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UBUNTU (SHARING)

Denise Zenicola
Professora Adjunta da Universidade
Federal Fluminense – UFF.

Resumo: A proposta é estender um olhar sobre a arte coreografada das chamadas Danças Afro Brasileiras.
Nestas percebe-se a presença de noções culturais Banto e Iorubá na ação e construção do corpo do bailari-
no. São histórias em um corpo biológico que, ao praticar formas espetaculares de danças, revela também a
história de um corpo cultural, tradicional e contemporâneo.
Palavras-chave: dança, performance, corpo.

Abstract: The proposal is to look at those choreographed arts called Afro Brazilian Dances. There it is possi-
ble to perceive the presence of Banto and Yoruba cultural notions in the action and the construction of the
dancer´s body. These are histories in a biological body that, upon the practice of spectacular forms of dance,
also reveals the history of a contemporary, traditional, and cultural body.
Keywords: dance, performance art, body.

“Os atabaques rufam e os deuses, felizes, dançam, dançam os mitos antigos, dançam o fogo e sua ira, dançam a
frescura das cachoeiras cristalinas dançam a onda que quebra na praia, dançam a criação do mundo” (Cossard
apud LIGIÉRO, 1993, p. 10).

1. Sobre quem falamos? bailarinos, pesquisadores, ensaiadores e


intérpretes que trabalham com danças de

E
mbora estudos sobre culturas afro origens predominantemente Banto e Ioruba,
americana e brasileira tenham na cena. As chamadas Danças Afro Brasileiras
considerável aprofundamento teórico que apresentam performances de releituras
ao analisar rituais e associações étnicas e, corporais africanas, promovem enraizamento
até hoje, ainda recaia maior atenção nestas social e contribuem “para a manutenção de
áreas de pesquisa, outros estudos mais um ethos negro”. (FRIGÉRIO, 2003, p. 63) O
tardiamente enveredam para a não as menos termo circuito social aqui utilizado refere-se,
importantes áreas artísticas. Destacamos especi icamente, ao grupo social praticante
mais especi icamente, as relações de danças de dança afro brasileira na atualidade, na
coreografadas ou não, apresentadas no cidade do Rio de Janeiro, não exclusivamente
palco em situação de espetacularidade negro, porém em sua grande maioria. É este
cênica. Falamos neste artigo de um circuito corpus societal que estrutura e mantém o
social atuante, formado por coreógrafos, conceito fundamental da dança chamada afro

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brasileira na cena, coreografada ou não. E, na centro da individualidade, ori-inu, ma-


nifestação do duplo sagrado, que pro-
prática, apresenta no alinhamento corporal, vém de substância divina, da qual os
a relação considerada ideal entre as partes próprios deuses são tributários. (1983,
p. 62)
do corpo para estabelecer ações da estética
da dança negra. As motivações corpóreas
2. Somar como princípio do bem
dos movimentos e as diferentes posições que
este corpo possa assumir das formas mais
A ação humana, na iloso ia Banto, está
diferenciadas vão transmissão a tradição e
ligada ao conceito de “acrescentar”, somar,
transmutação destas culturas tradicionais.
agregar como princípio do bem. As invocações
É este grupo social que mantém as
dos ancestrais objetivam aumentar a energia
técnicas de estilos de dança e desenvolve as
através do acréscimo desta possibilidade de
formas peculiares de se performar a dança.
soma para icar mais forte. O mal é “diminuir”
A construção do corpo emblemático-social
o ser e estar separado e isolado dos seus. Estar
tem, então, sua manutenção preservada neste
doente é diminuir e isolar, é enfraquecer
corpo e torna-se um processo transformativo
e expor. Segundo Tempels, a concepção de
em re-de inições em constante movimento
mundo e dos povos Bantos apresenta uma
e diálogo, em constantes atualizações, o que
iloso ia meta ísica onde “ninguém é um ser
vai possibilitar a compreensão das normas da
isolado”. (apud LOPES, 1988, p. 123) Neste
organização cultural.
sentido, o ato de trabalhar em grupo de uma
Para se entender a importância do
maneira geral contempla este aspecto da
corpo humano nas culturas africanas, cito a
inclusão: seja no grupo que se reúne para
estética Ioruba como exemplo, que dimensiona
ensaiar, pesquisar ou dançar. A certeza que
com e iciência a relação dança e corpo. Para
“ninguém é um ser isolado” guarda ainda o
o Iorubá, o corpo é um microcosmo e nele
aspecto da necessidade de coletivo para a ação
estão contidos todos os elementos e forças da
de construir o indivíduo.
natureza que, distribuídos harmoniosamente
Os grupos das danças afro brasileiras,
pelo corpo, explicam a sua mitologia. Segundo
populares e urbanos continuam mantendo
Augras:
seus próprios espaços de reconhecimento e
Os pés apoiam-se no concreto, no bar- interação. Desta forma, a prática do grupo
ro de onde saiu e para onde voltará, na
terra que os antepassados pisaram e vai se estabelecer como uma comunidade
à qual retornaram. O pé direito cor- especí ica, vinda de diversos pontos da cidade
responde à herança dos antepassados
masculinos, e o pé esquerdo, à herança e de classes sociais distintas. O bailarino
feminina. As mãos, direita e esquerda,
atuam sobre o mundo e transformam se reúne e agrega para praticar sua dança,
as coisas. A cabeça, que reproduz as criando núcleos eventuais e ou duradouros
quatro dimensões do espaço, contém,
na interseção dos pontos cardeais, o de a inidade. Além do sentido de grupo estes

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indivíduos ajudam-se constantemente através característica da performance afro americana
de redes de comunicação seja para convites de e presença marcante em países das Américas.
trabalho, festas, ensaios de alas em escolas de Desta forma, ser parte do todo, como também
samba, rodas de samba, shows e muito mais... ter um estilo, assume uma dimensão de marca
Cito neste caso o Grupo Ilê Ofé de Charles e distinção, além de alcançar variados aspectos
Nelson que completa uma expressiva trajetória da vida.
de mais de vinte anos de atuação ininterrupta Os princípios de estilo individual e
na cidade do Rio de Janeiro. grupal têm igual importância na dança afro
Os encontros podem ser percebidos brasileira. A relação grupo/indivíduo é
como novos centros de interação, um lugar permeada por níveis hierárquicos de prestígio,
onde é possível também aprofundar e de inir baseada na performance da dança. A qualidade
sempre novos per is de identidade e sentido da SUA performance é a moeda corrente do
comunitário. dançarino no grupo, daí a importância de
A Dança Afro Brasileira tem acesso a apresentar um estilo que o identi ique e o
centros de encontro na cidade e traça linhas alavanque no espaço social.
de uma nova geogra ia cultural. Como cultura Ao assumir os conhecimentos
popular expande seu universo; suas crenças, ensinados, o bailarino vai progressivamente
saberes e, lealdades se recon iguram, o tempo estabelecendo uma série de adaptações desta
da cidade sincroniza o tempo desta dança. nova técnica ao seu corpo, às suas habilidades
São comportamentos resultantes de e preferências e, gradativamente, estabelece
variadas cadeias de encontros com a sua uma seleção do que será o seu estilo, sua
própria cultura. Sem dúvida, a existência interpretação pessoal do aprendido – o resto
de formas de entrelaçamentos na rede de virá da prática.
comunicações de diversas culturas existentes O somatório da seleção destas
na cidade, alimenta e dá apoio e icaz na troca qualidades corporais fundamenta a construção
das informações e mudanças. do chamado ‘estilo’ do ato de dançar.
Entendemos estilo como uma especi icidade

3. O estilo próprio do que é próprio, onde o que é construído no


corpo não é facilmente transferido para outro

Na dança afro, um performer deverá corpo, é a marca daquele indivíduo no grupo.

não só ser competente mas também “possuir Finalizo este tópico ressaltando então

um estilo próprio”. Esta marca delimita sua o solo de Exu de Ruben Barbot, na abertura

singularidade e acentua o valor do grupo e do espetáculo Orixás dirigido por ele, a Iansã

do indivíduo integrante deste grupo. O estilo de Valéria Monã, na peça teatral Besouro

pessoal é ressaltado, por Frigério, como uma Cordão de Ouro e o solo de Obaluaiê de Débora
Campos em O Rio de Muane. São três exemplos

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de solos, performances espetaculares e ao e recobrando-o com uma série de ajustes


mesmo tempo danças tradicionais de Orixás sucessivos.
da cultura iorubana que, nos corpos destes Trata-se de ações conjugadas e uma
interpretes, assumem características únicas, série de acomodações para impedir a
marcas pessoais, que os diferenciam de outros queda. A coreogra ia é a possibilidade de,
que venham dançar estas danças rituais. a cada movimento executado, existir uma
multiplicidade de eixos corporais alterados
4. O desequilíbrio de seu ponto de equilíbrio e sustentação.
São pontos de equilíbrio alterados e em
Na tradição Congo, a posição inclinada deslocamento e reajustes constantes. O corpo
para frente, (yinama) no círculo da dança, passa a coexistir com sua precariedade e
re lete o desejo de dançar com o parceiro, a transitoriedade. A beleza da dança vem
intenção de seguir o parceiro como também justamente deste constante passar do
a intenção de agradecimento (THOMPSON, equilíbrio para o desequilíbrio e das formas
2002, p. 124). Esta alteração representa uma encontradas para restabelecê-lo. O corpo
mudança proposital da posição cotidiana no assume a sua precariedade, ao colocar em
sentido de reduzir a base de apoio dos pés. A dúvida seu próprio eixo de equilíbrio.
“alteração do equilíbrio cotidiano à procura
de equilíbrio precário ou de luxo”, segundo 5. A sensualidade da dança afro
Eugenio Barba. O centro de gravidade é
alterado, o sentido muscular cria uma série A forma de dançar revela uma
de tensões especí icas, em grupos musculares sensualidade perceptível pela movimentação
complementares, para tentar minimizar do quadril ou “virtualidade pélvica” em que os
a possibilidade de queda, provocada pelo movimentos laterais bruscos e o balanço do
deslocamento acentuado. O desequilíbrio corpo icam acentuados (THOMPSON, 2002, p.
provocado acaba por criar um “drama 173)
elementar” em oposição; isto é, novas tensões A sensualidade, tônica presente, muito
musculares são promovidas em oposição às discutida e censurada e até proibida primeiro
tensões provocadas pelo equilíbrio alterado no Lundu, e depois no Maxixe, nas coreogra ias
– o equilíbrio em ação. O equilíbrio é o de palco é ainda mais evidenciada e hoje já
resultado de “uma série de inter – relações aceita. Observa-se então uma antagonia da
e tensões musculares do nosso organismo” dança afro ao padrão ariano da dança clássica.
(BARBA, 1995, p. 36). Cada movimento Nesta última, o quadril ica literalmente
passa a reconstruir o dinamismo como uma encaixado e contido para permitir maior
reação automática que mantém o equilíbrio movimentação das pernas. Os ombros são
não de maneira estática, mas perdendo-o alinhados e alongados para baixo para que

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os braços movimentem-se em cinco posições seu reino de origem, com re inados traços
permitidas. identitários. Eles são haveres indestrutíveis
Já na dança Afro brasileira, a liberdade porque portam seus valores (THOMPSON,
de movimento de quadril e ombros cria um 2002, p. 27).
eixo marcado em sintonia e cinestesia. Cria- Nas tradições africanas, e para o
se uma in inidade de linhas em movimentos povo Banto em particular, o corpo é um
sinuosos que expressam controle e domínio do microcosmo e o princípio ilosó ico de
corpo. Um eixo sobretudo estético e sensual e personalidade constitui-se por quatro
que, partindo do quadril, vai realinhando em elementos no plano ísico e mítico. Estes
curvas e sinuosas a movimentação do corpo. quatro elementos comunicam através do
corpo como invólucro, como princípio
6. Por que dança afro biológico, pela sua ancestralidade e pelo
princípio social da vida. O corpo deverá então
A iloso ia africana Congo é transmitida operar dimensionando a existência como um
também por uma de inida linguagem de universo na busca constante de equilíbrio.
atitudes corporais. Os escravos trouxeram, no Este corpo e desdobrável em: o corpo como
corpo, a memória de seu reino e da sua cultura uma casca (invólucro corporal); o corpo em
para as Américas. Diversos pesquisadores seu princípio biológico (órgãos internos,
entre eles Fu-Kiau, Jansen, Thompson têm sistemas automáticos e psicossomáticos); o
estudado e con irmam a presença, da iloso ia corpo como princípio de vida e o corpo do
e cosmogonia Congo nas Américas, explicando espírito propriamente dito, substância imortal
a presença do homem na terra e seu destino, (Amenwusika Kwadzo Tay apud LOPES, 1988,
no tempo e espaço. Nesta cosmovisão, “o p. 126).
gestual integra e compõe esta herança” uma
vez que funciona como “porta (bimwelo) para 7. Afro e contemporâneo
a compreensão”. Os signos corporais traduzem
sentimentos e atos dos homens, são códigos A marca característica do movimento da
impressos no corpo de suas realizações dança afro brasileira, que é nascer a intenção
intelectuais e espirituais, memória de si e de da ação no tronco e expandir para os membros
seu grupo ancestral. é uma prática comum e observável em danças
Os gestos Congo são, em seu conjunto, de origem africana e um conhecimento
difusores através do mundo, como uma milenar. Já, na dança ocidental, Isadora Duncan
verdadeira revelação (mbonokono) inscrita no foi a primeira bailarina ocidental a levantar
corpo. Assim como os gestos clássicos da Índia, esta discussão. Duncan ressalta a existência
os mudras, ...os gestos próprios das religiões de um centro de irradiação do movimento
a da corte de justiça Congo levam mais longe na região do plexo solar, por entender que

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o movimento deveria nascer de onde as equilíbrio assumindo a perda de equilíbrio


emoções fossem experimentadas isicamente, e conseqüente retomada deste. A cada
obedecendo a uma “lógica emocional” e não movimento há um desalinhamento corporal,
“lógica mecânica”, atribuída à técnica do balé. das partes do corpo, que imediatamente tem
Para Isadora o movimento deveria nascer do que restabelecer este equilíbrio perdido,
tronco, entre o plexo solar e a pélvis. através de uma sucessão de realinhamentos.
Outra in luência marcante no Ocidente O que se observa é que um saber e
deste estudo é a de Delsarte (1811-1871). prática corporal milenar africano, o uso do
Para ele, o corpo, tanto do bailarino como tronco como gênese do movimento, passa a
do ator, tem uma relação corpo/expressão ser tardiamente o fundamento do princípio
estabelecida como fonte, no centro ísico da da expressividade do movimento “sobre o
emoção, a região do tronco. Este princípio qual toda a dança moderna está fundada”
seria posteriormente seguido por Mary (GARAUDY, 1980, p. 67).
Wigman, ao estabelecer o movimento Pode-se então a irmar que, nesta
partindo do tronco, na “dança expressão”, dança, as oscilações corporais são sempre
fruto de uma impulsão interna e, também por compensadas por tentativas de se voltar
Martha Graham, que partiu do princípio que o ao eixo para logo em seguida perdê-
movimento nasce no centro motor da vida e da lo de novo onde o corpo assume a sua
sexualidade, a região pélvica. Percebe-se que, o precariedade e duvida de seu próprio eixo.
fato do movimento nascer do tronco evidencia Estas características, acima descritas, podem
uma autonomia corporal que permite uma aparecer de forma isolada ou conjuntamente
série de movimentos em encadeamento e nos passos.
harmonia mutuamente durante a ação. Não Estes pontos ressaltados, de forma
se trata de usar o tronco como centro do associada ou isoladamente, estão sempre
equilíbrio estático, como um eixo vertical, que atuando de forma decisiva na estética da
compensaria a ação de pernas e braços. Uma Dança Afro Brasileira. As ações se estruturam
contenção que necessita manter o equilíbrio por mecanismos de auto-organização ou
centralizado neste eixo e as partes do corpo processos de emergência. A dinâmica postural
articulam-se sempre apoiadas nele; premissas apresenta uma prontidão para a mudança,
do Ballet Clássico. com a habilidade de manter o equilíbrio
Na dança afro e afro brasileira, o no acentuado desequilíbrio que os passos
tronco é uma força de equilíbrio que se provocam a todo momento; “o centro de
move. A coluna, por estar em movimento gravidade é deslocado”, logo “o apoio do corpo
constante, transforma o ponto de equilíbrio é removido sem que o centro de gravidade seja
do corpo num ponto móvel. Se mover em uma deslocado para qualquer direção do espaço”
determinada direção é deslocar seu ponto de (LABAN, 1978, p. 102).

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O que revela seu critério de e icácia é a uma categoria híbrida própria ao sistema
riqueza advinda da diversidade de níveis que social, no qual se insere.
determinam equilíbrios instáveis e suportes A postura identitária de bailarinos e
em apoios inusitados. En im, a sua ginga, a coreógrafos, por suas pesquisas e posturas
ginga que está no desequilíbrio. ideológicas pessoais, são, ao mesmo
Este eixo oscilante permite uma ginga tempo, vetores de globalização cultural
especí ica que transforma as formas do mover, e de etnicização local. E contribuíram
ver, criar e recriar a sua cultura. E, mesmo para a desterritorialização do conceito de
oscilante luido e mutante, estes movimentos África, para a sua transformação em um
fecham na sua transitoriedade, usando seus “universal particularizável” e para fazer da
conceitos no equilíbrio instável e dinâmico. África um “conceito-África [que] pertence a
Concluindo a dança afro brasileira, todos aqueles que quiserem, ligar-se nela”
praticada no palco é exemplar dessa análise da (AMSELLE, 1993, p. 50).
relação construída entre identidade e cultura, A história desta dança então é também
pela quantidade marcante de traços da estética a história da sua cultura, mas de uma cultura
afro brasileira. Ela permitiu mostrar que a estruturada e intencionada que extravasava
etnicidade afro urbana não é o pálido re lexo de initivamente a esfera do belo, para acentuar
de uma etnicidade originária, localizada num a esfera do grupal, quase tribal. Esses grupos,
longínquo universo africano e mais ou menos ricos de e icácia polêmica, quase quilombos
bem transplantada para o Brasil segundo um urbanos de arte, negam que a dança se resolva
princípio de continuidade cultural. Trata-se na consciência conceitual, na imitação da
de uma criação, um modo de classi icação natureza ou na emotividade sentimental.
social que hoje diríamos híbrido, e no qual Como grupos mantém uma coesão de estilos e
se combinam os determinantes advindos da embora volta e meia, geralmente por questões
África às relações raciais negros/brancos inanceiras, iquem sem a constância do
existentes em nosso país e a memória seletiva treinamento, dissolvam-se e reagrupem-se
das relações interétnicas anteriores. quando conseguem um patrocínio ou ainda
A dança Afro brasileira é, assim, fragmentem-se com a saída temporária de
o resultado bastante expressivo e elementos que vão a busca de pequenos
contemporâneo de todas essas informações - trabalhos, sempre que podem tal um bailado
misturando releituras, roupas, textos, cantos, mágico reagrupam-se e a tribo continua. E,
ritmos, trançados de cabelos, ios de conta, como tribos coesas, praticam uma dança de
tradição oral, sons em tribos. Estes reunidos, sentido, conhecimento e atividade espiritual;
constroem um corpo que re lete-se e produz uma dança que não é nem imitação servil, nem
uma dança “afro brasileira”, na medida em que sensação arbitrária, mas conformação livre.
a esta “tribo”, nos termos de então, se tornou

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Interações entre Corpo e Voz no Espaço Denise Zenicola

Artigo recebido em 31 de março de 2011.


Aprovado em 28 de abril de 2011.

Referências Bibliográϐicas

AMSELLE, Jean-Loup. “Anthropology and His-


toricity”. History and Theory Beiheft, 1993.

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