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CDD: 149.

PROFECIA E CONTEMPORANEIDADE NA HISTÓRIA


PASCALIANA 1

LUÍS CÉSAR GUIMARÃES OLIVA

Departamento de Filosofia/FFLCH
Universidade de São Paulo
Av. Luciano Gualberto, 315
05508-900, São Paulo, SP

Resumo: A contemporaneidade surge, em Pascal, para garantir a realidade histórica do relato


bíblico. No entanto, a noção sofrerá alterações em relação ao paradigma grego para que o povo
judeu se torne a grande testemunha da história. A profecia, por sua vez, garante a insuspeição
deste testemunho e aponta para o verdadeiro sentido da história: o espiritual.

Abstract: Contemporarity appears in Pascal’s works to assure the historical reality of the biblical
report. However, the concept will be changed in comparison to the greek paradigm in order to
make the jewish people become the greatest witness of history. Prophecy, on the other hand,
assures the insuspicion of this witness and shows the real meaning of history: the spiritual one.

Palavras-chave: profecia, contemporaneidade, história, testemunho, Escrituras.

1 A NOÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

“Toda história que não é contemporânea é suspeita.” Esta frase deve conduzir,
como um critério de base, a reflexão pascaliana sobre a história. Tudo o que se
disser sobre sua concepção de história deve passar pela noção de
contemporaneidade, por mais específica e matizada que esta noção apareça em
Pascal.
A idéia de história contemporânea aparece nos historiadores antigos
como critério constitutivo do método histórico: “Qual então era sua concepção
de evidência histórica? A resposta é que, de acordo com esta visão, eles

1 Este trabalho teve apoio da FAPESP.

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identificavam a evidência histórica com os relatos de fatos dados por


testemunhas oculares daqueles fatos. A evidência consiste em narrativas de
testemunhas oculares, e o método histórico consiste em extraí-las das
testemunhas” (COLLINGWOOD, 1946, p. 24). Heródoto não viu os eventos
mas ouviu aqueles que os viram. A validade do registro histórico baseia-se
apenas no relato de testemunhas oculares já que, como terreno do mutável, a
história não pode fornecer o objeto filosófico grego por excelência: o
permanente. Sendo assim, a veracidade dos relatos não pode basear-se numa
ascensão ao mundo das formas, mas apenas no testemunho vivo, sem adquirir
estatuto filosófico. Isto não significa, contudo, que os testemunhos fossem
recebidos sem crítica. Diz Tucídides: “Quanto aos fatos da guerra, considerei
meu dever relatá-los, não como apurados através de algum informante casual
nem como me parecia provável, mas somente após investigar cada detalhe com o
maior rigor possível, seja no caso de eventos dos quais eu mesmo participei, seja
naqueles a respeito dos quais obtive informações de terceiros. O empenho em
apurar os fatos se constituiu numa tarefa laboriosa pois as testemunhas oculares
de vários eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito das mesmas
coisas, mas variavam de acordo com suas simpatias por um lado ou pelo outro,
ou de acordo com sua memória” (TUCÍDIDES, 1986, p. 28, l. I, 22).
Como ressalta Collingwood, um grego não tinha dificuldade em aplicar
ao testemunho histórico o mesmo criticismo que se vê aplicado às testemunhas
de um tribunal. Questionando o informante, o historiador recriava com ele uma
imagem histórica muito mais completa e coerente do que aquela que surgiria
espontaneamente. “O resultado deste processo era criar na mente do
informante pela primeira vez um genuíno conhecimento dos eventos passados
que ele percebera mas dos quais, até então, tinha somente doxa, não episteme”
(COLLINGWOOD, 1946, p. 25).
Seria de se esperar que Pascal, defensor da contemporaneidade da
história, se aproximasse dos historiadores gregos, mas não é isto que ocorre. Ao
falar da história grega, Pascal escolhe Homero e Hesíodo, apresentando-os
como historiadores romancistas, em oposição aos historiadores bíblicos, estes

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sim contemporâneos. “628: Antigüidade dos judeus – Que diferença entre um


livro e o outro! Não me admira que os gregos tenham feito a Ilíada, nem os
egípcios e os chineses as suas histórias. Basta ver como isso nasceu. Esses
historiadores fabulosos não são contemporâneos das coisas a cujo respeito
escrevem. Homero faz um romance que ele dá como tal e assim é aceito, pois
ninguém duvidava de que a existência de Tróia e Agamenon fosse como o
pomo de ouro. Nem ele pensou em fazer uma história, mas apenas um
divertimento. O seu livro é o único do seu tempo; a beleza da obra faz durar a
coisa: todos a conhecem e falam dela: é preciso conhecê-la; todos a sabem de
cor. Quatrocentos anos depois, os testemunhos das coisas não estão mais vivos,
ninguém sabe mais, por seu conhecimento, se é uma fábula ou uma história:
visto que foi aprendida dos antepassados, pode passar por verdadeira”
(PASCAL, 1979, p. 194). Homero não viu, não ouviu os que viram, não tem
laços com os eventos que conta. Faz, portanto, um romance e não história.
Isto, contudo, não explica por que Pascal não se aproximou da matriz
grega da história contemporânea: Heródoto e Tucídides. Este último autor, no
mesmo sentido da crítica pascaliana, acrescenta: “À luz da evidência
apresentada até agora, todavia, ninguém erraria se mantivesse o ponto de vista
de que os fatos na antigüidade foram muito próximos de como os descrevi, não
dando crédito, de um lado, às versões que os poetas cantaram, adornando e
amplificando os seus temas, e de outro considerando que os logógrafos
compuseram as suas obras mais com a intenção de agradar aos ouvidos que de
dizer a verdade, uma vez que suas estórias não podem ser verificadas, e eles em
sua maioria enveredaram, com o passar do tempo, para a região da fábula,
perdendo, assim, a credibilidade” (TUCÍDIDES, 1986, p. 27, l. I, 21). A
explicação da recusa pascaliana talvez esteja justamente na limitação
constitutiva do método para estes autores. O caráter testemunhal da evidência
histórica impõe limites estreitos para o objeto tratado: “Seu método prendia-os
a rédeas cujo tamanho era aquele da memória viva: a única fonte que podiam
criticar era uma testemunha ocular com quem podiam conversar face a face. É
verdade que também relatavam eventos de um passado mais remoto, mas assim

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que o discurso histórico grego tenta superar este limite, torna-se algo muito
mais fraco e precário” (COLLINGWOOD, 1946, p. 26).
Ainda que se considere um tanto radical a afirmação de Collingwood, é
certo que esta característica dos historiadores gregos antigos deu-lhes, no
mínimo, uma acentuada preferência pela história recente. É verdade que
Heródoto apresentava a tradição oral de um povo como fonte válida para o
historiador, o que lhe dava uma gama de ação mais ampla que a de Tucídides.
Tanto que Tucídides visou ao próprio Heródoto ao criticar aqueles que
“escreviam para divertir”. Heródoto teria escrito sobre o “passado”, perdendo
sua credibilidade. Momigliano destaca esta característica de Heródoto (que lhe
valeu o epíteto de mentiroso) e como isto o levou a uma recuperação na
Renascença, porém não apresenta em geral um veredito muito diferente do de
Collingwood: “No essencial, Tucídides nada mais fez que reforçar o rigor e a
coerência dos critérios de Heródoto, preferindo a história contemporânea à
história quase contemporânea, e recusando-se a dizer algo que não julgasse
perfeitamente seguro; enquanto Heródoto julgava-se no direito de relatar, com
advertências, aquilo pelo que não podia responder diretamente”
(MOMIGLIANO, 1983, p. 20).
O que Heródoto ou Tucídides podiam oferecer a Pascal era um pequeno
capítulo da história universal, pouco questionável mas também pouco relevante.
Mesmo que a Guerra do Peloponeso pudesse oferecer um retrato útil da
condição humana, ela não poderia dar a origem desta condição. A importância
destas “histórias”, em Pascal, viria de uma possível inserção na história das
histórias presente na Bíblia. Portanto, se Pascal não se aproxima de Heródoto
ou Tucídides, talvez não seja por desconsiderá-los mas por não vê-los como
adversários perigosos. Já em Homero e Hesíodo, a amplitude de perspectivas
poderia sugerir uma história concorrente. A presença de um relato genético
desvinculado da criação bíblica pede uma “refutação”, a qual é feita com base
no caráter não contemporâneo destas histórias. Estes autores nada mais são do
que romancistas.
Como conciliar, porém, a exigência de uma história contemporânea com
a de um quadro amplo o suficiente para abranger as origens e os fins da

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criação? A idéia de testemunho realizará esta missão, embora difira em muito da


“testemunha ocular” dos gregos. “622: Começando a criação do mundo a
distanciar-se, Deus forneceu um único historiador contemporâneo e cometeu a
todo um povo a guarda desse livro, a fim de que essa história fosse a mais
autêntica do mundo e que todos os homens pudessem aprender uma coisa tão
necessária de saber e que só se pudesse saber por esse meio” (PASCAL, 1979,
p. 193). Moisés é apresentado neste fragmento como historiador
contemporâneo, mas não foi testemunha da criação ou do dilúvio. O que lhe dá
então a contemporaneidade? “625: Sem, que viu Lamec, que viu Adão, viu
também Jacó, que viu os que viram Moisés. Portanto, o dilúvio e a criação são
verdadeiros. Isso é concludente para pessoas que o entendam bem” (PASCAL,
1979, p. 194). No limite, apenas quatro gerações separam Moisés de Adão.
Pascal retoma o tema da longevidade das personagens bíblicas para garantir a
contemporaneidade da história. Não vamos abordar o contexto polêmico desta
temática, que aparece no livro XV da Cidade de Deus, mas certamente Pascal
tinha em mente a argumentação agostiniana em prol da leitura literal da idade
dos patriarcas. O que nos importa agora é o uso que Pascal faz desta
longevidade: “624: Por que torna Moisés a vida dos homens tão longa e tão
poucas as gerações? Com efeito, não é a extensão dos anos, mas a multidão de
gerações que torna as coisas obscuras. A verdade não se altera senão pela
mudança dos homens. No entanto, ele põe as duas coisas mais memoráveis que
já se imaginaram, a saber, a criação e o dilúvio, tão próximas que se podem
tocar” (PASCAL, 1979, p. 194). A evidência dos relatos não é propriamente
uma questão temporal, mas genealógica. Isto é crucial, por exemplo, para fazer
de Moisés uma testemunha válida da criação e do dilúvio, ainda que centenas de
anos o separem destes acontecimentos. O relato mosaico é, portanto, histórico, e
não meramente alegórico, ainda que a interpretação espiritual vá adquirir, como
veremos, valor preponderante para Pascal.
Enganar-se-ia, porém, quem pensasse que a testemunha próxima de
Pascal é apenas uma relativização da testemunha ocular dos gregos. A
longevidade não é o único fator que garante a verdade da história bíblica. Só é

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verdadeiro, para Pascal, o que pode apresentar o título sólido desta verdade:
“434: (...) Dirá então, ao contrário, que possui certamente a verdade aquele que,
por pouco que o incitemos, não pode apresentar nenhum título desta verdade, e
é forçado a desistir?” (PASCAL, 1979, p. 144). É todo um conjunto de
características do povo judeu que fará verídico o relato bíblico, e não só a
longevidade. Assim podemos ver quem é a verdadeira testemunha do Antigo
Testamento. Não Moisés, mas o povo judeu: “628:(...) Há muita diferença entre
um livro que faz um particular e é oferecido ao povo e um livro que faz ele
próprio um povo. Não há como duvidar que seja este livro tão antigo quanto o
povo!” (PASCAL, 1979, p. 195).
Para caracterizar este povo, Pascal usa, além da Bíblia, outras fontes
judaicas, dentre as quais destacam-se as obras do historiador judeu Flávio
Josefo. É a partir dele, sobretudo, que Pascal reúne no fragmento 620 alguns
sinais distintivos do povo judeu que vão se unir à longevidade dos membros
para validá-lo como testemunha. São eles a unidade familiar, a antigüidade, a
longa duração e a unidade jurídica do povo. 2
Afirmada desde as primeiras linhas de Resposta a Ápio, a antigüidade do
povo é demonstrada por Josefo examinando os historiadores de várias nações
antigas, os quais já atestavam a existência dos judeus, ainda que o fizessem
maldizendo-os, como no caso dos historiadores egípcios. Contra o principal
argumento contrário à antigüidade, a saber, o fato dos judeus não serem citados
pelos historiadores gregos, Josefo apresenta várias respostas. Ele encontra uma
citação implícita em Heródoto, dá razões geográficas que justificavam o pouco
contato entre estes povos e, sobretudo, desqualifica os historiadores gregos.
Primeiro por pertencerem a um povo muito “novo” 3 ; segundo (e este será o
argumento tomado por Pascal) por não visarem senão divertir e terem, em

Mais à frente veremos por que é fundamental que estas características sejam carnais.
2
3“Tudo o que vejo entre os gregos é novo; quer eu considere, com bastante
cuidado, a fundação de suas cidades, quer a invenção das artes, de que eles se
vangloriam, quer o estabelecimento de suas leis, quer sua aplicação à composição da
história” (FLÁVIO JOSEFO, 1974, p. 58).

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decorrência disto, muitas contradições entre si. 4 Desta crítica, Josefo não poupa
nem Tucídides e Heródoto.
Ao retomar esta temática e afirmar que o povo judeu é o mais antigo de
que se tem conhecimento e que dura continuamente desde a origem até hoje,
Pascal dá a este povo uma posição privilegiada do ponto de vista temporal:
“620: (...) e, estendendo-se desde os primeiros tempos aos últimos, a história
deles encerra em sua duração a de todas as nossas histórias (que ela precede de
muito)” (PASCAL, 1979, p. 193). Único por sua antigüidade e duração, o povo
judeu pode ter sua história isenta de fundamentos externos, a saber, nenhum
outro povo existiu antes ou depois dos judeus de modo que pudesse
testemunhar sua origem ou fim como objeto externo. A história judaica não se
insere temporalmente em nenhuma outra. Ao contrário, por ter as testemunhas
mais antigas, pode ser dita fundadora de todas as outras, que nada mais são do
que seus objetos particulares. Se o povo judeu constituísse um único indivíduo,
este seria a grande testemunha da história, presente em toda a sua extensão, e o
fato de ser testemunha de si mesmo, sem testemunhos exteriores, seria sinal de
grandeza, e não de limitação, para tal indivíduo.
A unidade familiar e jurídica completam o quadro do fragmento 620. Os
judeus são todos irmãos, oriundos de um só homem. Diferente dos outros
povos, compostos de inúmeras famílias, o povo judeu é uma só família, a qual
compõe um vasto Estado de uma só carne. A lei que governa o povo é a mais
antiga de todas, tanto que o próprio nome de lei só foi conhecido por outros
povos um milênio depois e Homero, que escreveu a história de tantos estados,
nunca se valeu dele. Ela também foi uma só em toda a duração do povo, já que
sua perfeição dispensava adaptações. Esta permanência, em contraste com a
constante mudança jurídica dos outros povos, deu aos judeus uma

4 “Assim, nada havendo de escrito entre os gregos, para instruir sobre a verdade

àqueles que desejariam sabê-la, e acusar de mentira os que quisessem desvirtuá-la, nos
não devemos admirar das contradições que encontramos entre esses diversos escritores,
pois que seu objetivo não era indagar da verdade, embora eles jamais deixassem de
testemunhar o contrário, mas somente conquistar a reputação de bem escrever”
(FLÁVIO JOSEFO, 1974, p. 60).

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uniformidade moral também nunca vista, sobretudo se considerarmos a


incomparável severidade desta lei. O resultado disto já aparece em Josefo:
“Esse conhecimento (das leis) produz também entre nós uma admirável união,
porque nada é tão capaz de a fazer nascer e conservar do que os mesmos
sentimentos da grandeza de Deus, a mesma orientação na maneira de viver e os
mesmos costumes; não se ouve entre nós falar diversamente de Deus, como
acontece com os outros povos, não somente entre pessoas do povo, que dizem
ao acaso o que lhes vem à mente, mas entre os filósofos” (FLÁVIO JOSEFO,
1974, p. 112).
Estes fatores não podem, é claro, fazer do povo judeu um único
indivíduo, mas dão-lhe uma unidade que impressiona Pascal. Mais que Moisés
5 ou outro autor qualquer, é uma mesma família que escreve sua história, família

esta que não se misturou com outras nem deriva de outras, que se manteve a
mesma quanto aos critérios de conduta e não teve seu testemunho diluído em
uma vastidão de gerações. Os milhares de anos se reduzem devido à
proximidade das gerações e a manutenção dos relatos se revigora pelo amor aos
antepassados recentes. “593: Só acredito em histórias cujas testemunhas se
fariam degolar” (PASCAL, 1979, p. 183). De qual das testemunhas oculares
gregas poder-se-ia dizê-lo?

5 Cumpre notar que o deslocamento do valor testemunhal de Moisés para o povo não

acarreta a recusa histórica de Moisés como autor do Pentateuco. O conservadorismo de


Pascal e de Port Royal com relação às inovações do método histórico-filológico de
interpretação das Escrituras explicaria isto. Este mesmo conservadorismo, por sua vez,
deve-se ao predomínio da interpretação espiritual de tipo agostiniano, a qual valoriza o
sentido oculto dos fatos históricos sem contudo questionar a efetividade dos mesmos.
Para um jansenista, prender-se a “minúcias” desta ordem seria sinal de excessiva
carnalidade. Outra explicação possível seria o intuito de refutar uma tese corrente entre os
libertinos da época: Jesus Cristo, Moisés e Maomé, os fundadores das três maiores
religiões, seriam três impostores, cujas idéias serviriam para garantir a obediência aos
soberanos. Os fragmentos de Pascal trazendo provas de Jesus Cristo e de Moisés (crucial
como figura do Messias) e questionando Maomé estariam portanto dialogando com os
libertinos. Sobre isso, veja-se COUTON, 1980, p. 181-95.

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Para Pascal, o Antigo Testamento é a única história efetivamente


contemporânea pois só ele apresenta um povo como autor e testemunha de sua
própria história. Esta história se cria de dentro do povo, constituindo-o ao ser
constituída por ele, enquanto as outras histórias têm um autor externo que
oferece a um povo sua história. Por isso a história judaica é testemunhal num
sentido diverso daquele dos historiadores gregos. A boa testemunha não é mais
a simplesmente ocular, mas aquela que vive e sofre os eventos como partes de
si mesma, ainda que tenham ocorrido centenas de anos antes.
Não se trata, porém, de uma unidade perfeita. O mesmo povo notável
pela antigüidade, longevidade e pelos laços de sangue é também negativamente
notável pela carnalidade e rebeldia. É aí que Josefo mostra sua limitação em
relação à verdadeira História: “629: Josefo esconde a vergonha de sua nação.
Moisés não esconde a sua própria vergonha...” (PASCAL, 1979, p. 195). Surge
uma fissura na unidade quando os irmãos duvidam dos irmãos e os filhos
duvidam dos pais. A contemporaneidade deixa, então, de ser um critério
suficiente de autenticidade. Não que outros povos questionem o testemunho.
Neste ponto, é o próprio povo que duvida de si mesmo apesar da
contemporaneidade. Por isso é preciso que um novo critério brote do tecido
histórico para autenticá-lo, e deve ser um critério imanente ao próprio tecido,
ou a carnalidade do povo o recusará. É então que a história torna-se profética.

2 PROFECIA E HISTÓRIA

“O profeta, na acepção usual, é o homem que prevê, que prediz (...).


Ora, a profecia cuja essência tentamos explorar não é senão acessoriamente
antecipadora. Sua visão não é necessariamente ligada ao futuro; ela tem seu
valor próprio, instantâneo. Seu dizer não é um predizer; ele é imediatamente
dado no instante da palavra. Visão e palavra estão, nesta profecia, em busca de
descoberta. Mas o que revelam não é o futuro, e sim o absoluto. A profecia
responde à nostalgia de um conhecimento, mas não do conhecimento do
amanhã, e sim de Deus” (NEHER, 1955, p. 1) Em certos textos, as palavras de
Pascal aproximam-se das de Neher. Aí é o caráter de visão, e não de previsão,

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que predomina: “732: (...) Profetizar é falar de Deus, não com provas de fora,
mas com sentimento interior e imediato” (PASCAL, 1979, p. 232).
Apesar disso, e de certo modo negando avant la lettre a concepção de
Neher, Pascal valoriza o caráter de predição da profecia: “694: ... e o que coroa
tudo isso é a predição, para que não se diga que foi feita por acaso” (PASCAL,
1979, p.213). Como predição, a profecia aprofunda um pouco mais a noção de
testemunho 6 . Se abstrairmos o ponto de vista do profeta para situarmo-nos no
lugar do ouvinte, o que veremos ser a profecia? Para o povo, a profecia são
palavras, ou seja, um certo evento histórico situado no tempo e, como tal,
transitório. O povo testemunha este evento, ouve as palavras num determinado
momento e estas se tornam objetos de um testemunho contemporâneo, tal
como descrevemos anteriormente. Todavia, este evento não se esgota em si
mesmo, exigindo um evento futuro, a realização da profecia. Esta realização,
por sua vez, será objeto de um novo testemunho do mesmo povo. Estes
testemunhos, porém, não serão desvinculados como os testemunhos comuns.
Ao contrário, a realização transfigura o evento da profecia, gerando a
confirmação recíproca de ambos os pólos. Sendo assim, a profecia adquire um
caráter superior aos outros discursos, fazendo-se expressão verdadeira de uma
visão do sentido que ordena o tecido histórico. A realização adquire o caráter
de manifestação não casual (ou não haveria previsão) deste sentido na história.
Ambas (profecia e realização) apenas se tornam compreensíveis reciprocamente
e constituem assim um só testemunho profético, o testemunho do sentido
desta história: Deus. É de Deus como sentido da história que o carnal duvida e
é isto que exige uma confirmação que a mera contemporaneidade não pode
oferecer. Deste modo, os judeus tornam-se testemunhas de Deus, como mostra
Pascal ao referir-se no fragmento 714 a Isaías 43,9-10: “Quem de vós jamais
anunciou estas verdades, quem predisse o que ocorreu outrora? Que eles

6 Pascal voltará a uma visão semelhante à de Neher quando estiver no registro do

cristianismo. Até lá, a profecia deverá ser vista antes de tudo como previsão. O que
afasta os dois autores, portanto, é a consideração pascaliana dos judeus como povo
essencialmente carnal.

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produzam suas testemunhas, que verifiquem suas profecias, e então escutá-los-


emos, e diremos que dizem a verdade. Vós sois minhas testemunhas, diz o Senhor...”
(LA BIBLE, 1990, p. 930).
O profeta prevê coisas particulares e não se dá como autor de sua
realização. Por isso, quando a profecia se concretiza, o Deus que inspirara o
profeta e fora apresentado como produtor dos dois eventos (profecia e
realização) aparece não só como fundamento da ligação dos eventos mas como
autor de toda a história. É isto que constitui o título de verdade da religião
judaica, que não pode ser apresentado por nenhuma outra religião antiga. A
profecia imuniza a história judaica às dúvidas carnais justamente porque a
transforma na história da religião verdadeira. As provas da religião tornam-se
provas da história já que as duas se imiscuem definitivamente. Como história
profética, a história do povo torna-se história de Deus e, por conseguinte, o
testemunho dos eventos torna-se indubitável por ser igualmente testemunho da
verdade divina destes eventos. A história do povo judeu reduz-se então à
sucessão de profecias e suas realizações, mesmo quando não apresentadas
como tal. Por isso fecha-se o círculo: a história é a religião, a religião é o povo,
o povo é sua história. Este é o verdadeiro sentido da contemporaneidade do
Antigo Testamento na leitura pascaliana: a história é testemunha da religião, a
religião é testemunha da história e ambas constituem o povo. É da completude
carnal deste círculo que Pascal tirará a força da Religião Cristã. A espiritualidade
aparece na história judaica, mas o povo a vê como a força divina de realização
carnal das profecias (também consideradas carnais). São as características
carnais do povo que o fazem testemunha contemporânea da história, a qual
será portanto uma história carnal. Pascal não utiliza a noção de Corpo Crístico
para dar unidade e autenticidade ao Antigo Testamento. Isto seria muito fácil
do ponto de vista da doutrina cristã e Pascal o fará no momento oportuno.
Todavia, antes disto, Pascal precisa de uma história amplamente validada do
ponto de vista carnal. Se a história judaica não oferecesse certa completude
carnal, não serviria de prova para a verdadeira religião espiritual e o projeto
pascaliano de Apologia da Religião Cristã seria fadado ao fracasso.

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Como Pascal fará então a passagem do judaísmo ao cristianismo? Na


verdade, a própria característica que notabiliza o povo judeu será usada para
questioná-lo. A integração e a unidade do povo judeu, que o fazem testemunha
perfeitamente contemporânea de sua história, fá-lo-ão também suspeito. Os
critérios de contemporaneidade fecharam de tal forma o povo em si mesmo
que se inviabilizaram como título de verdade diante de outros povos. A
contemporaneidade é condição necessária e não suficiente de insuspeição.
Ainda que se insira temporalmente na duração do povo judeu e reconheça-o
como testemunha contemporânea, um outro povo não tem por que aceitar o
conteúdo do testemunho. Este novo povo não viu o que as testemunhas
judaicas viram, não tem parentesco, proximidade ou amor por estas
testemunhas e portanto vê o povo judeu como um sujeito externo que carece
de título para afirmar sua verdade. A contemporaneidade torna intransferível a
certeza do testemunho. Mesmo a realização das profecias tem de passar pelo
véu do testemunho judaico, o que as torna inócuas diante de um gentio. Para
ter universalidade, o título de verdade de uma história deve ser exterior a ela.
Neste caso, porém, a contemporaneidade fica comprometida. Ao que parece,
os dois critérios são inconciliáveis.
Se Pascal fosse um apologista da religião judaica, estaria diante de um
problema insolúvel, mas como é apologista da religião cristã tem, na verdade,
uma solução. “619: Vejo a religião cristã baseada numa religião precedente, e eis
o que acho de real” (PASCAL, 1979, p. 191).
A Bíblia só apresenta um testemunho válido da história do mundo
porque é composta de dois testamentos. Com apenas um, a veracidade do
relato não poderia ser provada. É preciso que um testamento prove o outro
para que todo o tecido histórico manifeste seu fundamento verdadeiro: “641: é
visivelmente um povo feito para servir de testemunho ao Messias” (PASCAL,
1979, p. 198). 642: Para provar de uma vez os dois Testamentos, basta ver se as
predições de um se realizam no outro” (PASCAL 1979, p. 199).
A profecia realizada na história de um povo é prova indubitável para este
povo. Para exceder os limites deste povo, os dois eventos (profecia e realização)
devem estar em povos diferentes, de preferência inimigos, de modo que um

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não queira confirmar a verdade do outro. Só assim a verdade da profecia torna-


se comprovável para um terceiro povo, desvinculado dos outros dois, e mesmo
universalmente. Pode-se dizer então que a verdadeira insuspeição dá-se apenas
quando a testemunha age contra si mesma. “745: Os que acham difícil crer
buscam a razão disso no fato de os judeus não crerem. ‘Se isso fosse claro, diz-
se, por que eles não creriam?’ E desejariam quase que eles cressem, a fim de
não serem detidos pelo exemplo de sua recusa. Mas é justamente a sua recusa o
fundamento da nossa crença. Nós estaríamos menos dispostos a isso se eles
fossem dos nossos. Teríamos, então, um pretexto mais amplo. É admirável que
isso tenha tornado os judeus grandes amadores das coisas preditas e grandes
inimigos de seu cumprimento” (PASCAL, 1979, p. 237).
Os judeus tornam-se testemunhas do que recusam, dado que esta recusa
foi prevista e torna-os insuspeitos de adulterar as promessas para adequá-las ao
cumprimento. A contemporaneidade, que os torna suspeitos diante de uma
realização favorável, torna-os insuspeitos diante de uma realização contrária.
Quem testemunha efetivamente a realização das profecias em Jesus Cristo é o
povo Cristão. De sua parte, os judeus consagram o cristianismo condenando-se
a si mesmos.
O testemunho judeu da profecia e o testemunho cristão de Jesus Cristo
unem-se, no momento da realização, constituindo o único e verdadeiro
testemunho profético. A profecia comprova que a realização espiritual não foi
casual: “709: é preciso ser ousado para predizer uma mesma coisa de tantas
maneiras. Era preciso que as quatro monarquias idólatras ou pagãs, o fim do
reino de Judá e as setenta semanas ocorressem ao mesmo tempo, tudo antes
que o Segundo Templo fosse destruído” (PASCAL, 1979, p. 215). A vinda do
Messias comprova a veracidade das profecias como expressão de uma visão,
agora sim, do sentido absolutamente espiritual da história: “659: Figuras - Para
mostrar que o Velho Testamento é apenas figurativo e que pelos bens
temporais os profetas entendiam outros bens...” (PASCAL, 1979, p. 202).
Ambos os pólos testemunham o sentido Crístico dos dois testamentos: “740:
Jesus Cristo, objeto central dos dois Testamentos, no Antigo como esperança,
no Novo como modelo, nos dois como centro” (PASCAL, 1979, p. 236).

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O objeto deste testemunho profético não é um Deus voltado para


realizações carnais, mas Jesus Cristo, voltado para a salvação espiritual dos
eleitos. Deste modo, o caráter essencialmente espiritual do povo cristão
espalha-se por toda a história, fazendo das imagens carnais das Escrituras
figuras da queda e da redenção. Mas ao mesmo tempo que dá o sentido interior
da história judaica, o cristianismo também garante a autenticidade da história
exterior deste povo, a qual é portadora do sentido interior. Sendo assim, a
história judaica ganha um título de verdade inquestionável por quem quer que
seja, já que o preço desta veracidade é a condenação dos próprios judeus.
Paradoxalmente, o fato de os judeus agirem como testemunhas de sua
condenação ao recusarem o Messias permite a conciliação da universalidade
com a contemporaneidade. Eles têm uma prova exterior de sua verdade pois
suas profecias se realizam no terreno espiritual do cristianismo, mas esta prova
é também contemporânea pois eles a testemunham recusando-a.
O Cristianismo beneficia-se desta condenação pois tem nas profecias do
povo carnal a maior prova de sua própria verdade: “761: Matando-o, para não o
aceitar como Messias, os judeus deram-lhe a última marca de Messias.
Continuando a desconhecê-lo, tornaram-se testemunhas incensuráveis; matando-
o e continuando a renegá-lo, cumpriram as profecias. Isaías, 60, Salmo 70”
(PASCAL, 1979, p. 239). Os cristãos têm nos judeus um povo notável que se
perde para provar a verdade do cristianismo. A universalidade desta prova
coloca-a acima de todas as outras: as profecias que formam a história deste povo,
ao serem realizadas em Cristo, são verdadeiros milagres subsistentes. A
contemporaneidade, contudo, perde um pouco do sentido na esfera cristã estrita.
Como critério para avaliar eventos exteriores, a contemporaneidade era essencial
para a história judaica. O cristianismo, entretanto, submete totalmente o exterior
ao interior e por isso a contemporaneidade, como prova exterior, perde a
relevância. O itinerário interior de conversão a Deus, objeto da verdadeira
história, não precisa dar provas de si. A contemporaneidade só ganha destaque
nos Pensamentos devido ao projeto apologético de Pascal, que usa uma história
carnal como prova da Religião Cristã.

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Profecia e Contemporaneidade na História Pascaliana 59

Tudo isto quer então dizer que os judeus serão todos condenados?
Responder afirmativamente seria fazer de um dado carnal (a circuncisão) o
critério de condenação e salvação, o que não condiz com a espiritualidade
cristã. Do ponto de vista carnal, os profetas e santos do Antigo Testamento
eram todos judeus, embora ligados a Deus. Pascal não os põe entre os
condenados porque eram, antes de tudo, homens espirituais. “609: Duas
espécies de homens em todas as religiões: entre os pagãos os adoradores de
animais, e os outros, adoradores de um só Deus na religião natural; entre os
judeus, os carnais, e os espirituais, que eram os cristãos da antiga lei. Entre os
cristãos, os grosseiros, que são os judeus da nova lei. Os judeus carnais
esperavam um Messias carnal; os cristãos grosseiros acreditam que o messias os
eximiu de amar a Deus; os verdadeiros judeus e os verdadeiros cristãos adoram um
Messias, que os fez amar a Deus” (PASCAL, 1979, p. 186).
É a carnalidade e não a circuncisão que condena, e é a espiritualidade e
não o sacramento exterior que salva. Entendendo a Verdade como o Verbo
divino, Jesus Cristo, do qual participa tudo que é verdadeiro, poderemos ver
que os verdadeiros judeus e os verdadeiros cristãos são o mesmo. Este é o sentido
do apelo de Pascal a João 8, 31-32: sereis meus verdadeiros discípulos... a verdade
vos libertará (fr. 519). Não basta ser discípulo, mas deve-se ser verdadeiro
discípulo, por isso a Igreja não é o corpo dos eleitos, assim como a Sinagoga
não é o corpo dos condenados. A cidade de Deus e a dos Homens estarão
imiscuídas até o fim dos tempos.
Os espirituais não surgiram cronologicamente com a Encarnação de
Cristo. Eles constituem, como todos os verdadeiros cristãos, o Corpo Crístico
que está em peregrinação desde a criação 7 . O evento crucial, a batalha
7 Neste sentido, veja-se o comentário de Arnauld: “Et tout cela parce que ce grand
Théologien confond la Synagogue avec l’Église, qui résidait en ce temps-là dans ce petit
nombre de justes, qui n’appartenaient point à la Synagogue, ni à l’Ancien Testament,
quoi qu’ils servissent au ministère extérieur de la Synagogue, pour s’accomoder à ce
temps de figures et d’ombres, mais qui faisoient déjà une partie du Corps de Jésus Christ,
qui l’avait voulu faire paraître dans le monde, avant que de sortir du sein de son secret, ainsi qu’il
avait été figuré dans la naissance merveilleuse de ces Patriarches, qui avoient passé la
main la première que de passer la tête” (ARNAULD, 1645, cap. 8, p. 181).

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vencedora da guerra pela salvação, deu-se durante a passagem de Cristo na


Terra, mas a história interior independe de critérios temporais. O vínculo com
o calendário é típico da história carnal, nada tendo com a esfera interior onde se
dá a verdadeira história cristã. Isto explica por que a história judaica, mesmo
que não se duvide do que está escrito, é antes de tudo figura da carnalidade. O
povo que serve de prova para o povo cristão é na verdade o povo carnal, judeu
ou não. Toda a história carnal está implicada figurativamente na história de
Israel. Portanto, quando diz que a história judaica abarca todas as histórias de
todos os povos, Pascal não está falando apenas do ponto de vista temporal.
Toda a argumentação aplicada ao povo judeu deve ser entendida
igualmente do universo dos não eleitos. Existentes desde o início dos tempos,
durarão até o fim e manterão a mesma característica essencial: a escravidão à
concupiscência. A recusa de Cristo pelos judeus é figura da recusa do sentido
espiritual da história exterior pelos carnais. Se os judeus não viram a realização
das profecias em Cristo quando esta se deu na exterioridade, os pagãos recusam-
se a vê-las realizadas como milagre subsistente e isto basta para sua condenação.
As profecias carregadas por judeus que não percebiam seu sentido
espiritual estão também presentes na história atual. Elas perderam o caráter de
previsão já que, passada a Redenção de Cristo, as predições realizadas
constituíram-se em milagre subsistente e não precisam ser repetidas. No entanto,
o caráter de visão da profecia continua: a história do homem retrata sua miséria e
a impossibilidade de recuperação sem Cristo: “176: Cromwell teria destruído toda
a cristandade, a família real ter-se-ia perdido e a sua tornar-se-ia mais poderosa do
que nunca, não fora um pequeno grão de areia que se introduziu em sua uretra”
(PASCAL, 1979, p.81). A profecia é a figura somada à predição. Superada a
necessidade da predição, restam apenas as figuras, as quais povoam os
Pensamentos. Os eleitos podem ver que a figura aponta para a infinitude ausente,
enquanto os condenados ficam na superfície carnal do figurante.
À antítese história judaica-história cristã, sobrepõe-se a antítese história
exterior – história interior ou, em termos mais pascalianos, história carnal –
história espiritual. A história carnal é a história dos eventos exteriores, incluindo
a trajetória vazia dos condenados, que escolheram ficar na esfera da

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Profecia e Contemporaneidade na História Pascaliana 61

exterioridade. A história espiritual é a da peregrinação dos eleitos desde a


criação, não como trajetória mundana, mas como integração espiritual ao
Corpo Místico. O cruzamento destas histórias ocorreu somente durante a
Encarnação de Cristo, evento simultaneamente exterior e interior, jamais se
repetindo. Do ponto de vista da exterioridade, foi um evento irrelevante: “786:
Jesus Cristo em uma tal obscuridade (segundo o que o mundo chama
obscuridade) que os historiadores, escrevendo sobre as coisas importantes do
Estado, mal o perceberam” (PASCAL, 1979, p. 243). Do ponto de vista da
interioridade, nunca houve igual esplendor: “793: (...) Teria sido inútil a Nosso
Senhor Jesus Cristo, para brilhar no seu reino de santidade, vir como rei: mas
chegou realmente com o brilho de sua ordem” (PASCAL, 1979, p. 245).
Apesar da aparente independência, a história exterior está totalmente
submetida à interior, não existindo senão em função dela: “643: (...) Deus,
querendo fazer parecer que podia formar um povo santo de uma santidade
invisível, e enchê-lo de uma glória eterna, fez coisas visíveis...” (PASCAL, 1979,
p. 199). A carnalidade é o lugar das provas da religião, e por isso mantém uma
consistência epistêmica que o apologista não pode desperdiçar. Contudo, esta
função não a impede de desvanecer diante da infinita superioridade da esfera
interior, como as premissas de um silogismo que fossem imediatamente
esquecidas ao obter-se a conclusão. É isto que ocorre com as profecias: ao
perceber que se cumpriram em Jesus Cristo, o fiel vê que as profecias eram
autênticas, mas, ao mesmo tempo, despreza-as como eventos históricos porque
esta ordem não lhe interessa mais. Como sempre em Pascal, o figurante finito
dilui-se na presença infinita do figurado. É este o jogo pascaliano entre história
exterior e interior. O Pascal cristão vê que a história exterior é um nada, mas o
Pascal apologista deve retomar continuamente este nada para dar racionalidade
à crença em Jesus Cristo.
Novo paradoxo: o preço da apologia racional é a existência de
condenados. Se todos fossem eleitos, a história exterior seria um palco vazio,
não podendo haver profecias insuspeitas para comprovar a veracidade do
percurso interior. Com condenados, o cenário enche-se de provas da religião

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cristã e o drama profético se inicia. “750: Se os judeus tivessem sido todos


convertidos por Jesus Cristo, só teríamos testemunhas suspeitas. E, se tivessem
sido todos exterminados, não teríamos testemunhas” (PASCAL, 1979, p. 237).
Todavia, visto que os condenados são um dado irreversível, a história exterior é
inevitável. Melhor seria que não existisse, mas esta não é uma escolha do
apologista. Resta-lhe apenas fazer sua parte, lutando com as armas racionais que
tem, embora saiba que a própria existência destas armas já o faz previamente
derrotado no que tange à conversão dos carnais: estes últimos são tão
necessários para a Apologia quanto ela é inútil para eles. Em outros termos, a
força probante da Apologia garante a razoabilidade da religião e a
universalidade da Verdade, mas não a universalização da salvação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARNAULD, A. Secunde Apologie pour M. Jansenius, evêque d’Ipre. Paris, 1645.


COLLINGWOOD, R.G. The Idea of History. Londres: Oxford University Press, 1946.
COUTON, G. Libertinage et Apologétique: les pensées de Pascal contre la thèse
des trois imposteurs. In: XVII Siècle, n. 127, 1980.
FLÁVIO JOSEFO. Seleções. São Paulo: Edameris, 1974.
La Bible. Paris: Robert Laffont, 1990.
MOMIGLIANO, A. Problèmes d’historiographie ancienne et moderne. Paris: Gallimard, 1983.
NEHER, A. L’essence du prophetisme. Paris: PUF, 1955.
PASCAL, B. Pensamentos. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1979.
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Brasília: Editora da UnB, 1986.
VÁRIOS. Enciclopédia Einaudi, vol. 1: Memória e História. Lisboa: Casa da Moeda,
1984.

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