado

(MAINWARING, 1989).

O modelo 'poder opressor contra luta emancipadora'

orienta outros estudiosos que investigam os avanços e retro-

cessos da igreja católica, diante da luta pela justiça so-

cial promovida pelas classes populares. Nesta linha está Go-

mes de Souza, que sugere que a igreja não é impermeável às

contradições sociais, podendo ser elemento de conservação ou

de transformação das estruturas dominantes da sociedade

(SOUZA, 1984).

Francisco Catão, ao fazer uma breve análise da

teologia da libertação, não se furta a pensar a história da

igreja católica como um amadurecimento, um avanço paulatino,

enfim, como um lento processo de humanização e tomada de

consciência desta instituição sobre o seu papel na luta de

libertação político-econômica dos oprimidos. As transfor-

mações sociais e a aproximação entre teologia e ciência é

que propicia, segundo sua análise, este novo olhar da igreja

que associa salvação ao processo histórico-social de liber-

tação (CATÃO, 1986). Aliás, este par 'dominação e liber-

tação' é encontrado em praticamente a totalidade dos estudos


sobre a relação entre igreja e política, seja reduzindo a

igreja a uma instituição preocupada apenas com a sua própria

reprodução e, conseqüentemente, marcada pelo colaboracio-

nismo com os grupos dominantes, seja apresentando-a como uma

instituição complexa, que sofre as influências de um pro-

cesso social contraditório e caminha dialeticamente para uma

conscientização sobre a sua posição na luta dos oprimidos

pela emancipação.

O enfoque acima descrito em seu eixo principal

contribui para a valorização da dimensão religiosa enquanto

nível interligado aos demais e enquanto parte integrante da

formação social. Este referencial permite a localização da

igreja no processo geral de transformação da sociedade, in-

formando sobre a sua condição de instituição que atua sig-

nificativamente sobre as operações sociais e, que, ao mesmo

tempo, sofre a interferência da dinâmica social. Todavia,

este modelo não seria útil para explicar ocorrências mais

específicas. Para nossa investigação, que se interroga sobre

como, em determinado momento, o fiel católico é constituído

militante político-religioso de esquerda, ele não se mostra

suficientemente abrangente.

Tal insuficiência fundamenta-se sobre dois

argumentos. Por um lado a matriz teórica referida parece

assumir os sujeitos como pré-dados, ou melhor, como pré-

destinados a surgir com o desdobramento das contradições


sociais e com o avanço da consciência libertadora. Esta

última lhes garantiria um domínio sobre o processo

histórico. Ou seja, ao mesmo tempo o processo histórico é

conduzido pelos sujeitos, e os sujeitos são produzidos pelo

processo histórico. Neste sentido, é significativo o fato

de, em diversos momentos, o debate girar em torno da

legitimidade ou não destes "sujeitos". Por outro lado, a

insuficiência da matriz teórica se justifica pelo fato de

que, ao associar o sujeito ao processo geral de 'dominação e

libertação', esta perspectiva reconhece apenas a dimensão

repressiva do poder e deste modo bloqueia qualquer

interrogação sobre os mecanismos específicos de poder

positivo (constitutivo) que permitem o aparecimento e a for-

mação dos 'sujeitos'. Costuma-se, então, lançar mão de um

maniqueísmo que reduz a explicação sobre a produção de de-

terminados 'sujeitos' ao processo geral de dominação polí-

tico-econômica.

Ainda assim, este modelo 'dominação e libertação'

será por nós investigado enquanto um eficiente dispositivo

que atua na produção do militante católico de esquerda.

Por isso, durante esta breve garimpagem na história

da igreja católica brasileira, nós nos limitaremos primeira-

mente a recolher, de forma seletiva, dados que contribuam

para a investigação sobre como se constitui o militante ca-

tólico de esquerda. Num segundo plano, apontaremos a perti-


nência de se indagar por que ocorre a emergência deste mili-

tante.

III.2. - A EVANGELIZAÇÃO DA POLÍTICA

Os primeiros sinais de preocupação quanto ao papel

dos leigos, com uma conotação política, semeada nos solos da

igreja católica brasileira, podem ser percebidos no final do

século passado por uma tematização diferente do 'povo' feita

por membros da hierarquia católica. Este discurso sobre o

povo era inédito, pois não se tratava de conclamar os

católicos para uma simples ação caritativa. Pela primeira

vez o 'povo' começa a ser referido como 'trabalhador' viti-

mado pela exploração capitalista, com o qual a igreja deve

se aliar por uma questão de justiça, e pelo qual esta insti-

tuição deve atuar na defesa dos seus direitos sociais, ta-

refa que vai além da simples evangelização.

Este tema manifestou-se inicialmente, com mais ener-

gia, na obra do Pe. Júlio Maria (1850-1916). Em 1900 ele

criticava os católicos que não estendiam a sua fé religiosa

à luta social, limitando-a aos santuários. Dizia ele:

"Demonstrei que o clero no Brasil não pode, nem deve pre-

sentemente encastelar-se nos santuários, contemplando de

longe o povo e pensando que fará obra de Deus só com os nos-

sos panegíricos". Ele acreditava que a missão do clero era

preocupar-se com a questão social, "que é a questão por ex-


celência, porque ela afeta os interesses fundamentais do ho-

mem e da sociedade". Sua tarefa é, segundo ele, "mostrar aos

pequenos, aos pobres, aos proletários, que eles foram os

primeiros chamados pelo Divino Mestre, cuja Igreja foi logo,

desde seu início, a Igreja do povo (...); sujeitar o despo-

tismo do capital às leis da equidade; exigir dele não só a

caridade, mas a justiça a que tem direito o trabalho; digni-

ficar o trabalhador; cristianizar a oficina; levar o ensino

cristão (...) às fábricas (...); proclamar bem alto a emi-

nente dignidade do operário na cidade de Deus, que Jesus

Cristo fundou na terra, não com as castas, as aristocracias,

as burguesias ou as dinastias, mas com o povo e para o povo;

convidar francamente, sem hipocrisia política, nem covardia

religiosa, a democracia ao banquete social do Evangelho."

(Apud MOURA, 1978, p. 336 e 337). A citação é representativa

pela conclamação do clero não só para evangelizar o povo e

para salvá-lo dos pecados, mas para aliar-se ao trabalhador,

eleger sua dignidade diante de Deus, ensiná-lo, exigir e lu-

tar pelos seus direitos e, conseqüentemente, substituir a

política da busca de privilégios junto ao Estado pela evan-

gelização da política junto ao povo.

Certamente este não era o espírito dominante na

igreja católica brasileira da época; tratava-se apenas da

amostra de uma movimentação ainda tímida, mas que ganharia

terreno e dinâmica própria num momento mais adequado, como


bem demonstra, por exemplo, o texto oficial de Puebla na

seguinte passagem: "A fé cristã não despreza a atividade

política; pelo contrário, a valoriza e a tem em alta estima.

A Igreja (...) sente como seu dever e direito estar presente

neste campo: porque o cristianismo deve evangelizar a

totalidade da existência humana, inclusive a dimensão

política." (CNBB, 1985, p. 167, grifos nossos). Entretanto,

já no seu início esta penetração do catolicismo antiliberal

no Brasil refletia, pelo menos em parte, a preocupação que

afligia a igreja católica européia (desde o início do século

XIX) diante da competição com seus 'novos' inimigos: o

liberalismo e o socialismo. Nesta luta, a igreja contabili-

zava perdas de fiéis, dificuldades e atrasos na sua adap-

tação aos tempos modernos. A mobilização e a organização po-

lítica das massas trabalhadoras feita por novas instituições

(partidos e sindicatos operários) com idéias claramente so-

cialistas exigiu reações de uma igreja já atordoada com a

sua exclusão dos governos (agora liberais) em diferentes Es-

tados europeus e com a debandada das elites burguesas sedu-

zidas pelos projetos de construção de uma sociedade laica.

O interesse de Leão XIII pela massa de trabalhadores

que, apesar de católica, se encontrava em acelerado processo

de secularização, demonstra o atraso desta instituição para

investir politicamente na classe operária. Para se ter uma

idéia, a primeira encíclica de conteúdo político-social di-


rigida aos trabalhadores, a Rerum Novarum de 1891, veio a

público 43 anos depois que a esquerda européia lançou o Ma-

nifesto Comunista.

III.3. - O CATOLICISMO INTEGRAL

É preciso salientar que desde o início do século XIX

grupos católicos minoritários, leigos ou não, a despeito da

cúpula da igreja, já reconheciam a importância estratégica

da questão social. Estes homens dispensavam ao problema ope-

rário um tratamento que ultrapassava o assistencialismo e

assumia a dimensão institucional da pobreza. Na verdade,

tratou-se de uma lenta transformação das associações católi-

cas, que ao longo deste período abandonaram a posição mera-

mente defensiva em relação aos ataques de uma oligarquia

burguesa anticlerical e trocaram o paternalismo por uma ação

mais eficaz para a conquista do operariado. Neste sentido a

Rerum Novarum (que surge influenciada pela base católica),

ao mesmo tempo que teve uma penetração limitada junto ao

operariado, pelo seu caráter abstrato e até reacionário com

relação às idéias socialistas, representou o fim de uma nos-

talgia pré-capitalista no movimento católico. Isto porque

esta encíclica assumiu a realidade dos instrumentos políti-

cos modernos (sindicatos, partidos e associações) e reconhe-

ceu a validade da participação dos católicos nestes canais

para a construção de uma sociedade justa e cristã.


Este documento impulsionou os padres e leigos para

uma ação em todos os níveis da sociedade, com o objetivo de

reintroduzir nos lares, nas escolas, nas fábricas, etc., os

valores cristãos necessários para a reorganização da socie-

dade. O novo católico, agora total, rompeu a fronteira do

privado que o liberalismo tentou lhe impor e expandiu a sua

ação no espaço público. Apesar das ambigüidades presentes na

democracia cristã e das facções no interior do catolicismo

integral, uma das quais seria o catolicismo social (que de-

fendia a participação dos católicos até em sindicatos ou as-

sociações não confessionais), permaneceu forte na Europa

deste período a idéia de ação católica total e permanente de

conteúdo antiliberal e anti-socialista. Ou seja, vigorou a

matriz católica integral responsável pela difusão da idéia

que a religião abrange todo o social e toda a vida do

cristão. Se, como bem lembra Michael Löwy, a crítica a mo-

dernidade política e econômica (leia-se capitalismo liberal)

é uma tradição antiga na igreja católica (LÖWY, 1987, p.

10), é preciso não esquecer que só a partir do século XIX

esta posição resultou em ações coletivas organizadas junto

aos trabalhadores (Círculo Operário, Ação Católica Operária

etc.), com fins claramente políticos. Certamente as mobili-

zações políticas de esquerda influenciaram esta nova opção

da igreja, não só pela ameaça que representavam, mas,

principalmente, pelo exemplo de eficácia na penetração e


normalização da vida social que ofereciam aos olhos

cristãos.

Foram estes ventos europeus que impulsionaram,

precocemente, a pena do Pe. Júlio Maria, cujo texto

mencionamos há pouco. No final do século passado a igreja

católica brasileira apenas começava a enfrentar problemas

como aqueles vivenciados pela igreja européia. Conforme nos

mostra Miceli (MICELI, 1986), só depois da proclamação da

república, e não antes, a igreja católica começou a ex-

pandir-se, seja através de escolas, da assistência carita-

tiva ou das paróquias. Essa expansão se deu via romanização

do clero e constituição de uma elite eclesiástica em co-

nexão com um Vaticano antiliberal. Acima de tudo, a igreja

católica brasileira ganhou dimensões nacionais num movimento

que fortaleceu os antiliberais, consolidando a vitória do

'cristianismo integral' e do 'catolicismo social' sobre os

católicos liberais, que aceitavam a redução da prática reli-

giosa à esfera privada (PIERUCCI, 1990).

Antes desta dilatação, a igreja católica brasileira

tinha uma ação bastante limitada. Diante dos movimentos mes-

siânicos, que ocorreram no meio rural brasileiro (Canudos

entre 1870 e 1897 e o Contestado entre 1912 e 1916), a

igreja não fez mais que apoiar sua repressão pelo Estado.

São as transformações acima mencionadas que irão propiciar

um reenquadramento do catolicismo popular, que se fez útil


para as novas pretensões da instituição católica de ocupação

total dos espaços sociais. Fez parte desta estratégia o in-

vestimento da hierarquia, principalmente a partir do final

dos anos 50, nos movimentos político-religiosos de caráter

popular.

Apesar das transformações ocorridas na igreja

católica brasileira, da influência que o clero recebeu com

a promulgação das encíclicas sociais e da constituição da

ação católica, é preciso não se iludir a respeito da

permanência de uma fisionomia conservadora na igreja do

início deste século. Este conservadorismo revela-se, segundo

alguns autores, no tratamento paternalista e autoritário re-

servado ao 'povo': as manifestações políticas do catolicismo

popular não clericalizado eram vistas pela igreja como sinal

de ignorância (BEOZZO, 1978) (MAINWARING, 1989). As lutas

desencadeadas por trabalhadores do campo e da cidade não re-

ceberam o seu apoio. A igreja elegeu o capitalismo como alvo

principal de suas críticas, mas sua preocupação maior estava

localizada na ameaça comunista. Beozzo, entre outros, reco-

nhece aí as raízes da mobilização popular que irá perdurar

até os anos 60, quando o povo aparece como um aliado subal-

terno, não só do Estado, mas também da igreja, "servindo aos

propósitos dos grupos em busca de hegemonia ou de parti-

cipação no poder." (BEOZZO, 1978, p. 293)


É interessante desviar o olhar do par 'dominação e

libertação' e evitar supervalorizar as relações entre igreja

e Estado ou entre clero e classes dominantes. No início de

século, a igreja católica brasileira nitidamente ampliava e

diversificava os seus mecanismos de atuação. Havia uma preo-

cupação especial desta instituição em aproximar-se das cama-

das populares da sociedade. E isto não se limitava à temati-

zação sobre o 'povo'. Já em 1899 notava-se o funcionamento

de um centro dos operários católicos. Pode-se verificar,

anos depois, a proliferação destes centros: o do Brás com 60

operários (1907), o de São João Batista, que em 1919 contava

com 57 operários e 80 operárias, e outros 20 centros operá-

rios católicos espalhados pela capital paulista; além deles,

mais a Confederação Católica dos Círculos Operários (fundada

em 1917), e outros centros atuando em Ribeirão Preto, Jun-

diaí e Campinas. Em São Paulo, pelo menos desde 1913 existia

um jornal do Movimento Operário Católico, e em Recife, desde

o início do século, funcionavam núcleos de operários católi-

cos (BEOZZO, 1978, p. 307). O clero deixava transparecer,

através de documentos e atitudes, uma vontade especial de

cuidar e de conduzir o operariado, ainda que estas ações

fossem tímidas pelo menos até a década de 30. Em 1931 a

igreja desperta para a importância de se atingir as classes

populares através do ensino religioso. A hierarquia católica


percebe que não bastava conquistar as elites e abrir espaços

de ação no Estado.

A preocupação com a organização e mobilização dos

leigos constituiu outros movimentos, como: a União Popular

(Minas Gerais 1909), a Liga Brasileira de Senhoras Católicas

(1910), a Aliança Feminina (1919), a Congregação Mariana

(1924), a Juventude Universitária Católica (1930) e ainda a

Juventude Operária Católica.

Mas é em meados da década de 30 que a mobilização de

católicos leigos pela igreja brasileira encontra o seu for-

mato básico na Ação Católica Brasileira - ACB - (1935). O

Centro Dom Vital, um instituto católico dirigido por inte-

lectuais leigos, fundado em 1922, merece destaque especial

por constituir-se num centro produtor de saberes e ativador

político dos leigos. O mais importante, a nosso ver, é que

esta organização promoveu, pela primeira vez, a produção de

um saber católico, dirigido à mobilização dos leigos,

apoiado na filosofia e na ciência. Mais do que um indício de

modernização, esta combinação revelar-se-ia, num futuro pró-

ximo, tecnicamente eficaz para conduzir e reproduzir os po-

deres mobilizadores dos católicos.

Ainda que a igreja objetivasse, naquele momento,

sensibilizar o poder de Estado a fim de recuperar seus

privilégios perdidos, deve-se destacar que os métodos uti-

lizados eram novos. Ou seja, a velha luta antiliberal ganhou


nova cor. A mobilização popular promovida pela igreja foi

expressiva. As manifestações da Liga Eleitoral Católica

(LEC), criada em 1932, representam bem as novas atitudes da

igreja. A LEC era uma organização forte, apesar de

temporária, e atingiu o seu objetivo com sucesso, ou seja,

influenciou o eleitorado católico para eleger políticos

comprometidos com o atendimento das reivindicações da

igreja: reconhecimento legal do ensino religioso, liberdade

de ação para os sindicatos católicos e garantias para o

livre exercício dos direitos civis.

Assim como no caso da LEC, a organização da ACB

coube ao Centro Dom Vital. Pode-se dizer que a ACB foi

criada para atender aos anseios da hierarquia católica de

centralizar e controlar as diferentes organizações católicas

do laicato. A ACB, sob os olhares da hierarquia, chamou para

si a responsabilidade sobre todas as atividades leigas sub-

metendo as demais associações católicas ao seu olhar. O Con-

cílio Plenário de 1939 também é sintomático do esforço da

igreja para constituir uma coordenação nacional do episco-

pado e do apostolado leigo.

A ACB será responsável ainda pela formulação mais

clara de um enunciado favorável à extensão da atividade re-

ligiosa ao domínio do profano. Com isto valoriza-se o leigo

e o seu papel de levar a igreja às regiões dessacralizadas

da sociedade moderna. Beozzo comenta em seu texto a defi-


nição de ACB: trata-se do apostolado organizado, submetido à

hierarquia, independente e acima dos partidos, "com a fina-

lidade religiosa de estabelecer o reino universal de Cristo.

Neste momento, o objetivo adquire uma forte conotação de se

lutar pelo estabelecimento de uma nova cristandade, isto é,

de uma ordem econômica, social e política sob a orientação

dos princípios cristãos definidos pela igreja." (BEOZZO,

1978, p. 322). Um cristianismo total, portanto.

No nosso modo de entender, a criação da ACB além de

significar um esforço da igreja para evangelizar e controlar

os setores profanos da sociedade, indica o avanço das forças

institucionais para recobrir espaços onde anteriormente bro-

taram manifestações político-religiosas, como aquelas dos

movimentos messiânicos, por exemplo. Ademais, a própria ne-

cessidade de criar a ACB sugere que nem sempre estas forças

marcharam ao gosto da hierarquia e produziram os efeitos por

ela imaginados.

Não seria prudente comparar as atividades acima des-

critas com aquelas posteriormente empreendidas pelos católi-

cos progressistas visando a demarcar uma evolução. Mais

interessante que procurar os sinais de um suposto processo

linear de 'humanização' e 'conscientização' da igreja, é in-

vestigar a especificidade dos instrumentos e das práticas

cotidianas que produzem os militantes até mesmo contra os

interesses desta instituição.


Não obstante a carência de estudos sobre as asso-

ciações católicas leigas, podemos supor que algumas delas,

como a 'Congregação Mariana', apesar de agirem no meio popu-

lar e de possuírem um alcance significativo, apresentaram um

caráter muito mais religioso do que político. Não significa

que estas agremiações não exerceram controle, não regularam

atitudes ou não classificaram indivíduos, o que configura

relações de poder. Ocorre que a emergência e o exercício

destas relações tiveram como motivação, apelo e apego, uma

defesa e expansão da fé católica. O agente ali encontrado

desenvolvia práticas evangelizadoras e assistenciais e não

políticas (aquelas que objetivam interferir ou até conquis-

tar o poder público). Já os Círculos Operários (COs), ou a

Juventude Operária Católica, entre outras, eram organizações

católicas leigas com fins políticos, mas nitidamente conser-

vadoras. Elas concorriam com os sindicatos progressistas e

promoviam a despolitização dos trabalhadores, pois enfatiza-

vam a evangelização do meio industrial profano e valorizavam

a luta anticomunista. A mobilização em torno destas entida-

des não objetivava a transformação radical da sociedade, mas

apenas a melhoria das relações entre capital e trabalho,

conforme os objetivos de justiça da doutrina social da

igreja. Os COs chegaram a defender a cooperação entre os

trabalhadores e os patrões, e acabaram por se transformar em

'agências' do Estado Novo (BEOZZO, 1978, p. 315).


Enfim, seria necessário empreender investigações

profundas sobre esta época. Praticamente inexistem estudos

que tratem sistematicamente dos 'militantes' leigos neste

período. Contudo emergem sinais, como os acima apresentados,

que indicam o deslocamento das forças que habitam a insti-

tuição católica para o plano aberto pelas manifestações po-

líticas populares milenaristas e socialistas. As energias

presentes na igreja católica sofrem uma atração pelos cir-

cuitos constituídos a partir dos movimentos de mobilização

popular. É no combate ao liberalismo, na negação da sepa-

ração entre o público e o privado e na insistência em imis-

cuir-se na política que a doutrina da igreja se afirma. É na

recusa de uma religião liberal, privatizada, que o ca-

tolicismo integral se reproduz.10 Mas o investimento nestas

práticas totais gera energias inesperadas que vão ocupar es-

paços nunca imaginados pela hierarquia católica e produzir

10 O estudo de Antônio Flávio Pierucci sobre o clero

paulistano mostra o processo de fortalecimento do

catolicismo integral (antiliberal) e a sua permanência na

atualidade. Este catolicismo reconhece como missão da igreja

a ocupação com todas as dimensões da vida social, inclusive

a política, e, portanto, recusa o enquadramento liberal da

religião nos assuntos exclusivamente privados. (PIERUCCI,

1985)
efeitos cujo pleno controle escapa a qualquer plano eclesial

pré-elaborado. As mobilizações populares promovidas pela

igreja católica brasileira demonstram que a semente do cato-

licismo integral europeu encontrou no Brasil um solo fértil

para crescer e, a partir de uma fecundação exótica, conceber

frutos inéditos.
III.4. - O CATOLICISMO DE ESQUERDA

As décadas de 50 e 60 no Brasil são exemplares de

como a igreja é apanhada pela emergência imprevista de

combinações de forças que não obedecem aos seus comandos,

mas apenas atendem à busca de uma adequação ótima para

reproduzir-se, formar novas ligações e gerar mais poder. Nas

manifestações deste período encontraremos os principais

ingredientes que 'inventarão', mais adiante, a igreja

progressista e o seu militante. Podemos adiantar que 'igreja

progressista' ou 'igreja popular' é a ala da instituição ca-

tólica que não só declara sua opção pelos pobres, mas desen-

volve práticas de mobilização e organização das classes po-

pulares com o intuito de 'conscientizar' e 'formar' para a

transformação radical da realidade. Ou seja, é o grupo que

assume a realização do Reino de Deus como uma tarefa ter-

rena, que implica na implantação de uma sociedade justa e

igualitária. Enfim, é a ala que faz uma clara opção socia-

lista. Igreja progressista é, portanto, uma facção da igreja

católica.

Diversas causas podem ser arroladas, e geralmente o

são, para explicar os acontecimentos situados no período

acima mencionado: as transformações decorrentes do avanço

capitalista, as vitórias políticas do Estado populista, as

migrações, a urbanização, a industrialização, o crescimento

dos movimentos sociais etc. Certamente estes foram aspectos


importantes que influenciaram a transformação da sociedade e

de instituições como a igreja católica. Mas não parece muito

elucidativo procurar causas fundantes ou um único motor ge-

rador das variações ocorridas. Seria importante pesquisar as

novas conjunções efetuadas no domínio da instituição cató-

lica, as quais sugerem uma ampliação e diferenciação das

práticas político-religiosas.

É significativo que a esquerda católica e seus

primeiros militantes tenham se constituído na Juventude

Universitária Católica (JUC), no final dos anos 50 e início

dos anos 60, e também no Movimento de Educação de Base

(MEB), do mesmo período. A igreja continuava investindo na

atividade dos leigos, através de vários ramos especializados

da Ação Católica. A produção teórica e a própria prática da

igreja expandiram um estoque de catolicismo social, que pas-

sou a conquistar espaços consideráveis na instituição. Esta

ênfase na responsabilidade social e política da igreja im-

pulsionou a ação dos leigos através das organizações católi-

cas, no campo e na cidade, de jovens e adultos, de homens e

mulheres, especialmente junto às classes populares. Estes

agrupamentos ganharam força e apoio da hierarquia. No

entanto, era nítida a preocupação do clero em conter os

avanços da esquerda, especialmente dos comunistas. As críti-

cas ao capitalismo aumentavam à proporção que a hierarquia

enxergava, nas deficiências deste sistema, uma brecha peri-


gosa para a penetração do 'comunismo'. A solução para os

problemas criados pelo capitalismo e suas concepções libe-

rais não seria encontrada, segundo a igreja, no comunismo ou

no socialismo, mas na restauração da ordem social cristã

(PIERUCCI, 1978).

Estas preocupações acompanharam a hierarquia ao

longo dos anos 50 e 60. Ora a ênfase era colocada na crítica

ao capitalismo, ora os documentos e atitudes da igreja

censuravam energicamente o comunismo e procuravam conter os

avanços da esquerda. Mesmo no início dos anos 60, quando a

ação e a reflexão católica fizeram-se radicalmente críticas

ao capitalismo, os documentos da igreja repudiavam com

veemência o 'comunismo'. Os setores 'progressistas' da

igreja apoiaram e colaboraram com os projetos de mudança so-

cial do Estado populista, entendendo que era a melhor forma

de conter a esquerdização que avançava no campo e na cidade.

O fato é que a estrutura da igreja, sua linguagem,

seus símbolos, suas práticas, penetraram na sociedade com

novos objetivos. Amparada na tese do restabelecimento de uma

ordem cristã, necessária para curar as mazelas do capita-

lismo e afastar o pernicioso engodo comunista, as energias

da igreja investiram na organização e mobilização das clas-

ses populares, alvo predileto e mais vulnerável ao avanço da

esquerda, pois ali o capitalismo fazia suas principais víti-

mas. Entretanto, como sugere Mainwaring, o anticomunismo é


insuficiente para explicar as posições avançadas da hierar-

quia, que diante desse 'perigo' poderia simplesmente apoiar

a ordem estabelecida e não juntar forças nas reivindicações

de reforma social (MAINWARING, 1989, p. 77). Também está

pouco explicada a reviravolta que permite o aparecimento dos

primeiros católicos militantes de esquerda, em número signi-

ficativo, na JUC e no MEB, não sem graves conflitos com a

hierarquia. Mainwaring, por exemplo, considera que os pró-

prios movimentos sociais influenciaram os católicos e conse-

qüentemente a igreja, promovendo uma conscientização sobre a

luta libertária das classes oprimidas.

Poderíamos concordar com a concepção de

'consciência' como atributo de uma classe, empreender uma

investigação sobre o aparecimento desta e explicar o mili-

tante progressista como sua derivação. Contudo parece mais

interessante e esclarecedor mostrar como este militante se

constitui a partir de uma combinação 'arbitrária', de uma

afinidade eletiva, das práticas totais do catolicismo com as

práticas totais de uma esquerda messiânica, do que pensá-lo

como resultado de uma estrutura evolutiva pré-elaborada.

Este quadro de responsabilização do leigo, de chama-

mento do laicato para algo muito maior do que o com-

parecimento à missa, enfim, de implosão da religiosidade

circunscrita ao lar, conduziu grupos como a Congregação Ma-

riana, os Círculos Operários e os Cursilhos de Cristandade,


entre outros, a uma ação simplesmente reprodutora da relação

tradicional entre igreja e política. Todavia, em pelo menos

dois casos, emergiram práticas político-religiosas diferen-

ciadas, marcadas por um 'saber' negador da sociedade e pro-

dutor de um militante ao mesmo tempo político e religioso, e

de esquerda. Estas práticas nós encontramos na JUC e no MEB,

do final dos anos 50 até meados dos anos 60. São mobili-

zações que têm alguns traços em comum. Tanto na JUC quanto

no MEB as ciências humanas desempenharam um papel fundamen-

tal na constituição de um 'saber' e de uma prática de

'superação' da realidade. Isto explica, ao menos em parte,

por que a esquerdização do movimento católico leigo deu-se

no meio estudantil e intelectual. É claro que o contato dos

estudantes da JUC com organizações estudantis de esquerda

foi importante para a transformação ocorrida; entretanto,

não podemos reduzir este contato a uma 'influência' recebida

pela JUC. A resultante desse encontro poderia ser a repulsa

mútua, mas, ao contrário, este choque propiciou a reprodução

afinada da eleição político-religiosa, e introduziu a re-

flexão marxista - própria às organizações de esquerda - no

grupo de estudantes católicos.

Esta penetração da ciência na JUC é percebida na

crescente preocupação deste grupo com o método. O 'ver-

julgar-agir', comum noutros movimentos católicos leigos,

ganha uma coloração científica na JUC, assim descrita por


Gomez de Souza: "Em lugar de um 'ver' impressionista e

fragmentário, o movimento encaminhava-se para o que se

chamaria de 'caracterização', ou seja, (...) uma apreensão

da realidade que permitisse conhecer o meio de uma maneira

mais completa e global, com suas relações internas e seu

dinamismo próprio. A partir desse conhecimento do meio, era

necessário aprofundar mais, para descobrir as 'causas' dos

problemas detectados. Em alguns documentos da JUC desses

anos (...) fazia-se a distinção entre o 'ver real' (a

realidade tal qual se apresenta), e um 'ver ideal' (o que

deveria ser) a partir da visão cristã e dos seus valores. O

segundo momento, 'o julgar', seria a comparação entre os

dois momentos do 'ver', à luz do Evangelho e do magistério

da Igreja, saindo então a linha de ação." (SOUZA, 1984, p.

121 e 122)

A preocupação com a formação do militante, com sua

preparação para o enfrentamento da 'realidade' e com a ela-

boração de uma bagagem teórica e prática que o ampare também

está presente na 'nova' JUC. A alquimia político-religiosa

potencializou as energias normalizadoras totais presentes

anteriormente tanto no método científico empregado pelas as-

sociações de esquerda profanas, quanto na fé ativista dos

grupos políticos confessionais. Esta combinação não foi es-

tática. As energias atuaram recrutando e deslocando indiví-

duos para novos espaços, criando novas disciplinas etc. É um


movimento de forças que forma 'saberes', reelabora

'verdades', não só regularizando ou tornando dóceis seus

'soldados', mas, neste caso, exigindo deles uma ação metó-

dica, constituindo-os 'sujeitos' militantes.

É neste sentido que as análises de Foucault sobre o

poder disciplinar e pastoral podem ser bastante úteis para

pensar a constituição do militante (FOUCAULT, 1977, 1988 e

1990). Não podemos contudo esquecer a especificidade do

nosso objeto: as energias que circulam na igreja católica

progressista não formam simplesmente um sujeito dócil e pas-

sivo. Tampouco devemos nos iludir com a idéia de que este

sujeito se autoconstitui livre das relações de poder e saber

disciplinares, ainda que possamos surpreendê-lo em

'práticas' não imediatamente controladas pela instituição

católica.

Seria correto afirmar que a mobilização do católico

advém da confluência de forças político-religiosas que o in-

terpelam e o atravessam, requisitando-o para ampliar as suas

fronteiras e multiplicar as suas possibilidades de ação. Com

isto, ser cristão passa a significar: participar de reu-

niões, planejar atividades, elaborar métodos, avaliar resul-

tados, convocar outros fiéis, comandar, obedecer, conflitar,

debater, corrigir percursos.

Estes novos rituais fornecem material para a

produção de 'verdades' que ampliam os exercícios de poder.


Então, a ciência não é causa da esquerdização da JUC, mas um

dos instrumentos estratégicos que entram na composição de um

circuito ótimo capaz de produzir e reproduzir poderes. O sa-

ber científico sobre a sociedade, na sua vertente marxista

'engajada', não só permaneceu no meio católico, mesmo após a

extinção da JUC e do MEB, como ganhou mais espaço com a teo-

logia da libertação nos anos 70. Isto porque seu exercício

mostrou eficácia para arregimentar fiéis, constituir e pro-

pagar relações de poder. Muitos autores realçam a

'conscientização', o amadurecimento da reflexão científica

nas organizações leigas e na própria igreja, como fator de

peso para a opção socialista. Acontece que existe algo além

do caráter teórico, algo que ultrapassa o mero fornecimento

de um novo 'ideal' aos católicos. Esta ciência produz

'verdades' estratégicas para a constituição do 'sujeito' mi-

litante; e é também através do contato com os partidos de

esquerda, do aprendizado organizacional ali recebido, que a

ciência penetra nos grupos católicos. Ela interpela

materialmente o cristão, mobiliza-o tecnicamente e coloca-o

num novo espaço; localiza-o em relação à instituição e à so-

ciedade; combina-se com outros instrumentos e forma o

'sujeito' como receptáculo e, ao mesmo tempo, como ponto de

propagação de novas relações de poder positivo. Como intuía

Rosa Luxemburgo e o próprio Calvino, o militante para ser


eficiente precisa agir movido pela sua consciência e pelo

seu desejo, algo diverso da coação.

Enfim, este choque político-religioso proporciona

novas práticas, dinamiza as estruturas já existentes nas

organizações católicas leigas e as renova quando a fluidez

exige outros canais de transmissão do poder. A estruturação

hierárquica da JUC em equipes de militantes, equipes de

dirigentes, equipe nacional, não sofre grandes alterações

com a opção socialista. O conselho nacional, precedido de

encontros preparatórios, a presença do assistente

eclesiástico (representante da hierarquia junto ao movi-

mento) e a preparação de um programa nacional compõem uma

engrenagem adequada ao desdobramento das novas atividades.

Quando as práticas político-religiosas de esquerda emergem,

nas águas calmas da evangelização da sociedade, provocando

turbulências e rupturas, são estes corredores que permitem o

seu trânsito. Tais práticas denominam-se: 'construção do

Reino de Deus', 'formação na ação', 'vivência', 'pedagogia

libertadora', 'militante cristão como pessoa engajada',

entre outras.

Seu aparecimento está relacionado aos riscos que

ameaçavam a igreja católica e que exigiram a aproximação dos

seus fiéis junto às classes populares. Isto permitiu o

'acaso' do encontro das ações religiosas de acolhida ao po-

bre com as atividades revolucionárias de libertação do opri-


mido. Esta confluência não gerou uma rejeição, mas uma fusão

dinâmica, um novo discurso de construção do 'Reino de Deus'

e de mobilização para esta tarefa. Ao afirmar-se que o par-

tido de esquerda não confessional forneceu os instrumentos

de mobilização para os católicos progressistas, é preciso

indagar se, de algum modo, o inverso também não é verda-

deiro: Na montagem dos partidos modernos não foram in-

corporados os antigos aparatos de controle, disciplina e ar-

regimentação presentes na igreja? O fato é que a escatologia

política e o milenarismo religioso se encontraram e re-

sultaram numa força redobrada. E se a instituição total é o

espaço ótimo para a constituição do militante, como lembrava

Lefort, a igreja progressista, gestora de uma totalidade du-

plamente reforçada, forma um militante muito especial porque

mobilizado por forças redobradas, que o fazem duplamente:

consciente, desejoso, ativo e eficiente.

O choque de energias que transformaram a igreja

católica na década de 60 ocorre na JUC justamente porque

esta organização estava na rota das forças que iriam

colidir. A JUC, lugar de estudantes, era ponto de passagem

da ciência e da pedagogia, espaço também de jovens - alvo

predileto e momento privilegiado do engajamento apaixonado-,

exigente de cristãos disciplinados e crentes no transcen-

dente, lugar propício para fermentar a negação da sociedade,

sua crítica radical. Ali era o ponto ótimo para o encontro e


a reprodução das forças mobilizadoras, organizadoras e ati-

vadoras de determinados 'sujeitos'. É neste grupo que a

idéia de poder foi reelaborada e emergiu como 'serviço' ao

povo oprimido e à causa da construção do 'Reino de Deus'.

Neste espaço, o engajamento político do católico ganhou,

pela primeira vez, um estatuto de dever, a ponto de não se

aceitar mais o dualismo 'cristão e engajado': estes termos

passaram a ser vistos como indissociáveis. Da JUC migraram

militantes para as organizações populares católicas que ad-

quiriram um posicionamento de esquerda, como o MEB. "O MEB"

foi "uma das presenças mais marcantes da Igreja nas ativi-

dades de cultura popular e nos conflitos sociais anteriores

a 1964. Um significativo número de militantes da A.C.,

membros e ex-membros da JUC, trabalharam nele." (SOUZA,

1984, p. 65 e 66)

Se em 60 este deslocamento dos jovens católicos para

a esquerda tinha um caráter explosivo e de vanguarda, a

partir dos anos 70 assume contornos de mobilização de massa,

não contra, mas a partir de um investimento institucional

que valoriza o princípio da arregimentação normalizadora,

aperfeiçoa o conceito de organização, amplia e fortalece os

mecanismos de formação de um militante total duplamente

reforçado. Ou seja, ao reprimir nos anos 60 os organismos

leigos que se esquerdizaram, a instituição católica não

deixou de apostar nas potencialidades desta associação


energética. Instrumentos como a pedagogia, adequada para o

estabelecimento de relações de poder positivo, com sua

capacidade de corrigir, disciplinar, formar sujeitos,

receberam adaptações que potencializaram essas qualidades e

viabilizaram a constituição de um sujeito duplamente ativo:

o militante da esquerda católica. Desfez-se a separação

'hierárquica' presente na pedagogia tradicional entre alguém

que detém o saber e aquele que o recebe. No seu lugar

emergiu a noção, pretensamente igualitária, de 'vivência'.

Para o militante católico o conhecimento estava (e está) na

vivência de cada um, a qual deve ser apresentada e discutida

por todos. Esta noção parece ser uma ferramenta útil na

extorsão de material para a produção de mais saber e mais

poder. À medida que o indivíduo coloca a sua vivência em

discurso, elaboram-se os planos de ação, organiza-se e

regulamenta-se o processo de 'libertação' e classificam-se

ainda os estágios individuais numa escala de

conscientização. Enfim, a 'vivência' é remetida ao processo

de libertação e permite definir as estratégias de formação

ou aperfeiçoamento do militante. Esta pedagogia é peça chave

na construção do pobre como oprimido e na convocação do

católico como soldado para a luta emancipadora; e é elemento

fundamental porque seu funcionamento coloca o indivíduo num

circuito de saber-poder e o constitui como 'sujeito'.


Como dizíamos, diante da efervescência socialista

que cativava grupos católicos nos anos 60, a hierarquia

católica, receosa, assumiu uma atitude de repreensão. Mas em

nenhum momento a igreja oficial suspendeu a ação política

junto às classes populares. Quando a atividade militante da

JUC tornou-se mais radical, a hierarquia retirou-lhe o apoio

financeiro e logístico e, ao mesmo tempo, reforçou as orga-

nizações sobre as quais ela tinha maior controle e con-

fiança, como o MEB, alguns sindicatos rurais e as CEBs. A

igreja não titubeou em exigir dos militantes católicos lei-

gos fidelidade a estas agremiações. Os procedimentos da hie-

rarquia de contenção do ímpeto 'jucista' levaram alguns bis-

pos progressistas, como D. Cândido Padim, a falar de uma

contradição: "Vejo um paradoxo no fato, de um lado, de se

exigir a sacralização do temporal e, doutro lado, de se im-

pedir aos leigos esta tarefa. Não vejo, pois, possibilidade

de uma linha certa da A.C. se os bispos pretendem que os

membros da A.C. se abstenham de uma atuação na ordem tempo-

ral." (Apud SOUZA, 1984, p. 188)

Estes conflitos não devem ser vistos apenas como

manifestações de um poder repressivo planejadas por uma

instituição. O fato de a igreja não ter extirpado definiti-

vamente as potencialidades esquerdizantes do movimento cató-

lico leigo reforça a idéia de uma reação química, fora do

controle institucional, e, até mesmo, sem o predomínio de


um dos elementos reagentes sobre o resultado da experiência.

É mais pertinente afirmar que as dimensões, ou melhor, as

práticas políticas e religiosas encontraram condições ótimas

para se combinarem. Tal combinação normalmente se faz produ-

tiva na medida em que arregimenta indivíduos, exige deles

certas ações, solicita e expande o exercício de determinadas

forças, desenhando-as num formato que facilita sua repro-

dução; passa a tratar-se, portanto, de uma combinação repro-

dutiva.

Pode-se dizer, é claro, que toda religião, ou movi-

mento religioso, tem implicações políticas (conservadoras,

reformistas ou revolucionárias), por ação ou omissão. Mas é

diferente quando já não é possível distinguir entre prática

religiosa e prática política, quando não tem mais valor in-

vestigar qual 'instância' é determinante ou determinada,

pois ambas modificam-se, confundem-se, numa adequação mútua

que faz circular uma energia produtiva nova. A isto pode-se

designar afinidade eletiva político-religiosa. Não é sim-

plesmente o desdobramento de uma dimensão sobre a outra, é

preferível, para elucidá-la, utilizar a imagem do choque,

seguido da emergência súbita de energias criadoras de uma

nova dinâmica e de novos dados.

Situando-se nesta perspectiva é possível perceber

que os atritos dos jucistas com a hierarquia (que levaram

dissidentes da JUC a fundar a Ação Popular, AP) funcionam


também como material importante para a produção de 'saber'.

Estes embates informam sobre a reorganização da luta geral

para libertação, permitem uma redefinição dos inimigos e,

descontadas as baixas, motivam um fortalecimento das

posições e das disposições dos militantes.

A permanência da militância socialista, sua reelabo-

ração e aperfeiçoamento na igreja progressista dos anos 70,

indica a impossibilidade de se abandonar esta adequação

ótima e a necessidade de a igreja investir nestas práticas.

O próprio trabalho de Gomez de Souza informa que, em certo

momento do debate sobre a ACB (1965-66), a preocupação da

hierarquia era com o controle sobre as agremiações leigas,

com a obediência ao mandato que lhes foi concedido, enfim

com o respeito à autoridade e não com a extinção do mo-

vimento. (SOUZA, 1984, p. 227 e 228)

Pode-se vincular estas transformações da igreja,

seus deslocamentos e a emergência em seu seio de uma

militância católica de esquerda à tentativa desta insti-

tuição de modernizar-se, de adaptar-se e reposicionar-se

para o combate contra seus novos inimigos. As mudanças ocor-

ridas na igreja católica podem ser entendidas, ainda, como o

reflexo das próprias transformações e conflitos desencadea-

dos na sociedade. Realmente, nenhuma destas relações é, em

si, absurda, mas não nos agrada utilizá-las como causas de-

terminantes ou como explicações definitivas dos fatos. Os


acontecimentos que povoam a sociedade naquele período pode-

riam conduzir a instituição católica a atitudes diversas. O

avanço 'comunista', por exemplo, poderia levar a igreja a

retirar os militantes leigos da ação política e a exigir do

Estado uma repressão violenta. A ênfase da igreja nas rei-

vindicações de justiça social, a permanência da opção cató-

lica antiliberal e militante e a emergência da esquerda no

catolicismo sugerem que a eficácia desta combinação para mo-

bilizar e organizar os fiéis não devia ser dispensada. Ao

contrário, com todos os riscos, ali deveria se localizar,

nos anos 70, uma parte substancial dos investimentos da

igreja na ocupação do perigoso espaço popular. O que está

relatado a seguir exemplifica este procedimento, que acabou

contribuindo para a formação da igreja católica progressista

à luz da teologia da libertação.

III.5. - OS MILITANTES CATÓLICOS PROGRESSISTAS E

OS MOVIMENTOS SOCIAIS11

Operários metalúrgicos da grande São Paulo, após

longos anos de silêncio, tomaram as ruas das cidades e

ocuparam as manchetes dos jornais, mobilizados em movimentos

11 Procuramos neste item fazer uma breve cartografia

da participação dos católicos de esquerda nos movimentos

sociais das décadas de 70 e 80 no Brasil.


grevistas que reivindicavam não só melhores salários, mas

também mudanças na organização política e social do país.

Nas suas passeatas e piquetes o confronto com a polícia mi-

litar e até com o exército era inevitável; a batalha era tão

certa quanto o refúgio na igreja católica, que cedeu, além

do seu espaço físico para abrigar as assembléias dos

trabalhadores, o apoio institucional.

Esta imagem é apenas uma entre muitas que foram

desenhadas pelos movimentos populares organizados e seus

diferentes atores, que imprimiram um novo ritmo à vida

política no Brasil do final dos anos 70 e início dos anos

80.

Se voltarmos nosso olhar para qualquer um dos grupos

que compõem este movimento de massa, encontraremos outros

pontos de comunicação entre eles e esta parte da igreja ca-

tólica autodenominada progressista. Ao lado dos Movimentos

de Amigos do Bairro (MABs) vemos as Comunidades Eclesiais de

Base (CEBs) cultivando o solo da participação comunitária;

por trás da retomada dos sindicatos pelos trabalhadores com-

bativos encontramos as Pastorais Operárias (POs) pregando a

organização dos assalariados; junto aos trabalhadores rurais

na sua luta pela reforma agrária está a Pastoral da Terra

(CPT) proclamando a emancipação dos oprimidos; participando

da reconstrução da UNE observamos a Pastoral da Juventude

(PJ). A enumeração destes e de outros agrupamentos de orga-


nização e de luta política dos 'desfavorecidos' atesta a

eficiente ligação entre a igreja católica progressista e os

movimentos populares de contestação, relação que não se res-

tringe ao período acima mencionado, pois parece ter se via-

bilizado no cenário turbulento do final dos anos 50 e início

dos anos 60 e se prolongado até os nossos dias.

O estudo da ação política da igreja católica

progressista traz consigo a possibilidade de transbordar os

limites desta instituição e inundar de novos significados os

acontecimentos recentes que sacudiram a sociedade brasi-

leira. É no período que vai do final dos anos 70 até o iní-

cio dos anos 80 que a relação entre a igreja e os movimentos

populares de reivindicação ganha maior dimensão e dinamismo,

espraiando-se pela periferia dos grandes centros urbanos e

também pelo campo, principalmente nas regiões de conflito

pela posse da terra. É, portanto, ilustrativo cartografar

este período de lutas sociais e recolher dados preliminares

sobre a organização e mobilização deste 'exército católico

popular'.

Duas peculiaridades (aparentemente interligadas)

marcam e diferenciam a experiência brasileira: a primeira se

refere ao momento em que a mobilização política e popular

ocorre (nas sociedades do primeiro mundo este tipo de movi-

mento vinha sofrendo um declínio acentuado), e a segunda diz

respeito à nítida presença de um amplo setor da igreja cató-


lica apoiando e, de certo modo, investindo na organização

popular que, ao elaborar um discurso negador da situação vi-

gente e ao integrar entre os objetivos da sua luta a trans-

formação total da sociedade, ultrapassa as fronteiras dos

movimentos reivindicatórios reformistas. Certamente a igreja

católica não é a única responsável pela dimensão assumida e

pelos caminhos trilhados pelo movimento popular no Brasil,

mas poucos duvidam da sua significativa presença e da sua

grande parcela de participação neste processo.

Nos anos setenta, a ditadura militar ainda

impunha limitações e reprimia a participação popular efetiva

nas instituições políticas tradicionais. Com isto o espaço

típico de cultivo da religiosidade, o bairro popular, ganha

uma força e um sentido suplementares, e dentro dele as CEBs

aparecem como uma organização expressiva. As circunstâncias

da época fizeram deste espaço um local privilegiado para a

efervescência política ser constituída e/ou reproduzida.

Convém alertar de antemão que a vigência do regime de ex-

ceção não é suficiente para explicar esta atração energética

entre política e religião e a sua permanência.

Os exemplos de movimentos coletivos das populações

'marginais' que recebem o apoio da igreja progressista, ou

até se constituem por gestão das suas organizações de base,

são múltiplos. Nova Iguaçu, município que compõe a região

metropolitana do Rio de Janeiro, abrigou um movimento popu-


lar dinâmico e relacionado estreitamente com uma base cató-

lica. Muitos dos que militavam nos movimentos de bairros

traziam consigo a experiência adquirida nas CEBs. O movi-

mento de Nova Iguaçu surgiu da associação de um grupo de mé-

dicos (que prestava assistência às populações carentes) com

a igreja católica local. Aos poucos os cursos sobre saúde,

ministrados junto aos círculos bíblicos, clube de mães e

grupos de jovens, criaram as condições para que a mobili-

zação e a organização popular se expandissem a ponto de, em

1977, receber o nome de Movimento de Amigos de Bairro (MAB).

Em 1978 o movimento realizou assembléias com a participação

de até 3 mil pessoas e representantes de 38 bairros. Em 1980

já eram 90 as associações que compunham o MAB. Neste período

foi delineando-se uma luta mais ampla, que se evidencia pelo

o apoio que o movimento ofereceu às greves dos metalúrgicos

do ABC paulista e dos professores do Rio, prestando-lhes so-

lidariedade, fornecendo recursos materiais e até organizando

piquetes.

É possível avaliar a expansão deste movimento e

reconhecer a sua característica de mobilização de massa

através das estruturas organizativas que foram criadas no

seu interior: uma comissão coordenadora com divisão de

funções (entre elas a de constituir novos grupos de amigos

de bairro), um conselho de representantes, um jornal


informativo e um arquivo com material necessário para

subsidiar cursos de formação política.

Numa pesquisa realizada em 1982 em São Paulo com 40

líderes da 'comissão municipal de moradores em loteamentos

clandestinos', encontramos fortes laços entre a igreja pro-

gressista e a organização popular. Nas entrevistas a refe-

rência à igreja acontece sob diferentes formas: como uma im-

portante organização do bairro (incidência em 60% das res-

postas), lugar onde estes líderes tinham participação po-

lítica (35%) e também como ponto de apoio para este movi-

mento, que se iniciou em 1976. Diante dos dados levantados o

pesquisador conclui "que a Igreja é considerada um local es-

tratégico de convocação para o movimento, (...) a Igreja

surge como porta de entrada e suporte institucional do movi-

mento" através das suas 'organizações ramificadas' dentro do

bairro: Pastoral Operária, CEBs, grupos de rua etc.

(KRISCHKE, 1986, p. 189 e 190)

O Movimento do Custo de Vida (MCV) nasceu dentro

das CEBs em 1973 e difundiu-se por várias cidades instigando

a ação de diferentes grupos, os quais em 1978 chegaram a

coletar um milhão e trezentas mil assinaturas num abaixo-

assinado que exigia o congelamento dos preços dos alimentos

básicos. O MCV fez também uma pesquisa junto à população de

baixa renda para avaliar o impacto da carestia e fundamentar

as suas reivindicações. Em 1979 o movimento realizou o I En-


contro Nacional contra a Carestia, onde cerca de 200 repre-

sentantes de sete estados discutiram as futuras operações e

mobilizações: pressão sobre as autoridades políticas em Bra-

sília, manifestações públicas de protesto contra a carestia

e apoio à luta dos sindicatos dos trabalhadores. Este movi-

mento mobilizou justamente as camadas pobres da população

que sempre estiveram mais distantes de um engajamento dura-

douro nos empreendimentos coletivos. Singer vê como princi-

pal mérito deste movimento a sua condição de promover a edu-

cação política dos grupos 'com nível de consciência relati-

vamente baixos' (SINGER, 1980, p. 98). Esta eficácia pedagó-

gica dos grupos católicos progressistas junto às populações

carentes não é inteiramente nova. No final dos anos 50 e

início da década de 60 o Movimento de Educação de Base (MEB)

já aplicava uma pedagogia que visava a 'conscientizar' a

massa dos despossuídos sobre o seu papel na transformação da

sociedade.

A compra comunitária de gêneros de primeira necessi-

dade deflagrada em 1974 por iniciativa de uma CEB é outro

exemplo de mobilização que atinge proporções significativas,

pelo menos na cidade de São Paulo. Desta mobilização parti-

ciparam durante alguns meses cerca de 80 famílias de cinco

comunidades, cada qual tendo um coordenador. Foi eleito tam-

bém um coordenador geral, as reuniões eram mensais, e o tra-

balho proporcionou uma forte integração dos participantes.


A igreja católica esteve presente também no

Movimento de Transporte Coletivo de Vila Velha e no Movi-

mento dos Trabalhadores da Construção Civil da Grande Vitó-

ria, ambos levados a efeito no Espírito Santo em 1978. Uma

estudiosa destas mobilizações informa que nestes casos a re-

ligiosidade apresentou-se "como eficiente elemento de aglu-

tinação e de motivação à participação e à organização sócio-

política." (DOIMO, 1986, p. 102)

O movimento do transporte durou quase dois anos e

mobilizou 26 bairros com o objetivo de melhorar as condições

do transporte coletivo e derrubar o monopólio neste setor.

Para isto criou-se uma 'Comissão Geral' e as 'Comissões de

Bairro' (estas confundiam-se com as próprias CEBs). Uma pes-

quisa realizada pelo próprio movimento serviu de subsídio

para a elaboração de um documento sobre o problema do trans-

porte, documento este que foi aprovado numa assembléia com

200 participantes e posteriormente subscrito por outras 40

mil pessoas. A autora da pesquisa relata que a presença do

trabalho pastoral em 20 dos 26 bairros envolvidos no mo-

vimento é que garantiu a sua unidade. Inclusive o fim do mo-

vimento coincidiu com as gestões para torná-lo mais autônomo

em relação às organizações de base ligadas à igreja.

O movimento da construção civil eclodiu na mesma

época da mobilização relatada acima; foram eventos

praticamente concomitantes. Seu estopim foi a mobilização


desencadeada pela suspensão do transporte gratuito para os

trabalhadores, mas que encampou também as reivindicações

salariais desta categoria, chegando ao ponto de promover uma

greve 'explosiva' em setembro de 1979 e constituir uma

oposição sindical que venceu as eleições sindicais em agosto

de 1980. Também neste movimento os líderes aproveitaram a

experiência adquirida nos organismos de base da igreja

através da participação em reuniões, assembléias, cursos de

formação e do contato com técnicas pedagógicas de incentivo

à ação junto aos movimentos sociais.

É possível afirmar que não se trata de um mero apoio

da igreja às lutas sociais. A participação interna nos movi-

mentos populares que eclodiam parecia completar a consti-

tuição dos sujeitos presentes nas organizações de base liga-

das à igreja. Assim, para muitos estudiosos, as CEBs, e

principalmente a Pastoral Operária, ao lado das organizações

não confessionais, estão na origem do chamado 'novo sindica-

lismo', que ponteou as mobilizações de massa no país entre

1978 e 1981.

A estrutura organizativa do 'novo movimento

sindical', a sua capacidade de organização e a sua magnitude

podem ser avaliadas tanto pelas intensas greves que ocorre-

ram no Brasil entre 1978 e 1981, tendo como epicentro o ABC


paulista,12 quanto pela realização da Primeira Conferência

das Classes Trabalhadoras (CONCLAT) em agosto de 1981.

A igreja católica abrigou os trabalhadores em luta.

Mas além desta acolhida humanitária por uma igreja que se

mostrou há muito tempo envolvida nas questões sociais, ob-

servamos mais uma vez o engajamento microscópico dos mili-

tantes das organizações de base da chamada igreja progres-

sista, que, nas suas lutas pela transformação total da so-

ciedade, elegem como seu o inimigo do trabalhador e contri-

buem sobremaneira para a própria constituição deste 'novo

movimento sindical'. Ou seja, o apoio da igreja católica aos

trabalhadores no momento da greve, se colocando à sua dispo-

sição e sofrendo com eles a repressão e a violência do Es-

tado, oferece aos olhos de quem observa apenas os sinais su-

perficiais de uma combinação que é muito mais antiga, pro-

funda, polêmica, nada linear e que exige uma reflexão atenta

para ser compreendida.

12 Um levantamento detalhado sobre o número de

greves realizadas no Brasil entre 1978 e 1980, juntamente

com os dados sobre a intervenção estatal nos sindicatos e o

número de trabalhadores sindicalizados no Brasil, pode ser

encontrado no livro de Maria Helena Alves. (ALVES, 1987,

cap. VIII)
Telles é uma das pesquisadoras que tenta resgatar a

trajetória que conduziu aos movimentos de massa dos anos 70,

especialmente a oposição sindical metalúrgica. A partir da

sua análise é possível avaliar a presença das organizações

de base da igreja no trabalho que precedeu a referida mobi-

lização. Alguns depoimentos por ela apresentados indicam uma

aliança entre os militantes com experiência de luta em gru-

pos católicos que atuaram de forma contestatória nos anos

60 e foram reprimidos (como a JOC e a JUC) e os militantes

de esquerda que haviam participado das organizações não con-

fessionais. Um operário ligado aos organismos de esquerda

informa que "as idéias da Oposição Sindical começaram a ser

compreendidas como oposição à estrutura sindical. Ela come-

çou a se afirmar e aglutinar em torno disso o pessoal da es-

querda e aquele pessoal da Igreja que se radicalizou. (...)

A Igreja foi quem deu todo o suporte de infra-estrutura para

reorganizar o movimento operário. Os trabalhos que não ti-

nham este suporte eram trabalhos relâmpagos, surgiam e desa-

pareciam sem deixar nenhuma continuidade.(...) A continui-

dade que existia era ligada às comunidades de base da

Igreja." (TELLES, 1986, p. 50). Um militante da oposição

sindical, na região de Santo Amaro, chega a afirmar que em

determinados momentos oposição sindical e igreja se confun-

diam. Diz ele: "Na verdade, não existia Oposição separada de


Pastoral.(...) Até 1977, inclusive os setores de oposição

eram os setores da Igreja." (TELLES, 1986, p. 60).

A partir destes depoimentos é possível compreender

por que nas greves de 1979, por exemplo, construiu-se uma

articulação eficiente, ou uma rede funcional de alianças

(ALVES, 1987, p. 258) entre as organizações de base da

igreja progressista, os movimentos sociais e os sindicatos.

Esta conexão, que se mostrou ótima, possibilitou inclusive a

organização e a coordenação de uma greve dos metalúrgicos de

São Paulo contra a vontade do seu próprio sindicato, o qual

não se identificava com o 'novo movimento sindical'.

Esta breve descrição do cenário de mobilizações de

massa que marca a vida política brasileira no final da dé-

cada de 70 não tem condições de abordar outros tantos episó-

dios e organizações que fizeram parte deste movimento geral.

Instituições como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI),

criado em 1972, e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), fun-

dada em 1975, tiveram um papel relevante neste processo.

Poderíamos citar ainda o Movimento Contra o Desemprego, rea-

lizado em Curitiba no início da década de 80, como uma mobi-

lização importante e que ainda precisa ser estudada com cui-

dado. Contudo, se privilegiamos determinadas cenas e aspec-

tos desta ampla agitação, e se valorizamos a dimensão polí-

tico-religiosa destes movimentos coletivos, é porque neste

recorte apresenta-se a potencialidade de contribuirmos para


a difícil tarefa que é entender esta mobilização e as trans-

formações a ela relacionadas.

Compreender este momento da nossa história e as suas

variantes requer uma investigação sobre a afinidade polí-

tico-religiosa que perpassa este período. É preciso indagar

sobre as transformações no interior da igreja católica bra-

sileira enquanto uma instituição que, se desde o início do

século agia para mobilizar os cristãos, nunca antes havia

abrigado setores que priorizassem a politização dos cató-

licos pobres, com o intuito de transformar as estruturas so-

ciais a partir de uma perspectiva socialista.

Finalmente, acreditamos que a explicação sobre estas

transformações requer a investigação sobre o 'sujeito' que

atua nas dimensões política e religiosa, sendo que ao mesmo

tempo se constitui nesta combinação e a reproduz. Se quiser-

mos compreender o fenômeno moderno das mobilizações políti-

cas de massa no Brasil, é imprescindível estudar este mili-

tante que circula entre o profano e o sagrado. Este estudo

deve buscar na história recente os sinais da sua consti-

tuição e observar no presente os mecanismos que ainda operam

na sua formação.

Portanto, com base no conhecimento já produzido e à

luz do instrumental teórico metodológico fornecido

(sobretudo a partir de Foucault), o próximo passo deste tra-

balho consistirá em investigar as práticas de saber e de po-


der atuantes no campo de magnetismo entre forças políticas e

religiosas. Tais práticas, de natureza as mais diversas

(técnico-pedagógicas, científico-sociais, carismáticas, pas-

torais, disciplinares etc.) constituem o militante católico

de esquerda. Para conhecer o mecanismo de formação deste

militante totalizado por energias duplicadas, analisaremos

no capítulo IV, conforme explicitado acima, tanto os dados

contidos nas 17 entrevistas realizadas com militantes da

igreja católica progressista, na região de Curitiba-PR, no

decorrer de 1990, quanto as informações dos boletins, jor-

nais, livros, cursos e depoimentos, além de outros materiais

produzidos por (ou para) estes grupos de militantes em vá-

rias regiões do Brasil.

Acrescente-se que a pesquisa do processo de

formação e de mobilização do militante católico de esquerda,

sob esta perspectiva, pode contribuir com novas explicações

sobre os caminhos percorridos pela igreja católica e também

sobre o caráter dos movimentos desencadeados na sociedade

brasileira que tiveram a participação deste militante e da

sua tecnologia associativa.


CAPÍTULO IV

A PRODUÇÃO POLÍTICO-RELIGIOSA DO MILITANTE CATÓLICO

PROGRESSISTA

___________________________________________________

"O total é pavoroso." (FOUCAULT, Apud ERIBON, 1990,

p. 180)

Como dizíamos, um caminho interessante e pertinente

para complementar a investigação sobre esta afinidade ele-

tiva político-religiosa é promover a análise do militante da

igreja católica progressista hoje, observando suas caracte-

rísticas e sua atividade. Fazendo uma breve cartografia

desta militância podemos encontrar indícios das práticas e

forças que atuam nesta conexão entre fé e política, entrever

alguns dispositivos desta ação, seus instrumentos técnicos,

seus mecanismos de reprodução, bem como algumas de suas con-

dições de possibilidade.
O militante age e reage sobre um terreno interposto

entre o aparato institucional católico e a massa popular que

aparece como o objetivo final da sua ação. É justamente esta

situação intermediária do militante que nos permite a

eleição do seu campo de atividade como espaço privilegiado

para a investigação da tecnologia de poder, da racionalidade

que opera esta fusão entre religião e política. Este moderno

soldado da fé, inserido em grupos pastorais de leigos que

atuam no meio popular, movimenta-se no circuito composto, de

um lado, pela igreja, pelo clero, pelos teólogos, enfim pela

instituição eclesiástica e, de outro, por organizações polí-

ticas laicas, partidárias, sindicais, associativas. Investi-

gar a experiência militante é, portanto, um caminho válido

para elucidar esta combinação energética entre fé e polí-

tica. Através desta análise podemos apreender o significado

de algumas práticas que resultam de tal afinidade e a repro-

duzem.

O interesse em analisar o militante não se sustenta,

por exemplo, na suposição de que este sujeito seja o porta-

dor do sentido social da sua ação. O recorte desta investi-

gação se deu por ser o militante este instrumento vivo que

ocupa o espaço intermediário entre as instituições e parce-

las da população passíveis de ser organizadas e mobilizadas.

A mecânica que define a 'população pobre' como

vítima de uma exploração absoluta e, ao mesmo tempo,


passível de uma libertação integral, constitui o 'povo' como

'objeto' de uma velada intervenção tutelar e total. Nesta

engrenagem o 'soldado da fé' católico progressista opera e é

operado. Como todo sujeito, este militante, nos seus

deslocamentos, ocupa o lugar de quem exerce o poder e sofre

a sua ação. Mas a sua posição estratégica nos interstícios

destas movimentações político-religiosas o faz objeto

privilegiado de análise.

Numa entrevista, no final de 1978, Foucault se per-

guntava: "O que no mundo atual pode dar a alguém a vontade,

o gosto, a capacidade, a possibilidade de um sacrifício ab-

soluto? Sem que se possa supor nenhum interesse, nenhuma am-

bição, nenhuma sede de poder?" (Apud ERIBON, 1990, p. 182)

Esta questão, que emerge da sua experiência no con-

texto específico das lutas políticas na Tunísia de 1968,

pode muito bem ser transferida para o cenário brasileiro.

Devemos apenas dar-lhe um sentido mais específico: O que mo-

biliza um número significativo de católicos leigos para uma

ação político-religiosa integral e sem interesses pessoais?

A pergunta é pertinente porque, como veremos, o militante

católico progressista é levado a uma entrega total e abso-

luta à causa. Um envolvimento político-religioso cuja es-

pecificidade merece a análise detalhada que procurarei fazer

neste capítulo.
IV.1. - O MILITANTE TOTAL13

O caráter absoluto do engajamento aparece de saída

nesta entusiasmada descrição do militante feita por um teó-

rico e ativista da igreja católica progressista, num livro

introdutório sobre e para as CEBs:

"Os agentes pastorais leigos constituem uma nova

vocação ou um novo carisma da vida da igreja. Muitos deixam

família ou profissão para viver exclusivamente do trabalho

pastoral, quando a diocese tem condições de assumi-los.

Moram em bairros populares, ganham pouco mais que o salário

mínimo, assumem o trabalho com o povo como compromisso

prioritário de sua vida. Não são eles que coordenam as

comunidades, apenas assessoram, cuidando para que o povo

seja sujeito de sua história." (BETTO, 1981, p. 18)

13 A maioria dos dezessete militantes entrevistados

atuava em mais de um grupo ao mesmo tempo: associação de

bairro, sindicato, partido político, pastoral, CEB etc. Dos

entrevistados doze eram 'liberados', ou seja, recebiam

'salário' de setores progressistas da igreja católica para

se dedicarem exclusivamente à atividade militante. Os nomes

aqui utilizados são fictícios. A transcrição das fitas,

ainda que feita com base na norma padrão do português,

manteve, o registro oral e diversas marcas de oralidade,

quando pertinentes ao conteúdo expresso.


Também nos depoimentos prestados pelos militantes

aparece esta característica da entrega total. Ana, jovem mi-

litante 'liberada' para coordenar uma CEB, resume em poucas

palavras o conteúdo totalizador da 'fé participativa' que,

ao desdobrar-se, mais do que preencher toda a extensão da

sua vida, confunde-se com a própria vida.

"A dedicação é total. Você se envolve tanto que não

dá prá você separar a sua fé da sua vida."

Uma frase de Amaro (jovem militante que foi morar

numa favela de Curitiba) indica a dimensão da sua mi-

litância: "Meu lazer é estar na luta." Sem correr o risco de

exagerar, podemos dizer que o ideal de militância

apresentado por Guevara14 concretiza-se aqui quando Amaro se

mostra convencido a experimentar prazer na renúncia absoluta

de si, na sua entrega ilimitada ao outro, à luta e ao

sacrifício. Neste caso, o engajamento incondicional parece

dissolver os limites que separam o lazer e o trabalho

(político-religioso). As categorias, mais do que se

misturar, se fundem numa totalidade sem fronteiras. Alguns

militantes, talvez os mais ajustados, tendem a ver a

abnegação como lazer. A privação não aparece para estes

sequer como um momento que antecede e prepara o prazer, ela

é um estado permanente, e eles estão convencidos do seu

14 Ver capítulo I desta dissertação.


atributo de prazer. Aquele que vê na militância um prazer

não precisa diversificar sua ação para satisfazer diferentes

desejos, pois na dedicação à luta ele acredita preencher

todas as suas carências; pode então se entregar à atividade

político-religiosa de forma absoluta. Seus desejos

individuais, ao que parece, se dispersam na 'vontade'

coletiva.

Pedro, senhor de meia-idade que assessora uma pre-

feitura petista no interior do Paraná, ao falar da sua ati-

vidade, mostra-se sob alguns aspectos como um exemplo vivo

do militante descrito por Frei Betto: aquele que sacrifica

até a família em favor da sua prática.

"A época que eu fiquei mais diretamente na pastoral

da terra houve uma ajuda para a estruturação do movimento

sindical rural. Foi entre 84 e 87. Aí a atividade foi

bastante intensiva, foram fundados neste período mais ou

menos dezessete sindicatos em dezessete municípios

diferentes, com uma média de cinco reuniões em cada

município. Praticamente eu saía de casa para ficar o mês

inteiro fora, apesar de eu ser casado, e nós já tínhamos um

filho. Foi uma época bastante desgastante, mas eu acho que

foi importante, porque a gente conseguiu conhecer e ter um

certo aval da população. Teve comunidades que a gente

visitou casa por casa, e depois, nas reuniões, com alguma

pessoa da família, a gente acabava tendo um relacionamento


bastante íntimo com as pessoas, o que facilitava bastante o

trabalho."

A partir destes primeiros dados é possível perceber

que, para além da entrega total, a atividade política em que

se envolvem os católicos progressistas leigos tem caracte-

rísticas próprias. As práticas que animam este militante não

se reduzem aos exercícios de um poder político sobre ci-

dadãos, fundado na lei, limitado, portanto, pelas fronteiras

do Estado mantenedor da unidade territorial a partir das

estruturas legais. A natureza política da ação deste mili-

tante é outra. A análise da atividade do militante progres-

sista pretende esclarecer esta situação e também a exigência

de uma entrega absoluta.

A dedicação do militante é total. Ele é chamado a

cumprir uma prática de benignidade constante e que abrange

tarefas diversificadas. Este último aspecto serve inclusive

para que Clodovis Boff, teórico influente da igreja pro-

gressista, descreva aquele que vai agir junto ao povo. A es-

pecificidade deste agente está, segundo ele, "em sua dife-

rença pedagógica (no sentido amplo da 'paidéia' grega, como

formação integral do homem integral)". Após esta afirmação

ele traça um esquema onde este 'agente educador' é caracte-

rizado como "parteiro: auxilia a mãe a dar a luz"; como

"agricultor: cuida da terra para que produza bons frutos";


como "médico: trata do corpo para que conserve ou recupere a

saúde". (BOFF, 1988, p. 25-27)

A legitimidade destas metáforas fica evidente,

segundo o próprio autor, se nos fixarmos na diversidade de

funções contidas neste personagem. O militante católico

progressista preenche um papel ampliado, com funções

múltiplas. No seu 'trabalho pastoral' ele incorpora a alma

daquele que ensina, trata, cuida e auxilia. Este militante

ajuda cada indivíduo o tempo todo, visita casa por casa

(coisa impossível para o político tradicional), mas também

presta um serviço coletivo: ele guia a população pobre,

cuida para que siga o 'caminho correto'. Sua ocupação é com

a vida de cada um em seus diferentes aspectos e também com a

vida do 'povo', da coletividade pobre, durante todo o seu

tempo. Isto o faz total.

Nosso referencial permite reconhecer que não se

trata, pois, de ações ou de relações completamente inéditas.

Esta ocupação permanente com a vida de todos e de cada um,

este olhar especial e específico sobre a vida do indivíduo,

de uma ordem diferente do interesse pela generalidade do ci-

dadão, Foucault designou 'pastorado'. Este pensador ve-

rificou que o tema e a prática do 'pastorado' estiveram pre-

sentes em diferentes momentos na história do Ocidente e

apontou, de maneira preliminar, os deslocamentos, adaptações

e investimentos que possibilitaram a sua transformação em


uma 'tecnologia de poder pastoral' eficiente para o geren-

ciamento do homem moderno (FOUCAULT, 1990). A investigação

das operações que formam o subsolo deste encontro político-

religioso pode muito bem orientar-se por este referencial

esclarecedor.

O caráter pastoral da ação militante fica evidente

quando este agente afirma que o alvo da sua atividade é a

vida, porque a fé só existe, para ele, ligada à vida, e a

política é o meio por excelência para defender esta vida. A

comunidade é eleita como o espaço privilegiado para a ação

porque viabiliza este contato, esta atenção individualizada

e constante. O militante atua na comunidade e pela vida.

Esta importância de viver a comunidade aparece

quando Jair, rapaz que atua num centro de formação e numa

CEB, aponta as contradições que afetam alguns iniciantes do

movimento em que ele participa:

"O militante tem que ver como a comunidade vive, e

alguns não fazem isto. Eles vivem diferente. Eles estão em

todas as reuniões, só não estão na vida da comunidade. Tanto

que eles vivem a luta da comunidade, mas não se tornam

conhecidos da comunidade."

Jair, na verdade, critica aqueles que não reúnem num

só todo a sua vida e a vida da comunidade e, portanto, não

conhecem plenamente a comunidade nem se colocam o tempo todo

ao seu serviço.
Luiza, jovem que atua no PT e na PO, ao explicar

esta última, também demonstra preocupação com a vida de cada

um e da coletividade:

"A nível de Pastoral Operária existe uma luta muito

grande, porque ela trabalha com a questão dos grupos de PO

nas vilas, (quer) reunir os trabalhadores para discutir a

relação de vida do operário, a relação que tem com a fé dele

e a perspectiva de ser possível uma nova sociedade."

Ela enfatiza a necessidade do debate sobre a vida

como parte do processo de transformação social. Aliás, este

falar sobre a vida, como veremos mais adiante, tem um

significado especial.

Mesmo quando atua no partido, ou no sindicato, o

militante da igreja progressista procura não interromper sua

militância no bairro. É motivo de crítica dessas

instituições de luta a distância que elas mantêm da

comunidade. João, rapaz que ministra cursos de formação e

coordena a Romaria da Terra, além de outras organizações da

igreja progressista, usa este argumento para se convencer da

superioridade estratégica do militante católico capaz de

'ouvir' a experiência popular:

"O militante cristão é mais ouvido pelo povo, tem

mais sensibilidade. Numa reunião de iniciantes puxada pela

igreja, você tem canto, tem animação, tem celebração,

simbologia e por aí você questiona a prática deles (povo),


você começa pela prática deles, enquanto que numa reunião de

iniciantes do pessoal que não é ligado à igreja, o que

acontece? Eles vão discutir Marx, Lênin, filósofos, e isto

não anima, não dá convicção e não traz o pessoal pra luta,

... pode trazer os estudantes, mas o trabalhador mesmo,

não."

IV.2. - O ESQUECIMENTO DE SI

Um aspecto sobressai nesta caracterização do poder

pastoral que precede a análise dos seus mecanismos de ope-

ração: trata-se da intensidade com que o militante se ocupa

com a vida do outro. Esta é uma característica central da

ética do militante católico progressista - a atenção com os

outros. Sua conduta é impulsionada pela inculcação desse

sentimento agudo de solidariedade. Nada é mais revelador a

este respeito do que o abandono, pelo militante, da sua pró-

pria vida pessoal. Deste chamado irresistível a renunciar à

vida privada, Jair nos fala como se se tratasse de uma co-

brança que não dá trégua:

"Você renuncia a um monte de coisas para entrar na

luta. E você vai se enchendo de coisas, de responsabilidades

e não encontra tempo para o lazer, para refletir, para

pensar a sua atuação... Se você parar um pouquinho existe

uma cobrança."
A renúncia à vida pessoal provoca, em muitos casos,

um eclipse das relações afetivas, uma perda, que o militante

procura sublimar com a entrega cada vez maior à luta. É o

caso, por exemplo, de Amaro:

"Eu vejo esta questão do namoro, do casamento, como

prioridade; mas no meu caso, como eu, por opção, decidi me

dedicar a este trabalho com o povo, e voltado para as

crianças, adolescentes, então esta parte eu tento compensar

com outras coisas. A gente está abafando algumas coisas, mas

pra eu tentar estar mais livre, mais à disposição do

trabalho. Eu sei que é uma perda que a gente acaba tendo

também, daí eu procuro compensar com outras coisas dentro da

própria atividade."

Para a militante Luiza, esta situação chega a ser

incoerente, ou mesmo paradoxal, mas é a escolha de vida que

ela fez: negar-se para que os outros se afirmem, abrir mão

do seu tempo, da sua família, esquecer que é pessoa e mu-

lher, tudo para servir ao outro.

"É até uma contradição. A gente quer uma sociedade

nova, quer pessoas com tempo para si, para a família,

felizes, sendo que você está entrevistando uma pessoa que

trabalha o tempo todo.(...) É uma opção de vida que eu

tenho, uma opção de me dedicar quase exclusivamente à luta.

(...) Às vezes você mergulha tanto (na luta), que esquece

que é pessoa, esquece que é uma mulher."


Luiza percebe a contradição de abrir mão da sua pró-

pria vida para cuidar de outras vidas, durante a totalidade

do tempo, que já não lhe pertence. Também Regina, jovem que

passa por uma crise e aventa a possibilidade de abandonar a

luta, fala sobre o assunto e revela o sentimento de culpa

que muitas vezes irrompe quando o militante se preocupa con-

sigo mesmo: culpa por voltar seu olhar para dentro de si

diante de tantos que solicitam o seu cuidado, culpa por pre-

judicar o desempenho de uma engrenagem que precisa do seu

funcionamento.

"Essa coisa de ser um instrumento é complicada, você

acaba se achando egoísta quando valoriza o afetivo(...).

Você acaba se restringindo a um grupo de amigos muito

parecido com você, é um mundo meio fechado."

Simone, jovem que milita principalmente na CEB, após

relatar as suas diversas atividades militantes, também asso-

cia a entrega ao outro com a supressão do 'seu' tempo.

"O tempo pra parte do namoro, o casamento, a

família, é bem reduzido, é mínimo, a gente dá muito da gente

para os outros, sabe?"

No depoimento de Rodrigo, jovem coordenador da PO no

Paraná, transparece certa resistência a esta propensão de

suprimir o 'eu' em nome do 'outro'. Ele é o único militante

entrevistado que namora uma moça não-militante. Ele fala dos


problemas deste relacionamento, da dificuldade de dividir

com alguém a vida que, em grande parte, não lhe pertence:

"Às vezes dá uns quebra-paus por causa da questão da

militância... É complicado, ela pergunta pra mim por que que

eu não sou normal (risos). Eu explico pra ela que pra mim é

um projeto de vida, e que se a gente for viver junto entra

junto esta questão, e aí é complicado."

IV.3. - DESTERRITORIALIZAÇÃO

Outro procedimento comum na trajetória do militante,

e que integra este processo de rarefação, ou mesmo negação

de sua vida pessoal, é a transferência estratégica do seu

local de moradia, o que implica, muitas vezes, o abandono da

família. Luiza explica esta desterritorialização mostrando a

necessidade de o militante, como bom pastor, estar junto do

seu rebanho, desenvolvendo um trabalho pessoal no dia-a-dia,

estabelecendo um contato sem interrupção através da inserção

na vida do 'povo'. Este cuidado diário e contínuo exige, ge-

ralmente, a transferência de moradia. Morar com outros mili-

tantes também é visto como um recurso que faz o trabalho

frutificar. Este procedimento é mais um a contribuir com a

queda das fronteiras entre o público e o privado. Em casa ou

na rua o militante vive a sua prática com a mesma intensi-

dade. Os ambientes que ele freqüenta transpiram igualmente a

afinidade político-religiosa; seu trânsito se faz, o tempo


todo, entre espaços homogêneos que solicitam uma militância

contínua.

"É muito importante a região em que eu moro. Porque

eu moro na periferia da cidade. E é onde estão os operários,

os trabalhadores. Então, para o trabalho que a gente faz de

Pastoral Operária ou o trabalho de nucleação do partido, ela

é uma região mais favorável. O centro é diferente, porque no

centro você se isola à noite e no bairro tem aquela história

das comadres conversando por cima do muro, as crianças na

rua. Então é muito melhor para o contato pessoal. (...) Não

moro com a família porque eu fiz uma opção de morar em

fraternidade, que são pessoas com a mesma perspectiva, que

estão a fim de fazer um trabalho de inserção no meio

popular, que moram juntas e se ajudam."

João, ao justificar de forma resignada o seu distan-

ciamento da família, afirma que assumir uma nova causa im-

plica em mudar a própria maneira de viver. A transferência

de moradia é portanto apenas mais um elemento, ainda que es-

trategicamente fundamental, do conjunto de transformações

que sofre o militante no seu processo de engajamento.

"Este local que eu moro foi escolhido. Seria um

trabalho de inserção no meio do povo a partir da própria

realidade dos trabalhadores, onde eles vivem mesmo, né?

(...) Minha opção foi muito conflitiva, principalmente com a

minha família, que participava da igreja (católica)


tradicional.(...) Assumir uma nova causa é assumir uma nova

maneira de interpretar a sociedade e de você participar, de

você viver."

Pedro relata um episódio dramático que demonstra a

permeabilidade do espaço privado do lar, quando ele ainda

existe e 'resiste' à atividade militante.

"Em 88, pelos conflitos de terra que tinha e pelo

acompanhamento que a gente dava, a gente acabou também sendo

perseguido. Eles queimaram a nossa casa. Se nessa época a

minha esposa não tivesse pelo menos um senso de entendimento

dessas questões sociais, para vir e me dizer que a gente

superaria administrando de outra maneira, acho que eu

entraria em conflito até pessoal com a própria luta.(...) De

fato, eu acho que a militância tem uma compensação: que a

gente pelo menos pensa que vai acontecer alguma coisa. Eu

acredito que vai acontecer uma mudança na sociedade para se

ter uma vida melhor. Mas ela (a militância) é bastante

pesada, a gente sente na carne."

Neste depoimento aparecem imbricadas a 'consciência'

e a conduta militante. Num mesmo movimento Pedro mapeou a

realidade e agiu diante dela. Só a ausência deste 'senso de

entendimento' poderia provocar um conflito, uma resistência.

Como ele mesmo dá a entender, a militância está inscrita na

sua carne. E, como veremos, trata-se de uma inscrição ao


mesmo tempo de poder e de saber, que se faz no corpo e na

alma.

Ao complementar esta caracterização do militante com

uma análise da sua formação e atividade, teremos tornado

possível encaminhar algumas explicações sobre a combinação

político-religiosa que o envolve. É esta preocupação que nos

leva a perguntar: Qual é o processo que promove a captura do

corpo e da alma deste indivíduo? Como se dá esta entrega e

esta integração à luta?

IV.4. - MOTIVAÇÃO PARA O ENGAJAMENTO

A tendência inicial seria responder, em relação às

perguntas propostas no item anterior, que o primeiro passo

rumo à militância se dá por uma tomada de consciência sobre

a dominação social e política, pela aquisição de uma ideolo-

gia 'anti-status-quo', pela adesão a um projeto libertador,

a uma utopia. A aceitação deste caminho, contudo, nos recon-

duziria àquela limitada tradição promotora de um pensamento

tautológico, da qual desde o início deste trabalho tentamos

nos afastar. Ou seja, àquela concepção dualista, que opera

com os pares dominação e libertação, repressão e liberdade,

consciência e alienação e que pouco conseguiu explicar sobre

a degenerescência das organizações militantes ditas revolu-

cionárias, justamente por prender-se à idéia de um sujeito

consciente que constrói a sua história. Não bastassem estas


considerações de ordem teórica, alguns dados fornecidos pe-

los próprios militantes indicam a pertinência de um desloca-

mento de perspectiva e um aproveitamento dos conceitos ela-

borados por Foucault.

Vejamos o que alguns militantes falam sobre o seu

processo de engajamento. Heraldo, um jovem professor de

filosofia, que freqüentou o seminário e milita, entre outros

lugares, num centro de formação, conta que sua integração à

luta deu-se muito mais por uma angústia, uma revolta diante

das injustiças, do que propriamente por uma tomada de

consciência:

"No início era uma questão mais subjetiva a minha

participação. Mas duas coisas me marcaram muito: foi a morte

de Santo Dias e a morte de D. Oscar Romero. Eu nem sabia

onde era El Salvador e o que estava acontecendo lá, mas o

fato de saber que alguém tinha sido assassinado porque

estava comprometido com a luta de libertação do povo, aquele

troço me marcou muito. Era um processo que tinha muitas

variáveis, uma delas era uma angústia existencial mesmo,

pelo que eu estava vivendo (...)."

O depoimento de Pedro sobre seu engajamento também

é elucidativo. Ele explica que o seu envolvimento político

teve início quando se deparou com situações concretas de en-

frentamento, de iniqüidade:
"Em 1963, eu tinha quatorze anos, a gente começou a

se engajar já no grupo de jovens da JAC, Juventude Rural,

apesar de a gente não entender muito quais objetivos que se

queria (...). Aos poucos a gente foi se envolvendo na

questão política, por situações que aconteciam na

comunidade. Por exemplo, em 1969 o nosso moinho de trigo foi

fechado por determinação da própria polícia. A gente sempre

discutia que o problema das dificuldades que nós en-

frentávamos em casa não era só problema de cada família, mas

vinha de uma estrutura que estava se formando na sociedade.

E com isto eu fui despertando e fui me engajando noutros

movimentos. (...) Os problemas que tinha, as pressões contra

o sindicato rural, as prisões e o medo, isto foi formando um

tipo de visão da sociedade."

Não resta dúvida quanto à diversidade de caminhos

que se abrem diante dos cristãos para conduzi-los ao

engajamento político. É um processo de adesão a minorias

ativas, se não perseguidas, contrariadas por seus oponentes;

e, neste sentido, é o envolvimento, desde o início, em um

enfrentamento concreto, uma luta (de classes), uma guerra

(santa). Assim como na ação militar, o recrutamento para a

atividade militante efetiva-se pela clara visualização dos

inimigos por este 'soldado da fé'. As circunstâncias do

recrutamento militante são heterogêneas, mas pode-se dizer

que a vontade, o desejo, a mistura de sentimentos, como o


medo, a angústia e a ira santa, constituem um gancho que

facilita a interpelação do indivíduo e a sua captura pela (e

para a) prática pastoral. Regina, ao contar do seu processo

de engajamento, fortalece esta interpretação:

"Com 16 anos eu comecei a trabalhar num colégio

católico tradicional, e me afetava muito ver os mendigos na

porta da escola, e eu comecei a questionar os padres e eles

vinham e diziam: 'Isto é assim, veja bem e tal'. E eu ficava

muito angustiada e entrava em contradição, porque eu os

questionava, mas continuava trabalhando para eles. Eu pedi

demissão e aí eu comecei a me posicionar politicamente junto

aos grupos progressistas no bairro, nos enfrentamentos

concretos."

Não se trata de empreender aqui uma análise das ori-

gens históricas ou das razões desta angústia de alguns

cristãos diante do 'povo pobre'. Nem parece ser importante

descobrir se estes sentimentos e vontades seriam já o pri-

meiro efeito de uma intervenção da tecnologia pastoral. Útil

para esta investigação é demonstrar que o indivíduo que in-

gressa no circuito político-religioso não o faz por receber

de fora e de cima uma 'ideologia'. Tampouco dá este primeiro

passo por uma 'tomada de consciência' interna, repentina,

instantânea e definitiva. Fundamental é reconhecer que estes

sentimentos investidos pelas forças que operam no espaço da

igreja católica progressista recebem uma qualificação, tor-


nam-se objeto de debate e reflexão e constituem-se alvo das

ações de recrutamento.

Neste sentido, João fala de um outro sentimento que

está presente no militante e que de certo modo o impulsiona.

Trata-se de uma outra espécie de medo:

"O que existia no início (do engajamento) era o

medo, o medo do novo, isto que a gente vê em todo militante

e no próprio povo quando a gente vai fazer o trabalho de

base."

Logo a seguir ele afirma:

"Não adianta chegar numa Romaria da Terra, onde se

reúnem milhares de pessoas, e acreditar que você vai

despertar todo mundo. Você fala para os que estão mais

sensibilizados. Aquele que está angustiado com a realidade

(é) que vai voltar pra sua região e se engajar numa

organização de base."

O texto oficial da CNBB, que resultou da conferência

de Puebla, um documento que serve como referencial para os

militantes progressistas, também se ocupa deste tema e, além

de lhe dar um conteúdo mais preciso, recomenda aos cristãos

a atitude de compartilhar estas angústias:

"Preocupam-nos as angústias de todos os membros do

povo (...): sua solidão, seus problemas familiares, a falta

de sentido que não poucos vêem na vida. E mais especialmente

queremos, hoje, compartilhar as angústias que nascem de sua


pobreza. (...) Nesta angústia e dor, a Igreja discerne uma

situação de pecado social." (CNBB, 1985, p. 69)

IV.5. - A EXPOSIÇÃO DE SI

Existe, no entanto, uma distância entre o cristão

angustiado e o militante pastor político-religioso,

mergulhado de forma absoluta na tarefa de cuidar, velar,

ensinar e guiar 'o povo'. Esta distância não é o espaço

temporal de uma evolução da consciência, mas o intervalo

material ocupado por um processo produtivo. O que observamos

são espaços e operações concretas, laboratórios de interação

que recebem estes indivíduos que mais falam do que ouvem, ou

melhor, que se integram na organização à medida que falam. A

intensidade da sua entrega pessoal é proporcional à sua

exposição e não à introjeção passiva de um conhecimento, ou

à evolução de uma consciência supostamente capaz de

constituir o seu caminho.

No seu depoimento Luiza descreve uma tática de

recrutamento de novos militantes. A técnica que ela

apresenta, como veremos, não é a única, mas encerra alguns

pontos em comum com outros procedimentos de recrutar e

reproduzir o militante, quais sejam a exposição, a

manifestação, a narração pública que cada um faz dos seus

problemas, angústias, desejos e pensamentos. Deixemos que


ela explique este método que solicita a exposição do futuro

militante:

"É um trabalho de base, um trabalho de formiguinha,

e a PO é muito prática em fazer isto, porque a PO utiliza o

método da prática-teoria-prática, o PTP. Nós vamos fazer uma

visita para o trabalhador, você vai sentir a realidade dele,

saber mais sobre ele, vai convidá-lo para uma reunião, vai

discutir a situação de todo mundo, vai reconvidar. Lá ele

vai saber o que é PO, eles vão falar sobre o que eles

pensam, a situação de vida deles, e o grupo criou o primeiro

espaço de falação."

Este 'espaço de falação' se faz útil para que o

militante pastor, este sujeito intermediário, conheça o

rebanho que deve guiar e recrute novos pastores. Trata-se de

uma técnica eficiente, metódica, para a exposição do cristão

angustiado (militante em potencial) e também para a reexpo-

sição do próprio militante ao jogo de saber que o reproduz.

Esta atividade de conhecer-se e conhecer o outro está inse-

rida no conjunto estratégico onde as verdades do (e sobre o)

militante se constituem, ao mesmo tempo que o produzem em

operações de poder e saber.

Este jogo de 'exposição de si' tem lugar principal-

mente no espaço da comunidade, que é integrada por algumas

dezenas de famílias. Nela, preferencialmente, se desenvolve

a ação do militante católico progressista. A comunidade é um


solo propício para o cultivo de noções como a de ajuda mú-

tua, para a pregação plausível de uma igualdade fraterna e

para a tematização dos problemas da vida de cada pessoa e de

todos. O terreno comunitário, sendo próprio para o exercício

do poder pastoral, mostra-se rico para o desenvolvimento de

formas de controle. Esta característica foi percebida por

outros pesquisadores. No seu estudo sobre as CEBs, Ruth Car-

doso fala do controle comunitário e fundamenta suas as-

serções em depoimentos de membros das comunidades eclesiais.

"O outro lado dessa solidariedade entre iguais é a

existência de um controle rígido que propicia a

homogeneidade de crenças e de comportamentos. Os

participantes das CEBs dão muita importância tanto à intensa

amizade que une o grupo, quanto à moralidade que o sustenta.

Existe uma ética subjacente a todas as discussões e que se

reafirma na prática pela vigilância de uns sobre os outros.

A vida cotidiana, tanto dos participantes das CEBs, como dos

não participantes, é constantemente avaliada (...). É fácil

sentir seu poder para disciplinar os conflitos de todo dia e

para relacionar comportamento político e a moralidade das

pessoas" (CARDOSO, 1982).

Diante da evidência deste controle, convém

investigar os procedimentos que o possibilitam. Para tanto é

preciso dissolver as interpretações que lêem este controle

como um desvio, uma limitação, uma anormalidade que


dificulta um suposto processo de libertação, bem como

aquelas que o vêem como 'o outro lado', o preço que deve se

pagar pela igualdade. A decomposição destas representações

permite e solicita um olhar sobre a distribuição e a

operação estratégica das forças que circulam na comunidade e

nos seus arredores.

Dentro da comunidade, ou entre as suas fronteiras

abertas, microespaços são criados e recriados, e com eles

situações de interação. As CEBs, as diversas pastorais (do

menor, da mulher, da saúde, operária, rural, da juventude

etc.) e os centros de formação, entre outros órgãos de ação

militante, convocam suas reuniões, fazem suas visitas às fa-

mílias, prestam assistência, promovem cursos, coordenam mo-

bilizações, como romarias, passeatas, procissões, ocupações

de terra etc. Enfim, dividem, racionalizam os espaços de

atuação, de modo a atingir o maior número de pessoas com a

maior eficiência. Em cada um deste locais ou situações dis-

persas se desenvolvem as relações mútuas que devem ser ana-

lisadas para que se compreenda a atividade militante e o seu

caráter político-religioso. São, no entanto, o espaço e a

experiência da celebração que sintetizam os principais pro-

cedimentos contidos no que se convencionou chamar igreja ca-

tólica progressista.

A celebração é uma atividade que aparece com

freqüência, tanto nos depoimentos dos militantes quanto nos


documentos produzidos por eles ou para eles. Os militantes a

citam como uma prática reativadora, reanimadora, eficiente

para a aquisição de conhecimento, para o recrutamento e para

a 'conscientização'. A celebração pode ser vista como um la-

boratório privilegiado para a experiência alquimista de com-

binar política e religião e gerar mobilização, engajamento e

organização.

Heloísa, uma militante de meia-idade que atua

principalmente numa CEB, explica a celebração ressaltando o

cuidado com a vida das pessoas, que se efetiva pela

exposição e partilha dos problemas de todos e de cada um:

"As celebrações são preparadas pela paróquia. A

gente se reúne com dois ou três de cada comunidade (CEB) e

elabora um roteiro que é igual para todas as comunidades.

Roteiro para quatro encontros no mês. Então ali vêm algumas

diretrizes, a parte da acolhida, o ofertório, a comunhão, a

leitura do evangelho, tem a leitura da vida, né?, onde cada

um conta o que passou durante a semana, o que mais marcou,

então todo mundo leva aquela bagagem, e a gente compartilha

as alegrias e as tristezas. Muitos levam os problemas que

mais marcaram, então colocam tudo aquilo em comum e celebram

junto, que seria a parte da vida, a leitura da vida das

pessoas que estão lá. Então as leituras dos apóstolos de

hoje, da comunidade, e depois a leitura dos apóstolos da

bíblia. Depois tem a leitura do evangelho, é refletido sobre


o evangelho, traduzido para a vida de hoje, comparado. (...)

Problemas familiares são tratados, problemas de doenças, de

embriaguez há muito, às vezes a pessoa vai lá desesperada.

Então um sempre está tentando ajudar o outro."

A celebração, como se vê, ocorre com uma certa fre-

qüência, tem um planejamento prévio e segue um roteiro com

etapas parecidas com outros rituais da igreja católica. Mas

as semelhanças param aí. A celebração solicita que cada um

exponha publicamente a sua vida, a sua bagagem, conte seus

problemas. Ao revelar-se para os outros, o indivíduo (quem

sabe um futuro militante) tem sua palavra recodificada, a

narrativa da sua vida desencadeia uma avaliação à luz do

evangelho, da teologia, do marxismo e ao mesmo tempo reali-

menta estes saberes. A fala retirada do locutor adquire um

efeito e retorna para ele, que sofre uma intervenção sob a

forma de ajuda, de solidariedade normalizadora, de cuidado,

de consciência, de formação e até de recrutamento. A cele-

bração consegue totalizar os sentimentos e as vontades, a

partir de uma atenção e uma intervenção individualizada. Ao

militante não basta cuidar de todos, é preciso perscrutar

cada um.15

15 Entre os diferentes depoimentos que sublinham a

importância da celebração deve-se ressaltar ainda o de Ana,

que enfatiza a exposição de vida de cada um como momento


A intimação para uma exposição da vida e dos

problemas individuais, que o militante percebe como um gesto

espontâneo e não como uma operação de poder, tem uma

descendência da tradição ocidental da confissão, exercitada

e aperfeiçoada pelo cristianismo e que hoje se encontra

difundida na sociedade. Como nos mostra Foucault, a

incorporação do ato de confessar pela sociedade atual é que

possibilitou a sua percepção e aceitação como uma atitude de

exposição da verdade escondida, como uma experiência,

portanto, de libertação diante do poder que silencia, oculta

e oprime. Para escapar deste mito de libertar-se pela

fundamental desta cerimônia, cujo papel no recrutamento e

formação do militante não deve ser desprezado: "Eu atuo

preparando as pessoas, conscientizando as pessoas para a

vida, tudo que se refere à vida. Então nós temos as

celebrações, eu preparo os roteiros, é (tudo) muito ligado

com a vida das pessoas, conforme a nossa realidade. (...) É

celebração de vida mesmo. Ali na primeira leitura cada um

conta a sua história de vida, seus problemas, também o que

está acontecendo em Curitiba, no Brasil e no Mundo, aquilo

tudo é celebrado. O ofertório, os símbolos, os pedidos de

perdão e assim por diante. (...) Uma das prioridades das

celebrações é a família, os jovens, a formação. Nas

celebrações cada um coloca um assunto e o primeiro impulso

para a participação se dá por aí."


confissão, que alimenta as relações de poder com novas ver-

dades, faz-se necessário mostrar que a produção da verdade

"é inteiramente infiltrada pelas relações de poder"

(FOUCAULT, 1985, p. 60).

Esta técnica de exposição de si, que sofreu o

investimento tanto do cristianismo católico quanto do

laicismo burguês, encontrou na combinação político-cristã da

igreja progressista condições propícias para sua operação e

desenvolvimento. Trata-se de um procedimento que ganhou no

âmbito da igreja progressista um novo espaço de aplicação ao

transpor os limites do privado. Ao cristão progressista não

se solicita mais que fale no confessionário ou no

consultório, protegido pelas paredes e pela discrição

profissional. Esta ampliação ocorrida na prática da

exposição voluntária de si aparece como um aperfeiçoamento,

pois, ao mesmo tempo que se multiplicam os olhares sobre

quem confessa, aumentam os efeitos de poder da confissão.

A exposição de si, vista como ato de conhecimento,

aparece na igreja progressista sob diferentes formas e em

diversos momentos. Se a celebração é o lugar privilegiado

para a 'exposição de si', convém frisar que a confissão pú-

blica do sujeito não é solicitada apenas ali. Existem pro-

cedimentos onde o 'celebrar' corresponde apenas a uma pe-

quena parte de uma arquitetura política bastante complexa.


O depoimento da militante Heloísa sobre a celebração

e os outros depoimentos já apresentados mostram que a expo-

sição de si está ligada a uma idéia de 'conscientização' das

pessoas sobre sua vida. Conscientizar-se significa adquirir

os conhecimentos que relacionam, de uma certa maneira, os

problemas da sua vida com as 'estruturas' sociais à luz do

evangelho e da 'ciência'.

A produção destas e de outras verdades, e os seus

respectivos efeitos de sujeição, ocorrem nos 'espaços de fa-

lação', onde iniciantes e iniciados ocupam o lugar de

expositores e ouvintes, numa troca ininterrupta de posições.

Este 'diálogo', ao mesmo tempo que recebe energia de um con-

junto de saberes da igreja progressista, propicia o revigo-

ramento destes saberes. Ao falar, o indivíduo expõe suas an-

gústias, vontades e problemas, que a ele retornam sob a

forma de certezas que lhe desenham um caminho necessário,

único, e solicitam o seu engajamento absoluto. Trata-se de

um circuito que produz e reproduz um conjunto de verdades

sobre o 'povo' e sobre o 'militante', ao mesmo tempo que

constitui estes dois sujeitos como 'rebanho' e 'pastor'16 e

16 Reafirmamos aqui, pelas razões já expostas, nossa

intenção de concentrar as investigações nas atividades que

envolvem o militante (pastor) e de abordar de forma apenas

secundária e indicativa os procedimentos da igreja


define os papéis e atitudes do militante católico progres-

sista. A exposição pública e constante da consciência indi-

vidual é correspondida pela contínua constituição de um sa-

ber que opera a direção da consciência militante. Expor-se,

portanto, está vinculado à necessidade de conhecimento que

integra o sujeito militante. Necessidade esta sempre reno-

vada, porque o conhecimento de si próprio, dos outros e da

caminhada nunca está completo. E aquele militante que não

busca o conhecimento incorre em pecado, tanto quanto aquele

que não coloca o seu saber a serviço do 'povo'.

IV.6. - O SABER COMO DEVER

Conhecer adquire para o católico progressista, e

especialmente para o militante, o caráter de dever dentro do

dever. Para ele o conhecimento pode garantir o bom

desempenho das suas obrigações de servir, guiar, ensinar,

enfim 'cuidar para que o povo seja sujeito da sua história'.

Ora, como orientar o povo adormecido para que desperte e

atinja a condição de se autoconduzir na história, superando

os perigos e os inimigos, senão cumprindo o triplo dever de:

constantemente avaliar-se a si próprio como militante

cristão, conhecer sempre mais a realidade do povo e saber

todos os segredos do caminho que este povo deve percorrer.

progressista que possibilitam a constituição do 'povo'

(rebanho).
Como dissemos, o indivíduo não se faz militante por

uma 'tomada de consciência', por ter um objetivo consciente

a atingir. Ele reage diante das virtualidades que a prática

lhe oferece por vontade, desejo, angústia. A atividade do

militante não depende da sua consciência, a explica. Mas

isto não significa que o processo da sua constituição dis-

pense um conjunto de saberes. Muito pelo contrário, o recru-

tamento e a produção do seu corpo para a ação de militante

pastor está intimamente ligado à produção da sua alma, dos

seus saberes, das suas verdades. Nesta operação, em que po-

der e saber se implicam mutuamente, se dá a transformação do

corpo inerte em corpo militante, mobilizado, animado, ativo,

extremado, enfim produtivo.

Os procedimentos de saber que envolvem o militante

devem, portanto, ser entendidos neste seu entrelaçamento com

os procedimentos e técnicas de poder, nesta cumplicidade e

implicação mútua, um permitindo e reforçando a existência do

outro. A este saber, composto por noções teológicas, concei-

tos da ciência política e da filosofia marxista e idéias de

senso comum, deve-se perguntar, não se ele corresponde aos

fatos da realidade, não se é falso e dominador ou verdadeiro

e libertador. A questão que se deve pôr a este saber da

igreja progressista é sobre a sua positividade, sobre a sua

eficiência em produzir, recrutar, ativar, mobilizar,

disciplinar, enfim sujeitar o indivíduo constituindo-o mili-


tante. Fica suspensa portanto a interrogação epistemológica

e no seu lugar emerge a pergunta sobre a capacidade de

investimento político das verdades e dos seus procedimentos.

Não sendo este sujeito o resultado de uma operação da cons-

ciência, pois esta não é constituinte (VEYNE, 1982, p. 161),

importa investigar os processos e técnicas de poder que

constituem numa mesma operação o militante político-re-

ligioso e os seus saberes.

A mentalidade e a ação de guiar o rebanho estão

indissoluvelmente ligadas e constituem a prática militante.

Conforme o militante reage e preenche as virtualidades que a

prática de 'guiar rebanho' lhe impõe, constitui-se, no mesmo

movimento, a sua 'consciência'. Não tem sentido perguntar se

esta 'consciência' é mais ou menos falsa, e sim se ela é

mais ou menos eficaz no seu papel de reforçar a atividade

militante.

No depoimento do militante Jair transparece a

ausência de uma 'consciência' prévia ao engajamento, o

militante reage diante da situação de confronto, munido, no

máximo, de uma fé:

"Você faz uma avaliação marxista, mas não sabe que é

marxista. E só vai conseguir entender depois que estiver na

caminhada há muito tempo; só então é que você vai fazer uma

relação entre aquilo que você está vendo e Marx. De jeito

nenhum o líder da comunidade sabe, o líder da pastoral da


favela sabe. Ele tem a fé dele na transformação da sociedade

a partir daquela luta que ele faz, que é (baseado em) uma

concepção marxista, mas ele não tem noção."

O que se depreende deste depoimento é que o

militante, de acordo com a posição que ocupa e com os

desafios que a prática lhe impõe, tem a carga de

'consciência' necessária para sua atuação e correspondente a

ela. O líder lá da comunidade não sabe o que ainda não lhe

serve. Com mais tempo de 'caminhada' a prática, ao sabor dos

acontecimentos, exigirá dele novas atitudes, lhe fornecerá

novas ferramentas, lhe injetará novos saberes e lhe

reservará novas posições na hierarquia militante. Esta cons-

ciência, portanto, não tem a função de possibilitar ao mili-

tante uma compreensão da prática de poder pastoral que o en-

gaja. Tampouco esta consciência é concebida com a intenção

de falsear tal prática. Se a consciência militante, aliás,

como qualquer outra consciência, não percebe a gramática po-

lítica que a constitui, isto se dá, segundo Paul Veyne,

"porque ela é preconceptual. A consciência não tem

como função fazer-nos apreender o mundo, mas sim permitir-

nos que nos dirijamos neste mundo." (VEYNE, 1982, p. 161)

Quando João, a certa altura do seu depoimento, nos

fala a respeito da trajetória de formação do militante, es-

clarece ainda mais a questão. Nos seus primeiros passos o

militante atua seguindo seus sentimentos que, aos poucos,


são penetrados por um saber que lhe ensina a enxergar o ca-

minho único, o objetivo final, fora do qual não existe sal-

vação.

"No início é aquela vontade, aquela animação toda.

Com o passar do tempo você vai fazendo um trabalho mais

profissional, você vai se formando, se apropriando dos

conhecimentos e, claro, você vai cada vez mais tendo fé e

acreditando mais naquilo, porque você vai compreendendo cada

vez mais que não há outro objetivo, que é por aí... Você não

deixa de ter animação, mas você começa a enxergar mais as

coisas, porque o problema do mundo hoje não seria a

ignorância do povo, seria o não enxergar. Por que Jesus

Cristo veio à terra? Foi pra isto, quer dizer: 'Eu vim

restituir a vista aos cegos'."

Isto que João relata como um processo progressivo de

apropriação de conhecimentos pode ser descrito, de forma

mais apropriada, como a necessária constituição de uma men-

talidade militante em função dos desafios que esta prática,

de cuidar e guiar os cegos até a luz, vai lhe apresentando.

Esta mentalidade militante, passível de um recorte abstrato,

está concretamente vinculada e em interação com procedimen-

tos singulares que ocorrem em lugares bem determinados. A

prática de poder pastoral que se atualiza na igreja progres-

sista, portanto, emerge em espaços próprios (como o da comu-

nidade) e opera por técnicas precisas, não integralmente


inéditas. Nelas os indivíduos são solicitados a se expor e

geram então a matéria que, numa correlação com noções teoló-

gicas e conceitos forjados pelas ciências humanas, vai re-

ceber um rosto próprio, constituir um campo de saber cujas

verdades permitem a redistribuição afinada das próprias re-

lações de poder pastoral.

Por ser responsável o militante deve conhecer, e

quanto mais ele conhece, maior é a sua responsabilidade.

Conhecimento e responsabilidade (político-religiosa)

sucedem-se e reforçam-se num ciclo onde não é possível, nem

necessário, estabelecer qual elemento é o determinante. Im-

porta verificar como esta conjugação magnética entre conhe-

cimento e responsabilidade se movimenta no circuito polí-

tico-religioso que a engloba, e como, nestes deslocamentos,

se agrega a outras verdades, produzindo efeitos de mobili-

zação, controle, organização e normalização.

IV.7. - O DEVER DA AÇÃO

É nos constantes momentos de avaliação de vida, de

exame público de consciência, de inquérito sobre seus atos,

enfim, nas situações de (re)conhecimento, que o indivíduo é

responsabilizado e, ao tornar-se presa da responsabilidade,

constitui-se progressivamente militante.


Nos depoimentos dos militantes emerge constantemente

esta noção de dever, de responsabilidade de alguém que as-

sume a participação como um compromisso de vida.

"Participar das Comunidades Eclesiais de Base é uma

escolha, mas é, antes de tudo, um compromisso, é uma

celebração da sua fé e da sua vida." (ANA)

Este compromisso exige uma prestação de contas; o

não cumprimento deste dever implica incorrer em pecado. Para

o militante progressista, ser católico consciente e não ser

ativista é o mesmo que pecar por omissão. A inércia diante

do pecado (objetivo) social constitui-se em pecado

(subjetivo) de omissão. Sem dúvida esta concepção de pecado

é mais um elemento que contribui para a produção do mili-

tante como agente, ou mais do que isto, como ativista, con-

forme pode-se observar ainda no depoimento de Ana.

"(Quando) você assume um compromisso, se você não

cumprir tudo isso o pecado é seu, um dia você vai ter que

prestar conta disso." (Ana)

O comentário de Dionísio, rapaz que começou sua mi-

litância na Pastoral da Juventude e hoje atua na Central

Única dos Trabalhadores (CUT), também traz a idéia da mili-

tância como um compromisso inscrito na própria vida e do

qual não se pode escapar.

"Eu não colocaria no nível do sacrifício aquilo que

a gente faz; eu coloco mesmo numa questão de trabalho, de


compromisso, de necessidade de você assumir um compromisso,

como uma trajetória na tua vida que você tem que cumprir."

Esta noção de responsabilidade está intimamente

associada à idéia de culpa pela dimensão social que o pecado

assume. O militante cristão incorpora uma parcela individual

de culpa pelo que acontece na sociedade. Este combatente da

fé se vê responsável porque também é culpado e se não assume

esta dívida social, se não age, mesmo estando consciente

dela, afunda em mais pecado.

Regina, no seu depoimento, também explica esta

responsabilidade como uma culpa social que incomoda,

angustia e ao mesmo tempo apaixona.

"No meu caso foi precoce esta consciência, esta

preocupação social, e isto foi tomando muito tempo e também

a paz de espírito. Você acaba assumindo uma culpa, todos nós

temos uma culpa social, daí a angústia e ao mesmo tempo o

amor que isto implica. Por isto a rejeição deste povo nas

últimas eleições (eleição de Collor em Dezembro de 89)

marcou muito a minha vida."

O teólogo Clodovis Boff chama a atenção sobre o

'pecado social' e o vincula à necessidade de conhecer. Se-

gundo ele, a princípio as pessoas não têm culpa quanto a

esta dimensão social do pecado, pois ela é autônoma e se

impõe a todos. Mas se os cristãos, enquanto agentes sociais,

atuam a favor dessa estrutura, então se tornam responsáveis.


"Existe portanto um dever ético de informação, de instrução,

de conhecimento e de ciência," e, mais adiante, "(...) temos

a obrigação de nos instruir para estarmos dotados de uma

consciência correta." (BOFF, 1978, p. 176)

Através dos diferentes depoimentos apresentados é

possível perceber que ao militante cristão não basta o

esforço de conhecer as estruturas sociais do pecado e evitar

uma ação a favor delas. Ao militante impõe-se ainda o dever

de agir, na proporção do seu conhecimento, pelo fim destas

estruturas promotoras do pecado social. Responsabilidade,

conhecimento, ação - a engrenagem da militância pastoral vai

incorporando novos elementos e procedimentos, num jogo dia-

lógico de reforço mútuo.17

17 Esta concepção fundamental de pecado aparece na

maioria dos depoimentos. Os militantes vinculam o pecado das

injustiças sociais ao pecado individual do não-engajamento,

da não-ocupação com a vida do outro, ou mesmo da ausência de

convicção na luta. Vejamos alguns exemplos: "Pecado é você

não dar condições de vida para cada pessoa que existe por

aí. (...) O abandono da luta sem nenhuma justificativa, pra

mim, isso também é pecado." (Roberto, rapaz que atua

principalmente na Pastoral Operária.) "Pecado mesmo é a não

participação do povo, o povo não atuar, é o pecado social

que está aí, né? É o trabalhador ganhar esse salário mínimo


Três depoimentos aparecem como exemplos ilustrativos

deste jogo político-religioso composto por elementos que se

implicam e se reforçam: o reconhecimento da própria culpa, a

exigência de saber e o dever de se empenhar na tarefa de

ajudar, informar e organizar 'o povo'.

"Eu me sinto muito responsável e devemos ter esta

responsabilidade, que seria a solidariedade, o estar junto,

o informar, o organizar; precisa ter alguém assim." (Anita)

e também quando companheiro trai companheiro, por exemplo,

numa greve." (Anita, jovem que coordena algumas CEBs.)

"Pecado pra mim é quando a gente não se preocupa com a vida

dos outros. A gente houve falar no corpo de Cristo, na

hóstia, mas às vezes eu estou preocupado com o corpo de

Cristo, mas não estou preocupado com o corpo do meu irmão

que não tem terra, não tem casa, é violentado. Então toda

vez que a gente não se preocupa com o corpo do irmão mais

necessitado, pra mim este é o maior pecado que tem." (Amaro)

"Tem lá nos mandamentos não matar, não roubar, eu não

preciso dar um tiro numa pessoa para matar ela, basta eu

pagar um salário baixo. São os pecados sociais, esses são os

pecados. Quando eu me nego a participar de um trabalho,

quando eu retardo uma caminhada, quando eu estou naquilo mas

não estou acreditando naquilo. Pra mim o pecado hoje tem

essa dimensão." (Dionísio)


"Jesus veio para que todos tenham vida. Então a

gente fica revoltado de ver a gente tendo alguma coisa e

muita gente que não tem nada. As crianças dormindo na rua,

pagando uma culpa que não é delas. Se eu pude estudar e ter

um pouco de consciência, então eu acho que é obrigação da

gente se organizar. (...) Então eu me sinto culpado, e esta

culpa me reforça para que a gente vá à luta e se esforce

mais." (Amaro)

"A gente vai crescendo, vai se conscientizando de

todo este sistema capitalista que está aí massacrando as

pessoas. Daí esta boa vontade que eu tenho de me informar e

passar isso para os outros, ajudar também que os outros

enxerguem.(...) Eu me sinto responsável como uma mãe que é

responsável pela educação dos filhos." (Simone)

O militante católico progressista é impelido, então,

para uma ação que não se reduz ao aspecto caritativo. Não

obstante o militante não se furte a prestar assistência aos

necessitados, sua responsabilidade para com o destino de to-

dos e de cada um lhe impõe uma atividade política. Seu dever

é agir para a transformação total da sociedade a partir de

uma organização política, já "aqui na terra", dos cristãos

pobres e sofridos. O militante não descarta a ação assisten-

cial, mas a reveste de um significado político-pedagógico,

como fica explícito no depoimento de Heraldo. A assistência,


para ele, deve ser uma etapa no processo de organização do

'povo' para a transformação da sociedade.

"Essa era uma discussão que a gente travou por muito

tempo: que você não podia entrar no assistencialismo, tinha

que ter uma pastoral transformadora. Mas quando você tem uma

pessoa do lado da tua casa que não tem o que comer, você vai

fazer o quê? Passeata? Não tem jeito. Tem que prestar

assistência. Agora, você tem que fazer disso uma atividade

pedagógica, para a partir desse relacionamento você poder

desenvolver uma organização que possibilite a elaboração de

uma consciência sobre a necessidade de mudança."

Em seguida ele acrescenta:

"Quando você olha para uma pessoa que precisa de

você, que te apela, você não está olhando para uma classe,

você 'tá olhando para um ser humano de carne e osso que nem

você, e você não pode negar isto (ajuda), a menos que você

tenha matado a sua dignidade humana, a menos que você tenha

sido já destruído pelo sistema. Para ser um verdadeiro

revolucionário você tem que ter isto, sensibilidade pelo

outro como pessoa."

De forma alguma a responsabilidade de guiar o povo

à salvação se limita a uma caminhada de orações, como um

modo de garantir, após a morte, um lugar na terra prometida.

Tampouco basta ao militante denunciar as injustiças e as

estruturas que reproduzem o pecado social. Ele deve agir


contra elas; a luta por justiça é um dever essencial do

cristão. Leonardo Boff, o teólogo da libertação mais citado

pelos militantes, enfatiza esta concepção: "Sem a pregação

da justiça não há evangelho que seja de Jesus Cristo. ...

Daí entendermos que se fala de dever. E um dever deve ser

cumprido. O não cumprimento de um dever assim grave, porque

essencial, é pecado mesmo quando praticado pelo bispo." Em

seguida ele reforça a idéia de que o agente leigo não deve

apenas denunciar as injustiças, mas principalmente agir pela

justiça. Ele tem o direito e o dever de fundar movimentos,

ou apoiá-los, em diferentes frentes: de justiça social, de

conscientização, de aprofundamento doutrinal, enfim, de li-

bertação. (BOFF, 1981, p. 42 e 50).

O encontro das práticas do catolicismo social com as

práticas de uma esquerda messiânica coloca para o militante

o objetivo da salvação de uma forma inédita e com um signi-

ficado muito especial. Para os católicos progressistas, sal-

vação significa o processo evolutivo de construção do Reino

de Deus enquanto uma sociedade totalmente renovada, da qual

emergirá um homem integralmente novo, capaz de vivenciar uma

liberdade absoluta e uma igualdade plena. O estabelecimento

deste 'reino de completa igualdade e liberdade' tem como

etapa a atividade político-religiosa de arregimentar, orga-

nizar, conscientizar e guiar progressivamente o 'povo de

Deus' rumo ao seu destino histórico-teológico.


A existência, para o militante, de um processo

histórico de salvação do povo oprimido, cujos segredos ele

deve conhecer, exige dele certos procedimentos de

intervenção junto a este povo. Em suma, salvar significa

engajar-se na luta para destruir as estruturas sociais do

pecado e construir progressivamente uma sociedade livre e

igualitária. Os instrumentos para desempenhar bem esta

tarefa estão, segundo os católicos progressistas, na própria

sociedade e em cada um, na vida, na fé, na política, no

evangelho e na ciência.

Existe, portanto, uma mudança, um deslocamento

quanto ao efeito dos procedimentos de poder pastoral que se

processam na igreja progressista em relação àqueles

proporcionados pelos exercícios e técnicas pastorais no

cristianismo primitivo. Neste, como nos mostra Foucault, a

prática pastoral atinge um objetivo: "Conseguir que os

indivíduos se dediquem à própria 'mortificação' neste mundo.

(...) Uma renúncia a este mundo e a si próprio: uma espécie

de morte cotidiana. Uma morte que supostamente proporciona

vida num outro mundo." (FOUCAULT, 1990, p. 87)

Na igreja progressista, ainda que o militante

renuncie à sua vida privada, o resultado da prática de

velar, guiar, enfim salvar o rebanho, não é uma rejeição do

mundo ou da vida cotidiana. Ao contrário, ocorre uma

valorização das coisas terrenas. Um exemplo desta diferença


está no fato de a morte adquirir um significado para a vida,

ou seja, para a luta de libertação. Isto fica evidente na

explicação que Heraldo dá sobre a igreja:

"Eu entendo Igreja como corpo místico (termo da

espiritualidade cristã), e o corpo místico é daquele que

está aí na luta, onde um sente que a vida daquele que morreu

ressuscita na vida daquele que continua lutando pela mesma

coisa. Esta igreja cresceu e se fortaleceu."

Também no depoimento do Sr. J. F., recolhido por Pe-

trini (PETRINI, 1984, p. 117), sobre a morte do operário

Santo Dias da Silva, é mencionada esta capacidade da morte

de dar sentido para a vida, dar ânimo para a continuidade da

luta:

"Para o Movimento Operário ele deu um exemplo, ele

morreu defendendo todas as pessoas, o direito de todos

(...). Para nós cristãos existem muitos exemplos, como por

exemplo o de João Batista, que morreu porque estava pregando

a verdade, mesma coisa com o Santo: ele é para nós santo

porque morreu em defesa dos pequeninos. Ele morreu lutando

pelo direito de outros, isso aí, dá ânimo, dá fé para a

gente lutar, dá coragem."

Uma publicação produzida pela pastoral operária da

arquidiocese de Vitória, intitulada 'Ferramenta', é dedi-

cada toda ela ao Pe. Gabriel Maire, morto em 89. Depois de

apresentá-lo como mais um mártir, o boletim enfatiza a


continuidade de quem morreu, manifesta na luta de quem

ficou. A morte não silencia os combatentes, ao contrário,

engaja-os ainda mais:

"A partir de hoje, Pe. Gabriel Maire, o Gaby,

continuará falando através de nós, a equipe de Ferramenta,

que levará adiante sua mensagem libertadora, todos os meses

lida nos grupos de nossa Igreja. Enganam-se aqueles que

pensam que mandando matar ouvirão o silêncio. Não ouvirão o

silêncio, mas o grito de todos nós, cada vez mais forte e

atuante."

Este resgate da morte para a vida presente demonstra

uma prática oposta ao velho significado da mortificação.

Como a salvação começa neste mundo, o pastor militante vê

aumentada a sua responsabilidade e multiplicadas as suas

tarefas. Ele não deve só arregimentar, cuidar, guiar, mas

mobilizar, organizar, recrutar, treinar novos soldados e

conscientizá-los sobre os caminhos da luta neste mundo. O

militante católico progressista deve agir politicamente no

mundo, interessar-se pela vida, não para mortificá-la, mas

para ativá-la. Logo, os deslocamentos que os exercícios pas-

torais sofreram até receberem o investimento da igreja pro-

gressista, e também em função deste investimento, implicam

um aumento no número de pontos de intervenção e circulação

de poder. É possível afirmar que quando, por uma série de

combinações, emergiu da prática pastoral um objetivo terres-


tre, ocorreu ao mesmo tempo uma propagação das forças que

nela operam.

No seu depoimento Luiza valoriza a igreja

progressista pelo seu distanciamento da mortificação, pela

sua ocupação com as coisas terrenas, e associa o tratamento

exclusivo dos problemas espirituais a um comodismo

reacionário.

"A igreja não pode estar afastada. Ela lá em cima:

'vamos tratar as questões espirituais e só'. O ser humano é

muito mais que isso, precisa de muitas coisas. (...) É uma

atitude cômoda se preocupar com outras questões (apenas

espirituais), como se o mundo fosse outra coisa. Aí tem uma

mentalidade super-reacionária, já é uma escolha política, a

escolha de uma linha. (...) Este objetivo que a gente tem lá

na frente, o Reino de Deus, é possível e é possível aqui e

agora."

Contra o comodismo e a inércia da preocupação

exclusivamente espiritual, o militante progressista

incorpora o dever de entregar-se, desde já, à construção

possível e necessária do Reino de Deus. A intervenção do

militante na realidade é pela vida atual, num sentido amplo,

em oposição a uma postura contemplativa ou a uma ação

caritativa impulsionada pela piedade.

Edson, jovem membro de uma CEB e de uma associação

de bairro, como todos os demais militantes, utiliza a parti-


cipação como critério de catolicidade. O militante explica

seu engajamento (político-religioso) pelo fato de ser cató-

lico, e o seu catolicismo se afirma pelo engajamento.18

"Ser católico é participar, não ter uma vida de

oração, mas ter uma vida de participação com o próprio povo.

Ser católico não é só ir à missa todo domingo, é ter uma

atuação contra a exploração. É viver uma vida em comunidade,

você é meu irmão, eu sou irmão dele, quer dizer, caminhar

junto."

Em seu depoimento sobre a especificidade da igreja

católica progressista João ressalta a sua penetração no

mundo terreno para conhecê-lo e transformá-lo, em oposição

às atitudes tradicionais, que são, segundo ele,

contemplativas e favorecem a alienação:

"O movimento carismático, por exemplo, é uma maneira

tradicional de viver a fé, muito ligado ao espiritualismo, à

religiosidade popular, à crença no Espírito Santo. O

problema que eu vejo de tudo isto é o não estar vinculado

com a realidade do povo. Seria uma igreja fora do mundo. A

18 Como veremos mais adiante, alguns militantes,

significativamente os que não acreditam numa expansão dos

progressistas dentro da igreja católica, preferem se dizer

cristãos a católicos. E, sonham com uma igreja ecumênica

progressista.
própria celebração deles é diferente, não leva em

consideração as questões sociais. Eu diria até que não é uma

igreja real, leva a uma alienação pessoal e não a uma

transformação radical da sociedade. A igreja progressista é

a igreja encarnada no mundo e não fora do mundo, isto exige

levar em consideração como funciona a sociedade, seus con-

flitos."

O enfrentamento dos conflitos seculares é para o

militante engajado na igreja progressista a forma de

'testemunhar' a sua fé e a sua condição de cristão. Ser um

soldado no combate diário para a construção do Reino de Deus

é a maior prova de virtuosismo cristão. O ato de reconhecer-

se responsável pelo pecado social não é suficiente para sua

expiação; faz-se necessário este testemunho de fé através da

luta concreta que exige o conhecimento sobre 'como funciona

a sociedade'. Uma cartilha confeccionada por uma PO de Curi-

tiba, para servir de roteiro nas reuniões, traz o seguinte

trecho, seguido da recomendação de leitura e debate:

"A Pastoral Operária é um meio pelo qual, (sic) nós

trabalhadores cristãos podemos testemunhar nossa fé no meio

de nossa classe. 'A fé sem obras é morta'. O operário que

não assume nenhuma luta pela justiça e fraternidade com seus

companheiros não é cristão."

A culpabilização do militante, como dissemos,

reforça seu engajamento. Entretanto, serve também para


colocá-lo como modelo a partir do qual desenvolve-se uma

cobrança sobre aquele cristão que não assume a sua culpa, a

sua responsabilidade pelo pecado social, e que não

testemunha a sua fé pela luta.

IV.8. - O CORPO TREINADO

Para testemunhar sua fé o militante precisa encarná-

la, ou seja, incorporá-la. O militante deve abrir o seu

corpo e colocá-lo totalmente à disposição do treinamento

para a batalha. Neste sentido um caderno de orientação edi-

tado pela Pastoral da Juventude do Paraná enfatiza o corpo

como elemento da experiência militante.

"O compromisso de Jesus com seu povo e sua história,

leva o jovem a experimentar uma FÉ ENCARNADA e

comprometida." (destacado no documento)

O corpo do militante é o veículo, o instrumento para

a militância. Ele deve ser moldado, torneado, enfim qualifi-

cado para melhor desempenhar o seu papel. Regina, que na

época do seu depoimento manifestava uma resistência a muitos

dos 'procedimentos' militantes, falou da culpa que emerge

quando o militante usa seu corpo para uma atividade fora da

luta:

"Esta coisa de ser instrumento é complicada. Você

acaba se achando egoísta quando valoriza o afetivo."


A operação que faz seu corpo útil permite ao

militante olhar, cuidar, tratar do corpo do outro. Num texto

que originou-se de uma palestra proferida na Catedral de São

Bernardo do Campo na Semana do Trabalhador de 1988, e que é

usado para 'reflexão' nas atividades militantes, é enfati-

zada a necessidade de educar não só os espíritos, mas também

formar os corpos e treinar as vontades, treiná-las, note-se,

pela disciplina do corpo, vista aqui como um instrumento ne-

cessário ao processo de libertação:

"Corpo e espírito formam uma unidade que somos nós

enquanto seres humanos no mundo e na História. (...) Quem é

que já teve, na sua educação na escola tradicional, uma

verdadeira educação sobre o corpo? (...) E onde é que, nos

programas de formação dos trabalhadores, a gente encontra

qualquer formação do corpo equilibrada com a formação da

mente? (...) Nós achamos que formar o trabalhador é formar a

cabeça do trabalhador, como se a cabeça fosse o trabalhador

inteiro! E o resultado é que deixamos de lado outros

aspectos fundamentais do trabalhador, da trabalhadora e de

nós próprios, educadores. Que aspectos fundamentais? ... a

emoção, o sentimento,... a intuição,... e a vontade (...).

Para treinar a vontade precisamos de um longo trabalho para

disciplinar a vontade. A liberdade só se conquista com muita

disciplina." (ARRUDA, 1988 p. 6 e 7)


Treinar o militante como um todo, formá-lo,

significa submeter o seu corpo à análise e ao adestramento,

integrá-lo ao ritmo e ao tempo da organização, proceder a

extração dos seus saberes para colocá-los numa ordem e

vinculá-los aos 'conhecimentos' sobre a salvação. Enfim,

formar o militante significa aumentar suas capacidades

(corpóreas e espirituais) ao mesmo tempo que se multiplicam

os seus efeitos de utilidade.


IV.9. - A REVOLUÇÃO INTEGRAL

Enquanto um 'instrumento' desempenhando a sua

tarefa, o militante faz incursões no espaço partidário e

sindical. Mas isto só acontece porque o partido e o

sindicato se apresentam para ele como meios estratégicos

para a construção do Reino de Deus. A ação política

organizada é o instrumento legítimo, necessário e eficaz na

luta para a salvação. O depoimento de Roberto apresenta o

partido, o sindicato e o próprio movimento popular como

'ferramentas' úteis à luta (maior) político-religiosa.

"Enquanto cristão a gente também tem que ter uma

ação, a gente tem que se envolver nisso. É papel da igreja

denunciar as injustiças que estão aí; também anunciar, e pra

anunciar é necessário assumir algumas ferramentas, o próprio

sindicato, o movimento popular, o partido, não querendo

cooptar pra si, mas em benefício do povo."

As instituições políticas são entendidas pelos mili-

tantes como um meio provisório de luta, porque existe uma

forte tendência na igreja progressista em ver a nova socie-

dade a ser construída como totalmente livre. No Reino de

Deus, que se constitui pela luta política dos cristãos orga-

nizados, os homens viveriam em plena igualdade, o que

dispensaria as instituições políticas. Heraldo é um mili-

tante que percebe, ainda que a seu modo, este problema da


supressão da política pela suposta anulação completa dos

conflitos.

"Você transforma o conceito de Reino de Deus em

socialismo, que é o que normalmente acontece com o pessoal

que está aí na pastoral, e não faz uma análise crítica do

conceito do Reino de Deus. O Reino de Deus que eles têm é

uma sociedade ideal onde não existe conflito ou contradição.

A realidade histórica sempre tem o conflito. Então, como

você trabalha o fato de que este socialismo vai ser plura-

lista, democrático, vai ter a contradição? Esta é uma

dificuldade da militância no PT que vem dos quadros da

igreja. Na hora do debate, de assumir uma contradição, lutar

por um pedaço de poder, o pessoal não tem esta dimensão da

contradição política."

Muitos são os depoimentos onde transparece a idéia

de construir uma sociedade totalmente homogênea e

igualitária. A fala de João exemplifica bem esta tendência

que vê na construção do Reino de Deus a emergência de uma

sociedade absolutamente nova em toda a sua extensão.

"Ser militante é você ter a fé numa coisa muito

maior, no transcendental, quer dizer, você acredita na nova

sociedade, mas tem a compreensão que esta nova sociedade é

Reino de Deus, não passa só no campo político ou econômico.

Quer dizer, todo mundo vai ter melhores condições de vida.

Mas passa também por um novo homem e uma nova mulher e novas
relações entre as pessoas. A gente (militante cristão) tem

mais compromisso, porque a gente acredita em algo mais, numa

nova sociedade como Reino de Deus, não numa nova sociedade

só em alguns campos, como o campo político."

Devemos enfatizar como o militante, neste

depoimento, reconhece a potencialização (a totalização) do

seu compromisso e do seu engajamento comparando-se aos

militantes ateus, e como ele explica isto pelo fato de

acreditar numa sociedade totalmente nova. Este projeto de

construção de uma sociedade de liberdade total e igualdade

plena, orientado pela crença num 'saber absoluto', é

bastante explícito também nos textos produzidos pelos e para

os militantes. No caderno comemorativo dos dez anos de

existência da PO no Brasil lê-se o seguinte trecho sobre o

objetivo geral desta organização, onde o referencial

totalizador é flagrante:

"- Evangelizar - o povo brasileiro em processo de

transformação sócio-econômico, político e cultural -

anunciando a plena verdade sobre Jesus Cristo, a Igreja e o

Homem - à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres

- pela libertação integral do homem, - numa crescente

participação e comunhão - visando formar o Povo de Deus e

participar da construção de uma sociedade mais justa e

fraterna, - sinal do Reino definitivo." (CPO-NACIONAL, 1986,

p. 63) (grifo nosso)


Na sua palestra dirigida aos militantes católicos,

que se transformou em texto para 'reflexão', Marcos Arruda

comenta o seu trabalho na Nicarágua e exalta o fato de lá

existir a percepção de que a transformação deve ser total,

atingindo a vida humana em todas as suas manifestações e en-

volvendo a natureza sem deixar espaços vazios:

"Sinto que lá se percebe que o desafio não é só uma

revolução social, não é só uma revolução política, é uma

revolução da vida, é uma revolução integral, estão em jogo

todos os elementos que fazem parte da realidade humana e

natural da Nicarágua." (ARRUDA, 1988, p. 17) (grifos do

autor)

Num caderno feito por e para militantes cristãos,

Pedro Ribeiro de Oliveira também reforça a idéia que concebe

os mecanismos políticos como meios para construção de um

Reino que seria de liberdade plena:

"Os cristãos vêem no PT - como aliás noutras

organizações nascidas no Movimento Popular- um dos condutos

de atuação no processo social através dos quais vai se

realizando o Projeto do Reino que é a libertação de todo

tipo de opressão e iniquidade e a construção de uma nova

ordem humana e natural, onde a Justiça e a Liberdade sejam

plenamente realizadas." (OLIVEIRA, 1989 p. 34) (grifos

nossos)
Esta noção de processo gerador de uma sociedade de

plena liberdade e igualdade exige do militante cristão uma

atividade total, duplamente reforçada, política porque reli-

giosa e vice-versa. A colocação do objetivo último (reino de

plena liberdade) como resultado da superação, 'pelo povo'

organizado, da opressão político-social dá ao militante pas-

tor de hoje, em relação àquele do cristianismo primitivo, um

suplemento de responsabilidade, abre-lhe novas frentes de

engajamento, reforça o apelo ao seu 'corpo', ao seu 'tempo'

e às suas 'verdades' a partir mesmo desta valorização do

mundo.

O caráter total da missão e da entrega militante

também está expresso nos 'ensinamentos' de Clodovis Boff,

que vincula a luta pela 'libertação integral' a uma

atividade total, político-religiosa.

"De resto, a própria mística do trabalho popular se

funda numa visão geral do mundo e da história. A visão

pressuposta aqui é a de um mundo e uma história abertos ao

transcendente. É a de um humanismo radical, por outras, a de

uma libertação integral. Por isso, o trabalho popular, para

ser verdadeiramente político, tem que ser mais que

simplesmente político: tem que ser radicalmente humano e por

isso também religioso." (BOFF, 1988, p. 50)

Clodovis Boff também recomenda aos militantes a

valorização dos enfrentamentos locais enquanto etapas da


caminhada que levarão ao Reino de Deus. O militante deve

atentar para se os problemas específicos do 'povo' tomam o

rumo correto e ajudar na sua vinculação com a questão

universal e a luta principal. Cabe ao militante a tarefa de

direcionar a consciência e a ação no caminho correto.

"Quando se toma a questão da família, da escola ou

da saúde, acaba-se sempre levantando o problema do sistema

social vigente. (...) Quer dizer que um problema particular

é o caminho do universal. (...) Por tudo isso, o agente há

de estar extremamente atento a cada passo, a cada pequena

luta do povo, desde uma reunião participada, até uma marcha,

passando por uma ação de entreajuda ou a realização de um

projeto de promoção social."

Neste ponto ele recomenda que se siga o 'critério

básico':

"Que aquela ação vá na boa direção, isto é, que

signifique um passo em frente na linha da mudança do

sistema." (grifo do autor).

E mais adiante acrescenta:

"Valorizar as pequenas lutas não é nelas se

comprazer, mas considerá-las dinamicamente como degraus

necessários para uma ascensão maior. (...) O que conta não é

o passo como tal, mas sua orientação, isto é, sua articu-

lação com o projeto global da ação. O peso de uma ação lhe é

dado por seu rumo ou direção." (BOFF, 1988, ps. 90, 91 e 94)
Percebe-se que esta 'verdade' sobre uma luta maior

que submete os enfrentamentos específicos está acompanhada

dos procedimentos de observação, de vigilância, que

objetivam uma ampla integração e organização do 'povo', ou

seja, a sua transformação de massa dispersa, desordenada,

confusa, por que não dizer, perigosa, em 'povo' ordenado e

organizado. Clodovis Boff valoriza o fato de a organização

manter o povo unido e no caminho que o levará à conquista

final:

"Quanto às ações de organização, elas têm a virtude

de permitir a continuidade e a coesão da caminhada do povo.

Pois elas dizem respeito justamente aos instrumentos de luta

do povo e não às lutas parciais. (...) Assim, mediante a

organização, sempre somada a reflexão permanente, pode-se

manter a continuidade e o crescimento do trabalho." (BOFF,

1988, ps. 83, 84)

O 'militante pastor', portanto, deve conhecer o

'povo rebanho', sua história passada e futura e participar

da sua vida cuidando para que a caminhada seja feita com

correção.

Se por um lado o militante católico progressista

preserva do ascetismo a renúncia ao prazer e a tudo que

possa significar um desperdício de tempo e energia, por

outro, ele direciona a força que economizou não para a

contemplação, nem para o trabalho nas profissões e para ação


econômica, como o militante calvinista de Max Weber, mas

para a atividade intensiva de cuidar e organizar politica-

mente o 'rebanho de Deus' que está disperso, cego, desorien-

tado e desordenado. O conjunto de verdades que alimenta e é

alimentado pela prática pastoral reforça no militante a

'consciência' sobre uma evolução progressiva da sociedade e,

conseqüentemente, sobre o seu papel em cada etapa deste ca-

minho ascendente. A relação entre a necessidade de construir

uma sociedade totalmente nova e a atividade intensa e diver-

sificada do militante aparece no depoimento de Regina:

"A gente quer uma nova sociedade com um homem novo,

pleno, uma mulher plena, mas pleno em todos os sentidos. Não

só de pão vive o homem. Eu acho que isto, esta diversidade

dos cristãos, esta busca do pleno, contribui muito, é muito

importante pra própria criação da consciência militante. A

atuação deste militante cristão leva isto, esta sensibili-

dade, pro partido, pro sindicato, pra própria luta."

Também a entrevista de Heraldo é representativa da

ligação entre o projeto total, a amplitude da luta e a

atividade plena do militante. A tarefa de conquistar

mudanças gerais, o empenho para construir um reino, a

unidade e homogeneidade do inimigo, tudo solicitaria uma

organização capaz de englobar as lutas parciais:

"O discurso que a gente tinha junto com a comunidade

era o seguinte - por exemplo, na pastoral da saúde: que não


adiantava visitar, tratar e rezar pelo doente, porque só

isso não iria mudar a situação. Tinha que conseguir mudanças

de infra-estrutura urbana e para isto tinha que se organizar

como movimento popular de saúde para pressionar o poder

público. Mas só isso também não bastava, porque no fundo

quem administra o Estado está administrando em função do

interesse de uma camada que não é a população. Então a

população teria também que assumir o poder de Estado, e isso

significava também a militância num determinado partido.

Então estas três esferas eram complementares, o movimento

popular e a militância partidária se faziam por uma mística

que nos tinha levado ao trabalho pastoral, que era a

construção do Reino de Deus aqui."

Esta idéia de uma transformação integral da

realidade coloca em risco até mesmo a igreja católica

romana. O jogo que envolve a instituição católica não lhe

garante nenhuma certeza quanto ao resultado. Um exemplo

disto é a forte tendência entre alguns militantes de um

ecumenismo que os leva a se identificarem como cristãos, e

não como católicos, como já mencionamos, e ainda a

vislumbrarem no horizonte próximo a dissolução da igreja ro-

mana e a constituição, no seu lugar, de uma igreja 'total'

composta por cristãos de todos os matizes. Tendência expres-

sada no depoimento de Heraldo:


"Se você entende que igreja é instituição, é igreja

católica apostólica romana, então você vai ter que dizer que

dessa igreja não participam os luteranos, os metodistas e

outros. Se você entende que igreja é este corpo místico -

vamos usar este termo da espiritualidade cristã - no qual

todos participam, então a igreja passa a ser esta comunidade

em que participam luteranos, metodistas, católicos, em que

participam todos que estão comprometidos com esta luta. Esta

igreja independe do ritualismo, o critério pra se entender

como membro desta igreja é a vivência concreta da fé."

Esta disposição serve como exemplo para demonstrar

que a igreja progressista não é o efeito de uma artimanha

planejada racionalmente pela instituição católica, o que

inclusive esclarece as desavenças da hierarquia com os

progressistas. O fato de a afinidade político-religiosa

seguir a lógica do poder oferece-se como um caminho para

compreender os avanços e recuos da hierarquia católica

diante do movimento progressista. A instituição não tem

pleno controle do processo, não se apresenta como um

'sujeito' que impõe seus planos à história. Ela preenche as

oportunidades que a realidade lhe oferece e corre os riscos

do seu investimento. Os desdobramentos deste encontro

político-religioso nem sempre servem aos interesses da

instituição.

IV.10. - INSERÇÃO PLURAL PARA UM FIM TOTAL


Revestido desta responsabilidade de conhecer,

cuidar, formar, orientar, organizar, guiar e salvar o

rebanho, o militante pastor vê abrir-se à sua frente um

caminho imprescindível e eficiente para o cumprimento das

suas tarefas. Trata-se do procedimento da inserção na vida e

na história da comunidade. Inserido, o tempo todo, no maior

número de frentes possíveis (na associação de bairro, no

partido, no sindicato, nas organizações da igreja

progressista, nos movimentos sociais) é que o militante pode

desempenhar o seu papel político-religioso, testemunhar a

sua fé, saldar a sua dívida com o povo, expiar a sua culpa,

ou seja, pagar o seu pecado social.

Uma característica desta inserção, em relação a

outras investidas do catolicismo no campo social e político,

é que ela se apresenta como plural, diversificada, pois

admite a legitimidade e a especificidade do político diante

do religioso. Para o católico progressista não se trata de

fundar um partido cristão, ou exigir da democracia liberal o

reconhecimento da igreja como instituição política; tampouco

seu objetivo é reivindicar para a religião um estatuto

político ou exigir uma presença católica no Estado. Como nos

lembra Guilhon de Albuquerque (ALBUQUERQUE, 1980), esta

igreja brasileira preocupada com o pobre reconhece a

autoridade da República e aceita a democracia, enquanto

soberania popular, como forma correta de governo. Isto não


significa, entretanto, um declínio do catolicismo social

integral, mas a sua intensificação por outras vias. Para a

igreja progressista o cristão deve agir no mundo não só para

garantir direitos aos pobres diante do capitalismo selvagem,

ou possibilitar a constituição de uma ordem social, política

e econômica de acordo com os princípios cristãos definidos

pela igreja. O militante progressista tem um dever não

diante da igreja, mas diante do 'Evangelho' e do 'povo de

Deus'.

A química deste encontro político-religioso,

instaurador da igreja progressista, dá uma nova roupagem à

herança do catolicismo integral. Permanece o dever católico

de não se restringir a uma religiosidade privada, mas o

conteúdo anti-liberal do catolicismo integral adquire uma

nova coloração. O católico progressista não age para

restabelecer uma hegemonia da esfera religiosa sobre a

esfera política. O caráter integral, total, do catolicismo

se refaz, na igreja progressista, pela artimanha de, num só

golpe, reconhecer a especificidade institucional da política

e lhe atribuir um valor divino, por ser um meio, uma etapa,

da obra maior que é a construção do Reino de Deus. A

proclamação da autonomia relativa do político permite o seu

engate produtivo no religioso. Este deslocamento, por sua

vez, instaura uma totalização, uma soma político-religiosa

muito mais eficiente, onde o político só tem valor se


vinculado ao projeto do Reino, e onde a legitimidade

religiosa emerge da inserção política. Esta imbricação leva

o militante a repetir insistentemente que fé é vida, é obra,

é política para construção do Reino.

O jogo político-religioso é que conduz o militante

progressista a defender uma inserção pluralista e diversifi-

cada, desde que esta represente uma etapa no processo

'natural' de homogeneização dos diferentes matizes num todo

integrado e, portanto, signifique uma via para a construção

do projeto único e absoluto do Reino. Neste sentido, Clodo-

vis Boff, ao discutir a articulação dos militantes cristãos

numa 'pastoral dos militantes', vê na inserção partidária

pluralista um risco que a caminhada pode corrigir. "Penso

que o '(auto)-acompanhamento' dos militantes deva ser de

princípio pluralista em termos partidários. Outro risco?

Sim, mas é possível evoluir na direção de uma convergência

política crescente." (BOFF, 1990, p. 23) (grifos do autor)

Pedro de Oliveira, preocupado com a formação mili-

tante, explicita a articulação entre a atividade política

secular e plural e o Projeto do Reino único (singular) e fi-

nal:

"Não é apenas por uma razão de fato que a formação

deve ser plural. É também por uma razão de Fé. A Fé inspira

opções ideológicas e políticas, servindo como um marco

limite (há princípios e práticas inaceitáveis para o


cristão) e como um desafio à utopia (o Projeto do Reino não

se esgota nos projetos políticos); porém ela não pode ser

confundida ou identificada com uma opção política ou ideoló-

gica. Não há o projeto dos cristãos, mas projetos nos quais,

de um modo ou outro, concretiza-se o Projeto do Reino."

Mais adiante ele acrescenta:

"Como então avaliar os nossos projetos políticos em

relação ao Projeto do Reino, se este não existe em estado

puro? Parece que só o pluralismo ideológico na pastoral

política abrirá caminho para solução do problema. Se

cristãos com diferentes opções ideológicas puderem

confrontar mutuamente seus projetos políticos, um conseguirá

perceber no projeto do outro o que se afasta do Projeto de

Deus. (...) O pluralismo possibilita o discernimento, desde

que seja um pluralismo fraterno, no qual um grupo possa

exigir em nome da Fé que o outro lhe preste contas de suas

práticas políticas, para que todos avaliem se elas vão ou

não contra o Projeto do Reino. Assim entendida, a

evangelização torna-se um serviço que os cristãos se prestam

mutuamente, fazendo uma 'cobrança evangélica' de suas

práticas políticas." (OLIVEIRA, 1989, p. 44) (grifos nossos)

Independente dos paradoxos gerados na tentativa de

estabelecer o que está de acordo com um suposto plano divino

que depende de interpretação, é sintomático que esta

'verdade' que relaciona inserção plural e Projeto (total) do


Reino vincule-se a procedimentos de exposição, auto-exame,

avaliação mútua, cobrança, direção de consciência e governo

da ação. A oposição entre engajamento plural e fim único

deve ser vista, portanto, menos como uma contradição do que

como um jogo produtivo de poder e saber. Antes de prosse-

guirmos na análise dos procedimentos próprios deste jogo,

convém investigar o significado desta inserção.

No depoimento que se seque, do militante Pedro, e

também em outros, aparece a inserção como uma necessidade,

como meio da ação altruísta de cuidar da vida do 'povo'.

Através dela o católico progressista pode e deve

testemunhar, ou seja, provar a sua fé aos olhos dos outros.

Esta fé que só existe sob esta forma visível, palpável,

concreta, sob o feitio de trabalho político-religioso:

"A teologia da libertação parte do princípio da fé e

da inserção no meio popular, quer dizer, inserção nos

problemas da vida da comunidade... A fé só existe a partir

do momento que você pode explicitar esta fé, que ela possa

ser vista por alguém sendo concretizada em alguma coisa."

A 'racionalidade' da inserção ganha consistência num

texto do Movimento Fé e Política, onde Leonardo Boff e Már-

cia Miranda argumentam que a identidade cristã pode ser en-

tendida como um processo histórico de encarnação. Ou seja,

para eles, a encarnação "é um processo de identificação de

Deus com a totalidade da existência humana assim como ela


vai se dando e desdobrando na história. (...) Este processo

encarnatório constitui uma verdadeira 'lei da encarnação',

quer dizer, uma maneira de se entender a identidade cristã

como processo de inserção na história." Depois de apontarem

as coisas com as quais Deus se identificou através da in-

serção de Jesus na história (os pobres, "o serviço, o amor,

a capacidade de perdoar, o cuidado com a vida, a sensibili-

dade pelos fracos e penalizados pela sociedade"), eles

acrescentam:

"O que queremos enfatizar com o processo en-

carnatório é o fato de que todas as dimensões da vida

humana, (...) foram apropriadas pelo Filho eterno. As coisas

deste mundo foram tocadas pelo Verbo da vida. Por isto (...)

elas possuem valor divino e teologal. Esta perspectiva é

importante para os militantes cristãos. (...) Eles estão

envolvidos no processo de encarnação, eles prolongam um

movimento que saiu de Deus. (...) O político, na medida em

que integra a mística e a racionalidade, (...) está querendo

e concretizando na secularidade da política o que Jesus quis

e concretizou, está sendo um operador do projeto de Jesus,

mensageiro do projeto de Deus." (BOFF, e MIRANDA, 1990, p.

11 e 12)

Por um lado o militante católico progressista sofre

a experiência da encarnação da totalidade de coisas e di-

mensões valorizadas por Deus. Seu corpo abre-se para a pene-


tração progressiva das 'verdades' sobre o processo histórico

de apropriação divina do mundo. Por outro lado, o militante

tem o seu corpo recrutado para, através de um treinamento e

uma intervenção no meio popular, prolongar este 'movimento

que saiu de Deus', concretizar na realidade secular o pro-

jeto divino. Neste ponto a concepção evolutiva da história

se encontra com uma percepção do indivíduo como sujeito em

crescimento contínuo. 'Progresso da sociedade' e 'gênese do

indivíduo' não são certamente invenções da igreja progres-

sista, mas encontram no seu espaço uma utilidade produtiva.

Clodovis Boff também se preocupou em explicar o

significado da inserção para o militante católico

progressista. Ele afirma que a função principal do agente é

estar no meio do povo para contribuir com a sua

autolibertação. A "presença ou contacto físico com o meio

popular," segundo este teólogo, é que possibilita ao agente

desempenhar bem este papel. E ele completa o raciocínio

afirmando que este contato direto com a vida do povo é a

única forma correta, nós diríamos eficaz, de trabalho

político-religioso. "É indispensável que se entre em contato

vivo e participante com a vida do povo caso se queira

entendê-la e trabalhá-la. (...) Sem inserção concreta não

pode haver um trabalho popular correto." Este teólogo

estabelece também uma classificação dos graus de inserção

numa escala progressiva: "1.contatos vivos, 2.participação


regular, 3.moradia, 4.trabalho e 5.cultura." Ainda segundo

Clodovis Boff, trata-se de diferentes graus "de

identificação com o povo". Prosseguindo a sua reflexão ele

afirma que a inserção não deve ser entendida como um fim,

ela é apenas um meio.

"Pois é a partir da inserção que o agente poderá

descobrir o seu próprio caráter de classe e se converter,

compreender realmente as condições de existência e

consciência do povo e contribuir afetivamente para o seu

crescimento. Por outro lado, é também a partir da inserção

do agente no povo que este poderá elevar seu nível de

consciência, organização e luta. Na verdade, o objetivo

concreto mais alto tanto da inserção quanto da partilha é

realizar o projeto comum de uma sociedade libertada e

igualitária. (...) Assim, a inserção só pode se entender

proximamente dentro da perspectiva da aliança ou diálogo

agente-povo e, mais longinquamente, dentro da perspectiva

maior da libertação social." (BOFF, 1988, p. 31-36)

A inserção, concebida desta forma como uma experiên-

cia onde o militante ganha consciência e ao mesmo tempo

desperta a consciência do 'povo', num diálogo, apresenta-se

como mais um procedimento eficiente para exposição de maté-

ria a ser ordenada e transformada em 'verdade'. A prática da

inserção e da exposição de si está intimamente ligada ao

conjunto de saberes que ela faz circular. Inserido no meio


popular o militante encarna a responsabilidade pelo destino

de todos e de cada um e vê a sua alma e o seu corpo recruta-

dos de forma absoluta para a tarefa disciplinada de conquis-

tar a salvação total. Salvação esta que lhe exige uma ativi-

dade político-religiosa no mundo, para reunir, cuidar, or-

ganizar, formar o 'povo' disperso e guiá-lo nesta caminhada

libertadora.

IV.11. - REVISÃO METÓDICA DE VIDA

Para o militante a evolução deste processo

emancipatório torna imperativa a busca de conhecimento. Ele

precisa saber de si próprio, compreender a situação do

'povo', reconhecer os passos corretos desta caminhada. Este

soldado da fé acredita que o silêncio é um sintoma da

opressão. Contra esta a arma é a fala despertada pela

inquirição sobre a vida do 'povo', dos outros militantes e

sobre ele próprio. O exame de si e dos demais é o

procedimento que os católicos progressistas empregam com o

objetivo de chegar à consciência sobre o processo de

libertação. Segundo eles, trata-se de um elemento

imprescindível na luta contra a dominação que floresce ca-

lando e promovendo a inércia do oprimido.

Esta busca militante do conhecimento, como já foi

anteriormente enfatizado, aparece como um procedimento

básico da prática de poder pastoral que se exerce na igreja


católica progressista. É conveniente, portanto, dirigir a

análise para a caracterização mais precisa do jogo que exige

do militante uma incansável atividade de procurar, despertar

e propagar um saber. A necessidade irrevogável de conheci-

mento, reafirmamos, não se manifesta apenas no espaço e nos

exercícios da celebração. O empreendimento militante desen-

volve a cada momento novas alternativas para instigar à fala

e à exposição, sem dispensar o emprego de métodos e técnicas

muitas vezes emprestadas às ciências humanas ou apropriadas

da tradição católica.

A referência a estes exercícios é constante no meio

militante. Um exemplo é a cartilha publicada por uma Pasto-

ral de Jovens do Meio Popular (PJMP) da Regional Nordeste

II. O objetivo apresentado nesta cartilha é a orientação dos

jovens militantes que já ultrapassaram a etapa de iniciação,

para formarem 'grupos de militantes' ou 'equipes de vida'

onde jovens do 'mesmo nível' possam "avaliar a sua atuação e

ficar fiéis às raízes eclesiais. (...) A principal atividade

da equipe de vida é: a revisão de vida e a revisão da prá-

tica."

Esta avaliação é feita com método, possui uma

seqüência bem determinada, apóia-se na ciência e no

evangelho e proclama o objetivo de orientar a atividade

militante. A cartilha apresenta cada etapa do processo de


revisão de vida em linguagem de manual, funcionando como um

roteiro para as reuniões de militantes:

"O importante é a gente avaliar a nossa militância

em função de critérios científicos e evangélicos. A

finalidade desta revisão é de descobrir se nossa militância

é eficaz para construir a Nova Sociedade que o Cristo quer.

(...) VER: (ou Observar). O ver é uma contemplação da vida

através dos olhos de Cristo. O ver é um exercício de

avaliação científica da realidade."

Após esta explicação a cartilha recomenda que cada

militante conte um fato em que esteja envolvido, fato este

que é submetido à análise de todos. O momento seguinte é o

de 'julgar', o que é feito a partir do evangelho.

"JULGAR (ou confrontar). Agora vamos confrontar o

fato escolhido com: a história do povo de Deus e a história

de nossa classe, textos do povo de Deus, textos da Bíblia

que mostram a vida, a prática e a mensagem de Jesus Cristo."

Acompanhando a seqüência apresentada pela cartilha,

a próxima etapa é o 'agir', e implica em reconhecer a

eficácia da 'revisão de vida' na mudança do comportamento.

"AGIR. Acolher o chamado de Deus. Cada um diz como

esta revisão de vida provoca alguma mudança na vida e na

militância dele. A revisão de um fato leva a todos os

componentes a revisar a sua própria vida e ação também. É

por isso que cada um poderá descobrir pistas de ação."


O último degrau deste processo de revisão é o

'celebrar', onde este ciclo espiral de produção do militante

pelo exame e pela avaliação completa mais uma volta com o

pedido de perdão ou de ajuda:

"CELEBRAR. Da revisão de vida surge uma oração

espontânea através de palavras, de símbolos, de expressão

corporal: ação de graças, pedido de perdão, pedido de ajuda

etc."

E a cartilha termina afirmando que a 'revisão de

vida' é o combustível que realimenta o militante:

"O militante é como um candeeiro. Quando a chama é

alimentada pelo gás ela ilumina sem consumir o pavio. Mas

quando não tem mais gás para alimentar o pavio este ainda

está em chama mas vai se consumindo rapidamente. O gás é a

Revisão de Vida."

Esta cartilha demonstra, entre outras coisas, que o

material para avaliação é gerado pela fala dos militantes

que expõem a sua atividade para ser revista à luz do evange-

lho, da ciência e da história do 'povo de Deus'. São avalia-

das ao mesmo tempo a caminhada e a postura do militante. São

os acertos ou erros desta última que servem de base para o

julgamento da correção e eficiência da sua caminhada. O pro-

cedimento de normalização coletiva dá-se pela ordenação dos

saberes e da atividade de cada militante e também pela cor-

reção do próprio indivíduo que muda, sendo impelido a atuar


como sujeito militante. Tal sujeição ocorre porque o exame

da vida do militante, acompanhado necessariamente do reco-

nhecimento dos seus erros e do pedido de perdão, lhe imputa

novas responsabilidades e o requer a cada momento para novas

ações de militância. Este exercício, que é solicitado em

nome da caminhada rumo ao Reino de Deus, reforça no mili-

tante a sua concepção evolutiva da história e a sua crença

no contínuo crescimento individual, ao mesmo tempo que abre

caminho para uma 'direção de consciência', ou seja, para um

norteamento da sua conduta.

A Pastoral da Juventude no Paraná editou um caderno

para orientar os agentes, onde explica o método de ação

militante, reservando espaço especial para a avaliação:

"Como se aplica o método VER-JULGAR-AGIR-REVER? Num

primeiro momento, colhem-se experiências de vida e sentidas

pelo grupo ou por cada participante. Aí, faz-se o

relacionamento dessas experiências com a realidade global da

sociedade, é o VER. Depois confrontam-se as experiências e a

realidade com as referências cristãs. É o JULGAR. Em seguida

decidem-se as ações necessárias e possíveis a partir da dis-

cussão do grupo. É o AGIR. Por fim é necessário uma

verificação constante da prática das ações, isto é, avaliam-

se as propostas, resoluções, e o encaminhamento da

ação/reflexão/formação. É o REVER." (Pastoral da Juventude

no Paraná, 1985, p. 24)


Num caderno da Pastoral da Juventude do Rio Grande

do Sul também emerge de forma exemplar esta preocupação da

igreja progressista com a revisão e a avaliação. Mais espe-

cificamente no capítulo que trata da 'formação integral' do

militante encontramos o seguinte alerta:

"Queremos deixar claro de que esta formação não é

somente teórica. É principalmente a partir da prática

revisada e aprofundada. Nenhum militante pode considerar-se

formado. (...) A revisão da vida e a revisão da prática

devem sempre fazer o jovem voltar a buscar luzes para

caminhar melhor. A formação é um processo que não acaba

enquanto caminhamos." (COORDENAÇÃO ESTADUAL DE PASTORAL DA

JUVENTUDE RURAL - RS, 1985, p. 56)

A revisão metódica da atividade militante e o

exercício de avaliação individual e coletiva apresentam-se,

portanto, como procedimentos de poder positivo que estão as-

sociados à busca do saber e do autoconhecimento nas organi-

zações católicas progressistas. As práticas de exame subme-

tem o militante ao ritual da fala. Seu enunciado, após ser

devidamente avaliado e julgado pelos seus parceiros, possi-

bilita uma transformação interna do próprio militante atra-

vés do perdão, da purificação, que ratifica a sua condição

de pastor no processo de salvação do 'povo'. O exercício

contínuo da avaliação, visto como ato de busca e revelação

da verdade oculta, integra o indivíduo à instituição,


constituindo-o como sujeito militante que associa responsa-

bilidade e crescimento individual ao dever de agir metodica-

mente para organizar e guiar o 'povo' na sua trajetória de

emancipação político-religiosa.

Como pudemos observar, esta idéia de revisão

constante está articulada à concepção segundo a qual o

militante nunca está completo, e portanto não é perfeito,

pode pecar no cumprimento das suas responsabilidades e errar

nas suas atitudes políticas, prejudicando o processo de

libertação. Ele deve, por este motivo, expor-se à avaliação

como uma forma de purgar a si próprio e orientar

corretamente o rebanho na sua caminhada. Isto fica evidente

pela referência constante ao perdão como um exercício

fundamental para o aperfeiçoamento do militante.

Um trabalho elaborado para subsidiar a 'reflexão'

nas comunidades urbanas oferece ao militante uma seqüência

detalhada dos passos que devem ser dados a cada encontro. O

texto traz a 'fala' de cada participante e os procedimentos

que devem ser observados em cada reunião. Logo no capítulo

referente ao primeiro encontro, que recebe o subtítulo 'Uma

Proposta de Libertação Integral', percebe-se uma preocupação

com o conhecimento de cada um:

"Animador: Quem somos nós? O que sentimos? O que

pensamos? Que projetos temos na vida? Qual é nossa luta?

Qual é a nossa angústia? Qual é a nossa alegria? O que


fazemos? Que tal se cada um falasse aos outros o que se

esconde por trás do nome pelo qual somos chamados?"

Segue a recomendação: "(Cada um se apresenta de ma-

neira informal dizendo o que acha importante de si para os

outros saberem)". Depois deste 'convite' à exposição de si o

texto apresenta questões sobre a sociedade:

"Segundo Leitor: Conhecer o mistério do homem

inserido no mistério de Deus sempre desafiou o homem, desde

todo o tempo."

"Terceiro Leitor: Talvez tão importante como este

próprio conhecimento, é compreender os critérios de Deus

para o relacionamento dos homens entre si." (Segue-se a

instrução:) "Todos podem falar como sentem a convivência

entre as pessoas. Como os homens estão se relacionando."

"Quarto Leitor: Para podermos, vendo esta realidade,

descobrir caminhos para um verdadeiro relacionamento humano

e cristão, Deus se faz a BOA-NOVA DE LUZ." (E como

recomendação:) "Neste momento se fará a introdução da LUZ -

vela acesa."

Ao expor os seus problemas, angústias e alegrias, o

militante gera o material que será 'iluminado' pelo evange-

lho. A palavra de cada um é vinculada à palavra de Deus e

por ela moldada. A luz do evangelho, interpretado pela teo-

logia da libertação, que não dispensa o auxílio da ciência,

'ilumina' os mistérios de cada um, da sociedade e da histó-


ria. 'Esclarecendo' o indivíduo quanto às suas responsabili-

dades, a luz divina apresenta-lhe os caminhos que ele deve

percorrer empreendendo uma ação militante político-reli-

giosa.

O procedimento fundamental do pedido de perdão,

nesta engrenagem de poder e saber, aparece logo a seguir

neste mesmo texto:

"Primeiro Leitor: Deus nos criou livres e assim nos

chamou a viver. O cultivo da vida é o cultivo da liberdade."

"Segundo Leitor: Todas as amarras que nos impedem

lançar na conquista plena do SER são o mal que Cristo nos

aponta; são o pecado do homem, contra o qual Ele deu

testemunho e nos quer ajudar a vencer."

"Terceiro Leitor: Todo egoísmo, todo fechar-se em

si, toda recusa de acolhida, toda exploração do outro, toda

esterilização do afeto, toda injustiça, são presença de

morte, de escravidão, de desamor."

"Quarto Leitor: Para superarmos tudo isto que muitas

vezes se apresenta como o caminho mais fácil, precisamos de

uma permanente atitude de humildade, de penitência, de

conversão, de solidariedade."

"Quinto Leitor: Queremos juntos pedir perdão pelas

vezes que fomos cegos diante da realidade da menos vida e

fomos incapazes de acrescentar vida plena à beleza da

criação."
(Logo adiante a recomendação:) "Momento de

analisarmos a nossa prática e programarmos ações concretas,

possíveis, necessárias." (EBERHARDT, 1987, p. 10-15)

A obra de Deus é apresentada ao militante como vida

e liberdade que devem ser preservadas, sua luta portanto é

contra os pecados que impedem a realização desta plenitude.

São pecados tanto individuais quanto coletivos, que exigem

constante exame e pedido de perdão, não só por atos equivo-

cados, mas também pelo não olhar e pelo não saber, pelo

'egoísmo' e pelo 'fechar-se em si'. A avaliação constante

permite a correção do caráter, das condutas e a programação

de novas atitudes, ou seja, permite o direcionamento da

consciência. O dever de superar a opressão solicita do mili-

tante católico uma postura de plena humildade e atitudes

permanentes de penitência, conversão total e solidariedade

absoluta. Um exemplo radical desta entrega à vida, ao seu

cuidado, à sua investigação, enfim à causa de libertá-la

plenamente, está no voto de pobreza. Entre os militantes en-

trevistados Amaro e Heraldo cumprem, com prazer, este

'sacrifício'.

A incorporação pelos militantes da prática do exame

fica evidente nas entrevistas por eles prestadas. Nestes de-

poimentos o exame também aparece reforçado pelas noções de

responsabilidade, culpa, pecado social e articulado ao dever

de conhecer, servir, guiar o 'povo' no caminho correto.


Na sua entrevista Amaro valoriza o exercício de

mútuo exame e de perdão recíproco como uma atividade

importante para o recrutamento e para a continuidade da

própria luta. O perdão é reconhecido como uma prática que

reforça a convicção militante.

"Uma coisa que dá uma força muito grande é celebrar

a própria vida, celebrar a própria caminhada, celebrar a

própria luta com as pessoas. E a gente tem notado assim uma

sensibilidade muito grande, vivenciando tudo isto num clima

de troca de experiência, de estar analisando as nossas

falhas, junto com a questão do perdão, a questão da

acolhida. Então eu tenho visto isto como uma prática de

estar conscientizando o pessoal e trazendo mais pessoas no-

vas para o trabalho."

Luiza explica que esta avaliação serve para apontar

o caminho ao militante, ela dá a direção dos seus próximos

passos.

"Você vai fazer uma análise de como a pastoral

operária caminhou até agora, você vai reunir seus

companheiros: (...) 'vamos tentar ver aí' - é um processo

difícil - 'nós erramos aqui, acertamos ali', 'e como vamos

fazer daqui pra frente?'. Você tem sempre que tentar fazer

uma avaliação, um balanço da sua ação. Isto todos fazem, é

um pouco o norte, o norte que você vai seguir."


Mas o militante não se limita à avaliação coletiva

da luta, os depoimentos confirmam que o engajamento católico

solicita também um auto-exame. Luiza demonstra esta preocu-

pação em avaliar-se.

"É importante eu recuperar o 'eu' desta história

toda. Eu estou questionando até que ponto eu estou fazendo

as coisas certo, o questionamento é cotidiano de fato quando

você começa a reavaliar a sua prática."

IV.12. - A RESISTÊNCIA DO 'EU'

Evidencia-se que o exame não é algo que se impõe de

fora ao militante como uma força opressora absoluta. Não se

trata de um mecanismo que cai sobre ele e se realiza em toda

sua plenitude, aprisionando-o de forma definitiva. A este

jogo entre responsabilidade, culpa, conhecimento e ação, de

que o exame faz parte, deve-se agregar a resistência que im-

plica incertezas, deslocamentos e rearranjo das forças no

tabuleiro. É esta resistência que faz o militante, em certos

momentos, nomear e por vezes até recusar a cobrança e a au-

tocobrança decorrentes da avaliação.

Heloísa é uma das militantes que externou este con-

flito. Diante da cobrança feita pelos outros militantes ela

reage com inconformismo, ao reconhecer a autocobrança deixa

transparecer uma certa resignação.


"Quando os outros cobram de mim eu fico louca da

vida. Se eu posso fazer eles também podem. Mas em alguns

momentos eu reflito: 'poxa, eu podia ter feito isto, e

porque eu não fiz?' Então você se sente cobrada de si

própria e não dos outros."

Se, por um lado, os procedimentos que envolvem a

militância incluem o olhar pela vida de cada um, investem no

cuidado e no exame da pessoa, desferindo, portanto, uma ação

individualizada, por outro, combinam esta experiência indi-

vidualizante com um exercício de totalização, de diluição da

individualidade, integrando a pessoa na organização cole-

tiva, conforme pode-se observar neste trecho de uma cartilha

editada para subsidiar a 'reflexão' nas comunidades urbanas:

"Com quem se faz uma Pequena Comunidade Eclesial

(PCE)? Primeiro Leitor: Com os homens do centro das grandes

cidades, adultos, jovens, velhos e crianças; com todos

aqueles que aceitarem trilhar o caminho que exige o despoja-

mento de todas as formas de egoísmo, vaidade, autopromoção,

vontade própria. (...) Terceiro Leitor: O integrante de uma

PCE tem que ter sua história na mão, e para fazer sua

história à luz da fé deve ter uma grande maturidade.

Maturidade que se adquire estudando, refletindo,

questionando, assumindo conscientemente. E neste assumir,

não fechar-se em si mesmo, mas voltar-se para fora, buscando


solidariamente o crescimento dos outros na luta pela

justiça." (EBERHARDT, 1987, p. 54 e 55)

Mas esta construção de um sujeito coletivo também

não se faz de forma tranqüila. Em diferentes depoimentos

aparecem sinais de resistência a este procedimento. Na

entrevista de Rodrigo encontram-se elementos deste jogo que

envolve a formação do militante e a ordenação da sua

atividade. No seu depoimento emerge a tensão entre a

preservação da individualidade e a sua dissolução completa

na entrega total à militância. Observe-se que a resistência

a abrir mão do seu 'eu' não poupa Rodrigo do sentimento de

culpa:

"As privações são recompensadas na medida em que a

gente absolutiza a militância, acha que a transformação da

sociedade está acima de tudo, acima da pessoa e tudo mais,

mas se você não colocar o projeto pessoal junto com este

projeto global não compensa, no sentido que você vê que

algumas coisas da tua vida ficam pra trás. Há todo um drama

de consciência que vem da nossa formação, a questão do pobre

exige nossa solidariedade. Há uma tendência muito forte (na

igreja progressista) de as pessoas se sentirem culpadas, e

isto não é fácil de se levar. Eu, por exemplo, às vezes,

estou numa boa num fim de semana e, de repente, me vem à

mente uma situação de conflito que eu sei que está

acontecendo. Daí ou você cai num baixo astral ou você diz:


'não, eu vou fazer meu engajamento na hora certa, no dia

certo'. Mas é complicado."

No depoimento de Regina este conflito apresenta-se

de modo mais contundente: a força que engaja o militante e

atua no sentido de tentar anular o indivíduo aparece de

forma explícita. A cobrança parece 'impedir' uma militância

parcial, pois a luta político-religiosa convoca o militante

'por inteiro'. Resistir é sofrer.

"Às vezes eu tenho vontade de fugir, mas quanto mais

você entra, você acaba se doando mesmo que você tente manter

uma certa reserva. Você vai por inteiro, ainda mais quando

você mora num lugar onde te exigem isto (comunidade,

família). É também uma cobrança. Teve uma época que eu

chegava no fim de semana com a cabeça estourando, era uma

exigência de um, uma exigência de outro, uma exigência pes-

soal. E eu? Devo sair dessa coisa ou ficar liberada

totalmente? É complicado, isso me angustia muito, o que eu

vou fazer? Você acaba perdendo a identidade e acaba não sa-

bendo como é que é o caminho, você não tem uma coisa con-

creta. Tudo bem, é um processo e você faz parte dele, mas

angustia você (estar) lutando, e de repente ver o povo,

muito humano, votando num Collor ou num Lerner da vida. A

gente sabe que é um povo sofrido e tal, mas angustia a não-

resposta deste povo."


A atividade militante, o engajamento absoluto, não é

algo fácil de que se livrar. Regina expressa esta dificul-

dade de sair da luta e colocar o seu projeto pessoal em pri-

meiro plano. A sensação de estar sendo vencida pelo egoísmo

dificulta a decisão de abandonar a militância e eleger a

autorealização como projeto de vida. O jogo que faz do mili-

tante católico progressista um sujeito absolutamente al-

truísta não é fácil de ser solucionado, pois a resistência

não lhe é externa; ao contrário, é mais uma peça deste tabu-

leiro.

"Estou me obrigando a me distanciar da militância, é

uma coisa difícil, porque a paixão é uma coisa difícil.

Quero ir em busca um pouco da minha própria libertação, da

minha realização profissional, este ano quero entrar na

faculdade, solucionar as minhas angústias pessoais. Eu quero

ser capaz de ver os frutos do meu trabalho, é uma coisa meio

produtivista, até meio egoísta de minha parte."

Esta situação vivida por Regina é provocada pela

responsabilidade que se instala no militante.

Responsabilidade que assume diferentes sentidos além da

culpa e do pecado. O militante recebe uma instrução, um

treinamento, uma absolvição que o faz sentir-se endividado

com Deus, com o povo de Deus e sua caminhada. Qualquer

projeto pessoal apresenta-se, aos seus próprios olhos, como

egoísmo, como individualismo. As artimanhas e paradoxos


deste jogo de destruição do 'eu' para salvação do 'outro'

são constatadas, a seu modo, pela PJR do Rio Grande do Sul:

"Hoje há uma grande dificuldade para se parar e

pensar. Sem perceber, entramos no jogo da sociedade

capitalista e consumista, não paramos para pensar, não

fazemos silêncio. Tudo tem que ser discutido, tudo tem que

ser analisado, não há mais espaço para a interiorização. Não

há mais espaço para a relação individual porque isto é

individualismo. Na reação contra o individualismo exageramos

e caímos em outro extremo que acaba destruindo a dimensão

pessoal e no fundo acaba fazendo com que a pessoa não seja

sujeito de sua história." (COORDENAÇÃO ESTADUAL DE PASTORAL

DA JUVENTUDE RURAL - RS, 1985, p. 59)

Talvez a crise vivida por muitos militantes e o

declínio, nos últimos anos, da igreja católica progressista

enquanto um movimento de massa expliquem, em parte, a emer-

gência do tema da individualidade em alguns escritos e de-

poimentos militantes. Mas a própria tematização, pela igreja

progressista, da dissolução do indivíduo pela atividade mi-

litante parece representar um deslocamento útil para refor-

çar o compromisso militante. Neste sentido, o texto da PJR é

também uma avaliação, ele 'reconhece' que houve um exagero,

pois os militantes progressistas não fazem silêncio sobre

nada, tudo relatam, tudo tem que ser dissolvido no caldo da

luta coletiva. Logo, é preciso 'corrigir' e 'retomar' a ação


correta para que a crise da individualidade não coloque este

'soldado da fé' fora de combate. A correção implica, então,

um novo investimento sobre a individualidade cujo horizonte

é a normalização coletiva.

Esta necessidade de avaliar e modificar é que gera

situações peculiares, como a de se levantar o debate sobre o

excesso de discussão, a de ter que se falar da falta de

silêncio, enfim a de exigir uma atitude coletiva para resga-

tar a individualidade. Estas tensões, que certamente têm o

seu efeito produtivo, emergem também no depoimento de João

quando ele diz:

"A sua vida de militância fica muito restrita à

questão do trabalho que envolve a própria luta. O erro em

que a gente incorre - que a gente está avaliando, mas não

teve tempo de praticar - é a gente não ter tempo específico

pra gente. Tempo pra lazer, tempo pra conversar com outras

pessoas que não têm a mesma visão que você. Um passeio, por

exemplo, a gente encara como perda de tempo, uma coisa que

não produz, a gente pensa que não produz e isto é um erro."

Trata-se, portanto, de um ciclo vicioso, não se tem

tempo para praticar ou corrigir o que a avaliação constatou:

a ausência de tempo dedicado para a relação do militante

consigo mesmo, o fato de ele estar totalmente envolvido na

luta coletiva. Mas o militante se tranqüiliza ao saber que

este erro está sendo avaliado. Parece prevalecer mais uma


vez o mito de que o 'falar' e o 'participar' coletivamente

são atitudes que em si já libertam do poder que silencia

toda palavra e cerceia qualquer ação.

Este exercício conflitivo de dissolução da

existência individual faz parte da experiência instauradora

da prática totalitária, prática esta que se caracteriza pela

uniformização e homogeneização da multiplicidade própria do

jogo político-social. E, conforme nos alertava Claude Lefort

(LEFORT, 1990, p. 327 a 329), a constituição deste agente

social chamado 'militante', que incorpora de forma absoluta

a instituição e despeja a sua verdade homogeneizadora no es-

paço social em vias de totalização, é solicitada exatamente

pela prática totalitária. No caso da igreja progressista, a

verdade homogeneizadora é político-religiosa, estabelecida

como critério maior para avaliar e orientar a vida. O fato é

que, nesta articulação entre o cuidado com o indivíduo e a

organização do todo, o senso do dever de formar e informar o

'povo de Deus' desempenha um papel fundamental na construção

e reprodução do sujeito militante totalmente engajado. In-

veste-se no indivíduo para constituí-lo como instrumento do

coletivo. Pesa para este soldado da fé a idéia de ter sobre

si a responsabilidade de quem afinal recebeu um treinamento

para conhecer os segredos da história, e tornou-se por isso

apto para desvendar os mistérios da salvação através do

exame do seu próprio percurso e da avaliação da caminhada do


'povo', feitos à luz da ciência e do evangelho corretamente

interpretado pelos teólogos da libertação.

O depoimento de Rodrigo realça a importância de uma

formação completa para que o militante possa conhecer a to-

talidade do real e agir com correção:

"A conclusão a que a gente tem chegado é que um

agente de CPT que coordena uma equipe tem que ser um perito

em várias áreas; ele tem que entender da questão religiosa

no seu conjunto: a religiosidade popular, bíblia, teologia.

Um dos pilares da Teologia da Libertação é o engajamento na

realidade, conhecer essa realidade e partir dela. Então você

tem que ter também uma compreensão teórica dos outros pro-

blemas, tem que entender de economia, de política, de

sociologia, senão não consegue entender os problemas reais

do povo. A gente 'tá sentindo que ou a gente prepara

realmente os quadros da CPT, seus agentes, ou o trabalho

fica comprometido."

A própria constituição da categoria 'povo', como um

grupo cercado por inimigos, carente de 'luz' e de organi-

zação para assumir a sua marcha histórica rumo à liberdade,

institui o militante como o pastor guia de um rebanho que

depende totalmente da sua ação e do seu cuidado. Sem o mili-

tante o povo dispersa, atrasa a sua marcha, sofre novas in-

justiças, por isto ele não deve abandonar o seu posto, a não

ser para ocupar novas posições na hierarquia militante e com


o cuidado de deixar no seu lugar um companheiro à altura da

tarefa a ser desempenhada. Relembrando o que Roberto nos

disse:

"O abandono da luta sem nenhuma justificativa, pra

mim, isto também é pecado."

Acreditar que conhece os caminhos da história e da

salvação faz o militante sentir-se um legítimo representante

do 'povo', mesmo que este ainda não esteja consciente de ser

por ele representado. Para o militante é apenas uma questão

de tempo e trabalho o despertar desta consciência do 'povo'

e o seu amplo engajamento na marcha para a vitória final.

Ana fala da representação como um direito garantido pela sua

condição de militante, um dever de quem conhece, um ato de

coragem de quem assume o papel de guiar o 'povo'.

"Os desafios vão aparecendo e você se vê no direito

de representar este povo. Com toda esta base que você tem,

de fé e de consciência, você se lança a tudo isto. É um

direito e um dever de assumir isso. (...) Há sempre aquela

sensibilidade de representar a situação do povo, então não é

necessário que o povo saiba disso. A partir daquela

situação, daquela pressão que está existindo, é feita uma

leitura a partir do povo. É necessário que a gente sinta

isto e passe a representar este grito das pessoas. Além da

fé, a coragem faz com que se tome a decisão de representar o

povo realmente."
Esta inversão na idéia de representação, onde a

delegação de autoridade para agir em nome do representado

vem de cima, é outro ardil da prática totalitária, pois

qualifica o representante na sua tarefa de imprimir os

signos da totalidade na prática social. Aliás, esta forma de

conceber a representação é própria dos movimentos

religiosos. Já no calvinismo, como nos mostrou Michael

Walzer (WALZER, 1987), o 'saint' se via como um escolhido de

Deus para representar politicamente os interesses do povo

cristão, e a certeza desta escolha se consolidava no sucesso

da sua luta.

O militante católico progressista, por sua vez, está

convencido da sua situação de representante do povo cristão

pela fé, pela consciência que brota da formação, da contínua

avaliação da luta e do constante exame da sua conduta. Estes

instrumentos lhe fornecem as 'verdades' e as certezas que

reproduzem o seu engajamento total. As palavras de Ana, mais

uma vez, exemplificam bem esta constatação:

"Nós temos certeza que este é o caminho certo mesmo

da libertação, através dessa conscientização, dessa doação

total. Você analisando todos os fatos, não tem outra saída,

é por aí mesmo."

Logo, para o militante parece não existir outra

saída, só resta cumprir o seu papel, preencher a

virtualidade que a ele se apresenta, inserir-se no meio


popular múltiplo e oferecer-se como tutor, como o pastor que

vai reunir e guiar o rebanho. Ao viver as tensões das

práticas de confissão, de perdão, de exposição de si, de

exame individual e coletivo ele é produzido como sujeito

total. Sua atividade cria as condições para a organização, a

institucionalização, a homogeneização das lutas dispersas,

enfim, para uma totalização político-religiosa.

A experiência do militante católico progressista

desenha um modelo comum de submissão e dominação, que por

sua vez conduz à elaboração de uma prática homogênea e total

de organização e luta, assim como a uma padronização da

linguagem, uma petrificação da fala. É preciso enfatizar

esta peculiaridade do catolicismo progressista, qual seja a

tendência à totalização, à unificação da diversidade

político-social. Ela encontra-se duplamente reforçada pelo

caráter político e religioso da racionalidade empregada para

ler a história e mobilizar os indivíduos.

A atividade de inscrever a massa popular, múltipla,

incerta e sem forma num sistema organizado é percebida de

forma positiva pelo militante Heraldo:

"Quando a gente fala 'povo' parece meio populista,

mas não é. É o conceito de povo que o Leonardo Boff coloca:

'a Igreja se faz povo'. É o povo organizado. (...) Todo este

povo (organizado) é uma vanguarda porque deu um passo à

frente, deixou de ser massa de manobra. (...) O que se


pretende é o tal de 'fermento na massa', que é o discurso da

Igreja: fazer com que todo este grupo, que ainda está nesta

situação de passividade, deixe de ser massa e também se

torne povo."

A militante Regina também retrata, numa perspectiva

mais crítica, esta tendência à homogeneização das diferen-

ças, à neutralização dos conflitos internos, presente nos

movimentos da igreja progressista:

"Existem tensões (na militância), na medida que

alguns pensam que o papel da igreja é conciliar. Muitas

vezes as discussões servem pra anular as oposições que

existem. É uma questão de maturidade saber aceitar e fazer

críticas. Isto é um princípio que a gente adquire quando

convive com pessoas que têm outras origens (fora da

igreja)."

Rodrigo é outro militante a perceber criticamente

este papel desempenhado pela igreja católica progressista de

intervir para institucionalizar, ordenar e até pacificar as

lutas sociais favorecendo a dominação. A este respeito ele

fala:

"Hoje os movimentos estão bastante civilizados, na

ótica da civilização dominante. Quer dizer, civilizado como

aquele que aceita a dominação pacificamente, né? Há momentos

de enfrentamento mais grave, mas geralmente é pacífico. Eu


acho que a igreja progressista é também responsável por esta

civilização."
IV.13. - O PODER COMO SERVIÇO

O militante vive uma tensão entre o dever de agir

para organizar o povo, sem contudo ferir a sua autonomia, e

a possibilidade de atrasar ou desviar o seu caminho rumo à

libertação. Por isto outra 'verdade' é fundamental para a

militância: trata-se da idéia de que a atividade militante

de forma alguma é 'exercício de poder', é sim um estar a

'serviço'. O militante acredita que sua ação de animar, fer-

mentar e organizar a massa deve caracterizar-se como um ser-

vir. O depoimento de Ana é um, entre vários, que enfatiza o

'servir' como tarefa essencial das lideranças da comunidade:

"São animadores que como nós estão aí para servir e

não para ser servidos."

A própria conquista da libertação é vista pelo mili-

tante como uma transformação progressiva do poder em ser-

viço. A luta é para converter um poder que oprime em um po-

der que serve. Esta concepção também justifica o engajamento

do militante católico no partido político, conforme fica

evidente na entrevista de Luiza:

"O que é difícil para o militante cristão é que o PT

(Partido dos Trabalhadores) quer o poder. Mas para que ele

quer o poder? Para utilizar como serviço. E quando eu vim

para o PT eu achava que o poder era um negócio sujo, que

corrompia, até eu entender que é importante a luta pelo

poder para transformá-lo em serviço."


Logo, o militante está convencido de que as relações

que se estabelecem entre ele, a instituição católica

progressista, o partido, os demais militantes e o 'povo' de

forma alguma são relações de poder. O militante se vê como

um pastor, um guia, um animador que está a serviço do reba-

nho e que não dá ordens (não manda), mas apenas presta uma

obediência total à verdade político-religiosa da salvação,

verdade esta que se revela através da sua atividade coti-

diana, do evangelho e da ciência. A salvação para o mili-

tante é a instauração do reino de igualdade e liberdade, a

realização deste reino começa desde já e depende da sua de-

dicação pastoral absoluta, do despojamento de todas as suas

vontades pessoais que devem ser dissolvidas na luta pela

efetivação dos interesses coletivos.

É importante observar a permanência na igreja

católica progressista do contraditório ideário liberal

(igualdade e liberdade) presente nas revoluções modernas, e

em especial na Revolução Francesa, a qual, como se sabe,

difundiu o conjunto de concepções e práticas que orientam e

organizam politicamente a sociedade contemporânea. A

pregação revolucionária de 1789 é a da instauração de uma

sociedade igualitária que efetue a substituição do indivíduo

pelo cidadão, uma sociedade de obediência comum à soberania

da lei instituída à luz das verdades políticas, uma socie-

dade constituída pelo e para o 'homem bom'. Este esforço re-


volucionário promoveu a supervalorização da política, eleita

como instância privilegiada na construção do novo social

igualitário. A sociedade moderna elegeu as instituições

políticas como entidades fundamentais para a conquista da

salvação. Transformá-las tornou-se a condição para liberar a

'bondade natural' do homem. Com o fim do feudalismo a

política substitui, em grande parte, a religião no seu papel

de formar o 'homem bom', exorcizar a idéia de comando e

valorizar a obediência à lei, à sociedade e à verdade.

Entretanto, é bom lembrar que este ideário da revo-

lução de 1789 é uma herança do cristianismo. Com a revolução

ocorre que o otimismo antropológico dos cristãos adquire um

caráter político. O igualitarismo que fundamenta as teorias

de igualdade política e de representação é uma obra do cris-

tianismo. Originam-se aí também os procedimentos de cons-

trução do 'homem bom', o bom pastor, altruísta, virtuoso,

que renúncia a si próprio para servir aos outros, do homem

preparado para obedecer, elemento essencial na engrenagem da

sociedade igualitária.

Acrescente-se que Löwy, ainda que com um olhar oti-

mista, identificou as origens específicas da teologia da li-

bertação dentro do cristianismo primitivo, especialmente no

que diz respeito à crítica desta teologia ao individualismo

e ao egoísmo. Segundo este autor, também a concepção de povo

em marcha para a liberdade e para a igualdade, subjacente à


teologia da libertação, teria suas origens no cristianismo

primitivo. Com isto Löwy procurou refutar as interpretações

que tentam explicar a teologia da libertação exclusivamente

como resultado de uma influência de certo marxismo (LÖWY,

1987).

Interessa sublinhar aqui a pertinência de se

interpretar a Revolução Francesa como uma vitória do

cristianismo, ao menos de seu ideário de sociabilidade a ser

construída sobre as ruínas da individualidade. A prova está

na permanência de práticas pastorais, como a solidariedade e

o serviço, exercidas inclusive em boa parte das organizações

de esquerda, não se constituindo, portanto, em um atributo

exclusivo da esquerda católica progressista. Acrescente-se

que a não realização concreta desta supressão do indivíduo

pela obra coletiva, ao contrário do que se poderia esperar,

alimentou renovadas mobilizações em busca da efetivação do

sonho revolucionário. Ao que parece o pensamento moderno

criticou as instituições religiosas, mas não fez a crítica

radical da prática cristã. Daí a permanência de um cristia-

nismo sem cristo.

É possível entender, a partir de Foucault (FOUCAULT,

1988 e 1990), que esta vitória do cristianismo não se deu

por uma capacidade de resistência das velhas idéias católi-

cas, e sim porque o movimento de constituição do Estado mo-

derno, da sociedade de poder soberano centralizado, não dis-


pensou as práticas de poder pastoral desenvolvidas após lon-

gos anos de predominância do cristianismo. O processo de

centralização estatal responsável pela instauração da socie-

dade de direito que viabiliza a administração sobre o ci-

dadão, o território e as riquezas se fez articulado às prá-

ticas dispersas de controle e normalização da vida do indi-

víduo. Estas práticas disciplinares que hoje se encontram

pulverizadas na sociedade, e que Foucault definiu, num sen-

tido amplo, como poder policial, descendem, segundo ele, do

modelo da pastoral cristã que sofreu ao longo dos anos,

nesta fértil articulação com as práticas de soberania, uma

série de pequenos investimentos e adaptações. A instauração

de uma dominação centralizada não dispensou, portanto, um

conjunto de técnicas positivas de poder que, elegendo como

alvo a vida dos indivíduos, é capaz de exercer um controle

sobre seus corpos e condutas, tornando-os coletivamente

úteis. É possível dizer mais. A administração dos cidadãos

por um poder soberano repressor só se efetiva pela sua con-

tínua e afinada combinação com estes micropoderes que disci-

plinam, policiam, cuidam e organizam as multidões, inte-

grando-as a uma racionalidade. Este poder disciplinar,

combinado com técnicas de saber, exerce uma atenção sobre o

indivíduo, constituindo-o como seu efeito e, ao mesmo tempo,

seu instrumento de exercício.


Esta forma de governamentalidade que articula

soberania e disciplina é que faz com que o homem moderno

tenha a sua vida cada vez mais posta em questão pela

política. Trata-se, a todo momento, de cuidar do indivíduo,

conhecê-lo, classificá-lo, dispô-lo numa certa ordem, servi-

lo, salvá-lo, enfim dar-lhe um suplemento de vida que

reforce a sua situação de sujeito governado.

Seria necessário um estudo mais detalhado para

apontar as condições de possibilidade de efetivação desta

afinidade eletiva político-religiosa. Entretanto, o caminho

até aqui percorrido permite aceitar estes requisitos como

dados, à medida que, na constituição da racionalidade e dos

mecanismos políticos modernos, não se dispensaram os

procedimentos do pastorado cristão. Inclusive não foram

poucos os movimentos de esquerda que apostaram nas práticas

pastorais de servir, guiar, recrutar, cuidar, examinar,

conscientizar, mobilizar, enfim, organizar.

No espaço da igreja progressista, articula-se de

modo eficiente a atenção pela vida do indivíduo através de

procedimentos tais como: exposição de si, avaliação, perdão

e direção de consciência. Com isso torna-se possível o ge-

renciamento da multidão de fiéis através da prática de orga-

nizar o 'povo' para a conquista da cidadania, como etapa da

construção de um reino de plena igualdade e liberdade total.

Para ser mais preciso, a combinação na sociedade moderna de


práticas de poder pastoral com as de poder soberano abriu

para a igreja a oportunidade de ocupar um espaço, preencher

uma virtualidade, com todos os riscos que isto implica. A

articulação entre pastorado e soberania viabiliza a afini-

dade entre política e religião, própria da igreja progres-

sista. O encontro destas práticas produz o militante pastor

total e é reproduzido por ele, que se mostra vestido das

qualidades do cristão primitivo (que vela, cuida, perscruta,

examina, conhece e guia o rebanho ao seu destino, à salvação

final). Elas porém, estão agora mescladas à experiência e

aos saberes de uma esquerda messiânica, milenarista, que

funda sua prática numa visão religiosa do mundo e se empenha

para guiar material e espiritualmente os trabalhadores para

a salvação final.

Esperamos, neste capítulo final, ter demonstrado o

conjunto de procedimentos político-pastorais que, no seu

jogo, engajam e mobilizam o militante católico progressista.


CONCLUSÃO

__________________________________________________

"Aquele que se empenha em formar um mundo está

fatalmente comprometido com o erro e com o mal." (Eco, Um-

berto, O Pêndulo de Foucault, Rio de Janeiro, Record, 1989,

p. 59).

Pretendemos, nesta conclusão, enfatizar alguns pon-

tos que foram abordados ao longo desta trajetória de re-

flexão sobre o militante católico progressista, bem como

aventar alguns possibilidades sobre futuras análises da

igreja progressista e do militante de esquerda.

Tentamos desde o início deste estudo mostrar que não

seria prudente, discutir a questão da posição da igreja pro-

gressista frente ao poder. Imprudência maior seria entender

este poder como uma força externa, exclusivamente repres-

siva, e cuja fonte estaria localizada essencialmente na ins-

tituição do Estado. A complexidade das relações que envolvem

este objeto de estudo revelaram, no nosso entendimento, o

risco estratégico que corremos quando nos limitamos a nos

perguntar apenas sobre o potencial de libertação da igreja

progressista, ou seja, sobre suas reais possibilidades de


confrontar e até suprimir o poder de Estado. Isto porque,

conforme a análise aqui apresentada, a igreja não é exclusi-

vamente constituinte, ela é também constituída. Logo, parece

pertinente sim questionar e investigar a própria experiência

do catolicismo progressista, procurando elucidar o processo

de formação da racionalidade e da ação (político-religiosa)

que a possibilita. Esta análise, como foi demonstrado, tem

como fonte singular o militante da igreja progressista, o

agente desta prática de saber e poder pastoral, que no mesmo

movimento é constituído por ela e reproduz a organização ca-

tólica progressista. A posição intermediária deste mili-

tante, entre a instituição católica e o 'povo' (alvo final

das investidas da igreja), é que o faz um elemento privile-

giado da investigação.

Como pudemos observar, ao longo desta cartografia do

militante progressista à luz do referencial foucaultiano,

parece pouco elucidativo interpretar a afinidade entre a po-

lítica e a religião, presente na igreja progressista, como

resultado de uma evolução humanitária, ou como conseqüência

de uma conscientização de setores da igreja católica sobre

as contradições sociais. Também é insuficiente explicar o

catolicismo progressista como o efeito de uma adaptação da

igreja católica diante das dificuldades que a sociedade lai-

cizada lhe impõe. Estas interpretações, pouco convincentes,

resultam, por um lado, da pressuposição de que política e


religião seriam instâncias separadas, passíveis de sofrer

determinações que lhes chegariam do exterior; e por outro

lado, da pressuposição de que igreja, o trabalhador e o mi-

litante são sujeitos pré-destinados a realizar o 'seu papel'

na história.

Diante disto, tentamos demonstrar a pertinência de

se entender a igreja progressista como o resultado de uma

afinidade eletiva entre política e religião, de uma reação

química entre estas duas ordens de conduta, que resulta em

algo novo e com dinamicidade própria. Por conseqüência, não

convém tomar o sujeito como pré-existente.

O objetivo da investigação foi justamente o de

mostrar como é produzido o militante a partir do encontro

entre a prática política e a conduta religiosa que ele

reproduz. Enfim, por não ser esta conexão estratégica entre

política e religião o simples efeito de uma humanização da

hierarquia católica, entendemos necessário olhar as relações

de poder que produzem a igreja progressista e o seu

militante. A partir desta análise parece mais correto

afirmar que a igreja progressista não salva o 'povo',

tampouco o conduz à libertação. O conjunto de forças que a

impulsiona revela uma engrenagem interessada em conhecer,

diversificar e intensificar os mecanismos de sedução e

controle que emergem desta prática político-religiosa. Daí a

ambiguidade da hierarquia diante dos católicos


progressistas. Os procedimentos de poder que os envolvem

interessam também aos dirigentes eclesiais que não ousam

desprezá-los. Entretanto, as incertezas desta mobilização de

esquerda exigem prudência e, em determinados momentos, até

repreensão por parte da hierarquia católica.

Ao partirmos do referencial que percebe a

articulação entre poder soberano e poder pastoral, tornou-se

possível entender melhor a emergência do militante da igreja

católica progressista e esta afinidade eletiva entre

política e religião. Pode-se afirmar que as peculiaridade da

história brasileira explicitaram e deram uma coloração

própria a esta mútua penetração entre política e religião,

que está presente na sociedade contemporânea justamente sob

a forma de articulação entre soberania e pastorado.

A força do catolicismo progressista e a sua

permanência devem ser explicadas, portanto, pela eficiência

dos seus procedimentos de saber e técnicas de poder pastoral

(associadas às de poder soberano) ao constituir uma totali-

dade duplamente reforçada, política e religiosa. A partir

desta totalidade pode-se atingir cada indivíduo e também ge-

renciar a massa popular pobre, dispersa, objeto da tutela

institucional. Para isto é fundamental a produção do sujeito

militante, efeito e instrumento deste jogo de poder. O en-

contro totalizador entre práticas políticas e religiosas

produz o militante total que, perpassado pelas relações de


poder, reproduz esta afinidade totalizadora. A força dos

corpos penetrados faz funcionar dispositivos de poder e sa-

ber como: o auto-exame, a avaliação mútua, a exposição de

si, a revisão de vida, o esquecimento de si, a cobrança, a

direção de consciência. São procedimentos, enfim, que trei-

nam o indivíduo para constituí-lo pastor político total. O

próprio militante, portanto, movimenta a engrenagem política

e religiosa de recrutamento e se vê penetrado pela prática

total. Este jogo, como pudemos observar, não é tranqüilo. Ao

contrário, se faz perpassado por tensões e resistências. É

importante sublinhar que a eficácia da racionalidade polí-

tico-religiosa católica progressista está na sua capacidade

de combinar os poderes que se ocupam da vida de cada indiví-

duo com aqueles que gerenciam a sociedade. Neste sentido a

racionalidade ligada à ação do militante católico progres-

sista pode ser designada por 'pastoral libertadora', pois

combina 'verdades' sobre a vida dos indivíduos, com

'saberes' sobre a salvação do 'povo', salvação esta que te-

ria como uma das etapas a sua organização política pelo se-

tor progressista da igreja católica.

Acreditamos que esta reflexão sobre a afinidade

entre política e religião própria da igreja progressista

pode contribuir também para a compreensão dos problemas que

envolvem setores significativos da esquerda e os seus

militantes. Isto, desde que a partir desta análise seja


possível apontar a permanência de práticas semelhantes às da

igreja progressista em organizações políticas ditas

revolucionárias. Analisando a experiência do militante

católico progressista, talvez possamos questionar se outros

grupos de militantes de esquerda não estão ainda, sem

perceber, referendando sua prática política no universo do

cristianismo. A idéia de ser um 'escolhido', um iluminado,

que deve entregar-se à tarefa de servir, solidarizar-se e

guiar o 'povo' rumo à salvação final não continuaria viva na

racionalidade que vem orientando, ao longo da história, a

ação de setores significativos da esquerda? Os procedimentos

de poder pastoral, que remontam ao cristianismo primitivo, e

que foram tão úteis para instalação da sociedade capitalista

de poder disciplinar, não estariam funcionando com

eficiência muito além das fronteiras da igreja progressista,

em sindicatos, partidos, enfim em diferentes associações

ditas revolucionárias? Parecem ser questões importantes para

se compreender o papel das esquerdas e do seu militante.

No nosso modo de entender é fundamental estudar os

mecanismos internos e positivos que impedem determinadas

organizações ditas revolucionárias de realizar seu ideário

de libertação, tendo em vista que a dominação que as

paralisa não é exclusivamente externa, repressiva ou

ideológica. Nestes estudos, diante da hipótese de

permanência das práticas pastorais nos grupos de esquerda,


seria preciso considerar que a legitimidade da ação política

nem sempre está, como se pretende, fundada sobre as bases de

uma 'racionalidade objetiva'. Ou melhor, os elementos que

compõem esta 'racionalidade objetiva' e seus efeitos não

devem ficar livres da análise crítica. O exemplo da igreja

católica progressista mostra uma troca de sinais, segundo os

quais, a religião teria descido para o mundo dos vivos,

enquanto a política teria incorporado o milenarismo. As

organizações de esquerda não estão, ao que parece, fora

desta inversão explicitada no âmbito da esquerda católica.

Enfim, o que permite este questionamento das práticas

políticas até pouco tempo consagradas por boa parte da

intelectualidade que se opunha ao capitalismo é, para além

de uma postura teórica, a própria experiência contemporânea:

prevalecem enfrentamentos específicos no lugar de

mobilizações gerais, ocorre a descentralização das lutas ao

invés da centralização hierárquica, afirma-se enfim, a

prática de resistir ao poder por uma intervenção específica,

em substituição à atividade do militante total que se vê

representante do oprimido e portador da sua voz.

Certamente restam ainda muitas dúvidas quanto à

igreja progressista. Dúvidas, por exemplo, sobre o processo

de formação do discurso da teologia da libertação e sobre os

seus efeitos nos movimentos populares. Também permanecem


interrogações sobre as potencialidades totalitárias dos

movimentos ligados à igreja progressista.

Nosso propósito não era fazer um estudo conclusivo

sobre a igreja progressista e o militante católico, mas

lançar um novo olhar sobre o conjunto de relações que

envolvem esta intrigante forma de mobilização política.

Outros estudos devem ser empreendidos para que se possam

compreender as determinações e possibilidades desta peculiar

combinação entre política e religião presente na igreja

católica do terceiro mundo. Nestes estudos será preciso

considerar, entre outras coisas, a incapacidade dos Estados

latino-americanos de estender a sua soberania à massa

popular e a tradição católica desta população. Sem dúvida,

são elementos fortemente elucidativos para esta afinidade

político-religiosa.

Para onde efetivamente esta militância pode conduzir

é uma questão ainda em aberto. Este trabalho espera ter con-

tribuído para sua resposta.


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