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CIVILIZAÇÃO
B RAS I LEI R A
COPYRIGHT © Fredric Jam eson, 1998

TÍTULO ORIGINAL
THE CULTURAL TURN

CAPA
Evelyn Grumach

PROJETO GRÁFICO
Evelyn Grumach e João de Souza Leite

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SIN D IC A TO N A C IO N A L D O S EDITORES D E LIVROS, RJ.

Jameson, Fredric, 1934-


J29g A virada cultural: reflexões sobre o pós-m odernism o / Fredric
Jam eson; tradução de C arolina Araújo; revisão técnica Danilo
Marcondes. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

Tradução de: The cultural turn: selected writings on the postmodem,


1983-1998
ISBN 85-200-0718-X

1. Pós-modernismo (Literatura). 2. Pós-modernismo. I. Título.

CDD - 809.91
06-1529 CDU - 82.09

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou


transm issão de partes deste livro, através de quaiquer m eios, sem prévia
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Im presso n o Brasil
2006
Sumário

PREFÁCIO, POR PERRY ANDERSON 9

1. Pós-modernismo e sociedade de consumo 15

2. Teorias do pós-moderno 45

3. Marxismo e pós-modernismo 63

4. As antinomias da pós-modernidade 89

5. “Fim da arte” ou “fim da história”? 125


6. Transformações da imagem na pós-modernidade 155

7. Cultura e capital financeiro 217

8. O tijolo e o balão: arquitetura, idealismo e especulação


imobiliária 255

NOTAS 297

REFERÊNCIAS 309

ÍNDICE REMISSIVO 311


Prefácio

Os ensaios de Fredric Jameson explodem como uma miríade


de chamas de magnésio em céu noturno, iluminando a pe­
numbra da paisagem do pós-moderno e transformando, re­
pentinamente, as suas sombras e obscuridades em um quadro
vivo, tão refulgente quanto sinistro. Os contornos do cenário
assim revelado estão em exibição nos textos que se seguem. A
Ivirada cultural oferece o mais compacto e completo resumo
do desenvolvimento do seu pensamento sobre o assunto, es-
tendendo-se ao longo de duas décadas de reflexões intensa­
mente produtivas, desde suas primeiras investidas até suas
últimas análises. Simultaneamente uma introdução e uma
panorâmica, apresenta-se aqui o melhor inventário do traba­
lho de Jameson sobre o pós-moderno até hoje.
A relação desta obra com a história anterior das idéias do
pós-moderno — uma história complicada de prognósticos,
deslocamentos e inversões, que pode, por vezes, parecer ar­
bitrária ou enigmática, mas que, ainda assim, tem uma lógica
própria subjacente — já configura, por si só, um tópico
instigante.1 Todavia, o que qualquer genealogia desse tipo

P r o c u r ei explorar essa questão em A nderson, P. The Origins o f Post-


modernity, Londres, Verso, 1 9 9 8 , que apresenta uma leitura mais detalha*
da de Jam eson.

9
A VI RADA C UL T URA L

torna clara é a posição singular ocupada por Jameson nesse


campo. Nenhum outro autor produziu um a teo ria tão
investigativa e abrangente sobre as dimensões culturais,
socioeconômicas e geopolíticas do pós-moderno. O diário de
bordo desse desenvolvimento encontra-se a seguir.
Este volume abre com três textos fundamentais da déca­
da de 1980. “Pós-modernismo e sociedade de consumo” —
originalmente apresentado como uma conferência no M u­
seu Whitney de Arte Contemporânea, no outono de 1982 e,
em seguida, ampliado em um famoso ensaio para a N ew
Left Review, em 1984— estabelece as teses centrais da teo­
ria de Jameson sobre o fim do modernismo e a chegada de
uma nova configuração pós-moderna, entendida como uma
transcrição da lógica cultural do capitalismo tardio.] Essa in­
tervenção original permaneceu como a pedra angular de toda
a obra posterior de Jameson. Praticamente contemporâneo
a esse ensaio (na verdade escrjto alguns meses antes, na pri­
mavera de 1982, e publicado no New Gertnan Critique., em
1983), “Teorias do pós-moderno” nos fornece um m a­
peamento nítido, sob a forma de uma combinatória de posi­
ções possíveis, das várias posturas — intelectuais e políticas
— adotadas em relação ao pós-modernismo até o m omento
da própria entrada de Jameson nessa área. Aqui Jameson
torna claro o ponto de vista específico a partir do qual ele
coerentemente escreve: um marxismo que escapa a qual­
quer moralismo óbvio, em nome de uma sóbria análise ma­
terialista do patamar histórico das principais transform ações’
culturais. Essa é uma perspectiva que desconcertou m uitos
dos leitores de esquerda. O terceiro ensaio, “M arxismo e
| pós-modernismo”, composto no início de 1989, é a calma
resposta de Jameson a tais críticas, estabelecendo o seu pró-

1o
P RE F A C I O

prio projeto dentro das iniciativas clássicas da tradição mar­


xista.
Todos estes textos foram escritos na era Reagan e tratam
| com precisão desse governo. Trata-se de um tempo de explo­
são especulativa prolongada, ao fundo de um rearmamento
em massa para a luta contra o comunismo e de uma vasta
redistribuição de renda em benefício dos ricos nos Estados
Unidos, mais especificamente no oeste.! A euforia doméstica
desses anos forma o pano de fundo imediato para o diagnós­
tico de Jameson sobre a lógica do pós-modernismo. N o en­
tanto, quando o mundo chegou aos anos 1990, esse contexto
foi abruptamente alterada|Com o colapso do bloco soviéti­
co, o triunfo global do capitalismo foi amplamente procla­
mado como o padrão necessário, a partir de então, para toda
a vida econômica e política. Em sua interpretação mais ambi­
ciosa, a eliminação de qualquer alternativa foi lida como um
<térm ino definitivo: em um sentido categórico, para não dizer
cronológico, nada menos do que o próprio fim da história^
Foi aos paradoxos desse novo significado de modernidade,
ou seja, como um cancelamento do tem po e uma Glei-
chschaltung do espaço, que Jameson se dedicou no quarto .
texto aqui incluído. “As antinomias da pós-modernidade” — |
originalmente apresentado como uma palestra na Biblioteca i,;
Wellek, em 1991 — foi publicado em formato ampliado como
o primeiro capítulo de As sementes do tempo, em 1994. Tra­
ta-se de um tour de force de tremendo poder.
Os textos finais deste volume formam um quarteto de
ensaios até agora inéditos, que marcam uma nova fase crítica
Çlna escrita de Jameson. “‘Fim da arte’ ou ‘fim da história’?”,
que data de 1994, é uma reflexão complexa sobre dois temas
hegelianos que ganharam hoje atualidade renovada. O texto

11
1

A VI RADA C ULT URAL

apresenta tanto uma análise mordaz das metáforas conserva­


doras em operação nesse re n asc im e n to q u a n to um a
reinterpretação engenhosa e radical — na qual a famosa de­
claração de Francis Fukuyama surge sob uma luz inesperada.
A pertinência de sua intransigência é mantida no ensaio se­
guinte, “Transformações da imagem na pós-modernidade”
(apresentado pela primeira vez em uma conferência na
Venezuela, em 1995), que começa registrando um tipo de
retrocesso, dentro da própria evolução do pós-modernismo,
em direção a posições intelectuais e estéticas desde há muito
abandonadas. Jameson então passa a dedicar-se, em particu­
lar, a uma parábola sobre as metamorfoses do “olhar”, tal
como foi tão bem compreendido por Sartre, Fanon, Foucault,
Robbe-Grillet e finalmente Guy D ebord— cuja teoria do es­
petáculo nos guia em um mundo contemporâneo onde o apego
modernista ao sublime recuou antes que pudesse surgir um
culto renovado do belo, que, na visão de Jameson, só pode
agora ser prostituído.
Os últimos dois ensaios formam um par natural. Os tra­
balhos de Jameson sobre a cultura pós-moderna sempre fo­
ram alimentados por uma compreensão das transformações
econômicas que os acompanham e delineiam. A sua primeira
teoria do pós-moderno havia sido estimulada pelo clássico
estudo de Ernest Mandei, Capitalismo tardio, da década de
1970; agora, em “Cultura e capital financeiro”, ele se vale
de modo notável do marco da década de 1990, O longo sé­
culo XX, de Giovanni Arrighi, para apresentar um modo in­
teiramente novo de ver os mecanismos típicos do cinema
contemporâneo — aí incluídos os subprodutos simbólicos da
indústria, a exemplo dos trailers. De m odo semelhante, em
“O tijolo e o balão” (1997), a recente investigação de Robert

12
PREFÁCIO

Fitch sobre a especulação imobiliária em M anhattan — The


Assassination o f N e w York — é tomada como matéria-prima
de um a ampla meditação acerca das relações entre a renda da
terra e as form as arquitetônicas, sob o signo do “capital fictí­
cio” de M arx. Tudo isso term ina com uma guinada tipica­
m ente abrupta e habilidosa em direção à questão do espectral
em H ong Kong.
Em um form ato conciso, A guinada cultural traça o movi­
m ento de uma das principais inteligências culturais de nosso
tem po na busca pelas formas mutáveis do mundo pós-mo-
derno. Os resultados deixarão poucos indiferentes.
Perry Anderson
Abril de 1998

1 3
1. Pós-modernismo e sociedade
de consumo
O conceito de pós-modernismo não é amplamente aceito nem
sequer compreendido hoje. Parte da resistência a ele pode
advir da pouca familiaridade com as obras por ele abarcadas,
que podem ser encontradas em todas as artes: a poesia de
John Ashbery, por exemplo, assim como a poesia coloquial,
muito mais simples, que, na década de 1960, surgiu da rea­
ção contra uma poesia modernista acadêmica, irônica e com­
plexa; a reação contra a arquitetura moderna, em particular
contra as construções monumentais do International Style;
as construções pop e os galpões ornados, enaltecidos por
Robert Venturi em seu manifesto Aprendendo com Las Vegas;
' í Andy Warhol, a pop art e o mais recente fotorrealismo; na
] música, o momento de John Cage, mas também a síntese
posterior entre os estilos clássicos e “populares” encontra­
da em compositores como Philip Glass e Terry Riley, além
do punk e do rock new tvave, com grupos como The Clash,
Talking Heads e The Gang of Four; no cinema, tudo que
vem de Godard — filmes e vídeos da vanguarda contempo­
rânea —, assim como todo um novo estilo de filmes de fic­
ção e comerciais, algo que tem equivalentes, nos romances
contemporâneos, nas obras, por um lado, de William Bur-
roughs, Thomas Pynchon e Ishmael Reed e, por outro, do
novo romance francês. Tudo isso pode ser enumerado entre
A VI R A DA C U L T U R A L

as variedades daquilo que pode ser chamado de pós-moder-


nismo.
Essa lista podería esclarecer duas coisas de uma só vez.
Em primeiro lugar, a maior parte dos pós-modernismos aci­
ma mencionados surge como reações específicas contra as
formas estabelecidas do alto modernismo, contra este ou aque­
le alto modernismo dominante que conquistou a universida­
de, o museu, a rede de galerias de arte e as fundações. Esses "
estilos, primeiramente subversivos e polêmicos — o ex- Jj
pressionismo abstrato, a grande poesia modernista de Pound, j,
Eliot ou Wallace Stevens, o International Style (Le Corbusier,
Gropius, Mies van der Rohe), Stravinski, Joyce, Proust e Mann
—, recebidos por nossos avós como escandalosos e chocan­
tes, são tomados, pela geração que desponta na década de
' 1960, como o sistema estabelecido e o inimigo — mortos,
, asfixiados, canônicos, esses são os monumentos reificados que
devem ser destruídos para que se faça qualquer coisa nova.
Isso significa que haverá tantas formas de pós-modernismo
quantas havia, no lugar, de alto modernismo, uma vez que
elas são, ao menos inicialmente, reações específicas e locali­
zadas contra esses modelos. Tal característica obviamente não
facilita em nada a tarefa de descrever o pós-modernismo como
, algo coerente, já que a unidade desse novo impulso— se existe
; — é dada, não por si mesma, mas pelo próprio modernismo
^ que ele busca destronar.
A segunda característica dessa lista de pós-modernismos é
a abolição de algumas fronteiras ou separações essenciais,,
notadamente a erosão da distinção anterior entre a alta cultura ]
e a chamada cultura de massa ou popular. Esse talvez seja o
desenvolvimento mais angustiante de um ponto de vista aca­
dêmico, que tradicionalmente investe na preservação de um

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PÓS - MODE RNI SMO E SOCI EDADE DE CONS UMO

âmbito de alta cultura ou de cultura de elite, em contraposição


ao ambiente ao seu redor — um ambiente de filisteus, quinqui­
lharias e de kitschy de seriados de televisão e cultura de Reader*s
Digest —, e na transmissão, aos seus iniciados, de difíceis e
complexas habilidades de ler, ouvir e verj Porém, boa parte dos
recentes pós-modernistas ficou fascinada exatamente por aquela
paisagem de anúncios e motéis das avenidas de Las Vegas, pelo
Late Show e pelo cinema B de Hollywood, pela chamada pára-
literatura, com os seus best-sellers de aeroporto, que se alter­
nam entre as categorias do gótico e do romance, da biografia
popular e do mistério de assassinato, da ficção científica e do
/ romance fantástico. Eles não mais “citam” tais “textos”, como
|i teriam feito um Joyce ou um Mahler, eles os incorporam, a
| ponto de parecer cada vez mais difícil traçar a linha que separa
a alta arte das formas comerciais.
-fr Uma indicação bem diferente dessa abolição das antigas
categorias de gêneros e discursos pode ser encontrada no que,
por vezes, chamamos de teoria contemporânea. Na geração
anterior ainda havia um discurso técnico da filosofia profis­
sional — os grandes sistemas de Sartre ou dos fenomenólogos,
a obra de Wittgenstein, a filosofia da linguagem comum ou
analítica —, à margem do qual ainda se podia distinguir aquele
discurso bem diferente das outras disciplinas acadêmicas —
da ciência política, por exemplo, ou da sociologia e da crítica
literária. Hoje em dia, cada vez mais, temos um tipo de escri­
ta simplesmente chamada de “teoria”, que é, ao mesmo tem­
po, todas e nenhuma dessas coisas. Esse novo tipo de discurso,
( | geralmente associado à França e à chamada teoria francesa,
i j torna-se então amplamente difundido e marca o fim da filo­
sofia como tal. A obra de Michel Foucault, por exemplo, deve
ser chamada de filosofia, história, teoria social ou ciência

19
A VIRADA CULTURAL

política? É impossível decidir, como dizem hoje em dia; e eu


sugiro que esse “discurso teórico” também seja enumerado
entre as manifestações do pós-modernismo.
A essa altura é preciso abordar a questão do uso adequa­
do desse conceito: afinal, não se trata apenas de mais uma
palavra para descrever um estilo particular. Trata-se também,
ao menos no uso que faço dele, de um conceito de periodi­
zação, cuja função é correlacionar o surgimento de novos as­
pectos formais na cultura com o surgimento de um novo tipo
de vida social e de uma nova ordem econômica — o que é
freqüentemente chamado, em tom de eufemismo, de moder­
nização, sociedade de consumo pós-industrial, de sociedade
da mídia e do espetáculo, ou, ainda, de capitalismo mul­
tinacional. Esse novo m om ento do capitalismo pode ser da­
tado, nos Estados Unidos, a partir do súbito desenvolvimento
pós-guerra, ou seja, ao final da década de 1940 e início da
década de 1950, ou ainda, na França, a partir do estabeleci­
mento da Quinta República, em 1958. A década de 1960 é,
em vários aspectos, o principal período de transição; um pe­
ríodo no qual a nova ordem internacional (o neocolonialismo,
a Revolução Verde, a disseminação dos computadores e das
informações eletrônicas) é, ao mesmo tempo, instaurada e
abalada, tanto por suas próprias contradições internas quan­
to pela resistência externa. Quero aqui delinear alguns dos
modos pelos quais os novos pós-modernismos expressam a
verdade interna da recém-surgida ordem social do capitalis­
mo tardio, muito embora tenha que limitar a descrição a ape­
nas dois de seus aspectos mais significativos, que eu chamo
de pastiche e esquizofrenia. Eles nos proporcionarão uma
chance de perceber a especificidade da experiência pós-mo-
dernista do espaço e do tem po, respectivamente.

2 o
P Ó S - M O D E RNI S MO E S O C I E D A D E DE C O N S U M O

O PASTICHE ECLIPSA A PARÓDIA

Um dos aspectos ou práticas mais significativos do pós-mo-


dernismo hoje é o pastiche. Antes de tudo é preciso explicar
esse termo (originário da linguagem das artes visuais), até
porque muitos em geral tendem a confundi-lo ou assimilá-lo
a um fenômeno verbal, a ele relacionado, chamado de paró­
dia. Tanto o pastiche quanto a paródia envolvem a imitação,
ou melhor, a mímica de outros estilos, particularmente dos
seus maneirismos e cacoetes estilísticos. É óbvio que a litera­
tura moderna em geral oferece um campo riquíssimo para a
paródia, já que os maiores autores modernos têm sido, todos
eles, definidos pela invenção ou produção de estilos bem par­
ticulares: pensemos na frase longa de Faulkner ou na imagética
natural característica de D. H . Lawrence; pensemos em
Wallace Stevens e no seu modo peculiar de usar abstrações;
pensem os tam bém nos m aneirism os dos filósofos, de
Heidegger, por exemplo, ou de Sartre; pensemos nos estilos
musicais de Mahler ou Prokofiev. Todos esses estilos, por mais
diferentes que sejam uns dos outros, são comparáveis nisto:
cada um deles é perfeitamente inconfundível; uma vez apren­
dido um deles, provavelmente não se irá confundi-lo com
mais nada.
A paródia tira proveito da singularidade desses estilos e se
apodera de suas idiossincrasias e excentricidades para produ­
zir uma imitação que ridiculariza o original. Eu não diria que
o impulso satírico é consciente em todas as formas de paró­
dia; em todo caso, um bom parodista deve ter alguma com­
paixão pelo original, tal como um grande mímico deve ter a
capacidade de pôr-se no lugar da pessoa imitada. Ainda as­
sim, o efeito geral da paródia é — seja pela compaixão ou

2 1
A VIRADA CULTURAL

pela malícia — revelar o ridículo na natureza particular des­


ses maneirismos estilísticos, particularmente pelos seus ex­
cesso$ e excentricidades em relação ao modo pelo qual as
pessoas normalmente falam ou escrevem. Desse modo, por
trás de toda paródia permanece, em algum lugar, o sentimen­
to de que há uma norma lingüística em contraste com a qual
os estilos dos grandes modernistas podem ser ridicularizados.
Mas o que aconteceria se não mais se acreditasse na exis­
tência da linguagem normal, do discurso cotidiano, da nor­
ma lingüística (digamos, do tipo de poder comunicativo e de
clareza que Orwell enaltecia em seu famoso ensaio “Politics
and the English language”)? Poder-se-ia pensar nisso do se­
guinte modo: talvez a imensa fragmentação e particulariza-
ção da literatura moderna— a sua explosão em uma infinidade
de estilos e maneirismos distintos e particulares— prenuncie
tendências mais profundas e gerais na vida social como um
todo. Suponhamos que a arte moderna e o modernismo —
longe de serem um tipo de curiosidade estética especializada
— tenham de fato prenunciado desenvolvimentos sociais nessa
direção; suponhamos que, nas décadas que sucederam o
surgimento dos grandes estilos modernos, a sociedade tenha
começado a fragmentar-se, de modo que cada grupo tenha
passado a falar uma curiosa linguagem particular só sua, cada
profissão tenha desenvolvido o seu código particular ou
idioleto e, finalmente, cada indivíduo tenha se tornado um
tipo de ilha lingüística, separado de todos os demais. Nesse
caso, então, a própria possibilidade de qualquer norma lin­
güística, em cujos termos poder-se-ia ridicularizar linguagens
particulares e estilos idiossincráticos, desaparecería, e não
teríamos nada além da diversidade e da heterogeneidade lin-
güísticas.

2 2
P Ô S - M O D E R N I S M O E S OCI E DADE DE C O N S U MO

Esse é o momento em que o pastiche surge e a paródia se


torna impossível. O pastiche, assim como a paródia, é a imi­
tação de um estilo peculiar e único, o uso de uma máscara
estilística, o discurso em uma língua morta; no entanto, ele é
uma prática neutra de tal mímica, desprovida do motivo oculto
da paródia, sem o impulso satírico, sem o riso, sem aquele
sentimento ainda latente de que existe algo normal, em com­
paração com o qual aquilo que é imitado é cômico. O pastiche
é a paródia pálida, a paródia que perdeu o seu senso de hu­
mor; o pastiche está para a paródia assim como aquela coisa
curiosa, a prática moderna de um tipo de ironia pálida, está
para aquilo que Wayne Booth chamou de ironias estáveis e
cômicas do século XVIII.1

A MORTE DO SUJEITO

Esse é o momento de introduzir uma nova peça nesse que­


bra-cabeça, algo capaz de ajudar a explicar por que o moder­
nismo clássico é algo do passado e por que o pós-modernismo
deve ter tomado o seu lugar. O novo componente é o que
geralmente se chama de “a morte do sujeito* ou, para dizê-
lo em linguagem mais convencional, o fim do individualis­
mo enquanto tal. Os grandes modernistas foram, como
dissemos, definidos pela invenção de um estilo pessoal, par­
ticular, tão inconfundível quanto a nossa impressão digital,
tão incomparável quanto o nosso próprio corpo. Mas isso
significa que a estética modernista é, de certo modo, orga­
nicamente ligada à concepção de um eu único e de uma
identidade particular, de uma personalidade singular e de
uma individualidade, da qual se espera que gere sua visão

23
A VIRADA CULTURAL

própria e singular do m undo e que construa o seu próprio


estilo, singular e inconfundível.
Contudo, hoje, a partir de inúmeras perspectivas distin­
tas, os teóricos sociais, os psicanalistas e mesmo os lingüistas
— para não falar daqueles que trabalham na área da cultura e
da transformação cultural e formal — estão explorando a
noção de que esse tipo de individualismo e essa identidade
pessoal são coisas do passado, que o velho sujeito individual
e individualista está “m orto”, e que se pode chegar até a des­
crever o conceito de indivíduo singular e a base teórica do
individualismo como ideológicos. H á, na verdade, duas posi­
ções em tudo isso, uma das quais é mais radical do que a
outra. A primeira delas está contente em dizer: sim, há muito
tempo, na era clássica do capitalismo competitivo, no auge
da família nuclear e no surgimento da burguesia como a clas­
se social hegemônica, houve algo como o individualismo,
como os sujeitos individuais. Mas hoje — na era do capitalis­
mo corporativo, do chamado homem organizacional, das
burocracias, tanto nos negócios quanto no Estado, da explo­
são demográfica —, hoje, esse antigo sujeito individual bur­
guês não existe mais.
Há, por outro lado, uma segunda posição, a mais radical
delas, que podemos chamar de posição pós-estruturalista. Ela
acrescenta: não apenas o sujeito individual burguês é algo do
passado, como ele é também um mito, algo que nunca che­
gou de fato a existir, nunca houve sujeitos autônomos desse
tipo. Esse construto é meramente uma mistificação filosófica
e cultural, que buscou persuadir as pessoas de que elas “ti­
nham” subjetividades individuais e possuíam certa identida­
de pessoal singular.
Para os nossos propósitos aqui, não é particularmente

2 4
P Ó S - M O D E R N I S M O E S O C I E D A D E DE C O N S U M O

importante decidir qual dessas posições está certa (ou me­


lhor, qual delas é mais interessante e produtiva), O que deve­
mos guardar de tudo isso é, antes, um dilema estético: porque,
se a experiência e a ideologia do eu singular — uma expe­
riência e ideologia que nutriram as práticas estilísticas do mo­
dernismo clássico — são passado acabado, então não há mais
clareza sobre o que se espera que os artistas e escritores do
período presente façam. O que está claro é apenas que os
modelos anteriores — Picasso, Proust, T. S. Eliot — não fun­
cionam mais (ou são positivamente prejudiciais), já que nin­
guém tem mais aquele tipo de mundo e estilo singular e único
para expressar. E provavelmente essa não é apenas uma ques­
tão “psicológica”; temos também que levar em conta o imen­
so peso de setenta ou oitenta anos de modernismo clássico
propriamente dito. Esse é um outro sentido, a partir do qual
os autores e artistas do presente não serão mais capazes de
inventar novos estilos e mundos — eles já foram inventados;
somente um número limitado de combinações é possível, ape­
nas aquelas que já foram pensadas. Dessa forma, o peso de
toda a tradição estética modernista — hoje m o rta— também
“pesa como um pesadelo no cérebro dos que vivem”, como
disse M arx em outro contexto.
Isso nos leva mais uma vez ao pastiche: em um m undo no
qual a inovação estilística não é mais possível, tudo o que
resta é imitar estilos mortos, falar através de máscaras e com
as vozes dos estilos no museu imaginário. Mas isso significa
que a arte pós-moderna ou contemporânea se pautará pela
própria arte de um modo novo; mais ainda, significa que uma
de suas mensagens essenciais envolverá a falência necessária
da arte e da estética, a falência do novo, o aprisionamento no
passado.

25
A VI RADA CULTURAL

0 MODO NOSTÁLGICO

Como tudo isso pode parecer muito abstrato, eu gostaria de


dar alguns exemplos, um dos quais é tão onipresente que ra­
ramente o relacionamos aos tipos de desenvolvimento da alta
arte aqui discutidos. Essa prática específica do pastiche não
se liga tanto à alta cultura, mas muito mais à cultura de mas­
sa, e é geralmente conhecida como “cinema nostálgico* (o
que os franceses, com elegância, chamam de la mode rétro—
o estilo retrospectivo). Devemos conceber essa categoria no
seu sentido mais amplo. Estritamente falando, não há dúvi­
das de que ela consiste apenas em filmes sobre o passado, ou
ainda, em momentos de gerações específicas desse passado.
Assim, um dos filmes que inauguram esse novo “gênero* (se
é que se trata disso) é o filme de Lucas, Loucuras de verão,
que, em 1973, se propôs a recapturar toda a atmosfera e as
peculiaridades estilísticas dos Estados Unidos da década de
1950, os Estados Unidos da era Eisenhower. O grande filme
de Polanski, Chinatown (1974), faz algo parecido com a dé­
cada de 1930, assim como O conformista, de Bertolucd
(1969), em relação ao contexto italiano e europeu do mesmo
período, a era fascista da Itália. Poderiamos continuar listando
esses filmes por um longo tempo. No entanto, por que chamá-
los de pastiche? Não seriam eles, ao contrário, obras de um
gênero mais tradicional, conhecido como cinema histórico
— obras que podem ser mais simplesmente teorizadas por
uma extrapolação daquela outra forma bem conhecida, a do
romance histórico?
Tenho minhas razões para pensar que precisamos de no­
vas categorias para tais filmes. Porém, permitam-me, antes
disso, acrescentar algumas anomalias: suponhamos que eu


PÓS - M O D E R N I S MO E S O C I E D A D E DE C O N S U M O

sugira que Guerra nas estrelas (George Lucas, 1977) também


seja um filme nostálgico. O que isso significaria? Presumo
que podemos concordar que ele não é um filme histórico so­
bre o nosso passado intergaláctico. N o entanto, deixe-me
colocar a questão de um outro modo: uma das experiências
culturais mais importantes das gerações que cresceram entre
as décadas de 1930 e 1950 foram os seriados das tardes de
sábado, do tipo Buck Rogers — vilões alienígenas, heróis ti­
picamente americanos, heroínas em perigo, o raio da morte
ou a caixa do apocalipse e, por fim, o herói pendurado no
penhasco, cuja solução milagrosa só seria vista na próxima
tarde de sábado. Guerra nas estrelas reinventou essa experiên­
cia na forma do pastiche; não há sentido em se pensar uma
paródia desses seriados, uma vez que eles foram extintos há
muito tempo. Longe de ser uma sátira sem sentido dessas for­
mas mortas, Guerra nas estrelas satisfaz um anseio profundo
(será que eu poderia dizer reprimido?) de experimentá-los
novamente; é um objeto complexo no qual, em um primeiro
nível, crianças e adolescentes podem apreender apenas as
aventuras, ao passo que o público adulto pode realizar um
desejo muito mais profundo, e mais propriamente nostálgi­
co, de voltar a esse período anterior e revivê-lo através dos
seus estranhos e antigos artefatos estéticos. Esse filme é, por­
tanto, por metoním ia, um filme histórico ou nostálgico. Ao
contrário de Loucuras de verão, ele não reinventa uma ima­
gem do passado na sua totalidade vivida; ao contrário, ao
reinventar a sensação e a forma de objetos de arte caracterís­
ticos de um período anterior (os seriados), ele procura
reacender um sentido de passado associado àqueles objetos.
Nesse ínterim, Os caçadores da arca perdida (1981) ocupa
aqui uma posição intermediária: em um determinado nível, o

27
A VIRADA CULTURAL

filme trata das décadas de 1930 e 1940, mas ele também nos
transporta a esse período p o r metonímia, através de suas típi- ,
cas estórias de aventura (que não são mais as nossas).
Agora me permitam discutir uma outra anomalia que pode
levar-nos adiante na compreensão do cinema nostálgico, em
particular, e do pastiche de m odo geral. Ela envolve um filme
recente chamado Corpos ardentes (Lawrence Kasdan, 1981), ;
que, como foi abundantemente apontado pelos críticos, é um j
tipo distante de refilmagem de Pacto de sangue (1944). (0 j
plágio alusivo ou evasivo de motes antigos é, naturalmente, !
também um aspecto do pastiche.) Bem, Corpos ardentes náo j
é tecnicamente um filme nostálgico, já que se passa em um j
cenário contemporâneo, em uma pequena vila da Flórida,
perto de Miami. Por outro lado, essa contemporaneidade téc­
nica é de fato muito ambígua; os créditos — sempre a nossa j
primeira sugestão — usam fontes em estilo art déco da déca­
da de 1930, que não fazem outra coisa a não ser provocar
reações nostálgicas (em primeiro lugar, sem dúvidas, em rela­
ção a Chinatown, mas depois para além dele até algum outro j
referencial histórico). Junto a isso, o próprio estilo do herói é
ambíguo; William H urt é um astro novo, mas não tem nada
do estilo característico da geração anterior de astros masculi- I
nos como Steve McQueen ou Jack Nicholson, ao contrário, a j
sua persona aqui é um tipo de mistura das características des- j
ses atores com um papel mais antigo, do tipo geralmente as- j
sociado a Clark Gable. Também aqui há, portanto, uma |
sensação levemente arcaica com relação a tudo isso. Esse es­
pectador começa a se perguntar por que essa história, que i
podería ter sido situada em qualquer lugar, é ambientada em 1
uma pequena cidade da Flórida, a despeito de sua referência :
contemporânea. Começa-se a perceber, em pouco tempo, que I

28
P Ó S - M O D E R N I S MO E S O C I E D A D E DE C O N S U M O

o ambiente da pequena cidade tem uma função estratégica


crucial: permite que o filme dispense grande parte dos signos
e referências que poderíam ser associados ao mundo contem­
porâneo, à sociedade de consumo — os utensílios e artefatos,
os arranha-céus, o mundo de objetos do capitalismo tardio.
Tecnicamente, enfim, seus objetos (seus carros, por exemplo)
são produtos dos anos 1980, mas tudo no filme conspira para
embaçar essa referência imediatamente contemporânea e tor­
nar possível a sua recepção como mais uma obra nostálgica
— como uma narrativa situada em algum passado nostálgico
indefinível, digamos, uma eterna década de 1930 para além
da história. Parece-me muito sintomático encontrar precisa­
mente o estilo do cinema nostálgico invadindo e colonizando
até mesmo aqueles filmes atuais que se passam em cenários
contemporâneos, como se, por algum motivo, não pudésse­
mos mais, hoje, focar o nosso próprio presente, como se nos
tivéssemos tornado incapazes de alcançar representações es­
téticas de nossa própria experiência atual. Mas, se assim é,
então estamos diante de uma imposição do próprio capitalis­
mo de consumo — ou, ao menos, de um sintoma alarmante e
patológico de uma sociedade que se tornou incapaz de lidar
com o tempo e a história.
Assim, voltamos agora à questão sobre por que o cinema
nostálgico ou o pastiche devem ser considerados diferentes
dos antigos romances e filmes históricos. Devo incluir nessa
discussão o maior exemplo literário, ao meu ver, dessa ques­
tão: os romances de E. L. Doctorow — Ragtime> com a sua
atmosfera da virada do século, e Lago da solidão, em sua maior
parte sobre a nossa década de 1930. Mas esses, na minha
opinião, são romances históricos apenas aparentemente.
Doctorow é um artista sério e um dos poucos romancistas

29
A VI RADA CULT URAL

radicais que ainda produzem hoje. Não é prestar um desserviço


a ele, entretanto, sugerir que as suas narrativas não represen­
tam o nosso passado histórico, ao menos não tanto quanto
representam as nossas idéias e estereótipos culturais sobre esse
passado. A produção cultural foi reconduzida ao interior da
mente, dentro do sujeito monádico; ela não pode mais olhar
diretamente com seus próprios olhos para o mundo real em
busca de um referente, ao contrário, ela deve, como na caver­
na de Platão, traçar suas imagens mentais do mundo nas pa­
redes que a confinam. Se ainda sobrou aqui qualquer realismo,
é um “realismo” que brota do choque de se compreender
esse confinamento e de se perceber que, sejam quais forem os
motivos, parecemos condenados a buscar o passado histórico
através de nossas próprias imagens pop e estereótipos sobre o
passado, que permanece para sempre fora de alcance.

PÓS-MODERNISMO E A CIDADE

Antes que eu tente oferecer uma conclusão um pouco mais


positiva, gostaria de esboçar a análise de um edifício absolu­
tamente pós-moderno — uma obra que é, em vários aspec­
tos, distinta daquela arquitetura pós-moderna cujos principais
nomes são Robert Venturi, Charles Moore, Michael Graves
e, mais recentemente, Frank Gehry, mas que, aos meus olhos,
oferece algumas lições surpreendentes sobre a originalidade
do espaço pós-modernista. Permitam-me ampliar a figura que
perpassou as observações feitas até aqui para torná-la ainda
mais explícita; estou propondo a noção de que estamos dian­
te de algo como uma mutação no próprio espaço construído. |
Minha suposição é de que nós mesmos, os sujeitos humanos

3 o
P Ô S - M O D E R N I S M O i S O C I E D A D E DE C O N S U M O

que acontecem dentro desse novo espaço, náo acompanha­


mos essa evolução; houve uma mutação no objeto, à qual
ainda não se seguiu uma mutação equivalente no sujeito; não
possuímos o instrumental perceptivo para nos emparelhar­
mos a esse novo hiperespaço, como eu o chamo, em parte
porque nossos hábitos perceptivos foram formados naquele
antigo tipo de espaço, que eu chamei de espaço do alto mo­
dernismo. A recente arquitetura — assim como muitos outros
produtos culturais que mencionei nas observações anteriores
— representa, portanto, algo como um imperativo ao cresci­
mento de novos órgãos, que expandam os nossos sentidos e
os nossos corpos até novas dimensões, ainda inimagináveis,
talvez até, em última instância, impossíveis.

O hotel Bonaventure

O edifício cujas características passarei a enumerar é o hotel


Westin Bonaventure, construído no novo centro de Los
Angeles pelo arquiteto John Portman, cujas obras incluem
vários hotéis da rede Hyatt Regency, o Peachtree Center, em
Atlanta, e o Renaissance Center, em Detroit. Devo mencio­
nar o aspecto populista da defesa retórica do pós-modernis-
mo contra as austeridades elitistas (e utópicas) dos grandes
modernismos arquitetônicos; em geral afirma-se que, por um
lado, essas construções mais recentes são obras populares e,
por outro, que elas respeitam a linguagem da malha da cida­
de americana. Isso significa dizer que elas não mais tentam,
como fizeram as obras-primas e monumentos do alto moder­
nismo, inserir uma nova linguagem, diferente, distinta, eleva­
da e utópica, no sistema simbólico cafona e comercial da
cidade que as cerca, mas, ao contrário, buscam falar essa

3 1
A V I R A D A C UL T URAL

mesma linguagem, usando o seu léxico e a sua sintaxe, que


foi, emblematicamente, “aprendida com Las Vegas”.
Levando-se em conta o primeiro aspecto, o Bonaventure
de Portman confirma totalmente essa definição; trata-se de
uma construção popular, visitada com entusiasmo tanto pe­
los moradores locais quanto pelos turistas (mesmo que ou­
tras construções de Portman tenham tido maior sucesso nesse
quesito). A inserção populista na malha urbana é, contudo,
um outro problema e é por ele que nós começaremos. Há
três entradas para o Bonaventure: uma pela rua Figueroa e
outras duas através de jardins suspensos do outro lado do
hotel, construído na ladeira que restou do que antes, foi a
colina Beacon. N ada disso se parece com os antigos toldos de
hotel ou o monumental porte-cochère com que as suntuosas
construções, há não muito tempo, costumavam representara
passagem da rua para o antigo interior. As vias de acesso ao
Bonaventure são o que antes se considerava como entradas
laterais ou dos fundos; os jardins ao fundo levam ao sexto
andar das torres e, mesmo aí, é preciso descer um lance de
escadas para encontrar o elevador pelo qual se tem acesso ao
lobby. Por outro lado, aquela que ainda estamos tentados a
considerar como a entrada principal, na rua Figueroa, recebe
o visitante, com suas bagagens e tudo mais, no mezanino do
segundo piso, de onde é preciso descer pela escada rolante
até o balcão de atendimento principal. Tratarei daqui a pou­
co desses elevadores e escadas rolantes. O que eu gostaria de
sugerir em primeiro lugar a respeito desses acessos curiosa­
mente não demarcados é que eles parecem ter sido impostos
por alguma nova categoria de fechamento que rege o espaço
interno do próprio hotel (e isso apesar das restrições mate­
riais sob as quais Portman teve que trabalhar). Creio que, junto
P Ô S - M O D E R N I S M O I S O C I E D A D E OE C O N S U M O

com um certo número de outros edifícios caracteristicamen-


te pós-modernos, tais como o Beaubourg, em Paris, ou o Eaton
Center, em Toronto, o Bonaventure aspira a ser um espaço
total, um mundo completo, um tipo de cidade miniatura (e
eu gostaria de acrescentar que a esse novo espaço total
corresponde uma nova prática coletiva, um novo modo no
qual os indivíduos se movem e se reúnem, algo como a práti­
ca de um novo tipo, historicamente original, de hipermassa).
Nesse sentido, então, a minicidade do Bonaventure de
Portman idealmente não deveria ter nenhuma entrada (uma
vez que a via de acesso é sempre a costura que liga o edifício
ao resto da cidade que o cerca), pois ele não quer ser uma
parte da cidade, mas, sim, o seu equivalente e o seu substitu­
to. Isso, entretanto, não é obviamente possível ou factível, o
que nos leva à minimização e à redução deliberadas da fun­
ção da entrada. Todavia, essa disjunção em relação à cidade
ao redor é muito diferente da dos grandes monumentos do
International Style; aí o ato de disjunção era violento, visível
e tinha um significado simbólico muito real— como nos gran­
des pilotis de Le Corbusier, cujo gesto separa radicalmente o
novo espaço utópico do moderno da malha urbana degrada­
da e decaída, a qual ele, desse modo, repudia de modo explí­
cito (embora a aposta do moderno era de que esse novo espaço
utópico, na virulência do seu Novum, se espalhasse por toda
a cidade e, por fim, a transformasse através do poder de sua
nova linguagem espacial). O Bonaventure, contudo, se con­
tenta em “deixar a decaída malha urbana continuar a ser em
seu ser” (para parodiar Heidegger); nenhum outro efeito —
nenhuma maior transformação protopolítica — é esperado
ou desejado.
Esse diagnóstico é, ao meu ver, confirmado pela pele de

33
A VIRADA CUITURAI

v id ro esp elh ad o do Bonaventure, cuja função pode ser pri­


m eiram en te in terp retad a com o o desenvolvimento de uma
te m á tic a d a tecnologia reprodutiva. Porém, em uma segunda
le itu ra , é possível querer ressaltar o modo pelo qual a pele de
v id ro repele a cidade lá fora, uma repulsa para a qual temos
an alo g ias nos óculos de sol espelhados, que tornam impossí­
v el a o seu in terlo cu to r ver os seus olhos e que, portanto, aca­
b a m d en o tan d o , não só um a certa agressividade em relação
a o o u tro , com o um poder sobre ele. Analogamente, a pele de
v id ro realiza um a peculiar dissociação do Bonaventure em
relação à sua vizinhança, a qual não chega sequer a ser algo
ex terio r, visto que, quando se tenta olhar para as paredes
ex tern as do hotel, não se pode ver o hotel mesmo, mas ape­
nas as im agens distorcidas de tudo o que o cerca.
G ostaria de dizer agora algumas palavras sobre as escadas
ro lan tes e os elevadores. Dada a sua real função de prazer na
arq u itetu ra de Portm an — em particular destes últimos, que
o a rtis ta d efin iu com o “gigantescas esculturas cinéticas”,
q u e p o r certo contribuem para boa parte do espetáculo e do
deleite do in terio r dos hotéis, especialmente nos Hyatts, onde
eles sobem e descem , sem parar, como grandes gôndolas ou
la n te rn a s japonesas — e dadas a ênfase e a atenção deli-
beradam ente concedidas a eles, creio que é preciso ver tais
“tran sp o rtad o res de pessoas” (termo do próprio Portman,
a d ap tad o de Disney) com o algo um pouco mais significativo
d o que m eros com ponentes funcionais de engenharia. Sabe­
m os que, em to d o caso, a recente teoria da arquitetura come­
ço u a se ap ro p riar das análises narrativas de outros campos e
a te n ta r ver as nossas trajetórias psíquicas, através de tais edi­
fícios, com o narrativas ou estórias virtuais, como caminhos
--•~/,«t e paradigm as narrativos, os quais o visitante é con-
PÓS - M 0 D E R N 1S MO E S O C I E D A D E DE C O N S U M O

vidado a preencher e a completar com o seu próprio corpo e


movimento. N o Bonaventure, todavia, encontramos uma in­
tensificação dialética desse processo. Parece-me que não ape­
nas as escadas rolantes e os elevadores aí passam a substituir
o movimento, mas também, e sobretudo, eles nomeiam a si
mesmos como os novos signos e emblemas do próprio movi­
mento (algo que se tornará evidente quando chegarmos à
questão sobre o que restou das formas mais antigas de movi­
mento nesse edifício, especificamente do próprio caminhar).
Aqui o passeio da narrativa foi ressaltado, simbolizado, rei-
ficado e substituído pela máquina de transporte, que se torna
o significante alegórico daquele antigo passeio que não nos é
mais permitido fazer por nós mesmos. Essa é uma intensifica­
ção dialética da auto-referencialidade de toda cultura moder­
na, que tende a voltar-se para si mesma e a designar a sua
própria produção cultural como o seu conteúdo.
Fico mais perdido quando se trata de comunicar a coisa
mesma, a experiência espacial vivida ao se sair desses disposi­
tivos alegóricos e entrar no lobby ou átrio, com a sua grande
coluna central, cercado por um lago em miniatura, tudo
posicionado entre as quatro torres residenciais simétricas com
seus elevadores, cercados por sacadas que sobem até o sexto
andar, culminando em uma espécie de teto de estufa. Sou
tentado a dizer que tal espaço nos torna impossível o uso da
linguagem de volume ou volumes, já que estes são impossí­
veis de se medir. Galhardetes pendurados espalham-se por
esse espaço vazio, de modo a, sistemática e deliberadamente,
desviá-lo de qualquer forma que possa se supor que ele te­
nha, ao passo que uma ocupação constante causa a sensação
de que o vazio aqui é absolutamente embalado, de que ele é
um elemento dentro do qual você próprio está imerso, sem

35
4
A V I R A D A CUL T URAL

nenhum resquício daquela distância que antes permitia a per- I


cepção da perspectiva ou do volume. Estamos nesse hi* í
perespaço, nossos olhos e corpos estão nele mergulhados, e,
se alguma vez houve a impressão de que a supressão da pro­
fundidade, observável na pintura e na literatura pós-mo*
dernas, seria algo necessariamente difícil de se obter na
arquitetura, talvez surja aqui a vontade de se ver essa imersão
atordoante como o equivalente formal no novo meio.
Não obstante, a escada rolante e o elevador são também, j
nesse contexto, opostos dialéticos. Podemos sugerir que o j
glorioso movimento das gôndolas do elevador seja uma com- j
pensação dialética para esse espaço preenchido do átrio — ;
ele nos dá a chance de uma experiência espacial radicalmente j
diferente, porém complementar: a de se elevar, passar atra- j
vés do teto e prosseguir do lado de fora, ao longo de uma das j
quatro torres simétricas, em um movimento no qual o refe- j
rente, a própria Los Angeles, se estende à nossa frente de j
$
modo espantoso, até mesmo alarmante. No entanto, até mes- j
mo esse movimento vertical é contido; o elevador leva-nos a j
um daqueles saguões de coquetel giratórios, no qual o visi- 1
tante, sentado, é mais uma vez passivamente girado, ao que j
lhe é oferecido um espetáculo contemplativo da própria ci- |
dade, agora transformada, pela janela de vidro, nas suas pró- !
prias imagens. !
Permitam-me concluir rapidamente tudo isso com umre- !
torno ao espaço central do próprio lobby (com a observação, ;
a propósito, de que os quartos do hotel são visivelmente mar­
ginalizados: os corredores nas alas residenciais são escuros e I
o teto, rebaixado, ou seja, depressivamente funcionais, ao |
passo que se percebe que os quartos — com freqüência I
redecorados — são de extremo mau gosto). A descida do ele* |

36

i
J
P Ô S - M O D E R N I S M O E S O C I E D A D E DE C O N S U M O

vador é bem impactante, caindo como chumbo, atravessando


o telhado e mergulhando no lago; contudo, o que acontece
ao se chegar lá é outra coisa, que eu só posso tentar caracteri­
zar como uma confusão devastadora, algo como a vingança
desse espaço sobre aqueles que ainda se esforçam para nele
caminhar. Dada a absoluta simetria das quatro torres, é quase
impossível orientar-se nesse lobby. Recentemente foram co­
locados avisos sinalizando direções através de códigos de co­
res, em uma tentativa simpática, mas antes de tudo desesperada
e reveladora, de restaurar as coordenadas de um espaço anti­
go. Tomarei como o mais drástico resultado prático dessa
mutação espacial o notório dilema dos lojistas que ocupam
os vários mezaninos: tem sido óbvio, desde a abertura do hotel,
em 1977, que ninguém consegue jamais encontrar uma des­
sas lojas e que, mesmo que se consiga localizar a butique pro­
curada, é muito pouco provável que se tenha tanta sorte de
uma segunda vez; em razão disso, os comerciantes estão de­
sesperados e todas as mercadorias estão a preço de liquidação.
Quando lembramos que Portman, além de arquiteto, é um
empresário e um empreendedor milionário, um artista que é
também um capitalista, não se pode deixar de sentir que algo
como um “retorno do reprimido” também aqui em questão.
Chego finalmente ao ponto principal, o de que essa últi­
ma mutação no espaço — o hiperespaço pós-moderno —
conseguiu, por fim, transcender as capacidades do corpo hu­
mano individual de se localizar, de organizar pela percepção
o seu entorno imediato e de mapear cognitivamente a sua
posição em um mundo exterior mapeável. Já sugeri que essa
disjunção alarmante entre o corpo e o seu meio ambiente
construído — que está para o atordoamento inicial do antigo
modernismo como as velocidades das naves espaciais estão

3 7
A VI RADA CULTURAL

para as dos automóveis— pode por si só permanecer como o *


símbolo do pós-modernismo, em analogia àquele dilema ain- |
da mais grave, que é a incapacidade de nossas mentes, ao j
menos por enquanto, de mapear a grande rede de comunica­
ção global, multinacional e descentralizada, na qual oos en- I
contramos presos como sujeitos individuais. I

A nova máquina |

Por recear que o espaço de Portman seja entendido como algo


excepcional, aparentemente marginalizado, ou ainda voltado
para o lazer como uma espécie de Disneylândia, gostaria de
passar à justaposição entre esse espaço de lazer, satisfação e
entretenimento (embora também de atordoamento) e o seu
análogo em uma área bem diferente, a saber, o espaço da guer- 1
ra pós-moderna, em particular a descrita por Michael Herr
em seu grande livro sobre a experiência do Vietnã, Dispatches.
As extraordinárias inovações lingüísticas dessa obra podem
ser consideradas pós-modernas pelo modo eclético no qual a
sua linguagem funde impessoalmente todo um leque de dia­
letos coletivos contemporâneos — em particular a linguagem
do rock e a linguagem negra —, no entanto, essa fusão é dita­
da por questões de conteúdo. Essa primeira terrível guerra
pós-modernista não pode ser recontada a partir de qualquer
um dos paradigmas tradicionais do cinema ou do romance de
guerra — na verdade, o colapso de todos os paradigmas nar­
rativos anteriores é, juntamente com o colapso de qualquer
linguagem compartilhada através da qual um veterano pode
comunicar tal experiência, um dos temas principais do livro e
pode-se considerar que ele abra espaço para toda uma nova
reflexão. O relato de Benjamin sobre Baudelaire e sobre o

38
PÓ S* M ODERN I S MO B S O C I E D A D E DE C O N S U M O

surgimento do modernismo a partir de uma nova experiência


da tecnologia urbana, que transcende todos os antigos hábi­
tos de percepção corporal, é, aqui, ao mesmo tempo singu­
larmente relevante e antiquado à luz deste salto decisivo, quase
inimaginável, na alienação tecnológica.

Ele era um recruta, um alvo móvel sobrevivente, uma verda­


deira criança da guerra, porque, à exceção de raros momen­
tos em que você era fixado ou abandonado, o sistema
funcionava de modo a mantê-lo em movimento, como se
fosse isso o que você supostamente desejasse. Pensado como
uma técnica para manter-se vivo, isso parecia não fazer sen­
tido algum, dado naturalmente que, em primeiro lugar, você
estava lá e queria ver de perto; começava firme e exato, mas,
ao passo que ia progredindo, formava-se um redemoinho,
porque, quanto mais você se movia, mais você via, quanto
mais você via, mais você se arriscava ao lado da morte e da
mutilação, e, quanto mais você se arriscava, mais você se
supunha abrindo mão de um dia como um ‘‘sobrevivente”.
Alguns de nós nos movíamos pela guerra tão loucamente
que não conseguíamos mais ver para que lado o percurso
nos levava, víamos apenas a guerra por toda a superfície,
com as suas penetrações ocasionais e inesperadas. Enquanto
podíamos ter helicópteros nos servindo de táxi, era preciso
uma verdadeira exaustão, uma depressão beirando ao cho­
que ou uma dúzia de cachimbos de ópio para nos manter­
mos ao menos aparentemente tranqüilos. Mesmo assim, ainda
continuaríamos correndo de um lado para o outro dentro de
nossa própria pele, como se algo estivesse querendo nos pe­
gar, ah, ah, La Vida Loca. Nos meses seguintes ao meu retor­
no, as centenas de helicópteros nos quais tinha voado
começaram a se reunir até formarem um meta-helicóptero
e, na minha mente, essa era a coisa mais sensual do momen-

3 9
A VI RADA CULT URAL

to; salvador-destruidor, provedor-dissipador, canhoto-des. ;


tro, ágil, fluente, astuto e humano; ferro quente, graxa, te- !
cendo a tela da selva saturada, o suor esfriando e novamente í
se aquecendo, a fita cassete de rock and roll em um ouvidoe l
o tiro de fuzil no outro, combustível, calor, vitalidade emor- |
te, a morte em si mesma, dificilmente um intruso.2 I

Nessa nova máquina, que não representa movimento, como


na antiga maquinaria modernista da locomotiva e do avião,
mas que só pode ser representada em movimento, concentra-
se algo do mistério do novo espaço pós-modernista.

A ESTÉTICA DA SOCIEDADE DE CONSUMO

Para concluir, devo agora tentar caracterizar a relação desse


tipo de produção cultural com a vida social neste país hoje.
Esse também será o momento para me dedicar à principal
objeção a conceitos de pós-modernismo do tipo que esbocei
aqui, a saber, que todos os aspectos que enumerei não são
absolutamente novos, mas, sim, características abundantes no
próprio modernismo ou no que eu chamo de alto modernis­
mo. Não foi então Thomas Mann um interessado na idéia do
pastiche e não foi o capítulo de Ulisses, “Os bois do Sol", a
sua realização mais óbvia? Não podem Flaubert, Mallarmée
Gertrude Stein ser incluídos em um relato de temporalidade
pós-modernista? O que há de tão novo em tudo isso? Será
que nós realmente precisamos de um conceito de pós-moder­
nismo? I
Um tipo de resposta a essa pergunta levantaria toda a ques­
tão da periodização e de como um historiador (literário ou

4 o
P Ô S - M O D E R N I S M O E S O C I E D A D E OE C O N S U M O

não) propõe uma ruptura radical entre dois períodos, a partir


de então distintos. Devo limitar-me a sugerir que rupturas
radicais entre períodos em geral não envolvem mudanças
completas de conteúdo, mas, ao contrário, a reestruturação
de certos elementos já dados: aspectos que em um período
ou sistema anterior eram subordinados agora se tornam do­
minantes, e aspectos que tinham sido dominantes tornam-se
agora secundários. Nesse sentido, tudo o que descrevemos
aqui pode ser encontrado em períodos anteriores, notada-
mente dentro do próprio modernismo. Meu argumento é de
que até hoje esses têm sido aspectos secundários ou menores
na arte modernista, muito mais marginais que centrais, e de
que temos algo novo quando eles se tornam os aspectos cen­
trais da produção cultural.
Isso pode ser argumentado de modo mais concreto ao
nos voltarmos para a relação entre a produção cultural e a
vida social em geral. O modernismo antigo ou clássico era
uma arte de oposição, surgiu no interior da era de ouro da
sociedade do negócio como algo de escandaloso e ofensivo
ao público da classe média — feio, dissonante, boêmio, sexual­
mente chocante. Era algo para ser ridicularizado (isso quan­
do a polícia não era chamada para confiscar os livros ou fechar
as exposições), uma ofensa ao bom gosto e ao senso comum,
ou, como disseram Freud e Marcuse, um desafio provocativo
à realidade reinante e aos princípios de conduta da sociedade
de classe média do início do século XX. O modernismo em
geral não combinava com o mobiliário rebuscado da época
vitoriana, com os seus tabus morais ou com as convenções da
sociedade bem-educada. Isso significa dizer que, fosse qual
fosse o conteúdo político explícito dos grandes representan­
tes do alto modernismo, eles sempre foram, em seus aspectos

4 1
A VI RADA CUL T URAL

mais implícitos, perigosos e explosivos, subversivos no inte­


rior da ordem estabelecida.
Se subitamente nos voltamos para o dia de hoje, podemos
medir a imensidão das mudanças culturais que ocorreram.
Não apenas Joyce e Picasso não são mais estranhos e repulsi­
vos, como se tornaram clássicos e agora nos parecem muito
mais realistas. Não obstante, há muito pouco, quer no con­
teúdo, quer na forma da arte contemporânea que a sociedade
contemporânea ache intolerável e escandaloso. As mais ofen­
sivas formas dessa arte — digamos, o punk, o rock ou o que é
chamado de material sexualmente explícito —•são todas to­
madas com certa complacência pela sociedade e, ao contrá­
rio das produções do antigo alto modernismo, fazem sucesso
em termos comerciais. Mas isso significa que, mesmo que a
arte contemporânea tenha os mesmos aspectos formais do
antigo modernismo, ela ainda assim mudou fundamentalmen­
te de posição dentro da nossa cultura. Em primeiro lugar, a
produção de mercadorias, em particular de vestimentas, mo­
biliário, edifícios e outros artefatos, está agora intimamente
ligada à mudança de estilo que deriva da experimentação ar­
tística. Nossa propaganda, por exemplo, é alimentada pelo
modernismo em todas as artes e inconcebível sem ele. Em
segundo lugar, os clássicos do alto modernismo são agora parte
do chamado cânone e ensinados em escolas e universidades
— o que, de uma vez por todas, os esvazia de todo o seu
antigo poder subversivo. Na verdade, um modo de marcara
ruptura entre os períodos e de datar o surgimento do pós-
modernismo é precisamente encontrado nisto: no momento
(pensado por volta do início da década de 1960) no qual a
posição do alto modernismo e sua estética dominante se tor­
naram estabelecidas na academia e, a partir de então, perce-
P Ó S - M O D E R N I S M O I S O C I E D A D E DE C O N S U M O

bidas como acadêmicas por toda uma nova geração de poe­


tas, pintores e músicos.
Porém, também é possfvel se chegar à ruptura pelo outro
lado, um modo que descrevo em termos dos períodos da re­
cente vida social. Conforme sugeri, tanto marxistas quanto
não-marxistas se depararam com um sentimento geral de que
em certo ponto, logo após a Segunda Guerra Mundial, um
novo tipo de sociedade começou a surgir (descrita de várias
maneiras como sociedade pós-industrial, capitalismo mul­
tinacional, sociedade de consumo, sociedade de mídia e as­
sim por diante). Novos tipos de consumo, a obsolescência
planejada, um ritmo ainda mais rápido de mudanças na moda
e no estilo, a penetração da propaganda, um nível de inser­
ção na sociedade, até então sem paralelo, da televisão e da
mídia em geral, a substituição da velha tensão entre a cidade
e o campo, o centro e a província, pela tensão entre o subúr­
bio e a padronização universal, o crescimento de grandes re­
des de estradas de alta velocidade e a chegada da cultura do
automóvel — esses são alguns dos aspectos que poderíam
parecer marcar uma ruptura radical com aquela antiga socie­
dade pré-guerra, na qual o alto modernismo ainda era uma
força subterrânea.
Acredito que o surgimento do pós-modernismo está in­
timamente relacionado com o surgimento desse novo momento
do capitalismo tardio de consumo ou capitalismo multina­
cional. Creio também que os seus aspectos formais expres­
sam de muitos modos a lógica mais profunda desse sistema
social particular. Entretanto, só serei capaz de demonstrar
isso em relação a um único tema maior, a saber, o desapareci­
mento do sentido de história, o modo pelo qual todo o nosso
sistema social contemporâneo começou, pouco a pouco, a

43
I
A V I R A D A CUL T URAL

perder a capacidade de reter o seu próprio passado, começou


a viver em um presente perpétuo e em uma mudança perpé­
tua» que obliteram as tradições do tipo preservado, de um '
modo ou de outro, por toda a informação social anterior.
Pensemos apenas na exaustão que a mídia traz para a notícia;
em como Nixon ou, ainda mais, Kennedy são figuras de um ;
passado distante de agora. É tentador dizer que a função pró­
pria da mídia jornalística é a de relegar tais experiências his­
tóricas recentes ao passado o mais rápido possível. A função
informativa da mídia seria, portanto, a de nos ajudar a esque­
cer, a de servir como os agentes e mecanismos de nossa am­
nésia histórica.
Todavia, nesse caso, os dois aspectos do pós-modemismo
sobre os quais me debrucei aqui— a transformação da realida-!
de em imagens e a fragmentação do tempo em uma série de
presentes perpétuos— são ambos extraordinariamente conso­
antes a esse processo. A minha própria conclusão aqui deveter
a forma de uma questão acerca do valor crítico da arte mais
recente. Há algum acordo sobre o fato de o antigo modemis- j
mo ter funcionado contra a sua sociedade por modos que são
diversamente descritos como críticos, negativos, contestatórios,
subversivos, oposicionistas e assim por diante. Será que algo
desse gênero pode ser afirmado sobre o pós-modemismo e o ■
seu momento social? Vimos que há um modo pelo qual o pós- j
modernismo responde ou reproduz — reforça — a lógica do!
capitalismo de consumo; a questão mais significativa é se há
também um modo pelo qual ele resiste a essa lógica. Mas essa
é uma questão que devemos deixar em aberto.

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