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Texto resenhado: GINZURG, Carlo. Das trevas medievais ao black-out de Nova Iorque.

In:
GINZURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo (Orgs). A micro-história e outros
ensaios. Lisboa: DIFEL, Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989, p. 119-130.

Carlo Ginzburg, historiador italiano, tem sua trajetória na historiografia marcada por obras e
trabalhos em geral que comungam de uma nova maneira de pensar a história, sobretudo se
utilizando de aportes conceituais e metodológicos das outras ciências humanas e sociais. É um dos
grandes expoentes também do campo historiográfico que ficou conhecido como micro-história,
tendo como temáticas principais as culturas populares e heréticas entre o final da Idade Média e o
início da Moderna. Daí que o título de seu artigo “Das trevas medievais ao black-out de Nova
Iorque” soe um tanto diferente. No entanto, se vê aqui mais uma vez o historiador tratando da
temática da Idade Média e como ela poder ser reapropriada em diversos contextos históricos e
sociais.
Partindo do sucesso popular no mundo contemporâneo, sobretudo a partir do terceiro quarto
do século XIX, de livros de história, romances, filmes e outros produtos culturais sobre o Medievo,
Ginzburg quer entender o porquê de as pessoas verem naquele período um “espelho longínquo” da
sua sociedade. Alerta no entanto, que para além de apropriações que valorizam a complexidade da
Idade Média, um imaginário que remete a uma visão estereotipada do período medieval,
considerado em bloco, apesar de ter mais ou menos mil anos de história.
A partir do apagão que teve lugar em Nova York em novembro de 1965, Ginzburg discute
como uma determinada sociedade enxerga de acordo com o contexto, no caso do pós-guerra e no
período da Guerra Fria, seu potencial de destruição, se apropriando para fazer previsões do futuro
ou mesmo escrever livros de ficção científica tendo em mente essas questões: como o livro de
Roberto Vaca, A Idade Média de amanhã (1971), citado por Ginzburg, porque neste se trabalha a
ideia de uma catástrofe que pararia o funcionamento da sociedade, e resultaria na morte de milhões
de pessoas. A Idade Média é recuperada dessa forma como um futuro possível, de crise
generalizada. Mas nem todos acreditavam nessa catástrofe, fosse por conta da industrialização em
si, ou de uma crise econômica generalizada – motiva pelas crises do Petróleo da década de 70 -, ou
mesmo em função de uma crise ecológica, dada a exaustão de recursos naturais – o que poderia
ocorrer num futuro ainda distante. Não apenas profetas tomaram parte nesse processo de se
apropriar da Idade Média, mas também grupos importantes, o que fez a “moda da Idade Média”
prosperar.
Ao mesmo tempo que se recupera um estereótipo da Idade Média enquanto a Idade das
Trevas, também se tem o outro lado da moeda, o Medievo como um ambiente mais natural e
antítese do mundo dominado por máquinas que se voltam contra os homens, como no caso do conto
The Machine Stops (1909), de Edward Foster. O autor em questão temia que o futuro fosse ainda
mais corrompido pela revolução tecnológica que se processava: “É neste sentimento de desespero,
hoje facilmente tachado de proto-ecologismo, que a nostalgia de Foster pela Idade Média tem a sua
origem” (GINZBURG, 1989; 124). Se até as primeiras décadas do século XX, a ideologia do
progresso científico e tecnológico enquanto algo necessário e benéfico se afirmava com força, a
partir das experiências da Primeira e da Segunda Guerra Mundial mudou o panorama: o medo de
uma catástrofe nuclear se somou ao medo de catástrofe em nível ecológico, o que passou a ocupar o
espaço de pensamento crítico de muitos em relação ao progresso. Assim, começou-se o que
Ginzburg chama de “mudança de clima cultural”, tendo uma modificação da imagem da Idade
Média, ao mesmo tempo que continuava aquela imagem antiga, formulada ainda na transição do
Medievo pra Idade Moderna, a qual tinha um conteúdo negativo, sendo aquele período marcado
pela decadência não só política e social, mas também cultural, o que só seria em parte superado com
o Renascimento. Daí também ter sido denominado a Idade das Trevas, num jogo conceitual que
identifica a luz ao conhecimento e as trevas à ignorância. Esse imaginário foi se consolidando
também a partir das críticas dos humanistas em relação a filosofia escolástica medieval. Se alguns
pintores e escultores, como Giovanni e Nicola Pisano, estavam safos das trevas, e eram exemplos de
“luz” em meio àquelas, o mesmo, de acordo com Vasari, e depois Voltaire, não se poderia dizer de
“toda a populaça”. É um imaginário que foi se estruturando com o decorrer do tempo, de forma
complexa, múltipla e nem sempre contínua, desde o Renascimento, passando pela Época das Luzes.
Assim, Ginzburg expõe que apenas recentemente – ele escrevia nos anos 80 , sobretudo
depois do apagão em Nova York, os estudos historiográficos sobre a Idade Média se voltaram para
entender essas metáforas que a envolviam, e se afastando, de certa forma, da oposição simplista
entre decadência e progresso utilizada como abordagem por muitos. Questionando a ideia de
compreender a Idade Média enquanto um “miro ecológico”, o autor ressalta que alguns
investigadores, como Lynn White Jr., por exemplo, diante de uma “crise ecológica”, passaram a
recuperar a Idade Média de forma diferenciada. Este último viu em São Francisco de Assis, por
exemplo, o santo patrono dos ecologistas. Além disso, na década de 70, com o auge da crise
petrolífera, historiadores, como Emmanuel Le Roy Ladurie e Jacques Le Goff passaram a tratar de
novas temáticas com novas abordagens. No caso do primeiro tem-se a tentativa de uma “história
imóvel”, que analisa o ecossistema desde a grande peste do começo do século XIII até a Revolução
Industrial, e no do segundo, a ideia de uma Idade Média longa, que teria começa seu processo ainda
nos séculos II-III e terminado com a industrialização das sociedades, no século XIX. O pensamento
de Buffon que exaltava o poder de domínio e apropriação do homem sobre a natureza está
frontalmente em conflito com a consciência e um novo imaginário em meados do século XX que
compreendiam a capacidade de autodestruição gerada pelo progresso científico e tecnológico: “A
consciência de que a possibilidade do fim da história (e da espécie) humana faz parte dos grutos do
progresso é coisa muito diferente das fáceis nostalgias reaccionárias” (GINZBURG, 1989; 129).
Essa consciência se distingue porque também não descarta outros progressos tecnológicos e
científicos que possam assegurar ou mesmo melhorar a vida da população humana, como é o caso
da energia nuclear utilizada de maneira consciente e sustentável. Afinal um posicionamento
reacionário poderia levar a um certo controle político da sociedade que poderia facilmente resgatar,
por exemplo, enquanto modelos a ser seguidos os regimes fascistas do século XX, que carregariam
consigo seu cerne, frente a um possível colapso ecológico, uma política de expansão demográfica
ou mesmo um controle de nascimentos. Mas Ginzurg, no entanto, alerta que os historiadores não
podem nada prever, apenas interpretar o passado em vista de um futuro possível.

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