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Bouvard e Pécuchet, protagonistas de um romance de Gustave Flaubert ,
eram dois funcionários públicos, medíocres e entediados com a vida que levavam
em Paris. Numa tarde sufocante de domingo se conhecem, no Bulevar Bourdon, e
tornam-se grandes amigos. Um dia o inesperado, a quebra da rotina, acontece com
a chegada de uma carta que comunica o enriquecimento de Bouvard com a herança
deixada pelo seu padrasto. Eles pensam imediatamente em se tornarem
agricultores. Após muitas negociações, compram um sítio onde iniciam uma série de
fracassadas experiências com a agricultura, com a jardinagem, com a pecuária e
com a química. Tentando espantar a tediosa existência no campo, os dois amigos
terminam enveredando pela arqueologia e pela história. Em pouco tempo
transformaram a casa num museu:
"Uma velha viga de madeira erguia-se no vestíbulo. Os espécimes de geologia
entulhavam a escada; e uma enorme corrente estendia-se no chão, ao longo do
corredor". "Na parede da frente, um caldeirão dominava dois cães de chaminé e uma
placa de lareira representando um monge a acariciar uma pastora. Ao redor, sobre
pequenas prateleiras, viam-se castiçais, fechaduras, parafusos, porcas. O soalho
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desaparecia sob os cacos de telhas vermelhas" . Depois de fazerem inúmeras
escavações e aquisições de objetos os mais disparatados, que eram oferecidos
pelos vizinhos como peças de raríssimo valor, Bouvard e Pécuchet se dão conta de
que aqueles objetos não lhes diriam nada sem um conhecimento prévio da história
da França. Os objetos e marcas deixadas pelo passado não traziam em si mesmos
seu sentido, o passado não era o documento, nem os vestígios por ele deixados,
mas a compreensão da trama histórica em que estavam envolvidos, só possível com
um saber histórico e uma erudição previamente adquirida.
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"Tinham na biblioteca a obra de Anquetil, mas a série dos reis madraços muito
pouco os divertiu". À procura da melhor História da França leram Augustin Thierry e
de Genoude que divergiam em quase tudo. Para de Genoude "a realeza, a religião e
as assembléias nacionais eram os "princípios" da nação francesa instituídos pelos
Merovíngios. Os Carlovíngios os derrogaram. Os Capetos, de acordo com a vontade
do povo, esforçaram-se por mantê-los. Sob Luís XIII, foi restabelecido o poder
absoluto, a fim de vencer o protestantismo, último esforço do feudalismo, e 89 é um
retorno à constituição dos antepassados.
Pécuchet admirou tais idéias. Bouvard, ao contrário, deplorou, por haver lido
Augustin Thierry:
- Que queres dizer com nação francesa, pois não havia ainda França, nem
assembléias nacionais! Os Carlovíngios não usurparam absolutamente nada, e os
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reis não libertaram as comunas. Lê e verás" .
Vivendo no século em que a consciência da historicidade dos fenômenos era
mais aguçada, em que o aceleramento das transformações históricas tornou
sensível o movimento e a mudança da sociedade, num momento em que o
paradigma realista metafísico tenta tornar a história uma ciência de verdades exatas,
de leis universais, estes personagens recorreram sucessivamente a várias obras
clássicas sobre a história da França: à coleção de Buchez e Roux, onde o excesso
de debate lhes pareceram prejudicar a visão de conjunto, à Thiers que pôs os dois
amigos em lugares opostos, ao tematizar a revolução; "Bouvard, espírito liberal e
coração sensível, tornou-se constitucional, girondino termidoriano. Pécuchet, bilioso
e de tendências autoritárias, declarou-se sans-culotte e até mesmo robespierrista".
"Para umas, a Revolução é um acontecimento satânico. Outras a proclamam uma
sublime exceção. Os vencidos de ambos os lados, naturalmente, são mártires".
Após compilarem inúmeros escritos sobre a revolução, chegam a conclusão que já
não tinham uma idéia precisa sobre os homens e os fatos daquela época. "Para
julgá-la seria preciso ler todas as histórias, todas as memórias, todos os jornais,
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todos os manuscritos. Renunciaram à tarefa" .
Talvez fossem encontrar a verdade nas épocas antigas. Afastados dos
acontecimentos, os autores certamente os analisaria desapaixonadamente e a
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ocidental e cristã trouxe no seu bojo tantos barbarismos quanto aqueles que se
propôs a superar. A revolução, que destruiria o capitalismo, seria feita por uma força,
que era, ao mesmo tempo, interna e externa ao sistema, o proletariado. Mas esta
classe foi, em grande medida, cooptada pelo sistema e abandonou a revolução,
atraída pelos Estados de bem-estar social, montados pelo trabalhismo e a social-
democracia no pós-guerra. Gramsci, no começo do século, já percebera as
contradições da teoria de classe nas formulações clássicas do marxismo, ou seja, se
o proletariado era uma classe cuja identidade seria dada pelo próprio sistema e esta
identidade seria fixa, como ela poderia mudar o sistema se este seria um sistema
fechado? Se a identidade do proletariado se alterava permanentemente, como ele
poderia ter sempre a mesma tarefa, ou seja, como poderia ele fundar a história se
estava em mutação histórica? Admitindo que o proletariado era pragmático e contin-
gente, que a identidade de classe era relacional, suas mudanças se davam na
relação com o tempo, espaço e outras classes, Gramsci admite a possibilidade do
proletariado não realizar a sua tarefa, de ser cooptado pelo sistema, dissolvendo,
assim, a possibilidade da elaboração de uma filosofia da história, tendo a identidade
proletária como referente. Estas e outras leituras do marxismo vão colocando-o cada
vez mais longe do marxismo clássico, alterando em vários pontos a mais bem
acabada filosofia da história do século XIX que tinha a idéia de revolução como
pressuposto.
A não realização das previsões históricas das filosofias da história do século
XIX coloca nossos personagens diante do questionamento da própria racionalidade
da história, dos mitos das fundações, ou seja, da existência de uma determinação
em última instância da história. O caráter relacional, contextual e plural de qualquer
acontecimento histórico elimina a possibilidade de uma argumentação que tome,
como ponto de partida, um ponto fixo, revelando a própria relatividade da realidade.
Continuando seu passeio por Paris de hoje, Bouvard e Pécuchet seriam
confrontados com toda a maquinaria da cultura de massas: um mundo de imagens,
simulacros, signos luminosos. A arte pop, levando às últimas conseqüências a
liberdade de criação e experimentação instaurada pelas vanguardas modernistas,
põe em crise a representação realista do mundo. A própria psicanálise, ao nos
informar sobre o nosso universo inconsciente, põe em cheque o império do realismo
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imagem do mundo, mas chave para possíveis mundos. Eles enunciam o fim do
realismo metafísico, que durante muito tempo, afirmou a capacidade do homem de
conhecer o mundo tal como ele é, que pensou a verdade como uma operação de
correspondência entre a representação, o enunciado e a realidade independente do
sujeito, uma realidade como dado objetivo. Desde Kant, instauram-se as premissas
do relativismo, em que conhecimento e realidade não correspondem, mas se
adaptam funcionalmente. O mundo da experiência, sendo o único lugar da procura
da verdade, não havendo outro mundo anterior. O conhecimento passa a ser útil e
relevante se resistir ao mundo da experiência e nos capacitar a fazer prognósticos e
suscitar ou impedir de ocorrer certos fatos.
Tendo feito uma viagem pelo tempo, Bouvard e Pécuchet chegam a conclusão
que nunca conhecemos o mundo, mas certas circunstâncias particulares, sendo
nosso "real", nosso limite. O conhecimento não se refere a uma realidade ontológica
"objetiva" mas sim a organizações e ordenamentos de um mundo constituído de
nossas experiências. A inteligência organiza o mundo, organizando-se a si mesma.
Portanto, já em Kant, a percepção da realidade havia sido deslocada para o campo
dos fenômenos, pondo em dúvida a existência de um objeto isolado do resto do
mundo, como uma coisa ou uma unidade inteiriça. Desde Vico, toda ciência é o
conhecimento das origens, das formas e do modo como se fizeram as coisas; nesta
ciência, o verdadeiro é o feito, é a procura das condições de possibilidade. O ser
humano só pode conhecer aquilo que fez, só pode conhecer as operações de
produção do que fez, e o que faz é o que chamamos real.
Vindos de um século onde o paradigma realista e cientificista tinha a pretensão
de romper as aparências do mundo e encontrar suas essências, nossos dois
personagens se deparam com a crise desta concepção de ciência, no fim deste
século. Fica claro para eles que a arte, onde o conhecimento provem da consciência
do ato de construir, onde o ato de construção nunca é escamoteado, parece se
oferecer melhor como paradigma diante desta nova visão acerca do conhecimento.
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Onde o ser só é quando conhecido e percebido, só é sendo, como dizia Heidegger.
A dicotomia essência e aparência é superada, o ser só é quando aparece. Por trás
da aparência nada há. Só que o ser aparece de diferentes modos, dai sua
relatividade.
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ele enuncia já a sua morte prematura. Como diz Nietzsche, a história só pode ser
suportada por personalidades fortes, porque ao falar de nossa finitude e da finitude
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de todas as coisas, ela está falando é da morte.
O conhecimento histórico é perspectivista, pois ele também é histórico e o lugar
ocupado pelo historiador também se altera ao longo do tempo. Nem sempre se fez a
história do mesmo jeito, e ela serviu a diferentes funções no decorrer do tempo. O
historiador não pode escamotear o lugar histórico e social de onde fala, e o lugar
institucional onde o saber histórico se produz. Por isso, a história, como
metanarrativa, está em crise. A metanarrativa se faz a partir de um sujeito de
discurso que, a pretexto de falar do lugar da ciência, sobrevoaria a história e poderia
falar de fora dela, ter uma visão global, de conjunto e não comprometida com os
embates do momento. Ilusões que Bouvard e Pécuchet podiam ainda ter no século
passado, mas os historiadores hoje já admitem que o se alojar no passado não é
nenhuma garantia de imparcialidade, simplesmente porque ela é impossível.
A história, a partir do século XIX, se instaurou como uma disciplina,
pretensamente científica. Naquele século, as experiências históricas e o passado
eram tomados como grau zero para o realismo, a realidade era mostrada e
justificada pela história. A modernidade buscou, na história, as leis da evolução
humana, evolução civilizatória. Leis que ajudariam a prever o telos para a humani-
dade. Tratava-se de evitar encarar o caráter finito e ilimitado da existência do
homem. A história anunciava o encontro futuro da humanidade com a sua redenção,
proporcionada pelo avanço do conhecimento, da ciência, da razão, da consciência.
É esta história científica, que passando por sucessivas críticas, desde a Escola dos
Analles, que procurou livrar a história das filosofias e dotá-la de uma teoria e um
método próprio, vive uma definitiva crise hoje.
Durante quase dois mil anos, a escrita da história era vista como uma forma de
arte, um gênero literário, em que se embricavam outros gêneros como o épico, o
lírico, o satírico e o dramático, devendo-se levar em conta questões de retórica e de
estilo. A história, como o próprio termo grego significava, era a narrativa, a descrição
de testemunhos exemplares, de feitos quase sempre ligados aos Estados e às
aristocracias. A narrativa histórica, como coloca Hayden White, implica a elaboração
de um enredo com a definição de personagens, de agentes e agências da ação
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a narrativa histórica não possa ter jamais a liberdade de criação de uma narrativa
ficcional, ela nunca poderá se distanciar do fato de que é narrativa e, portanto,
guarda uma relação de proximidade com o fazer artístico, quando recorta seus
objetos e constrói, em torno deles, uma intriga.
A pós-modernidade, ao romper com o cientificismo e o racionalismo moderno,
instaura um novo paradigma calcado nas artes. Diante, pois, da emergência de um
paradigma ético-estético na pós-modernidade, o conhecimento histórico, a escrita da
história muda de estatuto. Podemos enfim nos livrar da exigência da cientificidade,
entendida como produção de um conhecimento capaz de apreender a verdade única
do passado, das leis eternas e imutáveis, das organizações estruturais, sistêmicas, o
que já foi feito inclusive pelas chamadas ciências da natureza. Podemos voltar a
enfatizar a dimensão artística de nosso conhecimento e da nossa prática. Tomar a
história como arte de inventar o passado, a partir dos materiais dispersos deixados
por ele.
Isto não significa esquecermos nosso compromisso com a produção metódica
de um saber, com o estabelecimento de uma pragmática institucional, que ofereça
regras para a produção deste conhecimento, pois não devemos abrir mão também
da dimensão científica que o nosso ofício possa ter. Mesmo as artes também
requerem métodos e não dispensam teorias, pois, mesmo tendo feito a crítica às
filosofias da história não podemos desconhecer também a dimensão filosófica e
política de nosso conhecimento. As artes também requerem, acima de tudo, uma
ética feita de princípios imanentes às próprias ações e não preconceitos morais ou
preceitos morais, que já orientaram determinadas correntes historiográficas. Não
podemos fugir do limite imposto pelo nosso arquivo. Só podemos historicizar aquilo
que deixou rastros de sua produção pelo homem, em dado momento e espaço. Mas
desaparecem as fontes privilegiadas da história, ou aspectos dos quais o historiador
não poderia se ocupar e tudo se torna historicizável e fonte de historicidade.
Não devemos reivindicar para a história mais do que seu lugar como saber
específico. Se ela jamais será uma ciência capaz de proposições inquestionáveis, se
não poderá ser uma arte com total liberdade de criação e não pode submeter o devir
histórico a uma filosofia, a uma razão e explicação unívoca, nós historiadores
podemos fazer disso a delimitação de nosso espaço, tomarmos a história como uma
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Notas
(1) FLAUBERT, Gustave - Bouvard e Pécuchet, 2 ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.
(2) Idem, Ibidem, p. 89
(3) Idem, Ibidem, p. 105
(4) Idem, Ibidem, p. 106
(5) Idem, Ibidem, p. 108
(6) Idem, Ibidem, p. 109
(7) KANT, Emannuel - Crítica da Razão Pura, São Paulo, Abril Cultural, 1982 (Coleção Os
Pensadores).
(8) VICO, Giambatista - A Ciência Nova. In: GARDNER, Patrick - Teorias da História, 3 ed., Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.
(9) HEIDEGGER, Martin - Ser e Tempo, 4 ed., Petrópolis, Vozes, 1993, p.34
(10) NIETZSCHE, Friedrich - Considerações Extemporâneas, São Paulo, Nova Cultural, 1991, p. 28
(11) WHITE, Hayden - Meta-História: a imaginação histórica do século XIX, São Paulo, EDUSP, 1992
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