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Os domínios do mistério

prometem
as mais belas experiências.

Einstein
c:OtECÇ}o&esFINGE
- HISTÓRIA DA ASTROLOGIA, por Serge Hutin.
2 - OS EXTRATERRESTRES NA HISTÓRIA, por Jacques Bergier
3 - O OURO DOS ALQUIMISTAS, por Jacques Sadou
4 - O MISTÉRIO DAS CATEDRAIS, por Fulcanelli
5/6 - HISTÓRIA DA MAGIA. por Kurt Seligman
7 - O LIVRO DOS MUNDOS DOS ESQUECIDOS, por Robert Charroux
8 - OS ENIGMAS DA SOBREVIVÊNCIA, por Jac4ucs Alcxandcr
9 - O OCULTISMO, por Papus (
10 - OS DOMÍNIOS DA PARAPSICOLOGIA, por H. Larcher e P. Ravignant
11 - STONEHENGE, por Fernannd Neil
12 - ESTAMOS SÓS NO COSMOS? por A. Pontmann, J. Illies e outros
13 - ARQUIVOS SECRETOS DA FEITICEIRA E DA MAGIA NEGRA, por François Ribadeau
Dumas
14 - TRATADO DA PEDRA FILOSOFAL, segudo deO PILO'fO DA ONDA VIVA, por
Lambsprink e M. Eyquem du Martineau
15 - MANSÕES FILOSOFAIS, por Fulcanelli
16 - O GRANDE E O PEQUENO ALBERTO
17 - OS 13 PANTÁCULOS DA FELICIDADE, por Kersaint
18 - MANUAL PRÁTICO DE ASTROLOGIA, por Joelle de Gravelaine
19 - CARTAS E DESTINO, por Hades
20 - A ARQUELOGIA MISTERIOSA, por Michel-Claude Touchard
21 - OS GRANDES LIVROS MISTERIOSOS, por Guy Betchel
22 - SETE, O NÚMERO DA CRIAÇÃO, por Desmond Varley
23 - AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS, por Claudine Brellet-Tueff
24 - A CIÊNCIA PERANTE O DESCONHECIDO, por F. L. Boschke
2.'i - A CHAVE DA TEOSOFIA, por H. P. Blavatsky
26 - A TRADIÇÃO HERMÉTICA, por Julius Evola
27 - TRATADO DA REINTEGRAÇÃO DOS SERES, por Martinets de Pasquallys
28 - A CABALA E A TRADIÇÃO JUDAICA, por R. de Tryon-Montalembert e K. Hruby
29 - OS ROSA-CRUZ, por J.-P. Bayard e P. Montloin
30 - A MAGIA DOS NÚMEROS, por Jorg Sabellicus
31 - A HISTÓRIA DA J;>ARAPSICOLOGIA, por Massimo Inardi
32 - A TELEPATIA, por Vicenzo Nestler
33 - A LEVITAÇÃO, por Anna Maria Turi
3.'i - OS CÁTAROS, por René Nelli
36 - O ESPIRITISMO, por Jaques Lantier
37 - ALQUIMIA E OCULTISMO, por Hermes, Preceslo e outros
38 - INICIAÇÃO À ASTROLOGIA, por Leonardo Oliveira
39 - O SUFISMO, por William Stoddart
40 - CIVILIZAÇÕES SUPERIORES DA ANTIGUIDADE
41 - OS GRANDES ENIGMAS DA ARQUEOLOGIA, vários
42 - AS PEDRAS E A ESCRITA, vários
43 - O SIMBOLISMO DO TEMPLO CRISTÃO, por Jean Hani
44 - A CIÊNCIA DOS SIMBOLOS, por René Alleau
4.'i - AS CIVILIZAÇÕES DO MISTÉRIO, por Sabatino Moscati
46 - O REI DO MUNDO, por Rená Guenon
47 - NOS CONFINS DO MUNDO, C. Finzi
48 - HISTÓRIA DA FILOSOFIA OCULTA, por Alexandrian
49 - O SEXO, OS ASTROS E NÓS, por Huguette Hirsig
50 - DEUSES DO PASSADO, ASTRONAUTAS DO FUTURO, por Erich von Daniken
.'i 1 - GUIA ASTROLÓGICO DA VIDA QUOTIDIANA, por Ariette Dugas e Sylvie Bar-Bennet
.52 - MANUAL DOS HORÓSCOPOS CHINESES, por Theodora Lau
.53 - LIVRO DOS AMULETOS E TALISMÃS, por Jo Logan
.54 - O PEQUENO LIVRO SOBRE A ARTE, por Caspar Hartung von Hoff
5.'i .......: Hi.;J'LER E O NAZISMO MÁGICO, por Giorgio Galli
GIORGIO GALLI

HITLER
E O ,..
NAZISMO MAGICO
AS COMfONENTES ESOTÉRICAS
DO Ili REICH

edições 70
INTRODUÇÃO

Este livro pretende demonstrar como fragmentos de uma


cultura, que parecia ter desaparecido do Ocidente depois da revo­
lução científic�_ç!Q.,s séculos XVI e XVII e do Iluminismo racjona­
lista da -�nciclopé�reapareceram nos finais do século:._XIX-:)
Esses fragmentos foram reorganizados numa espécie de nõ,,-â
doutrina, que vinha das mais remotas origens do homem, para
reencontrar poderes e sabedoria que andavam ersos. Difun­
dida por publicações e por associações @sotéricas � os Estados
Unidos, na Inglaterra e em França, esta cultura controu um
terreno particularmente fértil na Alemanha, onde se unia ao
historicismo romântico de Herder a Schlegel. Uma «filosofia»
oculta prosperou assim no país de Kant, de Hegel, de Marx, e do
cientismo positivista.
Esta filosofia contribuiu em relevante medida para a formação
cultural de Hitler e de uma parte da elite nazi. Exerceu assim uma
notável influência política na crise àlê-mã"õo primeiro pós-guerra,
ainda que as suas irrupções tivessem sido determinadas por
acontecimentos e situações bem conhecidos e substancialmente
esclarecidos pela historiografia.
Sem a frustração que se seguiu à derrota; sem a crise económica
de 1929, que interrompe um período de recuperação; sem as
fraquezas estruturais do liberalismo alemão já analisadas por Max
Weber; sem os desempregados de massa e sem os erros políticos,
em primeiro lugar dos comunistas da III Internacional (a teoria do
«social-fascismo»), mas em parte também da social-democracia
(a subestimação dos propósitos reaccionários dos militares), o
nazismo não teria alcançado o poder.

9
Uma vez alcançado, a sua ideologia política, incluída.s as
componentes racistas que vinham ligadas à.«filosofia ocult�}),
levavam-no para a via não só da revisão de quanfohavi,ideTõjústo
no Tratado de Versalhes como do retomar de uma política
expansionista e imperial, implicando a possibilidade e a quase
inevitabilidade de um novo conflito. Tendo de enfrentar a maior
coligação militar e industrial da história com o fraco apoio italiano
e o distante e estrategicamente desordenado aliado japonês, o
Terceiro Reich, que deveria ser, nas intenções dos seus funda­
dores, «oJ�.eich dos Mil anos», foi derrubado apenas em onze
anos, depois deümà. desastrosa derrota militar.
De ambas estas fases da história do nazismo - a conquista do
poqer e o encaminhamento para a catástrofe - milhares de livros
iluminaram praticamente todos os aspectos; pareceria portanto
que pouco ou nada houvesse a acrescentar.
Mas as características desta «filosofia oculta» e a sua influên­
cia no processo de decisão de Hitler e de alguns dos seus mais
íntimos colaboradores não foram suficientemente estudadas.
Daqui deriva que nesta história globalmente conhecida ficaram
aspectos que· os próprios historiadores definiram como «eni­
g�as», e concernem precisamente questões de fundo:· por que
razão Hitler atacou a Polónia, convencido de que a Inglaterra não
interviria? Por que razão Hess seguiu para Inglaterra na véspera
do ataque à URSS? Porquê esta agressão que foi o preâmbulo da
catástrofe, quando o próprio Hitler tinha afirmado no Mein Kampf
que nunca se deixaria cair numa guerra em duas frentes,qiíe já
custara à Alemanha a derrota na Primeira Guerra Mundial?
A discussão destas decisões é parte integrante da historiogra­
fia do Terceiro Reich� Mas se muitos enigmas continuaram como
tal - e se se quis encontrar uma resposta na loucura de Hess ou
no aberrante racismo biológico de Hitler, quer dizer, no puro
irracional - é porque não foi adequadamente tomada em consi­
deração a relação existente entre uma cultura conhecida nos seus
enunciados (pense-se emA�.Q�ns culturais do T�tro Reich,
de Mosse) e o processo de decisão de Hitler e·dos homens que no
vértice do nazismo estavam impregnados por aquela cultura
(Hess, Rosenberg, Himmler, Frank, talvez Darré e Bormann).
É esta relação que o livro pretende descrever e explicar.
. Este estudo é por isso uma especulação, juntamente com
aquele sobre as culturas alternativas rebeldes que desenvolvi em
Ocidente Misterioso. A revolução científica e o racionalismo

10
iluminista venceram e marginalizaram modos de conhecimento
que tinham velhas raízes na história humana e que foram, de
quando em quando, diversamente definidos como magia, feiti­
çaria, ocultismo ,._�.s�!_t:!i�!1:1<!.,_h�_r�-�!(�!!1Q, J�S!.fQlQgia,.JUg,ui_�}a:
expressões de modos de ser e de tentativas de aproximação da
realidade que têm características diferenciadas, mas que a cultura
hegemónica classifica segundo o denominador comum da irracio­
nalidade.
Estas culturas tentam constantemente vir à superfície. As liber­
tárias e igualitárias manifestaram-se nos termos que descrevi em
Ocidente Misterioso.
----- -•--·- _,. -- ---· As viradas para alcançar uma excepcional
força e para estabelecer férreas hierarquias, reapareceram como
.,

componentes daqueles fenómenos complexos que foram o movi­


mento nªzi�_Q.R_ci.Qh hitleriano. Com este trabalho tentei assim
esclarecer algumas situações e satisfazer algumas curiosidades
relativas a episódios específicos da história de tais fenómenos e,
ao mesmo tempo, compreender em que formas as antigas culturas
ou seus fragmentos tendem a propor-se de novo depois do seu
aparente desaparecimento. Como noutras vezes, ao enfrentar um
tema, surgiram-me novos problemas e fui solicitado-por outras
curiosidades: enquanto escrevia, o explodir do caso I-Jeidegger e
do revisionismo historiográfico na Alemanha induziram-:me ·a
considerações que pus de lado para manter o estudo nos limites a
que me propusera. Mas a suposição de que o nazismo tenha· sido
uma «outra» cultura, cujas relações com a nossa serão ·melhor
esclarecidas, parece-me confirmada, e merecerá talvez ulteriores
investigações.

11
1
ENTRE A ALEMANHA E A INGLATERRA

Nos últimos decénios do século XIX e até ao primeiro conflito


mundial, surgiram na Alemanha e na Áustria associações e
cenáculos que tinham analogias na Inglaterra e cuja característica
consistia em se considerarem depositários de uma antiga sabedo­
ria primordial que, nalgumas suas manifestações, desembocava
110 esoteris_i:no.,. no ocultismo, no magismo.
- - -Em- 1867, um -grupo de estudantes liceais vienenses fundava
uma associação que assumia a denominação de Die Telyn, uma
harpa cujos sons paramágicos exprimiam a criatividade das
populações célticas da Gales meridional, que era tocada por
bardos durante os periódicos festivais de poesia. Nesta associação
militavam os futuros fundadores da social-democracia austríaca,
mas também jovens entusiastas, admiradores de Nietzsche e de
Wagner que durante anos colaboraram com Georg Ritter von
Schõnerer, o fundador do movimento pangermanista do qual
Hitler se reclamará explicitamente no Mein Kampf.
O cenáculo de Wagner em Bayreuth, centro de propagação
das teorias racistas de Gobineau e Chamberlain, é descrito no seu
aparecimento por um encomiasta dos «grandes iniciados» e da

1
Sobre a vicissitude de Die Telyn, cfr. William J. McGrath, Arte Dionisíaca e
Política, Einaudi, Turim 1986, Cap. I. Sobre vicissitudes sucessivas e sobre as relações
com Nietzche e com Wager cfr. os Capítulos II, «Nietzshe como educador», e III, «Estetas
e activistas».

13
sabedoria primordial como Eduard Schuré. Entusiasta de Muni­
que enquanto Berlim lhe «fez uma impressão repugnante» 2 ( o
vínculo com Munique e o inicial desprezo por Berlim serão
próprios de Hitler) 3 , Schuré escreve que o livro de Gobineau
Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas «toma-se para
Wagner uma espécie de Evangelho. Nos últimos anos de vida
Wagner pregava aos seus discípulos Gobineau» 4 • O mais afeiçoa­
do destes discípulos, Ludwig Schemann, autor de Recordações de
Richard Wagner, funda na Alemanha a Sociedade Gobineau para
lhe propagandear as teses. A obra de Gobineau é continuada por
um fidalgo inglês, Houston Stewart Chamberlain, genro de
Wagner, autor de Os fundamentados do século XX (1899) 5 a que
o homem talvez mais representativo da cultura nazi, e íntimo
colaborador de Hitler, Alfred Rosenberg, se sente particularmente
ligado, até como se pode ver pelo título que deu à sua obra: O mito
do século XX.
Em 1865, o arquitecto Semper, incitado por Wagner, elabo­
rava o primeiro projecto do que viria a ser o Teatro de Bayreuth.
No mesmo ano Robert Wentworth Little funda a Sociedade
Rosacruciana inglesa, da qual derivará em 1887 a Golden Dawn,
ligada por sua vez a associações alemãs unidas à «doutrina
secreta» de Madame Blavatski e à antropossofia de Rudolph
Steiner.
A ponte rosacruciana entre Alemanha a Inglaterra sobressai
no século XVII no quadro de uma cultura ocultista não estranha ao
início da guerra dos Trinta Anos que devastou a Alemanha.

2
O juízo de Schuré sobre Berlim está em /l sogno de/la mia vita, Laterza, Bari 1929,
pág. 52.
3
Segundo o parecer de Hitler sobre Berlim cfr. a típica resposta à sugestão de
Mussolini de Junho de 31 de transferir para a capital a direcção do partido: «Indicou-me
que considerasse de momento inoportuna a transferência. Berlim não é Roma. É uma
cidade meio americanizada, meio cultural e sem tradição» (Carta a Mussolini de Giuseppe
Renzetti, director da Câmara de Comércio Italiana em Berlim e representante, portanto, do
Duce junto do futuro Führer, reproduzida em «O embaixador sombra», in «Storia
illustrata», Dezembro, 1987).
4
Edouard Schuré, Donne inspiratrici, Laterza, Bari, 1930, págs. 86-87. Este texto,
como o citado na nota 2, faz parte de uma colectânea com o título «Estudos religiosos,
inj,çiáticos e. esotéricos».
5
No seu já clássico La dittatura tedesca - Origini, strutture, consequenze dei
nazionalsocialismo in Germania (II Mulino, Bolonha 1973) Karl D. Bracher recorda que
«a troca epistolar entre Chamberlain e a viúva de Wagner (Cosima Liszt) se inspirou nos
princípios do anti-semitismo e de uma conjura hebraica internacional e da sua destruição
à escala mundial» (pág. 20).

14
Frances Yates narrou, numa sua interpretação do Iluminismo dos
Rosa-Cruzes, como as esperanças de um apoio inglês aos protes­
tantes alemães, depois do casamento da filha de Jaime I com o
eleitor do Palatinado, estiveram na origem das vicissitudes de
1618-1620 com a vitória dos católicos em Praga. Isso assinalou
a derrota não só dos protestantes, como também de uma corrente
de pensamento «mágico» que encontrara o seu centro na capital
boémia, sede da corte de Rudolfo II de Habsburgo6•
Aqui desempanhara um papel de primeiro plano o inglês John
Dee e, depois das desgraças da guerra dos Trinta Anos, os
continuadores desta cultura alquímica e rosacruciana - cujo
nascimento data de 1616, ano da publicação em Kassel das
célebres As Bodas Químicas sobre as aventuras de Christian
Rosenkreutz - emigraram para Inglaterra. Segundo Frances
Yates, para cuja ampla documentação remeto, «o movimento 're­
gressou' a Inglaterra porque, como tentei demonstrar, foi na
Inglaterra, creio que sob a forma de influência da missão de Dee
na Boémia, que o estranho mito rosacruciano teve, em grande
parte, a sua origem» 7•
Segundo esta historiadora, os rosacrucianos eram iluministas
em potência e Robert Evans interpreta a sua marginalização como
resultante de não terem sabido adoptar o princípio de causuali­
dade, base do iluminismo: «foram condenados à obscuridade
[porque] a sua cosmologia era fundamentalmente uma cosmolo­
gia mágica» 8 • Estes historiadores e a historiografia inglesa recente
deram um importante contributo à compreensão de como nos
séculos XVI e XVII magia e ciência estiveram mais entrelaçadas do
que quanto estabelecera a historiografia tradicional até meados
deste século. Mas se os «mágicos» renascentistas foram condena­
dos à obscuridade, é possível que a sua tradição cultural se tenha
transmitido através de pequenos grupos ao longo dos dois sé­
culos, que vão da segunda metade do século XVII à segunda
metade do século XIX. A sociedade rosacruciana de Wentworth
Little é provavelmente a condensação destes grupos. É necessário
ter presente esta ponte entre Alemanha e Inglaterra, cujos pilares

6
Cfr. Robert J. W. Evans, Rodolfo II d' Absburgo -L' enigma di um imperatore, 11
Mulino, Bolonha 1984.
7
Frances Yates, L' Illumi�ismo dei Rosa Croce-Uno stile di pensiero ne/1' Europa dei
Seicento, Einaudi, Turim, 1976, pág. 186.
8
Robert J. W. Evans, op. cit.; pág. 396.

15
são pequenas sociedades esotéricas, quando for encarada a ques­
tão da enigmática viagem de Rudolf Hess em Maio de 1941.
O esoterismo rosacruciano convergirá com o magismo das
runas (a interpretação é de origem austríaca) na versão germânica
destes grupos «ocultistas» (a sociedade de Vril, a Loja luminosa,
a sociedade Thule) do século XX. As premissas são postas nos
últimos dois decénios do século XIX (no período de desenvolvi­
mento da Golden Dawn), segundo a cuidadosa reconstituição de
George Mosse:

O mais influente dos grupos ocultistas foi aquele que se


constituiu em Viena, nos dois últimos decénios do século
XIX, tendo como mentor Guido von List, um erudito austríaco
obcecado pelo desejo de provar que Viena fora a cidade
santa da antiguidade. É significativo que as ideias de List
tenham nascido numa região fronteiriça do mundo germâ­
nico sujeita a contínuas trocas com os vizinhos países
eslavos. List efectuava uma mistura de natureza e história,
onde a primeira era entendida como guia divina da qual
vinha uma incessante força vital. Quanto mais uma coisa era
próxima da natureza, tanto mais próxima era da verdade; o
passado ariano alemão era muitíssimo próximo de tudo isto
que era verdade; nele, materialismo e racionalismo não
tinham tido lugar; tratavam-se de calamidades inteiramente
modernas. Mas como poderia o homem contemporâneo
reencontrar o passado? «Tínhamos de decifrar com as
nossas almas a paisagem que a arqueologia reconquista com
a enxada. Quem queira levantar o véu do mistério tem de se
refugiar na solidão da natureza». Mas esta compreensão do
passado exigia uma mais profunda iniciação: era necessário
que o indivíduo se aproximasse do passado histórico do
Volk, que se impregnasse com o elemento mais genuíno da
força vital, a antiga sabedoria germânica. Ela existia ainda,
plena de força vital, nem que fosse em estado de letargia e
o dever de historiadores e germanistas era fazê-la reviver...
List vangloriava-se de ter reencontrado o kala, a linguagem
secreta dos antigos germanos; dado que algumas das pala­
vras kala repetiam-se também na cabala, afirmava List que
isso era reflexo da sabedoria germânica. Como madame
Blavatski, List dizia-se na posse de uma «ciência secreta»
que por meio da força vital desvendava o passado. Esta sua

16
afinidade com a teosofia tomara-se evidente pela sua crença
de que todas as impressões provinham necessariamente de
um mundo extra-sensorial e pela sua fé na possibilidade de
comunicar com os espíritos de épocas passadas. Por vezes,
os dois movimentos, o nacional-patriótico e o teosófico,
confluíam também no ponto de vista associativo; assim
Johannes Baltzli, fundador e animador da sociedade Guido
von List, publicava os seus escritos em numerosas revistas
teosóficas. List fazia parte do grupo de germanistas anti­
-semitas, encabeçado por Schõnerer, [com] uma visão cujo
eixo era constituído pela. figura de um chefe, um «homem
forte chegado do alto» cujo advento era inevitável. List
compartilhava com madame Blavatski o conceito de Kar­
ma, como está demonstrado pela narração do sonho acerca
do chefe messiânico mandado publicar por ele no seu
«Prana», uma revista teosófica alemã. As ideias de List
difundiram-se na Alemanha através de Alfred Schuler, que
residia em Schwabing, o bairro dos artistas de Munique,
onde no final do século se fora constituindo uma vasta
comunidade de gente que pensava do mesmo modo. [Ali]
sobressaía o poeta Stefan George e com ele o jovem Ludwig
Klages, destinado a tomar-se um dos chefes da filosofia
alemã9•

Sabe-se que Schwabing era o bairro onde Hitler viveu os seus


anos de Munique, antes da guerra. Provavelmente já então absor­
via ideias que reencontraria - como se verá - em 1920; e
Mosse sintetiza assim:

Q âmbito em que Schuler se movia teve o seu hagiógrafo em


Franziska von Reventlow, que lhe dedicou um romance
autobiográfico (As Observações do Senhor Dame, 1902),
no qual descreveu os membros deste grupo esotérico,
conhecido como «Os cósmicos». Estes atribuíam grande
valor à originária substância comum a todos os que perten­
ciam à mesma raça. Tal característica era equiparada, no
plano filosófico, a um princípio cósmico criador da vida e

9
George L. Mosse, Le origini culturali dei Terzo Reich, II Saggiatore, Milão 1984,
págs. 108-111. A citação de List está na sua biografia escrita por Balzli (Guido von List,
Viena 1917, pág. 26). A obra fundamental de List é II se greto delie rune, editada em 1908.

17
l}ecessariamente presente em toda a personalidade criadora.
A importância atribuída ao sangue derivava directamente
do antigo culto druídico, que os membros do grupo tenta­
vam fazer renascer. George, por fim, escolheu um caminho
diferente, mas Schuler e Klages permaneceram fiéis às suas
convicções e experiências da juventude. O segundo, elabo­
rou mesmo uma complexa filosofia cósmica 1 0 •

Das runas, cujo segredo List estudava, provém a sigla das SS.
Reencontraremos a ideia de um mágico pacto en.tre o homem e o
cosmos por meio de uma personalidade criadora, o chefe vindo do
alto, nas conversas de Hitler que espantavam Rauschning. E uma
vez que sabemos que Claus von Stauffenberg e seu irmão eram
admiradores de George, que o autor do atentado de 20 de Julho de
1944 trazia, quando foi preso, um anel com a inscrição «Finis
initiun» (o célebre poema do mesmo George) 1 1 , podemos supor
que a decisão de eliminar Hitler, que estava a levar a Alemanha
para o desastre, nasceu naqueles mesmos grupos iniciáticos que
foram uma das componentes da formação cultural e da estratégia
de ascensão do Führer ao poder.
Continua Mosse:

Um outro intermediário entre List e a Alemanha foi a


estranha personagem conhecida pelo norrie de Ternhari
[que], com toda a probabilidade, não passava de um trapa­
ceiro e de um oportunista, que se apresentou a List fazendo­
-se passar pelo renascido chefe de uma antiga tribo germâ­
nica. Publicou em Leipzig uma Carta sobre a Suástica cuja
capa era ornamentada com uma figura astral empunhando
uma suástica flamejante. Tentou nos primeiros anos do
século XX constituir uma seita; ·e também esta, como as
outras, acabou em estilhaços porque Temhari se perdeu em
represálias com os outros membros. Também ele, tal como
Schuler, tinha os seus admiradores e porta-vozes, dos quais
o mais influente era aquele Dietrich Eckart, que foi o mentor
de Hitler nos inícios do movimento nacio1-1al-spcialista.
E efectivamente a Weltanschauung* dã.qÚal Hitler se fez o

10
George L. Mosse, op. cit . . págs. 1 1 1 - 1 1 2.
11
Cfr. Walter Laqueur, Youth Germany-A History ofthe German Youth Movement,
Nova Iorque, 1 962, pág. 1 36.
* Visão do mundo (N. do T.)

18
portador apresentava evidentes vestígios do pensamento de
Schuler e Ternhari. Continua a afirmar-se que estas crenças
desembocavam na magia, no irracional, na loucura; porém
o que conta é que, na época, elas encontravam grande
audiência por causa da sua base mágica. O próprio Schuler
admitia que a confluência das forças cósmicas originárias
num indivíduo podia conferir a este tais poderes ao ponto de
se julgar um mágico 1 2 •

Como veremos, Hitler, hábil organizador político, criticará


depois as pequenas seitas que se destroem na luta entre os seus
membros. Trabalhou para fazer do pequeno partido nazi uma
grande organização de massas. Mas do ambiente cultural já
descrito derivou uma das componentes fundamentais do seu
pensamento. Acreditou numa relação especial, mágica, entre
forças cósmicas e indivíduos particularmente dotados. Note-se a
afirmação de Mosse, crítico deste irracionalismo que prepara o
nazismo, segundo a qual Ternhari «com toda a probabilidade não
era mais que um trapaceiro». Porquê «com toda a probabilidade»
e não com absoluta certeza? Porque a personagem, se não é dotada
da «boa fé» 1 3 que Mosse reconheceu a Schuler, está em parte
convicta de reencarnar em si um chefe de outros tempos. A reen­
carnação, parte integrante do credo do karma, do renascimento,
era inerente àquele tipo de cultura. É digno de crédito que
Heinrich Himmler, o impiedoso organizador das SS de que volta­
remos a falar, se considerasse a reencarnação do rei da Germânia
Henrique o Leão, a personagem da época das lendas de Parsifal e
Lohengrin, do mito do Graal, que é uma outra componente da
cultura que conduzirá ao nazismo.
Dela é basilar expressão a revista «Ostara», de que Hitler é
assíduo leitor nos anos vienenses. A publicação, fundada em
1 905, toma o nome de uma antiga deusa germânica da Primavera
e é dirigida por um partidário de List, anteriormente frade e que
tinha abandonado o hábito: Jõrg Lanz von LiebenfeldS/também
um «trapaceiro» que, segundo o mais sério biógrafo de Hitler,
Joachim Fest, a si atribuía «um título de nobreza completamente

12
George L. Mosse, op. cit. , págs. 1 1 3- 1 14.
13
Ibidem, pág. 1 13 .

19
inventado 1 4 • Bracher limita-se a dizer que «Adolf Lanz se deno­
minava Lanz von Liebenfelds» 1 5 • Estas definições, como as
usadas pelos historiadores para Sebottendorf, fundador da Socie­
dade Thule de que muito se falará ainda, merecem ser recordadas,
porque se referem a personalidades que se encontram na indefini­
da fronteira entre a mistificação e a convicção de serem iniciados
e que estão na origem dos grupos ocultistas que são uma das
matrizes do nazismo.
São justamente lembrados pelo seu acentuado anti-semi­
tismo. São-no menos, ou não o são totalmente, pelos seus
alegados dotes paranormais e pela possibilidade de os adquirir.
Lanz funda um «castelo da ordem» 1 6 em Werfebstein, na
Áustria meridional. Financiamentos de industriais permitiram­
-lhe comprar «a sua fortaleza da qual patrocinava a fundação e a
organização de uma ordem masculina ário-heróica destinada a vir
a ser a vanguarda de senhores louros e de olhos azuis na sangrenta
batalha com as raças inferiores e impuras» 1 7 •
A sua cosmo-história é exposta no livro Teo-zoologia ou seja
estudo sobre os simiescos habitantes de Sodoma e os electrões
dos deuses. Introdução à mais antiga e à mais nova concepção do
mundo e justificação da soberania e da nobreza. Os heróis
arianos teriam sido dotados de especiais órgãos electrónicos,
eram uma raça extinta, mas cujos dotes paranormais poderiam ser
recuperados por intermédio de um processo de selecção genética.
Fest comenta:

O sentimento de angústia da época, a tendência para cons­


tituir associações e grupos de elite, a idolatria diletante que
nutria pelas ciências naturais, posições cimentadas por uma
componente que no plano intelectual como pessoal tem
muito a ver com a atitude de um comediante: tudo isto se
encontra na doutrina de Lanz 1 8 •

Veremos mais adiante a relação de Hitler com estas concep­


ções e em especial com a de Lanz. Aqui importa notar o «quase

14
Joachim Fest, Hitler, Rizzoli, Milão 1974, pág. 41.
15
Karl D. Bracher, op. cit. , pág. 82.
16
/bidem.
17
Joachim Fest, op. cit. , pág. 41.
18
Ibidem, pág. 99.

20,
de fraude» de Fest como o «com toda a probabilidade» de Mosse:
estes historiadores atenuam nalguma medida o peremptório juízo
sobre estes precursores da componente ocultista do nazismo.
Veja-se, aliás - juntamente com a aspiração ao paranormal -
que os dotes atribuídos por Lanz aos seus heróis eram muito
semelhantes aos das personagens das actuais séries televisivas,
entre as quais a célebre «mulher biónica» (que é loura e de olhos
azuis, mas que Lanz nunca teria proposto como heroína justa­
mente por ser do sexo feminino).
Os historiadores não aprofundaram as actividades de Lanz (ao
qual Bracher atribuiu o nome Adolf em vez de Jõrg). O castelo de
Werfenstein não podia ser apenas a redacção de uma revista de
difusão limitada. A definição de fortaleza da ordem permite supor
outras iniciativas. Quais? Talvez apenas cerimónias e discursos
de um grupo que «ali, já desde 1907, tinha assumido a cruz
gamada como símbolo da luta ariana» 1 9. Ou talvez qualquer coisa
mais, cerimónias de um tipo particular, iniciático, tentativas para_
criar as premissas para a exaltada reconquista dos dotes paranor­
mais dos tempos antigos.
Aqui é possível colocar o problema de se saber se Hitler
alguma vez frequentou o castelo. Lanz morreu com oitenta anos,
em 1954, mas pouco deixou atrás de si. Sustentou ter encontrado
em Werfenstein lorde Kitchener, o futuro ministro da guerra
inglês. Os historiadores consideram a afirmação sem funda­
mento20, mas talvez devessem ser mais cautelosos se se tiver
presente a ponte entre Inglaterra e Alemanha da qual se falou.
A relação com o futuro Führer é pelo contrário considerada como
fundamentada neste quadro:
Lanz propunha concursos de beleza racial. Hitler a ele se
dirigiu para lhe pedir alguns números atrasados da revista
que lhe faltavam e de cujos ensinamentos evidentemente se
impregnava com vivíssimo interesse; deixou em Lanz von
Liebenfelds a impressão de um jovem pálido e modesto2 1 .
A definição de «concursos de beleza» causa perplexidade.
É habitualmente sublinhado na historiografia o facto de serem

19
Karl D. Bracher, op. cit. , pág. 82.
2
° Cfr. Joachim Fest, op. cit. , pág. 99. A fonte de Fest é o livro de Wilfried Daim, Der
Mann, der Hitler die ldee gab.
21
Joachim Fest, op, cit. , pág. 42, mesma fonte.

21
poucos os componentes da elite nazi a terem os traços somáticos
dos heróis altos e louros com olhos azuis e certamente Hitler não
os tinha. É possível estabelecer a hipótese de a primeira fase do
processo de f armação da «nova raça» (conceito típico de Hitler)
não ser tanto um conjunto de caracteres físicos, quanto a possibi­
lidade de uma preparação para a tão desejada reconquista de dotes
paranormais, «biónicos». O clima cultural descrito por Fest e por
Mosse permite compreender como convicções deste género -
apesar de infundadas - poderiam vingar em associações que
estão na origem do processo magmático que conduz ao nazismo.
Se é possível estabelecer a hipótese de que Hitler tenha
participado nas actividades decorridas no castelo de Werfenstein,
o que é certo é que no mesmo período amadurece uma outra
componente do processo que levará Hermano Rauschning a
definir o de Hitler, como veremos, como o de «socialismo
mágico»22 • Mágico, mas socialismo, tal como o podia entender
um conservador prussiano como era o caso do presidente do
Senado de Dantzig, cidade livre no primeiro pós-guerra e motivo
da explosão do segundo conflito mundial.
O socialismo mágico de Hitler tem as suas origens no socia­
lismo nacional que pelos finais do século XIX se desenvolveu,
como o arianismo ocultista de von List, por contacto e em
contraste com o elemento eslavo presente nas proximidades das
etnias germânicas.
Paradoxalmente o primeiro partido que toma o nome de
nacional-socialista não é alemão, mas checo, e é fundado em 1898
a seguir a uma cisão no sindicato entre os trabalhadores de
nacionalidade boémia e os de nacionalidade alemã. Estes consti­
tuem por sua vez em 1904, em Trautenau, na Boémia, o Deutsche
Arbeiterpartei (DAP, partido dos trabalhadores alemães) que «se
apoiava fortemente nas leis alemãs do trabalho, de inspiração
nacionalista, cujo centro era Linz, a cidade em que naqueles anos
o jovem Hitler cumpria com pouco sucesso os seus estudos
escolares... Bem depressa os adeptos do partido se chamaram
simplesmente nacionais-socialistas» 2 3 •
Um dos fundadores era o jovem de vinte e dois anos, aprendiz
de tecelão, Hans Knirsch, que encontraremos depois de 19 18

22
Hermann Rauschning, Hitler mi ha detto, Rizzoli, Milão, 1945, pág. 247.
23
Karl D. Bracher, op. cit. , pág. 7 1.

22
como guia do partido nacional-socialista nos Sudetas anexados à
Checoslováquia, o partido que sob a direcção de Konrad Henlein
(sucessor de Knirsch) teve um papel decisivo na crise que levou
ao desmembramento do país e à triunfal entrada de Hitler em
Praga em 1939, prelúdio da Segunda Guerra Mundial.
Entre os filiados no DAP numerosos eram os ferroviários,
cujo líder era Rudolf Jung. Um jovem ferroviário de Munique,
Anton Drexler, estava em contacto com os ferroviários da Boé­
mia; tendo-se tomado depois ferreiro nas oficinas ferroviárias da
capital bávara, membro de sociedade Thule, fundou a 5 de Janeiro
de 19 19, com vinte e cinco operários destas oficinas, o Deutsche
Arbeiterpartei, partido dos trabalhadores alemães. Já no Verão de
19 18, o DAP na Boémia tomou oficialmente a denominação de
«Deutsche Nationalsozialistische Arbeiterpartei» (Partido Na­
cional-socialista Alemão dos Trabalhadores - DNSAP) e a 24 de
Fevereiro de 1920 também o partido fundado por Drexler adoptou
a denominação de Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei
(NSDAP), o partido que com o nome sintético de nazi iria tomar
o poder na Alemanha e tentar instaurar a «nova ordem» na Europa.
Os vinte e cinco pontos do programa do partido decalcavam
os de Jung e de Drexler, tanto mais que Hitler, que apresentou
oficialmente o programa, estava provavelmente em contacto com
o pequeno DAP alemão da Boémia «no seu período vienense, ou
mesmo antes, em Linz»24 • Para os que cultivam analogias históricas,
é possível recordar um outro período no qual a ponte, desta vez
entre a Inglaterra e a Boémia, foi a premissa de um grande
conflito.

/ Desde 1388 Oxford era frequentada por estudantes checos
· ·reunidos num centro, e os filhos dos acompanhantes de Ana
de Boémia, esposa de Ricardo II de Inglaterra, engrossavam
as fileiras desta colónia mantendo todavia com as suas
viagens relações intensas com a pátria. Foram eles a intro­
duzir na Boémia os escritos de Wyclif. O próprio Huss nos
informa (em 14 1 1) que eles «e muitos membros da Univer­
sidade possuíam e liam já há mais de vinte anos e continuam
a ler os livros do professor inglês Wyclif»; e, por outro lado,
disto temos uma prova nos seus entusiásticos comentários,

24
Ibidem , pág. 75.

23
escritos em língua checa, na margem das páginas oe uma
obra filosófica (sobre os universais) do mestre inglês. O De
Ecclesia que constituiu a ossatura da homónima obra de
Huss e dela contém a tese, foi copiado por um estudante
checo e por um boémio (do qual conhecemos até o nome,
Nicolau Faultiss). Estes não são senão alguns exemplos da
influência, pacífica e certa pelo menos até ao concílio de
Constança, do pensamento dos reformadores ingleses sobre
Huss. Lutero em 1512, em Leipzig, defendeu «as teses
condenadas-de Wyclif e]fuss» embora a ênfase seja dada a
este último. E mesmo Melancton, com o qual Lutero
discutirá depois sobre Huss, não parece ter compreendido a
matriz wyclifiana do homem de Praga, e a sua obra sobre
Wyclif conclui por uma condenação. De 1529 é aliás
uma carta de Lutero que contém um passo precioso: «Aper­
cebo-me de ter ensinado e defendido até aqui todas as teses
de Huss sem o saber. Todos nós somos hussitas sem o
sabermos»25 •

Ainda que Melancton o ignore, há uma ponte que da Inglaterra


conduz à Reforma, que da Alemanha «volta» à Inglaterra como o
magismo renascentista. Wyclif e Huss surgem como modelos da
luta contra o papado romano; e na catolicíssima Áustria do início
do século XIX (continuadora daquela que esmaga a Praga protes­
tante e magista de 16 18) a luta contra Roma, entendida no sentido
que os Ingleses definem com o termo «papismo», está no pro­
grama do movimento pangermanista de Schõnerer. Um dos seus
slogans era «Contra Judas, contra Roma - Constrói-se a catedral
da Germânia» (em alemão a assonância entre Rom e Dom toma o
slogan mais ritmado) 26 •
Hitler, cujo desprezo pessoal pelo catolicismo é bem conhe­
cido (se bem que controlado inicialmente durante a obtenção do
acordo e até à aliança com von Papen), recolhendo em parte a
herança de Schõnerer, de quem era admirador, contrapõe à
religião de Roma «papista» não já a crítica de Wyclif, de Huss, de
Lutero (partidários de um cristianismo diferente), mas uma

25
Maria Teresa Beonio Brocchieri Fumagalli, Wyclif - il comunismo dei
predestinati, Sosoni, Florença 1975, págs. 2-3.
26
Cfr. Joachim Fest, op. cit. , pág. 45 .

24
concepção que Pio XI e os seus colaboradores consideraram
neopagã, e que contém elementos do ocultismo mágico cultivado
nos círculos de Lanz e de von List.
Um outro elemento mais inquietante, da relação entre tradição
e grupos ocultistas na Inglaterra e na Alemanha, é constituído pela
chamada «magia sexual», quer dizer de poderes «especiais »
derivados das práticas sexuais. É um tema objecto de recentes
estudos também em referência a Giordano Bruno, do qual são
conhecidos os ecos da estada inglesa e das viagens na Alemanha
antes do processo e da trágica fogueira de 1600. Estas práticas
podem fazer do «mago» um «manipulador total»27 segundo a
expressão de Joan Couliano, aluno e continuador de Eliade, como
ele de origem romena, empenhado em reduzir ao mínimo as
relações, directas e intensas, entre o seu mestre e a Legião do
Arcanjo Miguel, de Comélio Codreanu, um dos mais carac­
terísticos movimento do radicalismo de direita entre as duas
guerras.
O culto da magia sexual, que talvez tenha continuado clandes­
tino na Inglaterra como o rosacruciano e do qual existem, de
qualquer modo, indícios na figura e na obra de George Byron,
volta a aparecer em meados do século XIX com o encontro entre
o ocultista francês Eliphas Levi, que vem a Londres para o ver, e
Edward Bulwer Lytton, que tem um papel crucial no evoluir da
sociedade rosacruciana para a hermética Golden Dawn (apesar de
fundada depois da sua morte).
Eliphas Levi é o nome artístico de Alphonse-Louis Constant,
seminarista na adolescência e depois revolucionário quarentão na
Paris de 1848, na qual funda «La Tribune du Peuple» e o Círculo
da Montanha, com uma mulher feminista, Claude Vignon, que
pertence ao grupo dos Vesuvianos, com cujo apoio tenta em vão
ser eleito deputado. Tendo passado do socialismo ao ocultismo,
escolheu o novo nome com o qual se tomará famoso neste último
campo e que é, ao mesmo tempo, a tradução em hebraico de
Alphonse-Louis, a denominação de Elifaz, um dos três amigos
que, segundo a Bíblia, consolam o aflito Job.
Chegado a Londres depois do advento do Segundo Império,
Eliphas Levi entra em relação de amizade com Bulwer Lytton,

27
Joan Couliano, Eros e magia nel Rinascimento, II Saggiatore, Milão 1 987, pág.
164. Ibidem sobre a magia sexual bruniana v. o cap. 4, «Eros e magia», págs. 1 4 1 - 1 65 .

25
nobre inglês que pratica com grande sucesso tanto a política como
o ocultismo: em 1 83 1 , apenas com vinte e oito anos, é deputado
liberal. Em 1 834, publica um romance de grande êxito, Os Ulti-
mas Dias de Pompeia. No ano seguinte escreveu Rienzi, persona­
gem esta que fascinará Hitler através da homónima ópera de
Wagner. Demite-se do Parlamento em 1 84 1 , para passar a ser em
1 852 deputado conservador. Em 1866 toma-se Lorde Lytton de
Knebworth e em seguida Par de Inglaterra. Entretanto escreveu as
obras inspiradas pela tradição oculta: Zanoni ( 1 849), Uma Estra­
nha História (1862), Magos e Magia ( 1 865), à qual se seguirá
A Raça Futura, na qual é posta a hipótese da existência de uma
forma de energia (Vril), que dará nome à sociedade que, com o
fundador do Instituto de Geopolítica, Haushofer, contribuirá para
a elaboração da ideologia nazi.
A carreira política de Bulwer Lytton culmina com o cargo de
Secretário de Estado das Colónias e impulsionador da formação
de Queensland e da Colúmbia britânica como colónias separadas.
Quando da sua morte, em 1 873 , é sepultado na abadia de West­
minster.
É portanto um inglês da aristocracia e um homem político de
prestígio que se ocupa com Eliphas Levi do estudo da magia
sexual, em 1 854, e que com ele faz experiências ho Castelo de
Knebworth, em 1 861. Este é um dado a ter presente quer quando
for fundada The Hermetic Order of the Golden Dawn ( abreviada
em Golden Dawn, a alvorada dourada), quer para compreender o
papel de Aleister Crowley, as sucessivas cisões naquela sociedade
oculta, as relações com as análogas sociedades alemãs nos anos
vinte ( o vril, a Loja luminosa), os possíveis interlocutores nos
quais pensava Hess em Maio de 1 94 1 .
No ano seguinte ao da fundação da Golden Dawn, Londres é
· agitada por uma série de crimes sexuais, os de Jack o Estripador,
que mata cinco prostitutas londrinas sem ser descoberto. O mis­
tério sobre ele dura até hoje. E são conhecidas as hipóteses
segundo as quais o mistério se deveria ao facto, de algum modo,
daqueles delitos sexuais envolverem membros da alta sociedade.
Neles se viu, além disso, a conexão com práticas esotéricas.
Um recente texto adiantou a hipótese de the Ripper, o estripa­
dor, ser um médico, Roslyn D ' Onston Stephenson, que na época
escreveu uma série de artigos em jornais populares, ligando os

26
assassínios, todos ocorridos no bairro de Whitechapel, a ceri­
mónias de magia negra28 •
U m outro texto retoma a tese de que o assassino fosse John
Druitt Montague: é a tese tradicional pois que, depois da des­
coberta do seu cadáver, os assassínios cessaram. Mas acrescen­
tou-se que, na realidade, ele não se suicidou atirando-se ao
Tamisa, mas sim que foi assassinado. O seu corpo, com as
algibeiras cheias de pedras, foi retirado do rio a poucos metros de
Osiers, uma residência privada de Cheswick que era utilizada para
as reuniões de um clube conhecido pelo Clube dos Apóstolos,
uma sociedade com finalidades obscuras à qual Druitt pertencia
e da qual eram membros muito aristocratas e também um possível
herdeiro do trono de Inglaterra, Albert Victor (Eddy), duque de
Clarence, neto da rainha Vitória, suspeito por sua vez de ser the
Ripper.
Afirma-se no livro que o irmão de John Montague, William,
estaria na posse de provas que demonstrariam a inocência do
duque, embora os suspeitos fossem indicados29 • Colin Wilson,
um estudioso do oculto que em seguida também será citado,
afirma pelo contrário, num livro recente, a inocência de John
Montague Druitt e a culpabilidade do duque de Clarence. O mé­
dico da rainha, William Gull, teria atraído suspeitas para si para
as desviar do duque30 • Segundo outros Jack não seria outro senão
o amante do homossexual Eddy, James Kennett Stephen.
Num texto também recente e devidamente documentado de
um escritor italiano, Silvio Bertoldi, o episódio volta a ser
evocado em relação a um possível matrimónio entre o duque e
Helena de Orleans, futura esposa de Emanuele Filiberto de
Saboia:

Antes de conhecer Emanuele Filiberto, tudo permitia crer


que deveria casar com o duque Alberto de Clarence, primo­
génito de Eduardo VII e destinado, portanto, a governar um
dia a Inglaterra, embora também conhecido por razões mais
equívocas e turvas, a dar crédito a certas vozes queridas dos
cultores de romances policiais. Segundo uma versão saída

28
Cfr. Marvin Harris, Jack the Ripper, the bloody truth , Londres 1987.
29
Cfr. Martin Howells e Keith Skinner, The Ripper Legacy, Londres 1987.
3
° Colin Wilson e Robin Odell, Jack the Ripper: summing up and verdict, Londres
1987 .

27
dos arquivos da Scotland Y ard, comprovada por relatórios
médicos e naturalmente contrariada com desdém pelas
autoridades ( algumas das quais, porém, por terem manifes­
tado dúvidas, foram depois afastadas), teria sido ele o mis­
terioso monstro de Londres. Quer dizer, o famigerado Jack
o Estripador, o assassino, nunca identificado nem captura­
do, de prostitutas inglesas. O monstro feria as mulheres na
garganta com uma faca e, dando crédito a outras histórias,
be.bia o sangue das vítimas. Um vampiro portanto3 1 •

Pessoalmente utilizei outras vezes, nos meus estudos de


política, temas e teses que pareciam ser do gosto dos cultores de
romances policiais. Em geral foram-me úteis para me aproximar
da realidade. A proximidade das datas (o duque de Clarence
adoeceu no decorrer de 1890 e morreu em 1891 ou segundo outros
em 1892) permitiu uma hipótese: há uma tradição de magia sexual
e de magia negra ( que provoca discussões e divisões os círculos
ocultistas) que se renova com o encontro entre Eliphas Levi e
Bulwer Lytton, que em parte está presente na fundação da
«Golden Dawn» ( 1887), que pode estar ligada com os assassínios
quase rituais de 188 8, como tais apresentados numa história
considerada fantástica nos anos quarenta32 , e aos quais se segue
uma espécie de depuração nas sociedades ocultistas.

31
Sílvio Bertoldi, Aosta gli altri Savoia, Rizzoli, Milão 1987, págs. 92-93.
32
A história é contada por Stephan Knight no livro que tem um título que evoca o
nazismo: Jack the Ripper, the final solution, Londres 1976. (Por coincidência a solução
final concerne o extermínio dos judeus.) O pintor William Sickert, que teria ocupado o
quarto já alugado por Jack, teria contado ao filho Joseph que o duque de Clarence teria
casado secretamente em 1884 com Mary Kelly, a última das vítimas do estripador. Lord
Salisbury e William Gull, confrades numa loja maçónica, teriam envolvido o outro
confrade sir Robert Anderson, chefe da polícia metropolitana (Cid), na decisão de matar
segundo um ritual maçónico Mary e as outras prostitutas suas amigas que tinham a
intenção de fazer chantagem com o duque. Sickert admitiu depois ter inventado tudo. Mas
as suspeitas de um envolvimento a alto nível perduram. Um dos mais enérgicos refutado­
res desta tese e defensor da culpabilidade de Montague John Druitt é Daniel Farson, autor
de Jack the Ripper (Londres 1964) e de histórias de horror, que teve por tio-avô Bram
Stoker, criador de Drácula e influente membro da «Golden Dawn», do qual Farson
escreveu uma biografia (The Man Who Write Drácula, Londres 1975). Como se vê, as
coincidências são numerosas. Se se pensar em crimes cometidos por magia sexual,
Montague John Druitt pode ser realmente o culpado ou um dos culpados. Mas permanece
o mistério do motivo por que a polícia não chegou a resultado algum e do motivo por que
os delitos cessaram. O acontecimento é, além disso, rico de documentos e de relatórios
desaparecidos. Que todos estes mistérios escondem uma verdade a ocultar é portanto tese
verosímil. Acrescente-se que a denominação de clube dos Apóstolos foi desenterrada pelo

28
Estas vicissitudes envolvem sectores da aristocracia inglesa
ao ponto de caírem suspeitas nos membros da família real. Em
seguida, a tradição da magia sexual reaparece na Golden Dawn
com a adesão de Aleister Crowley, também ele pertencente à alta
sociedade, que afirma ser a reencarnação de Eliphas Levi, por ter
nascido no mesmo ano em que este morreu (1875).
Se há uma ponte oculta entre a Inglaterra e a Alemanha que
esconde uma história secreta, podem compreender-se a esperança
de Hitler de uma paz com a Inglaterra que incide também sobre a
família real (o caso do duque de Windsor, ao qual se voltará), e os
pres�upostos sobre os quais se baseava a viagem de Hess à Escó­
cia. E lícito considerar que as vozes respeitantes ao envolvimen­
to de membros de aristocracia e talvez da família real nos ritos de
sociedades esotéricas inglesas, se transmitiram destas, desde o
final do século, às congéneres alemãs que desembocaram no
nazismo, a cujos líderes tais vozes chegaram. Mas para completar
o quadro é necessário voltar à Golden Dawn do final do século.
Dela fazem parte Bram Stoker (criador da figura de Drácula,
conde vampiro; que faz lembrar o vampirismo de the Ripper e que
escreveu A Virgem Nuremberga depois de uma viagem à Alema­
nha em 1885), escritores do fantástico como Arthur Machen, mas
também dois entre os maiores poetas do nosso século, William
Yeats (que tinha já fundado em 1885 uma Hermetic Society, em
Dublin) e Thomas Eliot. Yeats unirá a persistente convicção da
validade do esoterismo a um preciso compromisso político,
tomando-se em 1922 senador do Ulster e contribuindo para a
manutenção da união dos condados do Norte com a Inglaterra.
A sua grande amizade com Ezra Pound lhe reforçará a convicção
das boas razões da Alemanha e do fascismo europeu.
Logo deve ter-se presente que a candidatura, ainda que sem
êxito, de Eliphas Levi e os cargos políticos conscientemente

grupo de Blunt e Philby que, nos anos trinta, recrutou os seus membros nos serviços
secretos ingleses para que servissem a URSS em nome dos seus ideais comunistas. O termo
Apóstolos tem uma tal tradição no Ocidente, que a escolha do nome pode ser uma outra
coincidência. Do grupo fazia provavelmente parte Roger Hollis, que - como se verá -
viria a ser encarregado de indagar quanto às relações do duque de Windsor nos períodos
em que era conhecido o seu apreço por Hitler. Não se pode excluir que as opiniões sobre
relações entre a alta sociedade e associações ocultistas pelo final do século tenham
chegado aos ouvidos dos brilhantes intelectuais que escolheram ironicamente um nome
comprometido para o seu grupo, que pensava lutar contra a corrupção de classes sociais
inglesas dispostas, em sua opinião, a um entendimento com Hitler para combater o
comunismo.

29
assumidos por Bulwer Lytton e por Yeats são a prova de que o
ocultismo e também a magia sexual não implicam apenas com­
portamentos extravagantes ou perigosos de personagens excêntri­
cas, mas opções políticas coerentes com uma visão da realidade
na qual o papel do Império inglês coexiste com a crítica do
«papismo» romano e com a apreciação de regimes autoritários na
Europa. E uma vez que quase todos os historiadores e todos os
biógrafos de Hitler levantaram questões sobre os seus hábitos
sexuais, sem entrar no âmago do problema para o qual falta uma
documentação suficiente, é lícito supor que à cultura «oculta» do
futuro Führer não fossem estranhos elementos de práticas tendo
uma conexão com a relação entre o sexo e o poder.
Yeats tomou-se «grão-mestre» da Golden Dawn, sucedendo
a Wynn Westcott e a Me Gregor Mathers, com o qual estava em
estreitas relações, tal como estava com madame Blavatski, por ele
muito admirada. O matrimónio entre Mathers (vulgarmente defi­
nido como mago) e a irmã de Henri Bergson estabeleceu uma
ligação indirecta entre a tradição ocultista e a filosofia intuicionis­
ta do impulso vital, que tinha alguma analogia com a misteriosa
energia do Vril e que influenciou a cultura europeia de modo
relevante. Yeats escolheu como nome iniciático Diabolus est
Deus inversus. A estreita conexão entre magia em geral (e
presença da magia sexual) e política é tanto mais evidente quanto
mais é negada, como numa recente apresentação da obra de Yeats
que deve ser citada como exemplo da posição do poeta ainda no
final da sua vida:

Completou o seu novo drama, entre o licencioso e o místico,


O Ovo da Garça Real. . . Na ideia de Yeats, uma pequena
ordem aristocrática devia realizar a unificação do Estado,
evitando que as famílias e os indivíduos espiritualmente
parasitários pudessem prevalecer sobre os criativos; os
países fascistas, talvez mais ainda que as democracias,
pareciam-lhe antepor a quantidade à qualidade33 •

Isto que é definido «entre licencioso e místico» é, na reali­


dade, o eco da magia sexual e a «pequena ordem aristocrática» que
restaura o Estado é o projecto político que lança uma ponte, em

33
Anthony Johnson, «Uma Vida de Yeats», prefácio a La Torre, Rizzoli, Milão
1 984, pág. 44.

30
finais do século XIX, entre a Golden Dawn, da qual Yeats é grão­
-mestre, e as sociedades ocultistas alemãs que preparam a cultura
do nazismo e de Hitler. Na sequência disto, estas últimas podem
ter acentuado traços populistas, que suscitam críticas do pensa­
mento tradicionalista, de que Yeats se faz eco, e que podem ter
provocado parciais diferenciações políticas. É um dado político
que emerge por exemplo dos escritos de ,Evola,> E Guénon
escreverá no Cairo O Reino da Quantidade e Õ"Yíii-ál dos Tempos
em 1 945, ano da derrota nazi. Mas isto nada tira ao tipo de cultura
política que amadurece, nos últimos decénios do século XIX, com
as suas componentes esotéricas. E Yeats mantém-se hostil à
liberal democracia até ao final da sua vida como o fora no início.
Neste ponto ampliou-se muito o quadro que Louis Pauwells
e Jacques Bergier tiveram o mérito de propor em 1 960, ainda que
a generalização de algumas afirmações, a falta de documentação
para outras e algumas conexões estabelecidas de modo apressado
tenham facilitado o silêncio da historiografia oficial e a crítica por
vezes desdenhosa da historiografia tradicionalista e de direita.
Escrevem os dois autores:

Por 1 880, em França, na Inglaterra e na Alemanha, algumas


sociedades iniciáticas e ordens herméticas são fundadas,
reunindo poderosas personalidades. A história desta crise
mística e pós-romântica não foi ainda escrita e mereceria
sê-lo. Ali se encontraria a origem de muitas importantes
correntes de pensamento, que também determinaram cor­
rentes políticas... Na Golden Dawn filiara-se também uma
mulher, Florence Farr, directora teatral e íntima amiga de
Bernard Shaw. Dela também faziam parte Peck, astrónomo
real da Escócia, o célebre engenheiro Allan Bennet e sir
Gerard Kelly, presidente da Royal Academy. Segundo
parece, estes homens de primeiro plano foram influenciados
de modo indelével pela Golden Dawn. Segundo as suas
próprias afirmações, a sua visão do mundo foi alterada e as
práticas a que se entregaram não cessaram de lhes parecer
eficazes e exaltantes... Nós não propomos estudar uma
filiação Rosa-Cruz-Bulwer Lytton-Little-Matthers-Crowley­
-Hitler, ou uma outra filiação do mesmo género na qual se
encontrariam também madame Blavatski e Gurdiev. Natu­
ralmente existem muitas interferências, passagens clandes­
tinas ou públicas de um grupo para outro. É uma coisa

31
apaixonante como toda a história minuciosa. Mas o nosso
objectivo é a grande história. Nós pensamos que estas
sociedades são as manifestações de um mundo diferente
daquele em que vivemos. Digamos que é o mundo do Mal,
no sentido em que Machen o entendia34 •

O escritor Arthur Machen estava filiado na Golden Dawn.


Não podia obviamente identificá-la com a essência do mal.
Pauwels foi aluno de Gurdiev, o «mago» chegado do Oriente
depois da primeira guerra mundial, e dele aprendeu elementos de
ocultismo e de história do esoterismo. A aspiração a escrever uma
grande história fundada no conflito maniqueu entre bem e mal
comprometeu o contributo conseguido pelo pespertar dos Mágicos
para a pequena história de sociedades secretas que influiram num
acontecimento importante como a formação cultural de Hitler e de
parte da elite nazi. Boa parte da historiografia tradicional e de
direita considerou que Pauwels (que nos anos setenta, como
responsável do «Figaro Magazine», contribuiu para um relança­
mento cultural em França de uma direita que, no decénio seguinte,
encontraria expressão política na Frente Nacional de Le Pen)
juntamente com Bergier quis ver em Hitler e no nazismo a
«filiação» do ocultismo satânico das seitas secretas.
Não se fizeram depois progressos no aprofundar a pequena
história destas seitas, as divergências e as lutas pela supremacia
que, como em todos os grupos, conduziram a cisões e alternância
de líderes. O dado relevante, de qualquer modo, continua a a ser
o das relações entre grupos ocultistas da Inglaterra e da Alemanha.
Amadureceram nos últimos decénios do século XIX. Estabelece­
ram ligações entre pessoas influentes - também na base de uma
concepção «mágica» da realidade -, que se transmitiram por
umas duas gerações. O interior cultural destes grupos é aciden­
tado, mas dá lugar a uma concepção comum segundo a qual: 1) a
história que conhecemos é apenas uma parte da história da
Humanidade; 2) algumas elites de iniciados conhecem «toda» a
história; 3) entre si transmitiram estes saberes e conhecimentos
que conferem particulares poderes; 4) aqueles que deles dispõem
e os transmitem devem desenvolver também um papel político

34
Louis Pauwels e Jacques Bergier, Il mattino dei maghi, Mondadori, Milão 1963,
págs. 278-294.

32
para gerir o futuro de uma humanidade decadente à qual é preciso
restituir dotes e características que se perderam.
Faltam mais de vinte anos para o nascimento de Hitler quando
são fundadas Die Telyn e a sociedade rosacruciana inglesa ;
quando Bulwer Lytton põe em equação o poder do Vril e
experimenta a magia sexual; e dois anos apenas, quando surge a
Golden Dawn, aquele mesmo ano em que Arthur Conan Doyle
inventa Sherlock Holmes ( que usa estupefacientes) , enquanto se
interessa por fenómenos metapsíquicos ( dos quais escreverá uma
história: História do Espiritualismo, em vésperas da guerra
mundial) e enquanto o interesse pelo mystery policial é implemen­
tado pelas façanhas de Jack o Estripador. A referência a Sherlock
Holm es não é privada de interesse se se pensar que O-Cão dos
Baskerville é uma leitura especialmente apreciada por Hilter.
Hitler tem quinze anos quando surge o primeiro nacional­
-socialismo boémio; tem vinte quando Liebenfels difunde Ostara
e von List O Segredo das Runas e enquanto Steiner35 dirige a
sociedade teosófica alemã que difunde as teorias de Madame
Blavatski, sobre as quais nos debruçaremos no próximo capítulo.
Neste período a Golden Dawn superou a crise provocada por
possíveis excessos da magia sexual e é dirigida por homens de
grande prestígio.
O futuro Führer vive, em Viena e em Munique, em ambientes
permeáveis à cultura que foi descrita; tem vinte e três anos quando
surge o primeiro grupo que toma o nome da mítica Thule, a mesma
denominação da sociedade da qual derivará directamente o par­
tido nazi.
É neste contexto que são colocadas as experiências e a for­
mação cultural de Hitler, que ele narrará de modo selectivo
(e talvez em parte deformado) no Mein Kampf, uma formação
sobre a qual surgiram não poucas controvérsias de interpretação,
como se verá no quarto capítulo.

35
Entre Outubro de 19 17 e Abril de 1 9 18, enquanto amadureciam acontecimentos
históricos, Steiner publicou um comentário a Le nozze chimiche numa revista de título
«Das Reich», o mesmo da célebre revista dirigida por Goebbels durante o Terceiro Reich.
Uma outra coincidência. (O texto de Steiner está agora em apêndice a Johann Valentin
Andreae, Le Nozze chimiche di Christian Rosenkreutz, SE, Milão 1987).

33
2
A DOUTRINA SECRETA

O mesmo emaranhamento de mistificação e de autoconvicção


que tínhamos encontrado em situações e personagens alemãs do
capítulo anterior exprime-se com particular evidência num fenó­
meno que teve relevo entre finais do século XIX e princípios do
século XX. Trata-se das vicissitudes da já citada madame Blava­
tski e do seu movimento teosófico que, como se viu, apaixonava
von List.
Se bem que esteja suficientemente demonstrado que as
manifestações psíquicas, graças às quais a senhora Blavatski
(Helena Petrovna Han, nascida na Rússia em 183 1) afirmava
entrar em contacto com antigos mestres indianos e tibetanos,
fossem fruto de hábeis truques, o movimento por ela fundado
continuou a ter alguma credibilidade, tanto que pela sua sucessão
entraram em competição Rudolf Steiner e Annie Besant. O pri­
meiro com a sua escola antroposófica e os seus métodos educati­
vos goza ainda fama de iluminado e de progressista. A segunda,
antes de o derrotar no controlo da sociedade teosófica, era
socialista e feminista militante. Este ponto de contacto entre
personalidades de formação progressista e uma experiência que
depois teria influenciado a direita mais radical até ao nazismo, é
relevante para compreender o clima cultural, anterior ao primeiro
conflito mundial, no qual Hitler se formou.
O aspecto essencial da pregação de madame Blavatski é a
pretensa revelação de uma «doutrina secreta», de uma espécie de
contra-história da humanidade que comporta a transmissão de

35
mensagens e de qualidades particulares a um círculo de iniciados,
por parte de grandes mestres do passado. Ela está em Londres em
1851, na Índia nos anos seguintes; sabe-se pouco dela até 1873 ,
quando chegou a Nova Iorque onde dois anos depois funda a
Sociedade Teosófica (em conjunto com o coronel Henry Steel
Olcott) e publica em 1877 os dois volumes de Isis Unveiled (/sis
Desvendada). Considerado pela imprensa «lixo para deitar fora» 1
este texto teve, porém, sorte. A tese de fundo é que o universo é
penetrado por um eter psíquico, chamado Akasa (termo hindu que
significa espaço), que regista os eventos; por isso, os do passado
podem ser lidos por pessoas com dotes especiais, potenciados
pelo contacto com aqueles que são chamados instrutores ocultos.
Por intermédio destes «registos akásicos» e da leitura do miste­
rioso texto As Câmaras de Dzyan descoberto no Tibete, é recons­
truída uma história esotérica da humanidade.
Ela teria tido origem em seres extraterrestres ( definidos como
construtores e formadores), os quais fizeram diversas experiên­
cias de «raças-prova», a primeira de seres invisíveis, a segunda
fixada no norte da Ásia, a terceira num continente no Oceano
Índico agora desaparecido (Mu ou Lemuria), a quarta na Atlân­
tida, a quinta a actual.
Por muito extravagante que seja, esta reconstituição (que,
pondo de parte os extraterrestres, apresenta analogias com a
cosmogonia hesiódica) deu logo lugar a uma literatura bastante
difundida e a muitos imitadores. Mesmo depois de, em 1884, um
relatório de Richard Hoggson (encarregado pela Sociedade de
Investigações Psíquicas, que pretendia dar roupagens científicas
a fenómenos paranormais) ter demonstrado que madame Blava­
tski recorria a truques de vários géneros para simular relações com
«instrutores ocultos» , a «vidente» não ficou completamente
desacreditada. De Würzburg transferiu-se para Londres (outra
ponte entre a Alemanha e a Inglaterra), onde retomou as suas teses
sobre A Doutrina Secreta que teve ampla difusão depois da sua
morte, que se deu em 1891. Os seus adeptos continuaram a
considerar esta história esotérica inteiramente fidedigna e um
membro da sociedade teosófica, Scott Elliot, publicou dois livros

1
Cfr. sobre estas vicissitudes: Colin Wilson, Detective deli' impossible, Sugarco,
Milão 1987, págs. 1 16 e ss.

36
(A História de Atlântida, 1 895 e A Perdida Lemúria, 1 904) nas
quais procurava demonstrar ter aprendido, por sua vez, dos
«registos akásicos».
Estas estiveram na base de uma geografia esotérica que se
desenvolveu ao mesmo tempo que a história esotérica. Já madame
Blavatski descrevera o fim da Atlântida como consequência tam­
bém de um recontro entre os seus sábios ( que usavam poderes
ocultos para fins maléficos) e sábios magos de uma cidade cha­
m ada Sham bha lah. Scott Elliot continuou a narrativa no texto de
1 89 5, afirmando que os poderosos magos da Atlântida insistindo
no uso dos seus poderes para fins maléficos romperam os laços com
os «instrutores ocultos», transformando a positiva magia branca
numa negativa magia negra. Ela abalou o equilíbrio natural,
provocando grandes cataclismos. Os magos malfazejos não desis­
tiram, de qualquer modo, dos seus propósitos. Os instrutores
ocultos, definidos pelo escritor como «iniciados» transferiram-se
então para o Egipto pouco antes de a Altântida ser definitivamente
submersa.
Começou então a ser discutida a possível localização da
mítica Altântida, da qual já Platão tinha falado e que Scott Elliot
colocava pelo menos em parte no hemisfério boreal a partir da
actual Gronelândia. O entrelaçamento entre esta geografia esoté­
rica e a antiga convicção de que o berço da humanidade se
o
localizava nas cadeias montanhosas entre a Índia e Tibete, levou
a situar nesta última região Sham bha lah, a sede dos magos bons
e da antiga sabedoria. E o célebre explorador sueco Sven Hedin,
descobridor das nascentes do Brahmaputra, entre 1 899 e 1 902
lançou-se em busca de Sham bha lah. Não a encontrou, mas narrou
as suas viagens entre a Mongólia e o Tibete no segundo volume
de Im Herzen vom Asien (No Coração da Ásia), publicado em
Leipzig, em 1 905 . Nesta cidade, em 1 9 1 2, é fundada uma Germa­
nen-Thule-Sekte que antecipa a Germanen Orden de 1 9 1 3 e a
Thulegesellschaft de 1 9 1 8, da qual deriva directamente o partido
nazi. Sven Hedin será depois um defensor e um progagandista da
Alemanha nazi durante o conflito 1 939- 1 945 .
Bracher apanhou uma parte da realidade quando definiu
aquelas Orden e Sekte como «propagadores de teorias ger­
manófilas e anti-semitas com infiltrações ocultistas, cujos escri­
tos provavelmente sugestionaram em Viena também o jovem

37
Hitler» 2 • As ocultistas não eram simples infiltrações, mas uma cul­
tura repleta de história e geografia esotéricas, (Thule era a mítica
Altântida, pátria dos hiperbóreos), no centro da qual estava um
poder oculto transmitido por iniciados. Hitler podia considerar-se
herdeiro deste poder e não já dos magos maus que tinham trazido
a ruína, mas dos benevolentes construtores de uma nova huma­
nidade.
Podem assim ser explicadas as suas afirmações a Rauschning,
às quais se voltará; e também é possível compreender como tendo­
-se equivocado a historiografia de direita ao voltar a negar as
influências ocultas do nazismo, criticando como desprovidas de
fundamento as teses de O Despertar dos Mágicos. Esta obra uti­
liza efectivamente Rauschning e outras fontes para apresentar
Hitler como herdeiro mais ou menos consciente dos magos maus
e expressão do «demoníaco», tal como demoníacos seriam os
«superiores desconhecidos» do passado. Pode compreender-se
que Rauschning tenha pensado encontrar-se perante os delírios de
um «possesso»: é a imagem que transmitiu e que Pauwels e
Bergier recolheram.
Voltar-se-á a este tema no quarto capítulo e em parte no
sétimo. Agora é, necessário ampliar a reflexão sobre a origem de
uma história esotérica que teria induzido um explorador sério e
considerado como Sven Hedin primeiro a procurar as terras dos
Ários e a lendária Sham bha lah e, depois, a ser apoiante da guerra
hitleriana. E para ampliar o campo e remontar às origens da histó­
rica esotérica e reencontrar Sham bha lah como capital do mítico
reino de Agharti, sede da sabedoria primordial, é necessário
recordar a experiência francesa, a respeito da qual já foi mencio­
nado Schuré, autor de Os Grandes Iniciados, e em contacto com
os círculos wagnerianos nos quais se difundem as teorias do
racismo e do primado ariano.
Schuré exalta continuamente como seu mestre Fabre d' Oli­
vet, que é considerado «o primeiro dos grandes ocultistas do
século XIX» 3 • Acima de tudo membro do clube dos jacobinos,
estudioso de hipnotismo e da língua hebraica, impõe-se, nos três

2
Karl D. Bracher, La dittatura tedesca, cit. , pág. l 08.
3
Alexandrian, Storia de/la filosofia occulta, Mondadori, Milão 1 984, pág. 437
(Edição portuguesa: História da Filosofia Oculta, Edição 70, Lisboa).

38
primeiros decénios do século XIX, como fundador de uma ciência
que definiu como «psicurgia», que tem por objectivo utilizar em
pleno a energia mental, pela qual é possível colher verdades do
passado semelhantes aos citados «registos akásicos». Elaborou
assim uma extraordinária epopeia, dirigida a demonstrar a pre­
ponderância dos Celtas sobre todos os outros povos e o valor
ex em plar do império teocrático fundado pelo druida Ram seis mil
anos antes de Cristo. Ram toma-se Rama na Índia, Osíris no
E gipto, Dioníso na Grécia4 •
O continuador de Fabre, Saint-Yves, em primeiro lugar
modesto professor na Inglaterra e depois, em Paris, tomado
marquês de Alveydre ( 1880), depois de um feliz casamento,
completa a história esotérica com a geografia esotérica. É impor­
tante acentuar que ele vive na Inglaterra (exilado durante o
império de Napoleão Ili) nos anos em que surgem as já citadas
associações «ocultas». É provável um seu contacto com aqueles
ambientes e com o seu interesse pela política, tanto que em França
elaborará uma teoria de governo oposta, assim afirma, à anarquuia
e que definiu como sinarquia, expressão que será adaptada por um
movimento de exterma direita (ligado com os cagoulards que
mataram em 1937 os irmãos Rosselli), o qual defende para a
França uma solução política de tipo fascista.
Tendo em consideração estes aspectos, o contributo espe­
cífico de Saint-Yves na presente reconstituição é de qualquer
modo o livro Mission de l' Inde en Europe, escrito depois de um
encontro com o brâmane indiano Hardji Schariff em 1887,
destruído antes da distribuição pelo receio de que não fosse
fidedigno, e publicado em 19 10. Saint-Yves afirma ter visitado
«por desdobramento» o território de Agharti, país de vinte mi­
lhões de habitantes de que Sham bha lah poderia ser a capital.
É esta a sede da antiga sapiência dos magos sábios.
Saint-Yves fora precedido na «descoberta» de Agharti pelo
viajante e escritor Louis Jacolliot, cônsul de França em Calcutá.
Este não pretendia lá ter estado. Depois de ter escrito Bible dans
l' Inde, Vie de Jezeus Christna ( 1868), tinha publicado em 1875
Histoire des Vierges, narrativa de viagens por países inexplorados
na qual referia a tradição indiana que falava da lendária Terra.

4
Ibidem, pág. 44 1.

39
Jacolliot é citado no estudo fundamental de Léon Poliakov entre
os protagonistas anti-semitas da construção da teoria ariana:

É um polígrafo cuja popularidade no seu tempo é demons­


trada pelo lugar que conserva nas bibliografias e nos catálogos.
Depois de ter saudado «A Índia, local de origem do género
humano, velha ama das tetas prósperas», propunha uma
outra versão da religião indo-ária universal. Moisés era
Manu (Manu-Manes-Minos-Moisés), Jesus era Zeus (Zeus -
Jezeus - Isis - Jesus); estas etimologias intrépidas, apoia­
das pelas apócrifas «leis de Manu» que ele pretendia ter
reencontrado, permitiam a J acolliot «atribuir à alta Ásia as
origens da Bíblia e provar, dado que a influência e as
recordações do lugar de origem continuam a chegar através
das épocas, que Jesus Cristo conseguiu regenerar o mundo
novo seguindo o exemplo de Jezeus Christna, que rege­
nerara o mundo antigo». Efectivamente o Antigo Testa­
mento para Jacolliot não passava de um acervo de supersti­
ções, os Hebreus um povo «decadente e estúpido» e Moisés
«um escravo fanático, educado por caridade na corte dos
Faraós». A Bible dans l' Inde conheceu em poucos anos oito
edições e, pelo menos, um adepto prestigiado na pessoa de
William Gladstone5 •

É provável que além de um «adepto prestigiado» como o


primeiro-ministro inglês, J acolliot tenha tido outros na Inglaterra,
menos prestigiados, mas não pouco influentes: os adeptos dos
grupos rosacrucianos e da Golden Dawn, em busca das origens da
sapiência primordial.
Esta abertura de reflexão sobre as relações entre o ocultismo
inglês e o francês -já verificado nas vicissitudes de Eliphas Levi
e Crowley - permite-nos entender dois aspectos dos antece­
dentes culturais que influíram nos processos de decisão de Hitler
e da elite nazi : o virulento anti-semitismo e a avaliação da França.
O anti-semitismo nazi tem efectivamente uma componente
ligada à cultura esotérica. Por um lado os Hebreus são vistos como
uma espécie de não-homens e de sub-homens (frequentes as

5
Léon Poliakov, li mito ariano - Storia di una antropologia negativa, Rizzoli,
Milão 1 976, pág. 226.

40
expressões de Hitler a propósito), um juízo negativo antecipado
pelo desdém de Jacolliot. Por outro, eles são temidos como
concorrentes enquanto depositários, embora «degenerados», de
uma sabedoria originária que, de algum modo, tinham herdado e
distorcido, como os malvados magos de Sham bha lah. Esta
perspectiva tem os seus precedentes nos estudos sobre os poderes
ocultos garantidos pela Cabala hebraica e chegou à cultura de
massa por intermédio de um filme de sucesso, Os Salteadores da
A rca Perdida, no qual se vêem nazis e americanos em concorrên­
cia para recuperarem antigos poderes de génios do mal.
O segundo aspecto - a avaliação hitleriana da França, em
contraponto com a da Inglaterra - é de relevante importância no
plano do processo deliberativo. Ver-se-á no sétimo capítulo que
a viragem na política hitleriana que conduzirá à guerra mundial
parte da remilitarização da Renânia (Fevereiro - Março de 1936)
n ão consentida pelo tratado de Versalhes. O mundo ficou espan­
tado pela falta de reacção por parte da França ( em situação de
derrotar rapidamente a divisão alemã enviada para o Reno), que
Hitler tinha previsto, contra a oposta avaliação do Estado-Maior
alemão.
Esta provisão baseava-se na convicção do Führer (expressa no
Mein Kampf) de que, diferentemente da Inglaterra ( a qual conser­
vava um espírito imperial) , a França estava votada a uma ine­
vitável decadência, porque dominada pelas influências hebraicas
além das maçónico-democráticas.
A esta apreciação - que pertencia à cultura política tradicio­
nal - Hitler juntava provavelmente a convicção de ser dotado de
alguma forma de previsão: a de que em França existissem grupos
restritos de formação cultural «ariana» - era o país de Gobi­
neau - que podiam apoiar a sua política de «restaurador» do
papel da raça branca no mundo. Existiam além disso sectores
importantes da alta burgueria francesa que estavam dispostos a
adaptar o mote «antes Hitler que a Frente Popular» ( que se
constituíra e se preparava para vencer as eleições de Abril-Maio
de 1936) .
Efectivamente quando rebentou a guerra a França combateu
sem convicção até à rápida derrota de Junho de 1940 e desenvol­
veu-se um forte movimento por uma aberta colaboração com a
Alemanha. Neste movimento confluíram (e frequentemente
se chocaram) posições diversas, do populismo originado pela
esquerda já marxista (Doriot, Déat) a uma direita na qual era forte

41
uma tradição com componentes esotéricas (voltaremos à avalia­
ção, errada mas significativa, segundo a qual o nazismo teria sido
uma combinação entre René Guénon e as panzerdivisionen).
Este precedente pode explicar a política hitleriana para com a
Inglaterra até à viagem de Hess de Maio de 4 1. Este país era mais
sólido que a França. Era um natural aliado da Alemanha no
conflito secular pela supremacia da «raça branca» e pela derrota
do bolchevismo como extrema manifestação da «conjura hebrai­
ca» (com toda a literatura a esse respeito que o Mein Kampf
retoma, até aos famosos Protocolos dos Sábios do Sião). Hitler
continuou convencido até ao rebentar da guerra que existia na
Inglaterra uma forte tendência política disposta a partilhar com a
Alemanha a sua hegemonia na Europa continental em troca da
continuidade do Império britânico (além da luta contra o comu­
nismo). Esta tendência era combatida pela influência hebraica,
que Hitler via simbolizada em Churchill, objecto da sua pessoal
animosidade (uma questão à qual se voltará).
A tradição «ocultista» que estabelecera uma ponte entre a
Alemanha e a Inglaterra, as sociedades «esotéricas» que, como se
viu, compreendiam sectores influentes das «classes altas», sem­
pre consideradas hostis à liberal-democracia, estiveram na base da
tentativa para procurar interlocutores em vésperas do ataque à
URSS: se tinham sido encontrados em França, por que não
procurá-los na Inglaterra? Houve quase certamente uma .discus­
são e talvez um confronto no vértice nazi do qual Hess foi um dos
protagonistas.
Jacolliot é justamente um dos antecessores franceses da
evolução político-cultural com que Hitler contava para se apre­
sentar como campeão da Europa ariana. A ideia de que Cristo
adquirira experiências na Índia, nos longos anos vazios que
decorrem entre a infância e a pregação narrada pelos Evangelhos,
deu lugar a uma vasta literatura. Esta ideia era colocada no quadro
de uma história esotérica e de uma geografia esotérica, das quais
madame Blavatski fora precursora, e que no início do século teria
tido um ulterior desenvolvimento próprio com um estudioso
indiano, Lokamanya Bal Gangadhar Tilak.
Antes de analisarmos este facto e para compreendermos
ainda quanto era influente esta corrente cultural que entreligava
oculismo e história esotérica, é oportuno retomar a reflexão sobre
o facto de Rudolf Steiner entrar em contacto com o movimento
teosófico e aspirar a ter ali um papel de guia, que foi depois

42
assumido ( em 1 908) precisamente por um jovem indu, Jiddu
Krishnamurti (que renunciou ao cargo em 1 929).
Steiner, estudioso de Schiller e de Goethe, autor de uma
Filosofia da Liberdade que tivera bom acolhimento também no
meio académico, era um intelectual de prestígio quando em 1 900
aceitou fazer uma série de conferências na Sociedade Teosófica de
Berlim e continuou a colaborar com a sociedade nos anos seguin­
tes. Não obstante a parcial diversidade das posições, ali adquiriu
um notável prestígio, ao ponto de poder aspirar a dirigi-la e a fazer
que o grupo guiado por Annie Besant não conseguisse impor o
jovem indu. Também por este motivo, além da crescente diver­
gência de posições, Steiner rompe com a sociedade em 1 9 1 2.
Mas as suas ligações com a cultura ocultista continuaram. Em
1 909 elaborara uma colectânea de uma série de conferências feitas
em Budapeste (nascera na Hungria em 1 86 1 ) com o título «O Eso­
terismo Rosacruciano». No livro Memória Cósmica retomava a
história esotérica de origem blavatskiana. Já em 1909 se iniciara
um conflito no âmbito da sociedade teosófica, porque Steiner
insistia para que ela desse o seu apoio à representação das obras
de Schuré (já reconhecido como admirador de Wagner e do seu
círculo ocultista-racista) . Dele era protagonista a actriz Maria von
Sievers (que casou com o próprio Steiner). Em 1 907 fora repre­
sentada uma reconstituição dos mistérios eleusinos. Em 1 909
uma segunda experiência teatral deveria ter lugar em Munique,
durante o congresso que Steiner promovera segundo uma concep­
ção que estava a elaborar e que definia como antropossofia em
ligação com a teosofia da sociedade, cujos dirigentes não compar­
tilharam a oportunidade da iniciativa. Vêm daqui os desacordos
até à ruptura de 1 9 1 2.
Estes acontecimentos são significativos, porque demonstram
a influência da cultura ocultista nos primeiros anos do século e,
em especial, nas mesmas zonas ( como Munique) nas quais estas
tendências abriram caminho ao nazismo. E Steiner, seja como for,
deu a sua contribuição - além de uma teoria educativa pela qual
é ainda considerado - a uma história esotérica que encontramos
também nas origens da Thule Gesellschaft. Um sumário de
Memória Cósmica é a este propósito esclarecedor, tanto mais que
Steiner, como Scott Elliot e madame Blavatski, se baseava nos
«registos akásicos», que ele definiu como «as crónicas de Akasa»,
pelas quais «aquele que adquiriu a capacidade de ver no mundo
espiritual chega a conhecer os eventos passados no seu carácter

43
eterno. Eles não se lhes aparecem como testemunhas mortas da
história, mas na sua completa vida. Num certo sentido o que
aconteceu sucede diante dele. Hoje sou ainda obrigado a calar a
origem das informações que me foram dadas. Mesmo quem nada
sabe a propósito destas fontes compreenderá por que não pode ser
de modo diferente. Mas poderá acontecer qualquer coisa que me
permitirá romper este silêncio e talvez muito depressa»6 •
Colin Wilson, respeitado no âmbito das tentativas de analisar
cientificamente os fenómenos parapsíquicos, considera ironica­
mente: «Segundo parece nunca Steiner cumpriu a sua promessa»7 •
Seja como for, é possível observar que se deu uma pausa também
no comportamento dos grupos ocultistas durante o primeiro
conflito mundial. É depois dele que estes operam na Alemanha
por uma intervenção política directa, no sentido sempre mais
autoritário, enquanto Steiner se mantém fundamentalmente um
liberal-democrata. Ele abandona portanto o campo do esoterismo
pelo da pedagogia, entrando em aberto conflito com os precur­
sores do nazismo.
De qualquer modo devemos a Wilson um eficaz resumo da
tese de Steiner. «O ser humano é formado por quatro ' ' corpos' '.
O físico que é animado pelo corpo etéreo, visível aos clarividentes
que lhe chamam "aura ", Bergson em vez disso chama-lhe
"impulso vital", enquanto Shaw " força vital ". Vem depois o
' ' corpo astral' ', o qual, segundo os ocultistas, pode sair do corpo
físico nalgumas condições. Por cima de tudo isto há o ego, o
princípio do indivíduo. O homem desenvolveu lentamente estes
corpos, um a um, em longos períodos de tempo. É a única criatura
na terra que possui o ego com o qual coordena os outros três
corpos. Trabalhando sobre estes corpos inferiores pode criar três
corpos superiores: uma consciência espiritual, um corpo espiri­
tual, uma alma perfeita a que os hindus chamam ' ' atman' ', cuja/
natureza é idêntica à de Deus»8 •
Neste síntese dos princípios da antropossofia encontramos os
citados socialistas gradualistas como Shaw e filósofos como
Bergson, apreciado por Gramsci, mas que tinham, como se verá,
relações indirectas com a Golden Dawn. São indicadores da

6
Colin Wilson, op. cit. , pág. 1 28 .
7
Ibidem.
8
Ibidem, pág. 1 27.

44
in fluên cia cultural do ocultismo no início do séc ulo, e a possibi­
lidade de conseguir poderes superiores estará na base do nazismo
« mágico» de Hitler. Os princípios agora expostos ligam -se a uma
história esotéria de longo período, no qual se desenvolveriam
estes diversos «corpos».

O homem começou a evoluir em tomo de uma espécie de


«primitiva nebulosa». Enquanto os corpos aumentavam
gradualmente de densidade, os homens perderam o seu
poder de se plasmar e começaram a tomar-se escravos da
matéria. Com a evolução dos homens em lemurianos desen­
volveram-se as paixões, porque a matéria condicionava o
homem mais velozmente do que o tempo que lhe seria
necessário para aprender a controlá-la. Os seus desejos
maléficos criaram violentas forças naturais, as quais des­
truíram Lemúria. A Atlântida já existia. Os Atlantas foram
os nossos antepassados. Uma vez que a nossa raça - a
quinta raça fundamental - tinha perdido os seus poderes
naturais de clarividência, tínhamos de desenvolver algumas
qualidades alternativas. Desenvolvemos portanto a força da
razão. A primeira sub-raça (da quinta raça), os indianos,
eram essencialmente «espirituais». A segunda, os persas,
aceitavam a matéria e para eles a vida era uma batalha entre
a matéria e o espírito, na qual o espírito era o bem e a matéria
o mal. A sub-raça seguinte, os egípcios-caldeus-babilónios,
aproximou-se um passo no sentido de «aceitar» a matéria.
Chegou depois a sub-raça greco-romana, a qual foi dema­
siado longe no aceitar o mundo da matéria. A missão do
homem moderno deveria ser a de reequilibrar os opostos
pontos de vista entre os indianos e os romanos: tratar a
matéria como um aliado, sem no entanto a ela se entregar9 •

É esta elaboração de Steiner em vésperas do conflito mundial,


no momento em que lhe é proposto prosseguir a actividade do seu
teatro experimental em Domach, na Suíça. Aqui criou o Goethea­
num. Voltou à Alemanha depois da guerra para fundar em
Estugarda, em 1920, a sua escola em Waldorf, para uma educação
baseada no desenvolvimento da pessoa e não na disciplina.

9
Ibidem, págs. 128- 130.

45
Fundou também uma clínica e uma herdade para a experimenta­
ção do método biodinâmica em agricultura. Desenvolveu uma
acção pioneira na educação de pequenos diminuídos. Foi prova­
velmente esta uma das razões da hostilidade da extrema direita
alemã, que com o nazismo teria teorizado a marginalização e a
esterilização dos atingidos por taras consideradas hereditárias.
Hostilizado, ameaçado, destruído o Goetheanum por um incêndio
talvez provocado por nazis que entraram na Suíça, Steiner prepa­
rou a sua reconstrução mas, cansado e doente, faleceu em 1 925,
confiando aos sucessores a continuação da sua actividade, que no
campo da educação continua com o «método steineriano».
Esta vicissitude ilumina a fractura que se verificou na tradição
do ocultismo depois da guerra, entre alguns precedentes ligados
a uma tradição liberal e os que teriam inspirado preferências
autoritárias. O epicentro da história esotérica da qual tínhamos
visto as premissas teve de qualquer modo um desenvolvimento
importante no decénio antecedente ao conflito por intermédio da
obra de Tilak.
Defensor da independência da Índia pela qual lutou no Partido
do Congresso, preso durante seis anos na Birmânia, tinha quase
cinquenta anos (nascera em 1 856) quando publicou em 1 903, em
Poona, A Morada Ártica dos Vedas. O texto chegou à Europa com
o autor que, em 1 904, em Paris, encontrou René Guénon, influen­
ciando-lhe a orientação para os estudos hinduistas. Através do
estudo dos textos e dos mitos védicos, Tilak (a cujo nome se
juntaria o atributo Lokamanya, Honrado pelo mundo inteiro)
chegou à convicção de que os Urvolk, os hiperbóreos que teriam
dado origem aos Ários, provinham do pólo árctico.
Uma sua descrição das idades geológicas e das glaciações
induz Tilak a considerar que, antes de uma suposta inclinação dos
eixos terrestres, o pólo norte gozou de um clima muito favorável
ao estabelecimento humano. Teria sido esta inclinação, com a
consequente mudança para um clima gelado, que teria induzido os
Urvolk a descer para a Eurásia, num processo migratório que se
situa entre há oito e dez mil anos. Instalaram-se primeiramente na
Índia e, a pouco a pouco, até à Grécia e Roma, através dos Celtas
e dos Germanos.
Bom conhecedor também da cultura científica do Ocidente,
Tilak deu um relevante contributo, no decénio que antecede a
primeira_g uerra mundial, ao renovamento da tradição cultural que
faz dos Arios e dos indo-germanos os detentores de uma antiga

46
sapiência e os construtores de civilização, que é uma tradi ção
fu ndamental para compreender os antecedentes do nazismo,
como documenta o citado texto de Poliakov'º.
Tilak morreu em 1920. Mas a sua história esotérica baseada
em mutações cósmicas depressa encontraria um continuador
particularmente influente na Áustria e na Alemanha: o engenheiro
austríaco Hans Horbiger. Na mesma altura, uma outra controversa
história esotérica renova o mito de Agharti, a «inefável», segundo
a tradução da expressão que dela dera Jacolliot.
Em 1924 era publicado em Paris o livro Animais, Homens e
Deuses de Ferdinand Ossendowski. Engenheiro, ministro das
Finanças do governo «branco» do almirante Kolchak, combatera
contra os bolcheviques na Divisão asiática de cavalaria do barão
Roman Fiodorovic von Ungem-Stemberg, o último resíduo dos
exércitos contra-revolucionários que tentavam defender uma
Mongólia e uma Sibéria subtraídas ao controlo do governo
soviético. Derrotados e fuzilados, tanto Kolchak como Ungem­
-Stemberg (este último em Setembro de 2 1: um ano depois o
Exército Vermelho alcançaria Vladivostoque), Ossendowski
conseguia porém chegar ao Ocidente depois do que ele apresen­
tava como uma rocambolesca fuga no curso da qual teria também
atravessado (sem o «desdobramento» de Saint-Yves) a terra de
Agharti. No livro exaltava a epopeia da Divisão asiática e do
«barão louco», (como afectuosamente lhe chamavam também os
amigos) que a comandava.
Ele estava filiado numa seita que praticava o tantrismo (ao
qual dedicará a sua atenção Julius Evola), falava de Agharti e
Sham bha lah (definida como terra dos iniciados), via na Revolu­
ção Russa a vitoriosa conjura das forças do mal análogas às que ,
tinham submergido as antigas terras da sabedoria e à qual se 1
contrapunha o princípio Solar, simbolizado pela suástica que
sobressaía nos seus estandartes. Na última convocação aos seus
oficiais que se deu em princípios de Agosto de 2 1, informava-os
de que em vez de recuar para Leste (e uma possível salvação)
tencionava dirigir-se para Oeste e depois para Sul para alcançar
uma fortaleza espiritual tibetana onde manteria vivo o facho da
libertação do mundo das forças do mal.

'º Cfr. Léon Poliakov, op. cit. , em especial segunda parte, cap. III, «Em busca do
Novo Adão - Magias da lndia», págs. 199 e ss.

47
Para Oeste foi pelo contrário ao encontro da morte, pequeno
episódio de uma decisão tomada por razões inerentes à cultura
«oculta», que antecipa decisões de bem mais amplo alcance sobre
as quais influi a mesma cultura e tomadas por um outro líder em
cujos estandartes sobressaía a suástica: Hitler, como se verá nos
capítulos seguintes.
Segundo a sua narrativa, coube porém a Ossendowski alcan­
çar Agharti e nela viver as experiências. O livro é criticado por
Sven Hedin, s
que achava pouco digna de crédito a descrição dos
ífine'rfü:íõ" ' entre os Altai e a Zugaria. Encontrou, porém, um
defensor em René Guénon, que apresentou o livro em Paris e, em
seguida, na sua publicação O Rei do Mundo . Guénon escrevera já
Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus ( 1 92 1 ), não
era ainda, como se tomaria depois, a maior autoridade do pensa­
mento tradicional, mas o seu aval a Animais, Homens e Deuses foi
de grande importância, também porque o estudioso francês era um
crítico resoluto das componentes espíritas fortemente entrelaça­
das com a história e a geografia esotéricas (inspiradas pelas
revelações de almas mortasf ·-
A influência e a voga do espiritismo espalharam-se pela
Europa depois da génese nos Estados Unidos, naquele mesmo
Março de 1 848 que assistira no nosso continente às revoluções e
na vila de Arcadia, perto de Nova Iorque, ao início da célebre
história das mediuns irmãs Fox 1 1 • A teosofia de madame Blava­
tski espalhara-se quando a vaga espírita (ou espiritualista) alcan­
çou o cume, não obstante as muitas desilusões e mistificações
entre os quais rebentavam periodicamente ferozes contendas.
Guénon delineou o problema acentuando que «seria um grave
erro confundir ocultismo e espiritismo. Não existe de facto entre
os dois movimentos analogia alguma mas, pelo contrário, um
claro antagonismo que se revela em termos mais inflamados e
violentos nos espíritas e com maior discrição nos ocultistas» 1 2 • Na
realidade, podemos constatar por vezes uma confluência e, por
vezes, uma contraposição entre os dois movimentos, e aspectos
ocultistas e componentes mediúnicas foram, depois, acentuados
nos estudos sobre a personalidade de Hitler.
O estudioso francês escreveu, todavia, em 1 92 1 A Teosofia,
história de uma pseudo-religião (no mesmo ano da Introdução)

11
Cfr. a propósito de Colin Wilson, op. cit. , págs. 36 e ss.
12
De /' erreur spirite, citado por Alexandrian, op. cit. , pág. 457.

48
e L ' Erreur spirite (em 1923), nos quais critica tanto o blava­
tskismo quanto o Círculo de Estudos Esotéricos, que desenvolvia
as teses mediúnicas propostas, desde 1890, pelo director do labo­
ratório de hipnoterapia do Hospital da Caridade de Paris, Gérard
Encausse, que se tomou célebre como Papus. Pode pensar-se que
Guénon «se sinta mais próximo de Eliphas Levi» 1 3 mas, no
conjunto, ele qualifica-se pelo esforço de caracterização da dou­
trina esotérica tradicional em oposição às frequentes mistifica­
ções,espíritas.
E portanto na base deste seu prestígio que ganha relevância o
aval a Ossendowski, em termos que reiterou em 1927 em O Rei
do Mundo, do qual é útil citar o início, uma passagem fundamen­
tal e a conclusão.
Depois de ter recordado o texto de Saint-Yves «antes do qual
não fora feita menção na Europa de Agharti nem do seu chefe, o
Brahmatma, a não ser por um escritor de escassa seriedade, Louis
Jacolliot» 1 4 , Guénon continuou assim:

Ossendowski [escreveu] relatos quase idênticos aos de


Saint-Yves; e muitos comentários que acompanharam este
livro oferecem-nos oportunidade para romper o silêncio
sobre a questão do Agharti. Espíritos cépticos ou malévolos
não deixaram de acusar Ossendowski de ter simplesmente
plagiado Saint-Yves, [mas] as concordâncias não nos con­
vencem efectivamente da realidade do plágio; de resto não
é nossa intenção entrarmos neste ponto numa discussão que,
no fundo, bem pouco nos interessa. Por outro lado, se
Ossendowski tivesse parcialmente copiado a Mission de
l' Inde não vemos por que teria omitido certas passagens de
grande efeito, nem por que teria alterado a forma de certas
palavras, escrevendo por exemplo «Agharti» em vez de
«Agarttha», o que pelo contrário se explica muito bem se
tivesse obtido de fonte mongol as informações (os adver­
sários de Ossendowsli quiseram explicar este facto susten­
tando que ele tivera entre as mãos uma tradução russa de
Mission de l' lnde, cuja existência é muito problemática,
dado que os próprios herdeiros de Saint-Yves o ignoram.

13
Ibidem, pág. 458.
14
René Guénon, li Re dei MOndo, Adelphi, Milão 1 982, pág. 1 1 (Edição portuguesa:
O Rei do Mundo, Edições 70, Lisboa 1 983).

49
Foi também censurado a Ossendowski escrever «Om»
enquanto Saint-Yves escreveu «Aum»; mas se «Aum» é a
representação do monossílabo sagrado decomposto nos
seus elementos constitutivos, é sempre «Om» a transcrição
correcta que corresponde à pronúncia real, quer na Índia,
quer no Tibete e Mongólia) . . . Mas é nossa intenção perma­
necer absolutamente estranhos a qualquer polémica e ques­
tão pessoal; se citamos Ossendowski e Saint-Yves é só
porque o que dissemos pode servir como ponto de partida
para considerações que nada têm a ver com quanto se poderá
pensar de um e de outro 1 5 •

Guénon definiu como «de escassa seriedade» Jacolliot, que se


limitara a referir quanto tinha sentido; não reserva o mesmo juízo
para Saint-Yves e para Ossendowski, que em Agharti sustenta­
vam ter estado, ou «desdobrados» ou em pessoa. E chega a
dissertações quase filológicas sobre o uso de termos ou da
existência de traduções. Isto não nos deveria surpreender, se
considerássemos as discussões que se desenvolveram no período
em exame no âmbito esotérico com o mesmo critério com que
ajuizamos polémicas políticas ou controvérsias científicas. Tam­
bém nestes campos personalidades de prestígio e estudiosos
autorizados discutem com aspereza, por exemplo, quanto à inter­
pretação de uma frase de Marx ou de Engels ou sobre a teoria dos
quanta. Os embates entre pessoas, grupos e correntes de cultura
esotérica, com excepção do âmbito específico, não têm um
alcance ou um significado diferente.
Um trecho central de O Rei do Mundo estabelece uma relação
entre Agharti e as concepções sobre os diversos «corpos» (à
Steiner) e entre macrocosmo e microcosmo (segundo a astrologia
e a alquimia renascentistas). Escreve Guénon retomando os dois
autores citados:

O chefe supremo de Agarthi usa o título de Brahatma [seria


mais correcto escrever Brahmatma] , suporte das almas no
espírito de Deus; os seus dois coadjutores são o Mahatma,
representante da alma universal, e o Mahanga, símbolo de
toda a organização material do Cosmos: esta é a divisão

15
Ibidem, págs. 12- 15 .

50
hierárquica que as doutrinas ocidentais representam me­
diante o trio espírito, alma, corpo, e que é aqui aplicado
segundo a analogia constitutiva do Macrocosmos e do
Microcosmos. A expressão «Rei do Mundo» entendida no
sentido restrito em relação com o mundo terrestre seria
bastante inadequada; bem mais exacto seria atribuir a
Brahatma a de «Senhor dos três mundos» ... Diz Ossen­
dowski: «o Rei do Mundo é irradiante de luz divina».
A Bíblia hebraica diz exactamente o mesmo de Moisés
quando desceu do Sinai... A função de legislador que é
própria de Moisés pressupõe necessariamente uma delega­
ção do poder que o nome de Manu designa: «O Rei do
Mundo», disse um lama a Ossendowski, «está em relação
com todos os pensamentos de todos aqueles que dirigem o
destino da humanidade. Conhece as suas intenções e as suas
ideias. Se eles agradam a Deus, o Rei do Mundo as
favorecerá com a sua ajuda invisível; se desagradam a Deus,
o Rei provocará o seu malogro. Tal é o poder dado a Agharti
mediante a ciência misteriosa de Om» 1 6 •

É fácil constatar como as etimologias são análogas às de


Jacolliot: Moisés, Manu; existe a referência a uma ciência miste­
riosa que, sendo Sham bha lah o centro de Agharti, é análoga à dos
bons magos dos teósofos. Há um fundo comum nesta espécie de
«filosofia oculta» entre Guénon e aqueles com os quais ele trava
polémica. E quando se recordam as discussões historiográficas
em tomo da relação entre Hitler e a religião, do problema de qual
fosse o deus para que apelava no final das suas proclamações com
as quais sempre anunciava novas invasões, o «Gott mit uns»
(Deus connosco) que ornamenta a fivela dos cinturões dos corpos
de elite SS, a referência possível é ao deus desta cultura que põe
a misteriosa ciência de Om ao serviço das empresas que ele
aprova.
Pouco antes do trecho agora citado, Guénon precisava:
«A confusão entre o aspecto luminoso e o aspecto tenebroso
constitui propriamente o satanismo; e precisamente em tal confu­
são caem, involuntariamente, e certamente por ignorância (o que

16
Ibidem, págs. 37-39.

51
é uma desculpa, mas não uma justificação), aqueles que julgam
descobrir um significado infernal na designação de Rei do
Mundo» 1 7 •
Génon que teria escrito depois Considerações sobre a Vida
Iniciática (1946) e cujos outros escritos sobre este tema foram
recolhidos depois da sua morte no volume La Pseudoinitiation,
toca aqui o ponto central da discussão no âmbito esotérico: o
máximo da praxe negativa (o que os marxistas «ortodoxos»
imputam aos «revisionistas», servindo-nos do exemplo de uma
compreensível analogia com o pensamento político) é transfor­
mar aquilo que é divino naquilo que é demoníaco, substituindo a
«iniciação» que leva à luz por uma «contra-iniciação» que conduz
às trevas. É a máxima acusação que os esotéricos podem trocar
entre si e que interessa à presente reflexão quer em relação a
personagens como Aleister Crowley, quer em relação com o
próprio Hitler, que se considera em relação com o deus da luz e
que, também no âmbito esotérico, poderia ser considerado, pelo
contrário, como ligado à confusão com o aspecto tenebroso que
constitui o satanismo. Toma-se deste modo mais compreensível
a posição dos estudiosos da direita esotérica que contestam as
análises neste campo pressupondo que quem indaga sobre as
origens «ocultas» do nazismo queira fazer de Hitler um demónio
e logo «demonizar» (termo em moda) os mestres do esoterismo,
Guénon incluído, o qual, para chegar à conclusão, explica por que
razão agora e não antes se pode falar de Agharti.

Nas circunstâncias entre as quais vivemos actualmente, os


acontecimentos desenvolvem-se com uma tal rapidez que
muitas coisas cujas razões não surgem de imediato pode­
riam encontrar, antes de quanto se creia, aplicações muito
imprevistas, senão de todo imprevisíveis. Queremos abster­
-nos daquilo que, de algum modo, se possa assemelhar a
uma «profecia»; insistimos todavia em citar, para concluir,
uma frase de Joseph de Maistre, que é ainda mais verdadeira
hoje que há um século: «Precisamos de estar prontos para
um acontecimento imenso de ordem divina, em direcção ao

17
Ibidem, pág. 36.

52
qual seguimos a uma velocidade acelerada que tem de ferir
todos os observadores. Temíveis oráculos anunciam já que
chegados são os tempos» 1 8 •

De Maistre, como Guénon, passara através da Maçonaria,


considerada uma possível forma de iniciação. Ambos ali tinham
visto depois uma degeneração. A frase agora citada é semelhante
à de Steiner em vésperas da Primeira Guerra Mundial: estão a
verificar-se eventos que tomam possíveis revelações, e que dizem
respeito às «crón�Sé!.� -,í:l�ªs.ic;<ts» ou «Agharti». Guénon evoca
«temíveis orãcüiõs» naquele 1927 em que Hitler beija as mãos a
Houston Stewart Chamberlain moribundo (assumira a nacionali­
dade alemã), recolhendo a herança para a fundação de um Reich
milenário dos arianos europeus em termos que Mosse evoca
assim:

Chamberlain era um devoto admirador de Hitler, o qual, no


curso de uma dramática encenação, foi visitar o moribundo
e já paralisado apóstolo do germanismo, inclinando-se para
lhe beijar as mãos. Escrevera para o futuro, tenaz nas suas
ideias e no anunciar que o futuro viria a ser luminoso 1 9 •

Hitler guiava agora um pequeno partido com 3 % dos votos.


Mas podia contar com o apoio de «superiores desconhecidos»; os
«oráculos» estavam a anunciar a chegada dos tempos, ainda que
o grande acontecimento alcançado fosse, depois, julgado mais ·
«demoníaco» que divino. Mas Hitler estava consciente da oculta
grandeza do seu destino, ao qual naqueles mesmos anos o
chamava também um outro estudioso da história esotérica, Hans
Horbiger, cujo jovem colaborador Horst Wessel, morto num
recontro com os comunistas se tomaria, com o Horst Wessel Lied
escrito por Ewers, o herói das SS.
A Cosmogonia Glacial de Horbiger fora publicada em 19 13
por Philip Fauth e as suas teses foram relançadas no pós-guerra.
Ali se defende que a dinâmica cósmica deriva do embate entre a
força de atracção do fogo e a da repulsão do gelo. O sistema solar
nasce da colisão entre um enorme corpo celeste a elevadíssima

18
Ibidem, págs. 1 1 1 - 1 1 2.
19
George L.Mosse, Le origini culturali dei Terzo Reich, cit., págs. 138- 139.

53
temperatura e um planeta gigante formado pelo acumular de gelo
cósmico. A força inicial das explosões os afasta, a gravitação os
atrai em direcção à mais vizinha das massas maiores. Assim a Lua
cai sobre a Terra, provocando imensos cataclismos. No curso de
milhões de anos nove Luas captadas pela Terra se formam.
Horbiger defende que a actual é a quarta. Cada Lua determinou
uma época geológica, porque são a sua dimensão e a sua força de
gravidade a determinar as formas de vida na Terra. No momento
em que o satélite está mais próximo e a dimensão e força de
gravidade maiores, encontram-se sobre a Terra formas de vida
gigantescas, pois que maior é o peso que têm de suportar.
Os homens vieram da segunda época geológica; há quinze
milhões de anos, nasceu uma civilização de gigantes telepatas
dotados de enorme energia psíquica, destruída pela queda da
segunda Lua. Os gigantes sobreviventes adaptam-se ao período
da terceira Lua, mais pequena e distante. Dela se mantém a
recordação na mitologia, enquanto nascem os nossos antepassa­
dos, mais pequenos e menos dotados, mas que evoluem até
construir a civilização mundial de Atlântida, sob a orientação dos
reis gigantes sobreviventes que estão bem conscientes de que
também a terceira Lua cairá: o que aconteceu há cento e cinquenta
mil anos. A humanidade decai no estádio animal. Nascem raças
anãs debaixo de um véu sem luz. Por cento e trinta mil anos há uma
evolução concentrada nas zonas do planeta que se encontram
próximas do Pólo Ártico, onde surge a nova e mais modesta
Atlântida que aumenta até que, há doze mil anos, se forma a quarta
Lua. A sua influência determina novos cataclismos, que ficaram
na recordação dos mitos do Génesis e do dilúvio.
Os gigantes degeneram, as civilizações decaem, mas nalguns
lugares da China e do Egipto, lentamente se reconstroem, na base
de recordações de dotes e de sabedorias antigas, embriões de
novas estruturas sociais. Porém, os homens desta época esquece­
ram grandezas e apocalipses do passado e a origem da relação
entre o homem e os acontecimentos cósmicos, aos quais só é
possível remontar conhecendo as grandes leis do universo, que
não são as de Newton e de Einstein. A sua descoberta na obra de
Horbiger assinala o fim de uma época e o prenúncio de uma nova.
Os adeptos da nova doutrina reencontrarão a antiga sabedoria e os
antigos poderes.
As ideias desta cosmogonia circulavam principalmente em
Viena e em Munique nas vésperas da guerra e Hitler, então com

54
vinte e cinco anos, com toda a probabilidade as conhece. No pós­
-guerra Horbiger relançou as suas ideias com uma autêntica
máquina de propaganda e por intermédio da revista mensal
«A Chave dos Acontecimentos Mundiais» que divulgava a <<Wel»
(«Welteislehre», teoria do gelo cósmico). Neste período, entre o
putsch de Novembro de 1923 e a consequente prisão, Hitler é já
uma figura nacional. Encontra Horbiger, ainda que a descrição das
suas relações, na obra de Pauwels e Bergier, só em parte seja
aceitável:

O chefe nazi escutava com deferência este cientista visio­


nário. Horbiger não admitia ser interrompido enquanto
falava e respondia firmemente a Hitler: «Maul zu!» (Ca­
lado! ). Ele levou ao extremo a convicção de Hitler: o povo
alemão, no seu messianismo, estava envenenado pela ciên­
cia ocidental. A doutrina do gelo cósmico fomeceria o
contraveneno necessário. Conferências reuniram os teóricos
do nacional-socialismo e os do gelo cósmico: Rosenberg e
Horbiger, rodeados pelos melhores discípulos. As afini­
dades do pensamento de Horbiger com os temas orientais
das épocas antediluvianas apaixonaram Himmler. A dou­
trina de Horbiger associava-se secretamente ao pensamento
do socialismo mágico2º .

Este Hitler que deixa que Horbiger lhe imponha silêncio é


pouco verosímil. Porém, a influência do engenheiro austríaco
sobre uma parte da elite nazi é certa. Elas converge com as outras
elaborações de história esotérica que foram descritas no período
em que Chamberlain transmite a sua herança e Guénon prega em
O Rei do Mundo iminentes convulsões da história no negro
período do Kali-Yuga:

A Agharti, diz-se, nem sempre foi subterrânea, nem para


sempre o será. Ossendowski precisa que o centro se tomou
subterrâneo há mais de seis mil anos, data que corresponde
com suficiente aproximação ao início do Kali-Yuga, ou
idade negra, a idade do ferro dos antigos ocidentais; o seu
reaparecimento deve coincidir com o fim de tal período2 1 ;

20
Louis Pauwels e Jacques Bergier, li mattino dei maghi, cit., pág. 300.
21
René Guénon, op. cit. , pág. 79.

55
[por isso] no actual período do nosso ciclo terrestre, o Kali­
-Yuga, esta «terra santa» defendida por «guardas» que a
escondem de olhares profanos garantindo-lhe no entanto
certas relações externas, é de facto invisível, inacessível,
mas apenas para aqueles que não possuem as qualidades
requeridas para nela penetrarem. Ora, a sua localização
numa determinada região deve ser considerada como lite­
ralmente efectiva, ou simplesmente simbólica, ou uma e
outra coisa ao mesmo tempo? A tal pergunta responderemos
simplesmente que, para nós, os factos geográficos e os
históricos, como todos os outros, têm um valor simbólico
que, de resto, nada lhes retira da sua realidde própria como
factos, pelo contrário, confere-lhes, além da realidade imediata,
um significado superior22 •

Guénon sanciona esta identidade entre o real e o simbólico em


1927. Um ano depois morre-lhe a mulher. Em 1929 publica
A Crise do Mundo Moderno onde insiste no período do Kali­
-Yuga. Em 1930 estabelece-se definitivamente no Cairo, onde
voltará a casar-se com uma mulher islâmica. Horbiger morre com
setenta anos em 1931. Entretanto um tradicionalista italiano
consulta de novo a tradição da macro-história de Hesíodo a Tilak
e a Guénon; é Julius Evola que, quando Hitler é já desde há um ano
chanceler do Reich, publica a sua obra Revolta contra o Mundo
Moderno (que também no título evoca a de Guénon de cinco anos
antes). Nela reaparece a mítica Sham bha lah de Agharti, meio
século depois de Helena Blavatski dela ter feito a cidade dos bons
mágicos2 3 •

22
Ibidem, pág. 1 10. Guénon acrscentou em nota: «De resto os diversos mundos são
propriamente Estados e não lugares, ainda que possam ser simbolicamente designados
como tais: a palavra sânscrita ' 'loka' ' , que serve para os designar, e que é idêntica ao latino
"locus" , encerra em si a indicação deste simbolismo espacial» (Ibidem).
23
Voltando a publicar o livro depois da derrota nazi, Evola acrescentará: «No
" Vishna Purana" indicam-se elementos da raça primordial ou de " Manu" que ficaram
na terra na mesma idade obscura para serem a semente de novas gerações; e reaparece a
ideia de uma final manifestação do alto. A estirpe em que nascerá este ' 'princípio divino' '
é uma estirpe de Shambahlah: porém Shambahlah - visto no seu tempo - remete para
a metafísica do Centro e do Pólo, para o mistério hiperbóreo e para as forças da tradição
primordial» (Rivolta contro il mondo moderno, Edizioni Mediterranee, Roma 1969,
pág. 447).

56
Continua assim uma tradição cultural (ou, se se quiser, uma
mitografia) que acompanha duas gerações de intelectuais ( «visio­
nários» segundo Pauwels e Bergier) que, entre os primeiros
anúncios de uma «doutrina secreta» e a chegada de Hitler à
chancelaria de Berlim, ligam um passado de catástrofes e de
sabedoria, de apocalipses e de particulares relações entre o
homem, o cosmos e «superiores» com dotes paranormais, a um
futuro que está por iniciar e no qual antigos valores retomarão
vigor no decorrer de conflitos cósmicos.
No Despertar dos Mágicos esta tradição mitográfica é sinte­
tizada em termos aproximados, provavelmente por intermédio de
uma versão de Gurdiev do qual Pauwels, durante algum tempo,
foi aluno:

Segundo uma lenda tibetana, há trinta ou quarenta séculos


existia no Gobi uma outra civilização. A seguir a uma
catástrofe, talvez atómica, o Gobi foi transformado num
deserto e os sobreviventes emigraram, alguns para o ex­
tremo norte da Europa, outros para o Cáucaso. O deus Thor
das lendas nórdicas teria sido um dos heróis desta migração
em que se integra a raça fundamental da humanidade, a cepa
ariana. Depois do cataclismo, os mestres da alta civilização,
os detentores do conhecimento, instalaram-se num imenso
sistema de cavernas por baixo da cadeia do Himalaia. No
coração destas cavernas dividiram-se em dois grupos, se­
guindo um «a via da mão direita», o outro «a via da mão
esquerda». A primeira via teria tido o seu centro em Agharti,
cidade nascida do bem, templo da não participação no
mundo. A segunda teria passado por Shambahlah, cidade da
violência e do poder, cujas forças comandam os elementos,
as massas humanas e apressam a chegada da humanidade à
charneira dos tempos. Aos magos guias de povos teria sido
possível estabelecer um pacto com Shambahlah24 •

Como a mitologia grega da qual são dedutíveis fases da


história anterior à conhecida2 5 , esta história esotérica contém

24
Louis Pauwels e Jacques Bergier, op. cit. , págs. 359-360.
25
Para esta interpretação remeto para o meu Decidente misterioso - Baccanti,
gnostici, streghe - 1 vinti da/la storia e la !oro eredità, Rizzoli, Milão 1987. Ibidem as
fontes de referência.

57
imagens e símbolos por vezes bivalentes. Sham bah lah pode
identificar-se com Agharti ou ser o seu oposto. A sabedoria con­
templativa ou a condução dos povos podem estar em oposição ou
serem dois aspectos compatíveis. O real e o simbólico, como
afirma Guénon, podem coexistir. Uma parte da concepção de
Hitler (e de outros chefes nazis) é influenciada por esta tradição
cultural, que se difundia nos anos da sua juventude e da sua
formação.

58
3
ASTROLOGIA E GEOPOLÍTICA

Um desenvolvimento simultâneo do agora descrito é o reapa­


recimento da cultura astrológica, que se encontrou com uma nova
disciplina emergente - a geopolítica - nas pessoas de Karl
Haushofer e do seu jovem amigo e aluno Rudolf Hess. Da geo­
política derivou directamente a teoria nazi do espaço vital (Lebens­
raum); e quando o grupo dirigente hitleriano decidiu pôr em
prática a teoria com a conquista da Rússia europeia (plano Barba­
-Roxa, 1940-41), desenvolveu-se no vértice do Terceiro Reich
uma discussão na qual a astrologia teve um papel importante, ao
ponto de influenciar a preparação da missão de Hess a Inglaterra
em busca de um possível acordo antes de se iniciar a campanha de
Leste.
Para avaliar plenamente o que aconteceu na Primavera de
1941 é necessário remontar àqueles mesmos decénios que viram
a ascensão e o declínio de madame Blavatski. Mas antes de entrar
neste campo «oculto», vem a propósito acentuar como nos dois
primeiros decénios do século a geopolítica se foi formando como
disciplina tradicional com três centros de reflexão: a Suécia, a
Inglaterra e a Alemanha. No que concerne as duas últimas nações,
é possível sublinhar que também esta disciplina contribuiu para
construir um dos pilares da ponte da qual se falou. Julgado em
Nuremberga, Haushofer citará os precursores ingleses (e também
americanos) da disciplina, para excluir que tivesse nascido apenas
em solo nazi. Citará também lorde Kitchener, que encontrámos
entre os possíveis visitantes de Lanz voo Liebenfels.

59
A Suécia merece atenção especial, porque a cultura do radica­
lismo de direita teve ali um peso superior àquele que geralmente
se considera. Já foi citado o nome de Sven Hedin, que procurava
Agharti, que negou a Ossendowski ter alcançado onde o sueco não
chegara e que gozava de muito prestígio junto de Hitler 1 • Ingmar
Bergman, o artista sueco mais conhecido deste século, foi nazi na
juventude, como toda a sua família. E a geopolítica teve um dos
seus fundadores em Johan Rudolf Kjellén (nascido em 1 864,
falecido em 1 922), que inventou a palavra, foi deputado conser­
vador ao parlamento sueco, de 1 9 1 1 a 1 9 1 7, e que publicou em
1 9 1 6 O Estado como Forma de Vida, editado em alemão em
Leipzig (a cidade da primeira sociedade Thule e onde fora
publicado Sven Hedin). Também em Leipzig saiu em 1 92 1 a
última versão de As Grandes Potências de Hoje, que tivera já
numerosas edições na Alemanha durante a guerra.
A popularidade de Kjellén no império do Kaiser provinha da
sua afirmação de que a Alemanha era a natural e legítima repre­
sentante de todo o conjunto europeu (tese que será retomada por
Carl Schmitt no final dos anos trinta). Ele via no eixo Berlim­
-Bagdade a linha de expansão da Alemanha como grande potência
(expôs a tese em O Problema Político da Guerra Mundial, 1 9 1 6).
E nas propostas que Hess levará para Inglaterra em 1 94 1 há o
pedido da autonomia do Iraque, que entretanto se revoltará contra
o mandato britânico.
Contemporâneo de Kjellén e como ele deputado conservador
ao Parlamento (de 1 9 1 O a 1 922) é o estudioso inglês sir Halford
Mackinder (nascido em 1 86 1 , três anos antes de Kjellén, morrerá
em 1 947), director da célebre London School of Economics antes
da guerra. Publicou em 1 9 1 9 Democratic Ideais and Reality que
continua o ensaio de 1 904 (o ano em que se tomou director da
London School) The Geographic Pivot ofHistory (O Eixo Geo­
gráfico da História). Em 1 9 1 9-20 Mackinder representou a
Inglaterra junto do exército branco durante a guerra civil da
Rússia. Desenvolveu a tese segundo a qual a história é determi­
nada em boa parte pela oposição e pelas estruturas políticas das
potências terrestres e das marítimas, outra ideia que será retomada
por Carl Schmitt.

1
Sven Hedin é convidado e festejado por Hitler em Berlim por altura do 75.º
aniversário, em Fevereiro de 1940.

60
É na base da geopolítica que - segundo este esboço - se
pode discutir o problema, que foi central - no momento da
decisão pela guerra - tanto para a Alemanha do Kaiser como para
a de Hitler: é possível ou não um entendimento com a Inglaterra
para uma divisão das obrigações na comum hegemonia mundial,
e eventualmente na base da defesa do primado da raça branca da
Europa Central, tendo em conta não só a unificação do globo (que
deu lugar ao que Mackinder definiu como a idade pós-colom­
biana), que põe em movimento grandes massas humanas na Á sia,
em África, na América; mas também a concorrência dos nascentes
impérios da Rússia e dos Estados Unidos?2
Voltar-se-á a tal questão. Agora importa acentuar que é neste
contexto cultural que se coloca a obra de Haushofer, nascido em
Munique (cidade crucial para o nazismo) em 1869, no mesmo
decénio de Kjellén e Mackinder. De família aristocrática, inicia a
carreira militar no Estado-Maior, pelo qual é enviado em missão
ao Japão em 1907, onde permanece até 191O ainda como adido
militar da embaixada de Tóquio. É deste período o seu encontro
com culturas orientais, incluído o Zen, pelas quais foi notavel­
mente influenciado.
General durante a guerra, na frente leste e na Alsácia, Haus­
hofer encontra Hess no período final do conflito. Licenciado
como general da reserva depois da derrota, Hess torna-se seu
ajudante de campo. Haushofer ensina agora geopolítica na univer­
sidade de Munique. As relações entre os dois tomam-se muito
estreitas, Hess passa a ser também amicíssimo do filho do general,
Albrecht. É entre o final de 1918 e 1920 que, por um lado, a Thule
se torna a matriz do partido nazi e, por outro, surgem a «Loja
Luminosa» e a «Sociedade Vril». Hess está certamente na Thule.
O papel de Haushofer, como veremos, é menos evidente. Ele
publicará, em 1923, Geopolítica da Autodeterminação e fundará,
no final do mesmo ano, a revista «Zeitschrift für Geopolitik». No
mesmo período Hitler, preso depois do fracasso do putsch de
Novembro de 1923, pensa escrever o Mein Kampf, em cuja
redacção Hess e Haushofer terão uma influência determinante.

2
Para o peso da geopolítica na cultura de direita, cfr. o recente Visto da destra, de
Alain de Benoist, Akropolis, Nápoles 1 988.

61
Os historiadores subestimam o peso de Haushofer e citam-no,
apenas, a propósito do Mein Kamp/ 3 • Fest escreveu:

Hess, pelo que se sabe, já em 1 922 teria feito de interme­


diário entre Hitler e o seu mestre, o qual elaborara o original
e frutuoso tema de geografia política, a «geopolítica» do
inglês sir Halford Mackinder, dele fazendo uma filosofia de
expansionismo imperialista. O conceito hitleriano de con­
quista não era isento de uma confusa consciência da força
daquilo que Mackinder definira como «o coração da terra»:
a Europa oriental e a Rússia europeia; tomadas invencíveis
pela enorme extensão territorial que as protegia de qualquer
ataque, eram por consequência a «cidadela do domínio
mundial», como proclamara o fundador da geopolítica.
«Quem domine o coração da terra», afirmava Mackinder,
«domina o mundo». Segundo parece o aparente raciona­
lismo de tais fórmulas pseudocientíficas, verdadeiramente
mágicas, encontrou plena correspondência na especial
estrutura do intelecto de Hitler, aos olhos do qual também
a ciência tinha muitos lados obscuros4 •

Inserida nestas concepções «mágicas» entrelaçadas com a


história esotérica que já descrevemos ( as antigas terras sedes da
antiga sabedoria), a geopolítica toma-se uma estrutura suporte da
ideologia e da política externa nazi. E é de supor - como se verá
no próximo capítulo - que Hitler tinha encontrado Haushofer já
em 1 920, quando, no vértice da Thule, se decidiu a passagem da
seita «oculta» ao partido de massas.
Não obstante a intuição de Fest sobre a relação entre geopo­
lítica e esoterismo, se a contribuição de Haushofer é subestima-

3
Por exemplo, Bracher escreve que no cárcere de Landsberg «Hitler se familiarizou
com novas teorias, como a geopolítica de Karl Haushofer, que o visitou repetidamente com
um seu estudante, Rudolf Hess» (La dittatura tedesca,cit. , pág. 172), já apresentado como
«aluno do estudioso de geopolítica Karl Haushofer» (pág. 123). São apenas as duas vezes
em que o general é citado e o definir Hess como «aluno» e «estudante» no início dos anos
vinte é certamente limitado.
4
Joachim Fest, Hitler, cit. , pág. 264. Para as concepções «mágicas» Fest cita o ensaio
de H. R. Trevor-Roper, The Mind of Adolph Hitler.Londres 1953 , prólogo às suas
Conversazioni a tavola (ed. italiana, Longanesi, Milão 1983).

62
da quanto ao que concerne a sua disciplina específica, o interesse
pela astrologia é inteiramente ignorado pela historiografia mais
sólida. Porém, deve ser tomado em consideração.
A relação entre Hitler e Hess baseava-se também no interesse
pel�s culturas «diferentes»: diferentes geograficamente, como as
da Asia oriental (japoneses e zen) de Haushofer ou islâmicas de
Hess (nascido em Alexandria, no Egipto); mas também «diferen­
tes» do ponto de vista histórico do racionalismo ocidental, como
as culturas herméticas e astrológicas. O general Haushofer entrara
em contacto com isso, depois do seu regresso do Japão, nos três
anos anteriores ao conflito, mesmo no ambiente do Estado-Maior
alemão.
É um dado pouco conhecido mas significativo do clima
cultural que aqui é descrito, que nos vértices da máquina militar
germânica, considerada um modelo de lógica, a cultura ocultista
era objecto de interesse. O fundador da Thule, von Sebottendorf,
afirma sem hesitação: «O antropósofo Steiner antes da guerra
tinha trabalhado em Berlim em colaboração com Lisbeth Seidler,
conhecida depois como a Vidente de Sklarek. Estes, valendo-se
do seu ascendente sobre o general Moltke, junto do qual ambos
tinham sempre livre acesso, estão na origem do atraso de um
tempestivo afluxo de reforços adequados, comprometendo o
êxito da batalha do Mame, que resultou numa derrota»5 •
É obviamente de todo inverosímil que antropósofos e viden­
tes tenham determinado o insucesso alemão. Mas as suas relações
com o sobrinho do vencedor de Sadowa e de Sedan e comandante
do exército no início da guerra (formalmente subordinado apenas
ao Kaiser) são um dado de facto. A Moltke sucedeu depois como
comandante efectivo (ainda que com o cargo de quartel-mestre
general formalmente às ordens de Hindenburg) Erich Ludendorff,
que desempenhou papel de chefe de Estado-Maior até à derrota
final. Conquistador de Liege, abrira aos Alemães o caminho de
Paris em Agosto de 1 9 1 4. Tranferido para a frente oriental onde
enfrentava a ameaça dos Russos, tinha-os derrotado, sempre ao
lado de Hindenburg, em Tannenberg e nos lagos Masuro abrindo
a estrada de Varsóvia. O general mais popular na Alemanha
juntamente com Hindenburg era também um adepto da filosofia

5
Rudolph von Sebottendorff, Prima che Hitler venisse - Storia de/la società Thule,
Arktos, Turim 1 987, pág. 74. O A. cita como fonte um libelo anti-steineriano: li dott.
Steiner, un imbroglione senza pari, de Schwaerz-Bostunnisch, Ed. Bõpple, Munique.

63
ocultista. Está ao lado de Hitler no putsch de Novembro de 23 e
as suas divergências com o nazismo em crescimento derivaram
justamente da sua convicção de que o «movimento» se estava a
afastar demasiado das suas raízes esotéricas.
Neste ambiente, o interesse de Haushofer pelas culturas
«diferentes», fortalecido pelo encontro com Hess, encontrava
mais encorajamentos do que obstáculos e colocava-se perfeita­
mente no ressurgir dos estudos astrológicos na Alemanha e na
Europa. E também neste caso se caminha «nas pegadas de
madame Blavatski» 6 •
Em Agosto de 1917, enquanto a Alemanha estava duramente
empenhada na guerra, dois eminentes estudiosos, o filólogo Franz
Boll e o orientalista Carl Bezold, publicavam em Heidelberga
uma breve História da Astrologia, que a setenta anos de distância
tem ainda uma validade que sugeriu uma edição italiana com
prefácio de Eugénio Garin, o qual escreve:

Esgotou-se rapidamente a primeira edição, a segunda, saída


cerca de um ano depois, pôde ter em conta as observações
de filósofos, historiadores bem conhecidos, de Diels a
Nilsson, de Warburg a Mauthner. O afortunado volumezi­
nho, todavia, tinha origens bastante mais distantes: reto­
mava o texto de algumas lições que Boll tivera nos cursos
de Verão de Agosto de 1913, em Hambrugo, onde então
trabalhava Aby Warburg, «um que sabia tudo sobre astro­
logia». Desaparecidos Bezold e Boll, foi justamente por
iniciativa da biblioteca Warburg que Wilhelm Gundel, que
aos estudos sobre astrologia deu contributos fundamentais,
cuidou da terceira edição da obra, valendo-se das sugestões
de Aby Warburg e do mais jovem Fritz Saxl, que desde a
conclusão dos seus estudos universitários se dedicava à
astrologia e que, por volta de 191O, tinha voltado o seu
trabalho para a iconografia dos planetas7 •

Rencontramos os nomes destes dois pioneiros dos estudos


sobre as relações entre arte e astrologia - Warburg e Saxl - num

6
É o título do segundo capítulo do livro de Ellic Howe, Gli astrologi dei nazismo,
Mondadori, Milão 1986, págs. 26 e ss.
7
Franz Boll, Carl Bezold, Wilhelm Gundel, Storia deli' astrologia, Laterza, Roma­
-Bari 1985, prefácio de Eugenio Garin, pág. V.

64
texto que não tem, porém, nada do estilo académico e que nos leva
a uma fase não da Primeira, mas da Segunda Guerra Mundial,
quando o escritor Ellic Howe trabalhava no Psychological Wel­
fare Executive, o serviço inglês para a guerra psicológica. Nela
teve a astrologia um papel importante, ao qual se voltará. Howe
de tal não se ocupou mais até muitos anos depois do conflito,
embora «continuasse a interessar-se pelo fenómeno da sobrevi­
vência da astrologia. Porquê esbanjar o seu tempo para estudar a
história moderna de uma superstição desacreditada? Warburg e
Saxl - dois historiadores de preparação de modo algum 'oculta'
- pensaram-no de modo diferente e lançaram as bases da mais
importante colectânea astrológica do século XX, hoje no Warburg
lnstitute da Universidade de Londres» 8 •
Howe voltou portanto ao estudo das relações entre astrologia
e nazismo e forneceu-nos um enquadramento histórico do pro­
blema, que nos leva de novo ao clima cultural, principalmente
alemão, anterior ao primeiro conflito mundial, quando Hess tinha
menos de vinte anos, Hitler vinte e cinco, enquanto Haushofer era
um brilhante oficial de quarenta anos do Estado-Maior do que era
considerado o melhor exército do mundo.
Howe recorda que

enquanto em França a astrologia foi literalmente redesco­


berta no último decénio do século passado e na Alemanha
nos primeiros decénios deste século, o fenómeno astrológico
que se deu na Inglaterra entre 1890 e 1900 representou o
mais vigoroso prosseguimento de um fenómeno dura­
douro... Certos almanaques proféticos populares tinham
continuado a sair todos os anos, sempre com grande venda:
por exemplo a «Vox stellarum», do qual em 1770 se impri­
miram mais de cem mil exemplares. Observaram-se focos
de renovado interesse pela astrologia entre 1790 e 1800 e,
de novo, entre 1820 e 1830; porém, um verdadeiro e
autêntico recomeço deu-se apenas depois de 1890: o fenómeno,
de resto, em grande parte não foi mais que um aspecto da
maior influência que as doutrinas teosóficas e esotéricas em
geral exerceram nos trinta anos que vão de 1885 até ao
rebentar da Primeira Guerra Mundial 9,

8
Ellic Howe, op. cit. , págs. 19-20.
9
Ibidem, págs. 26-27.

65
Delas se falou no capítulo anterior. O facto de no país de
Bacon, de Newton, da revolução científica e da industrial, a astro­
logia ter mantido uma razoável difusão, merece atenção por parte
dos historiadores da cultura. Sugere quanto são profundas as raízes
de convicção das quais o ocultismo «culto» da Golden Dawn é
uma outra manifestação. E o londrino «Daily Express» «foi o
primeiro diário importante a publicar uma secção astrológica» 1 0 •
Mas, acrescenta Howe, «foi na Alemanha que a astrologia teve o
maior despertar, suscitando uma vastíssima vaga de interesse
especialmente no período entre as duas guerras» 1 1 •
O «despertar» é, porém, anterior e está ligado a madame
Blavatski. Foi o seu colaborador Franz Hartmann a tomar-se na
Alemanha, antes da guerra, «num dos mais prolíficos escritores de
teosofia, magia e ocultismo da sua geração»; e foi o seu discípulo
e secretário Hugo Vollrath que funda, em 1909, «Prana - Revista
das ciências secretas experimentais». É publicada em Leipzig,
onde como sabemos surgirá a primeira seita Thule e serão
publicados os escritos de Sven Hedin e de Kjellén. O primeiro
director da revista foi um vienense, Karl Brandler-Pracht. Em
1912 «Prana» inicia a publicação de um suplemento astrológico
(a «Astrologische Rundschau» ).
Em 1914 existiam várias pequenas sociedades astrológicas
na Alemanha e um grupo exíguo de homens que, com razão
ou sem ela, eram considerados astrólogos peritos. Porém . . .
um número surpreendentemente elevado de alemães, in­
cluindo muitos homens e mulheres de óptima cultura,
começou a estudar astrologia no início dos anos vinte. As
consequências da derrota, com todos os seus problemas e as
suas incertezas, induziram muitos a voltarem-se para os
«astros» em busca de informações e prognósticos que
anunciassem dias melhores 1 2 •
A situação é colocada num mais amplo contexto pelos estu­
diosos já referidos:
O iluminismo degrada a astrologia à ninharia de curiosidade
da «história da estupidez humana»; tão radical foi a sua obra

to Ibidem, pág. 3 1.
11
Ibidem, pág. 32.
12
Ibidem, págs. 35-36.

6(-
neste campo que o culto filisteu dos nossos dias confessará
terror pânico pelo número 13 em vez de respeito pela já tão
poderosa teoria astral. . . Nos românticos alemães, especial­
mente em Novalis e em Gõrres mas também em Schlegel,
flameja todo um património ideal astrológico . . . A mística
doutrina do Único em Stirner tem estreitos parentescos com
a astrologia. Mas trata-se de sobrevivências cujo signifi­
cado originário, para a consciência comum, a pouco e pouco
se desvaneceu. Em todos os países existem ainda sociedade
astrológicas, centenas de milhar de almanaques astrológicos
são publicados de ano para ano em língua inglesa, aparecem
regularmente revistas e manuais; mas quase sempre não
impressionam o entendido senão pela pobreza das ideias e
pelo eterno e superficial repisar de antigas fórmulas escle­
rosadas 1 3 .

Os autores daqui deduzem que «não precisam de ser profetas


para considerarem impossível um renascimento da astrologia -
pelo menos na sua antiga forma fantástica - digna de ser tomada
a sério. Decidir efectivamente se respostas alternativas sobre o
futuro devam aparecer sempre, como parecia até há poucos anos,
tão semelhantes dos pressupostos fundamentais da astrologia,
seria temerário a tão breve distância do desmoronamento de uma
visão do mundo velha de milénios; tanto mais temerário quanto
a recente cosmofísica e biologia começaram já a ter em conta o
papel do Sol, da Lua e dos astros nos eventos terrestres» 14 •
Estas considerações são dos anos vinte. Sabemos hoje que a
astrologia popular se expandiu ulteriormente. E seria justamente
«temerário» supor futuras relações entre os «pressupostos» da
astrologia e os desenvolvimentos da ciência. Importa acentuar
que justamente no início daquele decénio se dá uma implantação
do despertar da astrologia, na tradição que se liga a Schlegel e às
suas «��lónias indianas». Não há pois motivo de espanto por
também Hitler se interessar por astrologia.
Devemos as mais fundamentadas notícias a um estudo en­
comendado em 1943 pelo serviço secreto dos Estados Unidos
(OSS) a um grupo dirigido pelo considerado psicanalista Walter

13
Franz Boll, Carl Bezold, Wilhelm Gundel, op. cit. , pág. 88.
14
Ibidem, pág. 89.

67
Langer, que deixara Viena em 1938. O estudo só se tomou
conhecido no início dos anos setenta. Sobre este ponto parte-se do
testemunho de um dos primeiros dirigentes nazis, depois em
conflito com Hitler, e que emigrou para o Canadá, Otto Strasser.

Segundo Strasser, durante os primeiros meses de 1920


Hitler recebeu lições regularmente de Hanussen, astrólogo
e adivinho. Tratava-se de um homem extraordinariamente
hábil. Por quanto disto se sabe, nunca se interessou parti­
cularmente pelo movimento. É possível que Hanussen
estivesse em contacto com um grupo de astrólogos muito
activos em Munique. Por intermédio de Hanussen, Hitler
pode ter contactado com este grupo, visto que von Wiegand
afirma: «Quando dos meus primeirso encontros com Hitler
em Munique, em 192 1 e 1922, ele frequentava um meio em
que a fé nos prodígos das estrelas estava amplamente
difundida. Murmurava-se muito do advento ' ' de um novo
Carlos Magno e de um novo império ' '. Se Hitler acreditava
ou não, naquele tempo, em tais previsões e perspectivas,
nunca se conseguiu que o confessasse. Não afirmava mas
também não negava a sua fé. Seja como for não era contrário
a fazer um oculto uso das profecias para incrementar a
confiança popular nele e no seu então e combativo movi­
mento» 1 5 .

Langer comenta:

É provável que aqui tenha tido início e se tenha mais tarde


agigantado o mito da associação de Hitler com os astrólogos.
Muitíssimos comentadores atribuíram a segurança de Hitler
ao facto de ser um fervoroso iniciado na astrologia e de estar
em constante contacto com os astrólogos que o informavam
quanto à linha de conduta a ter. Isto quase de certeza é falso.
Todos os nossos informadores que o conheceram com
bastante intimidade definem a ideia como absurda. São
unânimes a considerar que nada era mais alheio à persona­
lidade do ditador que o esperar socorros de expedientes

15
Walter Langer, Psicanalisi di Hitler, Garzanti, Milão 1973, págs. 44-45. Karl von
Wiegand é um testemunho dos primeiros anos do nazismo. Escreveu Hitler Fliegerei e
Hitler Foresees His End. Cfr. Langer, pág. 326.

68
deste género. É também sintomático que Hitler, algum
tempo antes da guerra, tivesse proibido na Alemanha a
prática de predizer a fortuna e de ler nas estrelas. O princípio
em que Hitler se inspira é efectivamente particular. Parece
acertada a sua convicção de ter sido enviado pela providên­
cia à Alemanha, com uma precisa missão a cumprir. Uma
«voz interior» lhe dita gradualmente os passos a dar.
Experiências deste género deviam harmonizar-se perfeita­
mente com as profecias dos astrólogos de Munique e
provavelmente Hitler, no seu íntimo, convenceu-se de que,
se alguma coisa de verdade aqueles presságios continham,
não podia referir-se à sua pessoa 1 6 •

Para o futuro Führer, portanto, a astrologia, em vigoroso


retomo na Alemanha, era apenas um ladrilho do mosaico de
história e de comogonia esotéricas, de ocultismo e antigas cultu­
ras na qual se baseava a sua formação. Mas no nazismo nascente
havia quem, como Hess, a considerava uma ciência redescoberta
e que se combinava com a geopolítica haushoferiana para indicar
o destino da Alemanha. É neste panorama que o despertar
astrológico completa na Alemanha o quadro dos anos vinte de
Horbiger e de Ossendowski: as publicações do general Hausho­
fer, naquele tempo com cinquenta anos, são do final de 1923 ; a
saída de Animais, Homens e Deuses é do ano seguinte; Horbiger
lança em 1925 um apelo aos cientistas alemães para que abracem
as suas teorias para derrotar a ciência judaica. Hess, pelos trinta
anos, é um dos mais íntimos colaboradores de Hitler.
A elaboração do substrato esotérico do nazismo - com
posições diferentes entre cada um dos dirigentes - e a adopção
de decisões num confronto influenciado por este substracto,
explica os destinos da astrologia na Alemanha e também as
medidas em vésperas de guerra e as que se seguiram à viagem de
Hess a Inglaterra, em Maio de 1941. Uma cronologia esclarece a
questão, também porque há um episódio específico ligado ao
período de prisão de Hitler, durante a qual é escrito o Mein Kampf,
em que se denota o papel determinante de Hess e de Haushofer.
Tenha-se presente que Hugo Vollràth permanece, nos primei­
ros anos vinte, como o mais importante editor de textos de

16
Ibidem, págs. 44-47.

69
astrologia, enquanto se afirma Elsbeth Ebertin, então com qua­
renta anos.
Era desconhecida nos ambientes astrológicos alemães antes
de 1914, mas dez anos depois tinha uma invejável reputação
de sibila. Originalmente fora grafóloga . A primeira das suas
muitas publicações astrológicas apareceu durante a Primei­
ra Guerra Mundial. Na Primavera de 1923 , enquanto estava
ocupada a preparar a edição para o ano seguinte da sua
publicação anual «Ein Blick in die Zukunft» ( «Um olhar
para o futuro»), Hitler e o partido nazi estavam na ribalta da
cena política bávara. A senhora Ebertin preparava-se para
fazer uma série de previsões de carácter geral sobre· as
pessoas nascidas com o Sol em Carneiro guarido lhe chegou
de Munique a carta de uma fanática adepta de Hitler.
A correspondente mandava-lhe a data de nascimento de
Hitler, não a hora; e desejava saber que pensava do seu
horóscopo. A Ebertin publicou a resposta, mas sem pôr o
nome de Hitler, na edição de 1924 do almanaque, que foi
posto à venda pelo final de Julho de 1923: «Um homem de
acção nascido a 20 de Abril de 1889, com o Sol em
29.º Carneiro no momento do nascimento, pode expor-se ao
perigo pessoal com iniciativas excessivamente impruden­
tes e também, com muita probabilidade, desencadear uma
crise incontrolável», escreveu. «As suas constelações indi­
cam que é tomado muito a sério; está destinado a ter funções
de Führer nas batalhas futuras. Segundo parece o homem ao
qual me refiro, com esta forte influência do Carneiro, está
destinado a sacrificar-se pela nação alemã, a enfrentar todas
as circunstâncias com audácia e coragem, ainda que se trate
da vida ou de morte e a dar repentino impulso a um movi­
mento alemão de liberdade. Mas não anteciparei o destino.
O tempo o demonstrará; porém, o actual estado de coisas, no
momento em que escrevo, naturalmente não pode durar» 1 7 •
Comenta Howe:
Nenhuma destas afirmações era totalmente privada de
sentido. Nota-se, todavia, que Frau Ebertin não sugeria

17
Ellic Howe, op. cit. , págs. 36-37.

70
datas, nem pormenores. Contudo, como o seu anuário
continha essencialmente profecias a breve prazo, tinha de se
deduzir que este homem nascido sob o signo do Carneiro,
fosse ele quem fosse, faria melhor em não empreender
acções irreflectidas num futuro próximo. Qualquer nacio­
nal-socialista que tivesse lido «Ein Blick in die Zukunft»
teria reconehcido Hitler sem muita dificuldade, especial­
mente quando a Ebertin usava o termo «Führer». A autora
mandou uma cópia do almanaque assim que foi publicado
ao « Volkischer Beobachter» e a cópia foi mostrada a Hitler.
A profecia, de qualquer modo, realizou-se bem depressa 1 8 •

Efectivamente o putsch de Munique de 8 de Novembro de


1 923 falhou, Hitler e os chefes nazis foram presos. A narrativa de
Howe continua assim:

Estes emocionantres acontecimentos trouxeram uma bela


publicidad� pessoal à Ebertin. Encontrava-se em Munique
em Setembro e na edição de 1 925 do almanaque, que foi
escrita em 1 924, declarou que iria a Munique, porque
compreendera que se verificariam importantes aconteci­
mentos e queria estar presente. Dava a entender que um ano
antes, quando escrevera a «profecia» sobre Hitler, sabia
pouco ou nada dos nacionais-socialistas. E continuava:
«Não tenho a hora do seu nascimentÔepor isso formulei um
horóscopo provisório para o dia». Aludiu tê-lo preparado na
base da posição do Sol ao meio-dia de 20 de Abril de 1 889.
Mas ao meio-dia o Sol estava já fora do Carneiro e passara
ao Touro. Porque dissera então explicitamente que quando
Hitler nascera o Sol se encontrava no último grau de
Carneiro? A resposta é que a Ebertin conhecia muitíssimo
bem a importância política da personagem e chegara de
repente à conclusão de que aquele homem turbulento e
agressivo devia ter o Sol no íg!)eo signo do Carneiro, mais
que no Touro, signo terrestre e presumivelmente mais
dócil 1 9 •

18
Ibidem, pág. 37.
19
Ibidem, pág. 38.

71
A Ebertin afirmou que «depois do 8 de Novembro não mais
houvera paz, porque era assediada por membros dos partidos
políticos de Munique, de direita e de esquerda, que queriam todos
conhecer o futuro. [Acrescentou que] diversos bons amigos
mostraram a Hitler o trecho em questão. Disseram-me que como
única resposta teria exclamado impaciente: ' ' Que têm a ver
comigo as mulheres e as estrelas? ' '. Ela explicou que, entretanto,
descobrira a hora do nascimento de Hitler: pelas 18 e 30, hora que
constava no registo baptismal. Pela primeira vez foi assim publi­
cada a informação que se tomaria depois tão interessante para os
astrólogos alemães»20 •
Entretanto a Ebertin tinha escrito, com o jornalista L. Hoffmann,
O Curso das Estrelas e os Eventos Mundiais que Howe definiu
como «um dos tratados astrológicos mais fascinantes do sé­
culo» 2 1 • É lícito perguntar que efeito teria tido em Hitler a «pro­
fecia» que antes soubera com aborrecimento.
Como muito bem se sabe, modificou a sua estratégia depois
do putsch: não mais golpes de Estado, mas progressão pelo
interior das instituições; era preciso ter o exército não como
adversário mas como aliado. Com esta atitude alcançou o poder
em Janeiro de 1933 e certamente ela foi ditada pela negativa
experiência bávara. Mas o facto de uma astróloga ter vaticinado
o mau sucesso de «iniciativas imprudentes» e de Hess - estu­
dioso da matéria - não ter deixado de o acentuar, foi certamente
incluído pelo futuro Führer na conjugação de aspectos da sua
experiência (como a salvação na trincheira e as «vozes inte­
riores»), sobre os quais se teria valido para futuras decisões.
Assim se explica, não obstante a desconfiança pela astrologia,
o que Langer definiu como uma disponibilidade para «um uso
oculto das profecias», como instrumento por parte de Hitler, fruto
de uma convicção profunda noutros dirigentes nazis como Hess.
O papel da astrologia foi portanto objecto de valorizações diferen­
tes no vértice do movimento e depois no Terceiro Reich. Assim
se explicam as suas sucessivas vicissitudes até à crise de Maio de
4 1, o alternar de boas e más relações entre o vértice nazi e os
astrólogos até ao início da guerra, quando por um lado a actividade
dos astrólogos é estritamente controlada, mas por outro é reem-

20
Ibidem, págs. 39-40.
21
Jbidem, pág. 39.

72
tado, ao serviço da Alemanha em guerra aquele que era talvez o
astrólogo mais célebre do momento, o suíço Karl Ernst Kraft.
Para completar agora o quadro do papel da astrologia na
Alemanha até à ascensão de Hitler à chancelaria e para sublinhar
a influência cultural no período em que os dirigentes de um
pequeno grupo minoritário pensavam construir o «Reich dos mil
anos», é necessário recordar a cronologia, tendo presente que
Munique e Leipzig, já centros de iniciativas esotéricas (e a
primeira ainda capital do nazismo), tiveram sempre um papel de
primeiro plano. Em Munique se deu o primeiro congresso das
associações astrológicas alemães (em 1922) e em Leipzig o
segundo congresso (em 1923). Aqui foi fundada - e ali encon­
trou sede - uma organização unitária que se definiu como
Serviço astrológico central.
Howe acentua que

quanto ao número, as obras de astrologia contemporânea


eram impressionantes. Uma avaliação aproximativa leva a
pensar que numa vintena de anos, entre 1920 e cerca de
1940, foram lançados no mercado pelo menos quinhentos
livros e publicações várias, quase todos antes de 1935. Em
cinco anos (de 1926 a 1931) não existiram menos de vinte
almanaques astrológicos, quase todos a cargo de profissio­
nais. Em 1928, uma meia dúzia de publicações mensais ou
bimestrais providenciava em alimentar os interesses daque­
les que se ocupavam de astrologia. A certa altura a «Astro­
logische Rundschau», que não foi certamente uma revista
popular - o seu conteúdo não seria compreensível para o
público médio -, teve uma circulação mensal paga de seis
mil exemplares22 •

O desenvolvimento do prestígio cultural e da rede de negócios


de astrologia comportou vivas contendas pelo controlo das suas
instituições. Vollrath, que tinha perdido o controlo do Serviço
astrológico central (o qual no culminar da sua influência era
presidido por Hubert Korsch), fundou a Associação Astrológica
(Maio de 1924) apoiada pela Casa editora teosófica, que «foi ·
relativamente insignificante até 1933, ano em que Vollrath e a sua

22
/bidem, págs. 43-44.

73
camarilha tentaram criar um movimento astrológico nacional-so­
cialista» 23 • Entretanto o Serviço Astrológico Central publicava o
mensal «Zénite» (de Janeiro de 1930 a Dezembro de 1938).
Precisamente o facto de «Zénite» - órgão oficial do Serviço
mas propriedade pessoal de Korsch - tender para monopolizar o
sector, determinou uma oposição que se exprimiu no congresso de
Erfurt (Junho de 1932) e que era dirigida por Reinhold Ebertin,
filho de Elsbeth. Os dissidentes fundaram a «Astrologische
Zentralverband» (Liga Astrológica Central) e a polémica entre os
vários grupos estava em pleno desenvolvimento no início de
1933, quando Hitler alcançou o poder.
Acompanharemos a evolução desta situação do Terceiro
Reich. Por enquanto é registada a inclusão da cultura astrológica
(entrelaçada com a política) no quadro da componente esotérica
da ideologia nazi. E é em especial acentuado que a corrente que
dela mais se aproxima é a que liga a astrologia com a teosofia24 •
No que diz respeito pessoalmente a Hitler, Langer conclui
com uma observação de grande relevo, ou seja, que «não falou
explicitamente de eventuais conexões» da sua pessoa com as
profecias astrológicas, porque «talvez tivesse a intuição de que,
no início da actividade política, tais exigências mais facilmente o
poderiam prejudicar que favorecer. Todavia não era contrário a
um uso político das profecias para chegar aos seus fins» 25 •
A reflexão pode ser aprofundada e fornece-nos uma chave
interpretativa do Mein Kampf, que permanece como uma das
fontes principais sobre a juventude do Führer, difícil de recons­
truir, porque, como sempre observa Langer, «a tarefa se compli­
cava particularmente por causa da escassez de notícias em tomo
dos anos formativos da sua vida, tanto mais que o ditador fizera
.o possível para apagar ou distorcer o pouco que dele se sabia» 26 •
Hoje não sabemos dele muito mais, não obstante a grande
massa de material à disposição, frequentemente usado sem ter em

23
Ibidem, pág. 42.
24
Acentua Howe citando um testemunho, Otto Kollner: «No congresso da Associa­
ção Astrológica Alemã, que teve lugar em Leipzig em 1927, Vollrth deu início aos
trabalhos com um discurso de abertura aborrecido, cheio dos habituais lugares comuns
teosóficos. Korsch, em breve irritado, de pé como um galo de combate, aconselhou
vivamente Vollrath a que entrasse nos assuntos da ordem do dia. O palavreado esotérico
depressa teve fim». (op. cit. , pág. 45).
25
Walter Langer, op. cit. , págs. 47-48.
26
Ibidem, pág. 29.

74
conta possíveis novas contribuições. O próprio Langer quase em
nada é utilizado, não obstante o excepcional nível do seu traba­
lho27. Aliás, mesmo falando dos astrólogos de Munique, não cita
os Ebertin, tal como não cita Kraft, tanto os primeiros como o
segundo bem conhecidos desde então pelo serviço secreto britâ­
nico (como se vê pelo livro de Howe) que, aliás segundo parece,
. não indicou os nomes ao serviço secreto americano para o qual
Lan�er trabalhava.
E portanto necessária uma posturainterpretativa clara. O pri­
meiro ponto a sublinhar é que a sua biografia contém a parte
fundamental do programa político de Hitler, que começou a
realizar desde a sua ascensão ao poder. É uma avaliação comum
a todos os historiadores que Hitler é subestimado - primeiro
pelos seus adversários internos e depois no plario internacional ­
porque se considerava que os objectivos que ele proclamava -
das afirmações racistas ao retomar de uma política externa de
grande potência - tinha fundamentalmente um carácter propa­
gandístico.
Por outros termos, o Mein Kampf é lido como um texto .
destinado a obter o consenso ou, quando muito, como o programa
máximo do nazismo, que perderia o vigor e se diiuiria - como
todos os programas máximos dos partidos - uma _ vez que
chegasse ao poder. Efectivamente Hitler na Chancelaria do Reich
demonstrou também um elevado grau de realismo na política
económica interna, combatendo o desemprego e elevando o nível
de vida, não só com o rearmamento, mas com o comportamento
quase keynesiano de Schacht; e na política externa, pedind_o a ·
revisão das cláusulas do tratado de Versalhes que colocavam a
Alemanha numa situação de inferioridade internacional e a priva­
vam de territórios certamente habitados por alemães (enquanto os
famosos 14 pontos do presidente americano Wilson, na base dos
quais o Reich de Guilherme pediu o armistício, sancionavam o
princípio da autodeterminação).
Mas o Hitler da realpolitik não permitia esquecer e não
estava em oposição com o autor do Mein Kampf, e Goebbels
sintetizou a situação mais claramente que qualquer historiador
futuro quando afirmou, antes de 1933, que se espantava por o

27
O seu texto por exemplo não figura na cuidada bibliografia de Klaus Hildebrand,
li Terzo Reich, Laterza, Roma-Bari 1983.

75
deixarem sentar-se naquele parlamento que queria destruir e
acentuou, depois de 1933, que se fosse francês e tivesse visto no
governo em Berlim o homem que tinha escrito o Mein Kampf
imediatamente teria optado pela guerra.
A alteração de uma linha estratégica indicada no livro - a
necessidade para a Alemanha de evitar uma futura guerra em duas
frentes - provocou uma forte incerteza no vértice nazi, como
mais adiante se verá. Mas, no conjunto, o Mein Kampf deve ser
aceite como indicação de um programa político e não como um
puro instrumento de propaganda. Se nunca se pode considerar que
contivesse não o programa máximo do nazismo - como pensa­
vam os seus concorrentes - mas sim o programa mínimo, o
máximo seria a construção de uma sociedade e de um homem
«novos», na base das premissas esotéricas até aqui descritas.
Esta interpretação leva-nos a compreender o que o livro diz e
também o que não diz. Em primeiro lugar Hitler procura certa­
mente «esconder e distorcer» alguns aspectos dos seus anos de
Linz, Viena e Munique. Ele quer apresentar-se como um estu­
dante pobre e um talento menosprezado, que enfrenta com fir­
meza as dificuldades derivantes desta situação. Na realidade as
reconstruções históricas sucessivas são fidedignas quando nos
apresentam, pelo contrário, uma pessoa no limite da marginaliza­
ção social e escassamente em situação de reagir numa situação
difícil.
Sem a guerra, a derrota e os eventos políticos sucessivos, a
complexa personalidade de Hitler teria sido desgastada pelas suas
próprias componentes autodestrutivas, que eram relevantes e que
reemergeriam no período das derrotas, de 1943 em diante. São
estes aspectos da personalidade que o livro esconde e distorce.
Mas, em segundo lugar, o livro é escrito também para
completar o processo de não explicitação do programa último
(esotérico) do nazismo, processo iniciado, como se verá no quinto
capítulo, quando um grupo de pessoas decide passar das seitas
«ocultas» ao partido potencialmente de massa. E neste ponto que
a observação de Langer pode ser aprofundada. Não só as «preten­
sões» de representar o cumprimento de profecias astrológicas,
mas todas aquelas que se referiam a uma missão cujas raízes se
colocavam na história e na cosmogonia esotéricas, não deviam ser
expostas publicamente, porque poderiam prejudicar o movi­
mento em vez de o favorecer.

76
É uma situação bem conhecida nas culturas e nos grupos
esotéricos. Existem diversos graus de iniciação ou diversos níveis
de informação. Os adeptos conhecem apenas uma parte da «gnose»28 •
Toda a verdade e os fins últimos são apreendidos à medida que
se sobe na escala hierárquica. Se aplicamos ao nazismo este
esquema, podem aparecer mais claros aspectos seus até aqui
pouco estudados.
A Alemanha dos primeiros anos vinte apresenta uma situação
política na qual o comportamento nacional-popular e nacional­
-revolucionário do nazismo tem boas possibilidades de adquirir
consenso. Nesta perspectiva é elaborado o programa do partido e
é escrito o Mein Kampf É preciso pôr de parte nas exposições
públicas as premissas esotéricas (aliás fonte de contraste a nível
de seita), para concentrar a atenção nos problemas imediatos e nas
soluções propostas pelo NSDAP.
Na segunda metade dos anos vinte a estabilização e a recupe­
ração económica reduzirão em muito a capacidade de agregação
do programa, ainda que o Mein Kampf obtenha um certo êxito
editorial. Porém, a crise de 1929 consentirá em retomar e concluir
a marcha iniciada em 1920, uma etapa fundamental da qual sairá
a conquista da Chancelaria (30 de Janeiro de 193 3). Daqui, como
se disse, se prosseguirá a aplicação do programa conhecido, por
actuação do qual se conquistou o poder. Mas os grandes objecti­
vos sugeridos pela história e cosmogonia esotéricas continuam
como um compromisso para realizar a longo prazo.
É ao longo desta linha de desenvolvimento que se coloca a
redacção do Mein Kampf, com as suas asserções, as suas distor­
ções, os seus cortes e os seus silêncios, no Inverno de 1923-24.
E depois é particularmente significativa a sua elaboração, para a
qual concorrem Hess (que começa por se refugiar em casa de
Haushofer, que o ajuda a expatriar-se para a Áustria, mas depois
se apresenta e será encarcerado com Hitler) e o próprio teórico da
geopolítica.
Há uma certa pessoa que concorre para a redacção, é um
ex-sacerdote católico, Bemhard Stempfle, já membro, como
Hess, da sociedade Thule. Na historiografia oficial surge assim:
«Na correcção do livro, bastante necessária, providencia um

28
Uso aqui a palavra «gnose» como geralmente é usada pela historiografia sobre
gnosticismo. Pelo seu aspecto não de iniciação e não hierárquico, mas de movimento
libertário e igualitário, remeto para o meu Decidente misterioso.

77
ex-religioso, um publicista anti-semita que, como recompensa
desta missão de confiança, é morto na sangrenta jornada de 30 de
Junho deé 1 934»29 • E: «Entre os assassinados de 30 de Junho estava
o pàdi Stempfle, que estivera entre os colaboradores do Mein
Kampf, mas se afastara depois do partido»30 •
Num texto da cultura tradicionalista é apresentado deste
modo: «Ariano, professor, consultor científico e colaborador do
Instituto Rehse de Munique. Partidário de velha data do movi­
mento nacional-popular, interessado pela defesa da identidade
racial alemã desde 1 9 1 8. Em 1 9 1 9 [desenvolveu acções] que
permitiram a entrada na Baviera do corpo Francês de EPP. Editor
de uma revista intitulada ' 'Projécteis iluminantes' ' em 1 9 1 8-
- 1 9 1 9. De 1 922 a 1 925 dirigiu o " Miesbacher Anzeiger" .»3 1
Estas magras notícias assinalam um facto e colocam um
problema. O facto é que são três as pessoas formadas na cultura
«ocultista» do nazismo (Hess, Haushofer, Stempfle) que colabo­
ram com Hitler na elaboração do Mein Kampf' elaboração, porque
Haushofer, Hess e o próprio Hitler conheciam bem o alemão para
escreverem um texto político. Não se trata portanto de corrigir um
trabalho de um aluno pouco prático na língua, mas de concorrer
para a elaboração do livro esotérico do movimento, no qual se
apresenta a concepção esotérica que possuem.
O problema consiste em saber por que motivo Bemhard
Stempfle foi morto a 30 de Junho de 1 934. Que tenha sido morto
«como recompensa desta missão de confiança» é uma afirmação
sarcástica que nada esclarece. E o facto também não é mencionado
por quem ajuiza positivamente a sua figura. Para propor uma
interpretação recorde-se que a 30 de Junho de 1 934 é liquidado o
vértice da ala populista do nazismo (Rõhm, chefe das SA; Gregor
Strasser, já afastado), personalidades que Hitler temia como
concorrentes (no círculo de von Papen e do ex-chanceler general
Schleicher), mas não o comunista que matara Horst Wessel, o
colaborador de Horbiger.
Não se tratou de uma chacina indiscriminada ( ainda que o
próprio Hitler admitisse que alguém fora morto por engano), mas
do assassínio seleccionado de homens considerados, a diferente
título, perigosos para o regime. Quantos? Uns oitenta segundo a

29
Karl D. Bracher, op. cit. , pág. 173.
30
Joachim Fest, op. cit. , pág. 566.
1
3 Apêndice do texto relativo à nota 5 , págs. 240-24 1.

78
versão oficial. De duzentos a quatrocentos, segundo a emigração
alemã. Hoje é considerado fidedigno o número de umas duas
centenas.
Por que razão, entre estas pessoas a matar por serem conside­
radas perigosas (e que não conspiravam, mas apenas faziam
exigências que Hitler não podia satisfazer, como a de Rõhm para
liquidar a Reichsweher e fazer das SA o núcleo de um «exército
popular»), está incluído Stempfle?
A única interpretação fidedigna é a de um oposição no interior
do círculo esotérico do nazismo. Isto pode estar ligado - como
se verá - à marginalização de Ludendorff; ao facto de em 193 3
se começar a falar do « Vrill» e das seitas secretas. Stempfle podia
ser perigoso porque sabia dos dois níveis (exotérico e esotérico)
em que podia ser lido o Mein Kampf (nesta altura vendido em
centenas de milhares de exemplares) e para cuja redacção tinha
contribuído. Provavelmente estava em oposição com os outros
membros da sociedade Thule, chegados agora à cimeira do
Estado, sobre as modalidades e os ritmos de actuação do programa
esotérico. É neste quadro que se pode colocar também o assas­
sínio, depois da conquista do poder por Hitler, do seu «mestre»
Eric Hanussen com a amante, a «vidente» Adrianne Bierdzynska.
Podem ser ligados o facto e o mistério numa explicação que
nos permite compreender o que seja o Mein Kampf, de como as
questões ligadas à formação juvenil de Hitler se entrelaçam com
a colaboração das doutrinas esotéricas, de que se descreveu o
percurso dos últimos decénios do século XIX até ao início do poder
nazi. É neste quadro que são colocadas a personalidade e o
processo formativo do Führer a partir dos anos de Viena e de
Munique.

79
4
HITLER EM VIENA E EM MUNIQUE

O estudo da personalidade e da formação cultural de Hitler,


como se viu, tornou-se difícil dada a escassez de fontes sobre os
primeiros trinta anos, e problemática a utilização de uma das
principais, para além dos testemunhos individuais: a autodescri­
ção do Mein Kampf, usada até 1945 para fins apologéticos e,
depois, com intenções obviamente críticas e negativas.
A cem anos de distância do nascimento, o papel de Hitler na
história está tão definido que não se vê que mais se lhe possa
acrescentar de novo. Pelo contrário, é útil tentar compreender se
no processo evolutivo da sua personalidade teria influido o
reemergir, na realidade cultural dos primeiros anos do século, de
orientação e tendências que pareciam desaparecidas haviam muito
da história da Europa. É demasiado difícil entrar no cerne de uma
discussão que faz do futuro Führer, por um lado, um desadaptado
social que excepcionais circunstâncias levam ao vértice do Estado
e, por outro, uma personalidade perversa na qual se concentra o
«negativo» da história alemã (o anti-semitismo, o nacionalismo,
a frustração por uma inferioridde que vai da Guerra dos Trinta
Anos à derrota de 19 18 e interrompida apenas pelo parênteses do
segundo Reich).
O objectivo específico desta investigação inspira-se na meto­
dologia do já citado historiador McGrath que, estudando o
fenómeno cultural da relação entre política e estética na Viena dos
últimos decénios do século XIX, recusa «invocar noções vagas
como as de 'espírito dos tempos' ou de 'ideias que andavam

81
no ar'. Estando pelo contrário convencido de que as ideias têm
lugar em certos intelectuais e em certos livros, em tempos e locais
determinados, procurei explicar desenvolvimentos paralelos atra­
vés de conexões documentáveis» 1 •
É um método que é preciso adoptar com a maior objectividde
possível para estudar os primeiros trinta anos da vida de Hitler: a
partir da sua relação com a política, para a qual é fundamental a
observação do seu maior biógrafo:

É importante o facto de Adolf Hitler, que viria a ser uma das


figuras políticas de maior importância do século, até aos
trinta anos de idade em nada se sentir atraído pela política.
Na mesma idade, Napoleão era já primeiro cônsul; Lenine,
após anos de deportação, estava no exílio; e Mussolini chefe
de redacção [na realidade, director, N.d.R.] do «Avanti! ».
Hitler, pelo contrário, não fora induzido a dar sequer um
passo decisivo relativamente às ideias que depressa o
empurrariam, de maneira irresistível, para a sua tentativa de
conquista do mundo; não entrara nas fileiras de partido
algum, de nenhuma das numerosas organizações da época
- com excepção da Liga Anti-semita Vienense - com a
finalidade de levar à prática as próprias ideias. O próprio
Hitler, a 7J de Novembro de 1939, no auge do seu poder fez,
perante os chefes militares-alemães, a espantosa afirmação
de que, em 19 19, se tomara um homem político apenas
depois de uma dura luta íntima: teria sido «a mais difícil das
suas decisões»... Ainda na fase culminante da guerra, Hitler
afirmou que teria preferido de longe vagabundear pela Itália
como «pintor desconhecido» e que fora empurrado para o
caminho, para ele essencialmente estranho, da política, pela
ameaça mortal que pesava sobre a sua raça2 •

Fest, depois de ter refutado outros historiadores, como Maser,


que acreditam pelo contrário, numa precoce politização de
Hitler3 , concluiu que «só motivos estritamente pessoais, e a suces­
siva constatação das suas persuasivas capacidades oratórias, o

1
William J. McGrath, Arte dionisiaca e política, cit., pág. 5.
2
Joachim Fest, Hitler, cit. , págs. 93-94.
3
Cfr. ibidem, pág. 100.

82
induziram a renunciar à reserva relativamente à carreira política» 4•
Noutro lado, o biógrafo acentua que «o próprio Hitler afirmou
mais tarde não ter tido ' 'nenhum antecessor' ', com excepção de
Richard Wagner, referindo-se expressamente não só ao músico e
ao dramaturgo, como ainda à esmagadora personalidade, ' 'a má­
xima figura de profeta que o povo alemão alguma vez teve' ' ;
exprimia a própria admiração pela coragem e energia com que
Wagner, "sem querer ser propriamente um político", tinha
influido na situação política» 5 •
Nos capítulos precedentes encontrámos personalidades da
história da filosofia ocultista que não foram principalmente
políticos, embora se tivessem empenhado também na política.
Um pintor como Rembrandt insere-se, através da apresentação
que dele fez o escritor «võlkisch» Julius Langebehn, juntamente
com o vidente Swedenborg, entre aqueles que exprimiram a
essência da alma ário-alemã6 • Se admitimos que esta literatura
tenha influido no jovem Hitler, toma-se compreensível como per­
sonalidades decisivas para o destino da raça graças a dotes
particulares, mas fora da política, tenham podido ser o o seu
modelo até à viragem de 1919.
A questão é complicada pelo facto de Hitler, embora afirmando
ter lido muitíssimo, e profundamente, no período vienense e de ter
tido como únicos amigos os livros7 , nunca citar obras e autores,
o que levou os seus críticos a considerarem que dispunha apenas
de uma cultura de principiante e superficial, feita de opúsculos de
propaganda. Na realidade, tendo por base muitas testemunhas

4
Ibidem, pág. 95.
5
Ibidem, pág. 53.
6
O livro de Langebehn Rembrandt come educatore é de 1890, o ano seguinte ao do
nascimento de Hitler. O sueco Swedenborg é um bem conhecido telepata e vidente do
século XVIII. Mosse observa: «A admiração por Swedenborg era também um reflexo da
influência que o sueco exercia em todo o movimento nacional-patriótico. Segundo
Swedenborg, todo o homem era um microcosmo contendo em si um mundo. O "pensador
cósmico' ' antropomorfizava o mundo. O pensamento do sueco continuou a exercer o
mesmo fascínio ao longo de todo o arco de desenvolvimento da ideologia nacional-pa­
triótica, com o complemento da teosofia de madame Blavatski. A existência dos fantasmas
era negada, mas resíduos das teorias ocultistas foram de qualquer modo integrados na
ideologia. Se a escolha caíra num pintor holandês para exemplificação da criatividade
alemã, era porque o próprio Langebehn era originário da Niederdeutschland, expressão
geográfica indicando a Alemanha do norte e os Países Baixos» (Le origini culturali dei
Terzo Reich, cit., págs. 64-66). Este entrelaçamento cultural torna mais compreensível a
ideia, entre mágica e artística, que Hitler tinha da política.
7
Joachim Fest, op. cit. , pág. 56.

83
coevas, de Speer às «conversas à mesa», o Führer aparece como
homem de discretas leituras.
As mesmas testemunhas são unânimes em apresentar-nos um
Hitler de dupla personalidade: o político calmo e ponderado e o
vidente possesso; o orador didáctico e explicativo que se trans­
forma num profeta irritado. Para aprofundar este aspecto de har­
monia com o nosso tema, é útil tomar em consideração quanto
escreveram intelectuais de direita para discutir a historiografia
que sublinhou este aspecto. Citamos exemplificativamente Rauti
e Sermonti na qualidade de historiógrafos.

Se Hitler tivesse sido realmente aquele meio louco delirante


cujo retrato nos foi traçado pela propaganda oficial dos
vencedores, não se explicaria como pôde fazer frente du­
rante quase seis anos à mais maciça coligação de forças,
de meios e de povos que a história alguma vez conheceu...
O facto é que Hitler perdeu e que portanto as suas iras, as
suas explosões de fúria, as suas próprias decisões surgem à
sombra cinzenta e degradante da derrota. E pouco basta para
juntar os toques sensacionalistas do seu olhar vítreo, da
baba na boca, do seu rolar pelos tapetes, como se descreveu
muitas vezes. Enquanto Churchill... não urra, quando muito
grita; não tem fúrias, bate apenas com os punhos na mesa;
não rasga os relatórios dos generais na cara deles, quando
muito censura-os. Se tivesse sido ele o derrotado, apareceria
incomensuravelmente ridículo até naquele seu fumar vinte
charutos por dia... enquanto médicos de fama certamente
fariam notar que a inacreditável quantidade de álcool por ele
ingurgitada quotidianamente era a menos adequada para lhe
assegurar lucidez mental. .. Para não falar do que certamente
se escreveria sobre as conexões entre as atitudes de Roose­
velt e as suas condições físicas... se Roosevelt tivesse
perdido, também se daria, acreditamos, alguma importân­
cia ao facto de ser membro de numerosas associações
secretas: as «Águias», os «Phi Beta Kapa», a «Ordem Real
de Elan», como ainda a maçónica «Holland Lodge» 8 •

8
Pino Rauti e Rutilio Sermonti, Storia de/fascismo, Vol. VI, Nel grande conflitto,
Centro editoriale nazionale, Roma 1978, págs. 1 5- 1 6.

84
Evola não exclui porém uma fenomenologia particular; e
escreve:

Uma investigação séria sobre ligações iniciáticas de Hitler


com sociedades secretas, não conduz muito longe. Quanto
a Hitler médium e à sua força magnética, são necessários
alguns esclarecimentos. Que o Führer devesse esta força a
práticas iniciáticas parece-nos uma fantasia; de outro modo
ter-se-ia de supor absurdamente algo de semelhante tam­
bém nas considerações de igual força psíquica sugestiva
possuída por outros chefes, de Mussolini, por exemplo, a
Napoleão. Quanto à qualidade de médium (que, diga-se a
talhe de foice, é oposta à de uma qualificação iniciática),
pode ser reconhecida, com certas reservas, a Hitler, tendo
em conta que, sob mais de um aspecto, é apresentado como
um possesso (é o aspecto que o distingue, por exemplo, de
Mussolini). Justamente, quando fanatizava as multidões,
dava a impressão de que uma outra força o transportava,
possuindo-o, como um médium, ainda que de um género
muito particular e excepcionalmente dotado. Quem ouviu
Hitler a falar a multidões delirantes não pôde deixar de ter
esta impressão. Dadas as reservas por nós expressas no que
diz respeito a supostos «Superiores desconhecidos», não é
lícito estabelecer a natureza de tal força suprapessoal9 •

Voltaremos no próximo capítulo à questão das sociedades


secretas, ainda que pareça óbvio à primeira vista que elas, na
situação inglesa e alemã já descrita, nada tenham em comum com
aquelas a que se referem Rauti e Sermonti. Mas a comparação com
Evola permite confirmar que a personalidade de Hitler tinha
aspectos singulares.
Se se refuta a tese evoliana de uma absoluta oposição entre os
chamados dotes mediúnicos e uma pretensa iniciação, é possível
colocar uma hipótese plausível: Hitler dispunha de algumas
qualidades perceptivas muito acentuadas; as leituras e a frequên­
cia dos grupos que foram citados (como o de Lanz von Liebenfels)
permitem-lhe aperfeiçoar estas características e principalmente

9
Julius Evola, «Hitler e as sociedades secretas» in «II Conciliatore», 1 5 de Outubro
de 1971.

85
convencem-no de que tem uma particular missão a desempenhar
em favor da população ário-alemã; considera poder desenvolvê­
-la como artista (embora neste campo não tivesse talento algum),
vivendo um papel wagneriano de grande, ainda que indirecta,
influência na política.
Com esta formação e mantendo estes vínculos elaborados nos
anos de Viena e de Munique, depois da participação na guerra
considera ter (e é orientado para assumir) um papel decisivamente
político, no qual as características pessoais poderão desenvolver­
-se. Vejamos os pontos de apoio desta interpretação.
No Despertar dos Mágicos (que Evola se limita a definir
como «rico em divagações») 1 0 , enquanto outros estudiosos de
direita o consideram pouco fidedigno, escreve-se:

Hitler nasceu em Braunau, cidade ligada a uma singular


tradição: é um viveiro de mediuns. É a cidade natal de Willy
e Rudi Schneider, cujas experiências psíquicas foram con­
sideradas sensacionais há uns trinta anos. Hitler teve a
mesma ama de Willy Schneider. Um dos médiuns mais
conhecidos é a senhora Stokhammes que, em 1920, casou
em Viena com o príncipe Joaquim da Prússia. Um espíritista
de Munique, o barão Schrenk-Notzing, manda vir de Brau­
nau os seus súbditos, um dos quais é precisamente primo de
Hitler 1 1 •

A «tradição» de Braunau seria verificada atentamente. Tenha­


mos porém presente que a discussão sobre médiuns era particular­
mente viva durante a adolescência e a juventude de Hitler.
Discutia-se no âmbito da cultura «ocultista» da qual se falou nos
dois primeiros capítulos e que era uma componente do movi­
mento nacional-popular («võlkisch»). Nesta atmosfera (não ideias
no ar, mas grupos específicos, contactos, leituras) uma persona­
lidade como a de Hitler podia considerar-se dotada de modo espe­
cial e «diverso» em relação às convenções sociais (que o margi­
nalizavam como estudante pobre e «artista» sem perspectivas).
Daqui a plausível tendência para cultivar estes dotes em
contacto com grupos (de Lanz em 1909 a von Sebottendorff e

10
Ibidem.
11
Louis Pauwels e Jacques Bergier, li mattino dei maghi, cit. , págs. 353-354.

86
Hanussen no pós-guerra), nos quais transes verdadeiros ou simu­
lados ou por autoconvicção e presunções iniciáticas se entrelaça­
vam diversamente daquilo que permite supor a classificação de
Evola, por ele considerada rigorosa como estudioso da tradição
iniciática.
Neste ponto a influência de Wagner sobre o jovem Hitler pode
ser verificada em dois aspectos específicos: o papel de persona­
gens excepcionais destinadas a um destino heróico e trágico e o
vegetarianismo. Quanto ao primeiro aspecto é conhecida a perma­
nente admiração de Hitler por uma obra menor, Rienzi. A perso­
nagem é o protagonista de um romance do já citado Bulwer
Lytton, narrador do paranormal, que entusiasma o muito jovem
Hitler ainda em Linz:

Kubizsk [August, filho de um pintor, íntimo amigo de


Hitler adolescente, N.d.R. ] descreveu o êxtase de Hitler
quando ambos assitiram a uma representação: comovido
pelo destino do tribuno do povo e rebelde que cai tragica­
mente vítima da incompreensão do mundo circundante,
Hitler teria levado o amigo a Freinberg, a uma colina nas
proximidades de Linz onde, dominando a cidade no escuro,
teria começado a falar: «Como um rio saltando para fora dos
diques destruídos, as palavras jorravam dele e, numa série:
de imagens grandiosas, irresistíveis, expôs-me o seu futuro
e o do seu povo». Quando, trinta anos passados, os dois
amigos se reencontraram em Bayreuth, Hitler afirmou:
«Tudo começou naquele momento» 1 2 •

Temos de ser cautelosos perante estes estereótipos, semelhan­


tes aos dos jovens burgueses franceses que, admirando Paris vista
de um ponto alto prometem conquistá-la ou os dos jovens
revolucionários russos que, admirando Moscovo da colina dos
Pardais (agora Lenine), se comprometiam a regenerar a sua terra.
Mas o episódio pode ser valorizado de se pensar que para o muito
jovem Hitler o Rienzi era apenas o tribuno da música de Wagner;
depois; no pós-guerra, encontrando os militantes da sociedade do
Vril, conhece a obra de Bulwer Lytton, que ao grupo sugeriu o
nome; descobriu Rienzi entre as suas personagens que para si

12
Joachim Fest, op. cit. , pág. 28.

87
construiram um grande e trágico destino e pode voltar a recordar
a visita à noite a Freinberg como o pré-anúncio da estrada a seguir.
Neste pré-anúncio é preciso ter fé, desenvolvendo os dotes
pessoais com meios excepcionais. Viu-se que neste período um
dos seus mestres é o astrólogo Hanussen.
Cresceu assim a dupla personalidade: ao lado do astuto
político realista, o fanático autoconvencendo-se de ter uma mis­
são e um destino inteiramente particulares, garantidos quer pelos
pré--anúncios da juventude (entre frustração e forte sensibili­
dade), quer por um processo de potenciação que passa do grupo
de Linz aos do primeiro pós-guerra. Dotes de tipo mediúnico se
ligam àquilo que os tradicionalistas podem também definir como
iniciação, com a mediação profética personalidade de Wagner.
Voltamos a encontrá-la também na questão do vegetaria­
nismo. Ele é a expressão daquele amor pelos animais que encontra
uma outra manifestação, na Alemanha do século XIX, na promo­
ção de iniciativas contra a vivissecção, às quais Wagner dá a sua
entusiástica adesão 1 3 • Fest sublinha, ao propor analogias entre
Hitler e o poeta de Parsifal, «que o vegetarianismo, em Wagner
limitado a ser uma insignificante quimera, deve levar a humani­
dade a se redimir mediante o uso de alimentos exclusivos vege­
tais» 1 4 • Também Hitler se toma cada vez mais resolutamente
vegetariano à medida que cresce o seu poder e se identifica com
o seu papel, tal como recolherá a outra herança wagneriana da
bondade para com os animais. Eis a sua provável origem:

Friedrich Schlegel supunha que deveria formar-se no norte


da Índia um povo novo que, empurrado «por qualquer coisa
de mais elevado que o incentivo da necessidade», se dirigi­
ria para oeste. As nações não são mais que colónias india­
nas. Perguntava-se em seguida se estas colónias teriam sido
constituídas por guerreiros ou por sacerdotes e inclinava-se
para a segunda hipótese. Mas qual podia ter sido a mola que
pôs em movimento sacerdotes e guerreiros, quais as causas
«desta prodigiosa revolução e desta perturbação da cons­
ciência humana»? Como resposta ousava uma hipótese

13
Cfr. sobre estes aspectos da cultura alemã que reapareceram no movimento
«verde» um século depois, Dolf Sternberg, Panorama dei XIX seco/o , II Mulino, Bolonha
1 985 , págs. 102 e ss.
14
Joachim Fest, op . cit. , pág. 54.

88
ainda mais ousada, a de um crime original que teria podido
transformar os pacíficos vegetarianos da lndia em carnívoros, .
dali em diante empurrados por algum obscuro instinto a·
afastarem-se: «Esta perturbação desconhecida de que falo
não teria acossado o homem em fuga, como se conta a,
propósito do primeiro homicida que o Senhor teria marcado
com um sinal sangrento e faria precipitar até ao extremo
limite da terra?». Esta antropodiceia vegetariana será reto­
mada e desenvolvida por Richard Wagner, liberta de qual­
quer referência ao mito bíblico 1 5 •

Esta hipótese, colocada por Schlegel em Ensaio sobre a


Língua e a Sabedoria dos Indianos ( 1808), precede toda a
literatura sobre um antigo «pecado» que encontrava expressão
também em De Maistre 1 6 e que seria interpretada, na história
esotérica, como um pecado contra a harmonia da natureza,
perpetrado por maus magos inebriados com o poder e causa da
destruição de Atlântida, por conflitos expressos nos símbolos de
Agharti e de Sham bha lah. Os germanos têm de redescobrir a
sabedoria que permite redimir aquela antiga culpa.
Assim o vegetarianismo de Wagner e ligação com a antiga
tradição indo-ariana (ou indo-germânica) fundem-se, na visão de
Hitler, num processo de formação pessoal que deve andar a par e
passo com o da regeneração colectiva do povo alemão. As práticas
vegetarianas como as sexuais são uma modalidade deste processo
de autoformação e são diferentemente interpretados por vários
grupos da cultura ocultista e iniciática com os quais Hitler está em
contacto. Até aos trinta anos, o futuro Führer forma-se nesta visão
e com estas relações; e isto explica a sua posição em relação à
política.
Disto deu uma explicação em termos aceitáveis, como Fest
também acentua:

Se o partido cristão-social, juntamente com a sua sagaz


capacidade de dominar as grandes massas, tivesse tido
também uma exacta concepção do significado do problema

15
Léon Poliakov, II mito ariano, cit. , pág. 208.
16
Cfr. Le serate di San Pietroburgo, edição fmacesa de 1924, citado por Evola, in
Rivolta contro il mondo moderno, cit. pág. 227; o escritor saboiano fala de «consequências
de alguma degradação ou prevaricação que fere a substância profunda» de antigos povos.

89
racial, como fora feita justamente pelo movimento panger­
mânico (... ) ou se o movimento pangermânicO tivesse
acrescentado, à sua exacta noção do problema hebraico e do
significado do pensamento nacional, a habilidade prática do
partido cristão-social, ter-se-ia tomado numa organização
política que já na época teria podido condicionar com
sucesso o destino alemão 1 7 •

Fest descreve esta posição, expressa no Mein Kampf, como «o


pretexto de que se serviu Hitler para justificar a sua falhada adesão
a um ou outro dos referidos partidos» 1 8 • Seja como for, é uma
justificação compreensível no puro plano da lógica política e de
partido. De resto o próprio Hitler, tendo precisado que o seu
compromisso directamente político não é anterior a 1918, podia
considerar suficiente a motivação indicada. Mas o ponto-chave
continua a ser a sua formação e as suas aspirações, nos termos
descritos.
Quer Fest quer Bracher ironizam quanto ao «granítico funda­
mento» 1 9 do seu pensamento, que Hitler afirma construído nos
anos vienenses, e quanto a estas afirmações: «Todo o tempo que
o trabalho me deixava livre, o dedicava incessantemente ao
estudo. Em poucos anos criei assim as bases do meu saber das
quais me sirvo ainda hoje [anos vinte, N.d.R.]. Neste período
formaram-se em mim uma imagem e uma concepção do mundo,
que se tomaram o fundamento granítico da minha acção. Tive de
acrescentar bem pouco àquilo que então aprendi e nada tive de
mudar» 20 •
Bracher comenta ironicamente: «Quem alguma vez poderia
afirmar o mesmo das suas impressões dos vinte anos! » e observa
que «Hitler nunca dá uma indicação precisa das suas leituras; os
seus 'livros' são, como ele próprio indicou falando da génese do
seu anti-semitismo, opúsculos polémicos que comprava ' 'por
alguns centavos"» 2 1 • Já se disse que, na realidade, livros, Hitler
não leu muitos. Segundo a presente interpretação, ele cita leituras
de história e de cosmogonia esotéricas que não correspondem à

17
Joachim Fest, op. cit. , págs. 48-49. A citação é do Mein Kampf
18
Ibidem, pág. 49.
19
Fest intitula assim o II capítulo do seu Livro Primeiro, op. cit. , pág. 4 1 .
20
Karl D. Bracher, La dittatura tedesca, cit. , pág. 83. A citação é do Mein Kampf
21
Ibidem, pág. 83.

90
imagem que quer dar da sua formação no Mein Kampf, no qual as
subjacentes convicções esotéricas constituem o fundamento,
realmente «granítico», do seu programa político, cuja exposição
é a finalidade do livro.
O próprio Bracher forneceu uma preciosa indicação, como a
de Fest citada no início do capítulo e, seguindo a mesma atitude,
escreve:

Hitler tentou sempre distanciar-se com zombaria dos


«sonâmbulos volkisch e dos pregadores errantes». Esta
diferença na organização da agitação foi clara desde o
início, os nacionais-socialistas queriam ser efectivamente
não uma seita doutrinária sem base de massa e força política,
mas um partido de vastas proporções. Hitler está em con­
tacto com o DAP (Deutsch Arbeiterpartei) como homem de
confiança dos círculos militares de Munique. Foi uma feliz
coincidência. Antes que, em Março de 1920, a obrigatória
licença militar o conduzisse novamente à vida civil, abria­
-se-lhe um novo vasto campo para fazer valer as qualidades
de agitador que ia descobrindo em si próprio. É interessante
notar que Hitler nunca fizera parte de uma das tais muitas
seitas volkisch. Ele formou portanto o seu pensamento e os
seus instrumentos propagandísticos para a sua ascensão
política não nos círculos dos teóricos do racismo, mas nas
concretas circunstâncias locais e nacionais e principalmente
na luta contra Versalhes22 •

A «feliz coincidência» dá-se quando Hitler, «a 12 de Setem­


bro de 1919 estava a assistir a uma das reuniões semanais do DAP;
entusiasmado por um discurso de Gottfried Feder contra o capi­
talismo, participou animadamente na discussão. Um pouco mais
tarde entrou no partido como propagandista» 23 •
Trata-se de uma versão sobre a qual a historiografia pós-nazi
converge com a apologia do período hitleriano, ao apresentar a
atitude verificada em 1928-1919 como uma viragem da recusa da
política ao compromisso com ela, que os apologistas apresentam
como resposta ao apelo para uma missão e os críticos de aprovei-

22 Ibidem, págs. 1 10- 1 1 1.


3
2 Ibidem, pág. 1 1 1.

91
tamento oportunista das circunstâncias. Mas na realidade - se é
verdade que a contribuição específica de Hitler é a acção para
transformar as seitas dilaceradas por contendas no grande partido
de massa - os antecedentes são diferentes. Com toda a probabi­
lidade remontam ao encontro com Hess durante a guerra.
É também interessante notar a expressão «sonâmbulo», que
no contexto citado Hitler usa em sentido negativo, mas que usará
de outro modo num momento decisivo da sua iniciativa política,
a decisão de remilitarizar a Renânia em Março de 1936.
O livro de Langer começa assim:

No tempo da reocupação da Renânia, Hitler usou uma


extraoridnária metáfora para descrever o seu modo de
proceder. Disse: «Sigo o meu caminho com a precisão e a
segurança de um sonâmbulo». Até naquele tempo, a fras6,
feriu a opinião pública mundial como uma afirmação pelo
menos insólita, da parte do chefe indiscutível de sessenta e
seis milhões de pessoas e a meio de uma crise internacional.
Hitler tencionava assim, de certo modo, tranquilizar aqueles
seus sequazes mais polémicos que alimentavam alguma
dúvida sobre a sensatez da sua conduta. Em todo o caso,
surge como uma autêntica confissão, e se os seus adeptos
duvidosos tivessem realmente entendido o significado e as
implicações, a sua dúvida poderia alimentar-se com moti­
vações bem mais inquietantes do que as afloradas pela sua
decisão de reocupar o Reno. De facto, o caminho deste
sonâmbulo levou-o a andar por muitas estradas que nunca
ninguém tinha percorrido, que o levaram infalivelmente ao
cume do sucesso e lhe conferiram um poder nunca antes
alcançado. E continuou a atraí-lo por aquela via até hoje
[Outono de 1943, N.d.R. ] se encontrar à beira do báratro24 •

Portanto Hitler se não vive como um «sonâmbulo» volkisch


(os militantes de pequenas seitas frequentemente em luta), é
porque construiu um partido e conquistou o poder. Mas do
sonâmbulo tem a segurança e a precisão de quem caminha
segundo um itinerário que lhe foi indicado por particulares dotes
de percepção. Esta primeira parte do livro de Langer intitula-se

24
Walter Langer, Psicana/isi di Hitler, cit. , pág. 4 1.

92
«Hitler: como crê ser» 25 e a expressão é a chave para compreender
a personalidade que se formou nos anos de Viena e de Munique.
As leituras e os pequenos grupos (além da Liga Anti-semita à qual
aderiu em 1908) contribuiram para a formação de uma persona­
lidade que conhecerá um novo desenvolvimento na experiência
de guerra.
Como é sabido, quando do deflagrar da guerra, Hitler alista­
-se como voluntário e é colocado como soldado raso no 16.º regi­
mento de infantaria bávara. Neste regimento um outro voluntário
tem o posto de tenente: Rudolf Hess, apenas com vinte anos des­
tacado do 1.º regimento. Um outro traço comum entre a historio­
grafia nazi e a do pós-guerra, além de acentuar o carácter de
excepção do compromisso de Hitler na política (a derrota de
1918), é o de pôr em evidência, no mesmo período do pós-guerra,
o encontro em Munique entre o futuro Führer e o seu futuro lugar­
-tenente: não se conheceriam durante a guerra, embora combates­
sem no mesmo regimento.
Pode tomar-se em consideração uma realidade diferente. Hess_
e Hitler ter-se-iam conhecido na frente. Estabeleceu-se uma
ligação que aproximou Hitler de associações como a «Germanen
Orden» e depois a sociedade Thule, à qual Hess pertencerá. Viu­
-se já quais eram as convicções do futuro lugar-tenente (Vertreter,
que literalmente pode ser traduzido por representante pessoal) de
Hitler em matéria de astrologia e de atenção pelo paranormal, para
o qual também Hitler tinha especialmente predisposição.
É legítimo supor que estas tendências se acentuassem durante
um conflito cuja característica, posta recentemente em evidência
por um historiador da literatura de grande valor, Paul Fussell -
é também uma recuperação de fantasias e superstições, que ele
recolhe no IV capítulo com o título «Mito, ritual e 'romance'». Eis
duas situações muito exemplificativas:

Um.a das lendas mais antigas e famosas tem uma paterni­


dade conhecida: os anjos de Mons que, dizia-se, tinham
aparecido no céu durante a retirada britânica de Mons, em
Agosto de 1914 e que a teriam protegido, são uma lenda que
um breve conto desenvolve, em que aliás não se fala

,
25
As outras partes são: II «Como o conhece o povo alemão»; III «Coqio o conhecem
os seus camaradas; IV «Como se conhece a si mesmo»; V «Análise e reconstrução
piicológica>>; VI «O seu provável comportamento futuro».

93
efectivamente de anjos. A 29 de Setembro de 19 14, Arthur
Machen publicou no «Evening News» uma história mani­
festamente inventada, The Bowmen: os fantasmas dos ar­
cheiros ingleses mortos em Azincourt tinham vindo em
socorro dos seus compatriotas em dificuldades lançando
setas que tinham morto os alemães, sem deixarem feridas
visíveis. Machen descreve estes archeiros como «uma longa
fila de sombras circundadas por um halo luminoso». Foi
justamente o halo a origem de tudo: ao cabo de uma semana
os archeiros criados por Machen tinham-se transformado
em autênticos anjos, ou seja, o que fora uma invenção
literária passa a ser um facto real. O autor estava angustiado
e embaraçado com esta deformação; foi-lhe, porém, garan­
tido, especialmente por parte do clero, que se enganava: os
anjos - ou anjos-archeiros segundo algumas versões -
eram reais e tinham aparecido no céu nas proximidades de
Mons. Exprimir dúvidas sobre isto é antipatriótico26•

Sabemos que Machen estava filiado na Golden Dawn. Amava


o sobrenatural e, logo, estava menos angustiado e embaraçado do
que Fussell supõe, tanto mais que, falando mais tarde do aconte­
cimento e confirmando-lhe a origem pela sua fantasia, revelou ter
recebido cartas de soldados que lhe confirmavam ter visto os
archeiros. É impossível dizer se Hess ou outros, com a sua
formação cultural, souberam de Machen e atribuiram um parti­
cular significado esotérico à sua invenção. Mas nas trincheiras os
mitos tomam-se ritos.
Nesta «dominante atmosfera» se colocam episódios nos quais
se cruzam previdência e sinais do destino e um deles é objecto de
uma descrição por parte de Hitler:

Estava a acabar o jantar na trincheira, juntamente com


outros camaradas. De repente, pareceu-me ouvir uma voz
que me dizia: «Levanta-te e afasta-te daqui». Era tão clara
e insistente que obedeci automaticamente, como a uma
ordem militar. Pus-me subitamente de pé e caminhei uns
vinte metros ao longo da trincheira levando comigo a
marmita com o rancho. Neste ponto sentei-me e recomecei

26
Paul Fussell, La grande guerra e la memoria moderna, II Mulino, Bolonha 1984,
pág. 147.

94
a comer, pois que a minha mente estava de novo em paz.
Tinha acabado de me acomodar quando um relâmpago e
uma ensurdecedora explosão vieram da parte da trincheira
que eu tinha deixado havia pouco. Uma granada perdida
tinha despedaçado o grupo de soldados com os quais estava
a jantar e nenhum sobrevivera27 •
Também neste caso, é necessário defendermo-nos dos este­
reótipos. Milhares de combatentes das trincheiras descreveram
epISÓdios semelhantes, uma voz ou um pressentimento que lhes
salvara a vida, afastando-os de um local de morte. Mas o episódio
agora narrado é enquadrado na situação que Fussell descreveu
melhor que qualquer outro (o reemergir de uma antiga cultura da
«superstição»), para compreender a personalidade de Hitler, certo
de que lhe estivesse reservado um grande futuro, para o qual leis
misteriosas o protegiam (no futuro a sua convicção será reforçada
pelo facto de conseguir escapar a vários atentados); no fortaleci­
mento desta convicção em contacto antes da guerra com os grupos
que tínhamos citado e provavelmente com Rudolf Hess durante a
própria guerra está uma chave do seu papel futuro.
Assim é possível partilhar a opinião de Langer de que «a fé no
destino e na missão aflorou plenamente durante a Primeira Guerra
Mundial, a partir da qual teve um papel predominante na sua
condução. Mende (um seu camarada) referiu por exemplo: ' ' A este
propósito, vem à mente uma estranha profecia: pouco antes do
Natal de 19 15 , Hitler afirmou que, a partir de certo momento,
ouviremos falar muito dele. Devíamos apenas esperar pela che­
gada desse momento ' ' » 28 •
Todas as fontes concordam em descrever um Hitler fechado
e pouco comunicativo durante todo o conflito. Aquela afirmação
foi feita portanto num momento particular. E o momento não se
referia ao conflito, tendo em conta uma singular testemunha.

No processo de Nuremberga, o oficial que por longos anos


cumpriu as funções de ajudante de campo do comandante de
regimento, testemunhou que fora feita a proposta de promo-

27
Walter Langer, op. cit. , pág. 47. A narrativa de Hitler está em George Ward Price,
I Know These Dictators, Londres 1 937, pág. 40.
28 Walter Langer, op. cit., pág. 47. A recordação de Hans Mende está in Adolf Hitler
im Felde, Diessen 1 93 1 , pág. 1 72.

95 ,..
ver Hitler a sargento, mas que renunciara a fazê-lo «porque
nele não se tinham encontrado os requeridos dotes de
comando»29•

Hitler permaneceu portanto como cabo e poderia fazer-se


ironia quanto aos critérios de apreciação no exército do Kaiser,
que não permitiam descobrir dotes de comando num homem que
demonstraria possuí-los em extremo grau. Mas provavelmente a
avaliação era exacta no momento em que foi formulada. Os dotes
de Hitler podiam emergir num grupo especial, entre indivíduos
caracterizados pelo seu próprio processo de formação, pelas
próprias leituras, pelas próprias convicções de um antigo poder
que vinham descobrindo. Foi neste grupo - entre a Thule
Gesellschaft e a fundação do partido - que Hitler emergiria, com
o seu dinamismo, depois da derrota alemã.
Assim se pode explicar um aparente mistério, que fascina
ainda os historiadores e que, no início dos anos setenta, Langer
exprime com clareza referindo-se a uma situação que o impressio­
nara trinta anos antes e que perdurava:

Evidentemente que Hitler era qualquer coisa mais que o


pintor louco caricaturado nos desenhos humorísticos popu­
lares. Desde os vinte e cinco anos, mostrara muitas das
características que nós hoje associamos aos hippJgs dos
anos sessenta. Era um inconcludente, parecia-ter falta de
tódõ-o ·sentido de identidade, parecia privado de uma linha
qualquer de conduta ou ambição, limitava-se a viver na
porcaria e na miséria, trabalhava só quando entendia e,
portanto, esporadicamente; passava a maior parte do tempo
embalando o sonho romântico de ser um grande artista, era
anticonformista e violento em palavras contra as deficiên­
cias da sociedade, mas fraco nas acções concretas . Até o seu
serviço militar era testemunho de uma certa incompetência.
Depois de ter passado quatro anos num regimento que
sofrera graves perdas nunca fora promovido a um posto
acima de cabo. Todavia, este incapaz, aparentemente baço
e desleixado, demonstrou-se capaz, no espaço relativa-

29
Joachim Fest, op. cit. , pág. 75.

96
mente breve de alguns anos, de percorrer o seu caminho até
aos mais altos cargos políticos . . . Como era possível deslin­
dar, num breve período de tempo, todos os enigmas psi­
cológicos subjacentes a uma tal transformação? 3º

O breve período de tempo referia-se ao citado cargo que o


serviço secreto dos Estados Unidos confiara a Langer. Mas a
quarenta anos de distância e na presença de uma literatura imensa,
não se pode dizer que os «enigmas psicológicos» tenham sido
«deslindados». Mas se, para além da psicologia, se querem
verificar influências culturais, a situação pode ser mais clara; a
partir da outra afirmação de Langer de que «o ditador é homem de
vastas leituras nos campos mais díspares do saber» 3 1 , também se
considera que «estávamos a lidar, muito provavelmente, com um
psicopatª ne!Jt:Qtico» 32 •
Hitler tinha lido realmente muito nos anos de Viena e de
Munique. Lia principalmente «doutrinas secretas». Inscrito na
Liga Anti-semita em 1908, em contacto com Lanz von Liebenfels
em 1909, frequenta provavelmente as suas reuniões mais ou
menos iniciáticas, se se pretende dar a esta palavra um significa­
tivo genérico e não o específico de «cultores da tradição». Alguns
dos seus dotes perceptivos, que também podem ser definidos
como mediúnicos, fortalecem-se através destes contactos. São
assim explicáveis as versões de Pauwels e Bergier e de Evola.
A atmosfera da guerra, com o seu emergir de superstições e de
mitos, e a relação com Hess, desenvolvem uma personalidade que
é caracterizada por atitudes perceptivas e por uma formação cul­
tural que convergem na convicção de um destino rico de perspec­
tivas: primeiro como artista e profeta do germanismo na esteira de
Rembrandt e de Wagner.
Esta convicção transferiu-se a nível político por altura da
derrota da Alemanha, de que Hitler tem conhecimento no hospital
de Pasewalk, na Pomerânia, onde se recompusera por ter ficado
cego com os gases durante a batalha de Ypres. O significado
simbólico desta cegueira acompanhada pela iluminação (a res-

30
Walter Langer, op. cit., págs. 20-2 1.
31
Ibidem, pág. 45 .
32
Ibidem, pág. 29.

97
peito do seu futuro destino de dirigente político) foi objecto de
muitas análises nas biografias de Hitler33 • Para lá deste simbo­
lismo, quando regressa a Munique com o seu regimento, esperan­
do ser desmobilizado, sabe-se que o futuro Führer se toma homem
de confiança de oficiais (Rõhm, Mayr) que o acham apto para o
proselitismo entre soldados frustrados e influenciados pela propa­
ganda comunista.
É nesta situação que habitualmente se estabelece o início da
carreira política de Hitler: homem de confiança dos militares,
primeiro entre os soldados e, depois, em contacto com os grupos
de direita. A relação está invertida: Hitler estava já em contacto
com estes grupos, em Munique, antes da guerra e depois, prova­
velmente, por intermédio de Hess nas licenças durante o conflito.
Recebe dos oficiais a tarefa de estabelecer contactos que já tinha.
E participa - com os herdeiros e continuadores da tradição
«ocultista» que foi descrita - na construção de um novo instru­
mento político, aquele que será o partido nacional-socialista.
Hitler não saíra, portanto, do nada, no Inverno 1918-1919
para se tomar, um ano depois, numa personagem da cena política
bávara. Pelo contrário retomou contactos que persistiam e, com
trinta anos, considerou que a política era um campo idóneo para
o uso das ideias e das qualidades de que acreditava dispor34 •

33
Langer atribuiu-lhe esta frase: «Quando me vi de cama, na imobilidade, atingiu­
-me a certeza de que libertarei a Alemanha e a farei grande. Soube imediatamente que isto
se realizaria» (op. cit. , pág. 47). Mas a fonte é um tànto incerta: uma reconstrução do
«Pariser Tages Zeitung» de 23 de Janeiro de 1940.
34
Fest teve a intuição do aspectõ particular, por vezes definido com termos referidos
à «magia», da personalidade e da carreira de Hitler. Mas apegou-se apenas à elaboração
tradicional. Eis uma série de indicativas citações: «Chamar a atenção unicamente para as
componentes mágicas, conspirativas ou violentas da ascensão ao poder de Hitler, revela
não só um insuficiente conhecimento dos eventos, mas também que quem o faz continua
a manter-se fiel à concepção do chefe do NSDAP como simples arauto ou instrumento»
(pág. 324 ). «Charlatães, astrólogos, videntes, cartomantes e espíritas conheceriam o seu
grande momento» [ depois da crise de 1929, N.d.R. ] . «O surgir de estados de ânimo pseudo­
-religiosos fazia voltar o olhar para manifestações supostamente tocadas pelo sobrenatu­
ral. Com um instinto mais certo que qualquer outro alemão, Hitler soube aproveitar esta
situação» (pág. 332). «Numerosos observadores .coe.v.os• tentaram colher o penetrante e
verdadeiramente tangível fluido que vinha dos comícios nazis, recorrendo a um voca­
bulário da " Noite dasValqufrias " » (pág. 392). «Quando, depois de um discurso feito em
Gõrli, descobriu o efeito mágico produzido pela vista do avião iluminado, não deixou de
recorrer sempre mais vezes ao método, meio para provocar aquele estado de ânimo de

98
irresistível necessidade de um chefe» (pág. 394 ). «O desejo de salvação, a pessoal
consciência de uma força de conversão carismática, a fé na própria eleição, se combinaram
numa mescla de poder alquímico» (pág. 40 1 ). «Como "milagre" , como "evento fabu­
loso' ' assim é celebrada com grandes clamores a chamada conquista do poder e os
especialistas de propaganda do regime hitleriano recorreram amplamente a imagens
retiradas do léxico da magia» (pág. 440). «Goebbels escrevia: ' ' Anteporei a todo o dis­
curso de Führer uma introdução mediante a qual tentarei comunicar aos radio-ouvintes a
mágica atmosfera das nossas manifestações' ' » (pág. 487). «A segunda ' 'palavra mágica' '
criada por Hitler (a primeira era ' 'revolução legal. ' ' ) [foi] a do ' 'renascimento nacional' ' »
(pág. 497). «As místicas súplicas, a magia litúrgica do toque a reunir, não deixarão de
produzir o efeito esperado» (pág. 5 19). «Na situação da Alemanha, a máxima primitiva
mas bastante eficaz de Hitler ' 'antes mal que inteiramente nada' ' , revelou-se uma espécie
de magia» (pág. 526). «O Führer raciocinava segundo dimens§�s . mitológicas. Hitler
lamentara-se de que RosefíDéf�sse criáõó;l>árã-ã' suâ ó6rà 'mais i�p�rtarite� um título
ambíguo. O nacional-socialismo não contrapunha de facto o mito do século XX ao
espírito, mas sim a fé e o saber do século XX ao mito do XIX. Todavia Hitler estava muito
mais próximo do filósofo do partido que quanto se possa parecer» (pág. 652, num capítulo
de.tiiüTôsígnificativo•«RefrâtÕdé'Ümãn�o-pessoa», quer dizer o,próprio Hitler, pág. 629).
«Qual era a fraqueza dos oficiais é revelada pelo facto de Halder, durante o Outono de
1939, perguntar ao secretário de Estado von Weizsacker se não considerava possível
influir em Hitler mediante um adivinho mercenário» [pág. 774; para as relações entre o
filho de von Weizsacker e o esoterismo cfr. o capítulo X, N.d.R.]. «As concepções [para
os territórios orientais ocupados] davam plena evidência à particular contradicção interna
do nacional-socialismo, à fusão de consistência intelectual e irracionalidade, de glacial
frieza e de crenças mágicas» (pág. 842). «Hitler fazia suas insensatas teorias como as da
queda dos céus, da implosão da lua e tomava a prometer proibir o tabaco e a impor o
v·egetarlan1smo no grande futuro» (pág. 843). «A carreira de H itler é caracterizada por tão
abruptas fracturas, que frequentemente é difícil individualizar as ligações entre as várias
fases. Não existe apenas o corte entre os primeiros trinta anos por um lado e, por outro, a
metade prática da sua existência que surge como que investida por uma repentina descarga
eléctrica; também o período seguinte surge fragmentado em três fases nitidamente
distintas. No início situam-se cerca de dez anos de preparação. Seguem-se os dez anos em
que Hitler se toma o eixo da época. Sensível aos aspectos lendários desta fase e aos
messiânicos, Hitler teve de afirmar que a fase em questão não ' �fora ªpenas obra humana' '.
Por fim mais seis anos grotescos de erros sobre erros, de é-rimes, ele actos convulsos»
(págs. 629-630). «Numa das fotografias tiradas na Chancelaria do Reich vê-se, na secre-
.- tária de Hitler, um livro com dimensões de infólio que mostra o título Die Rettung der Welt
(A salvaçã_odo rrmndo). Era evidente a veemência com que Hitler aspirava ao papel de
salvador; era o grande e exemplar manuscrito, a partitura em que conviviam recordações
do Lohengrin que fora a sua primeira ópera predilecta e mitologias de numerosos heróis
redentores» mas, na realidade, ele «não só provinha do nada, como raciocinava ainda a
partir do nada» (pág. 933). Esta conclusão, que evidentemente não é uma explicação,
esclarece qual era a utilidade de aprofundar de onde Hitler provinha e com que premissas
pensava e agia.

99
5
DE THULE AO PARTIDO

Hitler retoma no pós-guerra os contactos com o mundo das


seitas e das sociedades secretas, numa situação que, para avaliar,
é preciso partir da observação de um dos três maiores estudiosos
do século (com Max Weber e Mircea Eliade) em matéria de
significado social da religião, Georges Dumézil. Diz ele:

Já por meados dos anos vinte o mundo dos estudos se


preparava para estabelecer o que hoje é claro: a originalli­
dade unitária indo-europeia, capaz de explicitar o mundo
através de umas organização social nitidamente hierarqui­
zante. Na Alemanha tudo isto estava no ar havia decénios,
mas sob estandarte restritivo da teoria da raça. Sociedades
secretas como a de Thule, como Vril, como a Ahnenerbe de
Friedrich, enxertaram os mitos indo-europeus no descon­
tentamente de Versalhes. E na base de um outro mito
antiquíssimo, o do eterno retomo que Eliade demonstrou
ser indo-europeu, constituíram uma ideologia que preconi­
zou por um lado o regresso aos «mitos bárbaros» de Odin,
Thoer, Freier e por outro, a luta contra o monoteísmo
hebreu-cristão que os tinha destruído. O nazismo constitui­
-se como uma organização acabada desde 1933, baseada nas
três funções, ou seja o Partei (soberania mágico-jurídica),

101
a Reichwehr (a função guerreira) e o Arbeitfront (a organi­
zação do trabalho) 1 •

Debruçamo-nos, por agora, sobre os primeiros anos vinte,


pois o seguimento se verá mais à frente. É portanto no clima
político, além do cultural, que se segue à paz de Versalhes que as
sociedades secretas ocultistas ganham um relevo justamente
político. Na Inglaterra a situação oposta (vitória e não derrota na
guerra) deixa este associativismo no nível precedente, sem in­
fluência política evidente. Mas a ponte entre a Inglaterra e a
Alemanha permanece; dela veremos mais adiante as características.
No que diz respeito à situação alemã, a sociedade Thule toma­
-se a matriz do partido, enquanto o Vril é a instituição da esfera
iniciática. O partido está em Munique, o Vril em Berlim. As
relações entre ps dois níveis são frequentemente conflituosas.
O problema reside em saber-se quanto de iniciático se deve trazer
à iniciativa política. É um delineamento que pode parecer estra­
nho, se não se tiver em conta o esteio cultural que tínhamos
descrito. Pelo contrário, é compreensível se pensarmos na relação
entre o dever ser e o ser, entre a deontologia e a realidade, na
tradição racionalista-iluminista do tempo da Revolução Francesa
(por um lado Robespierre e Saint-Just, do outro Napoleão e
Fouché) e na tradição marxista do tempo da Revolução Russa (por
um lado Trotski, do outro, Staline).
É provável que um primeiro contraste surja justamente com
a conquista do poder e isto explica o destino de Bernhard Stempfle
e de outros. E é em 1933 que notícias sobre o Vril chegam a França
e Pauwels as conhece pelo círculo de um outro ocultista, Gurdiev,
que justamente então encerra o seu «priorado» de Avon:

O doutor Willy Ley, um dos maiores técnicos do mundo


quanto a mísseis; foge da Alemanha em 193 3. Por ele
soubemos da existência em Berlim, pouco antes do nazis­
mo, de uma pequena comunidade espiritual. Acrescentava
sorrindo que os discípulos acreditavam conhecer certos
segredos para transformar a raça. Esta sociedade berlinense

1
Entrevista de G. Dumézil a Renata Pisu, in «Tutto libri» 17 de Setembro de 1984.
Dumézil é muito apreciado pela cultura de direita, como se pode compreender pela sua
linha de pensamento; o seu testemunho é portanto particularmente fidedigno.

102
chamava-se «Loja Luminosa» ou «Sociedade do Vril».
A «Loja Luminosa» tinha amigos entre os teósofos e nos
grupos Rosa-Cruz. Segundo Jack Belding, autor do livro
Os Sete de Spandau, Karl Haushofer teria feito parte desta
loja. Encontra-se a mesma indicação em As Estrelas em
Tempo de Guerra e de Paz, de Louis de Whol, que durante
a guerra dirigiu o serviço de investigação sobre Hitler e os
nazis para o serviço de informação inglês2 •

Contestou-se o valor deste testemunho, também pela tendên­


cia de Pauwels de não aprofundar e de ser sensacionalista ( de
Whol nada dirigiu; era porém um consultor dos serviços secretos
ingleses). A documentação recolhida nos capítulos anteriores faz
que se considere inteiramente aceitável o papel de Haushofer na
elaboração e gestão de uma doutrina secreta além da sua adesão
formal à seita. É importante estabelecer que há um ponto de
referência institucionalizado da doutrina secreta e da sua prática
oculta que surge contemporaneamente à transformação da socie­
dade Thule, e que agora é necessário referir a talhe de foice.
Ela deriva do «Germanenorden» (Ordem dos germanos) e o
seu promotor é uma figura singular, já citada, Rudolf von Sebot­
tendorff3 . Nascido como Rudolf Glauer em 1875, filho de um
ferroviário ( categoria que, como se vê, tem um particular papel
nas associações pré-nazis), foi adoptado em 1911 pelo barão
Heinrich von Sebottendorff (a adopção nunca é reconhecida na
Alemanha, todavia ele constantemente usou o seu nome). Com a
profissão de electricista naval, estabeleceu-se em Constantinopla
em 1900, obtém a cidadania turca e a sua formação cultural
estabelece-se em contacto com o sufismo islâmico, premissa dos
seus estudos ocultistas e astrológicos (publicará uma História da
Astrologia em 1924). Tem estes interesses em comum com
Rudolf Hess, nascido em Alexandria, no Egipto, e que ali faz os
estudos até aos 15 anos e ali regressa depois até à guerra, porque
aí reside a família ( o pai é comerciante). É provavelmente através

2
Louis Pauwels e Jacques Bergier, II mattino dei maghi, cit, pág. 289-290.
3
A sua mais apropriada biografia em língua italiana é devida a um estudioso
tradicionalista, Renato Dei Ponte, na introdução a R. von Sebottendorff, Prima che Hitler
venisse, cit. , pág. 5- 1 I . Depois também rectificado por notícias imprecisas de historiado­
res alemães, como Feste e Bracher, incertos quanto ao nome originário da personagem.

103
de quanto aprendeu por esta via que Hitler dará frequentemente
opiniões positivas sobre o Islamismo e por isso existirão divisões
SS islâmicas4 •
Quem aprecie as coincidências, pode notar que na cosmopo­
lita Alexandria nascem também dois intelectuais destacados (não
ocultistas) do fascismo italiano: o futurista Filippo Tommaso
Marinetti e o poeta Giuseppe Ungaretti, admirador de Mussolini,
que escreve sobre «O Povo de Itália» do período esquadrista. Von
Sebottendorff, pelo contrário, estuda a Cabala, os textos alquí­
micos e rosacrucianos, as práticas ocultas dos dervixes. Volta à
Alemanha e, como outros ocultistas citados no segundo capítulo,
faz um óptimo casamento (com Berta Anna Iffland) que põe à sua
disposição consideráveis recursos financeiros5 , utilizados em
certa medida, quando imgressa em 1916 na «Germanenorden»,
para a reorganizar na Baviera depois da crise do início da guerra
e de uma cisão ( von Sebottendorff junta-se ao grupo do chanceler
da ordem, Hermano Pohl, nomeado Walvater).
Em Janeiro de 1918 sai, financiado por von Sebottendorff, o
mensário «Runen»; no mesmo mês de Janeiro Anton Drexler,
membro da Ordem, funda uma «Livre associação de trabalhado­
res para uma justa paz», em Julho a sede da Ordem é estabelecida
no hotel Quatro Estações de Munique e von Sebottendorff compra
o «Münchner Beobachter», que virá a ser depois, como «Võlkischer
Beobachter», o diário do partido nazi. A 18 de Agosto a inaugu­
ração da sede coincide com a adopção do nome «Thule Ge­
sellschaft» por parte da Ordem Bávara. Naqueles mesmos dias a
contra-ofensiva aliada em França é o prenúncio da derrota alemã
e «Ludendorff tem de dizer ao Kaiser que o exército do Reich
deixara de ser uma perfeita máquina bélica» 6 •
Justamente enquanto se desenha esta derrota, as sociedades
secretas reorganizam-se para um maior compromisso num futuro
incerto e o próprio Ludendorff, com os seus interesses ocultistas,
ali terá um papel de primeiro plano até ao putsch de Novembro de
1923. Em vésperas do armistício Drexler funda o círculo político

4
Cfr. a propósito de Claudio Mutti, ll nazismo e l' lslam, Cadernos das edições
Barbarossa, Saluzzo 1986.
5
«Eis o muito dinheiro do qual se ignora a origem», precisa Dei Ponte (pag. 8)
citando e corrigindo Fest (Hitler, cit., pág. 234).
6
Keith Robbins, La prima guerra mondiale, Mondadori, Milão 1987 , pág. 88.

104
operário. A Thule tem nesta altura 1500 membros na Baviera e
250 em Munique.
Proclamada a república na Alemanha e na Baviera (aqui sob
a direcção de Kurt Eisner), a Thule organiza de imediato uma Liga
de combate, entre cujos chefes está Rudolf Hess; em Dezembro
prepara uma conjura (que falha) para assassinar Eisner. A 21 de
Dezembro von Sebottendorff está em Berlim, onde a Germane­
norden celebra a velha festa nórdica do solstício de Inverno e é
redigido o programa do «partido social-alemão» de Alfred Brun­
ner. A 5 de Janeiro de 1919 funda o já citado DAP, que a 18 de
Janeiro assume a denominação de nacional-socialista. A 21 de
Fevereiro o conde Arco-Valley mata Eisner. Em Abril é procla­
mada a República dos conselhos. Sete membros da Thule são
presos e serão fuzilados. A 2 de Maio os corpos francos ocupam
Munique e abatem a efémera república. Com eles combate
Heinrich Himmler (futuro chefe das SS), ainda estudante.
É uma cronologia a ter presente, quer em relação ao papel de
Hitler, quer em relação ao carácter «oculto» da Thule. É esta a
descrição de Fest:

No final de Novembro [ de 1918, Hitler] teve alta do hospital


[ ... ]. Voltou a Munique e apresentou-se na sede do batalhão
do seu regimento [ ... ] ali ficou de parte, em plena contra­
dição com a pretensa decisão de se entregar à política. Nos
primeiros dias de Fevereiro [1919] acabou por se oferecer
voluntariamente para o serviço de vigilância de um campo
de prisioneiros de guerra perto de Traunstein. [Depois]
regressa a Munique, [ ... ] aboletou-se no quartel Türkens­
trasse, [ o que] . o obrigava a submeter-se às vontades do
exército Vermelho e a usar o braçadeira, [e isto] demonstra
claramente quanto estava pouco desenvolvida [ ... ]a sua
consciência política. [Mas] dadas as suas afirmações, pela
sua atitude política, teria havido a decisão de prendê-lo sem
demora; mas Hitler teria posto em fuga, empunhando a
espingarda, o destacamento encarregado da tarefa. [ ... ] Otto
Strasser perguntou publicamente: «Pode saber-se onde
estava Hitler naquele dia [2 de Maio]? Em que canto de
Munique se escondia o soldado que deveria combater nas
nossa fileiras?» [ ... ] Ele pôs-se à disposição da comissão de
inquérito, respondendo em auto. Desenvencilhou-se desta

105
situação de forma tão satisfatória que foi enviado, logo a
seguir, para um curso de doutrinamente cívico. E pela
primeira vez Hitler começou a chamar a atenção para sF.

É uma versão que aproxima a historiografia, nazi e pós-nazi,


segundo a qual Hitler se aproxima concretamente da política e do
partido fundado por Dexler apenas no Verão de 19 19 (recebeu o
cart�o a 16 de Setembro).
Hitler com a braçadeira do Exército Vermelho não é motivo
para espantos. Até os membros da Thule se inscreveram numa
Liga Spartaquista para se movimentarem livremente8 • Não con­
traria a hipótese de as relações com a sociedade e com Hess serem
anteriores e que ficassem na sombra quando foi tomada a decisão
de se «pôr na gaveta» o esoterismo para se constituir um partido
«social» e de massas, cujo vértice, porém, conservava intactas as
próprias convicções derivadas dos filões culturais já por várias
vezes aqui referidos. Mas, entretanto, voo Sebbottendorff afasta­
-se da Thule no Verão de 19 19, durante o que é provavelmente o
primeiro conflito no âmbito da cultura «oculta» que confluiu no
nazismo e que forneceu a chave interpretativa do texto publicado
em 1933.
Tem o objectivo de iluminar positivamente o comportamento
do autor durante a efémera república dos conselhos, para «adqui­
rir benesses junto do novo regime com a sua pretensão de ser o
precursor do movimento nacional-socialista»9 cujas origens po­
rém tinham sido já estabelecidas por uma historiografia oficial.
Trata-se portanto de um documento para acolher com cautela no
que diz respeito à verdadeira natureza da Thule, tanto mais que
depois da reconquista de Munique por parte da direita ele deixara
a cidade, talvez também pela existência de «uma atmosfera de
hostilidade no interior da própria Thule [por causa da] imprudên­
cia que levara a que caísse nas mãos da polícia «vermelha» a lista
dos filiados» 1 0 •
Trata-se de uma lista em que se afirma que Hitler, Rosenberg
e Haushofer nada tinham a ver com a Thule que, «bem longe de
ser a poderosa e misteriosa associação secreta do lendário caro à

7
Joachim Fest, op. cit. , pág. 92-93.
8
Cfr. Rudolf von Sebottendorff, op. cit., pág. I O.
9
Renato Dei Ponte, introdução a von Sebottendorff, op. cit. , pág. l O.
'º Ibidem.

106
literatura do nazi-ocultismo, não teve aspectos esotéricos nem
sequer ocultistas, independentemente da figura do seu principal
animador (que teve efectivamente interesses de natureza também
esotérica, o que induziu em erro os investigadores superfi­
ciais)» 1 1 •
Mas quem apoia estas teses acentua no entanto que «a
Germanenorden [ é] uma sociedade secreta de intenções vaga­
mente ocultistas» 1 2 e que Walter Nauhaus (um dos sete fuzilados)
é «um jovem estudioso de tradições esotéricas e de cultura
nórdica», que sugere o nome da sociedade «em memória da mítica
ilha situada no extremo norte, pátria da nação ariana. Esta
reclamação era perfeitamente consciente em quem a promoveu»,
pelo que Evola «cometeu um erro de subavaliação quando escreve
que se deve pôr sob reserva que o nome escolhido ateste uma séria
e consciente referência ao simbolismo nórdico polar» 1 3 . A «re­
serva» era sugerida a Evola justamente pela intenção de negar
todo o carácter iniciático à sociedade.
Isso porém manifesta-se claramente numa exposição do próprio
von Sebottendorff, que afirma: «Ao candidato era mandada a
folha de recrutamente n.º 1 [talvez mais exactamente de «inscrição»,
N. de R.] em que estava incluido um impresso para comprovação
de não contaminação racial do próprio sangue ... Uma vez con­
cluido o preenchimento deste impresso, ao candidato era remetida
a folha de inscrição n.º 2 ... e, desde que as averiguações feitas
estivessem de acordo com as condições colocadas, o candidato era
convidado a apresentar-se numa reunião estabelecida pela Or­
dem. Ultrapassado depois mais um período de prova, podia
finalmente ser filiado no grau de amizade, filiação que era
consagrada mediante a celebração de um solene juramento de
fidelidade absoluta. A este primeiro grau ou grau de amizade eram
admitidas a participar também mulheres e donzelas» 1 4.
A este primeiro grau seguiam-se outros, como em toda a
sociedade iniciática; em 1933 não se fala nisto porque a historio­
grafia nazi oficial considera que a componente esotérica da

11
Ibidem, pág. 4. Ali se contesta calmamente a exposição da minha tese numa
primeira formulação (com muitos erros de dactilografia) apresentada em Maio de 1984
num congresso sobre a direita na Europa promovido pelo Goethe Institut e pela Univer­
sidade de Turim (e não pela Fundação Agnelli, como depois se pensou).
12
Ibidem, pág. 9.
13
Ibidem .
14
Ibidem, pág. 45.

107
ideologia não deve ser evidenciada. Mas o autor não pode abster­
-se de precisar que «o encontro de Hitler com personalidades de
relevo filiadas na sociedade Thule e a consequente acção de
ligação e apoio que a mesma desenvolveu, marcaram o início e a
evolução global da acção política por ele empreendida» ' 5. Pode­
mos aqui perguntar de que «personalidades» se tratavam se «não
eram membros da Thule Gottfried Feder, Alfred Rosenberg e
Dietrich Eckart. Mas foram-no Rudolf Hess e Hans Frank, o
futuro governador geral da Polónia, embora não ocupassem
posições de relevo, devido à sua juventude» 1 6 •
Na realidade, a Thule não era muito poderosa nem muito
misteriosa, o seu «ocultismo» não é tomado a sério na medida e
no sentido em que se referem à tradição iniciática os estudiosos do
tradicionalismo. Era, porém, um centro de agregação de persona­
lidades formadas na «doutrina secreta» da qual se falou. Hess, que
guiava as formações de combate da Thule, tinha a mesma idade
com que Balbo, Grandi, Farinacci, na mesma época, se tornaram
dirigentes de primeiro plano do fascismo italiano. Oficial comba­
tente em infantaria, depois oficial na aeronáutica depois de ter
sido ferido muitas vezes, era um homem cuja maturidade não é
medida apenas pelos seus vinte e seis anos de idade. E os seus
interesses ocultistas estão fora de discussão.
Discutir sobre os vários graus de iniciação, sobre os sócios
honorários e efectivos, sobre quem estava incluído e quem não
estava e por que motivos e qual era a lista caída nas mãos da polícia
da República dos conselhos e se Anton Drexler (o fundador do
partido do qual Hitler viria a ser o Führer) «fora eleito membro
honorário da Thule provavelmente para lhe poder controlar
melhor os movimentos» 1 7 , são questões que será difícil esclare­
cer, mesmo no futuro, com base na documentação.existente. É um
facto que a matriz do grupo de intelectuais que está na origem do
nazismo é uma associação na qual é dominante a cultura ocultista,
a doutrina secreta, que amadureceu nos decénios anteriores.
No mesmo período a sua difusão na Alemanha é testemu­
nhada por Mosse: «A ideia de um Führer ganhava tanto maior
significado quanto constituía uma meta para as aspirações de List

15
Rudolf von Sebottendorff, pág. II da dedicatória do autor «à memória dos sete
fuzilados».
16
Renato Dei Ponte, op. cit. , pág. 12.
17
/bidem, pág. 13.

108
e fomecia uma real via de saída em tempos de desordens e de
inquietações nacionais. E foi efectivamente nos anos incertos por
volta de 1920 que a obra de List conheceria nova notoriedade.
A mais vasta das associações empregadoras alemãs, a Deuts­
chnationale Handlungsgehilfen Verband (União alemã nacional
dos empregados de comércio), louvou este ' 'homem quase esque­
cido' ' que fora um farol de luz e de esperança em anos de trevas» 18 •
Mas por muito que ideias como a magia das runas de List
estivessem difundidas, as concepções esotéricas não podiam ser
propostas como programas político de um partido que pretendia
ser de massas, tanto mais quanto tinha à disposição razões mais
facilmente popularizáveis: a punhalada nas costas (obra princi­
palmente de hebreus) como causa da derrota; a injustiça de
Versalhes quanto aos teritórios alemães subtraídos à Alemanha e
quanto às enormes indemnizações de guerra a pagar; as incertezas
da classe política de Weimar; o perigo comunista.
O grupo de intelectuais de Thule guardou para si q esoterismo
e o ()f11Hismo e pôs em primeiro plano a organizaçãojJolítica. Von
Sebottendorff, criticado e que provavelmente não estava de
acordo, foi posto de parte. Abandona Munique, adquire o já citado
periódico «Astrologische Rundschau» (Outubro de 1920), vive
na Suíça ( 1923-24) e na Turquia ( 1929-3 1), com viagens pelos
Estados Unidos e pelo México. Volta à Alemanha em 193 3 para
publicar-Antes que Hitler Venha quando Hitler é já chanceler do
Reich e provavelmente retoma uma discussão sobre o papel do
ocultismo no novo regime (do qual são provavelmente outros
indícios as revelações de Ley, o comportamento de Gurdiev, o
homicídio de Stempfle, de Hanussen, do astrólogo de Rõhm, Karl
Gunther Heimsoth).
Uma prova evidente do choque em 1920 é a ruptura entre von
Sebottendorff e Dietrich Eckart, muito ligado a Hitler, e a quem
este dedicará páginas comovidas no Mein Kampf (tinha morrido
em 1923) e que é apresentado por alguns como o seu mentor.
O fundador da Thule descreveu assim o acontecimento:

A hostilidade de Eckart nas relações com Sebottendorff data


da fundação da revista «Em bom alemão», cujo primeiro
número foi publicado a 7 de Dezembro de 19 18. Eckart

18
George L. Mosse, Le origini culturali dei Terzo Reich, cit. , pág. 111.

109
voltara-se para Sebottendorff por intermédio do Irmão em
Thuie Kneil para obter o financiamento. Mas dado que o
encargo de financiar tanto a Thule como o «Beobachter»
recaía já inteiramente em Sebottendorff, este tinha re­
cusado. A relação publicada no n.º 42 da revista «Em bom
alemão» esclarece a direcção seguida por Dietrich Eckart
para tomar nítido o empenho da sociedade Thule na luta
política 1 9 •

O quadro é claro. Em termos de ciência política, pode dizer­


-se que ao extremismo ocultista de von Sebottendorff se opõe a
atitude dos intelectuais políticos que insistem em colocar momen­
taneamente o esoterismo em segundo plano para desenvolver uma
acção política directa na base de um programa imediato. O seu
sucesso é demonstrado pela evolução dos acontecimentos.
Em Agosto de 19 19 saiu a edição nacional do «Münchner
Beobachter», que traz no cabeçalho a legenda «Võlkischer Beo­
bachter»; em Setembro Hitler estabelece contacto com o DAP no
dia 12, adere no dia 16 e poucos dias depois toma-se um dos sete
membros da comissão directiva presidida por_ Karl Harrer, da
Thule (que entretanto é guiada primeiro por Hans Dahn, depois
por Johannes Hering). A 16 de Outubro dá-se a primeira reunião
pública do DAP. O primeiro orador é Johannes Dingfelder,
«segundo o qual a natureza mais tarde ou mais cedo se tomaria
estéril, os seus produtos tomar-se-iam raros e mesmo esses
poucos seriam devorados pelos parasitas» 20 , síntese de preocupa­
ções que hoje se diriam ecologistas, das quais é indício também
o facto de entre os .fundadores da Thule existir «o doutor Gaubatz,
presidente da Liga Bávara para a protecção das aves» 2 1 , pela qual
também Hitler se interessou: é a confirmação do filão cultural
naturista que remonta a Wagner.
Em Janeiro de 1920 Harrer deixa a presidência do DAP, que
a 2 de março passa a ser oficialmente 'o Partido Nacional-socialista
Alemão dos Trabalhadores (NSDAP). O programa é elaborado
por Hitler, Feder e Drexler. O símbolo é a cruz gamada, já usada

19
Rudolf von Sebottendorff, op. cit. , pág. 44.
20 Ibidem, pág. 14- 15 .
21
Cfr. Rudolf von Sebottendorff, op cit. , pág. 44.

1 10
no início do século e cujas mais recentes vicissitudes são assim
descritas:

Nos inícios de Maio de 1919, no decorrer da cerimónia


comemorativa depois da inumação de Heila von Westarp
[secretária da Thule, fuzilada, N. d. R.] a tribuna dos
oradores fora decorada com uma bandeira arrebatada aos
comunistas na qual a mão de uma Irmã pusera, por cima da
foice e do martelo, a cruz gamada em campo branco. Na
mesma altura, o doutor Friedrich Krohn, sócio da Thule e
membro do Germanenorden até 1 913 , propusera a cruz
suástica como símbolo do partido nacional-socialista. A 20
de Maio de 1920, no decorrer da fundação do grupo local
Sternberg, propunha este simbolo na sua forma levógira.
Hitler modificou-o no sentido dextrógiro22 •

É importante fixar que ele está à frente do partido poucos dias


depois da sua inscrição e, poucos meses depois, tem autoridade
bastante para decidir quanto ao seu símbolo, embora não se tenha
dito que a alteração tenha um significado particular.
Um estudioso das tendências culturais aqui analisadas e que
substancialmente concorda com Evola acerca da relação entre
sociedades secretas e nazismo, observa: «Um aspecto da questão
é a possível existência de uma autêntica doutrina oculta do
nacional-socialismo exteriorizada pela suástica invertida (quer
dizer dextrógira, com as pontas voltadas para a direita). Na
realidade a suástica, nas muitas culturas que a utilizaram, tanto era
levógira como dextrógira, porém isto não significava efectiva­
mente que esta diferente posição dos braços tivesse um sentido,
de quando em quando, oposto: quer dizer solar e polar no primeiro
caso, o contrário no segundo. E efectivamente escreve René
Guénon: ' Quanto ao sentido de rotação indicado pela figura, isso
tem uma importância inteiramente secundária e não influi no
significado geral do símbolo. Efectivamente encontram-se ambas
as formas sem que isto implique necessariamente a intenção de
estabelecer entre elas uma oposição qualquer' . Palavras de 193 1 ,

22
Ibidem, pág. 14- 15 .

111
quando ainda se discutia sobre o símbolo escolhido por Hitler sem
estar ainda no poder» 23 ·
Na realidade, uma «autêntica doutrina oculta do nacional­
-socialismo» no verdadeiro sentido, com «corpus» orgânico,
provavelmente nunca foi completamente elaborada. Existe pelo
contrário uma componente cultural baseada na história esotérica,
na cosmogonia esotérica e nas leis ocultas que o guiariam.
O grupo de intelectuais que transforma a Thule em partido
acredita nisso. E a escolha do símbolo é, neste sentido, impor­
tante, pelas interpretações que lhe estão ligadas, ainda que a forma
dextrógira ou levógira não «implique necessariamente» versões
diferentes ou opostas. Esta discussão tem sentido nas escolas
ocultistas. Porém, o facto de Hitler ter sido o árbritro para escolher
o símbolo é indicativo da sua influência.
Todas as versões oficiais, nazis e pós-nazis, apologéticas ou
críticas, não esclarecem de onde possa derivar. Não da precedente
actividade política, inexistente. Não de uma ordem do exército.
Mayr e Rõhm, pelos quais Hitler é obrigado a responder, são
oficiais subalternos, o primeiro não deixa pistas, o segundo
depressa fugirá para a Bolívia24, por não ter perspectivas na
Alemanha, e tomar-se-á homem de primeiro plano só anos depois
e como chefe das SA. As pequenas seitas estão notoriamente
apinhadas de personalidades que se consideram importantes, que
querem distinguir-se e também a história alemã deste período o
demonstra. E agora como é possível que um homem sem história,
recentemente entrado no partido, logo seja chamado como diri­
gente, dele elabore o programa, dele escolha o símbolo cheio de
significado?
A resposta é que Hitler é já conhecido num microcosmo que
parte de Lanz e passa por Hess e Haushofer e talvez também por
Ludendorff, o grande condutor de homens. É por esta via que
Hitler é acreditado e, em breve Drexler e Feder serão também
postos de lado para lhe deixarem a direcção do partido. Ele falará

23
Gianfranco De Turris, introdução a René Allaud, Hitler e le società segrete, a
imprimir nas Edizioni Mediterranee, pág. 7. O texto de Guénon citado é /l simbolismo
de/la eroce, Milão 1973, pág. 1O 1- 102. De Turris traduziu com Sebastiano Fusco La razza
ventura, de Bulwer Lytton, Carmagnola, 1980.
24
Rõhm tivera um papel importante na politização, no sentido populista, dos
militares bolivianos. Cfr. II socialismo militare in Bolívia ( 1 936-1946) - Tre saggi su
populismo e militari in America Latina, organizado por Ludovino Garruccio, II Mullino,
Bolonha 1974.

1 12
dos seus dotes - inconstestáveis - de orador e de organizador,
mas que se manifestarão depois e não antes. O ponto de partida é
a confiança de um grupo de intelectuais - Hess, Frank, Feder,
Rosenberg, Eckart, Himmler e Max Etwin von Scheubner-Rich­
ter, um nobre báltico que em Riga tinha encaminhado Rosenberg
para a política e que será morto ao lado de Hitler no putsch de 9 de
Novembro de 1923. Fest apresenta-o assim:
Um aventureiro de passado borrascoso, dotado de um
extraordinário talento para rendosos negócios políticos
atrás dos bastidores. Deve-se em considerável medida à sua
capacidade para obter fundos que Hitler tenha podido
contar, nos anos do começo, com a segurança material. [ .. ]
era uma espéci,e de eminência parda com um extraordinário
faro para os segredos, mas também com um excepcional
_ savoirfaire; bom conversador, tinha laços com industriais,
membros da ex-casa reinante dos Wittelsbach, bem como
com as autoridades eclesiásticas. A influência por ele
exercida sobre Hitler foi sem dúvida alguma importante:
único entre os seus adeptos abatidos, foi por ele lamentado
como insubstituível25 •
No mesmo ano morre também Eckart. Mas entretanto o grupo
de intelectuais aos quais se juntou Bormann cimentou-se e
consolidou-se na direcção do partido independentemente dos
cargos farmais. É o grupo aos quais se unirão outro membros, que
serão marginalizados (como os irmãos Gregor e Otto Strasser) ou
que marcharão com Hitler até à catástrofe, como Gõring, já unido
ao vértice desde 1920 com o prestígio de heróico último coman­
dante da esquadrilha von Richthofen; e como Geobbels, que se
destacará dos Strasser para se unir a Hitler. Von Ribentrop será
agregado pelas suas notáveis qualidades diplomáticas; Julius
Streicher virá a ser famoso pelo seu anti-semitismo, de particular
virulência mesmo entre os nazis. Porém, é o grupo que dirige em
Munique a passagem da Thule a partido (e ao qual está ligado
Ernest Jünger, cujo papel será esclarecido em seguida) que
começa a decidir e decidirá (por vezes de forma não concordante)
no momento das grandes opções políticas: o exercício do cargo de
chanceler em 1933, a orientação para a guerra em 1938-39, o

25
Joachim Fest, op. cit. , pág. 165 .

1 13
ataque à URSS em 1 94 1 com a esperança de alcançar um acordo
com a Inglaterra.
Hitler apresenta-se nos primeiros anos vinte, na sua maneira
de dizer, como o tambor que despertará a Alemanha, como o
arauto que lhe prenuncia o renascimento. É o porta-voz de um
grupo que se formou na intimidade com a cultura oculta, que
considera conhecer as leis que conduzem ao sucesso, e de vez em
quando se divide na sua interpretação.
Este grupo não aparece na auto-apresentação do nazismo nem
na historiografia posterior. Mas encontrar-se-ão as suas con­
vicções em todas as viragens decisivas, até à conjura de 20 de
Julho, em que está envolvido Albrecht, filho de Karl Haushofer e
grande amigo de Hess. A relação entre Hitler e este grupo pode
permitir uma interpretação que utiliza também a crítica de Evola
ao suposto papel dos «Superiores Desconhecidos».
Insisto na expressão de «grupo de intelectuais» para Hitler,
Hess, Himmler, Rosenberg, Frank, Haushofer, porque a historio­
grafia - integrando as fontes da auto-apresentação nazi com a
memorialística negativa posterior - tende a apresentar o Hitler
dirigente do NSDAP como a continuação do vagabundo de Viena,
rodeado por rudes aventureiros e agitadores de cervejaria, que
seriam o círculo restrito de verdadeiros companheiros e colabora­
dores do Führer. Eis uma passagem de Fest:
No seio do partido Hitler continuou a ficar rodeado de
gentalha, quando não de tipos decididamente duvidosos:
entre os seus raros amigos contavam-se Emil Maurice,
típico zaragateiro e herói de brigas de taberna, e Christian
Weber, um enorme, pançudo ex-comerciante de cavalos,
que trabalhara como contra-regra numa equívoca cerve­
jaria. [ ... ] Também o aprendiz de açougueiro Ulrich Graf
pertencia ao círculo dos íntimos, que constituía ao mesmo
tempo uma espécie de corpo de guarda. Compreendia, além
disso, Max Amann, que fora sargento de Hitler, um acólito
obtuoso e robusto que bem depressa seria posto em evidên­
cia como administrador do partido e da casa editora. [ ... ]
A figura dominante do entourage [ ... ] era a do jovem Her­
mano Esser, que tinha trabalhado para a imprensa no
Gruppenkommando da Reichswerchr26 •

26
Ibidem, pág. 163- 164.

1 14
Estes aspectos estão certamente presentes no primeiro na­
zismo. Mas sublinhando exclusivamente tais características, corre­
-se o risco de perder de vista a, de longe, mais importante: um
grupo de intelectuais formados no âmbito de uma cultura bem
definida, a qual constitui a maior ligação entre eles e a razão pela
qual escolheram Hitler como líder, principalmente por impulso de
Eckart que

já em 1919, numa sua poesia de tom habilmente arcaízante


tinha profetizado o advento de um salvador nacional [ ... ]
Não sem supresa, ele distinguiu em Hitler a verdadeira
encarnação de tal modelo e, já em Agosto de 1921, num
artigo publicado no «Võlkischer Beobachter» saudava nele,
pela primeira vez o Führer, o guia. Hitler definiu publica­
mente o poeta como «amigo paterno», reconhecendo-se
também aluno deste. Em todo o caso, poder-se-ia dizer que
Eckart, juntamente com Rosenberg e com os «alemães
bálticos», teria exercido a mais duradoura influência ideológica
em Hitler naquele período27•

Mais que de influência ideloógica, se pode falar de uma


comum convicção cultural de um grupo no qual Hitler surge como
particularmente dotado de características que se manifestam
como faculdades quase mediúnicas e que o fazem assumir a
liderança.
Ao grupo traz inicialmente um apoio decisivo Ludendorff,
que compartilha com ele as componentes culturais de derivação
ocultista (graças também à forte inspiração da mulher, a doutora
Mathilde von Kennitz), que obtém importantes fundos da aristo­
cracia e da alta burguesia e que tem o prestígio de grande homem
de guerra. O general será um dos promotores e marchará à frente
do cortejo cuja dispersão assinala a derrota do putsch de 9 de
Novembro de 1923.
Diz-se que a sua acusação a Hitler de ter fugido durante o
combate está na origem da ruptura. Mas existem ainda razões
mais profundas, que se podem definir como ideológicas e que
atingem a cultura aqui descrita. Ludendorff, como já Sebotten-

27
Ibidem, pág. 1 60- 1 6 1 .

1 15
dorff, insiste em querer pôr em primeiro plano, em relação ao
programa político, um comportamento assim caracterizado:

Ludendorff [ . . ] deixava-se seduzir, de modo sempre mais


condicionante, pelas sombras pseudo-religiosas de uma
ideologia sectária, na qual conviviam fé nas antigas divin­
dadas germânicas e pessimismo nas comparações com a
civilização. O próprio Hitler havia algum tempo que se
afastara de atitudes desse género, nas quais reencontrava o
obscurantismo dos seus primeiros anos, o de Lanz von Lie­
benfels e da Thule Gesellschaft com as suas quimeras. No
Mein Kampftinha dado mordaz expressão ao desprezo que
alimentava por este romantismo nacional-popular, o qual
aliás constituía, ainda que de forma rudimentar, o âmago
das suas próprias concepções28 •

Pode reescrever-se assim: o grupo de Hitler colocava em


segundo plano as componentes esotéricas, ainda persistentes na
ideologia, sobrepondo a linha programática. Ludendorff era de
parecer oposto. Daqui a ruptura. O general funda um seu Tannen­
berg Bund com escassa influência (terá pouco mais de 1 % dos
votos como candidato às eleições presidenciais de 1 925). O Bund
sobreviverá até à morte do general, em 1 937, e será dissolvido
logo a seguir. Dois dias depois de Hitler ter sido designado
chancelar por Hindenburg, Ludendorff escrevera ao velho mare­
chal: «O senhor entregou o país a um dos máximos demagogos de
todos os tempos. Profetizo-lhe que este homem fatal arrastará o
nosso Reich para o abismo e será causa de inimagináveis misérias
para esta nação. As gerações futuras o amaldiçoarão no túmulo
por esta sua decisão»29 •
Esta linguagem apocalíptica reflecte a cultura em que germi­
nou. Para os ocultistas intransigentes, Hitler é um demagogo por
ter posto em surdina o esoterismo a favor de um nacional-socia­
lismo «popular». E a figura do salvador prometido subverte-se no
«falso profeta». Contudo, encontra-se, aqui uma legitimação do
debate a nível da tradição esotérica, porque «não obstante a rela­
ção de recíproca desconfiança com os nacionais-socialistas»30 , o

28
Ibidem, pág. 274.
29
Citado in ibidem. , pág. 506.
3 ° Karl D. Bracher, La dittadura tedesca, cit. , pág. 178.

1 16
Bund pôde operar até 1 937. Esta legitimação da dissensão em
termos velados e esotéricos é importante ter presente para avaliar
quanto sucederá em vésperas da guerra com a publicação de Sobre
os Rochedos de Mármore.
Von Sebottendorff, contrariamente ao general, considera que
Hitler, como chanceler deixará maior espaço à linha esotérica.
A Thule dissolvera-se formalmente em 1 930, ano do primeiro
grande êxito eleitoral do partido dela derivado ( 1 7 % dos votos).
O seu fundador considera poder retomar a actividade interrompi­
da no Verão de 1 920. Mas a publicação de Antes que Hitler
Chegasse não lhe restituirá espaço; «o efeito será exactamente o
oposto. Depois de o livro sair em segunda edição em 1 934, é
imediatamente retirado do mercado (de onde a aura de mistério
que sempre o rodeou) e o seu autor preso, ainda que por breve
tempo. Eis von Sebottendorff a retomar o caminho da sua terra de
eleição: a Turquia. Durante a Segunda Guerra Mundial trabalhará
para o serviço secreto alemão»3 1 .
Ludendorff, menos informado sobre o grupo no vértice do
poder, é tolerado. Von Sebottendorff, no entanto, não pode operar
na Alemanha, mas o seu papel na Turquia não é subestimado,
porque decorre na área (o Médio Oriente) que pesará nas decisões
de Hitler em Maio-Junho de 1 94 1 (como se verá no capítulo VIII).
Quanto a Lanz von Liebenfels que, em 1 9 1 5, sugeriu o termo
«ariosofia» para definir a doutrina secreta dos Ários3 2, nos anos
vinte e trinta opera na Áustria e não influiu na situação alemã.
Hitler também o fará calar depois da anexação de 1 938. E as várias
peças do mosaico são tão difíceis de juntar que Mosse, que no
entanto individualizou «as origens místicas do nacional-socia­
lismo»33 subestima aquilo que ainda define como «Thule Bund»34,

31
Renato Dei Ponte, introdução a von Sebottendorff, op. cit. , pág. 1 1 .
32
O termo é retomado in : Nicholas Goodrick-Clarke, The Occult Roots of Nazism .
The Ariosophist of Austria and Germany 1 890-1935 (As Raízes Ocultas do Nazismo. Os
Ariosofistas na Áustria e na Alemanha), Wellingborough 1 985. O autor definiu von
Sebottendorff como «o aventureiro que tinha introduzido a ariosofia no partido nazi»,
citado por Dei Ponte, op. cit. , pág. 1 1 .
33
É o título em inglês do ensaio publicado no «Journal of the History of ldeas»,
Janeiro-Março de 1 96 1 . Encontrei Mosse num congresso do Instituto Gramsci da Emilia­
Romagna onde tinha o relatório introdutório a um congressq respeitante à política e à
estética nos anos trinta e onde expus numa comunicação as hipóteses aqui elaboradas.
Mosse não me pareceu particularmente interessado. Daquele congresso derivou uma
colectânea publicada pela Laterza.
34
Cfr. George L. Mosse, op. cit. , pág. 237-338 e pág. 386 na qual, seja como for, se
recorda que «a Thule Gesellschaft se tornaria a incubadora do partido Nacional-socialista».

1 17
enquanto Allaud, no seu amplo estudo sobre Hitler e as Socieda­
des Secretas, não fala de List e von Liebenfels.
Trata-se agora de completar o quadro com algumas observa­
ções sobre o ano de 1 93 3 - o da conquista do poder pelo grupo
guiado por Hitler, tema que já abordámos - que completam
quanto se disse.
É ainda em 1 933 que modifica a sua actividade -encerrando
o seu «priorado» de Avon e retirando-se para Paris - um dos
mestres da cultura oculta, Georges Ivanovich Gurdiev. Nascido
em 1 877 na Geórgia, destinado pela família à carreira eclesiástica
ou, em alternativa, à médica, recusa ambas para ir em busca das
fontes do saber, como o Tibete, já meta de outras personalidades
desta cultura. Volta à Rússia em 1 9 1 3 e escreve um livro (Encon­
tro com Homens Extraordinários) no qual investiga os poderes
ainda desconhecidos que o homem teria dentro de si. Tenta
ensiná-los a um pequeno e seleccionado grupo de discípulos
(entre os quais o mais conhecido será Uspenski) que acolhe junto
de si em Moscovo.
Com o eclodir da revolução transfere-se com o seu grupo para
o Cáucaso setentrional, próximo da Geórgia natal, mas também
sede de uma daquelas «colónias» indianas de que tinha falado
Schlegel. Com o avanço do Exército Vermelho convence o grupo
a passar para Constantinopla e depois para a Alemanha.
É um itinerário análogo ao de von Sebottendorff e podemos
perguntar-nos se os dois não se teriam encontrado entre 1 920 e
1 922, quando o fundador da Thule viaja pelas suas duas pátrias.
Em 1 922 Gurdiev estabelece-se em França, e aqui uma sua
adepta oferece-lhe castelo e terreno em Avon, perto de Fontaine­
bleau, onde surge o que vem a ser o «priorado», derivado do nome
do castelo que é precisamente Prieuré. Aqui chega, para seguir o
mestre, a célebre escritora Katherine Mansfield, doente de tísica
e que deveria residir em localidades prescritas pelos médicos.
Segue, pelo contrário, o conselho de Gurdiev, estabelece-se em
Avon e ali morre após apenas oitenta e quatro dias, dando lugar
a vivas polémicas sobre as causas da morte (ausência de trata­
mento, práticas anómalas) .
Gurdiev saíu ileso, os adeptos aumentam, até que, inespera­
damente, o mestre decide fechar o «priorado» e fixar-se em Paris,
pelo motivo de se sentir envelhecer. Na realidade tem cinquenta
e seis anos, está em óptima forma e efectivamente continua a sua
actividade, se bem que mais reduzida, na capital francesa. É aqui

1 18
que o conhece e lhe segue a doutrina Louis Pauwels, que sintetiza
a sua experiência na avaliação que suscitou a crítica dos tradicio­
nalistas:

Os intelectuais detractores da nossa civilização sempre


foram inimigos do progresso técnico. Por exemplo, René
Guénon e Gurdiev ou os inúmeros hinduístas. Porém, o
nazismo foi o momento em que o espírito de magia se
apoderou das alavancas do progresso material. Num certo
sentido, o hitlerismo era o guenonismo mais as divisões
blindadas35 •

Os partidários de Guénon consideram a abordagem inteira­


mente arbitrária. Durante a guerra o estudioso tradicionalista está
no Cairo e não para ali esperar as divisões de Rommel. Gurdiev
· permanece em França. E no seu ambiente que os autores de
O Despertar dos Mágicos têm conhecimento de não poucas
notícias que usarão no livro e recordam nestes termos o primeiro
contacto com as teorias de Horbiger:

Estávamos em 1948, eu acreditava em Gurdiev, e uma das


suas fiéis discípulas cortesmente me convidara a passar
umas semanas em família na sua casa, na montanha. Numa
noite estrelada e fria o relevo da Lua aparecia nitidamente.
«Dever-se-ia dizer uma lua», disse a minha hospedeira,
«uma das luas». Existiram outras luas no céu. Esta é a última,
simplesmente. É verdade. O senhor Gurdiev sabe-o e outros
sabem-no também3 6 •

É portanto uma personagem que tem as mesmas concepções


de Horbiger, em boa parte partilhadas por Hitler, que abandona
Avon por uma vida mais discreta em Paris, onde morrerá em 1949,
depois de mais dezasseis anos de pregações. Logo, uma vez que
é duvidoso que tal decisão tenha sido ditada pela idade, é possível
juntar esta opção às outras indicadas: Ludendorff profetiza catástrofes
e desventuras; von Sebottendorff volta à Alemanha; Ley aban-

' Louis Pauwels e Jacques Bergier, op. cit. , pág. 334. Uma recente síntese do
5

pensamento de Gurdiev é a sua obra traduzida em italiano Vedute sul monde reale,
L'Ottava, Roma 1985.
' Ibidem, pág. 306-307.
6

1 19
dona-a; o primeiro será, por sua vez, obrigado a deixar o Terceiro
Reich naquele 1934, ano em que é morto Bernhard Stempfde,
juntamente com o astrólogo de Rõhm, Karl Günther Heimsoth37 ,
e com Hanussen. Segundo parece a ascensão e o primeiro ano de
poder de Hitler suscitaram interesses e mudanças no vértice do
ocultismo na Alemanha e na Europa. É em 1933 que Guénon
define como arbitrário o uso do símbolo da suástica por parte dos
nazis. É ilícito supor que alguns esperassem grandes eventos,
outros pelo contrário quisessem pôr-se de parte e que algum
tombasse vítima das suas ilusões.
O paralelo, em termos de ciência política, pode ser também o
das expectactivas suscitadas por um acontecimento revolucionário;
há quem acredite chegado o dia das grandes opções, quem
continue desiludido e hostil pelo seu adiamento, quem consolide
a posição alcançada: este é o caso de Hitler e do seu grupo.
É neste quadro que devemos ir na peugada da Golden Dawn,
cujo silêncio no primeiro pós-guerra é determinado pela situação
já indicada, que impede as seitas inglesas de assumirem o peso
político que tiveram na Alemanha. Mas as ligações permanecem,
não só através da adopção simbólica do termo Vril, do qual já se
falou, mas através da personalidade de Aleister Crowley.
Viu-se a Golden Dawn guiada por Mathers e por Yeats. O pri­
meiro (do qual é recordada a relação com Bergson), num Mani­
festo aos Membros da Segunda Ordem, de 1896, afirmava:
Acerca dos chefes secretos, aos quais me refiro e dos quais
recebi a sabedoria da segunda ordem que vos comuniquei,
nada posso dizer-vos. Ignoro também os seus nomes terres­
tres e só muito raramente os vi no seu corpo físico. Eles
encontraram-me fisicamente nos tempos e locais fixados
precedentemente. Creio que sejam serem humanos vivendo
nesta terra, mas que possuem poderes terríveis e sobre­
-humanos. Sentia-me em contacto com uma força tão terrí­
vel que só a posso comparar ao efeito sentido por quem tenha
estado perto de um raio durante um violento temporal38 •
A Mathers sucedeu Yeats, de nome «oculto» Diabolus est
Deus Inversus. É durante a sua gestão que Crowley aderiu à

37 Cfr. cap. VIII, nota 1 6.


38
Ibidem, pág. 292.

1 20
sociedade. Daqui as versões que ligam a Golden Dawn ao sata­
nismo, bem como a inversão dos braços da suástica significaria a
passagem da iniciação à contra-iniciação.
Nascido em 1875, de família riquíssima, educado num colé­
gio protestante, alguns dados da sua vida podem ser deduzidos
com cautela de uma autobiografia escrita em 1930 (The Confe s ­
sions of Aleister Crowley ). A adesão à sociedade é do final do
século. Como outras personagens da vivência esotérica pôde
permitir-se à compra de um castelo em Loch Ness, na Escócia,
j\!_nto do lago do lendário (e nunca visto) monstro. O seu nome
esotérico é Perdurabo . Como outros «mestres» já citados, faz
viagens pelo Egipto, Índia, Extremo Oriente. Concentra os seus
interesses na magia sexual e no tantrismo. Publica em 1 904 The
Book of Law (O Livro da Lei), no qual se apresenta como o 666
do Apocalipse, a «Grande Besta». Em seguida, funda uma ordem
sua (Astrum Argentinum), que se mantém ligada à Golden Dawn.
Segundo uma publicação como o «Reader' s Digest», alheia a fan­
tasias, «os seus escândalos eram abafados pelos serviços secretos
britânicos dos quais, em 1 9 10, se tornara um agente» 39 .
No ano seguinte publica Bekfour, dedicado à magia sexual
que ele definiu «Magike Art». Na véspera da guerra o seu enorme
património parece ter desaparecido em viagens, orgias e experiên­
cias. Troca a Inglaterra pelos Estados Unidos, mas regressa à
Europa em 19 1 9, novamente munido de consideráveis recursos
financeiros. Fixa-se na Alemanha, onde entra em contacto com a
sociedade ocultista Ordo Templi Orientis, de Theodor Reuss, da
qual constitui uma secção inglesa. É um outro pilar da ponte de
que se falou no primeiro capítulo. Fixa a sua residência numa vila
em Fontainebleau (onde se alojará também Gurdiev) e viaja pela
França, Alemanha, Inglaterra, Itália, onde em 1920 funda a
Abadia de Thelema, em Cefalú, na Sicília. Em 1923, Mussolini
impedi-lo-á de ali residir e Crowley estabelece-se em Paris. Aqui
publica em 1929 Mag ic in Theory and Practice. Volta a Inglaterra
em 1937, ano em que o duque de Windsor (o ex-rei Eduardo VIII
que abdicara no final de 1936 para poder casar com Wally
Simpson) vai visitar Hitler em Berchtesgaden.

39
Selecções do Reader's Digest, Europa misteriosa - societe segrete - riti occulti
- maghi - streghe - veggenti, Milão 1 98 3 , capítulo 1 2, pág. 326.

12 1
A aproximação é importante para esclarecer os antecedentes
da viagem de Hess de Maio de 1 94 1 , em busca de interlocutores
para uma possível paz. Na base de que possíveis relações ante­
riores, no ambiente da aristocracia inglesa em relação com as
sociedades · ocultas, um sector da cimeira nazi pensava poder
encontrar interlocutores antes da opção decisiva do ataque à
URSS?
Tentar-se-á responder a esta pergunta no capítulo oitavo.
Porém, a figura de Crowley, mestre do ocultismo e simultanea­
mente agente dos serviços secretos ingleses, líder na Grã-Bre­
tanha de uma sociedade que é análoga a uma seita ocultista alemã,
merece que se mantenha presente, tanto mais que em 1 940
escreveu a Churchill, enviando-lhe um talismã «para fazer que
cessassem as incursões aéreas» e afirmara em seguida: «na ver­
dade, fui eu a vencer a guerra! »4º .
Naturalmente é lícito pensar nas fantasias de um louco, ainda
que Crowley se mantenha lúcido e coerente nas suas convicções
até à morte (que se deu em 1 947). Mas uma vez que nada ainda foi
esclarecido quando ao que aconteceu entre a Alemanha e a
Inglaterra entre Maio e Junho de 1 94 1 , também algumas afirma­
ções extravagantes podem ajudar a compreender pedaços de
acontecimentos dos quais a historiografia tradicional pouco se
ocupa4 1 •
Seja como for, regressemos de momento a 1 93 3, altura em
que se concluiu a primeira fase do longo caminho das sociedades
alemãs da tradição ocultista, no âmbito das quais se formou a
cultura de uma forma do grupo dirigente nazi. Um seu expoente
é chanceler do Reich. As sociedades secretas já não servem, mas
a sua cultura influencia o processo de decisão do vértice do
Terceiro Reich e talvez alguma forma institucional permaneça em
volta de Haushofer e do Vril. Uma outra parte desta tradição
cultural encontrará em contrapartida expressão oficial - como
se verá - em iniciativas ligadas às SS.
Naturalmente os êxitos de Hitler foram devidos às causas de
fundo que a historiografia já analisou: a frustração de Versalhes,

40
Ibidem, pág. 3 28.
41
Segundo Guénon, que de tal escreve a Evola (29 de Outubro de 1949), «Crowley
em 1 93 1 foi a Berlim para recuperar o papel de conselheiro secreto junto de Hitler». A carta
com avaliações também da Golden Dawn está agora em «Quademi di Avalon>> n. º 1 O, 1 986.

122
a crise económica de 1929, o apoio fornecido a Hitler pelas classes
dirigentes da economia e do exército, a incerteza do comporta­
mento político dos grupos liberais e a dura luta no interior da
esquerda entre socialistas e comunistas.
Tudo isto é bem conhecido e nada pode ser acrescentado aos
estudos históricos de mérito. Mas existem ainda questões em
aberto justamente do ponto de vista histórico. E a da cultura
ocultista do Terceiro Reich é uma delas.

123
6
O FÜHRER E A CÚPULA
Qual foi o papel pessoal de Hitler na parábola nazi do triunfo
à catástrofe? E uma pergunta que apaixona não só os historia­
dores, como também o homem da rua. As respostas variam numa
gama que vai da convicção de que sem o seu Führer o nazismo
teria sido bem diferente à afirmação de que qualquer hierarca
poderia desempenhar a sua função.
Na conclusão de uma rigorosa pontualização destes aspectos,
o historiador Klaus Hildebrand observa: «Pode dizer-se que o
pêndulo oscilou entre o pólo representado pelas teses da ' 'centra­
lidade de Hitler ' ' ao representado pela teoria do fascismo, entre a
actuação de personalização e a inclinação para a despersonali­
zação da história, entre demonização e subestimação da política
de Hitler e do Terceiro Reich. Que a personalidade do ditador de
qualquer modo não possa ser considerada intercambiável, é uma
tese que encontra amplo consenso na investigação. À pergunta
insistentemente repetida quanto à grandeza histórica de Hitler, é
possível em certa medida responder, pois que podemos avaliar
hoj e as coisas, com as palavras de Karl Dietrich Erdamann:
' 'E possível atribuir grandeza a um homem que considerava a
consciência uma invenção dos Hebreus? ... A grandeza histórica
de Hitler, que desorientou as mentes para depois pôr o mundo a
ferro e fogo, após poucos anos de ascensão vertiginosa ao poder,
e arrastar o seu povo na sua própria queda, é diabólica' '» 1 •
1
Klaus Hildebrand, Il Terzo Reich, Laterza. Roma-Bari 1983, pags. 186- 187. (A
citação de Erdmann é do livro A Era das Guerras Mundiais, em alemão, Estugarda 1976,
pags. 340-34 1).

125
Anotam-se os termos «demonização» e «diabólica», que se
ligam a esta avaliação: «A força de choque do Terceiro Reich...
encontra no fundo o seu móbil e a sua directiva, a sua medida (ou,
melhor, desmedida) e o seu objectivo na inentalidade de desespe­
rado de Hitler (por 1=1m lado apanhado pelas influências do seu
tempo, por outro inclinado para as suas radicalizações), aquela
mentalidade fugidia para a qual em tempos relativamente preco­
ces já Alfred Weber perspicazmente chamara a atenção» 2 •
Na realidade a mentalidade aqui definida por «desesperada»
ou «fugidia» encontra a sua explicação na cultura que descreve­
mos. Hitler considera que as razões da sua acção estão num
passado distante, numa sabedoria mágica a recuperar e na qual
está a chave do futuro. Se se estabelecer com clareza este ponto,.
as suas acções surgem coerentes. Ele considera-se o depositário
de dotes especiais, o protagonista de um destino sem igual.
A abordagem aqui proposta não pretende estabelecer uma relação
entre esta personalidade e todo o partido ou toda a sociedade ·
alemã, mas entre ela e o grupo de intelectuais dos quais foi
descrito o processo formativo.
É neste círculo restrito e na base desta cultura que a partir de
1933 são tomadas decisões fatais para a Alemanha e para a
Europa. Os objectivos são os indicados no Mein Kampf· a criação
de uma Eurásia de confins orientais indefinidos; um entendi­
mento com a Inglaterra para o condomínio mundial, em compe­
tição com os Estados Unidos e talvez com uma Ásia oriental de
hegemonia japonesa; a Alemanha é a base deste arranjo do globo,
que deve anunciar a criação de uma nova civilização «ariana» e de
um homem novo que recupere antigas e perdidas virtudes; os
Hebreus que opõem a esta perspectiva o seu sonho de domínio
mundial são marginalizados (posição até 1941) e punidos depois
por terem mobilizado a aliança antiariana (posição de 194 1 em
diante).
Rosenberg e Frank, do grupo da Thule, terão papéis decisivos
nesta marcha para Leste, o primeiro como responsável em 194 1
dos territórios russos ocupados e o segundo já desde 1 939 como
governador da Polónia. Hess e os dois Haushofer colaborarão
nesta estratégia com um entrelaçamento de geopolítica e de astro­
logia. Himmler quer transformar as SS numa ordem na qual a

Ibidem, pag. 176. A citação de A. Weber está no livro O Terceiro e o Quarto


2

Homem. No Sentido da Existência Histórica, em alemão, Munique 1953, pág. 43.

126
iniciação se entrelaça com a crueldade. Também aqueles que no
vértice nazi têm uma diferente formação cultural, são influencia­
dos pela de origem ocultista. Gõring, pragmático, tem alguma
condescendência pela teorias dos émulos de Horbiger. Goebbels,
expressão do nazismo «social» de Rõhm e dos irmãos Strasser,
interessa-se por Nostradamus e pelos astrólogos. Até o gélido von
Ribbentrop se entrega a fantasias a propósito do duque de
Windsor.
Este grupo é porém caracterizado pelo realismo político. Está
de acordo em destruir os concorrentes externos e também internos
(a 20 de Junho de 1934) na base de cálculos precisos (por exemplo
a ideia de Rõhm de fazer dos SA a base de um exército «popular»
em antítese à Reichwehr faria perder à NSDAP o seu apoio, ainda
decisivo na época). Imposta uma política económica que, graças
a Hjalmar Schacht (que será depois marginalizado), assume por
meados dos anos trinta algumas características keynesianas, com
a dívida pública usada para derrotar a ocupação não só em função
do rearmamento, mas também com investimentos civis (as auto­
-estradas, os bairros citadinos) e o melhoramento do nível de vida
(até ao Volkswagen).
O realismo político entrelaça-se, porém, com o prossegui­
mento dos fins últimos, que não foram abandonados com a
transformação das seitas ocultistas no grande partido. E desenha­
-se assim primeiro o desencontro entre os nazis e os grupos
conservadores que os levaram ao poder para fins mais limitados
(a grande indústria, os grandes agrários do Leste, o exército) e
depois uma dissensão no próprio círculo restrito de vértice sobre
os fins e sobre as formas da política mundial. O problema é aquele
que Hitler expôs no Mein Kampf e que agitará a Alemanha nazi
até aos seus últimos dias: como obter o consenso da Inglaterra na
criação da Eurásia (que MacKinder identificou com o declínio do
império britânico), garantindo-lhe um grande futuro numa base de
igualdade com o Terceiro Reich?
Hitler quer queimar tempo. A tranquila remilitarização da
Renânia e as campanha do Japão na Manchúria e na China e a
campanha de Mussolini na Etiópia fazem que pense que as
grandes democracias sejam pusilânimes. Pelo final de 1937 -
como se verá - informa os altos quadros militares dos seus
projectos que podem comportar um conflito (de dimensões ainda
imprecisas) nos anos a vir. Encontra resistência que supera com
as alterações no vértice no início de 1938 e com o assumir directo

127
do cargo de «comandante supremo das forças armadas». Mas
antes de se analisar a situação que é criada pelo círculo restrito do
vértice nazi, é necessário de debruçamo-nos sobre as personalida­
des cuja formação cultural será determinante nos processos de
decisão.
De Hess ja se falou. O facto de ser o número dois do partido,
o sucessor designado para ficar à cabeça do Partido e o número
três, depois de Gõring, à cabeça do Estado, no caso de desapare­
cimento de Hitler, diz muito sobre a importância que têm os mem­
bros da Thule. A designação de Gõring no momento da declaração
de guerra, explica-se provavelmente pelo facto de ser preciso dar
garantias de que nem todo o poder e nem todo o futuro estivessem
nas mãos dos «ocultistas». Hildebrand recorda o marechal como
ponto de referência de fortes grupos conservadores que «na se­
gunda metade dos anos trinta [pensavam] num nacional-socialis­
mo moderado com características «normal-fascistas», [ao estilo
do modelo italiano] eventualmente confiado a Gõring» 3 •
Já foram referidas as relações entre Hitler e Rosenberg (que
aliás tinha estudado arquitectura, disciplina bastante apreciada
pelo Führer). Alfred Rosenberg dirige o partido em dificuldades
enquanto Hitler e Hess estão presos. Em 1930, ano de descolagem
do partido, publica O Mito do Século XX (que relembra Houston
Stewart Chamberlain), o único texto ideológico do nazismo (com
o Mein Kampj) que nos ficou, ao qual Hitler parece levantar
reservas, afirmando nunca o ter lido completamente (o que é
pouco provável). Rosenberg parece menos preocupado que Hess
quanto à necessidade de neutralizar a Inglaterra antes do «Drang
nach Osten» e parece ser de opinião que os Eslavos, uma vez
destruído o poder soviético, possam ter um papel subordinado,
mas com alguma dignidade, na nova ordem hitleriana. Afinal os
Eslavos eram de raça branca. Um eco desta linha - em oposição
daquela em que se coloca Himmler - encontra-se numa expli­
cação dada por Hitler do pacto russo-alemão de Agosto de 1939.
A 8 de Março de 1940 escreve a Mussolini:

A Rússia, pela vitória definitiva de Estaline, está sofrendo


sem dúvida uma transformação dos princípios bolche­
viques na direcção de uma forma de vida nacional russa.

3
/bidem, pág. 177.

128
Os que fizeram do nacional-socialismo o mais mortal ini­
migo do comunismo foram aqueles que, sob uma direcção
judaica-internacional, têm a finalidade fundamental de ani­
quilar os povos não hebreus, ou melhor as suas forças direc­
tivas. Mas se o bolchevismo se desenvolve numa ideologia
de Estado Nacional russo e numa ideia económica, isso
representa então uma realidade contra a qual não temos
interesse nem uma razão para combate:r4.

Na realidade a criação da Eurásia era compatível com a


existência de um «Estado nacional russo» subalterno da Alema­
nha, mas não com a existência da URSS de 1 939-4 1 .
Quando Hitler inicia a guerra a Leste, a questão volta a ser
colocada:

Hitler confiou a organização, em sentido estritamente político


do território soviético a conquistar, a Alfred Rosenberg que,
a 2 de Abril ( 1 94 1 ); recebeu a missão de constituir «o
serviço político central para o trabalho no oriente» e a 20de
Abril foi nomeado «encarregado para a resolução centrali­
zada das questões do Leste europeu» [que seria transformado
em ministério para os territórios ocupados com Rosenberg
Reichminister, N. d. R . ] . Para realizar a sua tarefa no estilo
de Hitler faltava-lhe a enérgica brutalidade. Sendo, pelo
contrário, de natureza um pouco contorcida, concebeu-a
principalmente no sentido de considerações teóricas preli­
minares e expôs a Hitler em muitos memorandos as carac­
terísticas de uma subdivisão do território oriental. A 20 de
Junho declarou num discurso programático aos seus próximos
colaboradores - certamente sem se aperceber das extre­
mas consequências das suas palavras, se interpretadas se­
gundo a concepção de Hitler - que quanto ao que dizia
respeito à iminente guerra a Oriente não se tratava de uma
«cruzada contra o bolchevismo», mas sim de «promover
uma política mundial e reforçar o Reich». O inimigo não era
apenas Estaline mas todo o «povo da grande Rússia»5 •

4
Agora em: Andreas Hillgruber: La strategia militare de Hitler, Rizzoli, Milão 1986,
pág. 83.
5
Ibidem, pág. 552.

129
Que Rosenberg tenha pronunciado a frase entre aspas é pouco
provável6 , dado o seu projecto como depois é descrito e o seu
sucessivo comportamento.
No que diz respeito ao primeiro: «O programa de Rosenberg
que previa uma (limitada) assistência aos ucranianos e aos outros
povos da União Soviética não grandes-russos, tinha as mesmas
escassas possibilidades de sucesso junto dos russos quanto as
daqueles que defendiam a tese contrária - que o objectivo da
política alemã no oriente devia ser a de cativar os ' ' grandes­
-russos" . Para Hitler "os Russos" eram simplesmente uma
grande massa eslava, que por razões de pura política de força
tinham de ser contidos em diversas ' 'entidades estatais ' ' 7•
Um outro historiador descreveu assim o projecto de Rosen­
berg: «O plano era separar da Rússia as nacionalidades que faziam
parte da URSS como minorias, a começar pela Ucrânia, e tendia
por isso a estimular naquelas populações sentimentos naciona­
listas separatistas, enquanto o comissário do Reich para a Ucrânia,
Koch, encarava simplesmente conduzir uma política de explora­
ção de tipo colonial segundo as ideias de Gõring e Bormann.
Daqui as divergências; Hitler aprovou substancialmente as con­
cepções de Koch e proibiu a Rosenberg o emprego de ' 'pertencen­
tes a raças estrangeiras' ' nos seus gabinetes. Ali se encontravam
de facto numerosos emigrados russos com os quais Rosenberg se
mantivera em contacto desde 19 19» 8 •
Sabe-se bem que a campanha alemã a Leste se traduziu,
todavia numa guerra de extermínio, que custou à URSS vinte
milhões de mortos. Este estilo de guerra está ligado à cultura que
se está a descrever. Mas justamente para lhe avaliar o alcance é
necessário precisar-lhe os traços. O vértice nazi discute projectos
amadurecidos desde o pós-guerra. Daí que Rosenberg colha uma
ideia de estrutura hierárquica da nova ordem que é em parte
análoga à do Hitler de 1940 e diferente da do Hitler que decide a
guerra a Leste e ali se vê a braços com dificuldades sempre
maiores (a opção de Hitler a favor de Koch segue-se a um encontro
a 8 de Junho de 1943).

6
A fonte é indicada in Tribuna/e Militare Internazionale, Vol. XXVI, Doe. Ps. 1058
(cfr. Hillgruber, op. cit., pág. 595). O texto seria controlado na fonte.
7
Andreas Hillgruber, op. cit. , págs. 552-553.
8
Helmuth Heiber, tradutor de Hitler, stratega, Verbali di conversazioni al Quartier
generale di Hitler, Mondadori, Milão 1986, págs. 164- 165 .

130
Rosenberg pensa portanto em incrementar as formações
russas do general Vlasov formadas por prisioneiros e com eles
fazer uma espécie de exército nacional ( em contraste com a citada
afirmação do «povo da grande Rússia» como inimigo). A Rússia,
sem ucranianos e nacionalidades não russas, seria uma das
«entidades estatais» subordinadas à Alemanha. Mas Hitler des­
confia porque Rosenberg tem «no seu carro» 9 ( ou seja no minis­
tério) emigrados russos e diz:

Já em 192 1 tive a este respeito uma discussão com Rosen­


berg e disse-lhe: Rosenberg, os emigrados não servem para
nada, mete na cabeça que as revoluções são feitas só pela
gente que está no país. Tudo isto me esforcei por explicar a
Rosenberg e, no entanto, ele tem ainda, desde aquela vez,
aquela carga no seu carro. Mas há outra coisa. É verdade que
Rosenberg é um dos mais agudos pensadores de todos os
problemas ideológicos. Mas justamente o ocupar-se de
questões tão vastas fez que, tenho de o dizer, ele tivesse bem
poucos contactos com os vulgares problemas da vida de
todos os dias. Koch disse claramente na cara de Rosenberg:
«Camarada Rosenberg, é muito simples o que vou dizer,
mas tem de admitir que a política que quer empreender,
como a instituição de escolas superiores, a formação de
comités nacionais e por aí fora, só poderei pô-la em prática
se der a esta gente também uma ocupação. Porque se não lhe
dou a possibilidade de serem activos nalgum campo, todo
este trabalho que quer fazer não conduzirá a outra coisa que
não seja acumular uma energia revolucionária que um dia
acabará por se desencadear contra nós. Quer instituir esco­
las superiores e médias para poder constituir aqui o Estado
nacional ucraniano, o qual deveria um dia vir à liça contra
a Rússia. Mas eu não estou em situação de consertar as botas
dos trabalhadores que têm de trabalhar porque aqui não há
nenhum artesão, porque 500 mil hebreus foram afastados.
Que é agora mais importante: que ensine os ucranianos a
consertar as botas ou os mande para as escolas superiores,
paras os pôr em condições de construir o Estado ucra­
niano?». Rosenberg não sabia que responder 1 0•

9
Ibidem, pág. 164.
'º Ibidem, págs. 166- 168.

13 1
«O bravo Koch» 1 1 , como Hitler o define, recorda os seus
aborrecimentos com outro líder da Thule, Frank, governador­
-geral da Polónia:

Tive uma experiência deste género com o Governador­


-geral. Não existe uma economia metódica. Frank confiou-
-me que só tem 1 1 mil polícias para um país de 14 7 mil
quilómetros quadrados, com mais de 16 500 000 habitan­
tes. Tem de se servir ali de todos os polícias para manter a
ordem em Cracóvia, em Varsóvia e nos outros centros.
Como poderia controlar as questões do mercado, dos víveres
e por aí fora? São problemas que não se sabe como resol­
ver 1 2.

É um trecho que traz esclarecimento sobre os homens da


Thule lançados para a conquista do mundo e aos quais Koch
indica os problemas quotidianos. Rosenberg não sabe que res­
posta dar a um funcionário que interpretava as suas directivas
globais como um meio para pôr a combater os Russos contra os
Ucranianos. É porém tenaz nos seus projectos de propor a Hitler
sempre novas iniciativas; e o Führer observa:

Confio apenas nos muçulmanos e em ninguém mais. Verda­


deiros turcomanos, mas sim um raça tipicamente caucásica,
provavelmente até com algumas infiltrações de sangue
nórdico. Por isso, não obstante todos os esclarecimentos
quer de Rosenberg quer dos militares, não confio nem
sequer nos Arménios. Considero as unidades arménias
igualmente infiéis e perigosas. Os únicos de confiança são
os maometanos puros 1 3 •

Também Keitel está preocupado com a propaganda do «comité


nacional» de Vlasov: «Coloquei já a questão explicitamente a
Rosenberg: que pretende fazer realmente com os comités nacio­
nais? Respondeu que estava de acordo que pusessem juntos estes
voluntários auxiliares (assim lhes chamava) e os pertencentes às

11
Ibidem, pág. 167.
12
Ibidem.
13
Ibidem, págs. 55-56.

132
unidades de combate - chama-lhes assim - russas, ucranianas,
tártaras e assim sucessivamente, sob a denominação de exército
de libertação russo-ucraniano» 1 4 •
Hitler defende que «aquilo que conta não é tanto que existam
estas unidades, quanto o facto que não devemos dar lugar a
nenhuma ilusão quanto à medida daquilo que eles podem esperar
ou que nós possamos conceder, ou seja o facto de que não se deve
formar uma orientação em consequência da qual seja preciso fazer
agora um Estado político, como em 1 9 1 6 foi constituído o Estado
polaco, e pela qual Ludendorff iria depois admitir o erro» 1 5 •
Keitel conclui portanto: «Informei assim o ministro Rosen­
berg que, na base das vossas decisões, o seu plano não é tomado
em consideração, que já não deixaremos actuar o senh9r Vlªsov
entre os russos senão dentro do estabelecido» 1 6 •
Note-se como reaparecem, no período mais trágico da cam­
panha a Leste, os nomes do período «ocultista»: Frank, Luden­
dorff, Rosenberg. E para concluir com este último, o biógrafo de
Hitler sintetiza assim o seu pensamento:

Interessava-se por S�hopenhauer e pelas doutrinas filosóficas


indianas. A tese da identidade entre comunismo e judaismo
internacional constituiu o contributo principal do ideólogo
principal da NSDAP, que considerava os seus postulados
ideológicos como verdades de fé e passou a elaborar inacre­
ditáveis miscelâneas de sistema ideológicos, grandiosos no
seu absurdo 1 7 •

O percurso da filosofia indiana e das doutrinas secretas na


macro-história e nas cosmogonias pode dar lugar a convicções
suficientemente fortes para induzirem Rosenberg a projectar com
o atamã ucraniano Paul Skoropadskij uma revolução na Rússia,
em 1 92 1 , quando o jovem arquitecto de Riga guia uma pequena
formação política em Munique 1 8 • Vinte anos depois, os exércitos
de então com a suástica conquistaram toda a Ucrânia. Rosenberg
quer garantir aos Eslavos um papel na nova ordem. Hitler recusa.

14
Ibidem, pág. 1 7 1 .
15
Ibidem, págs. 1 70- 1 7 1 .
16
Ibidem, pág. 1 78.
17
Joachim Fest, Hitler, cit. , págs. 1 65- 1 66.
18
Cfr. Helmuth Heiber, op. cit. , pág. 1 65 .

133
Mas na altura da derrota voltará à ideia de 1939 e verá no Estado
grande-russo dos Eslavos o senhor do futuro. Diz a 18 de Março
de 1945 a Albert Speer, agora ministro para os armamentos e que
sempre gozou da sua particular confiança: «Se a guerra estiver
perdida, também o povo estará perdido. Não é absolutamente
necessário preocupar-se a salvar o que seja preciso para que o
povo alemão sobreviva. O nosso povo demonstrou ser o mais
fraco; o futuro pertence exclusivamente ao povo de Leste que é o
mais forte» 1 9 •
No mesmo período, redigindo o seu testamento político,
Hitler afirmará ter esperado «durante um ano inteiro» um enten­
dimento com uma Rússia nacional na qual Estaline destruísse a
influência judaica20 • Pois que no testamento se continua a apre­
sentar os Hebreus como responsáveis pela guerra e inimigos da
humanidade, afirmando que o futuro pertence «ao povo do
Leste», Hitler parece implicitamente considerar, na sua lógica,
que ele se subtraiu a tal influência e que Estaline seja o herdeiro
de Pedro o Grande, ao qual o Führer faz explícita referência.
Em substância, nos «grandiosos sistemas ideológicos» de
Hitler e Rosenberg oscila-se entre a convicção de que a Eurásia
será edificada pela Alemanha, com os Russos em posição subal­
terna, a vocação para a guerra de extermínio e a convicção final de
que venceu o mais forte e que talvez a Eurásia terá um cunho
eslavo. Trata-se de interpretações sempre no quadro dos anos da
Thule e de Horbiger, para os quais «é significativo o facto
de Hitler ter louvado a capacidade de Rosenberg de ' ' ver tudo
em dimensões grandiosas" . Numerosos são os passos do Mein
Kampf em que ele confere as suas elaborações um carácter
universal, envolvendo todo o cosmos. Ele implicava, no evento
dramático, ªs "estrelas" os "planetas" "o criador do mundo" os
"milhões de anos"» 2 1 •
Este «postulados grandiosos no seu absurdo» estão na base da
formação do homem que, talvez mais ainda que Hitler, é visto
como o génio do mal, o homem ao qual alguns historiadores
atribuem a decisão do genocídio hebraico, e que, desde 1929, (ano
que marca, com a crise económica, o prelúdio da ascensão nazi)

19
Albert Speer, Memorie dei Terzo Reich, Mondadori, Milão 1 97 1 , págs. 566-567.
20
Cfr. Le testament politique de Hitler. Notes recueillies para Martin Bormann,
prefácio de Trevor-Roper, Paris 1 959, pág. 1 37.
21
Joachim Fest, op. cit. , pág. 255.

134
está à frente das SS: Heinrich Himmler. Também ele é colocado
por Fest na categoria do absurdo, um homem «que alcançou
estraordinária força e que, portanto, se encontra na condição de
poder realizar da forma sangrenta as suas loucas ideias» 22 •
Mas não é possível explicar um período político com as
categorias do absurdo e da loucura. Himmler realiza com o
«império das SS» os projectos elaborados no âmbito da cultura
ocultista. As suas ideias sobre a criação biológica de uma nova
raça derivam directamente de Lanz von Liebenfels. Adopta curas
homeopáticas (como Hess) e cultiva a herbanária não por «parti­
culares interesses» 23 , mas pela tradição de Schlegel e Wagner de
um pecado original que seduziu os Ários e pelo qual se têm de
resgatar. Se Hitler com trinta anos não está na primeira linha
contra a República bávara dos conselhos, Himmler com dezanove
anos está nos corpos francos que a abatem. No putsch de 9 de
Novembro de 1923 é o porta-bandeira do partido. Com os seus
soldados negros e de caveiras que trazem nas armas as mágicas
runas de von List, destrói a 30 de Junho de 1934 o nazismo
populista de Rohm e de Strasser em nome de um nazismo
iniciático relativamente ao qual «Joachim Gunthe escreve numa
revista alemã que "a ideia vital que animava as SA foi vencida por
uma ideia puramente satânica, a das SS"» 24 •
A cultura de direita pelo contrário considera as SS «o último
baluarte conhecido do pensamento esotérico ocidental» 25 ainda
que a componente iniciática não se firme ali definitivamente
contra a tecnocrática.
Por sua vez, um intelectual católico de grande autoridade,
dom Giuseppe Dossetti, fornece o motivo dos massacres realiza­
dos pelas SS nos Apeninos toscano-emilianos por uma avaliação
que recorda o livro de Schlegel Sobre a Língua e a Sabedoria dos
Indianos e o facto de que «quem vá à lndia não pode deixar de ficar
impressionado ao longo de todo o curso do Ganges com a mul­
tidão de templos com a suástica», mas chega à conclusão de que
as acções da organização de Himmler são «delitos de casta»
derivados «de um ritual solene e meticuloso de cerimónia demo-

22
Joachim Fest, li volto dei Terzo Rei eh. Pro/ili degli uomini chiave de/la Germania
nazista, Mursia, Milão 1970, pág. 157.
23
Karl D. Bracher, La dittatura tedesca, cit. , pág. 38 1.
24
Cfr. Louis Pauwels e Jacques Bergier, li mattino dei maghi, cit. , pág. 356.
25
Marco Battarra, Andrea Bedetti , Danile Candellieri, in «Orion», Junho 1985 .

135
níaca [pelo] infiltrar profundo no racismo, especialmente nas SS,
da "magia" e do "demoníaco" desenvolvido também na base da
doutrina nacional-socialista do direito e do Estado elaborada, não
de modo secreto e episódico, mas de modo público e sistemático,
de modo formal e académico, como fruto maduro de antecedentes
bem conhecidos da filosofia alemã, e principalmente hegeliana
[que] , no pressuposto da desigual distribuição do "Espírito objec­
tivo" entre os indivíduos singulares [justifica] as empresas mais
criminosas [pelos] máximos detentores do "Espírito objectivo",»
enquanto em síntese «os massacres têm uma conotação que evi­
dencia o ritual e o sacrifício: certamente nas intenções dos autores
e também numa certa consciência das vítimas [católicas] de
"desencadeamentos" dos Poderes espirituais negativos que a
maioria não quer ainda designar por um falso pudor agora bem or­
ganizado [ que consente] em loucas e desapiedadas aberrações» 26 .
Volta a propor-se assim, com uma linha teológica, bem
diversa da laica do Despertar dos Mágicos, a tese dos «Superiores
desconhecidos», das «Forças espirituais negativas», de Satanás
que inspiraria Himmler. Na realidade, atrás dele como atrás das
outras personalidades descritas, está a doutrina secreta no sentido
de uma história por reencontrar e por reconstruir através do
Ahnanerbe, herdeiro do Vril, a reconstrução em versão ariana das
lendas do Graal e dos Templários, o regresso às fontes indo-tibe­
tanas da sabedoria antiga.
É, pois, altura de nos lembrarmos de que «Ordo Templi
Orientis» é a sociedade alemã ligada à inglesa homónima de
Crowley. Os cavaleiros do Templo e do Graal (os primeiros
acusados aliás também de cripto-islamismo, o Islão apreciado por
von Sebottendorf, por Hitler, por Hess) revivem nas «fantasias de
um gigantesco império que se estendesse até aos Urais, no
exorbitar das concepções geopolíticas em espaços dilatados e em
divisões do mundo, nas visões eugenésicas comportando o geno­
cídio de povos inteiros e raças, nos sonhos superiores e nas
fantasmagorias de pureza do sangue e do Santo Graal, [com]
um rigor inflexível que não recuava perante nenhuma conse­
quência» 27 . Assim Hans Frank partia de Nietzsche para propor

26
Giuseppe Dossetti, introdução a: Daniele Gherardi, Le querce di Monte Sole, Vita
e morte delle comunità martiri ji-a Setta e Reno, II Mulino, Bolonha 1986, págs. XVII­
XXVIII.
27
Joachim Fest, op. cit. , pág. 473 .

136
como meta final «a expulsão de tudo o que se liga a Estados,
guerra, política e assim por diante para os colocar depois do alto
da actividade cultural» 28 •
Mas entretanto os cavaleiros do Graal tinham de combater e
Himmler liga guerra e eugenia com a proposta de conceder um
segundo matrimónio junto ao primeiro como «alto reconheci­
mento concedido aos heróis da guerra, aos distinguidos com a
cruz alemã de ouro e com a cruz de cavaleiro», extensível depois
«aos distinguidos com a cruz de ferro de primeira classe, além dos
distinguidos com insígnias de ouro pelo combate à arma branca»,
na base do conceito expresso por Hitler no Mein Kamp : «Ao
melhor combatente cabe a mulher mais bela. Se o homem alemão
tem de estar pronto, como soldado, a morrer incondicionalmente,
deve ter também a liberdade de amar incondicionalmente» 29 •
Neste clima cultural se forma em volta de Himmler um círculo
de personagens fantasistas e impiedosas, cujas biografias seriam
atentamente reconstruídas, a partir da de Reinhard Heydrich, o
número dois das SS, plenipotenciário no protectorado da Boémia
e Morávia, o único importante líder nazi que os ingleses decidem
matar enviando um comando em ligação com a resistência
checoslovaca.
Nascem lendas como a de Rudolf Rahn, íntimo colaborador
do plenipotenciário SS na Itália, Karl Wolff, que seria na realidade
Otto Rahn, autor de textos do esoterismo nazi como Cruzada
contra o Graal (publicado no início do poder nazi) e A Corte de
Lúcifer na Europa ( 1 937, ano do grande relatório de Hitler aos
quadros das forças armadas na perspectiva de uma possível
guerra). Nestes textos afirma-se que a repressão contr� os cátaros
também visava destruir os pesquisadores do Graal. Em 1 939, Otto
Rahn morre durante uma expedição alpinista, Wolff lavra a sua
necrologia, mas, na realidade, transformar-se-ia em Rudolf3 °.
Wolfram Sievers, aluno de Friedrich Hielscher, fundador do
Ahnanerbe, dele se toma administrador geral como coronel das
SS, quando a sociedade se transforma em instituição oficial da

·-
28 Ibidem. A citação é retirada da biografia de Hans Frank de Christopher Kless-
mman, Estugarda 1 97 1 . Ibidem a citação do diário datado de 1 O de Fevereiro de 1 937 : «Se
Cristo aparecesse hoje, seria alemão. Nós somos instrumentos de Deus para a destruição
do Mal ». (cit. ibidem, pág. 477). De Frank existem também poesias da juventude.
2 9 Joachim Fest, op. cit. , pág. 838.

3 ° Cfr. Christian Neradec , Le Mystere Otto Rahn (/e Graal et Monsegur) - Du

Catharisme au nazisme, Paris 1 980.

137
organização de Himmler, com a finalidade de «procurar a locali­
zação, o espírito, os actos, a herança da raça indo-germânica» 3 1 ,
pelo que são realizadas numerosas expedições até ao Tibete, mas
também para reconstruir as vicissitudes do Graal.
O próprio Himmler se rodeia de estudiosos do oculto como
Hess que se interessava por astrologia e vive uma relação especial
com Henrique o Leão que, para Bracher, é um «culto» 32 e, para o
Despertar dos Mágicos, a convicão de ser a sua «reencamação» 33 •
Este primeiro rei da Germânia é objecto de admiração também
para Rosenberg, ao ponto de o definir como o «(! Único» 34 •
Para Mosse «Himmler é um crente nas forças espiritualistas,
acreditava no "Karma" e estava convencido de que era a encarna­
ção de Henrique denominado o Passarinheiro: ou antes toda a sua
mentalidade estava saturada por aquele misticismo de cuja natu­
reza já tivemos ocasião de falar. Nem dele estava imune o próprio
Hitler, que alimentava uma verdadeira paixão por obras como as
do místico da natureza Edgar Daque. Estas falavam de "sonambu­
lismo natural" considerava que as mágicas forças da natureza
brotassem dos sonhos, dado a cultura as ter sublimado e falseado;
o único válido acesso ao cosmos era justamente este contacto com
a força vital originária da natureza» 35 • Mosse acrescenta:

No Mein Kampf Hitler fizera ásperas críticas aos «refor­


madores religiosos» de origem nacional-patriótica e, para
quem tenha presente o misticismo naturalista e o esoterismo
da «ciência secreta» de Hitler, isto poderá parecer contra­
ditório, enquanto, pelo contrário, as razões que induziam o
futuro Führer a tais críticas são esclarecedoras: essencial­
mente referiam-se à incapacidade de fazer dos Hebreus o
foco da própria ideologia e isto leva-nos mais uma vez à
nossa tese, ter Hitler transformado a revolução alemã,
sonhada pelos adeptos do Volk, numa revolução antiju-

31
Cfr. Louis Pauwels e Jacques Bergier, op. cit. , pág. 372.
32
Karl D. Bracher, op. cit. , pág. 35 1 .
33 Louis Pauwels e Jacques Bergier, op. cit. , pág. 365.

3 4 Karl D. Bracher, op. cit. , pág. 35 1 .


3 5 George L. Mosse, Le origini culturali dei Terzo Reich, cit. , pág. 45 3. A asserção

é antecipada na pág. 125 ( «O nacional-socialismo continha em si uma boa dose de


ocultismo. Assim, por exemplo, Heinrich Himmler acreditava no "Karma" e considera­
va-se a reencarnação de Henrique o Passarinheiro»). A fonte é o médico pessoal de
Himmler. Cfr. The Memoirs of Doctor Felix Kersten, Nova Iorque 1 946, pág. 1 5 1 .

13 8
<laica. Os conceitos espiritualistas e teosóficos acabaram
assim por ser relegados para trás e os seus defensores obri­
gados a calarem-se ou simplesmente, eram ignorados.
Embora proeminentes personalidades do partido, de Him­
mler a Rosenberg, a Darré, ao próprio Hitler, privadamente
fizessem sua esta ou aquela versão de tais ideias, em geral
o partido oficialmente apoiava apenas o aspecto anti-he­
braico dos cultos espiritualistas36 •

É possível discutir a tese que reduz o nazismo a uma revolução


antijudaica. Talvez esta seja uma componente da mais ampla
«dolltrina secreta», na qual a luta contra os Hebreus faz parte da
recuperação de uma antiga sabedoria. Em todo o caso anti-semi­
tismo e ocultismo confundem-se perfeitamente na personalidade
de Himmler, bem como a fusão entre o conceito de «Karma» e o
culto de Henrique o Leão, que é o soberano que no mito wagne­
riano acolhe Lohengrin, filho de Parsifal, desafortunado pesqui­
sador do Graal.
Walter Schellenberg, alto oficial das SS, chefe do serviço de
estrangeiros da polícia de segurança (Sichereitsdienst), íntimo
colaborador de Himmler, assim o apresenta num momento parti­
cularmente significativo:

Depois de 25 de Julho de 1 943 Hitler deu instruções para a


Operação Carvalho, destinada à libertação de Mussolini.
Mas não se sabia onde o Duce se encontrava. Naquela
situação, Himmler explorou mais uma vez a sua paixão pelo
ocultismo e não sem um certo sucesso. Recolheu alguns
representantes das ciências ocultas presos depois da fuga de
Hess para Inglaterra e fechou-os todos juntos numa moradia
no Wannse. Videntes, astrólogos e radiestesistas receberam
ordem de tirar do chapéu o Duce desaparecido. Um pouco
depois um mestre do pensamento anunciou que Mussolini
se encontrava numa ilha a oeste de Nápoles. Efectivamente
o Duce fora levado, numa primeira fase, para Ponza. Tem de

36
George L. Mosse, op. cit. , págs. 454-455. A obra de Daque é Urwelt, Sage und
Menschheite, publicada em 1 928 por Diederichs, um dos maiores editores nacionais-pa­
trióticos. Daque é de Munique, berço não só do nazismo como da sua componente
ocultista. Walter Darré é o ministro da agricultura que partilha algumas posições «naturis­
tas» dos Wandervogel que em parte serão continuada pelos ecologistas.

1 39
se dizer, em abono da justiça, que aquele homem naquele
tempo não tinha qualquer contacto com o estrangeiro37 •

Aquele homem «não é senão Wilhelm Wulff, que trabalhou


no Instituto de Pêndulo, constituido em Berlim na Primavera de
1 942; um pequeno grupo de pessoas se reunia todos os dias em
casa do almirante von Schroederstrasse, nas proximidades do
Tirpiz Ufer. Muitos tinham sido presos na altura da " Aktion
Hess" e sucessivamente libertados, mas participavam agora
todos numa actividade ocultista que se desenvolvia com a pro­
tecção da autoridade. Wulff fora introduzido no instituto do
doutor Wilhelm Hartmann, um astrónomo de Nuremberga, vaga­
mente interessado pela astrologia. Reencontrou-se na companhia
de um pequeno grupo de espíritas, mediuns, radiestesistas,
astrólogos, astrónomos e matemáticos. Não pudera deixar de rir,
principalmente porque o Estado se propunha agora explorar
justamente aquelas pessoas que recentemente perseguira»3 8 •
A expressão «fuga» (de Hess) é imprópria. Tratou-se de uma
viagem após uma discussão e talvez de um desacordo no interior
da cimeira nazi. E os desenvolvimentos da discussão (ou desa­
cordo) permitem compreender a razão por que parte dos detidos
é libertada e reutilizada um ano depois. Disto se falará no capítulo
nono. Aqui é importante estabelecer a componente ocultista do
pensamento de Himmler e talvez o seu papel de mais importante
protector dos mestres do oculto depois da missão de Hess.
O pensamento esotérico do restrito círculo no vértice nazi
permanece «no fundo», como defende Mosse, porque em primeiro
plano são apresentados aspectos mais simples e «populares» do
programa, entre os quais justamente a «revolução antijudaica».
Que seja essa a essência - e não uma componente no entanto
fundamental - pode ser objecto de reflexões ulteriores. É certa­
mente o aspecto do programa que é partilhado também por quem
não aceita as convicções esotéricas mas por elas é, de algum modo
influenciado, como acontece, no vértice, com personalidades
como Gõring e Goebbels.
O criador da Luftwaffe e ditador da economia do plano
quadrienal representa a ala conservadora e «moderada» do re-

37
Le memorie di Walter Schellenberg , Longanesi, Milão 1 967 , pág. 1 37.
38
Ellic Howe, Gli astro/agi dei nazismo, cit. , pág. 226. A reconstrução é em parte
obra do próprio Wulff.

140
gime, em boas relações com as classes superiores. Mas ainda que
não se ocupe do oculto, ajuda nas pesquisas um herói da aviação
alemã na Primeira Guerra Mundial, Karl E. Neupert, defensor da
teoria do mundo côncavo. Os estudiosos tradicionalistas que
constestam, como se disse, a versão do Despertar dos Mágicos
sobre o ocultismo nazi e lhe corrigem imprecisões também a
propósito do «mundo côncavo», realçam porém que, «em 1942,
Hermann Gõring, que tinha estima por Neupert, já com setenta
anos, como herói da aviação germânica, para verificar a teoria
organizou, com o consentimento de Adolf Hitler e Heinrich
Himmler, uma expedição científica secreta à ilha de Rügen no
Báltico» 39 •
Gõring tencionava apenas ajudar uma pessoa que estimava,
mas certamente sabia que, junto de Hitler e Himmler, qualquer
projecto que pusesse em questão a ciência adquirida (frequente­
mente definida como hebraica) a favor de concepções que de
algum modo pudessem ser apresentadas como «arianas» tinha um
rápido acolhimento. E Nupert tinha no seu activo dois livros que,
embora apresentando uma cosmologia oposta à de Horbiger, se
colocavam no clima cultural da segunda metade dos anos vinte
que preludia o triunfo nazi. Os dois livros (O nosso Conhecimento
do Ser escrito em conjunto com Johannes Lang; e A Batalha
Contra a Concepção Copernicana do Mundo) publicados em
1926 e em 1928 venderam cerca de 20 000 exemplares.
A concepção da terra côncava tem origem com a moderna
astronomia, quando o segundo astrónomo real de Inglaterra,
Edmund Halley, lança a tese de que a Terra contenha no seu
interior três planetas de dimensões aproximadas às de Venus,
Marte e Mercúrio. Se se recordar que encontramos astrónomos na
Golden Dawn, daí se pode deduzir a continuidade de tradições
culturais alternativas à ciência que conhecemos. O matemático
Leonard Euler aceitou a hipótese de uma Terra oca, substituindo
porém os três planetas por um pequeno sol central. Um outro
matemático, o escocês John Leslie, falou porém de dois sóis.
Estas teses encontraram um ferveroso defensor numa personagem

39
Roberto Fondi, Nascita, morte e palingenesi delta concezione dei mondo cavo, in
«Arthos», n.º 29, pág. 197. É ali lembrado que em /l mattino dei maghi «o nome de
Neupert nem sequer é mencionado. Em compensação fala-se ali de um certo Bender, que
evidentemente só pode ser Neupert» (ibidem, pág. 196). O texto é útil pelas notícias que
se seguem.

14 1
fundamental da cultura de Massachusetts, Cotton Mather, muito
conhecido pelo papel que teve na perseguição das bruxas de
Salem, que de tal falou no seu livro As maravilhas do Mundo
Invisível40 •
Foi através de Mather que a teoria voltou a Inglaterra,
fascinando o capitão John Cleves Symmes que, como discípulo,
publicou em 1926 A Teoria das Esferas Concêntricas de Symmes
que constituiram o interior da Terra. Entre as obras literárias que
põem a hipótese do mundo oco, além da célebre Viagem ao
Centro da Terra de Júlio Veme, é possível enumerar o citado livro
de Bulwer Lytton sobre a raça futura, elemento de ligação entre
estas teorias e o ocultismo <1nglo-alemão.
Após alguns decénios de esquecimento, a teoria da Terra oca
é retomada em A Cosmogonia Celular (1870) do norte-americano
Cyrus Reed Teed que; em três décénios, fundou um movimento
com dois mil adeptos e uma casa editora (The Guiding Star
Publishing House), que publicava a revista «The Flamming
Sword» (A Espada Flamejante). Em 1908 Reed Teed é morto num
confronto com a polícia. Foi através de alguns fascículos da
revista, reencontrados durante a prisão em França, que Neupert
descobriu a teoria da Terra oca, que difundiu na Alemanha até ao
ponto de interessar a cimeira nazi.
A expedição à ilha de Rügen, guiada por um especialista em
radiações de microndas e infravermelhos, Heinz Fisher, tinha a
finalidade imediata de verificar a teoria de Neupert por intermédio
da localização precisa da esquadra inglesa em Scapa Flow. Mas,
após cinco dias de tentativas, a expedição é desmobilizada.
Neupert acabou num campo de concentração «na sequência de
circunstâncias que não estão claras» 4 1 , mas que podemos inserir
no periódico debate «o.k..aj_t�-8-�-��> no vértice nazi, no qual era
dominante a concepção horbigeriana. A teoria da Terra oca é posta
de lado e com ela a ocasional presença de Gõring numa vicissitude
ligada à componente ocultista da cultura nazi.
Mais complexa, a posição de Joseph Goebbels, o ministro da
Propaganda que Bracher apresenta como «o nacionalista num

40
Sobre a concepção e papel de Cotton Mather remeto para o citado Decidente
misterioso.
41
Roberto Fondi, op. cit. , pág. 198. Recorda-se depois o registo dos factos in Willy
Ley (Pseudocienza in paese nazista) já indicativos da sociedade do Vril além das notas a
propósito de Heinz Fisher. Regista-se depois o retomar e a modificação da teoria na obra
de Paolo Emilio Amico-Roxas, da qual é fornecida uma bibliografia.

142
círculo de fanáticos ideólogos ou de grosseiros irracionalistas»42 ,
definição sumária do vértice nazi com componentes ocultistas.
É o único que não pertence ao grupo de Munique (como Gõring)
e ao da Thule que terá papéis de primeiro plano no Terceiro Reich
(além de von Ribbentrop chegado ao nazismo só no momento
da vitória, mas que mais parece um especialista de uma área do
que pertencente ao restrito círculo que toma decisões globais:
um Schacht da política estrangeira sem a preparação de Schacht).
As relações de Goebbels com Hitler nos «anos da luta» têm
fases alternas. Há exaltação pelo comportamento no processo:
«Aquilo que disse naquela ocasião constitui o catecismo de uma
nova fé política. Soube exprimir com palavras redentoras o nosso
tormento»43 • Esboça-se depois um contraste após a libertação de
Hitler e no congresso de Hannover (Novembro de 1925). A ala
«setentrional» e «social» do partido da qual é líder Gregor Strasser
tem em Goebbels um porta-voz que chegaria a pedir para se
«expulsar do partido nacional-socialista o pequeno burguês Adolf
Hitler»44 , que teria posto de lado as componentes anticapitalistas
dõ"programa. Depois Goebbels troca Strasser por Hitler, que lhe
confia a organização do partido em Berlim, onde é fraca: ainda nas
últimas eleições antes da conquista do poder - Novembro de
1932 - o NSDAP tem ali 18 % dos votos contra os 32 a nível
nacional; socialistas e comunistas têm ainda metade dos sufrágios.
Seja como for é com Goebbels que o partido se estabelece
estavelmente na capital e as suas relações com o Führer tomam­
-se estreitíssimas até aos últimos dias da Chancelaria, onde o
ministro da Propaganda se suicidará com a família, numa situação
que Dossetti descreve assim recordando uma expressão de 1935 :

«Hitler nunca se enganou. Ele sempre teve razão. Cumpre


como um servo de Deus a lei que lhe fora dada e foi assim,
no melhor sentido, fiel à sua histórica missão». Quem tinha
escrito estas palavras, depois do suicídio do «servo de
Deus», cumpriu o seu dever de casta matando sua mulher e
filhos e a si em seguida. Não podia ser outro o fim daquele

42
Karl D. Bracher, op. cit. , pág. 379.
43
Citado em Joachim Fest, op. cit. , pág. 246.
44
Ibidem, pág. 285. Comparando os testemunhos o autor conclui que a frase teria
sido pronunciada em colóquios informais e não na tribuna, como foi afirmado por Otto
Strasser.

143
que, com inteligência luciferina, manipulara não só as opi­
niões, como ainda as consciências de muitas dezenas de
milhões de homens45 •

A referência ao dever de casta e à inteligência luciferina faz­


-nos reflectir sobre a possibilidade de, nos últimos anos, Goebbels
se ter aproximado, nas suas sempre mais estreitas relações com
Hitler, daquela concepção de «doutrina secreta» do nazismo que
nunca tinha conhecido e que hostilizara quando aparecia em plena
luz, como no caso de Hess, que o desorientou, como se vê no seu
diário:

Um tolo como este era o substituto do Führer. É quase


inconcebível. As suas cartas estão cobertas de teorias do
ocultismo mal digeridas. O Professor Haushofer e a mulher
de Hess foram a mente diabólica de toda esta façanha.
Empurram o grande homem a fazer o que queriam. Prova­
velmente Hess fez horóscopos, teve visões e coisas desse
género. Imbecilidades. E é isto um dos governantes da
Alemanha. É possível remontar toda a história à sua obses­
são mística sobre a vida sã e todas aquelas tolices quanto a
comer gorduras. Completamente louco. Gostaria de espan­
car cruelmente aquela sua mulher, os seus ajudantes e os
seus doutores46 •

Este diário nos ajudará a compreender, noutros pontos, o


verdadeiro sentido da viagem de Hess, que Goebbels ignorava.
Mas não ignorava o interesse do vértice pelo oculto, que julgava
ser marginal quando era fundamental. Quando o considerava
marginal, teve-o em consideração no delineamento da sua propa­
ganda. Talvez visse depois de 20 de Julho de 1944, e nos últimos
meses, quanto era importante a doutrina secreta e, nos últimos
dias - como se verá -, dedicou-se com Hitler ao estudo de
horóscopos astrológicos. Mas no início da guerra ocupa-se da
utilização das profecias de Nostradamus. E aqui embate naquela
cultura astrológica, que depois deplorará em Hess. A sua história
entrelaça-se com a trágica do suíço Karl Ernst Kraft.

45
Giuseppe Dossetti , introdução cit. , págs. XXI-XXII.
/ diari di Goebbels / 939-41 , tradução de Fred Taylor, Sperling & Kupfer, Milão
46

1 984, pág. 438, na data de 14 de Maio de 1 94 1.

1 44
Trata-se de uma personalidade entre as mais relevantes da
astrologia entre as duas guerras47 , cujas investigações interes­
saram Jung48 com o qual teve contactos, que em vésperas do
conflito publicara um Tratado de Astrobiologia e que era também
um estudioso de Nostradamus, qualidade com que é chamado a
colaborar no ministério da Propaganda do Terceiro Reich.
Encontramos a este respeito duas magras notas no diário de
Goebbels: «Organizo uma comissão de especialistas que se
ocupem de Nostradamus e de astrologia. Fornecerá o material
necessário à minha propaganda» 49 • E: «Discuti a fundo os versos
de Nostradamus em colaboração com o serviço secreto para os
usar em França e nos países neutrais» 50 • É a síntese de um
acontecimento mais complexo. Por um lado Kraft era já conhe­
cido na Gestapo. Por outro a utilização de Nostradamus era suge­
rida de vários lados.
Um dos amigos e apoiantes de Kraft era o astrólogo F.C.
Gõmer, de Mannheim, onde o suíço faz conferências no decorrer
de 1 935, quando a posição do nazismo relativa aos astrólogos
oscilava entre a desconfiança e a alta consideração, ao ponto de
fazer deles funcionários de uma ciência de regime. Kraft publi­
cava então boletins económicos de base astrológica (os Wirths­
chaftsberichte ). Entre os assinantes estava Eduard Hofweber,
«íntimo amigo de Rudolf Hess ao qual enviava os boletins. As
relações entre Hofweber e Kraft interessaram a Gestapo. [Durante
uma conferência] de Kraft dois indivíduos, claramente espiões da
Gestapo, compareceram na sala e ficaram a ouvir durante algum
tempo» 5 1 •
Quando Goebbels convidou Kraft a figurar entre os seus
técnicos na Alemanha, dada a referência explícita do seu diário
aos serviços secretos, sabia portanto de quem se tratava e da
ligação com Hess, pelo que o seu espanto de Maio de 4 1 surge
excessivo e forçado. E se o «nacionalista» ministro da Propa­
ganda se interessava por Nostradamus e por astrologia, era porque
sabia que este tipo de cultura tinha prestígio no vértice nazi, ainda

47
Cfr. a biografia in Ellic Howe, op. cit. , em especial o capítulo VI, «A origem de uma
obsessão» e o cap. VII, «Uma carreira de astrólogo».
48
Jung cita os estudos de Kraft in La sincronicità, Boringhieri, Turim 1980, pág. 57.
49
I dia ri di Goebbels, cit. , pág. 1 15, na data de 9 de Janeiro de 1940.
50
Ibidem, pág. 122, na data de 16 de Janeiro de 1940.
51
Ellic Howe, op. cit. , pág. 1 13.

145
que ignorasse quanto era profundo o seu envolvimento com a
«doutrina secreta».
A origem do interesse por Nostradamus entre os nazis data da
publicação, em 192 1, por iniciativa de um funcionário dos
correios de Berlim, C. Loog, de As Profecias de Nostradamus,
que teve diversas edições até à quinta em 1940. Loog defendia,
obviamente como outros, ter encontrado uma particular chave
interpretativa. Tendo-a por base afirmava que «Nostradamus
indica claramente que em 1939 haverá uma crise no ressuscitado
Estado da Polónia em simultâneo com a última e maior crise
britânica»5 2 de uma sequência de sete crises iniciadas em 1649
(decapitação de Carlos I - Stuart).
Um outro amigo de Kraft, «o doutor H. H. Kritzinger, no seu
livro Mistérios do Sol e da Alma (saído em 1922 mas ainda em
circulação em 1939), citava a interpretação de Loog. O livro é lido
pela senhora Goebbels, pouco depois do rebentar da guerra, que
o indicou ao marido, ao qual, mais ou menos no mesmo período,
pelo menos quatro pessoas tinham enviado um exemplar do livro
com o trecho que se referia à profecia de 1939»53 , indício claro do
tipo de publicações que constituiu uma leitura nos vértice nazi.
Conta Kritzinger:

O coronel von Herwath, que trabalhava no ministério da


Propaganda, avisou-me que o doutor Goebbels queria falar­
-me. Estive com ele quinze minutos das 12.50 às 13 .05 de
4 de Dezembro de 1939. Fora o modo como a profecia de
Loog se verificara que impressionara Goebbels e outras
personagens do ministério da Propaganda. Vislumbravam
infinitas possibilidades pela guerra psicológica e acredita­
vam claramente que cada especialista de Nostradamus
estivesse em situação de produzir outros assombrosos
exemplos desse género para uso da propaganda a favor da
Alemanha. «Que têm a dizer os seus amigos astrólogos a
propósito da situação actual?» perguntou-me. Disse-lhe que
Daladier, o primeiro-ministro francês, não tardaria a se
retirar da política. «Em que base fez esta profecia?» pergun­
tou-me. Expliquei-lhe que se baseava numa comparação

52
Ibidem, pág. 127.
53
Ibidem, pags. 128- 129.

146
entre o horóscopo de Daladier, do de Churchill e de outros
dirigentes políticos aliados. Então Goebbels disse: «Quero
que alguém trabalhe para mim sobre Nostradamus. O senhor
não pode encarregar-se disso? 54

Kritzinger recusou. Propôs Loog. Também ele não aceitou.


Kritzinger sugeriu então a Goebbels o nome de Kraft, que
admirava a Alemanha nazi, aceitou e, nos começos de Janeiro de
1 940, chegou a Berlim. Fora precedido por uma previsão sobre o
atentado a Hitler organizado na Burgerraukeller de Munique a
8 de Novembro de 1939, por altura da celebração do aniversário
do putsch de 1 923. Retomaremos o tema a propósito das várias
tentativas para matar o Führer. De momento estamos com o tema
da atitude de Goebbels:

O [seu] interesse pela astrologia e as falsas profecias para os


objectivos da propaganda está nas actas das reuniões secre­
tas que tinham lugar diariamente no ministério da Propa­
ganda. Uma meia dúzia de minutos feitas num período de
seis semanas (30 de Outubro - 13 de Dezembro de 1 939),
[assim] o indicam. A 30 de Outubro, Goebbels pede um
relatório imediato sobre o conteúdo dos jornais astrológicos
e dos almanaques. A 2 de Novembro, no seguimento de
certas opiniões cujas origens se podiam atribuir a adivinhos,
videntes, astrólogos, as repartições do partido receberam
ordem para estarem atentas. A 1 0 de Novembro Goebbels
ordenou que as publicações astrológicas fossem atenta­
mente examinados para nelas se procurar quanto pudesse
ser interpretado como presságios do atentado a Hitler.
A 22 de Novembro decidiu banir todas as publicações
astrológicas. Naquela mesma reunião estabeleceu-se proce­
der à preparação de um prospecto sobre Nostradamus.
A 5 de Dezembro o doutor Karl Bõmer teve ordem de
esboçar o texto com o coronel von Herwath. A 11 de
Dezembro o ministro pediu um exemplar de todos os
almanaques astrológicos para 1940. Um dia depois era
proibida a sua venda. A 1 3 de Dezembro falou da propa­
ganda baseada em material astrológico e levou o prospecto

54
Citado ibidem, págs. 1 29- 1 30.

1 47
sobre Nostradamus. Nas minutas não existem mais referên­
cias à astrologia e a Nostradamus até 27 de Março de 1940 55 •

É lícito supor que em Novembro de 1939 estivesse em curso


uma consulta no vértice nazi sobre as perspectivas de paz com a
Inglaterra e, como variante, o início da campanha no Ocidente que
a prudência dos generais fez adiar umas vinte e nove vezes até
Maio de 1940, expressão do persistente embate entre Hitler e parte
dos oficiais superiores. O atentado e as previsões astrológicas
entrelaçavam-se num quadro no qual, na base dé! cultura ocultista,
o vértice sopesava os factores favoráveis e os contrários. O quadro
dos encontros de Hitler reconstruido por Hillgruber, se bem que
incompleto5 6 , permite registar, num período em que o Führer via
principalmente militares, quatro encontros com Rosenberg entre
1 de Novembro e 1 1 de Dezembro, dos quais um também com
Hess (3 de Dezembro).
É o período em que também Goebbels se interessa pelos
astrólogos, que têm com o nazismo a relação já descrita. A proi­
bição das publicações marca o prevalecer da desconfiança de
Hitler sobre a confiança de Hess que, de qualquer modo, continua
a manter as suas relações. Kraft, seja como for, é chamado a
Berlim para ser utilizado como intérprete de Nostradamus5 7 • Mas
uma vez que era conhecido apenas como astrólogo, talvez Hess
pensasse utilizá-lo em seguida como tal. A sua chegada contribui
para se pensar que também Hilter quisesse utilizar os horóscopos.
O tipo de discussão que se estabeleceu no vértice nazi (e que
envolve talvez umas dezenas de pessoas com conhecimento da
«doutrina secreta») exige uma investigação à qual é dedicado o
próximo capítulo. Os traços culturais de Hitler, Himmler, Rosen­
berg, Frank, Hess, Haushofer aqui delineados servem para confir-

55
Ellic Howe, op. cit. , págs. 1 3 1- 132.
56
Cfr. Andreas Hillgruber, op. cit. , págs. 675 e sgs, «Itinerário de Hitler de 1 de
Setembro de 1939 a 3 1 de Dezembro de 194 1 » , reconstruido segundo uma série de origens
ali citadas, com a precisão que «Aqui são lembrados todos os colóquios de Hitler para os
quais existe pelo menos uma referência certa. Não são indicados os normais colóquios
diários com os seus íntimos colaboradores auxiliares, vértices do OKW [alto comando
Wermacht, N da R.], representantes do partido e dos serviços estatais no Quartel-General
do Führer» .
57
Ellic Howe recorda em primeiro lugar, pelo interesse suscitado, a famosa quadra
interpretada como vatícinio da prisão de Luis XVI em Varennes. Como prova da atenção
da cultura tradicional pelo argumento, Georges Dumézil dedicou-lhe um dos seus últimos
escritos: . . .// monaco nero in grigio dentro Varennes, Adelphi, Milão 1987.

148
mar a cultura comum de um grupo que passou pelas leituras e
pelos pequenos grupos esotéricos, desde a experiência de Thule
à construção do partido, à conquista do poder e à gestão do
Terceiro Reich para a preparação da grande guerra ariana.
Quando ela se torna uma perspectiva concreta a partir de
Novem bro de 1 937, os grupos conservadores começaram a preo­
cupar-se, no temor de que o realismo até então demonstrado por
Hitler, quer na política interna ( com o quase keynesianismo
descrito ) quer na política externa ( com o obj ectivo declarado da
si mples reparação das «injustiças» do tratado de Versalhes)
estivesse para ser substituído pelo messianismo visionário de que
o Mein Kampf era o documento mais evidente, mas de que não
faltavam outros indícios.
O vértice nazi, porém, estava dividido quanto à possibilidade
de não travar uma guerra em duas frentes, contra os Franceses­
-Ingleses a Oeste e os Russos a Leste. Hitler no seu livro garantia
que o evitaria a todo o custo. Mas era possível neutralizar a
Inglaterra em vista do Drang nach Osten? Que luzes podia dar a
cultura esotérica e que relação com análogas culturas na Inglaterra
podia ser instaurada?
Para reconstruir estes acontecimentos e esta discussão é neces­
sário utilizar uma série de indícios habitualmente subestimados
pelos historiadores. O significado que assumem o exílio de
Thyssen e de Rauschning, ou os escritos de grandes intelectuais
do regime como Junger e Schmitt, é examinado à luz de quanto
surge até aqui insuficientemente documentado: que as decisões de
Hitler e de uma parte considerável do vértice nazi eram inspiradas
não só pelas normais considerações atinentes às «categorias do
político» 58 (para usar a terminologia de Carl Schmitt) como ainda
por uma doutrina secreta baseada na convicção de que os seus
estudiosos pudessem apoderar-se de forças e dons especiais e que
estivessem disponíveis canais para uma relação privilegiada com
homólogos na sociedade inglesa.
O infundado destes pressupostos exerceu uma influência que
não é subestimada no processo de decisão do vértice nazi na
adopção das duas opções que lhe foram fatais: a guerra de 1 939
e o ataque à URSS em 1 94 1 .

58
. Le categorie dei politico é o título da maior c n kctânea de escritos de Carl Schmitt
em língua italiana, II Mulino, Bolonha 1972.

1 49
7
O PODER E A GUERRA

Entre 1937 e 1939 multiplicam-se os sinais do que está para


acontecer. No quarto aniversário da ascensão à Chancelaria, Hitler
faz prorrogar por quatro anos a lei que lhe conferiu plenos poderes.
Sai em Zurique o segundo volume da biografia de Konrad Heiden
em que se indica que o objectivo final do Führer é a «criação de
uma nova elite ariana e do seu domínio mundial» 1 onde por «elite
ariana» é entendida não a Alemanha, mas a nova humanidade
eurocêntrica prevista pela doutrina secreta. A visita de Mussolini
à Alemanha (Setembro) estabeleceu as premissas do Eixo, que
deve pressionar a Inglaterra para a induzir às negociações pelo
condomínio mundial. Em Novembro Schacht deixa o ministério
da Economia Nacional. A sua tarefa está concluída. Prepara-se a
economia de guerra. Em Março, Pio XI tinha publicado a encíclica
Mit brendenner Sorge que, não obstante a cautela sucessiva e a
decisão de negociar com Hitler, é considerada por alguns historia­
dores a expressão das preocupações do pontífice pelo «neopaga­
nismo» nazi2.
Enquanto a Alemanha atirou para trás das costas a humilhação
de Versalhes e o prestígio de Hitler está no auge, o homem que,
mais do que qualquer outro, tinha contribuído para o seu êxito
desde os primeiros anos vinte com enormes financiamentos, o

1
Konrad Heiden, AdolfHitler, 2 vols., Zurique 1936-37, vol. II, pág. 240. O texto tem
uma tradução italiana: Adolfo Hitler, /' epoca dell' irresponsabilità, Roma 1947.
2
Cfr. Giuseppe Dossetti, introdução cit. a Le querce di Monte Sole, págs. XXIV-XXVII .

15 1
magnata do aço Fritz Thyssen, abandona o país; e avisa as demo­
cracias adversas do perigo constituído por Hitler em escritos de
títulos claríssimos: / Paied Hitler (Nova Iorque, 1 94 1 ) e «I Made
a Mistake When I Backed Hitler» (in «American Magazine»,
números 16- 17, 1 940): eu financiei Hitler e cometi um erro ao
apoiá-lo.
Thyssen é um homem aventureiro e imaginativo. Quando em
1 923 os franceses ocuparam o Ruhr por um atraso no pagamento
das dívidas de guerra, apoiara a constituição de esquadras de
voluntários para a luta armada, projecto que a Reichswehr blo­
queara3 . No exílio, apresenta um Hitler que já desconfia também
da Gestapo4 , e que teria até nas veias sangue hebraico, porque
filho de um Rothschild5 • Seja como for atribui ao Führer «por
vezes uma inteligência surpreendente, uma miraculosa intuição
política privada de qualquer sentido moral, mas extraordinaria­
mente precisa. Até na situação mais complexa, percebe por
instinto o que é possível e o que não é» 6 •
Mas Thyssen compreendeu que Hitler perdera agora esta
percepção. Empurrado pelas suas convicções cósmicas, começa a
percorrer um caminho que o obrigará a afrontar em armas a maior
coligação da história. A premissa está no relatório que pede a 5 de
Novembro de 1 937 aos altos oficiais das três armas e ao ministro
dos Negócios Estrangeiros (Constantin von Neurath, que se
demitirá em Fevereiro de 1938 para ser substituído por von
Ribbentrop, já embaixador em Londres).
Viu-se que a política externa de Hitler estava já exposta no
Mein Kampf Fora ulteriormente precisada num chamado Se­
gundo Livro (Zweites Buch) ou livro secreto redigido pelo futuro
Führer em 1928, não publicado, cujo texto foi reencontrado e
dado a conhecer pelos americanos7 . No relatório de 1 937 (rela-

3
Cfr. Karl D. Brachter, La dittadura tedesca, cit. , pág. 1 42.
4
Cfr. Walter Langer, Psicanalisi di Hitler, cit. , pág. 1 37- 1 38.
5
«Thyssen afirma que o chanceler Dollfuss tinha ordenado à polícia austríaca que
fizesse uma apurada investigação sobre a família de Hitler. Dali resultou um relatório
secreto, do qual resultava que um membro da família Rothschild é o verdadeiro pai de
Alois» [pai de Hitler, N. d. R . ] (Langer, op. cit. , pág. 1 26). O psicólogo acrescenta que
· «histórias como esta circulam em mais de uma versão, mas de um ponto de vista científico
é mais correcto não fundamentar a nossa reconstrução em testemunhos tão ténues» (págs.
1 26- 1 27). De facto, daquele famoso relatório, guardado em local secreto, nunca foi
encontrado vestígio.
6
Walter Langer, op. cit. , pág. 84.
7
Tradução italiana: Adolf Hitler, li lihro segreto, Milão 1 964.

1 52
tório Hossbach, do nome do coronel e ajudante-de-campo de
Hitler, que dele conservou uma espécie de acta, considerada
fidedigna no conjunto), as orientações já conhecidas recebem um
aumento de ritmo cronológico: «Hitler passou em revista os
objectivos respeitantes à Áustria e à Checoslováquia que tencio­
nava alcançar no decorrer do Verão de 1 938 e considerou a
necessidade de resolver a ' ' questão territorial ' ' entre 1 943-45»8 ,
com a criação do «espaço vital» a Oriente.
Uma «grande Wehrmacht»9 devia garantir estes desenvolvi­
mentos. E coloca-se o problema das relações entre nazismo e
exército, que Dumézil definiu nos termos da tripartição descrita
e que é útil para compreender a constante tensão entre o vértice
nazi e as forças armadas até ao atentado de 20 de Julho de 1 944.
Em todos os sistemas políticos se coloca a relação entre poder
político e poder militar. O primeiro tende a afirmar, nas socieda­
jes modernas, a sua predominância, de vez em quando contestada
tanto nas democracias representativas como nos países do «socia­
lismo real». O problema sempre se colocou também na Alema­
nha, na qual parte da historiografia deu como assente um pre­
domínio do poder militar, pelo que também o nazismo teria sido
uma expressão do militarismo germânico. Uma outra parte da
historiografia (particularmente alemã), pelo contrário, apresentou
a casta militar como um dos pontos de referência da resistência
antinazi.
Na realidade, o vértice nazi considerava-se superior aos
militares como detentor de dotes particulares e da autêntica
doutrina (secreta) do curso histórico. Na tripartição da tradição
ariana Hitler e o grupo da Thule consideravam-se mais depo­
sitários da autêntica sabedoria da raça do que «políticos». Como
tais, a sua proeminência estava fora de discussão e os militares
constituiam um simples instrumento técnico, de quem se devia
desconfiar pela estreiteza das suas concepções e pelo seu carácter
«reaccionário». Segundo Fest, «Himmler uma vez ouviu Hitler

8
Cit. por Klaus Hildebrand, O Terceiro Reich, ât. , pág. 4 1 . O A. acrescenta: «O
relatório é bastante problemático do ponto de vista das fontes, mas no conteúdo coincide,
de qualquer modo, com outros " documentos-chave" da pol ítica externa nacional-socia­
lista» (Ibidem).
9
Ibidem, pág. 66.

1 53
resmungar referindo-se aos generais: "aqueles disparam-me para
as costas mais uma vez"» 1 0 , como em 1923.
Para fazer frente às forças armadas na nova fase, Hitler assume
pois directamente, como se disse, o seu comando e substitui por
homens mais maleáveis o ministro da Guerra von Blomberg e o
chefe de Estado-Maior do exército barão von Fritsch, ambos afas­
tados com acusações desonrosas (respectivamente de ter casado
com uma prostituta e de homossexualidade; fundamentada a
primeira, mas não a segunda). Keitel é posto à frente do Oberkom­
mando e von Brauchitsch do Estado-Maior do exército, o qual não
reagiu, como não tinha reagido à morte de von Schleicher a 30 de
i
Junho. Mas as relações continuam em recíproca desconfança.
A sua origem é dúplice. Uma parte dos generais considera que
o Fuhrer está a preparar uma guerra que não pode vencer. A his­
toriografia é unânime ao considerar que ele não pensava num
conflito mundial (ainda que estivesse consciente da sua possibi­
lidade) mas numa série de campanhas individuais e limitadas, que
se concluiriam rapidamente sem sequer incidir sobre o nível de
vida na pátria (Hitler recordava as consequências negativas que o
seu declínio tivera em 19 14- 19 18). Assim foi de facto a «guerra­
-relâmpago» até Junho de 194 1: Áustria e Checoslováquia foram
liquidadas sem conflito; Polónia, Dinamarca, Noruega, Bélgica,
Holanda, Luxemburgo, França, Jugoslávia, Grécia, com campa­
nhas de poucas semanas.
Mas uma parte dos generais temia um conflito mundial, como
depois se verificou. Estava convencida (contrariamente a Hitler)
que a Inglaterra nunca aceitaria aquele «condomínio» que já tinha
recusado em 19 14 e que não conduziria a uma Europa «alemã»
como premissa para a criação do Lebensraum eurosiático (que
segundo Mackinder seria o fim da hegemonia britânica). Este
sector da casta militar estava tão convencido de que eclodiria um
grande conflito em que o Terceiro Reich perderia, que tomava em
consideração a possibilidade de depor Hitler na véspera da crise
de Munique e depois da campanha da Polónia.

10
Joachim Fest, Hitler, cit., pág. 55 1. A fonte é uma biografia de Hitler de Walter
Gõrlitz e H. A. Quint, Estugarda 1952. É lícito supor que, dirigindo-se a Himmler que
estava ao lado dele, Hitler tenha dito «nos» e não «me» (dispararam-nos, etc.). Fest
acrescenta: «Está fora de dúvida que Hitler sentia uma profunda aversão, ulteriormente
reforçada pelas experiências de 1923, nos choques com os " velhos velhacos" , arrogan­
tes, rígidos, com o monóculo sempre entalado na órbita» (op. cit., págs. 55 1-552).

154
Não havia nisto intenção alguma de amor pela paz e nenhum
espírito liberal-democrático. Havia era a convicção de uma futura
derrota. Estes generais erraram no breve prazo, porque durante um
triénio (Verão de 1938 - Verão de 1941) Hitler teve êxito na
táctica das iniciativas individuais «relâmpago». Tiveram razão a
longo prazo, porque a partir do Verão de 1941 o Terceiro Reich
viu-se comprometido em mais frentes e, a partir do Inverno, viu­
-se em guerra com os Estados Unidos.
Um segundo sector de militares parece ter tido uma atitude
que considerava a tese aqui apresentada. Homens como Fromm e
Olbricht estavam convencidos de que os objectivos nazis iam para
além não só de «rever» Versalhes, não só do Condomínio da
Europa, mas se inspiravam em concepções do mundo - a história
e a cosmogonia esotérica, a recuperação de antigas sabedorias e a
construção de uma nova humanidade - que eram pura loucura.
Se algum deles teve a ideia de que esta doutrina poderia influir
mesmo na dedução de que se pudesse chegar a um entendimento
com a Inglaterra encontrando interlocutores que partilhassem as
ideias, a convicção de que a estratégia do Führer estava votada ao
desastre ia ulteriormente consolidar-se a partir da convicção de
que tais interlocutores não existiam.
Só nesta base se pode explicar um facto, que não há precen­
dentes na história e na cultura germânica: altos oficiais, incluidos
os dos serviços secretos, fomeceram falsas infarmações ao Führer
e informações verdadeiras e preciosas aos inimigos da Alemanha.
Isto não decidiu efectivamente o destino do conflito - a Ale­
manha, com o fraco aliado italiano e a distante e autónoma
iniciativa do Japão, não estaria de qualquer modo em situação de
aguentar a guerra nas dimensões que assume no final de 1941 -
mas indica que fractura cultural teve lugar na Alemanha no final
dos anos trinta.
Herdeiros de uma tradição militar em que a fidelidade ao País
em guerra é o princípio fundamental (e nela se apoiaram até 20 de
Julho de 1944 os militares da primeira tendência indicada),
consideravam o_ «nazismo mágico» de Hitler uma concepção de
e
tal modo absurda perigosa que os induziu a infringir aquele
princípio e a colaborar com as nações inimigas da Alemanha.
Na base destas premissas, a história das forças armadas
alemãs será analisada até à conjuntura de 20 de Julho de 1944.
Aqui é importante considerar que conservadores como Thyssen e
militares de cultura conservadora e reaccionária intuiram no

1 55
nazismo aquela componente de cultura oculta que explica os seus
comportamentos, de outra forma não compreensíveis depois de
quanto tinham feito para levar Hitler ao poder.
Mas no início de 193 8 estes indícios mal eram perceptíveis.
Hitler prosseguiu no seu rumo. Quinze dias depois do relatório
Hossbach recebeu no «ninho das águias» lorde Halifax, ministro
dos Negócios Estrangeiros -do novo governo Chamberlain, que
«lhe expôs as linhas políticas de appeasement, com a possibilli­
dade de modificações territoriais (arrumação no sentido alemão
das questões austríaca e checoslovaca e do problema de Dantzig)
em troca da inserção do Reich germânico num duradouro sistema
pacífico europeu. Hitler pediu a mão livre a Oriente, mas não
recuou efectivamente perante a eventualidade de ter de realizar os
seus objectivos programados em conflito com a Inglaterra» 1 1 •
Daqui a aceleração expansionista, com a incorporação da Áustria
(Março de 193 8) dos Sudetas (Outubro) e depois de toda a
Checoslováquia (protectorado da Boémia e Morávia e Estado
independente da Eslováquia, Março de 1939).
Mas no vértice cultural e político do «nazismo mágico» existe
a percepção do risco. Pode correr-se o risco do conflito com a
Inglaterra. Também é possível iniciá-lo e pressionar militarmente
Londres para que aceite o «condomínio mundial». É porém
necessário um acordo antes de poder marchar para Oriente. Hess
e Haushofer exprimem esta posição. Himmler, Rosenberg e
talvez Frank consideram que o entendimento com a Inglaterra
talvez não seja indispensável. Hitler foi sempre, desde o Mein
Kampf, defensor desta última tese. Mas, em 193 8, oscila talvez
porque os seus ininterruptos sucessos desde a Renânia em diante
lhe deram «a segurança do sonâmbulo».
Um indício do facto de este debate continuar até ao eclodir da
guerra (para recomeçar em 1940) é dado por · um facto singular
como a publicação, em 1939, de Sobre os Rochedos de Mármore
de Emest Jünger. Trata-se de uma narração tão transparente da
situação do poder nazi, que Goebbels considera que devia ser
proibida a sua publicação. Hitler autorizou-a. O motivo está no
facto de o Führer ter grande estima por Jünger, um herói do
primeiro conflito mundial, cujos escritos eram a bíblia do nacio-

11
Klaus Hildebrand, op. cit. , pág. 42.

1 56
nalismo guerre iro e tinham levado ao nazismo multidões de
jovens leitores.
O moti vo é inteiramente inconsistente. Na Alemanha nazi os
heróis de guerra não só deviam estar calados se não estivessem em
sintonia com o regime como, por muito grande que fosse o seu
prestígio ( como von Schleicher) ou o seu contributo para a vitória
(como Rõhm), eram eliminados friamente se considerados peri­
gosos. Depois de 20 de Julho marechais e generais gloriosos e
condecorados eram enforcados e pendurados em ganchos de
açougueiros. Estes sinais são particularmente apropriados, por­
que justamente no livro de Jünger existe uma antecipação desta
cena.
Jünger era certamente um intelectual de fama. O seu livro Der
A rb eiter 1 2 , de 1 932, indica o papel do trabalhador (na Alemanha
que Hitler controlará um ano depoi,,s) em sintonia com a tripla
função ariana de que trata Dumézil. E um excelente escritor. Mas
o seu livro de 1 939 demonstra que também ele é um compartici­
pante e um representante da componente ocultista do nazismo.
É impossível dizer quantas centenas de quadros dirigentes da Ale­
manha daquele ano a partilhavam e sabiam que as decisões no
vértice eram tomadas também nessa base. Mas pode dizer-se com
certeza que Sobre os Rochedos de Mármore pôde ser publicado
não obstante o parecer de Goebbels (de outra formação cultural)
e por ordem de Hitler, porque este quis dar a perceber o que se
estava a preparar e talvez considerasse obter reacções pela forma
como livro seria acolhido.
O enredo da história é simples. Um país feliz - que na
descrição física é a Dalmácia, que o escritor visitara recentemente,
e que é designada como Grande Marina, em analogia com a
Alemanha - é atraiçoado por um poder bárbaro (representado
por Forestaro) que no fim vencerá. O narrador e o irmão Otão

12
Cfr. o recente ensaio de Manfred Hinz: «Der Arbeiter de Ernst Jünger: as premissas
filosóficas do romantismo político», in Aa. Vv. , Fascismo e nazionalsocialismo, traduzido
por Karl Dietrich Bracher e Leo Valiani, II Mulino, Bolonha 1 986, págs. 205 e sgs. Ali se
recorda que em 1 930, o A. tinha escrito Der Kriegyand die Krieger (sobre a guerra), mas
sustenta-se que «para Jünger trabalho e batalha são idênticos, o trabalhador é idêntico ao
soldado e a forma de comunicação deve ser a do comando e da obediência e arte do
comando consiste em indicar ideais que valham o sacrifício» (pág. 2 1 3 ). Mas ainda que
o ser comandado pelos «sapientes» seja traço comum, soldado e trabalhador têm funções
diferentes. Recorda-se ainda a polémica entre Paul Tillich e Carl Schmitt se o de Jünger
era «romantismo político» (pág. 2b5): um aspecto das estreitas relações entre Schmitt e
Jünger de que se falará mais adiante no texto.

157
(identificáveis com o próprio Jünger e o seu irmão, ex-guerreiros
e agora estudiosos daquelas plantas que também apaixonam
Himmler) assistem e depois participam nas tentativas de resistên­
cia contra aquele poder bárbaro e mágico que por fim prevalecerá.
Salvam-se refugiando-se numa mítica Burgundia (note-se que
Himmler tencionava fazer da Burgundia, depois Borgonha, o
«Estado dos SS», no qual construiria o homem novo).
O leitor de 1939, tal como o de hoje, não pode deixar de ver
neste texto referências claríssimas a Hitler e à Alemanha. Para o
demonstrar é necessário recorrermos uma série de citações para
cuja interpretação tem de se ter presente tudo o que se tem dito até
agora sobre a doutrina secreta.
O livro começa com «a tristeza de lembrar o tempo feliz
irremediavelmente passado» 1 3 porque «aconteceu por fim que,
tais como cinzentas sombras, os génios primordiais daquela terra,
e ali residentes em épocas diversas, se aproximaram, com rudes
rostos lenhosos cuja expressão era ao mesmo tempo serena e
horrenda» 1 4 • O seu chefe é assim descrito:
Nós conhecíamos Forestaro havia muito, como antigo
senhor da Mauritânia. Também os serões asiáticos que
oferecia aos adeptos eram célebres. Nos seus olhos brilhava
uma assustadora jovialidade. Ouviu mais tarde o irmão
Otão dizer, a propósito dos tempos decorridos na Mauritâ­
nia, que um erro se tomaria culpa quando nele se insistisse;
e o dito pareceu-me tanto mais verdadeiro, voltando a
pensar na situação em que nos encontrávamos no momento
em que aquela ordem nos atraiu ao seu âmbito. Aban­
donámo-nos à magia dos tempos passados ou de inal­
cançáveis utopias e, .como sempre, onde a dúvida é acom­
panhada pela plenitude da vitalidade, convertemo-nos à
violência. Começámos a sonhar com o poder e a superiori­
dade e a fantasiar quanto às formas que, audazmente orde­
nadas e compostas, se movem ao encontro do contrário no
mortal duelo da vida para chegar à ruína ou ao triunfo. Era
inevitável que os Mauritanos se aproximassem de quem
alimentava semelhantes inclinações; e nós fomos iniciados
pelo Capitão, que tinha reprimido a grande rebelião nas

13
Ernst Jünger, Sul/e scogliere di marmo, Mondadori, Millão 1942, pág. 9.
14
Ibidem, pág. 1 2.

158
províncias ibéricas. Quem bem conheça a história das
Ordens secretas sabe quanto dificilmente lhes é possível
determinar a extensão; e é conhecida a sua fecundidade, pela
qual formam ramos e colónias; e, no caso de se querer
seguirem-se-lhes os traços, perdemo-nos num labirinto.
Também isto era verdade para os Mauritanos, e tomava-se
particularmente estranho ao novato ver reunidos nas mes­
mas salas e nos mesmos colóquios os que pertenciam a
facções que alimentavam umas pelas outras um ódio mortal.
Os Mauritanos exigiam que a força fosse usada sem paixão
alguma e à maneira dos deuses, e segundo esta exigências
as suas escolas educavam uma raça de espíritos claros,
livres e sempre extraordinários. Embora a sua acção se
apresentasse, na rebelião ou no restabelecimento da ordem,
«Semper victrix», não tinha significado para os membros,
mas apenas para o chefe; e isto não era mais que a doutrina.
Com o variar dos tempos e no selvagem transformar das
vicissitudes, a Ordem continuava inabalável. Uma vez o
Capitão como em sonho disse: «Nenhuma taça de espu­
mante foi alguma vez tão deliciosa como aquela que nos foi
oferecida, junto das nossas armas, na noite em que incen­
diámos Sagunto até a reduzirmos a cinzas». E nós pensámos:
antes viver a ruína juntamente com este, que viver com
aqueles que o medo obriga a arrastar pelo pó. Para os
Mauritanos o mundo reduzia-se a um mapa gravado por
amadores mediante compassos e brilhantes instrumentos de
medição. Por isso parecia estranho deparar com figuras
como Forestaro naquela atmosfera clara, sem sombra e
absolutamente abstrata. Mas quando o espírito livre funda
para si os próprios domínios, os autóctones do poder sempre
o acompanham como a serpente rasteja para o fogo. Eles são
os antigos conhecedores da violência e vêem aparecer a
nova hora para restabelecer a tirania que desde o início vive
nos seus corações. Desta maneira, nas grandes Ordens se
formam as vias secretas e os ludíbrios, cuja direcção e enca­
minhamento nenhum historiador pode adivinhar; e também
surgem os mais subtis contrastes, que se exprimem no
íntimo âmbito do poder; sejam os contrastes entre o pensa­
mento e a sua representação ou entre os ídolos e o Espírito 1 5 •
15
Ibidem, pág. 3 1-35.

159
Um trecho deste género é suficiente para refutar a hipótese de
a alegoria de Jünger poder também longínquamente referir-se a
Staline, o Forestaro que insidia a civilização; e que, por isto, Hitler
tenha permitido a sua publicação. No texto, pelo contrário, se
nota, de forma muita clara, o eco de Agharti e de Sham bha lah,
do contraste antigo entre os _«espíritos livres» e os «autóctones do
poder» e da discussão em curso enquanto se prepara «o mortal
duelo para chegar à ruína e ao triunfo», entre quem quer aliar-se
à Inglaterra para marchar para Oriente e quem considera poder
passar sem isso. A referência aos «serões asiáticos» é aquela que
a transfiguração narrativa exige; de resto, são bem conhecidos os
serões hitlerianos que se prolongavam pela madrugada. E a
«assustadora jovialidade» de Forestaro pode fazer lembrar os
almoços na Chancelaria que o próprio Hitler definia, segundo
Speer, como «Restaurante do alegre chanceler» 1 6 •
Que a sumariamente esboçada descrição física de Forestaro
não corresponda à do Führer (mais à de Goring, como se notou)
é obviamente o mínimo que Jünger podia fazer depois de uma
descrição do ambiente tão clara e de uma síntese como esta: «Tal
como na montanha uma cerrada nuvem é anunciadora de tempes­
tade, assim uma nuvem de terror precedia Forestaro. O terror
cercava-o e eu tenho a certeza de que a sua força consistia bastante
mais na sua tremenda fama do que nele próprio» 1 7•

16
Albert Speer, Memorie dei Terzo Reieh, cit., pág. 162, neste contexto: «Não havia
dia que à mesa da Chancelaria não se sentassem, à hora do almoço, quarenta ou cinquenta
pessoas. Bastava telefonar ao ajudante de Hitler e avisá-lo de que se iria; militares nunca,
com excepção dos oficiais das forças armadas destacados junto do Führer como conse­
lheiros. Um deles, o major Schmundt, fez mais vezes pressão em Hitler para que
convidasse para a sua mesa também algum oficiai! superior, mas Hitler nunca lhe fez a
vontade» (pág. 159). Teve depois um incidente com Hess, cujo ajudante «introduzia na
Chancelaria alimentos especiais que, aquecidos na cozinha, lhe eram servidos à mesa.
Hitler, quando soube, apostrofou-o iradamente: ' ' A sua comida não a pode trazer
consigo' ' . Hess que já então estava no caminho das contestações obstinadas, tentou
explicar a Hitler que as componentes dos seus alimentos deviam ter uma particular origem
biológico-dinâmica; então, sem grandes cerimónias, Hitler respondeu que nesse caso
fosse comer em sua casa. Depois disto Hess cessou quase inteiramente de participar nestes
almoços» (págs. 162- 163 ). Mas continuou a ser o sucessor designado, sinal de uma hierar­
quia interna que vinha da Thule e da particular intimidade entre o Führer e o « Vertreter»
que se podia permitir a não estimar a honra de se sentar à mesa de Hitler. Também «o
higienista Himmler raramente aparecia nesta reuniões de convívio» (pág. 163).
17
Ernst Jünger, op. cit., pág. 37.

160
Podem multiplicar-se as citações 1 8 até à tentativa de matar
Forestaro, antes da catástrofe final, de que são protagonistas «dois
homens um dos quais fez o sinal que serve aos Mauritanos para
se reconhecerem no escuro. Ele disse-me o seu nome, Braque­
mart, do que me recordava, e apresentou-me o outro, o jovem
príncipe de Sunmyra, entre os notáveis da nobreza da Nova
Burgundia» 1 9 • Esta é descrição que se segue:

Braquemart ia ao encontro do perigo desportivamente;


tinha o ânimo firme e daquela espécie que não teme os
obstáculos; porém, esta virtude era acompanhada, infeliz­
mente, pela tendência fácil pelo menosprezo. Como todos
os ambiciosos de poder e também de máximo poder,
transpunha os seus sonhos selvagens para o reino da utopia.
Tinha a opinião de que no início duas raças diferentes
· existiriam na Terra, os senhores e os escravos, os quais com
o andar dos tempos se tinham confundido entre si. Por estas
ideias era discípulo da velha mentalidade impetuosa e à
maneira desta exigia a nova determinação das duas raças;
como já muitos outros, também ele acreditava ter reencon­
trado a primeira sede da espécie humana. Nós assistimos
mesmo à reunião em que houve referências a escavações
arqueológicas; e ouvimos então que num longínquo deserto
fora descoberta uma estranha charneca. Altos pedestais de
pórfiro se erguiam ali sobre uma grande planície. Tinha
subido por eles e encontrara nos terraços ruínas de castelos
principescos e de templos do Sol e reconstruiu depois
fantasticamente aquela civilização e os ninhos de águia dos
primeiros senhores deste nosso mundo. . . Pode parecer
bizarro que Braquemart quisesse opor-se a Forestaro, pois
que muito existia de semelhante no seu pensamento e na sua

18
Por exemplo, para a base popular de Forestaro: «Na Campagna o povo dos
pastores era selvagem ainda e pouco civilizado. Aqui encontravam um primeiro refúgio
devedores que queriam evitar a prisão, estudantes que tinham actuado com demasiado
energia numa rixa entre companheiros de pândega, juntamente com frades que tinham
despido o hábito e outros vagabundos de tal espécie» (págs. 42-44 ). E depois: «Quando
filhos de notáveis e jovens que acreditavam ter chegado o dia de uma nova liberdade
participavam neste uso, a confusão mais aumentava ainda. Houve literatos que se
apressaram a imitar as canções dos pastores e o selvagem país dos pastores era considerado
cidadela dos genuínos costumes, consentâneas com a estirpe» (pág. 47) .
19
Ibidem, pág. 97.

16 1
maneira de agir. Contudo havia diversidade no propósito de
um e de outro, uma vez que o velho tencionava povoar a
Marina com selvagens ferozes, enquanto Braquemart a
considerava terra para escravos e para ser dominada com
exércitos de escravos. Tratava-se em suma de um entre os
vários conflitos internos da Ordem dos Mauritanos, que não
cabe aqui explicar em todo o seu aspecto20 •

Braquemart não é tanto um indivíduo identificável quanto


expressão de uma corrente de pensamento da doutrina secreta,
com o eco das antigas civilizações de escravos e senhores à
Horbiger e o deserto (Gobi?) sede primária da antiga civilização.
É clara a referência aos conflitos internos quanto ao tipo de
sociedade a construir, enquanto se prepara o conflito que lhe
assinalará a primeira fase do advento.
O embate tem a forma de uma discussão quando se decide a
guerra no Outono de 1 939. Quando se esboça, em 1 944, a derrota,
uma parte dos iniciados (do círculo de Haushofer como o filho
Albrecht; e como von Stauffenberg, do qual se viram os ascen­
dentes culturais) alia-se com os generais (alguns dos que vêem a
derrota e os que temem o oculto) para eliminar Hitler (simboli­
zado por Forestaro) e tentar salvar algumas estruturas do terceiro
Reich. O próprio Jünger, capitão em Paris (onde escreve um diário
ao qual voltaremos) está em ligação com os conjurados. Mas já em
1 939 prevê a derrota2 1 e nas vestes do protagonista e do irmão
Otão tenta, no livro, descobrir como terminou a tentativa. Cons­
tatam-no na sinistra clareira de Kõppels-Bleck, que fora lugar de
antigos ritos sangrentos:

O meu olhar descobriu entre as caveiras há muito descama­


das, mais duas cabeças novas, erguidas ao alto de longas
varas: as do príncipe e de Braquemart. Das pontas de ferro,

20
Ibidem, págs. 98- 1 02.
21
« 0 jovem príncipe de Sunmyra» é descrito assim: «Braquemart tinha a intuição das
próprias fraquezas perante o velho e por isso tinha conduzido consigo o jovem príncipe.
Este parecia participar de uma maneira de sentir inteiramente diferente; mas de tal modo
que se formavam por vezes estranhas alianças. Talvez o príncipe usasse Braquemart à
maneira de uma barca para a travessia. Uma grande capacidade de sofrimento vivia
naquele fraco corpo, parecia um sonhador, quase desatento e, todavia, certamente, ele
segurava o timão. No campo de batalha, quando a trombeta toca ao assalto, acontece
igualmente que o bom guerreiro, ainda que moribundo, se erga ainda da terra» (Ibidem,
págs. 1 03- 1 04).

162
em cujos ganchos tinham sido espetadas, olhavam os bra­
seiros que iam ficando cinzentos à medida que se apagavam.
Ao jovem príncipe os cabelos tinham embranquecido, mas
os traços do rosto eram ainda mais nobres e daquela
suprema beleza que apenas a dor educa e forma. Os traços
de Braquemart, pelo contrário, não tinham mudado: do alto
da sua estaca olhava com leve asco e com escárnio Kõppels­
-Bleck, e a expressão era de imposta calma, como de quem,
com cãibras dolorosas, delas não quisesse dar mostras no
rosto; nem me surpreendeu ver entalado no olho o monóculo
que costumava usar quando vivo. Os seus cabelos estavam
ainda pretos e brilhantes, e compreendia-se que no devido
momento tinha engolido a pastilha que todo o Mauretano
traz consigo22 •

Estes ganchos recordam justamente os do açougue, nos quais


veremos enforcados muitos conjurados de 20 de Julho de 1944.
Jünger, portanto, não só descreve o conflito no interior do círculo
de iniciados, como lhe prevê o desenlace. E justamente porque
Braquemart é a personagem-símbolo de um grupo, tem ao mesmo
tempo o monóculo dos oficiais que Hitler desprezava e a pastilha
de veneno com a qual, «no devido momento», já prisioneiro, se
suicidará Himmler, que obviamente não participará na conjura,
mas que tentará soluções políticas para o conflito sempre para
salvar algumas estruturas do Terceiro Reich23 •
No mesmo período em que permite esta descrição alegórica da
discussão no círculo dos cultores da doutrina secreta, Hitler põe
em surdina os dados históricos reais do seu processo de formação.
Como em 1934 silencia von Sebottendorf, em 1938 , ocupada a
Áustria, força von Liebenfels ao silêncio.

22
Ibidem, págs. 128- 130.
23É esta a descrição em O Despertar dos Mágicos: «A 20 de Maio de 1945 alguns
soldados britânicos prenderam um homem com documentos em nome de Hitzinger.
Durante três dias os oficiais britânicos tentaram descobrir a sua verdadeira identidade. Por
fim, cansado, disse: «Chamo-me Heinrich Himmler». Quebrou uma ampola de veneno
escondida num dente e morreu. Ninguém sabe com exactidão onde foi enterrado Himmler,
debaixo de que arbustos acabou por se decompor a carne daquele que se julgava a
reencarnação de Henrique I, conhecido pelo Passarinheiro» (págs. 364-365). Pode ter
algum significado que Himmler se tenha voltado para os ingleses como Hess: a antiga
esperança e ilusão de encontrar interlocutores na base das comuns raízes ocultas de alguns
sectores da aristocracia e da intelectualidade britânicas.

163
Já em 1934, enquanto as relações entre nazismo e astrólogos
estavam em convergência, um seguidor de von Liebenfels fora
marginalizado: «No número de Abril ( 193 3) de " Astrologische
Rundschau " [do qual fora editor von Sebottendorff, N. de R.]
Theobald Bacher afirmava com segurança que ' ' a consciência das
próprias heranças nacionais e os laços de sangue com a raça ariana
estão indissoluvelmente unidos à ciência astrológica ' ' . Com ex­
cepção de ' ' Zenite' ' muitas publicações de astrologia começaram
a publicar ârtigos, nos quais se explicava como a astrologia era
uma ciência requintadamente nórdica. O mais ofensivo e vio­
lento, dentro deste ponto de vista, durante 1933-34, foi o " Mensch
im All ' ' [o homem no cosmos] , de Reinhold Ebertin [filho de
Elsbeth, N. d. R. ] , talvez, porque o seu periódico estivesse
temporariamente unido ao do professor Ernst Issbemer-Haldane
" Die Chiromantie" . Issbemer-Haldane, nascido em 1886, era
um conhecido quiromante de Berlim, especializado em alegados
diagnósticos médicos formulados na base do aspecto das unhas
dos seus pacientes. Não obstante as tolices e as alusões racistas,
o seu livro autobiográfico Der Chiromant foi proibido em 1934.
Issbemer-Haldane era um dos discípulos de Lanz von Liebenfels,
o fundador vienense do Movimento Ariosófico, que era ao mesmo
tempo ocultista e anti-semita de modo patológico» 24 •
O livro foi proibido justamente pela ligação do seu autor com
von Liebenfels. A sua posição é assim descrita por Fest: «Em
seguida [depois do seu processo de formação, N. d. R. ] Hitler
exprimiu abertamente cepticismo e embaraço nos contactos com
a doutrina de Lanz; é verdade, seja como for, que depois do Ans­
chluss de 193 8, vetou a publicação dos seus escritos. A influência
deste sectário, contrariamente a quanto afirma expressamente
Daim, não pode ser investigada em simples pormenores, e Hitler
indubitavelmente não pode ser considerado um ' 'aluno' ' de Lanz
( . . . ); por outro lado é inegável que o conjunto das concepções de
Hitler foram marcadas, reforçadas e aprofundadas pela influência
de Lanz» 25 •

24
Ellic Howe, Gli astrologi dei nazismo, cit. , pág. 55.
25
Joachim Fest, op. cit., pág. 99. O A. prossegue: «Na organização dos ficheiros
genéticos do Serviço central para a raça e os registos das SS, como também nos actos de
genocídio em relação a "existência indignas de viver " , ou seja de hebreus, eslavos e
zíngaros, as ideias, ao mesmo tempo confusas e letais, de Lanz von Liebenfelds continuam
a subsistir embora com conotações diferentes». (Ibidem). O texto de Daim é: Der Mann,
der Hitler die ldee gah.

1 64
Desaparecem portanto da circulação os textos que contribuí­
ram para a formação de Hitler, mas é publicado um romance
alegórico, de um intelectual de grande prestígio como Jünger, que
descreve as raízes da componente ocultista da cultura nazi e a sua
influência na discussão do vértice. Tudo isto se concluirá com a
decisão de arriscar a guerra sem ter a certeza da atitude da
Inglaterra, embora com a esperança de que se resigne a sacrificar
a Polónia como fez com a Checoslováquia.
Um indício deste debate e daquele que está a amadurecer pode
deduzir-se do comportamento de uma outra personalidade de
grande cultura (como Heidegger e Benn) que é muito amigo de
Jünger e que está ligado à temática das relações entre o nazismo
e o grande pensamento germânico. Schmitt é um jurista católico,
conservador, teórico de soluções autoritárias, homem de ponta do
regime no âmbitojurídico. Pensa no «Estado total» antes de Hitler,
quer inverter o curso da história da Revolução Francesa, defen­
dendo o chamado despotismo iluminado. Nada tem a ver com a
cultura do oculto, com a doutrina secreta que foi descrita nos
primeiros capítulos. Mas através da estreita amizade e das confi­
dências de Jünger apercebe-se do que está a amadurecer; assim se
explicam os seus comportamentos e os seus escritos entre 1 93 6 e
1 93 8 e principalmente a relação com a personalidade e com o pen­
samento de Hobbes e com o seu célebre e assombroso LeviatãQ..
Em 1 936 Schmitt é um homem respeitável; presidente da
associação dos juristas alemães, é considerado o constituciona­
lista do regime. Inscreveu-se no partido apenas em 1 933 mas,
depois de Junho de 1 934, assumiu a responsabilidade (e o mérito)
de ter confirmado com a sua autoridade de cientista do direito que
Hitler tinha perfeitamente razão de personificar a justiça germâ­
nica quando mandava matar pelas SS não só o líder das SA, como
ainda velhos amigos de Schmitt, como o general Schleicher.
É este Schmitt que, nas celebrações do terceiro centenário da
publicação do Discurso do Método, faz uma conferência com o
título «O Estado como mecanismo em Hobbes e em Descartes»,
no qual estes dois filósofos são apresentados como expressão da
racionalidade que funda o pensamento moderno. No segundo
«não se encontra nenhuma das imagens míticas e demoníacas de
que Hobbes é tão rico»26 • Mas também estas imagens, como a

26
Carl Schmitt, Scritti su Thomas Hobbes, Giuffré, Milão 1984 pág. 47.

165
mais célebre, o Leviatão, mesmo que «Hobbes soubesse qualquer
coisa de demónios e de demonologia» 2 7, são compreendidas por
Schmitt como inteiramente tranquilizantes: «A imagem do Levia­
tão nada mais é senão uma ideia literária e semi-irónica, originada
pelo bom "humor" inglês» 28 .
Dois anos depois, Schmitt volta ao assunto com o título
O Leviatão na Doutrina do Estado de Thomas Hobbes- Sentido
e Falência de um Símbolo Político . O prefácio tem a data de 1 1 de
Julho de 193 8, dia do seu quinquagésimo aniversário. Naquele
mesmo dia escreve uma carta imaginária, que endereçava a si
mesmo e que assina «Benito Cereno», a personagem da história
de Melville que descreve a situação de um homem que parece livre
mas que, na realidade, é escravo dos piratas. Naquelas semanas
dá-se a crise checoslovaca, que poderia conduzir à guerra (desem­
bocará pelo contrário no acordo de Munique: o conflito, porém,
apenas foi adiado por um ano). Nas mesmas semanas, Schmitt
compreendeu, pelos colóquios com Jünger, que estão a amadure­
cer os prazos previstos no «relatório Hossbach». É neste quadro
que são feitos juízos inteiramente opostos aos de 1936.
Descartes, no qual não se encontrava «nenhuma das imagens
demoníacas», é agora o homem «da misteriosa existência rosacru­
ciana» 29, do qual é recordada a frase «as ·ciências estão actual­
mente mascaradas» 30 ; Hobbes não só «sabia qualquer coisa de
demónios», mas «como todos os grandes pensadores do seu
tempo tinha propensão para os véus esotéricos. Ele próprio disse
de si que por vezes fazia ' ' ouvertures' ', mas que os seus pensa­
mentos reais os desvendavam apenas em metade: dizia compor­
tar-se como aqueles que abrem por um instante a janela, mas que
imediatamente a fecham com medo da tempestade. As três
citações do Leviatão que emergem no decorrer do livro, seriam
agora talvez três daquelas janelas abertas por um instante», para
o qual o próprio Leviatão já não é um dito de espírito mas «é
possível que atrás da imagem se esconda um significado mais
profundo e misterioso» 3 1 •

27
Ibidem, pág. 5 1.
28
Ibidem.
29
Ibidem, pág. 82.
30
Ibidem, pág. 1 38.
31 Ibidem, pág. 8 1 -82.

1 66
René Guénon numa afirmação retirada de A Crise do Mundo
Moderno afirma (retoma Schmitt) que «a rapidez com que toda a
ci vilização medieval sucubiu ao ataque do século XVII é incon­
cebível sem a hipótese de uma misteriosa " vontade directiva"
que fica na sombra e de uma ' 'Jg�ia pr�concebida' '. Os símbolos
que estavam ainda vivos no -século XIII eclipsam-se a partir do
século XIV e desaparecem sem deixar rasto a partir do XVI.
A irrupção de um novo mundo, completamente diferente, é evi­
dente na grande obra de Karl Giehlow [ que acentua] como no arco
de triunfo para Maximiliano I aparecem também peixes que signi­
ficam certamente ' ' impiedade' ' e ' ' injustiça' ', mas não em forma
de Leviatão»32 • O qual, seja como for, é objecto de uma cuidadosa
e atormentada análise que Schmitt não conclui, limitando-se a
afirmar que «nenhum resultado simplesmente biográfico ou de
psicologia individual poderia constituir resposta definitiva ao
nosso problema, que concerne o mito político como força histórica
independente»33 •
A angústia de Schmitt neste período, dada a sua identificação
com Hobbes sobre o qual muito se escreveu, está bem expressa no
final do prefácio. «O nome do Leviatão lança uma longa sombra,
que envolveu a obra de Thomas Hobbes e que certamente envol­
verá também neste livrinho»3 4 • Análogo o final entre angústia e
orgulho: «Hobbes disse de si mesmo cheio de amargura: ' ' doceo,
sed frustra' ' ( ensino, mas em vão). Não recompensado e todavia
na imortal comunidade dos grandes sábios de todos os tempos.
E por cima dos séculos, gritamos-lhe: ' 'nom jam frustra doces,
Thomas Hobbes! " (não ensinaste em vão)»3 5 •
Compunhamos as peças do mosaico. Jünger, que conhece a
componente �sotérica da cultura nazi e dela partilhou, escreve
uma história alegórica sobre a situação em 1 938. Está preo­
cupado, quase certamente próximo das posições do grupo de
Hess, que considera o acordo com a Inglaterra necessário para
evitar que a marcha para Leste se transforme em catástrofe. Indica
as suas preocupações ao amigo Schmitt, que escreve por sua vez
uma carta alegórica e analisa o significado alegórico do Leviatão
não já com a certeza de 1 936, mas com angústia. O grande mito

32
Ibidem, pág. 1 38.
33 Ibidem, pág. 82.
34 Ibidem, pág. 64.
35 Ibidem, pág. 1 32- 1 33 .

167
político interpretado como construção do Estado totalitário para
o qual o próprio Schmitt contribuiu transforma-se em qualquer
coisa de diferente. Poderia ser não já positivo, mas negativo. Uma
sombra desce sobre a obra de Hobbes e de Schmitt, que poderiam
ter ensinado em vão. O jurista apercebeu-se de algo de obscuro na
passagem da Idade Média à Idade Moderna. René Guénon viu ali
uma misteriosa «vontade directiva» hostil à cultura (católica) na
qual Schmitt cresceu. Poder-se-ia pensar na vontade iluminística,
na conjura das sociedades pré-jacobinas que prepararam a Revo­
lução Francesa. Seria uma interpretação conhecida e consoladora
para o filósofo político, que exaltou toda a cultura contra-revolu­
cionária, de De Maistre a Donoso Cortes que invoca abertamente
a ditadura contra a degenerada sociedade liberal.
Mas há mais alguma coisa de diferente e de preocupante
que se refere a Guénon, que estuda e discute a iniciação e contra­
-iniciação, que começou como mação, que descobriu os limites da
maçonaria, que assinala a ambígua relação entre os bons e os maus
magos da tradição do Agharti. E Schmitt é assaltado pela dúvida
de que também no nazismo paire um espírito diferente daquele
que ele apreciou, partilhou, reforçou, voltado para a criação do
Estado total. Esse é sempre o seu ideal. A crítica que faz a Hobbes,
«a falha» que distingue na «unidade tão compacta e irresistível»
é que «deixa ao indivíduo a liberdade interior de crer ou de não
crer» 36 • ainda que o seu comportamento exterior se conforme em
tudo e por tudo com a vontade do Estado soberano. Schmitt aliás
gostaria de suprimir também tal limitadíssima liberdade interior
(que não pode exprimir-se falando e comunicando), para que o
poder do Estado fosse verdadeiramente total. E o regime nazi vai
certamente neste caminho, com o seu delineamento da educação.
Se Schmitt está preocupado e angustiado, se a sua segurança
de 1936 se atenua em 1938 , não é portanto por uma crítica à
estadolatria hitleriana. Ele teme que tal estadolatria seja gerida de
modo arriscado por uma doutrina esotérica, da qual a racionali­
dade jurídica de Schmitt desconfia.
Não é por isto que Schmitt, como Jünger, muda de atitude de
plena solidariedade com o regime. Falar de «imigração interna»
não tem sentido. Schmitt recorre à alegoria de Benito Cereno e à
alegórica interpretação do Leviatão como ligado ao esoterismo de

16
Ihidem, pág. 1 04- 1 05 .

168
Hobbes (e indirectamente ao rosacrucianismo de Descartes) uni­
camente para exprimir a preocupação de que o regime, por ·uma
inspiração sem fundamento, corra o risco de uma mal calculada
aventura bélica que poderia comprometer o resultado -o Estado
total - que Schmitt tanto aprecia, que está em via de corrigir a
falha «individualista» 37 de Hobbes, para impor o seu querer
também às consciências.
Justamente por esta plena partilha dos fins do regime nazi, no
mesmo ensaio Schmitt denuncia a «frente hebraica» que se inicia
«com o primeiro hebreu liberal Espinoza», continua com a
«táctica hebraica» de Moses Mendelssohn, através «dos jovens
Rothschild, Karl Marx, Bõme, Heine, Meyerbeer», para culminar
no «filósofo hebreu Friedrich Julius Stahl-Jolson que levou a cabo
a stia obra de pensador hebreu para contribuir para castrar um
vigoroso Leviatão», ou seja o Estado total, padrão também das
consciências, que Hobbes teorizou embora com uma falha e que
Hitler está a realizar sem falhas.
Schmitt traz portanto o apoio da sua cultura à campanha nazi
contra os intelectuais hebreus que tentaram enfraquecer a «sabe­
doria alemã» 38 e, escreve apenas para si uma carta alegórica,
elabora para o público a teoria do «Grossraum», o grande espaço
europeu, que ladeia a nazi do «Lebensraum» o espaço vital a
conquistar a Leste. É a teoria da criação da Eurásia, e é bastante
surpreendente que o estudioso norte-americano, George Schwab,
no seu ensaio (que é a mais esforçada mas também a mais
infundada descrição de um Schmitt exilado no seu próprio país),
fale de Grossraum gegen Universalismus, publicado em 1939 em
defesa da política expansionista de Hitler no ano que conduz à
guerra, como «moldado pela doutrina de Monroe» 3 9 , embora
precisando que «sendo a Alemanha a entidade política dominante
na Europa central, Schmitt reivindicava o seu direito a tomar
decisões respeitantes a todo o continente europeu. O princípio
schmittiano não anulava os limites nacionais, implicitamente
assentes no princípio do Lebensraum»40 •

37Ibidem, pág. 1 04.


38Todas as citações Ibidem, pág. 1 06- 1 1 9.
39 George Schwab, La sfida delle ' ccezione. lntroduzione alia teoria politica di Carl

Schmitt, Laterza, Roma-Bari 1 986, pág. 87.


40
Ibidem.

169
Schmitt, portanto, continua a ser o valioso defensor das teses
de política interna (sobre os hebreus) e de política externa (sobre
a expansão) ,do Terceiro Reich. Os seus escritos têm ampla
difusão na Alemanha, amplo eco no exterior e é quanto basta para
refutar a versão de um estudioso que estaria isolado e ameaçado
depois da crítica indignada, em Dezembro de 1936, do semanário
das SS «Das Schwarze Korps». Schmitt era acusado de oportu­
nismo por ter proposto corrigir de dentro o sistema de Weimer e
ainda pelas suas muitas amizades hebraicas ( que o jurista teria
imediatamente desmentido)4 1 •
Mas o interesse da vicissitude de 193 8 não está em usá-la para
comprovar o facto de Schmitt continuar, como Jünger e Hei­
degger, a ser um leal defensor do partido de que tinha o cartão,
como também da Alemanha nazi em vésperas da guerra. Está no
facto de o jurista, por intermédio do amigo Jünger, ter parcial
conhecimento daquilo que se preparava (a guerra) e das razões

41
No já citado ensaio sobre Hobbes de 1938 escreve que Stahl-Jolson «trabalha
segundo a linha global do seu povo, quer dizer na duplicidade de uma existência a
mascarar, que se toma tanto mais horrível quanto mais desesperadamente quer ser algo de
diferente daquilo que é» (pág. 1 19). Já em 1936 dera a entender que esta «duplicidade»
dizia respeito também à vida privada do filósofo, que teria sido imoral, num escrito em que
afirmava «não posso olhar para dentro da alma deste Stahl-Jolson» na revista «Deutsche
. Juristen-Zeitung». Uma vez que fora criticado pelo que tinha considerado uma insinuação,
Schmitt retoma o assunto em 1938 precisando que as cartas particulares do «filósofo
hebreu» foram queimadas «porque eram ilegíveis» e comenta: «Em 1936 cobriram-me de
lama, mas não se perguntou através de que processo eu teria chegado a uma afirmação
semelhante. Esta nota vale como adjunção e post-scriptum para aqueles que deverão ter
um interesse objectivo no assunto» (pág. 1 1 4). Que Schmitt se lamente de ter sido coberto
de lama por ter criticado um pensador hebreu e o escreva em 1938, ano em que a situação
dos hebreus na Alemanha é bem conhecida, é indício de um sentido de humor não
facilmente perceptível nos seus outros escritos. Mas o apresentar-se como perseguido
também lhe foi muito útil em 1945. Quanto à crítica de «Das Schwarze Korps», que
Schwab definiu como «venenosa» (pág. 200) dando-lhe um amplo resumo (págs. 200-
-202), constitui uma descrição objectiva da posição de Schmitt. Porém, ele não era um
oportunista. Tinha uma teoria autoritária do Estado que considerava aplicável por quem
quer que a aplicasse, o «zentrum» católico, os partidos reaccionários de Weimar, o general
Schleicher, o nazismo. Mas o nazismo tinha uma concepção sua do Estado, semelhante
mas não idêntica à do jurista. E não admitia outras primazias. Schmitt não podia replicar,
porque teria de admitir ou ser um oportunista ou ser o verdadeiro teórico do Estado
autoritário para o qual os vários obreiros eram substituíveis (o que não era admissível no
Terceiro Reich). De qualquer modo, a posição de Schmitt não foi de forma alguma
«verdadeiramente perigosa» como afirma Schwab (pág. 204 ). Continuou a estar no vértice
cultural do Terceiro Reich. O seu apologista admira-o ao ponto de escrever que «a
característica essencial do Estado autoritário schmittiano consiste na aceitação de uma
esfera privada não divergente da de Hobbes» (pág. 2 1 0), quando os textos citados provam
exactamente o contrário: Schmitt criticava o «individualista» Hobbes por querer defender
a liberdade de consciência.

1 70
pelas quais se preparava (uma doutrina esotérica). E, homem de
cultura alheio a ocultismos, nota o reemergir de antigas concep­
ções que para ele, católico, podiam abranger reminiscências
demoníacas. E talvez o seu caso esteja incluido na diferença de
posições que se delineavam naquele período no vértice nazi.
Atacado por Himmler, Schmitt era, de facto, defendido não só
por Gõring42 , como ainda por Hans Frank, também ele jurista,
advogado pessoal de Hitler, cuja concepção do direito é a que
e merge no seu livro de 1 939: «Hoje a ciência do direito é livre, a
sua objectividade é idêntica à subjectividade que se exprime em
todos os membros do Volk. Hoje a ciência do direito está na
situação de se dizer política. A separação entre as esferas política
e científica está superada»43 •
Frank, militante da Thule, convicto de que Cristo nos anos
trinta teria sido alemão, impiedoso governador da Polónia para
abrir a marcha para Leste, tem indubitavelmente uma ideia da
ciência compatível com as concepções de Guénon e de Horbiger,
de história e de cosmogonia esotérica. Mas aprecia as cons­
truções constitucionais de Schmitt. Defensor do «Drang nach
Osten» como Himmler e Rosenberg está talvez mais inseguro do
que eles quanto à inutilidade do acordo com a Inglaterra (neces­
sário segundo o grupo de Hess, do qual parece mais perto Jünger,
visto prever catástrofes se as opções não forem as devidas).
É portanto a este aspecto da discussão que se pode ligar o
último passo de Schmitt que é útil citar, porque retoma a tese da
geopolítica (como o «Grossraum») e da relação entre potência
mundial marítima, enxertando-a numa concepção do Leviatão
que, sem a colocação neste quadro, não seria inteiramente com­
preensível:

A importante e precursora concepção hobbesiana do Estado


não teve aplicação na Inglaterra. Por meados do século XVII
pareceu por alguns anos que a Inglaterra, com a ditadura de
,Çromwell, ia passar a ser um Estado centralizado e, ao
mesmo tempo, uma grande potência marítima. As forças

42
O sucessor designado por Hitler para a chefia do Estado, como se viu . era
compreendido como uma possibilidade de normal ização no sentido fascista italiano, sem
conspirações cósmicas. E segundo Schwab: «o modelo de Schmitt era a Itália de
Mussolini, que nos anos vinte não assumira ainda as características de um regime absoluto
ou totalitário» (pág. 2 1 1 ).
43
Hans Frank, Rechtsgrundlegung des n. s. Fhrerastaates, Berlim 1939, págs. 5 0-52.

17 1
que durante a revolução presbiteriana deram o golpe deci­
sivo no rei em favor do- parlamento, erradamente as desi­
gnou Hobbes com a imagem mítica de Behemoth, monstro
terrestre antitético do Leviatão. As energias do poder marítimo,
grávidas de futuro, estavam do lado da revolução marítima
e para o seu domínio mundial, a imagem do grande monstro
marinho podia talvez vir a ser um símbolo mais apropriado
que um animal terrestre como o leão. Numa antiga profecia
inglesa do século XII diz-se que «as crias do leão serão trans­
formados em peixes do mar». Mas o Leviatão de Hobbes
seguiu o caminho oposto: um grande peixe foi associado ao
típico processo continental por intermédio do qual potên­
cias terrestres europeias se tomaram Estado. A ilha de Ingla­
terra conquistou o mundo com a sua navegação. O espírito
inglês está longe do deliberacionismo do pensamento abso­
lutista. A doutrina hobbesiana do Estado devia ser conce­
bida pelos seus próprios compatriotas como uma anomalia
contra a natureza e a imagem hobbesiana do Leviatão como
o símbolo de uma monstruosidade. Hobbes acreditava
servir-se, para os objectivos adequados, desta imagem
como de um símbolo fortemente expressivo e não se
apercebeu de, na realidade, ter chamado à cena as forças
invisíveis de um mito antiquíssimo com muitos significa­
dos. Na sua obra alongou-se a sombra do Leviatão, e todas
as suas construções e argumentações intelectuais, se bem
que claras, entraram no campo de acção do símbolo es­
colhido. Nenhum processo intelectual, embora claro, pode
ir contra a força de imagens autenticamente míticas. A ques­
tão pode pôr-se apenas nestes termos: se isto é o caminho
das forças míticas, na grande marcha do destino político,
orienta-se para o bem ou para o mal, na direcção justa ou
errada. Quem se serve desta imagem mítica incorre facil­
mente na situação do mago que evoca poderes de que não
está à altura de dominar; ou seja, corre o risco de encontrar,
em vez de um aliado, um demónio impiedoso que o entrega
nas mãos dos seus inimigos. Assim foi efectivamente com
o Leviatão evocado por Hobbes. Aquela imagem não era
adequada, na realidade histórica, ao sistema conceituai e,
por isso, dissolveu-se. A tradicional interpretação hebraica
voltou-se contra o Leviatão de Hobbes. E assim se conclui
o que podemos saber da história da imagem mítica criada

172
por Hobbes. Eu não creio que o Leviatão pudesse vir a ser
o símbolo de uma nova época, mera e abertamente não mais
que técnica, e talvez total, no sentido daquela totalidade que
Ernst Jünger atribui à técnica e à transformação à escala
planetária desta promessas44 •

Este trecho é surpreendente em muitos aspectos. Está em


contradição com quanto Schmitt tinha escrito pouco antes e
escreveria pouco depois. Colhera primeiro no Leviatão um possível
significado esotérico. Depois que Hobbes não tinha ensinado em
vão. Mas no texto Hobbes também não sabe escolher os símbolos.
Erra com Behemoth, mas faz pior com o Leviatão: «não se
apercebeu de chamar à cena as forças invisíveis de um mito
antiquíssimo». Portanto o esotérico Hobbes realizou realmente
uma operação mágica?
Mas estes símbolos evocados têm uma origem que nos é
conhecida, que pertence não à cultura de Schmitt mas à dos
conhecedores da doutrina secreta. O jurista, o constitucionalista,
indica aqui o que pode acontecer se os magos evocarem forças de
que não estão à altura de dominar. Em vez de encontrarem aliados,
evocam inimigos, demónios súcubos da cultura hebraica. Mas
quem é o possível amigo que, pelo contrário, é inimigo, segundo
o par amicus-hostis, no qual, segundo o cientista político, se
consubstanciam as próprias «categorias do político»? Não é a
Inglaterra o Leviatão? Uma Inglaterra que poderia ser amigo do
Terceiro Reich, se prevalecessem, contra o Estado de direito e o
parlamento, aquelas tendências que se exprimiram por um momento
na história inglesa com a ditadura de Cromwell.
Mas existem na Inglaterra estes interlocutores? Podem ser os
herdeiros das sociedades secretas, da Golden Dawn, dos novos
templários que os vértices nazis conhecem, que Hess irá procurar
na Inglaterra num momento crucial do conflito? Hitler talvez o
espere, Haushofer também, Jünger duvida, prevê, não obstante os
sucessos do Forestaro, que «a hora da catástrofe efectivamente é
tida pelos Mauritanos como a hora do domínio»45 • E Jünger
justamente é evocado no final do trecho de Schmitt num contexto
que pouco poderia ter a ver com o motivo tratado. Que coisa
significa de facto que o Leviatão não possa tornar-se o símbolo de

44
Carl Schmitt, op. cit. , págs. 124- 128.
45
Ernst Jünger, op. cit. , pág. 145 .

173
uma nova era dominada pela técnica que promete uma grande
transformação?
Todavia a expressão ganha sentido se pensarmos na ideia nas­
cida nos círculos em redor de Gurdiev: que o nazismo fosse uma
síntese de magia e de tecnologia avançada. Jünger acompanhará
com o seu diário a guerra em Paris, como oficial da Wehrmacht.
Está também ali Gurdiev? Encontram-se? E na «carruagem» de
Rosenberg, apinhada de desterrados russos, talvez tivessem pas­
sado também Guardiev e Ossendowski? Por agora não estamos
em condições de responder a estas perguntas. Poder-se-ia saber
algo mais se se empreendessem investigações talvez possíveis.
Todavia existem já suficientes indícios para se considerar
que, assente o regime, se desenvolve no vértice do nazismo uma
discussão sobre como cumprir a missão histórica de regenerar a
humanidade ariana. Jünger é autorizado a tratá-la de forma ale­
górica. Schmitt angustia-se com isso e exprime-o por intermédio
da alegoria do Leviatão. A angústia deriva do facto de existir no
nazismo uma componente_esotérica não compreensível para um
conservador racional. É a rriesma percepção que induzirá uma
parte da oficialidade a hostilizar Hitler, Thyssen a ir-se embora da
Alemanha, Rauschning a seguir-lhe o exemplo, revelando o que
soube. Se o Führer tivesse sido o reaccionário tradicional que lhes
parecia quando o elevaram ao poder, estes grupos e estas pessoas
nada teriam a objectar nem sequer à sua política expansionista.
Mas aperceberam-se de que Hitler representava algo de diferente.
Não um mundo oculto e demoníaco, mas uma cultura tornada
poder por intermédio de intelectuais de uma particular formação
e que tinham uma visão do mundo parcialmente incompatível
com a normal gestão política, com a escolha de objectivos
alcançáveis.
Se quiséssemos citar um personagem de Melville diferente de
Benito Cereno, poder-se-ia pensar que, aos olhos de um sector de
conservadores alemães ex-responsáveis pelo nazismo, Hitler
surge agora como um homem cujos meios são racionais, mas
cujos fins são loucos. No caso concreto, a visão dos fins influiu
no uso dos meios. A tradição ariosofista é considerada uma ponte
que uniu a Alemanha à Inglaterra, que consentirá aos nazis
encontrar na pátria do Leviatão interlocutores seus homólogos e
diferentes da classe política tradicional. Daqui a convicção em
1939 de que a Inglaterra não entrará em guerra por causa da
Polónia e em 1941 de que se abrirá uma via ao entendimento e se
partirá para o ataque à URSS.

174
O erro das duas previsões será fatal ao Terceiro Reich. Porém,
eles partiam também de premissas, que não eram destituídas de
lógica, como se verá no próximo capítulo. Todavia quem estava
próximo do vértice, como os generais, como Thyssen, como
Schmitt, como Rauschning, percebia que esta lógica estava
comprometida por perspectivas da doutrina secreta. Alguns resol­
veram emigrar, outros secundá-la, esperando o seu desenvolvi­
mento. É neste quadro complexo que o livro de Rauschning ganha
um significado que vai para além da experiência pessoal. Não se
trata do simples episódio de um testemunho discutível. Trata-se
de um indício - entre os muitos, embora seja o mais rico de
repercussões - de uma situação que caracteriza o vértice nazi
que prepara a guerra. As citações que se seguem passam então a
ter um indubitável significado.
São naturalmente lidas tendo em conta o testemunho. Nobre
prussiano, proprietário de terras que, em 1 9 19, foram divididas
entre a Alemanha, Polónia e o Estado livre de Dantzing, inscritos
no NSDAP em 193 1 (ou seja depois da viragem de 17% dos votos
do ano anterior), presidente da dieta da cidade livre, mal abando­
nou a Alemanha escreveu em 1 93 8 A Revolução doNiilismo, uma
descrição do nazismo que fomentou a perplexidade46 e que do
movimento não colhia senão os aspectos que a Rauschning
surgiam como de vulgaridade cultural e de oportunismo político.
Hitler Disse-me, publicado com o conflito iniciado, é em
parte contraditório. Por um lado afirma que «o verdadeiro pro­
jecto de Hitler, aquele que pretende realizar mediante o nacional­
-socialismo, não,se encontra no Mein Kampf, porque aquele livro
foi escrito pela loucura»47 • Afirma que «a política de Hitler não
passa de simples oportunismo. Está sempre a abandonar, com
uma surpreendente desenvolvura, o que defendia um instante
antes como um princípio inatacável»48 • Mas atribui a este oportu­
nista sem princípios projectos precisos, aos quais se aferra com
tenacidade e que são justamente os indicados no Mein Kampf

Se vencesse a guerra tudo ruiria na Europa como no resto do


globo. Ver-se-ia aquilo que a memória do homem nunca viu

46
Ele próprio escreve que o livro «me proporcionou muitas repreensões» (Hitler
mi ha detto, cit., pág. 14).
47
Ibidem, pág. 13.
48
Ibidem, pág. 155 .

175
no curso da história: seria a destruição total de toda a ordem
actual. O falso poder criador de um histérico ameaça reduzir
o mundo a um monte de ruínas. A doutrina nazi tem o seu
esoterismo, que é professado e divulgado em reuniões
privadíssimas, reservadas, nas quais participam apenas os
eleitíssimos. As SS, a juventude hitleriana, os grupos
dirigentes da política criam, à margem da multidão dos
inscritos, um exíguo grupo de iniciados. Hitler nunca
desvendou os seus verdadeiros fins políticos e sociais a não
ser naquelas reuniões hermeticamente fechadas. Só hoje o
mundo está amadurecido para conhecer o que Hitler e os
seus adeptos são na realidade: os cavaleiros apocalípticos de
um novo caos universal. Hitler não é mais que a personifi­
cação do pangermanismo e personifica toda uma geração
atingida pôr cegueira. Hoje «a besta surge do abismo» e
todos, sem distinção de nacionalidade, os alemães mais
ainda que os outros, devíamos unir-nos num só e comum
esforço: voltar a fechar o abismo49 •

Na realidade o vértice nazi é o ponto de chegada do processo


cultural que foi descrito e que Rauschning não compreende em
toda a sua complexidade. O futuro que ele teme tem muito de
comum com o quadro descrito em Sobre os Rochedos de Mármore.
Justamente porque não agarra as raízes e a complexidade dos
fenómenos que descreve em interpretação apolíptica e demoníaca,
o nobre prussiano é fidedigno quando cita frases que são simples
flash de uma cultura que ele ignora, ainda que dela tenha intuição.
Ele próprio transcreve de Hitler «revelações por mim anota­
das como aforismos retirados do seu contexto», como «foram-se
os antigos tempos. Agora há a nossa marcha. Entre aqueles e esta,
a idade intermédia da humanidade, a idade média que durou até
nós e que nós encerramos» 5 0 • Enquadra-as assim: «Todos os
ambiciosos medíocres e que ainda não há muito se tomavam
nudistas, vegetarianos, hedonistas, biósofos, estes reformadores
de todas as seitas que elevavam as suas loucuras a dogmas e
fundavam religiões de feira, todos estes desencaminhados se
amontoam agora na barquinha do colossal balão nazi» 5 1 •

49
Ibidem, pág. 1 3- 1 5 .
50
Ibidem, pág. 248.
51
Ibidem, pág. 247.

176
Uma outra revelação: «Estou para vos revelar um segredo.
Fundo uma Ordem. Este pensamento de Hitler era já meu conhe­
cido. Derivava de Rosenberg. Pelo menos, era Rosenberg quem
de tal primeiro me tinha falado. Dissera-o a um restrito grupo num
discurso numa sala da Marienburg, o antigo castelo dos Cavalei­
ros Teutónicos. Instituira um paralelo entre a sua acção na Prússia
e o programa do nacional-socialismo e sugerira que a Ordem dos
Cavaleiros poderia ser reconstituída. Um escolhido grupo de
valorosos que fossem simultaneamente hábeis administradores e
sacerdotes, zelosos defensores de uma doutrina secreta, uma
Ordem que compreenderia alguns graus de iniciação»52 •
É só ao pôr ordem numa série de exposições não coordenadas
que é possível retirar de Rauschning uma descrição do delinea­
mento de fundo de Hitler e das características específicas que dele
fizeram o líder do grupo de intelectuais de cultura esotérica para
a qual teria contribuído um «professor de Munique» 53 que,
segundo O Despertar dos Mágicos, seria Horbiger (mas a expo­
sição parece mais uma síntese de temas expostos nos primeiros
capítulos). Eis os três textos cruciais:

Devo dizer ainda qualquer coisa da doutrina secreta de


Hitler. Poucos a conhecem. E todavia os desígnios políticos
de Hitler não podem ser entendidos não forem conhecidas
as suas intenções ocultas. Hitler não é supersticioso no
significado comum do adjectivo. A sua inclinação pelos
horóscopos e pelo ocultismo apoia-se na sua crença de que
o homem tem um acordo mágico com o universo. A política
para ele não é mais que o primeiro plano de uma gigantesca
subversão. Hitler nunca se esquece de expor, com frases
mais ou menos límpidas ou obscuras, esta vontade de impor
à Alemanha e ao mundo uma nova regra que ele qualifica
como «a revolução eterna» [que] trará à humanidade a
libertação definitiva. Libertação dos fortes, servidão para a
multidão dos fracos54 •

52
Ibidem, pág. 273-274.
53
Ibidem, pág. 278. Pauwels e Bergier recordam que, na realidade, Horbiger é
austríaco.
54
Ibidem, pág. 268.
E o segundo texto:

Um tema que aparecia com frequência nas suas afirmações


é aquele a que chamava «viragem decisiva do mundo» ou
«charneira dos tempos». Haveria uma subversão do planeta
que nós, não iniciados, não poderemos compreender em
toda a sua extensão. Hitler fala como um vidente. Ele
fabricara para si uma mística biológica ou, se se preferir,
uma biologia mística, a qual constituía a base das suas
inspirações. Para si criara uma terminologia pessoal. «A falsa
estrada do espírito» era o abandono por parte do homem da
sua vocação divina. Alcançar a «visão mágica» parecia-lhe
o objectivo da evolução humana. Um professor de Munique
escrevera alguns ensaios duros e singulares sobre o mundo
primitivo, sobre a formação das lendas, sobre a interpreta­
ção dos sonhos junto de multidões das primeiras idades,
sobre os seus conhecimentos intuitivos e uma espécie de
poder transcendental que elas tivessem usado para modifi­
car as leis naturais. A espécie humana estava submetida
desde a origem a uma maravilhosa experiência cíclica.
O período solar do homem encaminhava-se para o seu
termo: já se podia reconhecer nos primeiros exemplos de
super-homem, a nova espécie que substituiria a humani­
dade envelhecida. Segundo a imortal sabedoria dos povos
nórdicos o mundo deveria rejuvenescer constantemente e os
solstícios representavam na velha mitologia o ritmo vital.
Hitler acreditava verdadeiramente nesta iniciação nos mis­
tério? Ou, pelo contrário, não seria este um dos meios da sua
propaganda? Ele entregava-se a tais vaticínios apenas pe­
rante um número restrito de pessoas, muitas vezes mulhe­
res. É lícito perguntar, de qualquer modo, como é que este
revolucionário, este homem de acção podia divertir-se com
aquelas lengalengas. O que não oferece dúvida é que ele se
considera um profeta, cuja missão supera de longe a de um
estadista. Não há qualquer dúvida de que se considera
seriamente como o anunciador de uma nova humanidade55 •

55
Ibidem, pág. 268-269.

178
O terceiro texto:

Hitler é louco? Todos aqueles que tiveram a oportunidade


se aproximarem dele certamente fizeram para si esta per­
gunta. É espantoso pensar que é um louco quem governa a
Alemanha e lançou o mundo na guerra. Mas como acontece
que um grande número de visitantes fica em êxtase perante
Hitler e viva, a partir daí, na adoração do seu génio domina­
dor? Que atracção tinham então sofrido aquelas pessoas
para só falarem balbuciando do que tinham experimentado?
É um homem qualquer e vulgar. Como pode ele actuar
assim sobre os seus visitantes? É-se forçado a pensar nos
médiuns. Na sua maior parte são pessoas comuns, nulas.
Repentinamente descem sobre elas, como que do céu,
algumas faculdades que as elevam muito acima do valor
médio. Estas faculdades são estranhas às suas normais
personalidades. São visitantes provenientes de um outro
plano. O médium é possuído por elas. Liberto deste demónio,
ele volta a cair no medíocre. Acontece assim que, incontes­
tavelmente, algumas forças invadem Hitler, forças quase
infernais, das quais o corpo chamado Hitler é apenas o
invólucro provisório56 •

É lícito compreender como expressões deste tipo tenham feito


duvidar do valor de testemunho do livro. Porém elas não são senão
a interpretação especulativamente negativa de quanto Evola
(citado no quarto capítulo) expõe na forma de apreciação. Sabe­
mos, pelos primeiros capítulos, que Hitler não criara para si «uma
terminologia pessoal», mas adoptava aquela cujas fontes foram
descritas. Entre o grupo de intelectuais que tinham aquelas
convicções, ele dispunha de especiais características ( que tam­
bém se podem definir como de tipo mediúnico), que o tinham
conduzido à liderança.
Esta liderança surge demoníaca a Rauschning, desesperada a
Thyssen, perigosa a muitos generais, quando em 1937 traça a via
que levará à guerra. Quando principalmente parece inevitável

56
Ibidem, pág. 284.

179
aquele conflito com a Inglaterra57 excluído por Hitler (também em
muitas suas frases que Rauschning cita) que, juntando-se ao do
Oriente, conduziria à derrota. E o mesmo grupo dirigente -
como emerge das alegorias de Jünger e de Schmitt - adverte
que resta por enfrentar uma prova difícil e arriscada.
É provável que Hitler, condicionado por uma ininterrupta
série de êxitos mesmo nas situações menos favoráveis, tenha
sobrestimado em 1939 os seus dotes de intuição. A isto quase
certamente se deve primeiro a discussão, depois a luta, no vértice
da cultura esotérica. É nestes termos que se pode interpretar uma
situação que, pelo contrário, surgiria inexplicável adoptando
outras categorias interpretativas, às quais Evola justamente se
refere:

Falou-se de «Superiores desconhecidos» os quais teriam


suscitado o movimento nazi e se teriam servido de Hitler
como de um seu médium. No entanto, não é claro para que
fins o teriam feito, a julgar pelos resultados, ou seja, pelas
consequências catastróficas que o nacional-socialismo trouxe,
mesmo que indirectamente, à Europa; ter-se-ia de pensar em
fins sombrios e destrutivos, o que iria ao encontro das teses
daqueles que se referiam ao lado oculto de todo aquele
movimento a que Guénon chamaria a «contra-iniciação».
Mas pelos autores franceses foi colocada também uma outra
tese, ou seja que o médium Hitler, a um dado momento, se

57
Existem dois textos de Rauschning menos conhecidos, mas que podem fazer
pensar que os dirigentes nazis conhecessem os escritos de Arthur Machen, iniciado pela
Golden Dawn. Hitler diz: «Se fizesse a guerra introduziria, talvez em plena paz, tropas em
Paris. Usariam uniformes franceses. Marchariam em pleno dia, pelas estradas, onde
ninguém pensaria em detê-las. Dirigir-se-iam à sede do Estado-Maior, ocupariam os
Ministérios» (pág. 22). É um trecho negligenciado por não ser confirmado por quanto
aconteceu, mas que tem analogias com o conto O terror de Machen que descreve, durante
a Primeira Guerra mundial, uma Inglaterra paralisada por uma rebelião de animais, cujas
façanhas são atribuídas aos alemães nestes termos: «tudo aquilo induz aquela corajosa
gente a relacionar os horrendos crimes com a guerra e a supor que os assassinos eram
alemães ou agentes alemães. Tinham preparado aquele plano mortífero onde não conse­
guiram derrotar-nos em campo aberto. Tinham de ser pessoas dispersas por todo o país,
prontas para matar e espalhar a destruição mal recebessem a palavra de ordem» ( o conto
está agora em II Gran Dio Pan e altre storie soprannaturali, Mondadori, Milão 1982
pág. 242) . Rauschning assinala também que «Himmler tinha recebido não sei que relatório
sobre um misterioso veneno, um " pó branco" para causar a morte do Führer» (pág. 287).
«A história do pó branco» é justamente um outro conto de Machen (op. cit. , págs. 1 34 e
sgts.), que o descreve como matéria-prima de um produto maléfico, o vinho de Sabá.

1 80
teria emancipado dos «Superiores desconhecidos» e que, a
partir daí, o movimento teria tomado uma direcção fatai.
Mas então seria preciso dizer que estes superiores ocultos
tinham na verdade faculdades de previdência e poderes bem
limitados para não saberem bloquear aquele que tinham
usado como seu médium58 •

A realidade é mais simples. Os dirigentes nazis formados na


cultura esotérica consideravam-se na posse de dotes particulares
e admitiam que Hitler os possuísse em medida mais elevada. Mas
as avaliações eram comparáveis. Os seus êxitos induziram Hitler,
a partir de 1937, a considerar-se quase infalível. Aconteceu
também com outros ditadores com sucesso, mas no nazismo
esotérico isto podia ser avaliado em termos de maior ou menor
iniciação, de como fosse gerida a antiga sapiência recuperada. Isto
é claramente evidente no livro de Jünger e transparece nos escritos
alegóricos de Schmitt, como ainda nos receios dos conservadores
não esotéricos.
Hitler conseguiu impor o seu ponto de vista. Considera que a
Inglaterra não interviria na defesa da Polónia e iniciou a guerra.
Além das suas convicções iniciáticas, raciocinava também na
base de premissas políticas normais, mas que resultaram erradas.

58
Julius Evola, «Hitler e le società segrete», cit.

18 1
8
VOO PARA INGLATERRA

As relações entre a Alemanha e a Inglaterra podem ser vistas


em termos de «mito ariano» (com as suas simplicações esotéricas)
e em termos de política de potência. Segundo à primeira perspec­
tiva, Poliakov observa que «o social-darwinismo podia ser bem
combinado com a ideia germano-ariana, conhecida também por
teoria das origens teutónicas». E acrescenta:

A quem atribuir a vitória definitiva? Um historiador inglês,


J. A. Cramb (1862-1913), que idealizava a pátria e a guerra
como tantos outros intelectuais europeus da sua geração,
predizia uma trágica luta final entre as duas ramificações do
germanismo, diante dos olhos do velho deus do teutões, que
contemplava serenamente «os seus filhos preferidos, os
Ingleses e os Alemães», empenhados numa guerra mortal.
A teutonomania do seu ilustre antecessor, Edward A. Free­
man, considerava que «se todos os Teutões são nossos
vizinhos, nenhum ariano da Europa está muito distante de
nós» ! Também se poderia recordar o popular psicólogo
inglês William Mac Dougall (1871-1938), elogiador da
«grande raça nórdica». Mas feitas as contas, ainda mais
representativa da mentalidade britânica era a retórica de um
Joseph Chamberlain que, refutando reconhecer uma prece­
dência qualquer aos Teutões, preconizava uma aliança de

183
igual para igual entre «as duas raças anglo-saxónicas» e a
«raça teutónica» 1 •

A Alemanha do Kaiser tentou realizar uma aliança de igual


para igual coin a Inglaterra, sem referência aos Estados Unidos.
Era então implícito que quem dominasse na Europa dominava no
mundo. Mas a Inglaterra de 1 9 1 4 recusava este topo de aliança.
Estava firme na concepção de que nenhuma potência singular
devia prevalecer no continente. A geopolítica de Mackinder
indicava que esta situação seria o prelúdio ao declínio do Império
britânico. Se esta era, todavia, a atitude de fundo, nem toda a
classe política estava de acordo sobre a necessidade de um choque
imediato com a Alemanha2 •
Da imensa historiografia sobre as origens do primeiro conflito
mundial emergem dados úteis para a presente interpretação: 1 ) a
Alemanha não constitui tanto um «assalto ao poder mundial»
segundo a conhecida tese de Fisher3 quanto um assalto ao con­
domínio mundial; 2) a Inglaterra recusava à Alemanha o condo­
mínio, mas hesitava perante o risco de um conflito de imensas
proporções; 3) o soberano inglês com as suas mensagens ao
Kaiser contribui para dar lugar à consideração de que a farm1ia real
não fosse pela guerra4 ; 4) a invasão alemã da Bélgica para

1
Léon Poliakov, ll mito ariano , cit. , pág. 329.
2
Cfr. entre as obras mais recentes, La prima guerra mondiale, do historiador inglês
Keith Robbins. Em especial «não existia um consenso no interior do partido liberal nem
na geralidade dos círculos politicamente influentes de toda a ilha, como também não havia
consenso sobre a verdadeira fonte da ameaça à paz. Dada as diferenças de posição e o
arranjo constitucional, não necessário invocar a propensão de Grey [o ministro dos
Estrangeiros, N.D.R. ] pela prudência para justificar a sua atitude tranquila e, em definitivo,
pouco eficiente» (pág. 14 ).
3
Assalto ai potere mondiale, Einaudi, Turim 1965 , é o amplo estudo de Fritz Fischer
segundo o qual a Alemanha do Kaiser encarava aquele objectivo, retomado depois
integralmente por Hitler. A crítica a esta tese de outros historiadores deu lugar ao famoso
«Fischer Debate» dos anos sessenta.
4
No recente e perspicaz estudo de Gian Enrico Rusconi,Rischio 1 914 - Como si
decide una guerra, li Mulino, Bolonha 1987, baseado justamente na tese de fundo de que
a Alemanha exercia pressão para um condomínio que a Inglaterra não aceitava, recorda­
-se que nas decisivas jornadas de 29 e 30 de Julho as notas alemãs e inglesas se cruzavam
e a Inglaterra precisa · que «um conflito europeu não encontrará Londres de braços
cruzados: se a guerra rebentar, será a maior catástrofe que o mundo alguma vez viu». Os
comentários do Kaiser são furiosos e injuriosos. Define Grey como «um vulgar canalha».
«A Inglaterra assume agora a inteira responsabilidade de uma güerra mundial. Isto deve
ser claro também publicamente» (pág. 80). As anotações autografadas do Kaiser estão à
margem do telegrama do embaixador alemão em Londres e a opinião sobre Grey deriva
também do facto de o comportamento do soberano inglês permitir supor uma atitude

184
penetrar em França e controlar o acesso à Mancha foi decisivo
para determinar a intervenção inglesa.
Estes precedentes eram bem conhecidos do vértice nazi, que
retoma o projecto do condomínio na base do Lebensraum, do
Grossraum euro-asiático, como premissa para a construção de
uma nova humanidade. A ideia base é que, agora, a Inglaterra
poderia aproveitar aquilo que recusou em 1914, porque existe na
cena mundial um elemento novo, a URSS, considerada o centro
da promoção do comunismo à escala mundial. A historiografia de
direita defende que Hitler não teria feito ulteriores reivindicações
na Europa depois de Dantzing e do corredor e que as democracias
ocidentais agarraram a última oportunidade para desencadear a
guerra contra a Alemanha, apresentando-a como uma defesa
contra a agressão totalitária5 •
Na realidade� o vértice nazi encarava o controlo de todo o
continente. Também é possível comparar este comportamento à
doutrina de Monroe, como Schwab que a atribui a Schmitt nos
termos indicados, se se considerar que na realidade tal doutrina
sanciona o predomínio dos Estados Unidos em todo o hemisfério.
Em todo os caso, depois da Polónia, Hitler teria pressionado a
França, na convicção de que se a Inglaterra se resignasse quanto
a Dantzig talvez tivesse suportado também a reivindicação da
Alsácia e da Lorena
Mas o receio da expansão comunista com epicentro na URSS
era tal que pudesse levar a Inglaterra a aceitar uma Europa alemã
como baluarte contra o Leste? É de excluir que esta fosse a posição

diversa e mais conciliatória do governo de Londres. Eis o resumo de Fischer, que também
atribui toda a responsabilidade à Alemanha: «No decurso destas consultas a neutralidade
inglesa parece uma coisa certa; e, de facto, o príncipe Henrique informou que Jorge V
(Georgy) não interviria ... Chegou um telegrama do rei Jorge - endereçado ao príncipe
Henrique da Prússia - no qual falava de uma colaboração anglo-alemã com o fim de
salvar a paz. Este telegrama chegou de noite (30 de Julho, horas: 23 .08). Bastou esta vaga
perspectiva de um regresso à neutralidade para que logo [o chanceler alemão] às 23 20
anulasse a recomendação à Áustria [de moderação N.D.R.] . .. [Na] madrugada de 3 1 de
Julho de o Kaiser foi informado pelo adido naval em Londres ' 'que a Inglaterra nos atacará
imediatamente no mar" no caso de se chegar "a uma guerra contra a França". Para o
Kaiser foi um duríssimo golpe, tanto mais que tinha preparado juntamente com o príncipe
Henrique da Prússia uma resposta à tomada de posição de Jorge V. Até aquele momento
tinha-se iludido na esperança de que a Inglaterra ficaria neutral» (op. cit. pags. 8 1 -88). A
intervenção do soberano inglês não é tomada em consideração na também muito cuida­
dosa análise de Rusconi: indício de que o facto não é talvez considerado como de relevo.
Mas é importante para a presente análise, porque também o vértice nazi apostou num papel
«pacifista» da monarquia britânica.
5
Cfr. Pino Rauti e Rutilio Sermonti, Storia dei fascismo, cit. , pags. 93 e sgs.

185
dos trabalhista e dos liberais. Podia ser o ponto de vista de sectores
do partido conservador e também da aristocracia britânica, talvez
até da família real. Estes são notoriamente os sectores da socie­
dade inglesa para os quais Hitler apontava.
Mas existe um outro e menos conhecido aspecto. Se se supõe
que as associações esotéricas do tipo da Golden Dawn tinham
continuado a existir, se bem que privadas de peso político,
também nos anos trinta , homens criados na cultura do esoterismo
podiam considerar ter interloctores organizados comparticipantes
de uma comum perspectiva. Crawley que deixa a Inglaterra em
1 914 ( quando rebenta o conflito entre os dois ramos arianos) e ali
volta em 1 93 7 (quando Hitler prepara uma guerra a Leste na base
de um possível acordo com a Inglaterra) é um indício a ter
constantemente presente.
Nesta perspectiva é de grande importância uma avaliação do
papel de Churchill. Trata-se de um conservador com traços
reacionários, que em 1926 queria empregar o exército contra os
grevistas. Está convencido de que a democracia representativa é
a forma de governo ideal para os povos de língua inglesa, mas
pouco exportável e de modo algum adaptada a alguns povos como
o Italiano: daqui a admiração por Mussolini ( escreveu artigos
para o «Popolo D'Italia» em 1 927) até ao pacto com Hitler,
admiração que faz falar de comprometedoras trocas de cartas.
Enfim, anticomunista convicto, Churchil podia estar entre os
mais sensibilizados pela perspectiva hitleriana: acordo com a
Inglaterra para o «Drang nach Osten» .
Em vez disso Churchil é o mais intransigente opositor de toda
a política de entendimento com a Alemanha nazi. Hostiliza-a com
uma obstinação que dele fará, aos olhos de Hitler, um inimigo
pessoal que injuria e despreza. É lícito supor que Churchil tenha
motivos particulares para considerar impossível qualquer acordo
que, pelo contrário, a ala mais reaccionária do partido conservador
considerava possível. O futuro primeiro-ministro compreendia
que o nazismo era qualquer coisa mais que um sistema político.
Tinha objectivos não negociáveis. E talvez tivesse pontos de
referência na Inglaterra entre os herdeiros e continuadores das
sociedades esotéricas, difundidas em classes superiores que Churchill
bem conhecia. É neste quadro que se pode explicar o seu compor­
tamento no caso de Hess, que fez tudo para dirigir de modo a que
não se notasse a seu autêntico alcance, que poderia comprometer
personalidades inglesas de primeiro plano.

186
Churchil portanto foi um opositor intransigente da política de
appeasement, ainda que não pudesse ignorar as dificuldades
efectivas da política externa inglesa, como foram descritas com
precisão na mais recente obra do historiador alemão Andreas
Hillgruber.
Este tem uma posição próxima da do historiador inglês
Taylor6 o qual, além de negar que a finalidade de Hitler fosse um
domínio global, defende que o Führer podia considerar que a
atitude oscilante da Inglaterra exprimisse a intenção de evitar a
todo o custo um conflito. Por sua vez Hillgruber considera incerta
a política externa inglesa nos anos trinta, debatendo-se entre um
acordo com Hitler, a aproximação com a URSS ou a aliança com
os Estados Unidos que teria comportado o declínio do Império7 •
Esta última opção, adoptada ao rebentar da guerra, era prova­
velmente a mais próxima da perspectiva de Churchill ( que no
entanto considerava poder salvar o Império pelo menos em parte),
que concebia os «povos de língua inglesa» como uma entidade tal
capaz de poder escrever como autor a história comum. Importa
aqui acentuar que a política inglesa foi durante muito tempo
incerta, que o ultraconservador Churchil toma-se o campeão da
cruzada anti-hitleriana porque nunca teve hesitações em a divul­
gar e fê-lo quer por compreeder que Hitler tinha projectos não
negociáveis, quer por considerar que estes projectos se fundavam
numa pespectiva cultural que tinha pontos de referência na própria
Inglaterra.
O estadista britânico acrescenta portanto um novo ladrilho ao
mosaico de indícios na cultura esotérica nazi e na esperança
hitleriana de que ela pudesse fornecer interlocutores no Reino
Unido. O Führer reservava para si jogar esta carta juntamente, ou
em alternativa, com a antibolchevique. Mas em vésperas do
ataque à Polónia estabeleceu com a URSS o pacto de não agres­
são, fundado também nas premissas de que já se falou (Staline,
patriota russo, liberto das influências hebraicas), esperando que a
Inglaterra, privada do possível aliado oriental, renunciasse tam­
bém por isto à guerra. Mas o cálculo estava errado como esteve
em 1 9 14.

6
Cfr. Alan J. P. Taylor Le origini de/la seconda guerra mondiale, Laterza, Roma­
-Bari 1 96 1 .
7
Cfr. Andreas Hillgruber, Storia della seconda guerra mondiale, Laterza, Roma­
-Bari 1 96 1 .

187
Derrotada a Polónia, adiada por todo o Inverno qualquer
iniciativa no Ocidente, a seguir às hesitações do exército, Hitler
renova ofertas de paz até ao início das campanhas na Noruega e
em França. Durante esta última, os historiadores ainda discutem
se a paragem dos blindados alemães diante de Dunquerque foi
uma pausa necessária imposta pelo anterior rápido ritmo das
operações ou uma decisão tomada para ganhar simpatias na
Inglaterra, permitindo a evacuação do corpo expedicionário.
O maior historiador militar inglês, Basil Liddel Hart, não exclui
que «a ordem de parar não fora dada por razões exclusivamente
militares e que antes entrava no quadro de um plano político
tendente a aplanar o caminho para se chegar à paz. Deixando que
o corpo de expedição se pusesse a salvo, Hitler esperava recon­
ciliar-se com os Ingleses» 8 •
É uma tese que é possível discutir. Mas, derrotada a França,
o vértice nazi prepara invasão de Inglaterra a operação a que se
chamou Leão Marinho. O prelúdio é a conquista do domínio do
ar. Mas ó insucesso da batalha de Inglaterra toma impossível a
iniciativa. A hipótese da historiografia de direita de que tal
decisão foi determinada pelo temor de um ataque soviético não é
sufragada por prova alguma ou simples indício. A 12 de Outubro
de 1940 são suspensos os preparativos para a operação. A 18 de
Dezembro (depois de inúteis conversações com Molotov em
Novembro para uma possível ampliação do acordo russo-ale­
mão), Hitler assina a ordem n.º 21 (Operação Barba Roxa) para o
ataque a Leste. Perspectiva-se a temida guerra em duas frentes.
É neste quadro que é emprendida uma nova e mais sensacional
tentativa para conseguir um acordo preventivo com a Inglaterra.
Tem provavelmente lugar uma nova discussão no âmbito do
vértice influenciado pela cultura esotérica. É em consequência
deste confronto que nasce a ideia do voo de Hess, depois de outras
vias se terem revelado impraticáveis. Deve-se ter presente que,
mesmo durante a planificação da invasão, a ideia fundamental era
«levar a Inglaterra pela força à paz» 9 •
Hitler teria invadido a ilha se estivesse em condições para
isso. Mas sendo-lhe impossível, exerceu no Outono de 1940 uma
forte pressão militar para obter um acordo. Repetirá a iniciativa

8
Basil Lidell Hart, Storia di una sconfitta, Rizzoli, Milão 1 97 1 , pág. 1 16.
9
A expressão é atribuída a Hitler pelo chefe do Estado-Maior do exército, gen.
Halder, citado por Hillgruber, in La strategia militare di Hitler, cit. , pág. 1 86.

188
enquanto Hess está na Inglaterra em Maio de 1941. Os historia­
dores discutem se o Vertreter partiu com ou sem o consentimento
de Hitler e ganha terreno a primeira tese. É possível ir mais além:
partiu depois de uma discussão e com o consenso de todo o vértice
da vertente esotérica. A operação foi coberta com uma operação
de desinformação de massas, que Goebbels ignorava. Para favo­
recer a oferta de paz, a Alemanha desenvolveu uma ofensiva no
Mediterrâneo e deu a entender que estava pronta a vibrar um duro
golpe na Inglaterra no Médio Oriente. O «mistério» de Hess está
nos encontros que teve neste período e nas informações de
dispunha vértice nazi. É possível que se tenha acreditado que os
contactos estivessem em curso, que uma vez suspensa a ofensiva
no Mediterrâneo e no Médio-Oriente e desencadeado o plano
Barba Roxa, as influentes personalidades dispostas a um compro­
misso fizessem sentir as suas vozes em Londres. Foi um erro
como o de Agosto de 1939.
Esta interpretação está ligada à relativa àquele ano. É possível
que uma parte do vértice (Hess, os Haushofer, Darré) subordi­
nasse o ataque a Leste a precisas garantias de paz a Oeste. Uma
outra parte (Rosenberg, Himmler, Frank, mais prudente o próprio
Hitler) considerava talvez que, na base de garantias incertas, fosse
decisivo proceder ao ataque à URSS, para levar à acção os
Ingleses partidários de compromisso. É sobre este ponto que,
caída toda a esperança a Oeste, os Haushofer consideram perdida
a partida da guerra depois das derrotas na Rússia e tentam uma
outra via de saída através de um acordo de Albrecht com sectores
do exército para substituir Hitler. E chega-se à situação imaginada
por Jünger em 1939: conjura e catástrofe.
É necessário portanto recolher todos os indícios deste curso
dos acontecimentos, por intermédio do exame da relação entre
Hitler e o «problema Inglaterra» 1 0 , através do historiador clássico
que é o melhor quanto ao que concerne a estratégia militar do
Terceiro Reich e que está muito longe da hipótese aqui apresen­
tada. Escreve Hillgruber:
De Setembro de 1940 datam os inícios daquele projecto
Hess-Haushofer, cujas origens não foram ainda completa­
mente explicadas, mas que foi totalmente esclarecido por
novos estudos pelo que diz respeito aos objectivos. Preten-

10
É o título do parágrafo in ibidem, pág. 180.

189
dia procurar novas possibilidades de contacto na Grã-Bre­
tanha. [ . . . ] Tudo começou com o diálogo entre Hess e
Albrecht Haushofer a 8 de Setembro de 1940, quer dizer no
momento em que a luta aérea pela Inglatera estava no
cúmulo. Este encontro, que Haushofer retomou no memo­
randum intitulado Existem ainda possibilidades para uma
paz anglo-alemã ?, é aberto por Hess com a discussão do
problema, segundo Hitler, decisivo. Haushofer escreve:
«Fui subitamente interrogado sobre as possibilidades de
transmitir ao sério desejo de paz de Hitler a personalidades
britânicas de relevo: Aqui se apercebia de que um prosse­
guimento do conflito significaria o suicídio da raça branca
[ . . . ] » . O_ Füher não quisera o aniquilamento do Império
britânico e também não o queria agora. Que na Inglaterra
não existia ninguém disposto à paz? Haushofer pensava
poder ver algumas possibilidades de ligação, ainda que
mínima, com o enviado britânico à Hungria, O'Malley, com
sir Samuel Hoare [embaixador em Madrid] , com o embai­
xador britânico em Washington, Lorde Lothian e, por fim,
como última possibilidade com o «jovem duque de Hamil­
ton, que tinha acesso a qualquer momento a personalidades
importantes de Londres, e também a Churchill e ao rei». Das
investigações feitas por Haushofer nas semanas seguintes
resultou que continuasse aberta apenas a via oferecida pelo
duque de Hamilton. Haushofer escreveu-lhe uma carta a 22
de Setembro, na qual propunha um encontro em Lisboa.
O escrito chegou efectivamente ao duque, mas Hess duvi­
dou dado não ter resposta. Em seguida tomou a decisão de
se encarregar ele próprio da missão e começou a preparar o
voo pelo fim do Outono de 1940 1 1 [recordando ter conhe­
cido fugazmente o duque nas Olimpíadas de Berlim de
1936] .

Hess efectuou o voo a 1O de Maio de 1941 e Hillgruber dele


fala assim:

Tínhamos ainda de nos deter brevemente na questão de se


o voo[ . . . ] tinha alguma coisa a ver com os preparativos de
Hitler para o ataque à União Soviética. Seja como for não

11
Ibidem, pág. 187 .

1 90
nos será possível resolver com absoluta segurança este
problema. Tratou-se propriamente de uma acção política,
ou simplesmente de decisão autónoma de um homem
estravagante? Se o plano e actuação da «missão» de Hess já
pareciam fantásticos aos contemporâneos e mais ainda o são
para o historiador olhando em retrospectiva, antes de res­
ponder simplesmente de maneira afirmativa à segunda tese,
deve fazer-se a seguinte observação: estilo e método -
ainda que isto, do ponto de vista da vulgar diplomacia
e dos «normais» contactos secretos, deva parecer absurdo
- correspondem exactamente à ideia que Hitler tinha das
missões particularmente importantes. [ . . . ] também a obser­
vação feita por Hess a Kirkpatrick, segundo a qual uma
«união» anglo-alemã «seria depois poderosa ao ponto de
poder sem riscos repelir os americanos», correspondia a
uma ideia querida de Hitler. [ . . . Hess tinha] intenção de
tomar contacto com os prováveis representantes de um
futuro «gabinete pós-Churchill», pois que Hitler conside­
rava excluído um «compromisso» com Churchill. Por isso
[. . . ] é maior a probabilidade de que Hess empreendesse este
voo por incumbência de Hitler, ainda que seja duvidoso que
fosse conhecida de Hitler a data exacta da descolagem.
O facto de Hess, durante os repetidos interrogatórios a que
foi submetido por Kirkpatrick e Lorde Simon, permanecer
coerente ao afirmar que não havia plano algum alemão de
ataque à União Soviética, se bem que ele não estivesse ao
corrente, confirma igualmente a hipótese de que actuou
segundo às ordens. Por outro lado, não é de exluir que Hess,
por causa da predisposição psíquica e da longa e estreita
proximidade de Hitler e do conhecimento dos seus axiomas
em política externa, acreditase agir de tácito acordo com
Hitler sem que este tivesse dado uma «ordem» no sentido
comum da palavra 1 2 •

12
Ibidem, pág. 547-548. Ver em especial a correspondência Hess-Haushofer publi­
cada em 1962 (pág. 284 ). Recorda-se que a mulher de Hess «defende a tese de que a
viagem teria sido empreendida por iniciativa do Führer» (pág. 59 1 ). Como texto mais
documentado cita-se (ibidem) The Uninvited Envoy de James Lessor (trad. it. L' inviato
non invitato, Longanesi, Milão 1962). Quanto à posição de Hitler assinala-se também a
frase de 13 de Julho de 1940: «Se destruimos militarmente a Inglaterra, o Império Britânico
desmorona-se, mas a Alemanha não retira daí qualquer vantagem. Com o sacrifício do
sangue alemão, quem tiraria as castanhas do lume seriam o Japão, a América e outros»

19 1
Esta reconstrução põe dois problemas evidentíssimos: a abso­
luta insuficiência dos interlocutores ingleses para uma iniciativa
em que se empenhava o número dois do partido e o número três
na ordem de sucessão ao Führer (depois de Gõring); a absoluta
incredibilidade do facto de Hess negar o plano de ataque à URSS,
já conhecido dos serviços secretos ingleses e de Churchill.
É destas duas incongruências que é preciso partir para se proceder
à reconstrução.
Já se disse que a decisão do voo é consequência de uma
discussão no vértice de formação esotérica. Mas o «problema
Inglaterra» é de tal relevo que intervêm também Gõring e von
Ribentrop, que não pertencem ao círculo restrito dos tempos de
Thule. O marechal elabora um plano de paz com Albert Plesman,
director da companhia aérea holandesa KLM, em Julho de 1940.
Hitler bloqueia a inciativa 13, que evidentemente é reservada ao
círculo restrito. O também realista von Ribbentrop vai mais além
e pensa num projecto relacionado com a casa reinante inglesa:

O duque de Windsor, depois do armistício franco-alemão,


da sua residência estabelecida no sul da França fora para
Portugal, passando pela Espanha, e ali estava a considerar
se aceitava o cargo de governador das Bahamas que lhe fora
conferido pelo governo britânico. Ribbentrop, num plano
algo fantasioso projectou uma intervenção do serviço se­
creto político do SD para convencer o duque a voltar a
Espanha, para fazer as funções de algum modo de interme­
diário entre Hitler e os círculos pacifistas na Grã-Bretanha.
Presumivelmente seria um objectivo a longo prazo mas,
depois da eventual abdicação de Jorge VI, esperava poder
considerá-lo, de novo rei de uma Grã-Bretanha ligada por
«colaboração» à Alemanha. Este plano desmonorou-se

(pág. 186). Ainda a 1 1 de Fevereiro de 1942: «mal chegou a notícia da conquista de


Singapura pelos Japoneses, Hitler fez consideração perante autores em que refletem a sua
reacção imediata, considerando-a "uma notícia alegre mas também triste " , pois que um
baluarte da "raça germânica " caíra nas mãos de seres inferiores» (pág. 284). Quanto a
Sir lvon Kirkpatrick é um funcionário do Foreign Office, para quem «a viagem de Hess
é o cometimento de um estranho tipo ao qual não fora confiada nenhuma missão»
(pág. 592, ibidem, as fontes). John Simon é Lorde Chanceler de 1940 a 1945 . É uma lacuna
invulgarmente significativa o facto de Albrecht Haushofer não figurar na lista de nomes
de um texto muito cuidadoso, enquanto o pai é recordado apenas como «professor de
geografia em Munique de 192 1 a 1939» (cfr. pág. 807).
13
Cfr. Ibidem, pags. 1 85 - 186.

192
completamente com a partida do duque para as Bahamas a
1 de Agosto 1 4 •

Se von Ribbentrop pensa num plano «fantasioso», é por se


aperceber que fantasias pairam no círculo esotérico. O duque de
Windsor era um admirador de Hitler, que tinha visitado o «ninho
das águias». O cargo que inesperadamente lhe oferecem, quatro
anos depois da abdicação, reflete também a preocupação de o
afastar da Europa, dadas as suas bem conhecidas convicções polí­
ticas. O episódio reflete a esperança do vértice nazi de formação
esotérica de chegar, de algum modo, a interessar a família real
inglesa num projecto de acordo com a Alemanha pela glória da
raça branca. É possível explicar assim o interesse por Lorde
Hamilton «que tinha acesso em qualquer momento ao rei», sendo
grão-mestre de corte, enquanto não tinha sentido algum a sua
possibilidade de estar em contacto com Churchill, dado o pri­
meiro-ministro ser precisamente o homem a substituir para alcan­
çar a paz.
Assim nos aproximamos do verdadeiro problema: com que
personalidades, além do duque de Hamilton, Hess e os Haushofer
pensavam entrar em contacto para preparar negociações e à base
de que precedentes relações que não fossem encontros casuais nas
Olimpíadas? Os acontecimentos narrados nos primeiros capítulos
permitem avançar uma hipótese que toma compreensível um
acontecimento decisivo do conflito e que continua a ser um
enigma: continuam a existir os herdeiros das sociedades esotérica
do tipo da Qolden Daw, pertencentes à alta sociedade que têm
relações com membros da família real desde os tempos de Jack,
o Estripador, que têm motivos para valorizar a oportunidade de
não levar ao suicídio a raça branca, de desenvolver um papel que
«Georgy» tinha intuído desde o �rágico Julho de 19 14 com a
Alemanha, tanto mais que esta - eis o segundo ponto a subli­
nhar - está para fazer o ataque à URSS para afastar definitiva­
mente da Europa o espectro do comunismo.
Este é o delineamento cultural que influencia o processo de
decisão do grupo em redor de Hitler, em Maio de 194 1. É um
ponto de vista errado, que sobrevaloriza o possível papel dos
herdeiros da Golden Dawn (que também existem), mas que toma
compreensível o que acontece a 10 de Maio e nas semanas

14
Ibidem, pág. 185.

193
seguintes, enquanto Hess tem provavelmente outros contactos
além dos oficialmente admitidos e enquanto o Terceiro Reich
desenvolve uma ofensiva contra a Inglaterra no Mediterrâneo,
tendo como possível objetivo o Médio Oriente, que tem a finali­
dade de acompanhar - como em 1940 - com um forte pressão
militar a oferta de uma paz e de um acordo que salvariam o
Império. A tentativa falhou; porém é de um alcance capaz de
lançar uma luz muito clara sobre as componentes de cultura
esotérica que influenciam tão fortemente o vértice nazi e que desta
,vez emergem com clareza.
Sabemos que Karl Haushofer não é só um professor de
geografia que deixa a cátedra de Munique em 1939 (no ano da
primeira discussão registado no capítulo anterior). Embora, como
de costume, não seja indicada a fonte (provavelmente o círculo de
Gurdiev) afirma-se que é também «o general que em 1914 se faz
notar por extraordinário poder de vaticinar os acontecimentos:
horas de ataque do inimigo, pontos de queda dos projécteis,
tempestades, alterações políticas nos países dos quais nada sabe» 1 5 •
Estes supostos dotes de predicção intercalam-se com a fé na
astrologia de Hess e assistiram-se a alguns envolvimentos desta
matéria na Alemanha nazi nas oscilações entre o ser banida e o ser
praticada só com a autorização estatal 1 6 • Qepois de 1934 «cessou
toda a referência ao horóscopo de Hitler. O veto foi alongado
também aos horóscopos dos outros chefes nazis e a todo o género
de especulação astrológica que dissesse respeito ao Terceiro
Reich» 1 7 • Mas ainda em Setembro de 1936 funcionários do
partido tomaram parte no congresso de astrologia ao qual se
juntou um telegrama de felicitações de Hitler a quem fora enviada
uma saudação. Pelo contrário foi vetado o congresso de 1937

15
Louis Pauwels e Jacques-Bergier, // mattino dei maghi, cit. , pág. 356.
16
É indicativo da influência da astrologia também nos dirigentes nazis fora do
círculo de formação esotérica, mas em contacto com os ambientes de Munique onde esta
cultura prosperava, «em 1 928-29, Rõhm (na Bolívia como instrutor militar, correspondia­
se com o astrólogo Karl Günther Heimsoth, que estivera nos corpos francos e publicava
Charackter Konstellation) mencionava muito frequentemente nas suas cartas a falta de
uma companhia homossessual para ele essencial e escrevia: ' ' O senhor é muito experiente
a formular horóscopos. Poderia dar uma olhadela ao meu. Nasci em Munique a 28 de
Novembro de 1 887 pela uma da manhã. Suponho ser um homossexual, mas só me apercebi
disso em 1 924" (cit. por Howe, op. cit. , pág. 54). Heimsoth foi morto com Rohm a 30 de
Junho: talvez uma outra vítima da liquidação ou do afastamento, naquele ano, de ocultistas
extremistas como Stempfle e von Sebottendorff.
17
Ell ic Howe, Gli astro/agi dei nazismo, cit. , pág. 5 3.

194
(o ano do prenúncio da guerra, das dúvidas de Thyssen e de
Rauschning), período em que foi suprimida também a secção
alemã da sociedade teosófica. Cessaram as publicações «Ein
Blick in die Zukunft» de Elsbeth Ebertin e «Die Astrologie» de
Wilhelm Becker. Em 193 8 deixou de sair também «Zenit».
É evidente o nexo entre estas restrições e a preparação do
conflito. Mas em volta de Hess os astrológos continuam a traba­
lhar, enquanto Haushofer o inspira com os seus sonhos divinató­
rias de acordo com o que declararia durante a p'risão em Nurem­
berga e ainda a sua mulher 1 8 • Os astrólogos que tinham «lido nas
estrelas que ele estava predestinado a realizar a paz» 19 programam
também o voo de 1O de Maio e o comunicado oficial depois da sua
chegada à Escócia ilumina-nos todo um ambiente do esoterismo
naz1.
O primeiro comunicado emitido na noite de 12 de Maio
afirma que

o camarada Rudolf Hess, ao qual o Führer, tendo em


consideração uma doença que o afligia há anos, proibira de
modo mais severo qualquer actividade de aviação, partiu de
Augsburg para um voo do qual até hoje nunca chegou a
regressar. O estilo confuso de uma carta deixada por ele
apresenta infelizmente sinais de uma alienação mental que
faz temer que o camarada Hess tenha sido vítima de um
acesso de loucura.

O segundo comunicado de 13 de Maio precisa que

Hess estava havia anos muito doente. Tivera e quisera


nestes últimos tempos submeter-se aos tratamentos mais
diversos recorrendo entre outros a hipnotizadores e astrólogos.
Tentar-se-á esclarecer até que ponto tais pessoas são res­
ponsáveis pelo desequilíbrio mental que o levou a lançar-se
neste desesperado passo. Mas também é lícito pensar que do
lado inglês conscientemente se tenha armado um laço a

18
As declarações ao psiquiatra americano Dr. Douglas M. Kelley são citadas por
William Shirer, La Storia dei Terzo Reich. Einaudi, Turim 1 97 1 , pág. 906. As que foram
feitas à mulher são citada pelo filho, Wolf Rudiger, na entrevista a Osvaldo Pagani «Hess
meu pai», in «Storie illustrata», Outubro de 1984.
19
A citação é de Shirer (Ibidem), que em Berlim era um dos jornalista mais
informados sobre o vértice nazi.

195
Hess no qual ele caíu. Ele era perseguido por ideias fixas.
Conhecia, melhor do que ninguém, as numerosas propostas
de paz vindas do mais profundo do coração do Führer.
Segundo parece, imaginava poder impedir com um sacri­
fício pessoal um desenvolvimento das coisas que, em sua
opinião, teria levado à total destruição do Império britânico.
Não tinha nenhuma clara concepção de como poderia
realizar o seu plano. O partido deplora que tal idelista tenha
sido vítima de semelhante ideia fixa.

Um terceiro comunicado, de 14 de Maio precisa que

Hess considerava estar em condições de alcançar por inicia­


tiva própria uma paz na base de mútuos acordos entre a
Alemanha e a Inglaterra. Não estava naturalmente ao cor­
rente dos planos do supremo comando militar do Reich, que
são conhecidos por um limitado número de pessoas, mas
sabia no entanto o bastante para chegar à convicção de que
um desenlace da guerra alemã-inglesa, levada até às extre­
mas consequências, representaria o aniquilamento e des­
truição total da Grã-Bretanha. Churchill e a camarilha que
o tomou por chefe, como escreveu o próprio Hess,«são
apenas e mais ninguém os que pertubam e impedem a paz
no mundo». Ele considerava possível convencer a Ingla­
terra da loucura dos seus actuais homens de Governo, desde
que conseguisse esclarecer as altas personalidades inglesas
de qual era a real situação. E considerava que Lorde
Hamilton está particularmente adaptado a tal finalidade,
contando também, evidentemente, com os seus conheci­
mentos e influências.

Esta apresentação da missão deveria convencer a opinião


pública alemã das deterioradas condições psíquicas de Hess e ao
mesmo tempo estava muito próxima da realidade em quanto
concerne os contactos desejados para constituir uma espécie de
mensagem. Dispomos, além disso, do tesmunho de Speer sobre
a maneira como Hitler recebeu a notícia do voo:

Na antecâmara do Berghof encontrei dois ajudantes de Hess


que deviam entregar a Hitler uma carta pessoal do seu chefe.
Hitler desceu e mandou chamar um deles. Encontrava-me a

1 96
dar uma mirada aos meus desenhos quando explodiu um
urro inumano, louco, a que se seguiram depois as palavras:
«Bormann! Depressa! Onde está o Bormann?» E Bormann
teve de estabelecer ligações imediatas com Gõring, Ribben­
trop, Goebbels e Himmler. Hitler não tardou em recuperar
o habitual domínio de si. Mas ficou-lhe a angustiada dúvida
de que Churchill aproveitasse a ocasião para fazer crer aos
aliados da Alemanha que se tratava de uma hábil sondagem
de paz. «Quem estará disposto a acreditar que Hess voou
para o lado do inimigo por sua e não por minha iniciativa?» XJ
É licíto considerar que esta tenha sido uma preparada repre­
sentação para levar a acreditar que o Führer estava espantado e
furioso e que, ao mesmo tempo, se podia pensar que estivesse ao
corrente da iniciativa. A primeira versão é aceite por Goebbels,
em cujo diário se refere porém, que se verificou que, a uma
preocupação inicial surgiu o espanto pelo comportamento inglês.

13 de Maio. Chegam notícias terrificantes. Hess partiu com


um avião e desapareceu. Temos de pensar que tenha mor­
rido. O próprio Führer está desorientado. Que espectáculo
aos olhos do mundo: o seu substituto afectado por distúrbios
mentais! Espantoso e impensável! 14 de Maio. Mais um dia
de loucura. Finalmente uma certeza: Hess aterrou na Escócia
em paraquedas. Foi preso. Uma tragicomédia . Hess diz nas
cartas que tencionava ir a Inglaterra para derrubar o governo
de Churchill com a ajuda de Lorde Hamilton. Tudo isto é
demasiado estúpido. Um néscio como este era o substituto
do Führer. É quase inconcebível. As suas cartas estão
cobertas de teorias de ocultismo mal digerido. O professor
Haushofer e a mulher de Hess foram a mente diabólica de
toda esta façanha. Idiotices. E é isto um dos governantes da
Alemanha. O Führer está absolutamente chocado. Nada lhe
foi poupado. As pessoas perguntam, com razão, como é que
um estúpido assim pode ser o vice do Füher. Mas Churchill
tem pouco para dizer sobre os reais motivos. E Duff Cooper
demonstrou ser novamente um diletante. A tempestade está
prestes a rebentar. Churchill fez um discurso na Câmara dos
Comuns. Falou de um relatório inglês sobre o caso. 15 de

20 Albert Speer, Le memorie dei Terzo Reich, cit., pags 235-236.

197
Maio. O caso Hess causou danos espantosos na pátria, a
ruína é completa, o público não consegue comprender o que
aconteceu. Uma certa satisfação entre os reaccionários e na
Wehrmacht. No exterior efeito é indescritível. Londres
astutamente faz-nos esperar pela sua declaração oficial e
assim dá livre curso a cada mentira. Churchill mostra-se
muito reticente. Uma pequena boa notícia: meios oficiais
em Londres disseram que Hess queria a paz, mas uma paz
baseada no poder alemão. O maior perigo é que os Ingleses
se sirvam dele para autenticar falsos relatórios sobre atroci­
dades. Mas isto ainda não aconteceu. Os relatórios de
Londres são uma horrível misturada de mentiras, escân­
dalos e verdades. O bom Hess é usado de maneira impos­
sível de descrever. A sua ingenuidade infantil está a causar­
-nos um dano incalculável. Uma tragédia. Hess é o centro da
atenção mundial. É terrível para além de toda a imaginação.
16 de Maio. O caso Hess é sempre o motivo principal, mas
começa lentamente a perder o seu carácter dramático.
Começo a relaxar-me um pouco. Parece que Londres não
teve a ideia de publicar, simplesmente, declarações em
nome de Hess, sem que ele soubesse. É este o perigo maior
e mais preocupante para nós. Só pensar nisso me faz
arrepios. Mas parece que um anjo da guarda vela por nós.
Estamos a lidar na Inglaterra com diletantes estúpidos.
O que nós teríamos feito no caso contrário. Os videntes tão
amados de Hess agora ficam guardados à chave. O ataque a
Leste deveria começar a 22 de Maio. Mas isto dependerá em
grande parte do tempo. ·1 7 de Maio. O caso Hess está a per­
der vigor. Hamilton, que falou com Hess, considera-o um
louco. Os círculos influentes de Londres e de Washington
incitam as pessoas a não sobrevalorizar o incidente. Lon­
dres está profundamente desiludida por o caso ter feito tanto
barulho para nada. Do nosso ponto de vista, Duff Cooper
vale tanto ouro quanto pesa. A classe dirigente inglesa está
madura para o desmoronamento. Hess tinha planificado
magnificamente tudo. O seu ajudante tinha ordenado que a
estação de rádio de Saarbrücken transmitisse durante todo
o sábado à noite: Hess tencionava usá-la para encontrar a
direcção como ponto de referência. Um néscio, mas meti­
culoso. 18 de Maio. O caso Hess está já no fim. Com tanta
rapidez se passam as coisas nestes tempos. 19 de Maio.

1 98
O caso Hess começou a entrar no silêncio. No exterior é
considerado uma vitória alemã e uma tremenda derrota para
a propaganda inglesa. E é exactamente assim. Londres
perdeu uma grande oportunidade. 20 de Maio. O caso Hess
está verdadeiramente encerrado. Os propagandistas inimi­
gos lançam ainda algum esporádico golpe. Nós recusamos
reagir2 1 •

A classe dirigente inglesa não está amadurecida para o desmo­


ronamento, ou antes, vencerá a guerra. Duff Cooper é um hábil
ministro da Propaganda. Atrocidades para denunciar não lhe
faltam. No entanto, Churchill é cauteloso, induz Washington à
prudência, chegará como veremos, a dar valor a Hess. Lorde
Hamilton avaliza a tese da loucura22 • O que é que muda numa
única semana para que Goebbels passe do desespero à euforia, ao
ponto de pensar que tivesse sido o seu desorientado ministério a
desorientar aquele rival que só merece desprezo? É suficiente
concluir que «nestes tempos» tudo passa rapidamente? Evidente­
mente que não.
Há uma hipótese que pode explicar o comportamento inglês
e o facto de ainda pela morte do Vertreter, em Agosto de 1987, os
deputados trabalhistas terem pedido, em vão, que fossem dados a
conhecer todos os documentos sobre o caso. Sê-lo-ão mas desde
já se duvida que o sejam na íntegra. Que faceta do acontecimento
não pode ser dada a conhecer, por que surge em Churchill uma
cautela que pode ser sintoma de embaraço? A resposta pode ser
esta: Hamilton era apenas um intermediário e fez de interme­
diário. Hess falou com outras pessoas, além daquelas oficial­
mente indicadas. Foi escutado, deram-lhe a entender que as suas
propostas não caíam no vazio. Os seus interlocutores são ainda
ignorados. A insistência com que se exclui que se tenha falado da
URSS (a invasão, recorda Goebbels, estava prevista para doze
dias depois do voo) sugeriu que justamente esta questão esteve no
centro dos diálogos. Enquanto Hess propunha a paz, Hitler
trabalhava no plano de intensificação da guerra contra a Ingla­
terra, terminado antes do voo, a partir de 4 de Maio. É a conti-

21 /
diari di Goehhls, cit. , pág. 436-448.
22
James Douglas Hamilton escreveu depois o livro Motive for a mission, só em 197 l .
É da opinião que Hitler fo i informado do voo e sublinha o papel do seu amigo Albrecht
Haushofer na conjura de Julho de 1944.

1 99
nuação da tentativa de «levar a Inglaterra pela força à paz».
Espanta que justamente quem o sublinhou, como Hillgruber,
acentue uma nota:
Na mesma noite ( 10- 1 1 de Maio) teve lugar a última severa
incursão aérea a Londres antes do início do ataque alemão
à União Soviética. «Realistamente» falando, isto não cons­
titui um bom preâmbulo para a missão de Hess, mas a ideia
de «realismo» não se adapta a toda a empresa. Seja como for
Hitler representou bem a parte da surpresa na frente dos
seus23 •
A empresa não era realista pelas premissas - encontrar
interlocutores na Inglaterra sobrevalorizando a presença dos con­
tinuadores a alto nível da cultura esotérica - mas é gerida
habilmente pondo a Inglaterra perante o dilema do acordo ou de
sofrer um ataque a fundo (que depois não teve lugar pela escolha
do «Drang nach osten»). O ataque aéreo era portanto um apoio à
iniciativa. Está ligado a um cronologia que lhe ilumina o signifi­
cado.
A. 4 de Maio Hitler fala no Reichstag para exaltar as vitórias
nos Balêãs, elogia os combatentes gregos «de cujo país emergi­
ram os primeiros vislumbres da beleza» e ataca e pessoalmente
Churchill, «miserável como político não menos que como sol­
dado e miserável como soldado não menos que como político».
No final do discurso fala só com Hess por cerca de meia hora.
Naquela mesma noite parte para Gotenhafen, no Báltico para
inspecionar os dois mais poderosos couraçados alemães, o Bis­
marck e o Tirpitz, que devem ser usados contra os comboios ingle­
ses. Garantem-lhe que não podem ser afundados a não ser por um
ataque surpresa de aviões bombardeiros (na realidade, atingido
depois de ter afundado o couraçado inglês Hood, o Bismarck será
por sua vez afundado a 27 de Maio). A saída do Bismarck está
ligada à intensificação da ofensiva contra a Inglaterra, do Atlân­
tico do Norte ao Médio Oriente, de que é um aspecto o ataque
aéreo a Londres.
Isto não é uma coincidência, como não é uma coincidência
que o encontro entre Hitler e Darlan (braço direito de Pétain, o
mais anti-inglês dos dirigentes de Vichy) tenha sido programado

23
Andreas Hillgruber, La strategia militare di Hitler, cit. , pág. 592.

200
no Berghof justamente para 1 1 de Maio24 : é a mais resoluta
tentativa para induzir a França a alinhar contra a Inglaterra num
bloco continental europeu, com importantes repercussões no
Médio Oriente, onde está em curso um conflito entre a Grã-Bre­
tanha e o Iraque, desde que nos começos de Abril voltou ao
governo o independentista Raschid Ali el Kailani. Alemanha e
· Itália preparam-se para ajudar os iraquianos, enquanto Rommel
toma posição nas fronteiras egípcias. Ingleses e gaulistas estão
para invadir a Síria controlada por Vichy, antes que ela se tomasse
uma testa de ponte do Eixo, o qual está em vias de ocupar Creta
e se projectar para Chipre. É um momento dificílimo para os
Ingleses, o mais difícil depois de Dunquerque, como emerge da
narrativa do próprio Curchill.
Numa carta a Roosevelt de 3 de Maio de 1 941 escreve:
Não devemos estar demasiado seguros de que a perda do
Egipto e do Médio Oriente não teria graves consequências.
Piorariam certamente as condições e as dificuldades no
Atlântico e no Pacífico. Nós continuaremos a lutar; peço­
-lhe porém para se lembrar que a atitude da Espanha, de
Vichy, da Turquia e do Japão poderia ser determinada pelo
resultado deste teatro de operações. Não posso partilhar a
opinião de que a perda do Egipto e do Médio Oriente
constituiria um simples preliminar de uma guerra geral e
prolongada, coroada pelo nosso sucesso final. Se toda a
Europa, a maior parte da Ásia e de Á frica, a seguir à con­
quista ou a seguir a um acordo arrancada pela força, tives­
sem de se tomar parte do sistema do Eixo, uma guerra
conduzida pelas Ilhas Britânicas, pelos Estados Unidos,
pelo Canadá e pela Autrália contra esta possível organiza­
ção seria uma empresa árdua, longa e desgastante25 •

24
Por exemplo, Goebbels anota no seu diário com data de 14 Maio a propósito de
Hess. «Tinha de suceder precisamente agora, que o Führer acaba de receber o Almirante
Darlan e está prestes a lançar o seu ataque a Leste» (op. cit. , pág. 438) . Mas o almirante
francês deveria também comparticipar na política de sobre Londres, para forçar os
Ingleses a um acordo, e o ataque a leste poderia ser facilitado justamente por tal acordo.
É quanto o vértice de form�çijQ __ t!SQ!érica sabia e Goebbels ignorava. Pessoalmente
considero que o estudÕ das coincidências, das relações de não-causalidade entre aconte­
cimentos, seja uma grande contribuição do pensamento de Jung, que dele fala precisa­
mente no livro citado, no qual recorda a contribuição de Kraft como astrólogo. Mas
justamente porque as coincidências verdadeiras são significativas, é preciso distingui-las
das espúrias, como justamente neste caso.
25
Roosevelt-Churchill, Carteggio segreto, Mondadori, Milão 1977, pags. 167
e segs.

20 1
Evidentemente que o primeiro-ministro exagera as dificulda­
des da situação para obter um mais resoluto apoio americano. Mas
é possível concordar com Renzo de Feiice «que em Londres, entre
Março e Julho de 194 1, houvesse angústia pela perspectiva de um
colapso de todo o sistema defensivo no Médio Oriente (que se
temia que pudesse repercutir-se na situação indiana)» 26 • A cui-
dadosa análise desdobrou-se porém em função da tese do grave
erro cometido por Hitler ao subestimar as grandes possibilidades
de um decisivo sucesso do Eixo nesta área naquele período27 • Pelo
contrário, o que principalmente interessa acentuar aqui é que
Hitler estava a intensificar a pressão sobre a Grã-Bretanha em
relação com a missão de Hess. Provavelmente graduava os
esforços de acordo com a sua avaliação sobre as possibilidades de
sucesso da missão por possíveis notícias que lhe chegavam das
conversações em curso na Inglaterra. Por isso é importante, na
cronologia, acentuar que os primeiros aviões alemães chegam ao
Iraque a 15 de Maio e que na véspera do ataque a Creta (20 de
Maio) chega de Inglaterra uma estranha notícia que Goebbels
regista assim a 18 de Maio: «Em Glasgow foi descoberta uma
organização nacional-socialista. Não é muito �rande, mas de
qualquer modo é interessante como sintoma» 28 • E surpreendente
que se fale de nacionais-socialistas na Escócia onde Hess aterrou
e que os Ingleses dêem a notícia justamente no cúmulo do
interesse pela sua viagem. Nada se sabe de nazis na Escócia.
Seriam interessantes ulteriores investigações. Mas uma possível
interpretação é que a verdadeira notícia consistisse em indicar que
fora estabelecido um contacto pelas vias previstas (não com
inexistentes nazis escoceses, mas com personalidades das socie­
dades esotéricas) e que as conversações prosseguiam. Naqueles
· mesmos dias, Hitler consulta, em Berghof, Albrecht Haushofer e
Hans Frank.
Viu-se que através do lugar-tenente de Hess, Bormann (per­
sonagem à qual se voltará), Hitler tinha imediatamente convocado

26
Renzo de Feiice «Árabes e Médio Oriente na Estratégia política e de guerra de
Mussolini», in «Storie contemporanea», Dezembro de I 986, pág. 1288. A tese de fundo
é que na Itália se valorizariam as grandes possibilidades do período melhor que na
Alemanha.
27
Cfr. a propósito também o excelente ensaio de Lucio Ceva em comentário ao livro
de Hillgruber «A estratégia militar de Hitler, o Mediterrâneo e o pensamento hipotético»,
in «Storia contemporanea», Dezembro de I 987, págs. 15 I 3 e sgs.
zx / diari di Goehbels, cit. , pág. 446.

202
os dirigentes não «esotéricos» (Gõring, von Ribbebtrop, Goeb­
bels) e daqueles apenas Himmler, cuja ausência teria surpreen­
dido, dadas as suas funções. O Führer manifesta o seu terror aos
não iniciados. Mas logo depois ( 1 2 de Maio) fala com Albrecht
Haushofer29 • A versão oficial é que ele deveria justificar-se por
quanto aconteceu. Mas emerge uma outra aparente coincidência.
Tinha sido combinado entre Hess e os Haushofer uma carta para
Hamilton ( 1O de Setembro de 1940) que é transmitida a 1 9 por
intermédio de uma pessoa de confiança dos Haushofer em Lisboa
(Mrs. Roberts) que estava em contacto com agentes ingleses.
Justamente a 10 de Maio de 1 94 1 Hamilton tinha escrito ao
ministro da Aeronáutica do qual dependia como oficial (também
Hess chegou à Escócia como oficial da Lutwaffe e como tal é tra­
tado durante a prisão na Inglaterra), dizendo-se disposto a ir a Lis­
boa para se encontrar com Haushofer. No mesmo dia este é informado
que o embaixador inglês em Madrid, o já citado sir Samuel Hoare,
teria aceite um encontro de exploração. A primeira notícia é certa,
porque é referida pelo próprio Hamilton, a segunda é duvidosa29 •
Em todo o caso, fala-se destas coincidências para se sublinhar que
se estes acontecimentos se tivessem verificado umas horas antes,
Hess não teria partido, porque se teriam podido estabelecer
contactos por vias menos aventureiristas.
Provavelmente é verdadeiro o contrário e não se trata de
coincidências mas de mensagens chegadas oportunamente e que
constituíam não a alternativa, mas o preâmbulo à viagem. Datas,
horas, documentos seriam analisados a esta luz; e então o signi­
ficado de 1 O de Maio apareceria claro: a Hess foi dado crer que a
via para estabelecer contactos estava aberta, que era preciso um
interlocutor ao máximo nível. Quando o primeiro comunicado
alemão fala de uma possível cilada armada pelos Ingleses ao
Vertreter, é porque se procura evitar as consequências de possíveis
indiscrições sobre os precedentes da viagem: se Hess partiu, é por
aquilo que os Ingleses lhe fizeram crer. Na realidade, tinham sido
preparados e estabelecidos contactos e Haushofer vai a Berghof,
não para se justificar, mas para fazer o ponto da situação. No
mesmo sentido é entendida a vinda, a seguir, de Hans Frank,
estreitamente ligado a Hess desde os tempos da Thule e elemento

29
Disto fala Thomas Hugh no livro de título sensacionalista L ' assassínio di Rudo(f
Hess, Milão 1980, pág. 168.

203
importante do vértice esotérico30• É importante acentuar que
Hitler chega a Berghof justamente a 1O de Maio e aí fica até 2 de
Julho, quando parte para encontrar Mussolini em Brenero (com
excepção de um breve salto a Munique a 20-2 1 de Maio, início do
ataque a Creta). É lícito pensar que o Führer esteja nas montanhas
esperando por um daqueles momentos de esclarecimento quanto
ao que esteja a acontecer com Hess na Inglaterra. Volta a Berghof,
vindo de Brennero, e aí se estabelece até 1 1 de Junho, quando
volta a seguir para Munique e Berlim em vésperas do ataque à
URSS: um mês inteiro para espetar entre as montanhas uma
reviravolta que não se deu.
Entretanto, esgota-se a fraca resistência dos franceses vichys­
tas na Síria, que passa para as mãos anglo-gaulistas, enquanto se
quebrava até fim de Maio aquela bem mais resoluta, mas sem
esperança, dos iraquianos. Rommel, sem reforços, é bloqueado na
fronteira egípcia. É lícito concluir, como De Feiice, que

se a situação no Médio-Oriente não degenerou num gravíssimo


xeque para os Ingleses, que teria incidido bem pesadamente
no curso seguinte da guerra no Mediterrâneo e também
noutras regiões, foi por um lado por mérito dos Ingleses e,
por outro, culpa, por assim dizer, de Hitler. O mérito dos
Ingleses e, em primeiro, lugar, de Churchill, foi o de reagir
com extrema rapidez e energia. Se a reação alemã tivesse
sido maior e, principalmente, mais oportuna, a insufi­
ciência das forças britânicas disponíveis para a enfrentar
logo ter--se-ia tomado evidente. De tal modo que como o
disse Churchill, com pronta intervenção de tropas aereo­
-transportadas ter-se-iam «apoderado da Síria, do Iraque e
da Pérsia, com os seus precisos campos petrolíferos» e «a
mão de Hitler teria podido estender-se muito longe em
direcção à India e fazer acenos de convite ao Japão». A
«culpa» de Hitler foi a de não se ter apercebido da impor­
tante ocasião que o Eixo tinha de «obter um grande sucesso
com pouco risco», ou ter renunciado a ela para não adiar ou

30
Estas visitas não figuram no citado «Itinerário» de Hillgruber, mas vêm de várias
outras fontes entre as quais o capítulo «Hess» do livro de David Irving, Hitler' s War, Nova
Iorque 1 977.

204
enfraquecer o ataque contra a União Soviética, limitando-se
depois a uma intervenção tardia e de modestíssimas propor­
ções3 1 .

O que De Feiice define, entre aspas, como a «culpa» de Hitler,


torna-se «o erro de Hitler» no título de um capítulo de uma recente
história da guerra naval no Mediterrâneo, com citações da avalia­
ção do almirante Cunningham, o prestigiado e várias vezes
vitorioso comandante da esquadra no Mediterrâneo:

Em pleno desbaratamento (dos navios durante a evacuação


de Creta), perturbado pela progressiva destruição da sua
esquadra escreve a 30 de Maio ao Primeiro Lorde do
Almirantado: «Pode acontecer que o Almirantado deseje
efectuar uma mudança. Os acontecimentos destes últimos
dias podem ter abalado a confiança do pessoal da esquadra
sob o meu comando». Perdida Creta, a esquadra de Alexan­
dria tem os efectivos reduzidos a um couraçado - o Queen
Elizabeth - três cruzadores e 17 contratorpedeiros: todas
as restantes unidades estão no fundo do mar ou encontram­
-se danificadas. «Aqui estamos à beira do precipício»,
escrevia nos começos de Junho a Londres, «porque estamos
a perder a esquadra, Malta, Chipre e o Egipto, a não ser que
actuemos imediatamente». Mas o almirante não podia saber
que o pior tinha passado. Hitler, surpreendido com as perdas
sofridas em Creta (6000 paraquedistas e 200 aviões) e
sempre mais pressionado pelos prazos da ofensiva contra a
URSS, abandonou o Mediterrâneo, que continuava a consi­
derar teatro secundário de guerra. Anulou depois as projec­
tadas operações em Malta e Chipre, e nem pensou em
reforçar o exército de Rommel. Os aeroportos sicilianos e
gregos ficaram vazios dos aviões alemães, todos eles cha­
mados à frente russa. Hitler estava a perder uma grande
oportunidade para pôr a Grâ-Bretanha de joelhos32 •

Mais uma vez se pode considerar excessiva a ênfase dramática


de Churchill. Mas o pessimismo de Cunningham é significativo.

31 Renzo De Feiice, art. cit., pags. 1289- 1290. As citações de Churchil de La seconda
guerra mondiale, Mondadori, Milão 1966, Vol. III, pág. 304.
32
Gianni Roca, Fucilate gli ammiragli - La tragedia dei/a Marina italiana nella
seconda guerra mondiale, Mondadori, Milão 1987, pags. 149- 150.

205
Hitler subestimava o teatro mediterrânico, mas é possível que
tivesse ficado assustado com as perdas em Creta, insignificantes
perante a hecatombe que se preparava a Leste. O Führer era dotado
de um talento estratégico que ainda demonstrou na frente de
Moscovo na derrota de Inverno, quando conseguiu, embora
recuando, aguentar a frente, contra o parecer do Estado-Maior,
evitando uma retirada que poderia ter sido desastrosa como a de
Napoleão e_m 18 12.
Quando se examinam os erros de Hitler, é preciso portanto ter
em conta o seu talento estratégico e não avaliar demasiado
simplistamente. O erro ( ou a «culpa») de Julho de 194 1 foi aná­
logo ao de Setembro de 1939 e tem a mesma origem. Hitler julgara
então que a Inglaterra não interviria; considera não ter errado de
todo, pois embora ela lhe tenha declarado guerra, não se empe­
nhou seriamente durante todo o Inverno e pareceu disposta a vol­
tar-se mais contra a URSS, em guerra com a Finlândia, que contra
a Alemanha. A guerra só se toma um verdadeiro conflito com os
combates na Noruega3 3 •
Analogamente, em Maio-Junho de 194 1 Hitler considera
poder obter mão livre a Leste oferecendo à Inglaterra um acordo
também por intermédio de uma forte pressão militar. Não pre­
tendia ferir a fundo, mas alcançar um entendimento. Então como
em 1939 apostava na influência de sectores da sociedade inglesa
ligados à cultura esotérica, influência que era inferior à realidade.
Mas enquanto em 1939 não existem provas de possíveis con­
tactos, em 194 1 disto se tem a certeza graças à missão de Hess. Ele
teve conversações que a Hitler pareceram negociações. Não
tiveram o êxito por ele esperado no sentido da obtenção de um
prévio acordo antes do ataque a Leste. Mas considera que o facto
censurado poderia ter consequências análogas às de 1939: um
simulacro de guerra a Ocidente, que lhe consentisse empenhar-se
numa só frente. Foi este cálculo errado. E compreende-se melhor

:1 3
Segundo Liddel Hart, foi o temor de iniciativas inglesas que induziu Hitler a
ocupar a Noruega (a qual entrou assim na guerra), passando pela Dinamarca (que
inicialmente aceitou a «protecção» alemã). Hitler agiu depois de o contratorpedeiro
Cossack abordar o navio de apoio alemão Altmark para libertar prisioneiros ingleses que
transportava ( 1 7 de Fevereiro de 1940) e na convicção de que «se Churchill estava pronto
para violar a neutralidade norueguesa para libertar um punhado de prisioneiros, era ainda
mais provável que o estivesse para impedir que, por Narvik, partisse o mineral de ferro
sueco, importação vital para a indústria alemã» (Storia di uma sconfitta, cit. , pág. 63).

206
se se tiver em conta o facto de que um paralelo e surpreendente
erro de Staline pode ter a mesma origem.
Todos os historiadores concordam em considerar a descon­
fiança um traço distintivo do dirigente georgiano. Foi-o nos con­
frontos com os seus companheiros de partido como com os seus
aliados na guerra. E no entanto, naquele Junho de 194 1 , não des­
confiou justamente de Hitler, não obstante as informações que
teve de muitas fontes, incluindo as inglesas34 , sobre os preparati­
vos do ataque. Pelo contrário, tudo o que se estava a pensar em
Inglaterra com a viagem de Hess, levou-o a desconfiar mais dos
Ingleses que dos Alemães, ao ponto de evitar toda a iniciativa que
pudesse criar problemas nas fronteiras ocidentais da URSS,
mesmo a de ordenar um estado de alerta máximo das forças
armadas, perfeitamente justificável perante os evidentes prepara­
tivos germânicos.
A possível resposta é esta: com base nas suas informações,
Staline apercebia-se de que na Inglaterra estava a acontecer algo
de estranho, mas considerava Hitler suficientemente realista para
não atacar a URSS sem se ter certificado de não ficar comprome­
tido em duas frentes, situação que todo o seu pensamento e a sua
acção tinham querido evitar desde 1923 (Mein Kampj) a 1941.
Staline sabia que o acordo de 1939 era apenas uma trégua. Mas
não pensava que o Terceiro Reich romperia a trégua - que lhes
era vantajosa - sem primeiro ter a garantia de uma cobertura a
Ocidente. Considerava que Hitler não tinha esta garantia e por­
tanto não atacaria.
Dois erros paralelos - o de Hitler e o de Staline - cuja ori­
gem é comum: na Inglaterra estão em curso conversações; estas
conversações a nada levam de concreto, mas de qualquer modo
decorreram. Uma vez que não conduziram a nada de concreto,
Staline considera que Hitler não atacará. Mas uma vez que se
deram, Hitler considera-os uma premissa suficiente para atacar e
cria um facto consumado susceptível do desenvolvimento futuro

34
Por exemplo, Liddel Hart precisa que « o serviço secreto inglês recebeu com muita
antecipação informações precisas quanto à intenção de Hitler de atacar a URSS e que
naturalmente as transmitiu aos Russos; prevê mesmo a data exacta da invasão uma semana
antes de ela ter sido fixada de modo definitivo» (Ibidem, pag. 2 12). A data de 22 de Junho
foi «pela primeira vez tomada em consideração por Hitler a 22 de Maio, nela se fixa a 6
de Junho quando aprovou o calendário dos últimos preparativos e, a 17 de Junho, deu a
ordem definitiva para o ataque » (Hillgruber, op. cit. , pág. 544).

207
que deseja há decénios: um entendimento com a Inglaterra na base
da criação de uma Eurásia germânica aliada do Império britânico.
Esta interpretação permite explicar alguns factos de Maio­
- Junho de 1941 que, tendo também em conta os imponderáveis
da história, surgem um tanto surpreendentes: o embaraço de
Churchill justamente quando quer pôr Staline em guarda contra
Hitler, dizendo-lhe a verdade; um segredo ciosamente guardado
(a operação Barba Roxa) sobre a qual se têm muitas informações,
incluidas as tagarelices de um alto funcionário alemão embria­
gado; o entrecuzar de vozes de paz e de entendimento russo­
-alemão para dividir o mundo entre si, enquanto a guerra está para
se intensificar justamente pelo ataque alemão à URSS que, preci­
samente naquela altura, não seria necessário a Hitler, pois teria
sido possível um sucesso decisivo no Mediterrâneo e no Médio
Oriente, o qual teria permitido ao Terceiro Reich continuar a
guerra com o petróleo, com importantes cartas nas mãos, com
reforços alimentares garantidos pelo escrupuloso respeito sovié­
tico pelos acordos estipulados. Finalmente a acção dos serviços
secretos (com Crowley ligado aos Ingleses, com altos oficiais
alemães que fazem espionagem para os Soviéticos), que conside­
raram perigoso o plano global de Hitler.
O exame de todos estes factores deve ser feito, assim, a partir
da tese segundo o qual o Führer atacou a URSS porque, em Junho
de 1941, não tinha outras alternativas: tal consideração não é
convicente não obstante a argumentação a este respeito do mais
fidedigno historiador da estratégia militar de Hitler, da qual se
tratará no próximo capítulo.

208
9
DA MESOPOTÂMIA AO VOLGA

A 8 de Junho, liquidada a resistência iraquiana, as tropas ingle­


sas-émpenham-se a fundo na Síria juntamente com os gaulistas.
A 1O, Hess conferencia com um membro do gabinete inglês, lorde
chanceler sir John Simon. No dia seguinte Hitler deixa Berchtes­
gaden: Churchill ganhou bastante tempo para superar o momento
mais agudo da crise no Médio Oriente, Hitler compreende que não
pode obter garantias de Londres antes do ataque a Leste, o qual
está irrevogavelmente decidido. Para compreender o que entre­
tanto aconteceu são úteis os testemunhos paralelos de Goebbels
e do primeiro-ministro britânico.
A ampla utilização do diário do ministro da propaganda exige
um esclarecimento sobre a validade de fontes deste tipo 1 • Princi­
palmente num país com forte controlo policial como o Terceiro
Reich, também os diários não manipulados sucessivamente con­
têm só uma parte do pensamento de quem os escreve. Além disso,
é de excluir que neles se trate da influênci<1 do esoterismo em
determinados sectores das cúpulas.

1
Uma ampla selecção de «Testemunhos, discursos, memórias» está em Klaus
Hildebrand, Il Terzo Reich, cit., págs. 253-257.

209
Pode-se considerar exemplificativa uma frase do diário de
Rosenberg:

«Aquilo que hoje soube não o quero escrever, mas nunca o


esquecerei» 2 • Mas também com estas cautelas o diário de
Goebbels, estranho àquela cultura, tem um grau de fidedi­
gnidade bastante elevado no que diz respeito a factos
específicos. Assim se regista a data de 23 de Maio: «Bõmer
[um alto funcionário do seu ministério, N. d. R. ] cometeu
graves indiscrições falando de maneira absolutamente lou­
ca. Temo que tenha de o punir duramente. Tudo isto é
devido aos excessos a beber» 3 • E, no dia seguinte: «Bõmer
é apanhado numa situação extremamente desagradável com
as suas tagarelices de bêbado sobre a Rússia. Não sei se
estarei em condições de o ajudar. Discuti a questão da
Rússia. Mandarei Taubert [um alto funcionário. N. d. R. ]
como homem de ligação com Rosenberg. A Rússia será
dividida nas partes que a constituem. Não toleraremos mais
um imenso monólito a Leste. O bolchevismo tomar-se-á
coisa do passado» 4 •

Era precisamente o que Bõmer dissera durante uma recepção:


o ataque da URRS estava iminente, Rosenberg administraria os
territórios ocupados. U!]l mês antes da ofensiva (22 de Junho) o
plano Barba Roxa era apresentado publicamente por um alto
funcionário que bebia demasiado. Hess louco, Bõmer alcoólico:
estranhos comportamentos dos dirigentes da raça superior, tão
estranhos que faziam pensar numa campanha maciça de desin­
formação ligada com a missão de Hess da qual - viu-se - o
ministro da propaganda não conhece o alcance. Este homem de
elevada inteligência parece desorientado; fala primeiro em «punir
duramente» o seu funcionário; depois pergunta a si próprio se o
poderá ajudar.
Em seguida anota: «O Führer decidiu. Bõmer será julgado
pelo tribunal do povo. Desagrada-me muito, mas nada posso

2
Citado por Joachim Fest, Hitler. cit. , pág. 832. O A. observa que «nestas palavras
se nota um eco de horror», porque, datado de 2 de Abril de 194 1, Rosenberg referir-se-ia
«à primeira alusão a uma vasta acção de genocídio a Leste». Mas a decisão de não escrever
aquilo que se sabe ser muito delicado, tem um alcance geral.
/ diari di Goehbels, cit., pág. 456.
3

4
Ibidem, pág. 457.

210
fazer» 5 • É o dia 31 de Maio. Mas no dia seguinte: «Resolvido o
caso Bõmer desta maneira: ele teve uma disputa e por esse motivo
foi demitido» 6 • E a 4 de Junho: «Último trabalho de Bõmer: um
relatório sobre as suas actividades e as do seu departamento desde
o início da guerra: um excelente trabalho, que mais leva a lamentar
o seu doloroso destino. Todo o assunto é verdadeiramente pe­
noso» 7 .
Mais que penoso, surge incompreensível, tal como a evolução
que Goebbels regista do caso Hess. O caso Bõmer que anuncia o
ataque à URRS com um mês de antecedência faz yensar numa
embriaguês tão duvidosa quanto a loucura de Hess. E possível que
estas extravagâncias tenham contribuido para desorientar o tam­
bém astuto Staline sobre as verdadeiras intenções de Hitler. Tanto
mais que está em curso uma campanha de desinformação, desta
vez orquestrada pelo próprio Goebbels, que disto nos informa.
No mesmo dia (31 de Maio), durante o qual, depois de ter
ordenado uma investigação da Gestapo ao caso, Hitler envia
Bõmer a tribunal, lê-se no diário:
A operação Barba Roxa está em movimento. Devemos
ocupar-nos agora do primeiro grande engano. Só poucas
pessoas lhe conhecem o verdadeiro motivo. Sou obrigado a
guiar todo o ministério para uma pista falsa, correndo
pessoalmente o risco de sofrer no fim uma perda de prestígio,
quando tudo caminhar na direcção oposta. Catorze divisões
serão transportadas para Ocidente. O tema da invasão da
Inglaterra irá portanto lentamente para primeiro plano.
Mando escrever um artigo sobre o assunto e compor novas
fanfarras. As próximas semanas desgastarão muito os ner­
vos. Os outros ministros civis não têm a mínima ideia de
quanto está para acontecer 8 • [E a 4 de Junho] : Lançámos
panfletos sobre a Inglaterra. Para favorecer o engano.
A invasão começa já a ser a obsessão da imprensa9 •
Mas entretanto (7 de Junho), «ontem: por todo o mundo
circulam votos de paz. Defende-se que os USA não estarão em

5
Ibidem, pág. 468-469.
6
Ibidem, pág. 47 1.
7
Ibidem, pág. 475 .
8
Ibidem, pág. 469.
9
Ibidem, pág. 474.

Ll l
condições de dar uma verdadeira e consistente ajuda à Inglaterra
senão daqui a quatro anos. A Inglaterra terá de render-se no
O�tono» 1 0 • E, no dia seguinte: «Roosevelt desmentiu as afirma­
ções sobre a paz de uma maneira absolutamente insultante.
Afirma que a Inglaterra não pensa em render-se e que os autores
desses boatos somos nós. A sua impertinência é provocante.
Demos-lhe uma discreta resposta no serviço externo, pusemos
completamente a claro de quando e de onde provieram os boatos
enquanto na pátria deixamos o discurso num silêncio de des­
prezo» 1 1 .
Esses boatos existiam porque Hess negoceia na Inglaterra até
10 de Junho. Nada obtém, Hitler decide atacar igualmente a Leste,
a 12 está em Berlim e Goebbels regista:

O meu artigo Creta como exemplo é aprovado pelo Führer,


com algumas pequenas alterações. Poucos alemães e o
maior número possível de estrangeiros iriam lê-lo. É preciso
que a embaixada americana dele tenha uma cópia. Deste
modo, alcançará Londres e a imprensa mundial velozmente.
Publicá-lo-emos na sexta-feira na edição berlinense do
«Võlkisher Beobachter» e dele faremos retirar os exempla­
res naquele mesmo dia pelas três da manhã. A farsa será
representada até ao fim com absoluta precisão. Estudo as
medidas preparadas para o Leste. A esquadra para a Ingla­
terra é lentamente desmobilizada. Um imenso plano está em
acção e ninguém dele tem o mínimo indício 1 2 •

A 13 de Junho:

O tema Rússia está a regressar novamente ao primeiro


plano. O «Times» publicou um artigo muito suspeito e
substancialmente exacto. Mas isto já não pode fazer muito
dano. Para contestar, afirmamos ter encontrado uma boa
base para negociar com Moscovo. Isto restabelecerá a
situação. Todos os astrólogos, os antropósofos, os que culti­
vam o hipnotismo foram presos e as suas actividades proi­
bidas. Foi confirmado que o responsável pela difusão dos

10
Ibidem, pág. 478.
11
Ibidem, pág. 480.
12
Ibidem, pág. 486-487.

2 12
relatórios pessimistas sobre a posição da Inglaterra, publi­
cados na imprensa americana, é Winant [embaixador ame­
ricano em Londres, N. d. R.] 1 3 •

No dia seguinte:

O meu artigo rebentou como uma bomba. As transmissões


de rádio inglesas já afirmam que os nossos movimentos de
tropas em direcção à Rússia não são mais que um bluff para
esconder os nossos planos de invasão da Inglaterra. O meio
estrangeiro das informações está em completa confusão.
Até nós quase já não sabemos o que se passa. Segundo
parece, os Russos não suspeitam absolutamente de nada. As
nossas tropas estão tão densamente concentradas na Prússia
oriental que os Russos poderiam infligir-lhes os danos mais
graves mediante preventivos ataques aéreos. Mas não o
farão. Falta-lhes coragem para isso. Moscovo publicou um
desmentido formal: afirma nada saber de qualquer intenção
agressiva por parte do Reich. Pelo que parece nada fará para
se opor a qualquer agressão 14 • [Mas a 15 de Junho]: sabemos
por intercepções de rádio que Moscovo pôs em estado de
alerta a esquadra russa. Parece portanto que não é tão
ingénuo quanto tenta aparentar. Mas os preparativos são
inteiramente amadorísticos 1 5 •

A chave está na frase: «Até nós quase já não sabemos o que


se passa». Na realidade, Goebbels ignora um aspecto da questão:
as negociações de Hess, a esperança de Hitler que o ataque a Leste
crie o facto consumado que consinta recuperá-lo. O embaixador
americano tem uma suspeita qualquer quanto ao que está a
acontecer (por isso fala de dificuldades inglesas). Os intelectuais
(astrológos e quejandos) da cultura esotérica são presos preven­
tivamente apenas quando as negociações de Hess fracassam (mas
nem todos e não definitivamente).
Existe em Inglaterra uma pequena minoria que não põe de
parte poder tratar com Hitler. São poucos, mas consideram poder
chegar a influenciar a família real por antigos laços das sociedades

13
Ibidem, pág. 488-489.
14
Ibidem, pág. 490-49 1.
15
Ibidem, pág. 493.

2 13
esotéricas que vêm de finais do século XIX. O embaixador de
Roosevelt preocupa-se, o duque de Hamilton oferece-se para ir
aos Estados Unidos para explicar o caso Hess, Churchill não o
permite. Os conservadores ingleses mais anticomunistas também
não agiram politicamente para empurrar os nazis para o «Drang
nach Osten». Mas se Hitler precipita a Alemanha na aventura a
Leste, será ela mesma a colocar as premissas da sua derrota.
Churchill está consciente disto. Mas por outro lado não pode
deixar de ver que Hess é a prova de que existem ingleses -
poucos, mas influentes - dispostos a negociar com Hitler. Por
isso minimiza os factos, aceita a tese nazi da loucura de Hess. Por
um lado trata-o correctamente como um oficial da Luftwafe pri­
sioneiro de guerra (tinha aterrado fardado; terá também a diáriê\l de
oficial prisioneiro até ser enviado ao tribunal de Nuremberga) e
por outro faz que constantemente seja examinado por psiquiatras.
E o próprio Hess confirmará parcialmente com os seus com­
portamentos a tese do desequilíbrio psíquico para não atrair a
atenção para a sua missão falhada.
Ainda do ponto de vista histórico, Churchill minimiza o
episódio com esta afirmação:
Nunca dei grande importância à sua [de .Hess] fuga. Sabia
que não tinha relação alguma com o desenvolvimento dos
acontecimentos 1 6 •
[E poucas páginas mais ádiante, a propósito do processo de
Nuremberga] : Reflectindo em toda esta história estou con­
tente por não ter responsabilidade pelo modo como Hess foi
e ainda é tratado. Seja qual for a culpa moral que possa
ter um alemão que se encontrou ao lado de Hitler, Hess
espiou-a com o seu gesto completamente desinteressado e
insano de louco animado de boas intenções. Veio até nós
por sua livre vontade. Foi um caso clínico e não criminal 1 7 •
Um tolo bem intencionado: Churchill historiador concorda
nesse ponto com Goebbels. Mas sabe muito mais. As suas
afirmações não são apenas as de um inimigo cavalheiresco. São
também asserções de um experiente chefe político, que quer
proteger personalidades de prestígio (ainda hoje ignoradas) as
quais, através das suas sociedades esotéricas, tinham um ponte

16
Winston Churchill, La seconda guerra mondiale , cit. , vol. V, pág. 699.
17
Ibidem, pág. 73.

2 14
com a Alemanha. Mas alguma coisa transpirou. Chegava a Roose­
velt, ao qual o primeiro-mipistro escrevia: «Pensamos que seja
melhor que a imprensa dê livre curso à sua fantasia» 1 8 , enquanto
Winant confirmava as dúvidas da Casa Branca. Chegava a Sta­
line, que ficou desorientado pela razão que se disse, mas que
voltou em seguida mais vezes à questão.
Este aspecto traz-nos de novo à acção desenvolvida pelos
serviços secretos. No que diz respeito à Inglaterra, recordemos o
papel de Crowley (que esteve nos Estados Unidos nos anos
importantes do primeiro conflito; que talvez tivesse amigos
naquela área esotérica que ali prosperava nos tempos das irmãs
Fox, de madame Blavatski, das teorias da terra oca; também
através de tais fontes podem ter chegado à Casa Branca interpre­
tações diversas das afirmações tranquilizadoras de Churchill).
Referindo-nos ainda aos serviços secretos, recordemos Lawrence
de Arábia, que tinha em comum com os nazis esotéricos a
admiração por Hitler e o amor pela cultura islâmica (e que morreu
num acidente de motocicleta bem pouco claro).
Neste quadro são colocados as informações sobre a vigilância
a que foi submetido pelo MI 5 o duque de Windsor, de quem já
se falou. Um livro recente 1 9 apresenta-o como simpatizante dos
nazis. Depois do seu matrimónio com W ally Simpson, estabele­
ceu-se em França para morar no Château La Cande, de proprie­
dade de um francês agente nazi, Charles Bedeaux, que organiza a
sua visita a Hitler em Berchtesgaden. A duquesa é apresentada
como uma aventureira ninfómana (em Pequim teria ficado grávida
depois de relações cóm Galeazzo Ciano, que ali iniciara a carreira
diplomática que levaria o genro de Mussolini ao ministério dos
Negócios Estrangeiros), uma espécie de bruxa que teria condicio­
nado o fraco Eduardo VIII com uma espécie de magia sexual (tese
que era já reflectida pelos jornais da época) .
Mas o facto mais relevante é que a investigação do. MI 5 foi
feita por Roger Hollis, que depois a teria dirigido, e sobre quem,
num livro proibido na Inglaterra mas publicado na Austrália, um
outro dirigente dos serviços secretos, Peter Wright, indica como
possível agente infiltrado pelos soviéticos20 •

18
Ibidem, pág. 69.
19
Cfr. John Parker, The King of Fools (O rei dos tolos), Londres 1988.
]o Cfr. Peter Wright (em colaboração com Paul Greengrass), Cacciatore di spie,
Rizzoli, Milão 1988. Há ali uma descrição da carreira de Hollis e das razões das suspeitas.

2 15
Hollis, que indaga sobre o duque de Windsor, pode conhecer­
-lhe os comportamentos, que se podem revelar não tanto filo-
-nazis, mas influenciados por uma cultura esotérica cuja presença
nas cercanias da família real pode vir dos tempos da Golden Dawn
e do duque de Clarence (do mesmo modo, não-nazis, mas
herdeiros da Golden Dawn, são presumivelmente as personagens
de Glasgow de que se falou). Hollis, ao obter informações neste
âmbito, pode saber muito sobre a realidade da missão de Hess.
E pode ser um dos canais através dos quais chega a Moscovo a
confirmação de que a missão fracassou, que Hitler não tem as
costas defendidas e que portanto não atacará a Leste. Daqui as
oscilações de Staline, desorientado pelas revelações de bêbados,
pelas manipulações de Goebbels, bem informado por Richard
Sorge, agente soviético em Tóquio, mas que tem dúvidas resul­
tantes de actividades que pertencem à história da espionagem e
apresentam hoje ainda lados obscuros: as da chamada Orquestra
Vermelha.
-Traia-se de uma vasta rede de espionagem construída pelos
soviéticos na França, Bélgica e Alemanha e que começou a operar
no início de 1937. No que diz respeito ao Terceiro Reich, a
Orquestra está ligada a uma complexa rede de relações entre
militares alemães e soviéticos em acção desde a República de
Weimar. Foi em grande parte desmantelada em Março de 1942,
por acção de Heydrich. Tinha um dos seus maiores centros
operativos em Praga. Individualizá-lo foi uma das tarefas (talvez
a principal) do Reich Protetor de Boémia e Morávia, que foi morto
poucas semanas depois, em Maio (é possível recordar a coinci­
dência pela qual Praga fora a capital de Rudolfo de Habsburgo e
dos magos renascentistas).
Uma parte de Orquestra - o grupo Lucy, de Rudolf Rõssler -
continuou a operar até 1945, transmitindo aos soviéticos, através
da Suíça, informações importantes sobre as operações militares,
que provinham directamente do quartel-general de Hitler. No
centro da questão - além do seu enquadramento no Maio-Junho
de 1941 - estão as motivações que induziram altos oficiais
alemães a ajudar um país comunista contra a sua pátria em guerra.
A verificação destas motivações tornou-se difícil pelas distorções
que chegam à afirmação de que o informador dos soviéticos fosse
justamente Martin Bormann, que substituiu Hess (do qual era
íntimo colaborador) na direcção do partido e que foi talvez o
homem mais próximo de Hitler até à morte em Berlim cercada.

2 16
Tem de se ter presente que forneceram certamente informa­
ções aos inimigos da Alemanha o próprio chefe dos serviços
secretos, almirante Canaris (executado depois do atentado de
20 de Julho de 1944), o general Erich Fellgiebel, responsável
pelas comunicações do quartel-general do Führer na Prússia
oriental (a toca do lobo) e o capitão de cavalaria Wilhelm Scheidt,
que também ali prestava serviço no gabinete do general Walther
Scherff (o capitão trabalhou no pós-guerra como alto funcionário
do subsecretário da imprensa e das informações do governo de
Bona; foi destituído em 1952 por supostas simpatias com a
esquerda; morreu em Setembro de 1954 em circunstâncias pouco
claras). Os outros altos oficiais comprometidos na espionagem
são colocados nesta sintética e recente exposição de um dos
maiores especialistas na matéria, Walter Laqueur:

O caso da rede Lucy nem sequer hoje é claro2 1 . [... ] Dado que
Rõssler, fonte de maior parte destas informações, não tinha
à disposição um rádio de ondas curtas, a única explicação
possível é que recebesse parte do material dos suíços e o
resto através de ocasionais correios alemães. Os suíços [... ]
tinham à sua disposição excelentes fontes alemães, prin­
cipalmente a chamada «Linha Viking», com os generais
Oster, Thomas e Olbricht que eram os principais informa­
dores22.

Esta actividade não tem relevo na historiografia dedicada à


oposição militar a Hitler, na qual são recordados, além dos
preparativos para atentados, um só dos quais esteve próximo do
sucesso (a 20 de Julho, justamente), veleidades de putsch que se
exprimiriam em 193 8 na véspera de Munique e no Outono de
1939 quando, depois da derrota da Polónia, Hitler pensava numa
imediata ofensiva no Ocidente (que foi depois adiada para a

21
Walter Laqueur, Un mondo di segreti - lmpieghi e limiti dello spionaggio.
Rizzoli, Milão 1986, pág. 304.
22
Ibidem, pág. 475 . Num recente ensaio sobre a batalha de Kursk, Mario Silvestri
afirma que «no alto comando da Wehrmacht estava aninhado um espião que nunca foi
desmascarado, que transmitia aos Russos as decisões do alto comando a poucas horas da
sua difusão» ( «Storia illustrata», Maio de 1988). Entenda-se que existia um espião ainda
desconhecido, além dos conhecidos.

2 17
Primavera). É possível partilhar quanto está escrito no mais
recente e actualizado estudo a este respeito:

Os conjurados eram de opinião de que seriam derrotados em


primeiro lugar pelas circunstâncias externas. A investiga­
ção [histórica, N. d. R. ] acompanhou-os amplamente nesta
convicção. Todavia também no caso de a Grã-Bretanha e
França não terem cedido e de Hitler ter atacado a França já
no Outono de 1 939, o sucesso das conjuras militares conti­
nuaria bastante improvável [porque] a grande maioria dos
generais era fiel a Hitler e, na base da posição hierárquica,
o êxito dependia de modo decisivo do facto de as ordens
virem dos generais comandantes23 [ ou seja, não do Estado­
-Maior, centro das conjuras. Pois que nenhum dos conjura­
dos comandava tropas] ; por isso, sou de opinião que tudo
leva a crer que o projectado golpe de Estado teria falhado em
todos os casos24 •

Os que são definidos como «conjurados militares» 25 são ao


todo 39 ao nível de general e almirante em «3 1 9 1 que serviram
Hitler de 1 93 3 a 1 945» 26 e mais 1 44 oficiais em dezenas de milhar:
uma reduzidíssima minoria, registada como tal também num
escrito destinado a dar o máximo valor positivo à «Resistência
militar». Ela é mais eficaz, portanto, para a espionagem do que
para os atentados (cujo fracasso merece uma reflexão particular)
e para as tentativas de golpe de Estado. Se isto não é objecto de
amplo desenvolvimento por parte da historiografia oficial, por
freios morais que permanecem depois de quase meio século da
derrota do Terceiro Reich, tem de se perguntar o que teria
induzido altos oficiais a superar tais freios - justamente os que
consideravam que quem faz espionagem contra a pátria em guerra
não é em geral uma figura positiva, sejam quais forem as suas
razões - enquanto a Alemanha estava comprometida num con­
flito que a iria conduzir a uma pesada derrota. Nota-se que
enquanto o sucesso dos atentados e dos putsch teria podido evitar

23
Wolfang Schieder, Due generazioni nella resistenza militare contra Hitler, in
Fascismo e nazionalsocialismo, cit. , pág. 3 1 6-3 1 7.
24
Ibidem, pág. 3 1 6.
25
Ibidem, pág. 305.
26
Ibidem, pág. 309.

218
tal derrota (com uma paz negociada) ou atenuar-lhe as consequên­
cias (pelo prestígio que recolheriam os conjurados), a espionagem
(destinada a manter-se ignorada, salvo revelações póstumas) não
podia ser de benefício algum para os destinos da Alemanha.
Com uma excepção: a convicção daqueles que a praticavam
de que a vitória de Hitler teria implicado consequências piores,
para a Alemanha e para o mundo, do que a sua derrota. Uma
convicção, portanto, semelhante à de Rauschning e derivante de
uma avaliação «demoníaca» do nazismo.
É uma avaliação em que vem a talhe de foice referir a posição
do general Beck, já chefe do Estado-Maior e dirigente designado
do 20 de Julho (não envolvido com a «linha Viking»): «Num
diálogo com Wilhelm Meinecke, com uma expressão extrema­
mente apropriada disse de Hitler: ' ' Este homem não tem pátria' '.
E intuitivamente o historiador Otto Hintse escreveu: 'Este homem
não pertence efectivamente à nossa raça. Existe algo de absoluta­
mente estranho nele, qualquer coisa que faz pensar numa raça
primitiva diversamente desaparecida, mas sobrevivente sob uma
espécie completamente amoral ' ' »27 •
David Irving por sua vez cita um dos mais fiéis generais de
Hitler: «Hitler permanece um mistério. Até os seus íntimos
tinham consciência de que o conheciam pouco ou nada. Numa
cela da prisão de Nuremberga, a 1 0 de Março de 1 946, o general
Alfred Jodl, que foi um conselheiro militar mais próximo dele,
escrevia: ' ' Perguntou-me: alguma vez conheci realmente aquele
homem? Talvez ele tenha apenas troçado do teu idealismo, dele
abusando por tenebrosos desígnios que tinha escondidos no fundo
de si mesmo? Até hoje não sei ainda o que ele pensasse ou
soubesse ou quisesse realmente"»2 8 •
Para além das questões de psicologia pessoal, Hitler era
expressão de um cultura que quem ignorava não compreendia e
que quem entendia achava monstruosa. Mas é possível completar
a hipótese obsevando que talvez alguns oficiais da «resistência
militar» participavam desta cultura e consideravam os seus desen­
volvimentos, depois de 1 93 8, como um desvio pernicioso. Esta
resistência é justamente definida por Schneider como «nacional­
-conservadora». Tende-se a negar antecedentes nazis de von

27
Klaus Hildebrand, op. cit. , pág. 1 43 . O testemunho de Meinecke está in La
catastrofe della Germania, Sansoni , Florença 1 948.
28
David Irving, op. cit. , pág. 1 2.

2 19
Stauffenberg29 , também com a citada referência a George. Mas
por que foi então atribuída uma tendência ao entendimento com
uma «esquerda» muito distante do seu modo de pensar? E porque
tinham escolhido os informadores de Rõssler um nome como
«linha Viking», tão ligado à tradição do pensamento «ariano»?
Porque entrou Albrecht Haushofer em contacto com os conjura­
dos e foi morto com eles?
A resposta - em hipótese - pode ser encontrada nos deba­
tes de 1937-38 (Jünger) e de 1941 (Hess), no facto de aqueles que,
envolvidos na área esotérica, não tinham então partilhado das
opções que prevaleceram (uma guerra que se tomaria total, e a
Leste numa guerra de extermínio, sem garantia de um entendi­
mento a Oeste), viram confirmados os seus temores de catástrofe.
Os valores nos quais estes grupos acreditavam tinham um ponto
de referência que ia para além �ª- «pátria» alemã. Apostavam
numa paz de compromisso para salvar quanto se podia salvar da
base material dos grandes desígnios para o futuro. Apostaram
alternadamente, e talvez indiferentemente, num acordo a Oeste ou
a Leste, eliminando Hitler para garantir a continuidade de uma
experiência que também o Führer representava, mas que ele já via
só em termos de «crespúsculo dos deuses».
É uma hipótese que será aprofundada. E é possível perguntar
se é para uma nova manipulação de quanto acontece que Reinhard
Gehlen, nas suas memórias, tenha defendido que as informações
do quartel general do Führer destinadas à Orquestra Vermelha
provinham de Martin Bormann. Nascido em 1900, jovem comba­
tente na Primeira Guerra Mundial e depois nos Freikorps, Bor­
mann é geralmente descrito como um homem rude, e é difícil
imaginá-lo inclinado para leituras esotéricas. Mas também neste
aspecto seria preciso saber mais. As suas relações com Hitler e
Hess são de qualquer modo muito estreitas. Hitler é testemunha
das suas bodas (1929), e padrinho de seu filho (1930).
Número dois de Hess, substitui-o em Maio de 1941. Ao lado
de Hitler até ao fim, afirma-se que tenha conseguido afastar-se da

29
Segundo Schieder, ele «parecia ter em 1 933 uma certa simpatia pelo novo regime»
(op. cit., pág. 32 1 ). Ele cita o estudo de Chr. Müller Oberst i. G. Stauffenberg, Düsseldorf
1970, «onde são refutadas numerosas lendas ligadas ao suposto passado nacional-socia­
lista de Stauffenberg» (ibidem). É possível observar que nenhuma lenda nasce sem um
fundamento. Uma ampla biografia em língua italiana do coronel é L ' identità tedesca e il
caso Stauffenberg, de Wolfgang Venhor, Milão 1 988.

220
Chancelaria de Berlim e alcançar a América do Sul para ali dirigir
os grupos de exilados nazis.
O tenente-coronel Gehlen toma-se em Novembro de 1940
responsável pelo grupo Leste do serviço de operações do alto
comando. É o momento no qual o falhado acordo com Molotov
em Berlim marca uma viragem de tendência nas relações russo­
-alemãs. Quanto foram insuficientes as infarmações obtidas sobre
a força militar da URSS, é bem conhecido30 • De qualquer modo
Gehlen dispõe de muitas quando em 1946 se põe à disposição dos
Americanos, criando uma sua organização ligada à CIA até Maio
de 1955, para passar a depender do governo alemão ( 1956) e
tomar-se a BND (Serviço de Segurança da República Federal),
que Gehlen dirige até 1986. A sua afirmação de que Bormann teria
sido um espião soviético é confirmada pelo responsável dos
serviços secretos checoslovacos anteriores à guerra, Josef Bartik
(viu-se a importância de Praga).
Gehlen é uma personagem mítica, para além da modéstia dos
resultados que parece ter obtido quer com Hitler (informações
imprecisas sobre a URSS) quer depois (a República Federal foi
sempre terreno fértil para o KGB). Mais parece um técnico de
desinformação que de informação. A asserção sem provas sobre
Bormann confirmada por Bartik leva-nos à atitude de Staline em
Maio-Junho de 194 1.
De Berlim e de Londres tinham-lhe chegado, justamente via
Praga, notícias sobre a suposta conspiração de Tukhachevski,
condenado à morte com outros altos oficiais em 1937, no que cons­
titui um duro golpe às estruturas militares soviéticas. A Orquestra
Vermelha fora organizada pelos Serviços do Exército Vermelho
imediatamente antes da depuração. Staline podia acreditar que as
informações de então tivessem sido manipuladas para enfraque­
cer a URSS ou que se devia duvidar de homens ligados àqueles
que considerava conjurados não inteiramente liquidados. Tudo
quanto lhe chegava de Praga suscitava a sua desconfiança e talvez
contribuísse para o desorientar naquelas semanas decisivas.

30Recorda Laqueur: «Hitler e o Estado-Maior alemão subestimaram gravemente o


número do equipamento soviético. Subestimaram a capacidade da indústria dos armamen­
tos. Deram pouca importância ao espírito combativo dos soldados soviéticos» (op. cit.,
pág. 355). Em especiaJ «os alemães ficaram muito espantados quando tiveram de enfrentar
um carro blindado (o T 34) do qual ignoravam até a existência» (Ibidem, pág. 350).

22 1
Laqueur enquadra assim a situação:

Com Staline a URSS estava em estado de assédio perma­


nente. Era também o homem político mais desconfiado da
época moderna. Dado ver perigos em todo o lado ( em 1941)
deve ser-lhe difícil estabelecer prioridade e tomar precau­
ções especiais3 1 , [mas] dadas as ambições de Hitler, o facto
de Staline não ter conseguido compreendê-las correcta­
mente é difícil de compreender, tendo ainda em conta as
suas insólitas características pessoais32 • [Seja como for ] o
seu pressuposto de base era que Hitler tinha mais a ganhar
continuidade em paz com a URSS, arrancando tudo o que
podia do pacto de não agressão; e considerava que a con­
centração militar nas fronteiras fizesse parte de um colossal
«diversão» antes do ataque à Inglaterra33 •

Staline sabia certamente que a expansão a Leste estava nos


projectos a longo prazo dos nazis. Mas era lógico quando consi­
derava que, em Junho de 1941, Hitler tinha mais a ganhar man­
tendo os pactos que violando-os. A agressão era tanto mais
arriscada quanto faltava o acordo com a Inglaterra. E se 10-11 de
Junho pode ser indicado como a data do fracasso das negociações
(autênticas da parte alemã, fingidas da parte inglesa) e se fragmen­
tos de informação de quanto se passara tivessem chegado a
Staline, não a campanha goebbelsiana sobre a invasão da Ingla­
terra, mas a suposição de que Hitler quisesse exercer uma maior
pressão militar nos confrontos com Londres, tal situação pode ter
levado o dirigente soviético a não esperar um ataque naquele
solstício de Junho.
Mesmo quando o ataque teve lugar e não teve mais razão para
duvidar da correcção das informações que lhe tinham sido trans­
mitidas pelos Ingleses, as suspeitas de Staline permaneceram.
Regista-as o próprio Churchill, recordando que foram expostas

31
Ibidem, pág. 3 1 6-3 1 7.
32
Ibidem, pág. 3 1 9.
33
Ibidem, pág. 348-349. Laqueur acrescenta: «Informações fidedignas foram pres­
tadas a Staline pelos chefes dos seus serviços sercretos mas causavam todas um comen­
tário de dúvida, porque eles sabiam que o seu chefe tinha já uma ideia na cabeça»
(pág. 349). Que Staline tinha acreditado na «diversão» goebbelsiana é citado como tese
por Fritz Fischer in Griff nach der Weltmacht, Dusseldorf 1 96 1 , pág. 394.

222
em ��tembro de 1 94 1 a Lorde Beaverbrook, quanto partiu para
Moscovo para conseguir acordos militares; e acrescenta:

Três anos mais tarde, encontrando-me em Moscovo pela


segunda vez, Staline à mesa perguntou-me qual teria sido a
verdadeira missão de Hess. Tive a impressão de que estava
convencido da existência de uma negociação secreta ou de
uma conjura, fracassada depois, entre a Alemanha e a Grã­
-Bretanha para organizar a invasão da Rússia. Quando o
intérprete pôs a claro que Staline não acreditava naquilo
que eu dizia, repliquei por intermédio do meu intérprete:
«Quando faço uma afirmação sobre factos do meu conheci­
mento, considero que tal afirmação deva ser aceite». Staline
acolheu esta resposta um pouco brusca com um sorriso
irónico: «Também aqui na Rússia acontecem muitas coisas
que o nosso serviço secreto considera não dever informar­
-me». Nesta altura deixei morrer o discurso34 •

Mas ainda um ano antes de morrer Stalin reflectia no caso


Hess. É esta a única interpetação possível de uma pretensa
revelação do historiador Wemer Maser, biógrafo de Hitler, que,
por altura da morte de Hess, conta ter sabido do chefe do governo
da República Democrática Alemã, Otto Grotewohl, que em 1 952
agentes soviéticos teriam transferido por breve tempo o ex-Ver­
treter de Spandau para Dresda (ou para Weimar) para encontrar
personalidades que lhe teriam transmitido a oferta de Staline para
colaborar numa evolução política naquele país ( onde no ano
seguinte rebentaria a revolta em Berlim Leste ) 3 5 •
Que Staline tenha oferecido um papel político a Hess não é
verosímil. Mas que tenha procurado saber até ao fim - tenha ou
não tenha havido depois aquela espécie de «rapto» - o que
aconteceu em Maio-Junho de 1 94 1 na Inglaterra pode ser a
verdadeira razão do seu interesse, até ao fim da sua vida, pelo
adjunto do Führer. Uma vez que os Ingleses o tinham informado
do ataque iminente, Staline não teria razão alguma para insistir
com o primeiro-ministro britânico se não tivesse suspeitado -
com razão - que a verdade estava ainda parcialmente escondida.
E estava, porque personagens situadas muito no topo em Londres

'
4
Winston Churchill , op. cit. , vol . V, págs. 72-73.
5
' Cfr. a entrevista a «Figaro Magazine», 30 de Agosto de 1 987.

223
pensaram efectivamente em transformar a missão de Hess num
acordo anglo-alemão contra a URSS. E a razão deste comporta­
mento partia de uma componente cultural esotérica que tinha na
Inglaterra, como na Alemanha, raízes mais difundidas do que
quanto fosse ou seja lícito admitir. E é possível que a complexa
vicissitude dos falsos diários de Hitler - na qual tem um papel
de primeiro plano um fidedigno historiador que também colabo­
rou nos serviços secretos, Hugh Trevor-Roper - tivera a finali­
dade de confundir as ideias e de desencorajar ulteriormente
qualquer tentativa para esclarecer aquela situação.
Mas antes de analisar estes factos de 1983 é necessário
completar a descrição dos de 1941. A tese de que Hitler tinha
atacado a URSS porque se encontrava numa situação de náufrago,
sem outra saída é de facto escassamente convincente. O Terceiro
Reich não atacou a Leste por a sua derrota se apresentar inevitável.
Foi derrotado sim por ter atacado quando não era necessário,
criando assim as condições para o aparecimento de uma coligação
mundial anti-hitleriana, que sempre fora finalidde da política de
Hitler evitar, desde a redacção do Mein Kampf à estratégia das
guerras-relâmpago separadas, de 1924 a Junho de 1941. É pois
necessário partir da tese de Hillgruber.

A Grã-Bretanha [ . . . ] sob a direcção de Churchill, no Verão


de 1940, [ . . . ] foi levada a não ceder e a repelir qualquer
compromisso com Hitler não só «na base da distribuição do
mundo» como ele queria, mas ainda por uma questão de
princípio. [ . . . ] Alternativas estratégicas que pudessem levar
a guerra a pender a seu favor a Ocidente, no caso de um
adiamento da solução para Oriente, não faltavam. É verdade
que com uma estratégia alemã em grande estilo no Mediter­
râneo, mas para a qual faltavam todos os pressupostos
políticos e militares, poder-se-ia ter danificado seriamente
a posição imperial da Grã-Bretanha, mas não seria pelo
contrário atingido o seu . .11-ervo vital, como era considerada
a linha de comunicação entre as Ilhas Britânicas e os USA.
[ . . . ] A guerra no Ocidente ameaçou sofrer um alastramento
a partir de Maio-Junho de 1940, como consequência do
sempre maior empenhamento dos USA [e] , por fim, iria
desembocar num conflito no plano dos recursos materiais e
produtivos, como em 1914-1918, no qual a Alemanha não
estaria à altura. [ . . . ] Hitler tentou opor-se com o improvi-

224
sado plano de uma guerra relâmpago em grande estilo. Em
tal situação, que no Ocidente se tornava para ele de mês para
mês mais desfavorável, a conquista da Rússia europeia, até
então o grande objectivo do seu programa e da sua estratégia
geral, toma-se agora também o meio para virar a guerra a
Ocidente a seu favor ou, pelo menos, através da construção
de um grande espaço eurocontinental à prova de bloqueio,
para criar as condições [... ] para a vitória da Alemanha numa
nova guerra mundial. [Hitler] compreendeu bem no fundo
a concepção política de Staline que encarava, depois do
esgotamento das forças alemãs na guerra a Ocidente, avan­
çar o mais possível sem riscos para Oeste, conquistar novas
posições [... ] em relação à situação pós-bélica nos confron­
tos das potências anglo-saxónicas vitoriosas36 •

Mas viu-se que a alternativa estratégica para o Mediterrâneo


existia e teria requerido o emprego de forças limitadas, enquanto
as alinhadas a Leste eram mais que suficientes para bloquear as
intenções atribuídas a Staline. Justamente a 27 de Maio (enquanto
Hess negociava e se falava de paz, dadas as dificuldades inglesas)
Roosevelt declarara o estado de emergência nacional em apoio de
Churchill mas, dada a situação da opinião pública americana, as
resistências à intervenção (a sua campanha eleitoral de Novembro
fora um compromisso para manter os Estados Unidos fora do
conflito), e a dificuldade de se servir de um pretexto, como no
primeiro conflito, em consequência de um possível incidente no
Atlântico, o presidente americano teve de esperar pelo ataque a
Pearl Harbour para entrar em guerra3 7 • E, entretanto, com forças
relativamente limitadas Hitler podia chegar às portas da Índia sem
se desgastar no Ocidente enquanto 150 divisões lhe dariam tran­
quilidade a Leste.
Hillgruber repete a este propósito, a quarenta anos de distân­
cia, as avaliações de Goebbels:

Devemos agir. Moscovo entende conservar-se fora da guerra


até que a Europa esteja exausta e exangue. Então Staline

36
Andreas Hillgruber, La strategia militare di Hitler, cit. , págs. 64 1-642.
37
Sobre estes acontecimentos é fundamental : Peter Herde, Pearl Harhour - lntri­
ghi diplomatici, spionaggio, piani militari: come fu preparato el piú micidiale attacco
aereo-navale de/la storia, Rizzoli, Milão 1986. Ibidem uma análise documentada sobre as
negociações em curso entre USA e Japão em Maio-Junho de 194 1 .

225
mover-se-á para bolchevizar a Europa e impor o seu domínio.
Nós subverteremos os seus planos com um só golpe. Às
operações não foram levantados limites geográficos. Com­
bateremos até que o poder militar da Rússia deixe de existir.
A Rússia atacar-nos-ia se fôssemos fracos e então teríamos
de enfrentar uma guerra em duas frentes, o que estamos a
evitar em diante este assalto preventivo. Só assim teremos
a nossa retaguarda protegida. Uma outra razão para atacar a
Rússia é a necessidade de libertar homens para os destinar
a outras finalidades. Uma Rússia não derrotada obriga-nos
a ter duzentas e cinquenta divisões permanentemente em
armas, uma mão-de-obra de que temos urgente necessidade
para a nossa economia. A indústria militar deve ser grande­
mente intensificada para levar a termo os nossos programas
de armamentos de modo a que nem sequer os USA estejam
em posição de nos tocar. Quando a Rússia for posta de
joelhos, estaremos em condições de desmobilizar sectores
das forças armadas para construir, abastecer-nos e preparar­
-nos. Só então poderemos dar início ao ataque contra a
Inglaterra38 •
A analogia de avaliações entre o ministro da propaganda de
Hitler e o historiador de hoje está obviamente privada de suben­
tendidos polémicos. Significa apenas que um facto ignorado por
Goebbels e não tomado em considerção por Hillgruber leva a
conclusões análogas: Hitler não podia vencer no Ocidente sem
atacar a URSS e Staline pensava desfrutar o desgaste alemão. Mas
o raciocínio não é válido no Médio Oriente sem se esgotar. Para
quê comprometer-se então em duas frentes, tanto mais que Hitler,
também mal informado (em parte intencionalmente) pelos seus
serviços secretos não estava assim tão certo de impor uma guerra
relâmpago?
Efectivamente o bi�toriador Herde, que também parte do mes­
mo ponto de vista de Hillgruber, observa, examinando as negocia­
ções dos Japoneses com a Alemanha:

A 3 de Junho o embaixador japonês Oshima tivera um


encontro muito importante com o Führer; este exprimira-se
de maneira inteiramente diferente do passado sobre a possível

38
/ diari di Goebbels, cit. , pág. 497 .

226
intervenção numa guerra entre a Alemanha e a URSS.
Ainda hoje não existem documentos alemães sobre estas
conversações, todavia o relatório e as sucessivas declara­
ções do embaixador não permitem dúvidas: Hitler dá a
entender a sua intenção de atacar a União Soviética muito
mais claramente do que fizera nos primeiros dias de Abril,
dando a entender, mas só indirectamente, que se esperava
um ataque do Japão à Sibéria. Parecia portanto convicto de
já não estar convencido de poder derrotar a União Soviética
sem o auxílio japonês39 •

Hitler oscilava entre certeza nas próprias convicções e percep­


ção dos riscos. Não toma em consideração a alternativa Mediter­
râneo-Médio Oriente. De Pelice, retomando a consideração de
Hillgruber há pouco citada e acautelando-se ao afirmar que
«certamente não é nossa intenção alimentar o caminho de uma
história feita com os se» 40 , afirma: «Pessoalmente consideramos
esta afirmação (sobre o «nervo vital») demasiado peremptória e,
feitas as contas, tenderemos mais para a opinião de Faldella que
definiu como ''um erro fatal'' de Mussolini e de Hitler não terem
transferido todo o centro de gravidade da guerra para o Mediter­
râneo: a potencial ameaça japonesa, a incerteza sobre quais teriam
sido os desenvolvimentos das relações alemãs-soviéticas e a força
do isolacionismo americano ( que Hillgruber tende, com juízo
tardio, a subestimar demasiado) configuram de facto um contexto
geral no qual um êxito do Eixo no Egipto e, por consequência, no
Médio Oriente, teria podido determinar graves contragolpes
políticos na Inglaterra a uma situação na qual não é de excluir a
priori que, apesar de Roosevelt, os Estados Unidos não entrassem
na guerra» 4 1 •
Mas Hitler renunciou também à pressão militar que resolvera
exercer sobre a Grã-Bretanha desde o início de Maio e decidiu
pelo ataque a Leste. A razão não está apenas na sua subavaliação
da região mediterrânica (pelo qual Mussolini já nada podia decidir
sozinho). Está na sua tenaz convicção de que existiam interlo­
cutores na Inglaterra com os quais fora estabelecido um contacto
e que poderiam modificar a posição de Londres perante o facto

39 Peter Herde, op. cit. , pág. 90.


40
Renzo de Feiice. Prefácio a Andreas Hillgruber, op. cit. , pág. VI.
41
Ibidem, pág. V-VI.

227
consumado do ataque de Hitler à Rússia bolchevique, o que teria
demonstrado a sinceridade das propostas de Hess.
Era uma convicção errada, que no entanto se baseava em
premissas existentes e que Hitler passou em silêncio até ao fim,
quando no seu «testamento» atribui à Itália a causa do adiamento
e da catástrofe da campanha a Leste: «Afirmou a 15 de Fevereiro
de 1945 que o ataque ' 'idiota' ' da Itália à Grécia não lhe tinha
permitido iniciar a guerra contra a URSS umas semanas antes. Tal
afirmação é objectivamente de todo insustentável, quando ficara
estabelecido desde Julho de 1 940 que não seria possível uma
campanha contra a URSS antes de Maio de 194 1. O fracasso do
ataque italiano à Grécia em nada alterou tudo isto. A afirmação de
Hitler, na sua exposição dos factos de 17 de Fevereiro de 1945,
que sem a participação dos Italianos na guerra teria sido possível
atacar a União Soviética a partir de 15 de Maio não tem qualquer
valor histórico. As teses serviam apenas para criar uma lenda do
Führer para o período sucessivo à catástrofe final»42 •
A lenda foi criada de algum modo; debitando à Itália uma
responsabilidade que não tem, Hitler quer insistir no silêncio
sobre a verdadeira razão que o levou a adiar por um mês o ataque
a Leste inicialmente previsto para 22 de Maio: a missão de Hess,
a esperança de um acordo com Londres. Hess manterá o mesmo
silêncio por quase meio século, criando à sua volta uma lenda.
Sobre o prisioneiro de Spandau de tudo se escreveu: da
suposição de Hugh Thomas no livro citado de que não fosse ele
o Vertreter, mas um sósia (sem os vestígios de feridas nos
pulmões originadas na guerra), porque teria sido morto por ordem
de Himmler antes da viagem (pelo que seria um sósia que teria
chegado à Escócia) passando pela afirmação do ás da Luftwaffe
Adolf Galland que Gõring teria dado ordem de abater o avião de
Hess enquanto estava em voo43 , ao diário de Speer que parece
confirmar a versão predominante da alteração mental do sucessor
designado pelo Führer44.

42
Andreas Hillgruber, op. cit., pág. 588.
43
Cfr. Adolf Galland, /l primo e l' ultimo, Longanesi, Milão 1 965 . O livro de
memórias foi publicado na Alemanha em 1 953. A afirmação de Galland suscitou muitas
dúvidas e não teve confirmação alguma. Ele afirmou ter mandado levantar voo a dois
aviões de algumas esquadrilhas deslocadas para junto de Helgoland sem dizer aos pilotos
a finalidade da missão, porque estava certo de que era impossível levá-la a termo enquanto
estava a anoitecer. Galland não replicou a quem pôs em dúvida a sua afirmação e este é um
dos pontos obscuros do acontecimento.
44
Cfr. Albert Speer, / diari segreti di Spandau, Mondadori, Milão I 976.

228
Também o estranhíssimo evento dos falsos diários de Hitler
anunciados de forma sensacionalista pelo semanário «Stern» na
Primavera de 1983, parece ter a finalidade de tomar difícil todo o
aprofundamento da situação: talvez um método para apresentar
indiscutivelmente como falsa uma versão que poderia ser verda­
deira. Sabe-se que os diários foram submetidos preventivamente
a um severo controlo que os afirmou como autênticos. Confir­
mou-os fidedignamente o historiador inglês Hugh Trevor-Roper,
entre os máximos especialistas da história do nazismo. Em poucas
semanas se revelaram falsos, mas não só clamorosamente como
grosseiramente. Disse-se que o historiador ficara perturbado pelo
facto de ser colaborador do grupo editorial inglês que tinha
comprado o exclusivo da publicação. Foi suspensa imediata­
mente a sua publicação logo após o segundo episódio, relativo ao
caso Hess.
Todo o acontecimento voltaria a ser estudado. Aquilo que se
escreveu para explicar o episódio não é de facto convincente.
A hipótese mais provável é que os diários fossem falsos, mas que
estejam disponíveis algumas verdadeiras páginas escritas por
Hitler e neles inseridas. Com a indicação de que tudo é falso,
toma-se difícil reencontrar os fragmentos verdadeiros45 • A tese de
que o objectivo da divulgação teria sido uma espécie de reabili­
tação de Hitler é frágil. Na realidade a revisão sobre o fenómeno
nazi teve lugar na Alemanha apenas quatro dias depois, com a
tentativa de colocar sob uma luz mais aceitável pelo menos uma
parte do Terceiro Reich (justamente a luta a Oriente para evitar a
invasão bolchevique da Europa), enquanto o genocídio não seria
uma característica do nazismo46 •
Eritre os virios objectivos da divulgação dos diários falsos é
portanto lícito estabelecer a hipótese de espalhar uma ulterior
cortina de fumo sobre o caso Hess, levando a acreditar como

45
Para uma narrativa pormenorizada em língua italiana cfr. Erich Kuby, L' affare
«Stern » - Stampa e potere dietro il piu clamorosofalso dei seco/o, Rizzoli, Milão 1984.
A tese de uma espécie de reabilitação de Hitler ainda que involuntária e movida pela
ambição e avidez é assim sintetizada: «Talvez se tivesse procurado obter a simpatia da
pôpulação da República Federal apresentando o Führer sob um aspecto favorável! Três
quartos da população não [querem] ser incomodados pela história mais recente. Quem
quiser ver neste comportamento um elemento positivo pode interpretar isto como um mal­
estar de origem moral. Se assim fosse, o Hitler apresentado pela ' ' Stern ' ' seria por assim
dizer uma medicação aplicada a uma ferida nacional ainda aberta» (págs. 134- 138).
46
Cfr. as mais importantes intervenções no debate in: Aa. Vv. , Germania: Un
passato che non passa, traduzido por Gian Enrico Rusconi, Einaudi, Turim 1987 .

229
infundado um projecto que Hitler apresentaria assim: 1) Se a
missão triunfar, Hess agiu com o meu consentimento. 2) Se Hess
for encarcerado como espião na Inglaterra, diremos que este
projecto me fora apresentado uma única vez, mas que eu o rejeitei.
3) Se a missão falhar completamente, Hess agiu sob o impulso
dos seus ressentimentos. O comentário de «Stern» é: A missão
falhou completamente e Hitler pôs em acção o plano n. º 3. Na sua
agenda escreveu a versão oficial do partido sobre o caso Hess. Mas
o semanário apresenta a sua versão:

Esta é a história de uma conspiração que só hoje é desmas­


carada. O plano arquitectado por Adolf Hitler e Rudolf Hess
para evitar a participação da Grã-Bretanha na Segunda
Guerra Mundial foi um dos segredos melhor guardados do
Terceiro Reich. Só um outro homem dele tinha conheci­
mento: Martin Bormann. Já no Verão de 1939 o Führer e o
seu adjunto começaram a projectar um empreendimento
espectacular: na véspera da invasão da Polónia, era esta a
conspiração, Hess atravessaria em voo o mar do Norte na
tentativa de persuadir os Ingleses a uma aliança com a
Alemanha nazi. Nove meses mais tarde, Hitler mandou para
Londres sinais cujo significado podia ser plenamente
compreendido só pelo seu cúmplice, Rudolf Hess. Numa
épica missão de salvamento que se tornou conhecida como
«o milagre de Dunquerque», 2 15 mil soldados ingleses
conseguiram atravessar a Mancha. Naquela ocasisão Hitler
evitou dar o golpe decisivo. O modo como, sucessivamente,
Hitler e Hess conspiraram para eliminar o seu poderoso
inimigo inglês, Winston Churchill, está registado com a
letra do Führer nunca agenda secreta. Isto acontece depois
de, a 10 de Maio de 194 1, Hess voar para a Grã-Bretanha
para negociar uma paz separada. Hitler não queria ter
inimigos pelas costas enquanto se preparava para atacar a
Leste47 •
São situações conhecidas e não se compreende porque se
usam de termos «conspiração» e «cúmplice». O semanário
descreve assim a situação na Inglaterra. «Em todo o período entre
1935 e 1938 a Alemanha estava na moda na Grã-Bretanha,

47
«Panorama», agente exclusivo italiano de «Stern», 19 de Maio de 1983.

230
especialmente na alta sociedade. O fidedigno ' ' Times' ' tomara­
-se o porta-voz dos defonsores da política de appeasement.
O " Daily Express" de Lorde Beaverbrook, o " Daily Mail " de
Lorde Rothermere e o ' ' Observer' ' de Lorde Astor publicavam
artigos germanófilos e consideravam o nacional-socialismo um
dique ideológico contra o comunismo. A viagem entre Londres e
Berlim tomara-se um percurso político concorrido. Entre os sim­
ples turistas Anthony Eden, o futuro ministro dos Estrangeiros,
Lorde Beaverbrook, Lorde Redesdale, cuja filha, Unity Mitford,
foi fulminada por uma forte paixão por Hitler, Lloyd George, e o
duque de Windsor. Mas em Março de 1 939 a lua-de-mel acabou.
Hitler tinha violado o acordo de Munique. Hess todavia deve ter
compreendido que o futuro da Alemanha dependia da decisão de
Londres a favor ou contra Hitler. Estava por isso muito interes­
sado nas relações do seu conselheiro para os assuntos internacio­
nais Albrecht Haushofer, que tinha excelentes contactos na Grã­
-Bretanha e avisava-o de que Hitler já não gozava de tantas
simpatias apesar de entre os dirigentes de Londres existirem ainda
alguns dispostos a reagir a acenos da Alemanha quanto a um
possível acordo»48 •
Também este quadro é bem conhecido. O único facto novo é
que existiria um escrito do punho de Hitler a confirmar que Hess
agiu de acordo com o Führer. O que não está absolutamente claro
é <<com quem» Hess deveria conferenciar. E confirma-se a indis­
cutibilidade de um projecto já fracassado à partida. Na essência,
a tese de fundo é que Hitler estava animado pela vontade de
negociar com Londres, mas não encontrava interlocutores. Mal
foram publicadas estas páginas (e cumprida esta tarefa?) a «Stern»
apercebe-se da falsidade dos diários. Mas o papel de Trevor­
-Roper é tão surpreendente que um nosso fidedigno historiador,
Nicola Tranfaglia, o regista assim:
O castelo de areia contruído de modo tão desajeitado e
trapaceiro pelos ex-nazis em volta dos falsos diários de
Hitler desmoronou-se definitivamente. O falsário não tinha
enganado os historiadores, com a imprevisível excepção de
Hugh Trevor-Roper, hoje Lorde Dacre, dados os seus mé­
ritos científicos, dos quais ninguém poria em dúvida a
competência e a honestidade. O seu trabalho científico dele

48
Ibidem.

23 1
fizera um estudioso de grande fama e de indiscutível
experiência. Há dois anos - e isto surge hoje como um
pormenor curioso e paradoxal de tudo o que aconteceu -
Trevor-Roper voltara aos leitores italianos com a extraor­
dinária biografia de Edmund Backhouse, O Eremita de
Pequim (na tradução publicada pela Adelphi), um dos mais
extraordinários mistificadores e falsários do nosso século,
capaz de inventar e vender em todo o mundo textos clássicos
chineses e ao mesmo tempo de ser agente no Extremo
Oriente do Intelligence Service. Ora a fama de Trevor­
-Roper sobreu uma brecha, é acusado de leviandade e de
superficialidade49 •

Creio que o historiador tenha aceite esta sorte por amor da


pátria e inventado uma história com típico humorismo britânico.
Primeiro demonstra como o que é falso pode passar por verda­
deiro: e escolhe como personagem um agente da Intelligence
Service no Extremo Oriente (justamente como Hollis, que inves­
tigava sobre Eduardo VIII e a sua futura mulher e que se pode
julgar ligado com o caso Hess). Depois avaliza ele próprio o que
é falso (os diários do Hitler) como verdadeiro, apenas com a
finalidade de fazer que se tome por falso o que é verdadeiro (Hitler
sabia da missão de Hess). Tudo isto com o objectivo de tomar
mais difícil toda a ulterior investigação sobre as verdadeiras
negociações orientadas por Hess e principalmente com os seus
altamente colocados interlocutores ingleses da área esotérica.
Há portanto uma continuidade entre políticos (Churchill) e
historiadores (Trevor-Roper) na Inglaterra para tomar mais difícil
a investigação de quanto ali acontece efectivamente em Maio e
em Junho de 1941. A Inglaterra - no conjunto da sua classe diri­
gente - recusou qualquer acordo com Hitler, abandonou-o às
suas ilusões, guiou o país para a vitória contra o nazismo. Mas evi­
dentemente existiam personalidades que não estavam de acordo.
Eram poucas, mas certamente influentes, pois que ainda hoje se
toma difícil uma investigação sobre esta questão.
Também Hitler manteve silêncio. Manteve-o Hess até ao seu
enigmático desaparecimento, no dia do aniversário da fundação

49
Nicola Tranfaglia, /l fascino dei nazismo ( «À margem do inacreditável caso dos
falsos diários de Hitler»), in «la Republica>>, 1 O de Maio de 1 982 ( coincidência: 1 O de Maio
é o aniversário da viagem de Hess).

232
da Thule. Os escritos que em muitas cidades do continente o
saudaram como combatente pela Europa, dão à sua viagem a
interpretação mais coerente do ponto de vista da cultura de direita:
trabalhou pela construção daquele espaço euro-asiático pela qual
os Ários teriam de se mover para reencontrar o antigo poder e a
antiga saberdoria. Enquanto os factos de Maio-Junho de 1941
continuarem cobertos pelo silêncio e pelo mistério, é lícito
perguntar se aqueles que cultivaram estes sonhos não agem hoje
ainda na ilha na qual nasceu a democracia parlamentar.
De qualquer modo estes factos assinaram a fim do Terceiro
Reich que deveria ser milenário. Renunciando à Mesopotâmia (no
projecto levado por Hess à Escócia figurava a independência do
Iraque), para apostar no Volga, Hitler jogou e perdeu a partida
decisiva50 •

50
O lamentar o falhado acordo com a Inglaterra emergirá constantemente no
quadriénio sucessivo à queda de Berlim. Eis algumas citações típicas do livro Conversa­
zioni di Hitler a favo/a, 1 941 -42 , recolhidas por Henry Picker, cit., (publicado logo depois
do caso dos diários narrado no texto, foi apresentado como «o verdadeiro diário secreto»
do Führer): «O inglês é superior ao alemão pela sua consciência de si. Só quem sabe
comandar tem um alto conceito de si mesmo. No futuro, o Império inglês poderá subsistir
com a ajuda da Alemanha. O fim desta guerra será o início de uma duradoura amizade com
a Inglaterra. Condição preliminar para que possamos viver em paz com os ingleses é o
knock-out que os ingleses devem esperar daqueles que no futuro terão de respeitar: 19 1 8
deve ser cancelado. Os ingleses são um povo com o qual podemos aliar-nos>> (22 de Julho
de 194 1 , págs. 1 7- 1 8). «Se a América presta auxílio à Inglaterra fá-lo com o propósito de
apressar o momento em que os Americanos poderão recolher a herança inglesa. Não
viverei tanto que possa assistir aos desenvolvimentos desta situação, mas alegro-me pelo
povo alemão ao pensamento de que um dia ele será testemunha contra a América. Nesse
dia teremos encontrado a nossa verdadeira aliada. Se se considerar todas as forças criativas
disponíveis no estado latente no espaço europeu (Alemanha, Inglaterra, Países Nórdicos,
França, Itália) só é possível perguntar: o que são em comparação as possibilidades
americanas?» (8 de Agosto de 194 1 , págs. 20-2 1 ). «Os ingleses deixarão Churchill no seu
posto enquanto houver a vontade de continuar a guerra a todo o custo. Se fossem
verdadeiramente astutos, poriam termo à guerra e assim dariam o golpe mais terrível a
Roosevelt. Poderiam dizer: a Inglaterra já não está em condições de continuar a guerra,
vocês não podem ajudar-nos, por isso somos obrigados a modificar a nossa política em
relação à Europa ! Então a economia americana desmoronar-se-ia e também Roosevelt
começaria a vacilar. E a América deixaria de ser um perigo para a Inglaterra» (24 de Janeiro
de 1 942, pág. 24 ). «Pode talvez aperceber-se um sinal de crise no facto de os erros na
política económica, a falta de organização no sector civil, os insucessos militares e a fome
do cidadão inglês terem profundas repercussões na psicologia do povo. É interessante
notar a este propósito que até um duque, um parente do rei de Inglaterra, foi preso. Ainda

233
que o rei não tenha influência alguma na efectiva direcção da política inglesa, continua a
representar um importante factor político enquanto o exército inglês continuar intacto. Na
verdade o exército inglês é monárquico e recruta os seus oficiais na classe conservadora.
Basta dar uma mirada às revistas ilustradas inglesas com as suas numerosas fotografias das
personagens da aristocracia. Pelo menos dois terços destas personagens são fotografadas
em uniforme militar. Churchill é um homem adiantado nos anos, fumador inveterado,
grande bebedor, e logo já marcado por um natural desgaste. É até lícito pensar qu�, num
momento de lucidez, se apercebesse de que o império iria inevitavelmente ao encontro do
desmembramento se a guerra tivesse ainda de durar dois ou três anos» (27 de Março de
1 942, págs. 29-30). «A Inglaterra dispõe de uma maravilhosa elite humana nas suas classes
superiores. Ser-lhe-ia agradável conduzir esta guerra contra o bolchevismo tendo por
aliados a marinha e a aviação inglesa» (3 de Abril de 1 942, pág. 36). «Os Ingleses tiveram
de chegar à beira da catástrofe para se aperceberem de que já não podem representar o
papel dos protagonistas na Europa. O único inglês que realmente compreendeu a conjun­
tura política actual foi o duque de Windsor, que gostaria de ter vindo ao encontro das
nossas aspirações coloniais deixando-nos colonizar a parte setentrional da Austrália, de
modo a formar um escudo ideal contra o Japão. Mas os Ingleses puseram na rua este
homem e preferiram a um acordo com a Alemanha a fraterna aliança com os Estados
Unidos» ( 1 3 de Maio de 1 942, pág. 50). «A propaganda hebraica ainda não conseguiu ferir
a aviação inglesa. Esta propaganda só pode desesperar os valorosos pilotos ingleses pois
que, por um lado, os empurra para acções militares absolutamente erradas e depois,
quando estas acções se realizam com graves perdas e sem sucesso, não hesita em criticar
os homens da Royal Air Force. É lógico que a propaganda hebraica dirigida contra as
melhores forças da RAF acabará lenta mas seguramente por empurrar os aviadores para
o campo do anti-semitismo. Churchill não passa de um refinado fanfarrão, sem
escrúpulos» (20 de Maio de 1 942, pág. 57). Por fim, nas últimas semanas, no bunker da
Chancelaria, Hitler, naquilo que constitui o seu testamento político, confirma que na base
da derrota está o falhado acordo com a Inglaterra, que teria podido dedicar-se «totalmente
ao bem-estar do seu Império» enquanto Hitler teria alcançado «o objectivo de toda a minha
vida e a razão do nascimento do nacional-socialismo: a destruição do bolchevismo. [MasJ
tinha subestimado a enormíssima influência dos hebreus na Inglaterra governada por
Churchill. Ah, se o destino tivesse concedido a uma Inglaterra senil, artereosclerótica, um
novo Pitt, em vez daquele meio americano beberrão e judaizado! O povo inglês rebentará
na sua maldita ilha de fome e de tuberculose» (Citado in Trevor-Roper, II testamento
politico de Hitler, cit. , págs. 57-6 1 ). São evidentes em todas estas reflexões os motivos
subjacentes à missão de Hess, obviamente sem referência aos interlocutores esperados (as
associações esotéricas), mas com alusões aos seus ambientes (aristocracia até ao nível da
família real). Recorde-se que fez propaganda pelo Eixo o filho do ministro Lorde Amery.
Também a fez o poeta americano Ezra Pound, cuja produção tem analogia com os poetas
da Golden Dawn, o seu grande amigo Yeats e Eliot.

234
10
O CREPÚSCULO DE RIENZI
A data definitiva escolhida depois dos adiamentos fez que as
tropas de Hitler entrassem na Rússia naquele mesmo 22 de Junho
em que tinham entrado em 1 8 1 2 as de Napoleão. Este abandonou
a terra russa, depois da derrota, a 6 de Dezembro do mesmo ano.
No mesmo dia se desencadeou a contra-ofensiva russa na frente
de Moscovo, que marcou o início do fim do projecto hitleriano.
É difícil dizer se o Führer tivera presentes estas coincidências. Se
«tudo começou» com Rienzi, tudo se conclui quando os destinos
da campanha de Oriente foram determinados pelo fracasso da
guerra-relâmpago.
O crepúsculo wagneriano que se celebrou na Chancelaria de
Berlim foi celebrado pela mesma cultura esotérica com a qual se
iniciara a aventura de Hitler e do terceiro Reich. Antes de recordar
estas últimas páginas, é útil sublinhar que o ataque à URSS
permite-nos colher os últimos sinais das características pessoais
de Hitler que foram descritas nos primeiros capítulos: uma espé­
cie de vidência que o faz escapar à morte, como no citado episódio
do primeiro conflito mundial, e que o ajuda agora a subtrair-se aos
atentados organizados pela «resistência militar»; e a transforma­
ção (fechado na «toca do lobo» de Rastenburg) de um estilo de
trabalho que estivera na base das suas intuições e dos seus êxitos.
A ligação entre o caso dos atentados e a cultura esotérica
esboça-se desde o início da guerra, altura em que o Führer escapa
em Munique, a 8 de Novembro de 1 939. Tinha-o vaticinado Kraft
ao escrever ao seu amigo Erich Fesel ( astrólogo e estudioso de
línguas antigas incluído o sânscrito, pertencente ao citado grupo

235
de Gõmer) a 2 de Novembro. Fesel tinha sido recrutado para os
serviços secretos de Himmler por Walter Schellenberg ( uma das
muitas relações entre estes serviços _ e a cultura esotérica, na
Inglaterra e na Alemanha) 1 • Kraft escreveu-lhe, dizendo, que a
vida de Hitler estaria em perigo entre 7 e 1O de Novembro e falou
de «possibilidade de uma tentativa de assassínio por meio de
material explosivo» 2 •
Na noite de 8 de Novembro, o Führer deixou a Bürgerbrakel­
ler com um minuto de antecedência em relação ao horário previsto
e a bomba explodiu logo depois, provocando sete mortos e ses­
senta e três feridos. Kraft mandou um telegrama a Hess infqrman­
do-o da sua previsão3 • Hess pediu a carta a Fesel, mostrou-a a
Hitler, Kraft foi interrogado em Berlim por quatro oficiais da
Gestapo e «Gõmer disse-me que Kraft não só os convenceu de que
nada tinha a ver com o que acontecera, como até que em certas
circunstâncias era possível formular exactas previsões astrológicas»4•
Em confirmação da ambígua situação da astrologia no Terceiro
Reich, aproveitou a circunstância para participar numa reunião da
Associação
- Astrológica Académica a 21 de Novembro5 •
O atentado fora obra de George Esler que, segundo a historio­
grafia, agiu sozinho e foi preso poucos dias depois. Hitler estava
inicialmente convencido de que se encontrava perante uma ope­
ração do Intelligence Service e concordou com Himmler e Hey­
drich (personagens do círculo «ocultista») com a captura de dois
agentes ingleses em Venlo, na Holanda, efectuda por um destaca­
mento de SS guiado por Schellenberg. Um dos dois agentes, o
capitão S. Payne Best, narrou depois esta vicissitude, da qual
emerge um aspecto singular:
No curso de um dos muitos interrogatórios, foi interrogado
sobre as suas relações com um certo Herr K. von H.,
astrólogo. Uma semana antes uma amiga tinha jantado com
Best e a mulher. O hóspede era acompanhado pelo filho

1
Fesel foi empregado na sétima secção de «investigação ideológica». Howe (Gli
astrologi dei nazismo, cit. , pág. 240) cita a biografia de Heydrich de Charles Wighton,
publicada em 1 963, segundo a qual na sétima secção «encontravam refúgio os maníacos
das SS, aqueles que até para Himmler exageravam». É uma avaliação que seria aprofun­
dada a propósito do problema da extensão da cultura esotérica no Terceiro Reich.
2
Ellic Howe, op. cit. pág. 136.
3
Ibidem, pág. 1 37.
4
Ibidem ,
' Ibidem, pág. 1 38.

236
«chegado a Haia de Berlim, onde tinha uma remunerada
actividade de consultor astrológico». A Gestapo conseguira
sabê-lo. Fora imediatamente preso e submetido a um severo
interrogatório. Um oficial da Gestapo estava particular­
mente ansioso de saber que acordos tinha havido entre Best
e o astrólogo K. von H. Best explicou que não havia acordo
algum, que mal o conhecia. O outro disse-lhe: «Porque
disse a Herr K. von H. para não voltar à Alemanha antes da
lua-nova?» Best não sabia, mas depois veio-lhe à mente que
um agente alemão, com o qual tinha falado na Holanda, o
tinha informado que Hitler acreditava plenamente que o
sucesso das suas empresas dependia das fases lunares.
Recordou também ter «escarnecido um pouco de K. von H.
e ter-lhe dito que teria feito melhor em adiar o regresso à
Alemanha para depois da lua-nova» 6 •

Howe considera _que «Herr K. von H., o homem que fora a casa
de Best com a mãe, provavelmente não era outro senão o barão
Keun von Hoogerwoerd, um holandês que tinha ensinado astro­
logia a Louis de Wohl» 7 e aceita a narrativa de Best que, pelo
contrário, suscita questões para aprofundar: existe um agente
secreto inglês que tem relações com astrólogos e com agentes
alemães que lhe falam de aspectos da cultura esotérica presentes
em Hitler. Há um astrólogo que ensina a matéria a um agente que
trabalha em Londres com os serviços secretos (de Wohl). Encon­
tramos nestes serviços secretos o ocultista Crowley e Hollis, o
agente duplo. Verificamos finalmente que Hans Bernd Gisevius
e Arthur Nebe, os chefes da polícia alemã que participarão na
conjura de 20 de Julho de 1944, conseguindo depois fugir,
interessam-se pela temática esotérica.

De 1933 em diante foram muitos a dizer que Hitler se servia


de astrólogos. O problema interessou o doutor Gisevius já
desde 1934 quando, com Nebe, tentou, sem conseguir,
apurar o que havia de verdade. Se Nebe, chefe da polícia
criminal do Reich desde 1936, não conseguiu identificar o

6
Ibidem, págs. 1 38- 1 39. As citações de Best são do seu livro The Vento lncident,
Londres 1 950, págs. 60-6 1 .
7
Ellic Howe, op. cit. , pág. 1 39.

237
astrólogo de Hitler, é lícito deduzir daí que esta personagem
não existia8 •

Nebe indaga sobre o atentado de 8 de Novembro e contará a


Gisevius, transferido desde 1 936 para o serviço de informações do
exército, que naquela altura «Himmler mandou chamar um membro
do seu regimento de adivinhos, um vienense que caiu de repente
em transe e começou a descrever confusamente o aspecto de um
certo Otto, o qual estava a falar com três senhores bem vestidos
na Suíça. Nebe contou a Gisevius que, depois de a Gestapo
prender Esler, Hitler ficou fascinado com a experiência técnica de
Esler: tão fascinado, foi esta a impressão de Nebe, que quase se
acreditava que algum oculto e misterioso vínculo o ligava a
Esler» 9 •
Deste conjunto de complexas narrativas pode-se deduzir que
investigações e recolha de informações sobre esoterismo se
entrelaçavam com o trabalho dos serviços de segurança na Ingla­
terra e na Alemanha e esta actividade foi particularmente viva na
altura do atentado de 8 de Novembro, cuja história tem talvez algo
mais que aquela até agora conhecida (um acto isolado). Logo
depois houve uma troca de correspondência entre Kraft (autori­
zado a fazê-lo pelos serviços secretos para os quais trabalhava
directamente Fesel) e o ministro da Roménia em Londres, Virgil
Tilea, que Kraft conhecia por ter-lhe dito exactas previsões, na
base dos horóscopos, sobre o futuro do chefe dos guardas de ferro,
Comelio Codreanu, que morreria em Novembro de 1 938, e do rei
Carol da Roménia, que perderia o poder em Setembro de 1 940 1 º .
·· · No início daquele ano Tilea não sabia obviamente que se
verificaria também a segunda predicção, mas ficou impressio­
nado pela primeira e escreveu a Kraft. Este enviara-lhe anterior­
mente um exemplar dos seus trabalhos. Numa carta datada de
Bruxelas, a 29 de Dezembro de 1 939, «se considera que Fesel
(encarregasse) Kraft de uma missão de espionagem nos Países
Baixos» 1 1 onde Best fora preso. Da troca de correspondência com
ele, Virgil Tilea, que era antinazi, deduziu que Kraft trabalhava

8 Ibidem , pág. 246.


9
Ibidem, págs. 1 39- 1 40. A narrativa de Gisevius está no livro Wo ist Nebe ? (Onde
está Nebe?) , Zurique 1 966.
10
Sobre todo este acontecimento cfr. Howe, op. cit. , capítulo X, «O caso da carta a
Tilea». págs. 1 42- 1 52.
1 1
Ibidem, pág. 1 47.

238
para Hitler e disto informou os Ingleses e sugeriu-lhes «que
tomassem as necessárias contra-medidas» 1 2 • Mas os Ingleses
estavam já muito bem informados sobre toda esta matéria.
O atentado de 8 de Novembro é o primeiro dos preparados
durante a guerra, intensificados depois do início da campanha a
Leste, e aos quais Hitler escapou. Basta aludirmos a isso, basean­
do-nos no já citado ensaio relativo à «resistência militar».

Sabemos que o atentado de 20 de Julho de 1 944 não foi o


primeiro proveniente dos militares. Parece que entre 1 94 1
e 1 942, na altura em que marechal Erwin von Witzleben
comandava em Paris, por umas duas vezes tenha sido
preparado um atentado. Uma vez que Hitler não foi a Paris,
estes atentados não puderam ser efectuados. Depois da
catástrofe de Estalinegrado, em 1 943 , no corpo de exército
da frente oriental foram continuamente elaborados novos
planos de atentados. Também no corpo do exército do norte
se elaboravam, na mesma altura, os mesmos planos. Porém,
naquele período, Hitler fez uma visita de surpresa ao corpo
do exército do sul, no qual não havia resistência alguma. Em
Março de 1 943 Hitler dirigiu-se para o quartel-general do
exército central em Smolensk [e] é executada a tentativa do
atentado talvez mais próxima da possibilidade de sucesso.
O tenente Fabian von Schlabrendorff conseguiu esconder
uma bomba no avião de Hitler. A espoleta da bomba não
funcionou. No curso de 1 943 o coronel barão Rudolf von
Gersdorff, o capitão barão von dem Bussche, o tenente
Ewald Heinrich von Kleist e o capitão de cavalaria Eberhard
von Breitenbuch estavam prontos a pôr em jogo a própria
vida num atentado a dinamite contra Hitler. Nenhum deles,
porém, conseguiu a oportunidade, porque Hitler instin­
tivamente se mantinha longe dos encontros preparados.
A resistência militar continuou sem dar fruto, [ mas não] por
factos fortuitos como a falência de todos os atentados a
Hitler 1 3 •

12
Ibidem , pág. 1 52.
13Wolfgang Schieder, Due generazioni nella resistenza militare contra Hitler, cit. ,
págs. 30 1 -303 . Ibidem a relativa bibliografia.

239
O próprio Stauffenberg tentou três vezes colocar uma carga
explosiva nas proximidades de Hitler: a 1 1, a 14 e a 20 de Julho 1 4 •
Conseguiu apenas à terceira vez com a «operação Walquíria»;
mas um oficial perto de Hitler (influenciado por uma sua percep­
ção?) deslocou a pasta com o explosivo para uma distância
suficiente de forma que, ao explodir, só o feriu ligeiramente. Mas
se o Führer continuava a ver nestes acontecimentos o sinal de
um destino que o protegia, o seu ânimo ficou certamente abalado.
Além disso, fechado na «toca do lobo» de Rastenburg,
obrigado a reuniões diárias e a horários de trabalho rigorosos, já
não pôde comportar-se como nos anos das suas decisões para ele
mais felizes: longas horas de ociosidade, noites em branco por
fúteis falatórios, dormidas de manhã. É verdade que também
Churchill ficava acordado noite fora, mas para trabalhar; Musso­
lini, Staline, Roosevelt, enquanto a doença não piorou, quer dizer
os líderes dos anos trinta, tinham horários e estilos de trabalho de
grande regularidade. O Führer era imprevisível e dos nume­
rosíssimos testemunhos é suficiente citar alguns.

Hitler deixava-se simplesmente arrastar, incapaz durante


dias de qualquer decisão e depois, de repente, a sua inércia
cedia o lugar a uma explosiva actividade, tratava-se de uma
singular mistura, bem insólita num político, de preguiça e
genialidade. Quase imediatamente voltava as costas às
numerosas e sérias rotinas do seu ofício e, sem sequer
mascarar esta sua aversão, ia assistir a espectáculos de ópera
e cinematográficos. Foi este insólito comportamento de
aberta ociosidade que levou Oswald Spengler a definir
sarcasticamente o Terceiro Reich como «a organização dos
desocupados para obra dos ociosos». Já nos primeiros anos,
Gottfried Feder tivera de pôr ao lado de Hitler um oficial
com a tarefa de programar ferreamente os dias do Führer e
eis agora Goebbels a proclamar: «Aquilo que nos esforça­
mos continuamente por levar em frente, nele tomou-se
sistema de dimensões universais. A sua maneira de fazer é
a do artista puro, seja qual for o âmbito no qual actue» 1 5 •

14
Ibidem, pág. 302.
15
Joachim Fest, Hitler, cit. , pág. 544-545 . A citação de Spengler é retirada de : Anton
Koktanek, Oswald Spengler und seiner Zeit (Spengler e o seu tempo). A de Goebbels do
ensai o Chi ha l' iniziativa ?

240
Eu estava habituado a trabalhar intensamente [escreve por
sua vez Albert Speer] e também não conseguia, de início,
habituar-me ao desperdício de tempo de Hitler. Compreendo
que pudesse desejar concluir o seu dia na ociosidade e no
tédio, mas parecia-me que seis horas em média de lazer
fossem um pouco de mais e que, proporcionalmente, seriam
insuficientes as dedicadas realmente ao trabalho. Pergun­
tava, muitas vezes, a mim quando este homem trabalharia.
Segundo os meus cálculos, ao longo do dia, quase não lhe
ficava tempo para trabalhar. Levantava-se tarde de manhã,
tinha uma ou duas relações de serviço e, da hora do almoço
até ao fim da tarde, gastava praticamente o seu tempo. Aos
olhos do povo, Hitler era o Führer que trabalhava infatiga­
velmente dia e noite. Quem tem alguma familiaridade com
o modo de trabalhar de certos artistas, pensará que a
desorganizada distribuição que Hitler fazia do seu tempo
viesse do seu estilo boémio. Mas pelo que pude compreen­
der, Hitler, mesmo quando passava semanas e semanas em
ocupações de nenhuma importância, deixava amadurecer
em si um problema ao qual, assim que a «iluminação
repentina» lhe indicasse a solução justa (ou que assim lhe
parecia), dava forma definitiva em poucos dias de intenso
trabalho. Uma vez estabelecida a decisão nos seus termos
definitivos, voltava à ociosidade e ao tédio 1 6 •

É o estilo de trabalho que deriva de uma cultura, tal como a


descrevemos, em que uma espécie de suposta sapiência iniciática
substitui o trabalho metódico pelo momento mágico da ilumi­
nação. O compromisso da campanha a Leste modificou este pro­
cesso de decisão, que deu o seu último resultado positivo para
Hitler na determinação de resistir na frente de Moscovo, que adiou
talvez por um ano a catástrofe que se daria em Estalinegrado.
Ela parecia inconcebível ainda no Verão de 1942, quando
Rommel estava às portas de Alexandria e os exércitos em marcha
no Cáucaso pareciam reabrir a Hitler as perspectivas de Maio de
194 1: «Dentro de um ano ou dois poderemos libertar com forças
mínimas», anunciava «a Pérsia e o Iraque. Os indianos saudarão
com entusiasmo as nossas divisões» 1 7 • Mas aquilo que então era

16
Albert Speer, Le memorie dei Terzo Reich, cit., pág. 178.
17
Ibidem, pág. 3 15 .

24 1
um possível projecto, é agora um sonho. E a viragem é assinalada
por um episódio singular. Escreve Speer:

Mesmo um profano podia compreender que a ofensiva se


esgotara. Chegou a notícia de que um destacamento de
tropas alpinas alemãs tinha conquistado, levantara a ban­
deira de guerra germânica, no topo do Elbruz. Empresa
inútil e certamente de pouco relevo, para se ajuizar apenas
como fruto do entusiasmo de um punhado de alpinistas.
Aconteceu-me muitas vezes ver Hitler furibundo; nunca,
porém, como naquela ocasião. Barafustou durante horas,
como se todos os planos de batalha tivessem sido arruinados
por aquela empresa. Ainda muitos dias depois o ouviam
lançar maldições contra aqueles «alpinistas loucos» que
«mereciam o tribunal militar». Aqueles desgraçados, dizia,
deixam-se arrastar pelas suas loucas vaidades e vão à con­
quista de uma estúpida montanha, não obstante ter ordenado
que todos os esforços fossem concentrados em Sukumi. Eis
uma prova de como se cumpriam as suas ordens 1 8 •

Sukumi ficava na costa e os alemães não chegaram lá. O des­


tacamento que escalou o Elb.ruz separou-se de uma divisão que .
tentava chegar a Tiflis por caminhos de montanha considerados
por Hitler impraticáveis. Mas a ofensiva tinha já falhado e o
episódio certamente não bastava para justificar a sua ira. Ela surge
mais compreensível se estiver ligada a esta descrição: «Três alpi­
nistas SS empoleiraram-se no cimo do Elbruz, montanha sagrada
dos Arianos, cume mágico da seita dos ' 'amigos de Lúcifer' '. Eles
hastearam a bandeira com a suástica abençoada segundo o rito da
Ordem Negra. A benção da bandeira no cimo do Elbruz tinha de
marcar o início da nova era» 1 9 •
É uma versão que precisa de confirmação, tanto mais que os
autores colocam o facto «na Primavera» e não no_Qutono de 1942:
uma daquelas desnecessárias imprecisões que a 'f�vam~ a--ser
refutada. Mas o episódio deve ter tido um significado simbólico,
o que explica a atitude de Hitler que surpreende Speer. Talvez a
ordem viesse de Himmler, talvez a cerimónia não devesse acon­
tecer naquele momento e daquele modo: seja como for parece que

18
Ibidem, pág. 3 16.
19
Louis Pauwels e Jacques Bergier, II mattino dei maghi, cit. , pág. 336.

242
o Führer lhe atribuiu um significado funesto e decisivo; e efecti­
vamente foi o último acto significativo antes da retirada.
O episódio enquadra-se na persistência da cultura «ocultista»
que acompanha o vértice do Terceiro Reich no declínio. Outros
aspectos seriam aprofundados. Assim, exactamente um ano depois
o voo de Hess, um outro nazi da velha guarda (como o define
Goebbels), o líder de Oldenburg, Rõver, frequentador de astrólogos
e curandeiros, a 13 de Maio telefona para o quartel-general do
partido em Munique, anunciando uma viagem a Inglaterra, que é
prontamente bloqueada por Bormann. Rõver morreu a 15 de
Maio20 •
· ·· A persistente influência da cultura astrológica, mesmo depois
da prisão de alguns astrólogos (e a morte de Kraft no lager de
Buchenwald, a 20 de Janeiro de 1945), é demonstrada pelo facto
de existir, justamente no seio de cientistas empenhados num dos
sectores mais delicados da investigação, o da energia atómica.
Carl von Weizsãcker, físico de nobre e prestigiosa família (o pai
Emest era secretário de Estado no ministério de von Ribbentrop;
o irmão Richard viria a ser presidente da República Federal)
«estava fascinado pela astronomia que esteve na base da sua
investigação, que durou toda uma existência, de forças místicas
subjacentes à ordem física» 2 1 • Pascual Jordan, co-descobridor
com Heisenberg do princípio da indeterminação, «acabou por
acreditar nos fenómenos paranormais»22 , como se exprime o
físico que escreveu a história deste grupo, e na realidade estava
interessado pela astrologia e pela alquimia desde os anos trinta,
quando era director do Instituto de Física da Universidade de
Rostock23 •

20 O episódio está pouco estudado. Dele fala Irving, op. cit. , capítulo de título «Hess».
21
Arnold Kramish, li Grifone - La spia che rese impossible l' atomica di Hitler,
Rizzoli, Milão 1987, pág. 140. A conhecida física Lise Meitener escreve a um seu
correspondente que von Weizsacker «parece ter pensamentos inteiramente estranhos
sobre as constelações», quer dizer, sobre a astrologia (Ibidem, pág. 144).
22
Ibidem, pág. 1 41. Quer Jordan quer Heisenberg eram nazis. O segundo, em 1933,
escarrou para os pés de Max Bom e declarou em Outubro de 1943 : «A história legitima
a Alemanha a dominar a Europa e depois o mundo. Apenas uma nação que domine
impiedosamente pode conservar-se a si mesma» (ibidem, pág. 141).
23
Pascual Jordan escreveu naquele período a Jung: «Há muito tempo eu dava-me
conta de que a superficial avaliação da alquimia mantida até hoje estava necessitada de
uma total renovação, mas até agora tinha procurado em vão uma interpretação mais
profunda sobre o que aquele fenómeno, cultural e historicamente tão importante, represen­
ta»; citado em Gerhard Wehr, Jung, La vita, /e opere, il pensiero, Rizzoli, Milão 1987,
pág. 227.

243
Mais uma vez, este sector de cultura esotérica entrelaça-se
com os serviços secretos. Von Weizsãcker estava em contacto
com Paul Rosbaud que, como antinazi, informava os Ingleses
sobre os progressos tecnológicos da Alemanha e, em especial,
Frank Foley «o máximo especialista sobre o Abwehr [ o serviço de
informação militar de Canaris, de cuja posição se falou, N.d.R. ]
cujo trabalho foi interrompido pela missão de conduzir o longo
interrogatório de Hess» 24 •
Se a jusante desta cultura reencontramos Hess e os serviços
secretos, a montante remontamos à doutrina secreta, porque
Jordan está interessado nos «Colóquios de Eranos» (perto de
Ascona) promovidos por Olga Frõbe-Kapteyn «holandesa, par­
tidária da perspectiva teosófica anglo-indiana» 25 em Agosto de
1933, poucos meses depois da ascensão de Hitler, colóquios nos
quais está presente Theodor Reuss, responsável pela Ordo Templi
Orientis ligada a Crowley.
Estes canais subterrâneos entre a Inglaterra e a Alemanha
talvez se reatem em 1943, quando se esboça a derrota de Hitler,
principalmente na segunda metade do ano, altura em que se
registam duas iniciativas inglesas ligadas a esta temática, que
dificilmente se compreendem tendo em conta o actual nível de
informação.
Enquanto Heisenberg proclama - veja-se a nota 22 - o
direito da Alemanha ao domínio do mundo, os Ingleses inun­
dam-na de panfletos em que descrevem as condições propostas
por Hess para o condomínio e ali difundem um opúsculo, usando
por sua vez Nostradamus, que vaticinaria a morte de Hitler num
atentado.
Os alemães reproduzem as cinco condições (pulso livre na
Europa para a Alemanha; a manutenção do Império inglês;
reivindicações nos combates da Rússia (ainda que «nada haja de
verdade nas afirmações de que Hitler queria agredir a Rússia»); a
libertação do Iraque (questão de relevo em Maio de 1941); o facto
de «Churchill e os seus ministros não poderem ser tomados em
consideração como dialogantes» } 26 •

24
Arnold Kramish, op. cit., pág. 237.
25
Gerhard Wehr, Jung, op. cit., pág. 233. Sobre «colóquios» cfr. todo o capítulo
«Eranos " Un ombelico dei mondo" ».
26
O texto do panfleto está agora in: G. e E. Vitali, L' enigma Rudolf Hess - Vita e
morte dei «de/fino» di Hitler, Mursia, Milão 1987, págs. 1 14- 1 15.

244
O opúsculo, em caracteres góticos e apresentado como se
fosse impresso na Alemanha, comprende a quadra na qual se pre­
nuncia que «Hister» seria morto por seis homens que o colheriam
de surpresa27 • A iniciativa propagandística é tomada pelo grupo de
trabalho de Wohl, que considera haver influências astrológicas no
vértice nazi.
Talvez neste período (Outono de 1943, quando os Ingleses
voltaram ao continente europeu, na Itália; e quando Himmler,
depois de ter tentado induzir Mussolini na ciência oculta, parece
dar instruções «para se levar de Nápoles a pedra tumular do último
imperador Hohenstaufen»28 com símbolos ocultos) são transmi­
tidas mensagens que se referem a Maio-Junho de 1941. Efectiva­
mente, na declaração citada, Heisenberg, influenciado por von
Weizsacker e Jordan, volta a propor o dilema: «Existem só duas
possibilidades: a Alemanha e a Rússia e talvez a Europa sob a
direcção da Alemanha é o menor dos males» 29 •
Com os Anglo-americanos no continente, os Soviéticos em
ofensiva ininterrupta depois de terem vencido em Kursk a última
grande batalha de blindados na qual alguns historiadores militares
vêem uma viragem mais importante que Estalinegrado, a Ale­
manha está agora na defensiva. O sonho do espaço euro-asiático
desvaneceu-se. E os sectores do vértice nazi esotérico, sabendo
desde 1938, e mais ainda em 1941, de que o Terceiro Reich não
podia bater-se simultaneamente contra os Ingleses e os Russos,
talvez pensem em voltar a propor um pacto com Londres na base
de uma Alemanha que se limite a defender a Europa da pressão
soviética. Note-se que este último tema será retomado, numa
interpretação justificativa, por alguns historiadores alemães ainda
em 1987.
Com esta hipótese se podem ler algumas páginas do diário de
Jünger (oficial em Paris) que, usando nomes em código (Kniebolo
é Hitler, Bogo é Hielscher), escreve a 14 de Outubro de 1943:

Visita de Bogo. É uma das pessoas que conheço sobre a qual


mais reflecti sem chegar a formar uma opinião. Acreditei no
passado que entraria na história da nossa época como uma

27
A fotografia da capa e o texto da quadra estão in: John Houge, Nostradamus e il
milennio, Mondadori, Milão 1987, pág. 85 .
28
Louis Pauwels e Jacques Bergier, op. cit. , pág. 372-373.
29
Arnold Kramish, op. cit. , pág. 14 1.

245
daquelas personagens pouco conhecidas mas de uma extraor­
dinária subtileza intelectual. Penso actualmente que terá
uma importância maior. Muitos, se não a maior parte, dos
jovens intelectuais da geração que se tomou adulta depois
da Grande Guerra sofreram a sua influência e passaram
mesmo pela sua escola. Confirmou-me uma suspeita que
alimentava havia algum tempo, quer dizer que fundou uma
igreja. Agora ele coloca-se para além da dogmática e avan­
çou já na liturgia. Poder-se-ia dizer por junto que o século
XIX foi um século racional e o XX é o século dos cultos.
O próprio Kniebolo disso vive, de onde a total incapacidade
dos cérebros liberais para verem a posição que ele ocupa30 •
Tínhamos já encontrado Hielscher nos anos vinte como um
dos mestres do ario-ocultismo. O seu aluno Wolfram Sievers,
coronel das SS, responsável pela Ahnenerbe que envia expedi­
ções ao Tibete para se encontrarem as fontes da sabedoria aria,
será condenado à morte em Nuremberga. Hielscher (que não foi
nazi; também Jünger diria, depois de 1945, que teria sido apenas
um nacionalista alemão) pôde dar assistência ao aluno até ao
momento do enforcamento.
Jünger, intelectual da cultura esotérica e homem de prestígio
no poder nazi, seja o que possa ter dito em seguida, tinha ima­
ginado um atentado a Hitler ( o Forestaro, Kniebolo) desde 1938,
quando o Führer estava no auge do sucesso. Ora, depois do
Outono de 1943, quando a derrota se perspectivava inevitável,
uma parte dos intelectuais da cultura oculta podem pensar que um
acordo com a Inglaterra seja ainda possível para enfrentar a
URSS, se se proceder à eliminação de Hitler, destinado a levar até
ao fim as opções de 1939 e de 1941. Daqui a ligação directa entre
Albrecht Haushofer (e indirecta do pai, Karl) com a conjura de
20 de Julho, na qual estava também envolvido Jünger (não Carl
Schmitt, que o exclui explicitamente mesmo depois ele 1945) 3 1 •

3 ° Citada em Pauwels e Bergier, op. cit. , págs. 373-374.


31
Escreve George Schwab: «No decorrer dos meus diálogos perguntei-lhe se tinha
apoiado o atentado a Hitler de 20 de Julho. Ele respondeu negativamente, porque temia
uma derrota total da Alemanha, não se podendo encaminhar para negociações com os
Aliados que exigiam a rendição incondicional» (La sfida deli' eccezione, cit. , pág. 2 1 1 ).
Compara-se esta posição de um nacionalista conservador .tradicional com a de altos
oficiais que deviam ver em Hitler um fenómeno demoníaco ao ponto de justificar mesmo
a traição militar e ao juramento para tentar matá-lo e até passar informações ao inimigo da
pátria em guerra .

246
Depois do fracasso é o próprio Hitler a pensar numa extrema
tentativa para conseguir uma trégua com os Ingleses. Nesta
interpretação se pode explicar aquilo que é definido como o seu
«golpe de cauda», a ofensiva nas Ardenas em Dezembro de 1944
que retirou forças à frente oriental já em desagregação. Escreve
Speer:

Pelo final de Novembro, Hitler voltou a repetir-me que se


devia apostar tudo nesta ofensiva. Estava tão certo do êxito
que dizia com o tom mais desdenhoso que isto era a sua
última tentativa: «Se não resultar, não nos resta outra
possibilidade de vencer a guerra. Mas fá-lo-emos. Uma
única brecha na frente ocidental. Será bastante para provo­
car o pânico e o desmoronamento dos Americanos. Destrui­
remos a linha inimiga ao centro e apoderar-nos-emos de
Antuérpia. Privá-los-emos do porto por intermédio do qual
chegam os seus abastecimentos. As tropas inglesas ficarão
fechadas numa bolsa colossal: faremos centenas de milhar
de prisioneiros»32 •

Como no Verão de 1942 Hitler sonhava com o cenário de


Maio de 194 1 (o Iraque, a Pérsia), assim em Dezembro de 1944
sonha com o cenário de Maio de 1940 (os Ingleses cercados como
em Dunquerque: talvez um penhor para negociar com Londres).
São ilusões. De qualquer modo Speer prepara as premissas
logíticas da ofensiva da melhor forma e comenta:

O chefe de Estado-Maior Guderian não se cansava de


recordar a Hitler, naquele mês de Novembro, a ameaça
imediata iminente sobre a Alta Silésia. Ele queria que, para
evitar a catástrofe na zona oriental, para ali fossem transfe­
ridas as unidades que estavam a concentrar-se na ocidental.
Mas também vários acusados de Nuremberga defenderam,
para justificar a continuação da guerra para além do Inverno
de 1944- 1945, que Hitler quisera que se continuasse a
- combater com a única finalidade de salvar os fugitivos de
Leste e que caíssem nas mãos dos Russos o menor número
possível de soldados alemães. Quase não vale a pena dizer

32 Albert Speer, op. cit. , pág. 5 36.

247
que as decisões do Führer naquela época demonstram
exactamente o contrário33 •

Pelo contrário vale a pena dizê-lo, porque mais uma vez


historiadores alemães retomam agora a tese dos acusados de
Nuremberga. Mas, na realidade, Hitler pensava ainda, como nos
anos trinta e em 1941, que se pudesse chegar a um acordo com a
Inglaterra, uma vez recuperada com um êxito a possibilidade de
negociar.
Era a última ilusão e que é recordada para sublinhar como a
cultura esotérica que tinha acompanhado Hitler e o nazismo na sua
ascensão continuou a influenciá-lo até ao fim, até àquelas jor­
nadas na Chancelaria em Berlim nas chamas que evocam o
Ragnarok das sagas nórdicas, o Kali-Yuga da tradição indiana,
filtrada no ocidente por Evola e Guénon. Dele encontramos os tes­
temunhos extremos no diário do conde Lutz Schwerin von
Krosigk, ministro das Finanças, utilizado por Trevor-Roper para
descrever «os últimos dias de Hitler», que é como se chama o seu
livro.
A 9 de Abril os Russos estavam em Kõnigsberg, a 11 os
Americanos alcançavam o Elba. Mas «naqueles dias Goebbels leu
ao Führer algumas páginas da história de Frederico o Grande, de
Carlyle, escolhendo o capítulo em que se descrevem as dificulda­
des em que se encontrou no Inverno de 1761-62. O futuro surge
na
sempre mais negro aos olhos do rei, quê sua última carta ao
ministro conde Finckenstein a si mesmo dá um limite preciso: se
até 15 de Fevereiro não se der uma reviravolta da situação, dar-se­
-á por vencido e beberá o veneno; Carlyle escreve: " Valoroso
soberano, espera mais um pouco, porque em breve os dias da tua
dor terão terminado' '. A 12 de Fevereiro morria a czarina, a casa
de Brandeburgo via realizar-se o milagre. O Führer, dizia Goeb­
bels, tinha lágrimas nos olhos».
São estas as afirmações do diário datadas de 15 de Abril e que
se referiam aos acontecimentos da semana precedente. Von
Krosigk prossegue assim: «No decorrer daquela conversa manda­
ram buscar os dois horóscopos depositados junto de um dos
sectores dependentes de Himmler: o do Führer preparado a 30 de
Janeiro de 1933 e o da República, datado de 9 de Novembro de

33 Ibidem, págs. 5 36-537.

248
19 18. No dia seguinte Goebbels mandou-me os horóscopos. Não
entendi nada; mas na interpretação encontrei tudo e espero agora
com ansiedade a segunda metade de Abril [porque] pelo fim da
tarde de 12 de Abril [soube] da morte de Roosevelt. Ouvimos as
asas do Anjo da História passarem roçando pela sala. Seria esta a
tão desejada viragem do destino?»
Naquela tarde Goebbels voltava a Berlim vindo de Kustrin e
segundo a sua secretária, senhora Herbzettel, teve a notícia da
morte de Roosevelt «durante um pesado ataque aéreo e enquanto
subia a correr, à luz dos incêndios, os degraus do ministério da
Propaganda. Estava nos seus sete céus. Põs-se imediatamente em
contacto telefónico com o bunker. ' ' Meu Führer' ' gritou ao
microfone ' 'congratulo-me com o senhor! Está escrito nas estre­
las que a segunda metade de Abril deve ser portadora para nós de
uma grande mudança. Hoje é sexta-feira, 13 de Abril. A alteração
aconteceu' ' » 34 •
Speer, chamado urgentemente ao bunker onde entretanto
chegou também Goebbels, descreve assim a cena: «Hitler lançou­
-se para mim com um impulso de vitalidade de todo insólito nele
e, como que possesso, agitando um papel, gritou: ' ' Aqui está, leia
aqui, o senhor que não queria acreditar em nós ! " As palavras
encavalitavam-se umas nas outras. ' ' Eis o grande milagre que
sempre vaticinei. A guerra não está perdida, Roosevelt morreu' '.
Em que acreditava? Que estivesse definitivamente provada a
infalibilidade da providência que o protegia? Goebbels e muitos
entre os presentes não se cansavam de acentuar quanta profética
verdade existia nas frases de Hitler: a história repete-se, aquela
história que de Frederico o Grande inexoravelmente batido o fez
vencedor! O milagre da casa de Brandeburgo. A czarina morreu !
dizia incansavelmente Goebbels» 3 5 •
Estes concordantes testemunhos levam a excluir que nos
encontremos perante deformações ou erros históricos como aquele,
em que, segundo Trevor-Roper, Krosigk não tinha citado correc­
tamente nem Carlyle nem os factos, porque a czarina Isabel
morreu a 5 de Janeiro e o ministro ao qual Frederico escrevera era
o conde de Argenson. O próprio Krosigk, Speer, a senhora
Herbzettel, nada sabiam de cultura esotérica e Goebbels só talvez

34 Todas as citações de Trevor-Roper, Gli ultimi giorni di Hitler, Mondadori, Milão


1 966, págs. 1 16- 1 18.
3 5 Albert Speer, op. cit. , pág. 595.

249
lhe tivesse avaliado a importância depois de 20 de Julho36 • Tr.
tam-se de testemunhos que estão relacionados com a long
vicissitude da influência da cultura oculta sobre parte da elite na2
e que tomam credível o que teria acontecido naquele fim de tarde
daquele 1 3 de Abril, quando um astrólogo seria convocado ao
bunker da Chancelaria.
Trata-se de Bemd Unglaub, que vivia em Munique nos anos
vinte antes de ir viver para Berlim. Na capital bávara publicava o
«almanaque de bolso Sirius», que foi de vez em quando retirado
do mercado porque indicava aos leitores endereços onde podiam
adquirir o alucinógeno mexicano Payotl ( daqui o dizer-se que
Hitler o usava; na realidade o seu final declínio psico-físico era
devido à mortífera combinação de estimulantes e tranquilizantes
da medicina oficial, que lhe receitava o seu último médico, o
doutor Morell).
Unglaub defendia que era possível desenvolver uma segunda
visão fitando o retrato do Mestre Moyra, um dos supostos sábios
de Madame B lavatski; mas recomendava cautela, indicando dois
casos de suicídio de quem fixara o retrato com excessiva intensi­
dade. Estabelecido em Berlim, Unglaub morav� em Bülow­
strasse, que não ficava longe da Chancelaria do Reich. Daqui
vinha quando o encontrou, naquele 1 3 de Abril, o doutor Alexan­
der Centigraf, especialista de Nóstradamus e que trabalhava com
Goebbels, que disto falou numa carta a Howe a 26 de Junho
de 1 962.

36
Goebbels teve um papel decisivo ao bloquear em Berlim os desenvolvimentos da
«operação Valquíria». Speer estivera a seu lado desde a operação ter entrado em curso até
ser liquidada e conta assim a conclusão segundo as palavras do ministro da Propaganda:
«Aqueles generais tinham confiado demasiado no tradicional princípio da obediência.
Tinham esquecido que nos últimos anos o regime nacional-socialista ensinara os Alemães
a pensar politicamente: ' Hoje não é possível pô-los a marchar como fantoches, dóceis, à
vontade de uma cambada de generais ' . Aqui Goebbels interrompeu-se e, quase enfastiado
pela minha presença, concluiu: 'Tenho ainda uns assuntos a discutir com o Reichsführer.
Boa noite ' » (Albert Speer, op. cit., pág. 504 ). Goebbels e o Reichsführer Himmler ficaram
sós. Poucos dias depois o ministro da Propaganda é nomeado por Hitler «comissário
nacional para o esforço bélico total». Pode ser que nesta circunstância Hitler lhe tenha dito
qual era realmente a sua intenção quando, pela uma da noite de 2 1 de Julho, se dirigira ao
povo alemão anunciando o fracasso do atentado e concluindo: «Saí de todo incólume,
salvo algumas arranhadelas, hematomas e queimaduras. Vejo nisto uma confirmação da
providência para prosseguir o objectivo de toda a minha vida exactamente como fiz até
agora». A providência - a mesma de que fala Speer na noite de 1 3 de Abril - é para Hitler
o poder de quem dispõe de uma sabedoria secreta. Mas em 1 945 o fim das ilusões está
também nas datas: o 1 5 de Abril inicia não a alteração esperada, mas a ofensiva final dos
Soviéticos contra Berlim.

250
; C entigraf defende que U nglaub tinha publicado em 1929 um
•vrinho com o título Que acontece, que acontecerá, em que
lofetizara a conquista do poder por Hitler em 1933 e uma guerra
c om muitos sofrimentos para a Alemanha em 193 9. A carta de
Centigraf prossegue assim:
Eu próprio vi aquele livrinho. Em 1941 todos os exemplares
foram destruídos pela Gestapo. Unglaub já em 1922 ouvira
os discursos de Hitler, mas não o tinha seguido «porque sei
como acabará» disse-me em 1940. «Quando será o seu
fim?» perguntei-lhe. «Em Maio de 1945», respondeu-me
Unglaub. Foi depois preso pela Gestapo com a acusação de
derrotismo. Em seguida, a pedido da mulher fui à Gestapo.
Unglaub foi posto em liberdade e a Gestapo não lhe deu
mais aborrecimentos37 •

Esta intervenção foi possível porque o próprio Centigraf era


justamente um qualificado colaborador de Goebbels. Conta que
«em Junho de 1944, quando os destacamentos britânicos e
americanos atravessavam o Sena, foi chamado a Berlim por
Eugen Hadamowsky, chefe dos serviços rádio do Reich, o qual
lhe disse que Goebbels estava a examinar a possibilidade de
chegar a um acordo com os aliados, especialmente com a Grã-Bre­
tanha. Hadamowsky ter-lhe-ia perguntado se uma eventualidade
desse género fora prevista por Nostradamus. Centigraf citou-lhe
imediatamente a Quadra IX, 51, que se referia muito bem ao caso.
Escreveu imediatamente um pequeno opúsculo em inglês intitulado
Nostradamus and England. Foi publicado por um editor da
Alemanha meridional» 38 •
O momento do colóquio é quase certamente pós-datado: não
em Junho, quando a frente alemã dominava ainda a Normandia,
mas em Julho quando os aliados abriram caminho para Paris
(conquistada na segunda metade de Agosto). É agora possível

37
Ellic Howe, op. cit. , págs. 232-233. O A. precisa que não conseguiu encontrar o
livro de Unglaub (pág. 247).
38
Ibidem, págs. 230-23 1. O A. precisa que não conseguiu encontrar um exemplar do
opúsculo, escrito com o pseudónimo de Nestor. Nota discrepância na narrativa de
Centigraf, porque Hadamowsky deixou o cargo no ministério em Abril de 1942, foi
transferido para o serviço de propaganda e depois para a frente russa onde morreu talvez
em 1944 (pág. 246). Mas se se pensar em quanto aconteceu depois de 20 de Julho uma sua
utilização para uma missão especial pode ser compreensível.

25 1
ligar o colóquio sobre Nostradamus à possibilidade de Goebbels
estar melhor informado, depois de 20 de Julho, sobre as antigas
raízes quanto à propensão para o acordo com a Inglaterra. É de ter
presente que contra Londres começara (a 14 de Junho de 1944) o
ataque das V 1, segundo a tendência já conhecida de acompanhar
as esperanças de um acordo com instrumentos de pressão. Mas o
vértice esotérico nazi vivia agora no mundo das ilusões.
De qualquer modo, são estes os antecedentes de Centigraf e de
Unglaub, que se teriam encontrado naquela sexta-feira, 13 de
Abril, entre a Chancelaria e a casa do astrólogo (perto da casa da
mãe do especialista de Nostradamus). Unglaub morreu de cancro
a 21 de Julho de 1945 e Howe duvida da veracidade da sua
convocação à Chancelaria. Mas conclui que «aconteceram tantas
coisas estranhas nos tempos do Terceiro Reich, que também este
inacreditável encontro entre o Führer e Bemd Unglaub poderia ter
tido lugar»39 •
É possível acrescentar que a referência a Madame Blavatski
nos leva às origens da «doutrina secreta» que é um dos filões
culturais que acompanharam uma parte da elite nazi do princípio
ao fim. Cada um dos episódios ganha significado se colocado num
quadro geral e é a esta luz que é verificada a sua credibilidade.
Mesmo se prescindirmos da problemática convocação de Inglaub,
a atenção nos horóscopos nos dias de Abril conclui o aconteci­
mento iniciado decénios antes, na noite de Rienzi.
Hitler tivera de qualquer modo o seu crespúsculo de Ragna­
rõk, de Kali-yuga; e lendas e mistérios acompanham a sua morte
como a sua vida. Como para Bormann, o sucessor de Hess, de
quem não se tem a certeza material da morte em Berlim nas
chamas40 , também para Hitler se não dispõe de dados irrefutáveis,
ainda que o seu suicídio com Eva Braun seja uma realidade
aceitável, na base de muitos testemunhos, de que Trevor-Roper
foi dos primeiros a referir.
Os Soviéticos afirmaram primeiro que no bunker da Chance­
laria não se tinham encontrado provas certas de que os dois corpos
encontrados quase completamente queimados fossem os do Führer

39
Ibidem, págs. 233-234.
40
Segundo Enrich Kemptka, o motorista de Hitler também testemunha da cremação
do seu corpo, Bormann saiu com ele do bunker e foi morto por uma granada. Mas a sua
� fi rmação é posta em dúvida em Nuremberga, pelo que Bormann foi condenado à morte
in ahse ntia.

252
e da mulher casada in extremis. Os Ocidentais, pelo contrário, não
tinham dúvidas. Depois, em 1968, foram os Soviéticos a afirmar
que o corpo encontrado era sem dúvida alguma o de Hitler. Mas
uma dúvida nasceu então justamente no Ocidente, nos Estados
Unidos4 1 •
O que cultivou a doutrina secreta teve o fim que, não sendo o
de vencedor, teria preferido: o comunicado oficial indicava que
ele tombara na defesa do último baluarte da civilização mas,
simultaneamente, nascia a lenda que põe em dúvida a sua morte.

41
Joachim Fest recorda que, «na conferência de Potsdam, Staline afirmou que o
cadáver não fora enconrtado e que Hitler podia ter-se escondido em Espanha ou na
América do Sul. Os Soviéticos conseguiram cobrir o caso com um espesso véu de mistério
ao darem lugar às mais ousadas hipóteses quanto ao fim de Hitler: teria sido fuzilado por
um grupo de oficiais alemães; teria fugido a bordo de um submarino, encontrado refúgio
numa ilha perdida; ter-se-ia refugiado num convento espanhol ou num rancho da América
Latina» (Hitler, cit. , pág. 9 18-9 19): Mas em 1968 o historiador soviético Lev Besymenski
publicou em Moscovo o livro A Morte de Hitler, em que afirma não haver dúvidas de que
o cadáver semicremado fosse o de Hitler e junta para justificação de quanto afirmou
anteriormente que «os resultados do exame médico-legal teriam sido escondidos na
previsão de que "alguém se apresentasse no papel do Führer miraculosamente salvo" e
para excluir qualquer possibilidade de erro» (Ibidem, pág. 927, onde se colocam dúvidas
sobre a credibilidade desta tese). Em 1984, no congresso trienal da Intemational Associa­
tion of Forensic Sciences que se realizou em Oxford, o doutor Lester Luntz, docente de
diagnóstico das doenças da boca, na Dental School da Universidade de Connecticut, num
relatório contestou a validade das radiografias dentárias que estavam na base da identifi­
cação soviética e anunciou um livro sobre isto.

253
11
~
PARA NAO CONCLUIR

Creio ter recolhido suficientes dados para esclarecer alguns


aspectos da historiografia sobre Hitler-e-o nazismo: 1) o Führer e
uma parte do grupo dirigente formaram-se antes da guerra numa
cultura e em associações esotéricas; nelas Hitler foi escolhido
como líder e isto explica a aparente incongruência de um homem
fora da política e desconhecido até aos trinta anos, que em poucos
meses assume um papel de primeiro plano na agitada cena política
da direita bávara de 1919; 2) este grupo junto do vértice do
Terceiro Reich discute no seu âmbito como realizar uma estraté­
gia derivada daquela cultura (a reconquista da sabedoria ariana);
3) em 1938 a discussão culmina e conclui-se com a decisão de
arriscar a guerra, na convicção de uma não intervenção da
Inglaterra por razões em boa parte inferidas daquela mesma
cultura e da presença dela em ambientes no vértice da sociedade
inglesa; 4) tendo resultado errada esta previsão, o grupo discute
e decide em 1941 a guerra a Leste e Hess procura na Inglaterra
interlocutores para um acordo; não os encontra, mas negoceia;
Hitler espera que tenha colocado as bases de um acordo depois do
facto consumado da invasão da URSS; 5) desfeita esta convicção
e fracassada a guerra-relâmpago a Leste, o grupo divide-se e não
exclui a tentativa de substituir o Führer por uma paz de compro­
misso, que salve uma parte da base teffitórial," na Alemanha, da
doutrina secreta; 6) por todo este período - de 1938 a 1945 -
a cultura esotérica impregna sectores importantes do vértice
político e também científico do Terceiro Reich.

255
Todos estes pontos são aprofundados e enriquecidos investi­
gando na direcção indicada e cavando mais fundo em algumas
biografias, como por exemplo as - menos conhecidas - de
Bormann e de Darré. Para que este trabalho seja possível, é
necessário que o nazismo possa ser estudado como qualquer outro
fenómeno histórico, sem aceitar o argumento de que o horror não
pode ser estudado. Em especial não se pode aceitar a premissa de
que o genocídio dos Hebreus não pode permitir estudar o nazismo
nos seus aspectos culturais. Seja como for eles são estudados e
pessoalmente considero que tal estudo seja de particular utilidade
para compreender o reflorescer na nossa história e na nossa
sociedade de antigas culturas submersas, das quais a doutrina
secreta dos construtores do Terceiro Reich é um aspecto negativo,
mas para não descurar.
Não entro no valor das dimensões que assumiu o genocídio e
considero que as decisões derivadas do anti-semitismo progra­
mático do nazismo tinham uma característica particular justa­
mente porque originadas não de preconceitos étnicos ou políticos,
mas de uma ideologia. Mas o facto de a deportação sistemática dos
hebreus (morreram alguns milhões nas câmaras de gás segundo a
historiografia oficial; ou trezentos mil por destruição segundo
aqueles que lhes negam a existência) ser a premissa de um
genocídio específico, não exclui que dele se possa falar em
referência a outros no nosso século. Citarei a propósito dois
testemunhos de uma personalidade católica (dom Giuseppe Dossetti)
e de uma laica (Ernesto Galli della Loggia).
O primeiro, no citado contexto no qual define os massacres
como «operações mágicas» 1 , distingue crimes de regime, de
classe, de religião, de guerra e cita estes exemplos: «Dos dois
milhões e cem mil arménios que restavam, depois dos massacres
precedentes, no hnpério Otomano, pouco menos de um milhão foi
morto entre 1915 e 1918 . . . O deflagrar das duas bombas atómicas
em Hiroshima e Nagasaki em Agosto de 1945, hoje - pelo
menos para os tempos e modos em que foram lançadas -surge
carecido de justificação, mesmo a de ter acelerado o fim de uma
guerra . . . o aniquilamento em parte também físico de kulaques,
pequenos e médios proprietários de terra, dizimados totalmente
em 1930 . . . actos realizados num passado - também muito re-

1
Giuseppe Dossetti, Introdução cit. , a Le querce di Monte Sole de Luciano Gherardi,
pág. XVIII.

256
cente - das nações negreiras para obterem mão-de-9bra servil
resistente aos climas quentes ou os realizados ainda hoje em nome
de uma pressuposta superioridade da raça branca sobre a negra na
África do Sul» 2 •
Galli della Loggia, num congresso organizado pela união das
comunidades israelitas italianas sobre «Memória e mitologia do
Holocausto», também para defender que foi «único», definiu esta
«unicidade» não como uma questão de ferocidade, nem de
número de vítimas: «Outros povos foram completamente aniqui­
lados», mas só depois do massacre dos Hebreus o homem
começou a experimentar horror pelos genocídios, mesmo porque
o século XX é «o Século dos Genocídios, pelo menos cem milhões
de pessoas massacradas: dos hebreus aos zíngaros, dos arménios
aos aborígenes australianos, aos intelectuais exterminados por
Pol Pot» 3 •
Também se aceita a unicidade nestes termos; seja como for
não deve constituir um travão à análise mais cuidada da cultura
esotérica do nazismo, tanto mais que, sob alguns aspectos, tem
traços comuns justamente com a hebraica. O próprio termo de
«doutrina secreta» que encontramos na origem da investigação de
um saber iniciático é usado pela Cabala hebraica. Mosse, estu­
dando o movimento nacional-patriótico com as suas proeminen­
tes componentes «ocultas» transmitidas ao nazismo, a si coloca,
embora para responder negativamente, a pergunta se não há uma
relação entre as que define como «utopias germânicas», com as
aspirações à «terra livre», e o movimento sionista que teria levado
aos Kibbutzim:

Pode dizer-se que as utopias germânicas e a ideologia a elas


submetida tenham tido alguma influência no desenvolvi­
mento do movimento dos Kibbutz? Pode afirmar-se que, na
concepção geral dos sionistas alemães, estão contidos ele­
mentos afins da idealização da terra, da natureza e do Volk
própria das teorias nacionais-patrióticas? O impulso histórico
à instituição do Kibbutzim não vem porém da Alemanha,
mas sim da Europa oriental e das fontes socialistas, e dele
o único ligado com a Alemanha pode ser talvez individua-

2
Ibidem, págs. XIX-XVI.
3
O relatório de Galli della Loggia é amplamente falado na imprensa de 26 de Abril
de l 988. As citações são do «Corriere della Sera» na mesma data.

257
lizado no Habonim alemão-hebraico, um reagrupamento
que se foi delineando no seio do Movimento Juvenil. Os
seus aderentes afirmavam que «para nós foi perdido o carác­
ter imediato da experiência», entendendo-se por isto que
aos jovens hebreus faltara a intimidade com a natureza e a
terra, com o ritmo das estações e com o sentimento de vitali­
dade que vem do trabalho manual. «O nosso movimento é,
no seu conjunto, romântico» proclamavam também os mem­
bros do Habonim. Mas estes sentimentos não encontravam
plena realização nos destinos agrícolas que efectivamente
foram instituídos na Palestina. E se bem que, à primeira
vista, para o historiador, a possibilidade de instituir uma
correlação possa ser tentadora, até agora pelo menos não
possível provar a existência de algum significativo nexo
entre as utopias germânicas e o movimento dos Kibbutzim4 •
É «tentador>> de qualquer modo, estabelecer a hipótese não de
um nexo, mas de uma relação especulativa para a qual o próprio
Mosse sugeriu elementos. Ele recorda que trabalhavam no mesmo
jornal (em Viena na viragem do século, da qual foi descrito o
clima cultural) o escritor Theodor Hertzka que tentou fundar uma
colónia «utópica» no Tanganica e Theodor Herzl, promotor do
movimento sionista5 • Na outra análoga colónia fundada na Ale­
manha em 1893 e denominada Eden, tinha um papel de relevo o
hebreu Franz Oppenheimer, «que desempenhou também um
papel notável na instituição dos Kibbutzim em Israel» 6 •
Esta relação especulativa, a concepção de ligação mágica
entre o homem e a terra caracterizada pelo mistério, que no
nazismo desembocaria na teoria de «sangue e solo» de Darré7 , é
perceptível através de um dos intelectuais hebreus mais estimados
pela sua abertura esclarecedora, Martin Buber.
Ele participa nos colóquios de Eranos8 , estava em contacto
com Hielscher9 , foi crítico nos confrontos da constituição do

4
Mosse, Le origini culturali dei Terzo Reich, cit. , págs. 181-182. «Utopias germâ-
nicas» é o título do VI capítulo.
5
Cfr. ibidem, pág. 162.
6
Ibidem, pág. 162.
7
O ensaio de Walther Darré La nuova nobilità dei sangue e suo/o voltou a ser
publicado em 1971 pelas edições Ar di Padova. A sua mais ampla biografia está em: Anna
Bramwell, Blood and Soil, Londres 1985.
8
Cfr. Gerhard Wehr, Jung, cit., pág. 233.
9
Cfr. Louis Pauwels e Jacques Bergier, li mattino dei maghi, cit. , pág. 372.

258
Estado de Israel para o qual teria preferido um arranjo bina­
cional 1 0. É neste âmbito que se pode avaliar quanto escreve:

A ideia sionista do povo hebreu na nossa época é de se


considerar como uma ideia nacional. Porém é justamente a
sua essência que a diferencia de todas as outras. É indicativo
que esta ideia nacional tenha ganho nome, não como as
outras, de um povo, mas de um local. O que revela clara­
mente que não se trata tanto de um povo quanto da sua
ligação com uma terra, ou seja com a sua Terra-pátria.
O nome recebeu bem depressa o crisma de lugar santo. Sião
é «a cidade do grande rei», o que equivale a dizer de Deus
como rei de Israel. Tal carácter sacro continuou com este
nome, a santidade da Terra veio a condensar-se nele e na
Cabala. Diferindo das ideias nacionais de outros povos, a
que era indicada com este nome era o novo aspecto de uma
antíquissima realidade, o sagrado casamento baseado no
nome de Sião, um povo «santo» com uma Terra «santa».
Uma virtude é conferida a este povo e a esta Terra, pelo facto
de Deus os «eleger» a ambos como guia deste povo, o seu
povo, nesta Terra, a sua Terra e para os unir um à outra.
A escolha divina consagra o povo como as tropas que ele
comanda directamente e a Terra como a sua sede real e
confia-as uma à outra. Esta é uma categoria teopolítica da
santidade mais que uma categoria de culto. Que seja Deus
aquele que associa este povo a esta Terra, não é uma
perspectiva histórica posterior: as multidões errantes foram
constantemente inflamadas pela promessa feita aos pais, e
os mais entusiastas entre eles viram o próprio Deus proceder
perante o povo na sua Terra 1 1 •

Avaliando justa e plenamente o iluminista Martin Buber, não


creio que se possa evitar ficar estúpido perante esta linguagem na

1
° Cfr. a Nota introdutória de Andrea Poma a Martin Buber, Sion Storia di un' idea,
Génova 1987. Ali se recorda que «foi um protagonista do movimento sionista desde a
primeira hora, desde 1898. A sua adesão foi crítica nos confrontos da dominante ideologia
político-nacionalista. Só se decide a fixar-se na Palestina quando não só as condições
gerais dos Hebreus na Alemanha, como especificamente a sua situação pessoal de docente
e escritor, a tal o obrigaram em 1938. Ele "aceitou" o Estado de Israel, mas é sabido que
o projecto político de Buber foi o de um estado binacional hebraico e árabe)) (pág. VIII).
11
Ibidem, pág. 5-7.

259
qual o esoterismo é evidente (o chamamento à Cabala, ao papel do
nome, a uma «antiquíssima realidade», a guias teopolíticos que
vêem Deus caminhar na frente do povo).
A ligação entre um povo e a Terra (maiúscula) surge como
«santo», uma ligação mistério que evita os critérios da racionali­
dade. E, a não ser que se esteja equivocado, não é possí'; el deixar
de verificar a analogia desta experiência mental como a «võlkisch»
justamente analisada por um outro grande iluminista de origem
hebraica como Mosse. Tal como não é possível deixar de verificar
o facto de o Leviatão bíblico ser um «monstro» feminino porque
deriva (como outras figuras da mitologia hebraica) da babilónica
Tismat, a protodeusa feminina apresentada como monstruosa e
vencida pelo herói masculino Marduk. Schmitt, no texto citado,
aponta este aspecto «sem entrar na substância» 1 2 , sem se interes­
sar pela conexão entre o esoterismo de Hobbes ( que também o
fascina e o preocupa enquanto pensa na Alemanha de 193 8) e a
época que o liga aos mitos, eco de antigos conflitos que datam da
época definida por Bachofen como matriarcado.
O ponto de chegada é a afirmação de que o nazismo também
pode ser estudado como fenómeno cultural - para além do
genocídio e colhendo o carácter dramático dos pontos de ligação
com a cultura hebraica - da qual a componente esotérica é de
particular interesse, ainda que até agora pouco estudada.
Será possível aprofundá-la na base de uma posição de «sabe­
doria yddish» da qual é particularmente orgulhoso o filósofo
hebreu Robert Nozick, que Giorello apresenta como o «anti-Hei­
degger nascido em Brooklyn» ao analisar o seu livro Explicações
filosóficas: «A cura do provincianismo filosófico está em conhe­
cer as alternativas. As grandes teorias filosóficas, aquelas com

12
Voltando a este respeito ao já citado Occidente misterioso. A frase de Schmitt é:
«No Leviatão se quis reconhecer Tismat, uma divindade do poema babilónico do dilúvio.
Não interessa aqui entrar no mérito das diferentes opiniões» (op. cit., pág. 66). O mito
babilónico é em síntese este: «Apsu e sua mulher Tamat criaram os primeiros deuses. Entre
estes Ansciar procriou Anu e este Enki, que mata Apsu no sono. Tiamat, desesperada e
furiosa pelo assassínio do marido, jura vingança e cria os mais terríveis monstros para com
eles fazer um exército contra os deuses. Ninguém tem coragem para enfrentar Tiamat.
Então Ansciar designa o valoroso Marduk. Tiamat grita contra ele as mais atrozes
maldições. O herói desafia-a em combate singular. A monstruosa Tiamat encarniça-se
contra o inimigo, fauces abertas pronta para o morder. Marduk arremessa a mortífera seta
que lhe trespassa o coração» (Frederico A. Arborio Mella, Dai sumeri a Babe/e. La
Mesopotamia, storia, civiltà, cultura, Mursia, Milão 1978, págs. 129- 13 1).

260
interesse duradouro, são leituras de mundos possíveis acessíveis
ao nosso ou leituras possíveis do mundo real» 1 3 •
Logo se é útil «saber catapultar-se em visões radicalmente
diversas daquelas a que estamos habituados, sejam o budismo ou
a cosmologia dos Hopi» 1 4, uma leitura possível de um mundo real
é a das raízes esotéricas da cultura de uma elite política que
assinalou o destino da Europa na primeira metade deste século.
É um trabalho que pode continuar se se tiver presente esta outra
expressão de Nozick: «Onde estão o incitamento e a sensualidade
da mente? E o seu orgasmo? Onde quer que estejam, infelizmente
espantaram e ofenderam os puritanos mentais (os dois puritanis­
mos têm uma raiz comum?) justamente enquanto exaltam outros
e dão a sua alegria 1 5 : a de uma investigação não repetitiva 1 6 •

13
«Corriere della Sera», 14 de Janeiro de 1988.
14
Ibidem.
15
Robert Nozick, Spiegazioni filosofiche, 11 Saggiotore, Milão 1987, pág. 40.
16
Só estudando melhor o nazismo se poderá evitar aquilo que um ilustre historiador
que lhe é radicalmente hostil definiu como o «fascínio» (cfr. o título do citado artigo de
Nicola Tranfaglia). Tenha-se presente esta consideração de um outro filósofo, Diego
Marconi, em comentário ao livro (que critica por aspectos de superficialidade) de Victor
Farias sobre Heidegger et /e nazisme, Paris 1987: «Se um grande filósofo foi, não
superficialmete, nazi, isto comporta o risco de significar que o nazismo foi, de um ponto
de vista cultural, um fenómeno de maior envergadura do que aquilo que aparece nos livros
de Goebbels ou nos delírios racistas de Rosenberg. Isto não toma o nazismo menos
demoníaco, mas toma-o ainda mais inquietante, porque o faz aparecer como, presumivel­
mente, mais penetrante, mais radicado, mais duradouro, menos facilmente identificável
com o regime sanguinário de uma quadrilha de malfeitores. A nossa cultura é capaz de
enfrentar o problema na sua substância cultural? Um que o tentara foi Furio Jesi, com
grande erudição e equilíbrio; mas não me parece que tenha encontrado muitos continua­
dores» («L'Indice», Janeiro 1988). Mas o nazismo é «inquietante» também pelos seus
aspectos «demoníacos» (no sentido muitas vezes definidos por «esotéricos») de cultura
alternativa.

26 1

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