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Atos dos Apóstolos

Para as pessoas interessadas em saber o que aconteceu aos seguidores de Jesus depois de sua morte e
ressurreição, os Atos dos Apóstolos sempre ocuparam o primeiro lugar na busca pela resposta. Este é nosso
relato mais antigo da igreja cristã, um relato que fala de conversões massivas à fé, de ações milagrosas
realizadas pelos apóstolos, de oposição e perseguição pelos não-crentes, dos dinamismos internos do grupo
apostólico e suas interações com recém-chegados significativos (como Paulo) e, acima de tudo, da expansão
dramática da igreja cristã desde seus começos desfavoráveis entre os poucos seguidores de Jesus em Jerusalém
até a chegada ao coração do império, a cidade de Roma.
Embora o livro de Atos seja o segundo volume de uma obra unitária, não é o mesmo tipo de livro que o primeiro
volume. O Evangelho de Lucas retrata a vida de Jesus, o profeta judeu rejeitado, desde sua concepção
milagrosa até sua ressurreição milagrosa. O retrato é, sob vários aspectos, comparável aos Evangelhos de
Marcos e Mateus e é classificado melhor, em termos de gênero, como uma biografia greco-romana. Porém, o
livro de Atos é bastante diferente. Aqui não há nenhuma figura solitária como personagem principal; em vez
disso, o livro esboça a história do cristianismo desde o momento da ressurreição de Jesus até a prisão domiciliar
romana do apóstolo Paulo.

O gênero de Atos e sua significação


Alguns estudiosos argumentaram que, porque os dois livros foram escritos como um conjunto, eles devem ser
classificados juntos, no mesmo gênero. Mas, os livros são estruturados bastante diferentemente. O livro de
Atos está preocupado com o desenvolvimento histórico da igreja cristã. Além disso, a narrativa está definida
dentro de uma estrutura cronológica que começa com a origem do movimento. Neste aspecto, o livro se
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relaciona estreitamente a outras histórias produzidas na antiguidade.
Historiadores no mundo greco-romano produziram vários e diferentes tipos de literatura. Algumas histórias
antigas se focalizavam em líderes importantes ou episódios na vida de uma cidade particular ou região. Outras
tinham um escopo mais amplo, abrangendo eventos significativos na história de uma nação. Às vezes estas
histórias eram organizadas de acordo com tópicos. Mais comumente, eram apresentadas em uma sequência
cronológica. As narrativas cronológicas podiam ser limitadas a um único, mas complexo, evento (como no
relato de Tucídides sobre a Guerra do Peloponeso1) ou a uma série de eventos inter-relacionados (como no
relato de Políbio sobre a ascensão de Roma ao domínio do Mediterrâneo2). Às vezes eles cobriam os eventos
mais antigos na memória de uma nação, como um modo de mostrar como as pessoas se tornaram quem eram.

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A única obra de Tucídides (465-404 a.C.), intitulada Histórias, dividido em 8 livros, é um relato incompleto das guerras
do Peloponeso (431-421 e 415-404), entre Atenas e Esparta e os respectivos aliados, e de suas principais consequências.
A experiência de Tucídides como participante da guerra garante a exatidão de suas exposições militares, mas ele é, antes
de tudo, um historiador político. De maneira nova, combina conhecimento íntimo dos acontecimentos políticos e da
psicologia dos homens. O estilo de sua prosa revela um modelo de grego culto: sóbrio e lacônico até a obscuridade,
comprime no mínimo de palavras o máximo de sentido, mesmo ao preço de complicações sintáticas.
Estilisticamente, os pontos mais altos são os discursos que Tucídides faz pronunciar pelos estadistas, generais e
diplomatas. Esses discursos foram redigidos pelo próprio historiador, mas talvez com base em documentos ou tradições
conservadas. Famoso é o discurso de Péricles, oração fúnebre aos mortos no primeiro ano da guerra. A influência dos
sofistas revela-se nos discursos-diálogos, em que dois personagens expõem, de maneira igualmente convincente, pontos
de vista contrários.
Tucídides foi considerado pela posteridade como um dos fundadores da história. Foi enorme a influência que exerceu
sobre os autores romanos.
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Primeiro autor de uma história universal, Políbio (200-118 a.C.) planejou narrar, em quarenta livros, as conquistas
romanas que vão da campanha espanhola de Aníbal até a batalha de Pidna, período que abrange 53 anos da história de
Roma.
A história, para Políbio, é uma disciplina pragmática que deve tratar exclusivamente de assuntos políticos e militares, em
contraposição a outras narrativas, como as genealogias e as histórias mitológicas. Preocupado com a objetividade
histórica, afirmava que o historiador não deve procurar emocionar o leitor, como faz o autor de tragédias, mas
O livro de Atos se assemelha mais a este último tipo de história, pois traça os principais eventos de um povo
desde o ponto de sua origem até perto do tempo presente, para mostrar como seu caráter como povo foi
estabelecido. Os estudiosos às vezes chamam este gênero de “história geral”. Um exemplo famoso, produzido
quase contemporaneamente com Atos, foi escrito pelo historiador judeu Flávio Josefo3. Sua obra em 20
volumes, Antiguidades judaicas, esboça os eventos significativos de Judaísmo, desde Adão e Eva até sua
própria época.
Diferentemente das biografias, as histórias antigas têm vários personagens principais, às vezes, como em
Josefo, um grande número deles. No entanto, assim como as biografias, elas tendem a utilizar uma gama ampla
de subgêneros, como narrativas de viagens, anedotas, cartas privadas, diálogos e discursos públicos. De modo
geral, as histórias da antiguidade greco-romana eram exercícios literários criativos e não simples reproduções
de nomes e datas; os historiadores eram necessariamente inventivos na maneira de colecionarem e transmitirem
a informação que apresentavam.
Porém, todas as histórias — sejam do mundo antigo ou moderno —, não podem ser vistas, em última análise,
como relatos objetivos do acontecido no passado. Como muitas coisas acontecem no decorrer de história (de
fato, bilhões de coisas, a cada minuto), os historiadores são obrigados a escolher o que mencionar e descrever
como significativo. Eles fazem isso de acordo com seus próprios valores, convicções e prioridades. Portanto,
quase sempre podemos supor que um historiador descreveu os eventos de tal maneira que mostra em forma
resumida sua compreensão do significado desses eventos.
Este aspecto de objetividade limitada é particularmente óbvio no caso de historiadores que viveram na
antiguidade. O seu era um mundo de poucos registros escritos, mas de abundante tradição oral. Realmente,
muitos historiadores antigos expressavam preferência por ter notícias ouvindo uma fonte oral em lugar de
encontrá-las em um registro escrito. Esta abordagem entra um pouco em conflito com a desconfiança moderna
do “mero boato”, mas há alguma lógica por trás dela: ao contrário dos documentos escritos, as fontes orais
podem ser interrogadas para clarificar ambiguidades. Ainda assim, podemos imaginar as dificuldades de
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determinar o que realmente aconteceu com base em relatos orais. Além disso, quando se tratava de registro
escrito, os historiadores antigos não tinham, obviamente, nenhum acesso às técnicas modernas de recuperação
de dados. Por essas razões, eles tinham geralmente pouca preocupação para – e menos chance de – fazer tudo
“certo”, pelo menos em termos do alto nível de precisão histórica esperado pelos leitores modernos.
Isso pode ser visto mais claramente sobretudo no caso das declarações e discursos registrados nas histórias
antigas. Em média, os discursos ocupam quase um quarto de toda a narrativa em uma história greco-romana
típica. O notável é que os historiadores da antiguidade que refletiram sobre a arte de seu ofício, como o
historiador grego Tucídides, admitiam que os discursos nunca poderiam ser reconstruídos como realmente
foram proferidos: ninguém tomava notas ou memorizava longas falas na hora. Os historiadores, bastante
conscientemente, reconstituíam os discursos encontrados em seus relatos, compondo discursos que pareciam
ajustar-se tanto ao caráter do orador quanto à ocasião.
Não só ao apresentar as falas de seus protagonistas, mas também ao relatar os eventos da própria narrativa, os
historiadores antigos eram um pouco menos ambiciosos que seus colegas modernos. Eles se esforçavam não
pela objetividade absoluta, mas pela verossimilhança. Eles trabalhavam para produzir uma narrativa que
parecesse verdadeira, que fizesse sentido, levando em conta o que tinham descoberto por meio da interrogação
de suas fontes orais e pela leitura dos registros escritos.

simplesmente relatar os fatos como eles ocorreram, sem comentar suas possíveis consequências. Como fontes de pesquisa,
adotou testemunhos e documentos. A influência de Políbio está presente na obra de muitos historiadores, entre eles Tito
Lívio.
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Na obra de Josefo (37-100 d.C.) destaca-se a contradição entre sua simpatia pela cultura romana e a defesa intransigente
da superioridade moral das tradições hebraicas. Mesmo tendo sofrido acréscimos apócrifos, ela constitui a única fonte
sobre longo período da história da Palestina. Na História da guerra judaica (75-79) acusa os fariseus radicais de
conduzirem o povo judeu à catástrofe, mas em Antiguidades judaicas (93-94) faz a apologia das instituições hebraicas.
Muitos destes aspectos de histórias antigas se aplicam ao livro de Atos como uma história geral.4 Portanto,
quando o lemos como tal, deveríamos:
• esperar achar uma narração de eventos que o autor considera significativos para entender o movimento
cristão primitivo;
• estar procurando temas e pontos de vista que estejam em paralelo com os do primeiro livro, o
Evangelho de Lucas;
• evitar de avaliá-lo estritamente em termos de precisão efetiva, mas lê-lo como um leitor antigo o faria.
Finalmente, porque este livro também é uma narrativa cronologicamente organizada, embora de forma
diferente ao Evangelho, podemos esperar que nosso autor antigo dê o tom do relato desde o início.

A abordagem para Atos


Para cada um dos Evangelhos podem ser usados métodos diferentes de análise: um método literário-histórico
com Marcos, um método redacional com Mateus, e um método comparativo com Lucas. Teoricamente, cada
um destes métodos poderia ser usado também com o livro de Atos, embora seja a única história geral
preservada no Novo Testamento.
Uma abordagem literário-histórica exploraria o desenvolvimento dos personagens e o enredo da história
levando em conta as expectativas de sua audiência, baseado no seu conhecimento do gênero e a
informação de fundo que o autor parece pressupor.
Um método redacional determinaria as fontes disponíveis pelo autor e averiguaria como ele as
modificou — um assunto um pouco complicado com Atos pois nenhuma de suas fontes sobreviveu
(embora isto não represente obstáculo para vários tentativos).
Um método comparativo consideraria a mensagem de Atos levando em conta outros escritos cristãos 3
antigos, como as cartas do apóstolo Paulo, um dos personagens principais da narrativa de Atos.

Nossa leitura e interesse procuram determinar tanto o gênero como os procedimentos literários
empregados por Lucas ao escrever o livro. Dizendo que não é apologético nem historicista, intentamos
situá-lo no nível estritamente intracomunitário, a modo de catequese de grau superior para a formação
teológica de futuros evangelistas e catequistas da comunidade, representados por “Teófilo”. Intentaremos
aprofundar no significado teológico de determinados personagens ou situações, dotados de valor
corporativo ou representativo, apresentados com traços mais ou mesmos estereotipados, com que se
descreve o estado em que se encontram e a classe de sociedade que os circunda. Deve advertir-se, porém,
que o que está em jogo em Atos não são os personagens em si, mas a execução do encargo de Jesus sobre
a missão universal, apesar das reticências e os obstáculos impostos pelas grandes figuras da Igreja
primitiva.
Parte do método será a análise filológica das passagens difíceis, usando também dos paralelos lucanos,
temáticos e estruturais, para determinar o sentido. Uma vez entendido a passagem se investiga a razão
pela qual Lucas a colocou no lugar que ocupa na obra de conjunto, no plano teológico que lhe dá unidade.

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Alguns recentes estudos do gênero de Atos concluíram que está mais para romance antigo do que para história geral.
Um dos temas destes romances é a perseguição e opressão dos personagens principais que são (normalmente) inocentes
de qualquer mal. Entre os subgêneros tipicamente empregados estão: narrativas de viagens, cenas de naufrágio, diálogos,
falas e cartas privadas; tudo isso é achado no livro de Atos.
No entanto, Lucas não parece ter escrito este livro principalmente como uma narrativa novelesca para entretenimento.
Pode, realmente, haver elementos fictícios no relato; mas a julgar do prefácio ao volume um, do assunto da narrativa (a
expansão da igreja cristã), e dos personagens principais (que são, afinal de contas, pessoas históricas), podemos mais
plausivelmente concluir que Lucas pretendeu escrever uma história de Cristianismo primitivo, não um romance. Além
disso, todos os autores cristãos antigos que se referem ao livro parecem o ter entendido assim.
A arte de Lucas como contador de histórias
Leitores do Novo Testamento, há muito tempo, notaram muitas semelhanças claras entre o que
acontece a Jesus no Evangelho de Lucas e aos crentes cristãos no livro de Atos. Estes paralelos
mostram que Lucas não era um mero cronista de eventos, preocupado em prover um relato objetivo
dos primeiros anos do movimento cristão. Ele compilou esta história com um propósito claro, parte
do qual era mostrar que a mão de Deus estava por trás da missão da igreja tanto quanto estava por
trás da missão de Jesus.
Por exemplo, no começo de seu ministério Jesus recebe o Espírito santo; o início do ministério dos
apóstolos é marcado com a recepção do mesmo Espírito. Este autoriza Jesus a realizar milagres e
pregar em Lucas; o mesmo em Atos com os apóstolos. Em Lucas, Jesus cura doentes, expulsa
demônios, ressuscita mortos; em Atos, os apóstolos curam doentes, expulsam demônios, e
ressuscitam mortos. As autoridades judias em Jerusalém enfrentam Jesus; as mesmas autoridades
enfrentam os apóstolos. Jesus é preso, condenado e executado; o mesmo para alguns de seus
seguidores.
Estes paralelos não são coincidências simplesmente interessantes. Um autor produziu ambos o s
livros, e os usa em paralelo para fazer uma observação principal: os apóstolos continuam fazendo
o trabalho de Jesus e assim prolongam sua missão pelo poder do mesmo Espírito. Eles se ocupam
de atividades semelhantes, experimentam recepções semelhantes, e sofrem destinos semelhantes.
Lucas também aplica esta técnica comparativa com os personagens principais dentro do relato de
Atos, sobretudo entre Pedro e Paulo (conversão, atividades, discursos, destino).
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