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Curso Telepresencial – Literatura Profª. Isabel Vega AULA 2

Temas: Barroco (Gregório de Matos e Pe. Antônio Vieira) / Arcadismo

I – BARROCO: GREGÓRIO DE MATTOS (1636-1696)

Nessa obra [de Gregório de Mattos] há poemas líricos, religiosos e satíricos, que constroem um retrato de
sua personalidade revolta e um retrato do Brasil seiscentista, o mais completo até então. Nele, não há o ânimo
documentário ou a transfiguração hiperbólica, mas o flagrante expressivo até a caricatura, o ataque se elevando à
denúncia, a ironia alegre ombreando com a revolta amarga, em contraste com a transfiguração eufórica de outros
autores do tempo, em relação aos quais a sua poesia satírica aparece como contracorrente desmistificadora. Ele
desdenha as aparências do mundo e desvenda a sua iniquidade, com um pessimismo realista que não hesita em
entrar pela obscenidade e a crueza da vida do sexo. (...) Através da sua obra de rebelde apaixonado, transparece a
irregularidade do mundo brasileiro de então, com a sociedade onde o branco brutalizava o índio e o negro, as
autoridades prevaricavam, os clérigos pecavam a valer e a virtude parecia às vezes uma farsa difícil de
representar.
A poesia religiosa é nele marcada pelas tensões do pecado, enquanto o lirismo amoroso entra pela
idealização petrarquiana e camoniana, por meio de uma linguagem na qual os recursos que na sátira serviam para
efeitos cômicos se tornam veículos de uma comovente pesquisa da alma e do sentimento. É o caso de certos
traços queridos do espírito barroco, como a antítese, o jogo de palavras, o equívoco, que usa de maneira parecida
à de seus mestres espanhóis: Góngora e Quevedo.
(CANDIDO, Antonio. Iniciação à Literatura Brasileira.)

POEMAS:

A Jesus Cristo Nosso Senhor A Cristo S. N. Crucificado estando o poeta


na última hora de sua vida
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido; Meu Deus, que estais pendente em um madeiro,
Porque, quanto mais tenho delinquido, Em cuja lei protesto viver,
Vos tenho a perdoar mais empenhado. Em cuja santa lei hei de morrer
Animoso, constante, firme, e inteiro.
Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido: Neste lance, por ser o derradeiro,
Que a mesma culpa, que vos há ofendido, Pois vejo a minha vida anoitecer,
Vos tem para o perdão lisonjeado. É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai manso Cordeiro.
Se uma ovelha perdida, e já cobrada,
Glória tal e prazer tão repentino Mui grande é vosso amor, e meu delito,
A vós deu, como afirmais na sacra história, Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor, que é infinito.
Eu sou, Senhor, ovelha desgarrada;
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino, Esta razão me obriga a confiar,
Perder na vossa ovelha a vossa glória. Que por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar.
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A Maria das Póvoas À cidade da Bahia

Discreta, e formosíssima Maria, A cada canto um grande Conselheiro,


Enquanto estamos vendo a qualquer hora que nos quer governar cabana, e vinha:
Em tuas faces a rosada Aurora, não sabem governar sua cozinha,
Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia: e querem governar o Mundo inteiro!

Enquanto com gentil descortesia Em cada porta um frequentado Olheiro,


O ar, que fresco Adônis te namora, que a vida do Vizinho, e da Vizinha,
Te espalha a rica trança voadora, pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
Quando vem passear-te pela fria: para a levar à Praça, e ao Terreiro.

Goza, goza da flor da mocidade, Muitos Mulatos desavergonhados,


Que o tempo trota a toda ligeireza, trazendo pelos pés os Homens nobres,
E imprime em toda a flor sua pisada. posta nas palmas toda a picardia.

Oh não aguardes, que a madura idade Estupendas usuras nos mercados:


Te converta essa flor, essa beleza todos, os que não furtam, muito pobres:
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada. eis aqui a cidade da Bahia.

CRÔNICA DO VIVER BAIANO SEISCENTISTA:

 A chegada do illustrissimo senhor D. João Franco de Oliveyra tendo sido ja bispo em Angolla.
 Ao vigario da villa de S. Francisco por huma pendencia, que teve com hum ourives a respeyto de huma mulata,
que se dizia correr por sua conta.
 A outro vigario de certa freguezia, contra quem se amotinávam os freguezes por ser muyto ambicioso.
 A certo frade na villa de Sam Francisco, a quem hua moça fingindose agradecida à seus repetidos galanteyos, lhe
mandou em simulações de doce huma panella de merda.
 Santigua-se o poeta contra outros pataratas avarentos, injustos, hypocritas, murmuradores, e por varias
maneiras viciosos, o que tudo julga em sua pátria.
 Descreve a deplorável peste, que padeceo a Bahia no a. 1686, a quem discretamente chamáram bicha, porque
variando nos sintomas, para que a medicina não soubesse atalhar os effeytos, mordia por differentes boccas,
como a bicha de hercoles. Tambem louva o cartitativo zelo de algumas pessoas com os enfermos.
 Louva o poeta obsequiozamente o grande zelo, e caridade, com que Antonio de Andrade, juiz que era dos
orphãos desta cidade da Bahia sendo dispenseyro da Santa Casa de Misericordia tratava aos pobres doentes do
hospital.
 Erguiam-se trez mulheres a hum mesmo tempo para chegar ao confissionario em noyte de natal e a mais
corpulenta dellas soltou hum traque com a fadiga de chegar primeyro.

II – BARROCO: Pe. ANTÔNIO VIEIRA (1608-1697)

Antônio Vieira (1608-1697) nasceu em Portugal, mas veio muito novo para o Brasil, onde morreu e onde
viveu intermitentemente a maior parte da vida. A outra parte, viveu-a na Europa. Jesuíta e catequizador, é,
contudo, o oposto de Anchieta, que foi beatificado e está em vias de ser canonizado. Vieira era um homem do
mundo, ambicioso e aventureiro, cuja verdadeira vocação foi a política, tendência aliás frequente na sua Ordem.
Confessor da Rainha de Portugal, conselheiro e homem de confiança do Rei D. João IV, intrigou e armou projetos,
desempenhou missões meio secretas na França, Holanda e Itália, exerceu cargos da sua Ordem no Brasil e parece
que via na religião um lado temporal tão importante quanto o outro.
A sua vida foi bastante atormentada. A certa altura caiu em desgraça junto ao novo Rei; vindo para o
Brasil, foi expulso pelos colonos escravagistas, contra os quais defendia os índios; de volta a Portugal, foi
processado e condenado pela Inquisição, — mas sempre se reconstituiu, perseguindo com tenacidade certos
propósitos, que revelam interessante contraste entre a credulidade messiânica e o realismo. Este o fez conceber
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planos econômicos avançados e a aconselhar a aliança com os fornecedores disponíveis de capitais, os judeus,
que sempre defendeu contra a Inquisição, preconizando uma política de tolerância. Por outro lado, era obcecado
pela preparação visionária de uma monarquia predestinada a ser o Quinto Império, a portuguesa, com sede no
Brasil.
Também como escritor é oposto a Anchieta, pois em vez de ajustar-se à mente do povo e dos índios,
preferiu impor-lhes o estilo rutilante da sua oratória, prolixa, densa, cheia de alusões alegóricas, nutrida das
argúcias do raciocínio, tendo muitas vezes objetivos temporais sob a superfície convencional da doutrina. Como
tinha grande magnetismo, despertou sempre o entusiasmo dos ouvintes, fossem eles índios, colonos, cortesãos,
estadistas, ou Cristina da Suécia e os prelados que acorreram para vê-lo pregar em italiano por ocasião de sua
estada em Roma (1669-1675). Os seus sermões, que ele próprio organizou na primeira edição em 15 volumes,
mostram, mesmo sem o calor da presença, que ele foi o maior orador sacro da língua. Deixou também vasta
correspondência, da qual boa parte se preservou e foi editada no século XVIII em três tomos. Escreveu ainda
relatórios de grande interesse e tratados onde dá largas ao profetismo, como a curiosa História do Futuro,
inacabada e de publicação póstuma. Escritor ardente, correto, a sua linguagem cheia de vigor e harmonia tornou-
se um dos modelos da escrita clássica portuguesa.
(CANDIDO, Antonio. Iniciação à Literatura Brasileira.)

TRECHOS DOS SERMÕES:

O primeiro remédio é o Tempo. Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere,
tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera! São as afeições como as
vidas que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado muito.
São como as linhas que partem do centro para a circunferência, que quanto mais continuadas,
tanto menos unidas. Por isso, os antigos sabiamente pintaram o amor menino. Porque não há amor tão robusto
que chegue a ser velho. De todos os instrumentos, com que o armou a natureza, o desarma o tempo. Afrouxa-lhe
o arco com que já não atira; embota-lhe as setas com que já não fere; abre-lhe os olhos com que vê o que não
via; e faz-lhe crescer as asas com que voa e foge. A razão natural de toda esta diferença é porque o tempo tira as
novidades às coisas, descobre-lhe os defeitos, enfastia-lhe o gosto, e basta que sejam usadas para não serem as
mesmas. Gasta-se o ferro com uso, quanto mais o amor! O mesmo amar é causa de não amar, e o ter amado
muito, de amar menos.
(Sermão do Mandato, 1643.)

Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstância da pessoa? Será porque
antigamente os pregadores eram santos eram varões apostólicos e exemplares, e hoje os pregadores são eu e
outros como eu? — Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho
não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão,
saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita
diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da
mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O
semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador.
Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são
as que convertem o Mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? — o conceito
que de sua vida têm os ouvintes.
(Sermão da Sexagésima, 1655.)

Que coisa há na confusão deste mundo mais semelhante ao inferno, que qualquer destes vossos
engenhos, e tanto mais, quanto de maior fábrica? Por isso foi tão bem recebida aquela breve e discreta definição
de quem chamou a um engenho de açúcar doce inferno. E verdadeiramente quem vir na escuridade da noite
aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes: as labaredas que estão saindo a borbotões de cada uma
pelas duas bocas ou ventas, por onde respiram o incêndio; os etíopes, ou ciclopes, banhados em suor, tão negros
como robustos, que subministram a grossa e dura matéria ao fogo, e os forcados com que o revolvem e atiçam;
as caldeiras ou lagos ferventes com os cachões sempre batidos e rebatidos, já vomitando espumas, exalando
nuvens de vapores, mais de calor que de fumo, e tornando-os a chover para outra vez os exalar; o ruído das
rodas, das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo
tempo, sem momento de tréguas, nem de descanso; quem vir enfim toda a máquina e aparato confuso daquela
Babilônia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etnas e Vesúvios, que é uma semelhança do inferno. Mas, se
entre todo esse ruído, as vozes que se ouvirem forem as do Rosário, orando e meditando os mistérios Dolorosos,
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todo esse inferno se converterá em Paraíso; o ruído em harmonia celestial; e os homens, posto que pretos, em
Anjos.
(Sermão de Nossa Senhora do Rosário, 1633.)

1ª FASE 2012: (...) na questão de se o mundo é mais digno de riso ou de pranto, e se à vista do mesmo mundo
tem mais razão quem ri, como ria Demócrito, ou quem chora, como chorava Heráclito, eu, para defender, como
sou obrigado, a parte do pranto, confessarei uma coisa e direi outra. Confesso que a primeira propriedade do
racional é o risível: e digo que a maior impropriedade da razão é o riso. O riso é o final do racional, o pranto é o
uso da razão.
(...) Mas se Demócrito era um homem tão grande entre os homens e um filósofo tão sábio, e se não só via
este mundo, mas tantos mundos, como ria? Poderá dizer-se que ele ria não deste nosso mundo, mas daqueles
seus mundos.
E com razão, porque a matéria de que eram compostos os seus mundos imaginados, toda era de riso. É
certo, porém, que ele ria neste mundo e que se ria deste mundo. Como, pois, se ria ou podia rir-se Demócrito do
mesmo mundo ou das mesmas coisas que via e chorava Heráclito? A mim, senhores, mo parece que Demócrito
não ria, mas que Demócrito e Heráclito ambos choravam, cada um ao seu modo.
Que Demócrito não risse, eu o provo. Demócrito ria sempre: logo não ria. A consequência parece difícil e
evidente. O riso, como dizem todos os filósofos, nasce da novidade e da admiração, e cessando a novidade ou a
admiração, cessa também o riso; o como Demócrito se ria dos ordinários desconcertos do mundo, o que é
ordinário e se vê sempre, não pode causar admiração nem novidade; segue-se que nunca ria, rindo sempre, pois
não havia matéria que motivasse o riso.
( Sermão da sexagésima)

III – O ARCADISMO E A CONFIGURAÇÃO DO SISTEMA LITERÁRIO

No Brasil, o Arcadismo é contemporâneo da passagem do eixo político e econômico para o Sul. No Rio de
Janeiro e nas cidades da Capitania das Minas Gerais ocorre o movimento cultural e literário mais característico na
segunda metade do século XVIII e começo do século XIX, já ligados à crise do estatuto colonial e às aspirações de
independência em relação à Metrópole. Alguns poetas arcádicos serão processados, presos, desterrados, devido
à sua posição crítica em relação ao Governo Português e a projetos mais ou menos vagos de separação.
Esse momento é de amadurecimento para todo o Brasil, que finalmente adquire um contorno geográfico
bem próximo do que tem hoje e vê núcleos de povoamento se espalharem por todas as regiões, embora a
população fosse rala e continuasse concentrada no litoral e adjacências. Esse amadurecimento se reflete na
quantidade de homens cultos que atuaram aqui e na Metrópole — sacerdotes, naturalistas, administradores,
matemáticos, poetas, publicistas — formando o primeiro grande conjunto de brasileiros capazes de ombrear com
os naturais de Portugal.
Na literatura sobressai um grupo de poetas que nasceram ou viveram em Minas Gerais e no Rio de
Janeiro, quase todos marcados pelo espírito renovador da Arcádia Lusitana, e alguns deles realmente modernos
pela escrita e a atitude mental.

CARACTERÍSTICAS

→ Bucolismo (Fugere urbem)


→ Desprezo pelo exagero e pelo rebuscamento barroco (Inutilia truncat)
→ Valorização do momento presente (Carpe diem)
→ Busca da espontaneidade e da simplicidade (nativismo: descrição da natureza)
→ Pseudônimos pastoris
→ Incorporação do indígena (Ideal do “bom selvagem”, de Rousseau): Caramuru e O Uraguai
→ Mulher como parte do cenário – pastoras, musas dos poetas

OBS.: Poesia satírica – Cartas Chilenas


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♦ POEMAS DE TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA

Lira VIII

Marília, de que te queixas?


De que te roubou Dirceu Se os peixes, Marília, geram
O sincero coração? Nos bravos mares, e rios,
Não te deu também o seu? Tudo efeitos de Amor são.
E tu, Marília, primeiro Amam os brutos ímpios,
Não lhe lançaste o grilhão? A serpente venenosa,
Todos amam: só Marília A onça, o tigre, o leão.
Desta Lei da Natureza Todos amam: só Marília
Queria ter isenção? Desta Lei da Natureza
Queria ter isenção?
Em torno das castas pombas,
Não rulam ternos pombinhos? As grandes Deusas do Céu
E rulam, Marília, em vão? Sentem a seta tirana
Não se afagam c’os biquinhos? Da amorosa inclinação.
E a prova de mais ternura Diana, com ser Diana,
Não os arrasta a paixão? Não se abrasa, não suspira
Todos amam: só Marília Pelo amor de Endimião?
Desta Lei da Natureza Todos amam: só Marília
Queria ter isenção? Desta Lei da Natureza
Queria ter isenção?
Já viste, minha Marília,
Avezinhas, que não façam Desiste, Marília bela,
Os seus ninhos no verão? De uma queixa sustentada
Aquelas, com que se enlaçam, Só na altiva opinião.
Não vão cantar-lhes defronte Esta chama é inspirada
Do mole pouso, em que estão? Pelo Céu; pois nela assenta
Todos amam: só Marília A nossa conservação.
Desta Lei da Natureza Todos amam: só Marília
Queria ter isenção? Desta Lei da Natureza
Não deve ter isenção.

Lira XVII

Minha Marília, Em toda a parte Quem tem teu rosto Ao rosto feio
Tu enfadada? Cega namora Ah! não receia A perfeição.
Que mão ousada Ao teu Pastor. Que terno amante
Perturbar pode Há sempre fumo Solte a cadeia, Quando apareces
A paz sagrada Aonde há fogo: Quebre os grilhões. Na madrugada,
Do peito teu? Assim, Marília, Mal embrulhada
Porém que muito Há zelos, logo Não anda Laura Na larga roupa,
Que irado esteja Que existe amor. Nestas campinas E desgrenhada
O teu semblante! Sem as boninas Sem fita, ou flor;
Também troveja Olha, Marília No seu cabelo, Ah! que então brilha
O claro Céu. Na fonte pura Sem peles finas A natureza!
A tua alvura, No seu jubão. Então se mostra
Eu sei, Marília, A tua boca, Porém que importa? Tua beleza
Que outra Pastora E a compostura O rico asseio Inda maior.
A toda hora, Das mais feições. Não dá, Marília,
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♦ POEMAS DE CLÁUDIO MANUEL DA COSTA

LXXII LXII

Já rompe, Nise, a matutina aurora Torno a ver-vos, ó montes; o destino


O negro manto, com que a noite Aqui me torna a pôr nestes oiteiros;
escura, Onde um tempo os gabões deixei grosseiros
Sufocando do Sol a face pura, Pelo traje da Corte rico, e fino.
Tinha escondido a chama brilhadora.
Aqui estou entre Almendro, entre Corino,
Que alegre, que suave, que sonora, Os meus fiéis, meus doces companheiros,
Aquela fontezinha aqui murmura! Vendo correr os míseros vaqueiros
E nestes campos cheios de verdura Atrás de seu cansado desatino.
Que avultado o prazer tanto melhora!
Se o bem desta choupana pode tanto,
Só minha alma em fatal melancolia, Que chega a ter mais preço, e mais valia,
Por te não poder ver, Nise adorada, Que da cidade o lisonjeiro encanto;
Não sabe inda, que coisa é alegria;
Aqui descanse a louca fantasia;
E a suavidade do prazer trocada, E o que té agora se tornava em pranto,
Tanto mais aborrece a luz do dia, Se converta em afetos de alegria.
Quanto a sombra da noite lhe agrada.

XCVIII

Destes penhascos fez a natureza


O berço, em que nasci! oh quem cuidara, Por mais que eu mesmo conhecesse o dano,
Que entre penhas tão duras se criara A que dava ocasião minha brandura,
Uma alma terna, um peito sem dureza! Nunca pude fugir ao cego engano:

Amor, que vence os tigres por empresa Vós, que ostentais a condição mais dura,
Tomou logo render-me; ele declara Temei, penhas, temei; que Amor tirano,
Contra o meu coração guerra tão rara, Onde há mais resistência, mais se apura.

♦ CARTAS CHILENAS (coleção de treze cartas, assinadas por Critilo e endereçadas a Doroteu, residente em Madri.)

PRÓLOGO
Amigo leitor, arribou a certo porto do Brasil, onde eu vivia, um galeão, que vinha das Américas
espanholas. Nele se transportava um mancebo, cavalheiro instruído nas humanas letras. Não me foi dificultoso
travar, com ele, uma estreita amizade e chegou a confiar-me os manuscritos, que trazia. Entre eles encontrei as
Cartas Chilenas, que são um artificioso compêndio das desordens, que fez no seu governo Fanfarrão Minésio,
general de Chile.
Logo que li estas Cartas, assentei comigo que as devia traduzir na nossa língua, não só porque as julguei
merecedoras deste obséquio pela simplicidade do seu estilo, como, também, pelo benefício, que resulta ao
público, de se verem satirizadas as insolências deste chefe, para emenda dos mais, que seguem tão vergonhosas
pisadas.
Um D. Quixote pode desterrar do mundo as loucuras dos cavaleiros andantes; um Fanfarrão Minésio
pode também corrigir a desordem de um governador despótico.
Eu mudei algumas coisas menos interessantes, para as acomodar melhor ao nosso gosto. Peço-te que me
desculpes algumas faltas, pois, se és douto, hás-de conhecer a suma dificuldade, que há na tradução em verso. Lê,
diverte-te e não queiras fazer juízos temerários sobre a pessoa de Fanfarrão. Há muitos fanfarrões no mundo, e
talvez que tu sejas também um deles, etc.
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Carta 1
155 - Ah! pobre Chile, que desgraça esperas!
Quanto melhor te fora se sentisses
As pragas, que no Egito se choraram,
Do que veres que sobe ao teu governo
Carrancudo casquilho, a quem rodeiam
160 - Os néscios, os marotos e os peraltas!
Seguido, pois, dos grandes entra o chefe
No nosso Santiago junto à noite.

Carta 2
Um pede, Doroteu, que lhe dispense
Casar com uma irmã da sua amásia;
230 - Pede outro que lhe queime o mau processo,
Onde está criminoso, por ter feito
Cumprir exatamente um seu despacho;
Diz este que os herdeiros não lhe entregam
Os bens, que lhe deixou, em testamento,
235 - Um filho de Noé; aquele ralha
Contra os mortos, juízes, que lhe deram,
Por empenhos e peitas, a sentença
Em que toda a fazenda lhe tiraram;
Um quer que o devedor lhe pague logo;
240 - Outro, para pagar, pretende espera;
Todos, enfim, concluem que não podem
Demandas conservar; por serem pobres
E grandes as despesas, que se fazem
Nas casas dos letrados e cartórios.

Carta 4
135 - Fazem os seus deveres os afetos
Do nosso grão tenente: amor e ódio.
Aquele que, risonho, lhe trabalha
Nas suas próprias obras, é mandado
Curar-se à Santa Casa, como pobre.
140 - Os outros são tratados como servos,
Que fogem ao trabalho dos senhores,
Para as correntes vão, arrancam pedra
E, quando algum fraqueia, o mau soldado
Dá-lhe um berro que atroa, a mão levanta
145 - E, nas costas, o relho descarrega.
Ah! tu, piedade santa, agora, agora,
Os teus ouvidos tapa e fecha os olhos?
Ou foge desta terra, aonde um Nero,
Aonde os seus sequazes, cada dia
150 - Para o pranto te dão motivos novos.
(...)

Que esperas, duro chefe, que não contas


185 - À corte os teus triunfos! Tu não podes
Mandar alqueires dos anéis tirados
Dos dedos que cortaste nas campanhas;
Mas de algemas, de pegas e correntes,
Podes mandar à corte imensos carros.

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