Você está na página 1de 6

A prática lacaniana e o princípio da imprevisibilidade

Considerações preliminares sobre o tempo lógico

Cleide Pereira Monteiro

Palavras-chave: tempo lógico, imprevisibilidade, sessão analítica, corte.

Ao concluir a escrita deste trabalho, duas frases me vieram:


Aos poetas a poesis, aos analistas um esforço de poesia.
A segunda frase nos instiga a dar um subtítulo a este escrito: Do princípio ao fim: a
sessão é zen?
Não pretendo responder, apenas instigá-los a pensar junto comigo algumas questões
que perpassam a clínica de orientação lacaniana. O que tenho a dizer é nada inédito. É um
tema bastante discutido no seio da Delegação Paraíba, sobretudo o foi nos seminários
preparatórios à nossa III Jornada em 2003, que teve como título: “Os princípios da prática
lacaniana”. Em uma dessas ocasiões apresentei o texto de Graciela Brosdsky sobre “O
princípio de imprevisibilidade”1, pronunciado no XIII Encontro Brasileiro do Campo
Freudiano, realizado em Belo Horizonte, em maio de 2003. Para ela, um dos aspectos que
diferencia a prática standard da IPA e a prática lacaniana é o tratamento a ser dado ao
imprevisível: ele deve ser favorecido ou controlado? Ao analista previsível da IPA, Lacan
responde com um analista “intratável”.
Parto, então, da idéia de que a imprevisibilidade é um dos princípios que norteiam a
prática lacaniana. Talvez a minha contribuição seja a de estreitar os laços desse princípio com
a questão da temporalidade na análise, articulação esboçada por Graciela.
Não há que não tenha ouvido falar que a primeira insurgência de Lacan contra as
prescrições da ortodoxia psicanalítica consolidadas nos anos 50, no seio da IPA, surgiu em
torno da questão do tempo da sessão. Inclusive, essa questão, aliada a outras da formação do
analista, redeu a Lacan sua excomunhão da IPA. Em contraposição a exigência do ritual do
tempo de duração fixa, Lacan institui o princípio da sessão de duração variável, também
chamada de sessões curtas, em que adota a prática do corte da sessão. Isso não é sem razão,
como veremos. Ele, aliás, como observa Jesus Santiago, se confronta com a concepção
freudiana da atemporalidade do inconsciente para estabelecer uma afinidade fundamental do
inconsciente com o tempo, fazendo deste um fator determinante para o advento daquele. Para
Lacan, o inconsciente é algo da ordem do “não – realizado”, mas que, no entanto, se realiza

1
Texto publicado na Opção Lacaniana 37.
como invenção que se cria à medida que uma análise avança. Essa ficção própria à
experiência analítica exige que o inconsciente-sujeito se inscreva como acontecimento na
trama do tempo. Um tempo que não é o passado e a rememoração, mas o porvir e a
realização, o que supõe a imprevisibilidade.
Freud cria a psicanálise quando fica siderado frente às surpresas do inconsciente. Sua
indicação de que o analista deve tratar cada caso como novo, deixando desse modo
surpreender-se, não considera que o analista também pode e deve surpreender o paciente.
No contexto da IPA, quando a imprevisibilidade do analista aparece é no eixo
simétrico da contratransferência, pois a relação analista-analisante dá-se entre dois sujeitos.
Lacan não considerava que na análise estivessem implicados dois sujeitos, mas apenas um, o
analisante, cabendo ao analista prestar-se à condição de objeto, o que quer dizer, destituído
de subjetivação. Se na prática lacaniana, o princípio de imprevisibilidade se impõe é porque
se está diante do real, que como diz Miller, não é apenas sem sentido, mas, também, sem lei.
Esse real, apesar de impossível, apenas é apreensível pela via da contingência, e, portanto,
pelo que é variável, imprevisível, sendo assim, impossível de calcular. Nessa direção, faz
sentido falar em uma clínica da contingência, na qual se encontra um analista cúmplice com o
real. Cumplicidade que faz cair por terra à dita neutralidade do analista, e seu kit de
segurança: as regras do enquadre, como aquelas aplicadas ao tempo.
Na escolha lacaniana, como bem a define Miller, o que conta no analista é um estado
zen de disponibilidade ao inesperado e sua presença de espírito para aproveitar as ocasiões.
Essa tática da oportunidade torna-se fundamental à sobrevivência da psicanálise em um
mundo onde ninguém quer se encontrar com a surpresa.
A surpresa e a contingência são os dois ângulos tomados por Graciela para abordar o
tema da imprevisibilidade. O que pretendo falar passeia tanto num quanto noutro ângulo.
A surpresa em uma análise germina no cruzamento de duas repetições: a do analisante
e a do analista. Do lado do analisante encontramos o movimento repetitivo da associação livre
que gira em torno da ladainha do gozo; do lado do analista, encontramos a repetição da série
de sessões. Como observa Brodsky (2003, p. 44), a surpresa que advém dessas repetições, que
é sempre bom lembrar que são dissimétricas, obedecem a políticas bem distintas: se do lado
do analisante, a surpresa se produz na falha do saber, quando o saber tropeça e produz
estranhas formações, deixando o sujeito na perplexidade; do lado do analista, a surpresa
provém da interpretação ou do corte, quando o analista intervém na repetição do gozo, o que
implica em mexer com a dimensão temporal da análise.
Nos “Os usos do tempo”, Miller (apud. BONNINGUE, 2000, p. 8) destaque que na
regularidade quase burocrática que é a sessão analítica, “se alojam índices e marcas do
imprevisível”. Nesse sentido, ele define a sessão como sendo “o lugar previsto para que nela
se produza o imprevisível”. Porém, este último só é possível na medida em que se considera
a dimensão da espera articulada à função da pressa.
A articulação, nada usual, sem dúvida intrigante, entre a presa e a espera, que penso
ser algo suscitado pelo desejo do analista, é o proveito que podemos tirar do texto de LACAN
(1998, p. 197-213), “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada”. Essa questão de
incluir o tempo na lógica é uma inovação que Lacan faz em relação à lógica clássica, que
excluí o tempo. O termo expresso no título – “tempo lógico” – já sugere de cara uma
concepção outra que transforma o tempo em uma operação passível de cálculo, apesar de seus
efeitos serem incalculáveis. O referido texto, que não fala absolutamente de experiência
analítica, pelo menos diretamente, traça os fundamentos de um tempo que seja válido para um
sujeito quando tomado na eficácia da análise.
A lógica do tempo subjetivo exposto por Lacan nesse texto, lógica arredia aos
ponteiros do relógio, comporta três momentos, que não são absolutamente, o passado, o
presente e o futuro, mas o “instante de ver”, o “tempo de compreender” e o “momento de
concluir”. Ele constrói esses momentos lógicos em relação aos sofistas gregos, tomando como
exemplo o famoso apólogo dos três prisioneiros, o qual não retomarei em sua complexidade,
porém eu os remeto ao referido texto; vocês vão se divertir. Trata-se de três prisioneiros que
para ganharem a liberdade oferecida pelo diretor do presídio, têm que acertar a cor do disco
que está preso às suas costas, e justificar sua resposta por um procedimento lógico. São cinco
discos - três de cor branca e dois de cor preta. Sem que nenhum dos três veja a sua cor, o
diretor coloca um disco branco, nas costas de casa um deles. Vão ao texto de Lacan e vejam
as combinações possíveis. Vocês verão que estas são transformadas, por Lacan, em três
tempos de possibilidade: o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir.
Nos três momentos lógicos referidos, a instância temporal irá apresentar-se de um
modo distinto em cada um deles. O primeiro, o instante de ver, dominado pelo olhar e pela
presença de um referente, é o momento de fulguração, em que o tempo é igual a zero. Esse
tempo não é suficiente para se resolver à situação desconhecida; torna-se necessário um
tempo para compreender. Esse segundo tempo exige a espera; supõe a duração de um tempo
de meditação. A espera, em seu valor lógico, é condição essencial para a resolução do
sofisma, não devendo ser confundida com a espera do adiamento do ato no sujeito obsessivo.
A espera, nesse segundo tempo, se interrompe com a emergência precipitadora do ato, que é o
terceiro tempo.
O momento de concluir, como Lacan chama o terceiro tempo, exige a urgência. O
sujeito não sabe o que os outros vão fazer, o que o obriga a agir. É no auge da tensão temporal
que o sujeito apressa seu julgamento, “eu me apresso em me afirmar como branco”, e
precipita seu ato. Essa passagem ao ato ocorre no exato momento em que uma certeza é
antecipada. Não é sem razão que Lacan dá o nome de “asserção de certeza antecipada” ao
processo de pressa que caracteriza esse fenômeno de tomada de decisão. Talvez pudéssemos
dizer que o analista é o agente da certeza antecipada do tempo lógico, propiciando o efeito de
surpresa do lado do analisante.
Tirando as conseqüências desse problema de lógica, podemos entrever o porquê do
uso, por Lacan, da sessão de tempo curto e variado, com direito ao corte. Lacan adota esta
prática, não simplesmente por diletantismo, mas para fazer intervir no tempo da sessão a
função criativa da pressa. Como observa Jorge Chamarro, “a sessão curta começa na tensão
iminente a respeito de seu término. Isso implica que o tempo de concluir e sua pressa são
predominantes e marcam os demais tempos (...) É uma sessão com contagem regressiva, uma
sessão que coloca, de entrada, quantas palavras entrarão. Não se trata de introspecção, mas
sim do falar atravessado pelo não penso” (CHAMORRO, 2000: 17-18). Não é difícil perceber
que a sessão curta é particularmente vulnerável à transferência negativa. No entanto, como
nos lembra Chamorro, “a sessão curta é, em primeiro lugar, para o analista, um ‘me retiro’ do
lugar do Outro, para ocupar o lugar do objeto que cai” (ibid.: 18)
Nessa perspectiva, a abstinência, a neutralidade, a atenção flutuante, categorias através
das quais Freud tentava definir a posição do analista, perdem a razão de ser. Lacan demarca a
posição do analista, advertindo que este deve estar munido de um desejo inédito, chamado,
por ele, de desejo do analista. É este desejo que está no marco da sessão curta e provoca a
conclusão. Assim, o encurtamento da sessão não visa outra coisa senão precipitar no
analisante o momento de concluir, para que o sujeito se declare o que é. Se a pressa é inimiga
da perfeição, como diz o adágio popular, nessa lógica introduzida por Lacan, poderíamos
dizer, a pressa é amiga da conclusão.
Introduzir uma temporalidade na análise possibilita manejar com um tempo que seja
capaz de barrar a eterna postergação do obsessivo ou a insistente antecipação da histérica.
Essa é uma temporalidade que vai na contramão do tempo do neurótico. O neurótico age
sempre fora da hora, pois ele está sempre perdendo a hora, ou antecipando, o que dá no
mesmo. Como bem ilustra Hamlet, nunca é chegada à hora de seu desejo.
Reporto-me, rapidamente, ao caso de uma analisante, que em sua função de caixa de
um banco público, passava horas tentando encerrar o caixa sem conseguir fazê-lo; enfrentava
ainda o constrangimento de ter que se haver com a raiva dos clientes na fila, pois esta não saia
do lugar. Se em seu trabalho ele contava e recontava o dinheiro, em nossos encontros, esse
movimento de contar e recontar, dizer e redizer tomou conta das sessões. Ao iniciar a
ladainha, em umas sessões, dizendo não mais saber o que fazer, a analista, simplesmente diz,
“corra, corra”, e encerra imediatamente a sessão. Se esse ato da analista o fez sentir-se
“ludibriado”, pois a sessão não durou mais que poucos, pouquíssimos minutos, também o
conduziu a momentos surpreendentes de sua história, onde aparece um pai extremamente
rigoroso com este único filho homem, que nunca podia falhar, nem mesmo usar óculos de
grau, o que o fez passar parte de sua vida “cego”, e “um abestalhado”, como sempre fazia
questão de pronunciar o pai. O corte da analista diante da angústia dos atos compulsivos faz
precipitar um efeito de verdade, emergindo a posição desse sujeito de objeto de gozo dos
caprichos do pai. A saída do caixa, conquistada através de um concurso interno, o fez ocupar
um outro lugar na empresa, a de avaliador de jóias. Quando iniciou a análise, para ele era
impossível “sair do lugar”.
Em várias passagens de sua obra, Lacan compara o procedimento das sessões curtas de
tempo lógico à técnica zen, enquanto um meio aplicado pelo mestre de levar o discípulo à
experiência espiritual de revelação e iluminação (Satori). O que Lacan destaca não é a ascese
mística em si, mas a técnica empregada para alcançá-la.O mestre de Zen propõe aos
discípulos uma espécie de problema, um Ko-an (Kung-an em chinês), que pode ser uma
afirmação, uma palavra, uma pergunta. Por exemplo, “ouve o som de uma mão” ou “qual é o
teu rosto original antes de nascerem teu pai e tua mãe?”2 O discípulo entra em estado de
meditação, e de tempos em tempos, tem encontros breves com o mestre. Aos passar alguns
anos nesse processo, o estudante de Zen chegará a um estado de completa paralisação. Frente
à hesitação do discípulo, o mestre quebra o silêncio com qualquer coisa – um pontapé, um
sarcasmo, um tapa, um berro – suspendendo a entrevista. Vemos então que a função do
mestre é de corte, deixando cair por terra toda significação. Assim, na técnica Zen, não se
trata para o discípulo de compreender ou decifrar o Koan introduzido pelo mestre, pois este
aponta para o sem sentido, que lança o sujeito na procura de uma resposta inédita.
Desde essa perspectiva, Lacan em “Função e campo da fala e da linguagem”, fala de
uma certa aplicação do princípio da técnica Zen à análise: “Sem chegar aos extremos a que é
levada esta técnica, uma vez que eles seriam contrários a algumas limitações que a nossa se
2
Exemplos retirados do livro de Suzuki e Fromm: “Zen- budismo e psicanálise”
impõe, uma aplicação discreta de seu princípio na análise parece-nos mais admissível do que
certas modalidades chamadas de análise das resistências, na medida em que ela não comporta
em si nenhum perigo de alienação do sujeito. Pois ela só rompe o discurso para parir a fala”
(LACAN: 1998: 317).
Romper o discurso para parir a fala, diz Lacan. Hoje, diríamos: viver uma experiência
de gozo mais além do tormento das significações.

OBRAS CONSULTADAS

BASZ, G.; MILLAS, K. O imprevisto Zen. Opção Lacaniana Revista Brasileira


Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 29, dezembro/ 2000.

BONNINGUE, C. A sessão analítica: extratos do curso de J.-A. Miller “Os usos do tempo”.
Correio Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, [S.I.], n. 26, abril/ 2000.

BRODSKY, G. Prática lacaniana: O princípio da dissimetria. Opção Lacaniana Revista


Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 37, setembro/ 2003.

_____. Prática lacaniana: O princípio da imprevisibilidade. Opção Lacaniana Revista


Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 37, setembro/ 2003.

CHAMORRO, J. Nossas? Sessões curtas. Correio Revista da Escola Brasileira de


Psicanálise, [S.I.], n. 27, maio/ 2000.

LACAN, J. O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. In:_____Escritos. Rio


de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 1998.

_____. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro,
RJ: Jorge Zahar Editor, 1998.

MILLER, Jaques-Alain. O real é sem lei. Opção lacaniana: Revista Brasileira Internacional
de Psicanálise. São Paulo, n. 34, out. 2002.

QUINET, A. Que tempo para a análise?. In _____As 4 + 1 condições da análise. 4 ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.

SUZUKI, D. T. Introdução ao zen budismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961.

_____; FROMM. E. Zen-budismo e psicanálise. São Paulo: Cultrix, 1980.

Você também pode gostar