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Nizia Vil/aça
UFRJ
Reitor Paulo Alcantara Gomes
Vice-reitor José Henrique Vilhena de Paiva
Coordenadora do Fotum
de Ciência e Cultura Myrian Dauelsberg
EDITORA UFRJ
Diretora Heloisa Buarque de Hollanda
Editora-assis/ente Lucia Canedo
Coordenadora de produção Ana Carreiro
(00869
ISBN 85-7508-166-2
INTRODUÇÃO 7
Capa
Ana Carla Cozendey APELOS E APELAÇÕES DO CONTEMPORÃNEO 13
Revisão
Cecília Moreira
NOVAS SUBJETIVIDADES 33
TatianaTeixeira
Projeto Gráfico
janise Ouarte ARTICULAÇÕES/DESARTICULAÇÕES 59
Editoração Eletrônica
janise Ouarte A FiCÇÃO CONTEMPORÂNEA E A ESTÉTICA DO SIMULACRO 71
Universidade Federal do Rio de janeiro
Forum de Ciência e Cultura o MICRORREALlSMO DO MíNIMO EU 101
Editora UFRj
Av. Pasteur, 250/sala 106 - Rio de janeiro o OLHAR BARROCO 11 9
CEP: 22.295-900
Tel.: (021)295-1595 r.124 a 127
Fax: (021) 542-3899 OS PARADOXOS DO CONTEMPORÂNEO 157
Introdução
I'I\KAIJOXOS DO I·ÓS·MOIJERNO
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Num momento de crise de representação, o escrever e a Após o que chamaríamos de um balanço do contemporâ-
figuração do sujeito e do objeto oscilam incessantemente IU"O, seus apelos modernos e posmodernos, fazemos a leitura
entre o estímulo de criar, inventar, e o vazio e a impotência, ri!' alguns tipos de subjetividade na ficção contemporânea e
ao sabor da exacerbação crítica de tipo niilista, ou do sau- ~u.1s implicações, a partir de um tratamento transdisciplinar.
dosismo de tipo conservador. Há ainda o trânsito na indiferen- I ),1 reflexão sobre os modos de narrar que freqüentam a
ciação de uma visão transestética, onde a arte desaparece ( ontemporaneidade, sobre o tipo de saber possuído por aque-
como pacto simbólico, na impossibilidade de distinguir-se da lt' ou aqueles que narram, seu maior ou menor controle do
produção de outros valores culturais. Fim do padrão-ouro do universo ficcional, sobre a estrutura actancial, a distribuição
julgamento, do prazer estético. espacial, a ordem temporal, enfim, sobre a estética do olhar,
Tentei articular a visão do narrador, como é tratada na procuramos inferir que ficções a respeito da subjetividade, a
teoria literária, com alguns tipos de subjetividade que fre- respeito da relação homem/mundo, freqüentam esta ou aque-
qüentam as discussões acadêmicas ou os media sem que a la obra. Oerrida nos ofereceu pistas ao falar da solidariedade
importação destes saberes descaracterizasse a especificidade sistemática de certos conceitos e idéias como objetividade,
dos textos abordados. verdade, ideal idade e outros, apontando para uma matriz
Fala-se em sujeito fraco, sujeito plural, máscaras do comum: a metafísica de presença, que teria marcado de
sujeito, sujeitos tribais, no indivíduo sem sujeito, no eu várias formas a produção literária através dos tempos.
mínimo, no sujeito como produção, no quase-sujeito e, pa- A escolha das obras estudadas obedeceu a critérios de
ralelamente, na queda dos grandes relatos, massificação, diversas ordens, havendo como preocupação central que fossem
indiferenciação, simulacro e sedução. É neste aparente pertinentes para apontar algumas das tendências deste final
caos que procuro pistas para pensar as configurações de de milênio, que se esboça entre apocalíptico, niilista e
subjetividade na literatura dos anos 80 e início dos 90, esperançoso de uma nova política e uma nova ética.
período marcado por grandes mudanças nas relações sociais,
NOTAS
pela queda do modelo militar ditatorial e pela abertura po-
lítica. O caos não me parece um mau lugar para a reflexão, o uso do termo posmoderno sem hífen visa a acentuar o para-
doxo contido na terminologia escolhida para denominar inúme-
já que mesmo no campo das ciências exatas, mais precisa- ros campos do saber contemporâneo.
mente na física, a teoria dos fractais já encontra formas de Palestra Pós-Modernidade, mudanças na subjetividade, na série
medi-lo, fugindo à geometria euclidiana. de conferências realizada pela autora no Forum de Ciência e
Cultura, Rio de Janeiro, RJ - 1981.
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desenvolvimento não é tarefa simples, sobretudo porque as ciência/técnica), tornam cada vez mais difícil a articula-
datas do início do processo de industrialização nos diferentes ção entre elas e sua interpenetração na experiência do
países não coincidem. Não obstante, Souza Santos aponta Lebenswelt, como diria Haberrnas'.
três períodos:
Se isto fica patente na vinculação da ciência com o mercado,
Capitalismo liberal, compreendendo todo o século XIX.
na racionalização formal do direito e no elitismo da alta
Capitalismo organizado, a partir do final do século XIX até cultura, por outro lado o pilar de emancipação foi também,
as primeiras décadas depois da Segunda Guerra, fase também
neste período, o princípio organizador de manifestações que
chamada por outros autores de "monopolista de Estado".
usavam a global idade, como o idealismo romântico, o grande
Capitalismo desorganizado (tardio para alguns), referido à romance realista, os projetos socialistas radicais, buscando
contemporaneidade.
reconstruir o projeto pela realização dos ideais de autono-
Traçando os respectivos perfis, no primeiro período o projeto mia, identidade, solidariedade e subjetividade.
de modernidade surge como ambicioso e contraditório, as- Ao contrário deste primeiro período, cujo pecado foi o
sombrando o futuro com um déficit irreparável. A tentativa excesso, no segundo período, ou seja, no capitalismo orga-
de harmonizar os princípios do Estado, do Mercado e da nizado, busca-se eliminar os déficits por uma estratégia de
Comunidade decompõe-se no desenvolvimento sem prece- concentração/exclusão. É o máximo de especialização e
dentes do mercado, na atrofia quase total do princípio da
diferenciação funcional nos diferentes campos e o desejo
comunidade e no desenvolvimento ambíguo do Estado. De- de deixar de fora o que não pode ser compatibilizado. Po-
lineia-se o grande dualismo Estado/sociedade civil. Crescem liciam-se as fronteiras, evita-se a contaminação. A arte se
a legislação do Estado, as estruturas administrativas para fazer autonomiza, o Estado se separa mais do cidadão, articulando-
prosperar, contraditoriamente, o princípio do laissez-faire, se ao mercado. O capital industrial financeiro e comercial
que preconizava o mínimo de Estado.
concentra-se. Prol iferam os cartéis. Em troca, a sociedade se
O pilar da emancipação, segundo o autor, ainda é mais organiza em práticas de classe. Sindicatos e associações
ambíguo durante o capitalismo liberal:
patronais disputam o espaço político anteriormente negocia-
É certo que cada uma das três lógicas se desenvolve do entre os partidos burgueses e as 01 igarqu ias. Este processo
segundo processos de especialização e de diferenciação ameaçado por alguns momentos como a Revolução Russa
funcional tão bem analisados por Weber (1978)/ proces- , no nível estético-expressivo, os movimentos vanguardistas
sos que, ao mesmo tempo que garantem a maior auto- do princípio do século, manifestações que posteriormente
nomia a cada uma das esferas (arte/literatura/ética/direito/ foram liqüidadas pelos fascismos de direita e esquerda ou
I'I\RAI>OXOS DO I'()S-MOIHRNO
1/1 Apelo s e apelações do c o n t em p orê n eo
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uma hibridação com a alteridade de modo a manter uma boa ni\ltllizado sob a rubrica que já começa a cansar. Se a marca,
performance. A estética do grotesco funcionaria neste senti- a grife, já morreu, como tantas outras mortes e ressurreições
do, por procurar hibridar o modelo de modernização primei- 11(' nosso contemporâneo (ideologia, história, sexualidade,
ro-mundista com formas periféricas pré-modernas. Evita-se sujeite), os sentidos que ela é capaz de abrigar e suscitar
assim a rejeição do transplante dos referenciais primeiro-
1'\1.10 aí e por isso, e por certa comodidade, falaremos ainda
mundistas e a artificialidade de seu deslocamento aleatório.
d(' posmoderno e posmodernidade, admitindo, com Antoine
É neste horizonte, na linha que vai do niilismo à esperança,
( ompagnon, o caráter paradoxal contido na nomenclatura.
da indiferenciação às reconfigurações, que se instala o que
"Há um paradoxo flagrante do pós-moderno que preten-
vem sendo chamado de produção posmoderna nos mais di-
de acabar com o moderno e que, rompendo com ele, repro-
versos campos do saber e das artes.
du/ a operação moderna por excelência: a ruptura."
Também neste caminho de não abrir mão do espírito crítico,
A polêmica em torno do assunto aumentou consideravel-
apesar de toda a aceleração e complexidade do contempo-
râneo, estão Alain Touraine e David Harvey. O primeiro chama mente nos anos 80 e hoje planetarizou-se e vulgarizou-se. As
a atenção para o fato de que a modernidade não pode ser idéias estão em órbita ou, quem sabe, exorbitaram.
apenas identificada com o excesso de racionalização. Lembra As discussões inicialmente trabalharam repetidamente a
que é neste mesmo momento que, na trilha aberta por Nietzsche questão da existência ou não de ruptura com o período moderno
e Freud, o sujeito é chamado a se situar como lugar de defesa (até finais de 50), havendo a este respeito tanto a aceitação
da liberdade contra os radicalismos de esquerda ou direita. quanto a negação do corte, posturas otimistas ou apocalípticas.
Aos pólos de racionalização une-se, pois, contraditoriamen- A visão da posmodernidade como ruptura é defendida a
te, o da subjetivação'. David Harvey, em seu neo-marxismo, parti r de filosófos e sociólogos como Lyotard, Baudri lIard,
também insiste na manutenção da análise crítica por parte de [arneson, Maffesoli, sem falar daqueles que, não se ocupando
um sujeito reflexivo, apesar das dificuldades advindas da diretamente da questão, foram adotados pelos adeptos da
compressão do espaço/tempo contemporâneos'. posmodernidade: Heidegger, Nietzsche, Deleuze, Foucault e
Derrida, pela maneira como efetuam a leitura da modernidade
A MARCA E O PRODUTO POSMODERNOS enquanto crítica da razão, crítica da moral, vistas como ins-
O termo "posmoderno", em curso há uns vinte anos, apesar trumentos de desvitalização e esvaziamento.
da confusão e resistências que suscitou, veio para ficar e tem Entre os que visualizaram o novo perfil epistemológico de
marcado uma época sem que seu sentido esteja minimamente forma positiva está Lyotard, apontando o fim dos grandes
I'I\KI\IJOXOS DO I'ÚS.MODU:NO
Apelos e apelações do contemporâneo
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relatos e a possibilidade de a legitimidade ser alcançada pelo '(I posmodernos, esquizofrênicos, via Nietzsche e Deleuze, ou
dissenso, não mais pelo consenso, como propõe Habermas a arornos do consumo e do movimento com Baudrillard e Virilio.
propósito da modernidade. Para ele, o posmoderno refina
PÓS-TU DO/MU DO
nossa sensibilidade para as diferenças e reforça nossa capa-
cidade de suportar o incomensurável'. Da mesma forma, Michel A articulação moderno/posmoderno, suas identidades
Maffesoli" vê com interesse o surgimento de novas formas de t' diferenças nos campos social (articulações entre econo-
social idade de dominância empática e o declínio da noção mia, comunidade e Estado) e cultural (considerações sobre
de indivíduo, substituído na contemporaneidade pela noção .ute, saber e moral) atravessa as disputas do contempo-
de persona, mais adequada à sucessão de máscaras que vão r;\neo. Na verdade, convém lembrar que os dois pólos não se
assu m indo os participantes das diversas tribos que se articu- opõem como antigos e modernos, como bem sublinha lacques
lam e entrecruzam no quotidiano atual. I ecnhardt". O paradigma proposto pela famosa "Querela"
Outros autores, entretanto, vêem como a verdadei ra vo- l.mçada por Charles Perrault, em 1688, organ izara-se em torno
cação da contemporaneidade a recuperação dos ideais da da noção de novo enquanto marca de aperfeiçoamento. Nas
modernidade numa postura de viés iluminista (Merquior e artes, como nas ciências, a idéia moderna fundamental era a
Rouanet, entre os brasileiros) ou enfatizam a importância de ele ultrapassagem, identificada com o processo dialético. A
se recuperar não o racional, mas a experiência, a vivência do novidade era cumulativa. A questão entre os antigos e os
indivíduo, a emoção (Eduardo Subirats), retomando o primei- modernos estava inscrita no caráter progressista da modernidade:
ro modernismo antes que ele se esclerosasse, a serviço de progresso das Luzes, da Razão, das Ciências etc .. A Huma-
movimentos de direita, ou sob as injunções da produção in- nidade pensava-se a si mesma enquanto instrumento de re-
dustrial, com a perda do valor utópico das vanguardas. velação da verdade: o reino da História ativa, por oposição
O fato é que em torno desta discussão que vai da ruptura à Antiguidade, que tinha uma visão naturalista e cíclica do
ao continuísmo, do otimismo ao apocalipse, multiplicam-se mundo.
as visões num verdadeiro nominalismo do mundo contemporâ- Já o posmoderno procura um espaço que escape de uma
neo. Fomos cínicos com lurandir Freire, trágicos e alegres visão consecutiva e totalitária, visão que fuja do paradigma
com Clement Rosset, pessimistas positivos na leitura de L. C. das revoluções e das vanguardas. Bonitto Oliva, teórico das
Mansur, ceticistas ativos com Wilson Coutinho, sem qualida- artes plásticas, aposta na transvanguarda como única opção
des a partir de Musil, medíocres e coloridos com Gianotti. de contemporaneidade, permitindo, via citação, a recupera-
Sempre na gangorra. Se modernos, iluministas, habermasianos. ção dos modelos longínquos sem qualquer identificação e,
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portanto, sem a alienação que esta implicaria. Julga que Se pensarmos em revolução como o grande termo do
este movimento nasceu da urgência de unificar níveis da l1\Odernismo, vemos como se instala na atualidade um
cultura, de Vl'rdadeiro processo de desconstrução do mito humanista do
progresso revolucionário. Dinamita-se nos campos social,
1•.. 1 levar a uma combustão completa os resíduos se-
polltico e artístico o conceito de revolução como motor
parados sobre que operaram precedentemente os artistas
Ideológico. No subcampo literário, muitas vezes é a partir
uas neovanguardas acreditando poder prosseguir na linha
d,\ narrativa da própria revolução que se põe em causa o
de experimentação assinalada pelas vanguardas históri-
111110pela multiplicidade contraditória dos discursos de
cas.'"
progresso ou pela confrontação dos ideais universalistas
Esta discussão em torno da possibilidade das vanguardas
. orn as situações locais e particulares.
tem animado a mídia, mas julgamos que a novidade deixou Jacques leenhardt fala em "distração" como o pathos do
de ser revolucionária, tornou-se elemento estável do sistema ( ontemporâneo e Vattimo discorre sobre o pensamento fraco.
a par da capacidade dos homens para permanente mudança lulgamos que esta é apenas uma das trilhas do posmoderno.
nos seus meios de produção. Hoje a História, de certa forma, I ('cnhardt, na realidade, se contradiz quando emprega "dis-
se enfraquece ou, se preferirmos, se faz diversamente, sem a II,Ição" para referir-se à vontade "fortemente manifestada de
imposição evolucionista, com uma liberdade maior na reto- preferir o erro à verdade e mesmo a mentira ao verdadeiro"12,
mada ou na releitura dos "momentos" tidos como oficiais do fugindo ao comprometimento e ao constrangimento de um
passado. «sterna de seriedades considerado sempre mais obsoleto.
A lógica da razão técnica desenvolve-se progressivamente Andreas Huyssen, em artigo intitulado Mapeando o pós-
ao longo do pensamento ocidental, coincidindo, então, como moderno". esboça um itinerário do movimento durante as
assinala Vattimo!', com a máxima exposição da metafísica, e d('cadas de 60 e 70/80, referindo-se sobretudo ao contexto
cristaliza duas identidades tão densas quanto antagônicas e I\orte-americano. O posmodernismo dos anos 60 teria tentado
complementares: sujeito e objeto. O século XIX, culminando H'vitalizar a herança da vanguarda européia e dar-lhe uma
com Nietzsche, tentará deslocar-se deste lugar não através de forma norte-americana em torno do eixo Duchamp-Cage-
uma síntese de tipo hegeliana, mas através de um outro Warhol. A posmodernidade nos anos 60 reagia contra o alto
questionamento do sujeito e do objeto, uma minoração, um modernismo, seu funcionalismo, sua despolitização do pós-
trabalho de eufemização que deságua no estuário da produ- guerra, contra o abandono da fusão arte/vida orientadora das
ção posmoderna no século XX. vanguardas. O posmoderno dos 70 se desdobrou em duas
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'I/,P/()' c apelações do conlemporAneo
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