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Departamento de Filosofia/FFLCH
Universidade de São Paulo
Av. Luciano Gualberto, 315
05508-900, São Paulo, SP
Abstract: Contemporarity appears in Pascal’s works to assure the historical reality of the biblical
report. However, the concept will be changed in comparison to the greek paradigm in order to
make the jewish people become the greatest witness of history. Prophecy, on the other hand,
assures the insuspicion of this witness and shows the real meaning of history: the spiritual one.
“Toda história que não é contemporânea é suspeita.” Esta frase deve conduzir,
como um critério de base, a reflexão pascaliana sobre a história. Tudo o que se
disser sobre sua concepção de história deve passar pela noção de
contemporaneidade, por mais específica e matizada que esta noção apareça em
Pascal.
A idéia de história contemporânea aparece nos historiadores antigos
como critério constitutivo do método histórico: “Qual então era sua concepção
de evidência histórica? A resposta é que, de acordo com esta visão, eles
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que o discurso histórico grego tenta superar este limite, torna-se algo muito
mais fraco e precário” (COLLINGWOOD, 1946, p. 26).
Ainda que se considere um tanto radical a afirmação de Collingwood, é
certo que esta característica dos historiadores gregos antigos deu-lhes, no
mínimo, uma acentuada preferência pela história recente. É verdade que
Heródoto apresentava a tradição oral de um povo como fonte válida para o
historiador, o que lhe dava uma gama de ação mais ampla que a de Tucídides.
Tanto que Tucídides visou ao próprio Heródoto ao criticar aqueles que
“escreviam para divertir”. Heródoto teria escrito sobre o “passado”, perdendo
sua credibilidade. Momigliano destaca esta característica de Heródoto (que lhe
valeu o epíteto de mentiroso) e como isto o levou a uma recuperação na
Renascença, porém não apresenta em geral um veredito muito diferente do de
Collingwood: “No essencial, Tucídides nada mais fez que reforçar o rigor e a
coerência dos critérios de Heródoto, preferindo a história contemporânea à
história quase contemporânea, e recusando-se a dizer algo que não julgasse
perfeitamente seguro; enquanto Heródoto julgava-se no direito de relatar, com
advertências, aquilo pelo que não podia responder diretamente”
(MOMIGLIANO, 1983, p. 20).
O que Heródoto ou Tucídides podiam oferecer a Pascal era um pequeno
capítulo da história universal, pouco questionável mas também pouco relevante.
Mesmo que a Guerra do Peloponeso pudesse oferecer um retrato útil da
condição humana, ela não poderia dar a origem desta condição. A importância
destas “histórias”, em Pascal, viria de uma possível inserção na história das
histórias presente na Bíblia. Portanto, se Pascal não se aproxima de Heródoto
ou Tucídides, talvez não seja por desconsiderá-los mas por não vê-los como
adversários perigosos. Já em Homero e Hesíodo, a amplitude de perspectivas
poderia sugerir uma história concorrente. A presença de um relato genético
desvinculado da criação bíblica pede uma “refutação”, a qual é feita com base
no caráter não contemporâneo destas histórias. Estes autores nada mais são do
que romancistas.
Como conciliar, porém, a exigência de uma história contemporânea com
a de um quadro amplo o suficiente para abranger as origens e os fins da
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verdadeiro, para Pascal, o que pode apresentar o título sólido desta verdade:
“434: (...) Dirá então, ao contrário, que possui certamente a verdade aquele que,
por pouco que o incitemos, não pode apresentar nenhum título desta verdade, e
é forçado a desistir?” (PASCAL, 1979, p. 144). É todo um conjunto de
características do povo judeu que fará verídico o relato bíblico, e não só a
longevidade. Assim podemos ver quem é a verdadeira testemunha do Antigo
Testamento. Não Moisés, mas o povo judeu: “628:(...) Há muita diferença entre
um livro que faz um particular e é oferecido ao povo e um livro que faz ele
próprio um povo. Não há como duvidar que seja este livro tão antigo quanto o
povo!” (PASCAL, 1979, p. 195).
Para caracterizar este povo, Pascal usa, além da Bíblia, outras fontes
judaicas, dentre as quais destacam-se as obras do historiador judeu Flávio
Josefo. É a partir dele, sobretudo, que Pascal reúne no fragmento 620 alguns
sinais distintivos do povo judeu que vão se unir à longevidade dos membros
para validá-lo como testemunha. São eles a unidade familiar, a antigüidade, a
longa duração e a unidade jurídica do povo. 2
Afirmada desde as primeiras linhas de Resposta a Ápio, a antigüidade do
povo é demonstrada por Josefo examinando os historiadores de várias nações
antigas, os quais já atestavam a existência dos judeus, ainda que o fizessem
maldizendo-os, como no caso dos historiadores egípcios. Contra o principal
argumento contrário à antigüidade, a saber, o fato dos judeus não serem citados
pelos historiadores gregos, Josefo apresenta várias respostas. Ele encontra uma
citação implícita em Heródoto, dá razões geográficas que justificavam o pouco
contato entre estes povos e, sobretudo, desqualifica os historiadores gregos.
Primeiro por pertencerem a um povo muito “novo” 3 ; segundo (e este será o
argumento tomado por Pascal) por não visarem senão divertir e terem, em
Mais à frente veremos por que é fundamental que estas características sejam carnais.
2
3“Tudo o que vejo entre os gregos é novo; quer eu considere, com bastante
cuidado, a fundação de suas cidades, quer a invenção das artes, de que eles se
vangloriam, quer o estabelecimento de suas leis, quer sua aplicação à composição da
história” (FLÁVIO JOSEFO, 1974, p. 58).
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decorrência disto, muitas contradições entre si. 4 Desta crítica, Josefo não poupa
nem Tucídides e Heródoto.
Ao retomar esta temática e afirmar que o povo judeu é o mais antigo de
que se tem conhecimento e que dura continuamente desde a origem até hoje,
Pascal dá a este povo uma posição privilegiada do ponto de vista temporal:
“620: (...) e, estendendo-se desde os primeiros tempos aos últimos, a história
deles encerra em sua duração a de todas as nossas histórias (que ela precede de
muito)” (PASCAL, 1979, p. 193). Único por sua antigüidade e duração, o povo
judeu pode ter sua história isenta de fundamentos externos, a saber, nenhum
outro povo existiu antes ou depois dos judeus de modo que pudesse
testemunhar sua origem ou fim como objeto externo. A história judaica não se
insere temporalmente em nenhuma outra. Ao contrário, por ter as testemunhas
mais antigas, pode ser dita fundadora de todas as outras, que nada mais são do
que seus objetos particulares. Se o povo judeu constituísse um único indivíduo,
este seria a grande testemunha da história, presente em toda a sua extensão, e o
fato de ser testemunha de si mesmo, sem testemunhos exteriores, seria sinal de
grandeza, e não de limitação, para tal indivíduo.
A unidade familiar e jurídica completam o quadro do fragmento 620. Os
judeus são todos irmãos, oriundos de um só homem. Diferente dos outros
povos, compostos de inúmeras famílias, o povo judeu é uma só família, a qual
compõe um vasto Estado de uma só carne. A lei que governa o povo é a mais
antiga de todas, tanto que o próprio nome de lei só foi conhecido por outros
povos um milênio depois e Homero, que escreveu a história de tantos estados,
nunca se valeu dele. Ela também foi uma só em toda a duração do povo, já que
sua perfeição dispensava adaptações. Esta permanência, em contraste com a
constante mudança jurídica dos outros povos, deu aos judeus uma
4 “Assim, nada havendo de escrito entre os gregos, para instruir sobre a verdade
àqueles que desejariam sabê-la, e acusar de mentira os que quisessem desvirtuá-la, nos
não devemos admirar das contradições que encontramos entre esses diversos escritores,
pois que seu objetivo não era indagar da verdade, embora eles jamais deixassem de
testemunhar o contrário, mas somente conquistar a reputação de bem escrever”
(FLÁVIO JOSEFO, 1974, p. 60).
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esta que não se misturou com outras nem deriva de outras, que se manteve a
mesma quanto aos critérios de conduta e não teve seu testemunho diluído em
uma vastidão de gerações. Os milhares de anos se reduzem devido à
proximidade das gerações e a manutenção dos relatos se revigora pelo amor aos
antepassados recentes. “593: Só acredito em histórias cujas testemunhas se
fariam degolar” (PASCAL, 1979, p. 183). De qual das testemunhas oculares
gregas poder-se-ia dizê-lo?
5 Cumpre notar que o deslocamento do valor testemunhal de Moisés para o povo não
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que predomina: “732: (...) Profetizar é falar de Deus, não com provas de fora,
mas com sentimento interior e imediato” (PASCAL, 1979, p. 232).
Apesar disso, e de certo modo negando avant la lettre a concepção de
Neher, Pascal valoriza o caráter de predição da profecia: “694: ... e o que coroa
tudo isso é a predição, para que não se diga que foi feita por acaso” (PASCAL,
1979, p.213). Como predição, a profecia aprofunda um pouco mais a noção de
testemunho 6 . Se abstrairmos o ponto de vista do profeta para situarmo-nos no
lugar do ouvinte, o que veremos ser a profecia? Para o povo, a profecia são
palavras, ou seja, um certo evento histórico situado no tempo e, como tal,
transitório. O povo testemunha este evento, ouve as palavras num determinado
momento e estas se tornam objetos de um testemunho contemporâneo, tal
como descrevemos anteriormente. Todavia, este evento não se esgota em si
mesmo, exigindo um evento futuro, a realização da profecia. Esta realização,
por sua vez, será objeto de um novo testemunho do mesmo povo. Estes
testemunhos, porém, não serão desvinculados como os testemunhos comuns.
Ao contrário, a realização transfigura o evento da profecia, gerando a
confirmação recíproca de ambos os pólos. Sendo assim, a profecia adquire um
caráter superior aos outros discursos, fazendo-se expressão verdadeira de uma
visão do sentido que ordena o tecido histórico. A realização adquire o caráter
de manifestação não casual (ou não haveria previsão) deste sentido na história.
Ambas (profecia e realização) apenas se tornam compreensíveis reciprocamente
e constituem assim um só testemunho profético, o testemunho do sentido
desta história: Deus. É de Deus como sentido da história que o carnal duvida e
é isto que exige uma confirmação que a mera contemporaneidade não pode
oferecer. Deste modo, os judeus tornam-se testemunhas de Deus, como mostra
Pascal ao referir-se no fragmento 714 a Isaías 43,9-10: “Quem de vós jamais
anunciou estas verdades, quem predisse o que ocorreu outrora? Que eles
cristianismo. Até lá, a profecia deverá ser vista antes de tudo como previsão. O que
afasta os dois autores, portanto, é a consideração pascaliana dos judeus como povo
essencialmente carnal.
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Tudo isto quer então dizer que os judeus serão todos condenados?
Responder afirmativamente seria fazer de um dado carnal (a circuncisão) o
critério de condenação e salvação, o que não condiz com a espiritualidade
cristã. Do ponto de vista carnal, os profetas e santos do Antigo Testamento
eram todos judeus, embora ligados a Deus. Pascal não os põe entre os
condenados porque eram, antes de tudo, homens espirituais. “609: Duas
espécies de homens em todas as religiões: entre os pagãos os adoradores de
animais, e os outros, adoradores de um só Deus na religião natural; entre os
judeus, os carnais, e os espirituais, que eram os cristãos da antiga lei. Entre os
cristãos, os grosseiros, que são os judeus da nova lei. Os judeus carnais
esperavam um Messias carnal; os cristãos grosseiros acreditam que o messias os
eximiu de amar a Deus; os verdadeiros judeus e os verdadeiros cristãos adoram um
Messias, que os fez amar a Deus” (PASCAL, 1979, p. 186).
É a carnalidade e não a circuncisão que condena, e é a espiritualidade e
não o sacramento exterior que salva. Entendendo a Verdade como o Verbo
divino, Jesus Cristo, do qual participa tudo que é verdadeiro, poderemos ver
que os verdadeiros judeus e os verdadeiros cristãos são o mesmo. Este é o sentido
do apelo de Pascal a João 8, 31-32: sereis meus verdadeiros discípulos... a verdade
vos libertará (fr. 519). Não basta ser discípulo, mas deve-se ser verdadeiro
discípulo, por isso a Igreja não é o corpo dos eleitos, assim como a Sinagoga
não é o corpo dos condenados. A cidade de Deus e a dos Homens estarão
imiscuídas até o fim dos tempos.
Os espirituais não surgiram cronologicamente com a Encarnação de
Cristo. Eles constituem, como todos os verdadeiros cristãos, o Corpo Crístico
que está em peregrinação desde a criação 7 . O evento crucial, a batalha
7 Neste sentido, veja-se o comentário de Arnauld: “Et tout cela parce que ce grand
Théologien confond la Synagogue avec l’Église, qui résidait en ce temps-là dans ce petit
nombre de justes, qui n’appartenaient point à la Synagogue, ni à l’Ancien Testament,
quoi qu’ils servissent au ministère extérieur de la Synagogue, pour s’accomoder à ce
temps de figures et d’ombres, mais qui faisoient déjà une partie du Corps de Jésus Christ,
qui l’avait voulu faire paraître dans le monde, avant que de sortir du sein de son secret, ainsi qu’il
avait été figuré dans la naissance merveilleuse de ces Patriarches, qui avoient passé la
main la première que de passer la tête” (ARNAULD, 1645, cap. 8, p. 181).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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