Você está na página 1de 12

cena n.

31

A Transformação de Maria: um estudo sobre representações do feminino e


construções identitárias na prática de danças ciganas

Cíntia Bueno Marques


Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil
E-mail: cbmarques@hotmail.com

Resumo Abstract

A dança é uma forma de expressão rica em signifi- The dance is a way of expression, that is rich in mea-
cados. Na cultura cigana, a música e a dança estão nings. In Gypsy culture, music and dance are present,
presentes, tanto como forma de expressão dos sen- both as a way of expressing feelings and as a ritual
timentos, quanto como ritual de conexão com a natu- of connection with nature and spirituality. Men and
reza e com a espiritualidade. Homens e mulheres têm women have different roles represented in this dance
diferentes papéis representados nessa dança que that reflect ways of being, beliefs and values. Such
refletem modos de ser, crenças e valores próprios. representations are exposed, not only by the reper-
Tais representações são expostas, não somente pelo toire of moves executed, but by the set of elements
repertório de movimentos executados, mas pelo con- that make up the dance scene. This text is the result
junto de elementos que compõem a cena da dança. of the research developed as conclusion work of the
Esse texto resulta da pesquisa desenvolvida como Specialization in Dance course that aimed to analy-
trabalho de conclusão do Curso de Especialização ze the female representations, present in the Gypsy
em Dança que teve como objetivo analisar represen- dances and how these representations may reflect
tações do feminino, presentes nas danças ciganas transformations on those who practice them. From
e de que modo essas representações podem refletir the qualitative approach, the research employed
transformações naqueles que as praticam. A partir participant observation and narrative interview for
da abordagem qualitativa, a pesquisa empregou ob- data collection, in the specific context researched.
servação participante e entrevista narrativa para a In this sense, this research did not intend to produ-
coleta de dados, no contexto específico pesquisado. ce generalizations from the study, however, it was
Nesse sentido, não pretendeu produzir generaliza- possible from the results presented, to recognize the
ções a partir do estudo, porém, foi possível a partir potential of dance as a technology from itself, to pro-
dos resultados apresentados, reconhecer o poten- mote reflections and trigger positive transformations.
cial da dança como tecnologia de si, para promover
reflexões e desencadear transformações positivas.

Palavras-chave Keywords
Danças Ciganas. Identidades. Representações. Gypsy Dance. Identities. Representations.
cena n. 31

Apresentando O Estudo Nessa ocasião, conheci Maria3, que chegou


ao grupo junto comigo e durante o período de um
O visível é impregnado de in- ano passou por visíveis transformações. Olhan-
visível, e de tal modo que para
compreender plenamente as re- do para ela tive muitos insights! Comecei a refletir
lações visíveis é preciso ir até a sobre como a dança cigana a interpelou e o que a
relação entre o visível e o invisí- esta prática tinha despertado nela. Falo em “des-
vel. (MERLEAU-PONTY, 1982).
pertar”, pois o que observei em Maria pareceu aos
meus olhos uma verdadeira “metamorfose”. O que
Há algum tempo, venho pesquisando so-
estava vendo não se restringia ao que fui pesqui-
bre pedagogias culturais e identidades contem-
sar ali – identidades étnicas –, mas ultrapassa-
porâneas, dentro da área da Educação. Em 2016
va este tema, abrangendo uma relação bem mais
realizei uma pesquisa de pós-doutorado que teve
profunda entre a dança em si e a mulher que ao
por objetivo analisar possíveis construções iden-
dançar se transformava. O interesse pela histó-
titárias que se dão através das danças étnicas.
ria de Maria e por aprofundar meus conhecimen-
Tais danças, marcadas por simbologias específi-
tos sobre o que estava observando era inevitável.
cas, trabalham com representações de identida-
No mesmo período em que concluí a pesquisa
des étnicas, e estão relacionadas a um determina-
do pós-doutorado, estava cursando Especialização
do contexto histórico-cultural que, por diferentes
em Dança, e ao pensar na escrita do Trabalho de Con-
razões, interpelam os sujeitos e os transformam.
clusão de Curso, percebi a oportunidade de retomar
Para atender a esse objetivo, realizei uma
a transformação de Maria, reconstituindo a pesquisa,
pesquisa de cunho etnográfico num grupo de dan-
sobre uma nova perspectiva. Nesse sentido, revisitei
ças ciganas1, cuja professora é de etnia cigana
meus diários de campo, recordei momentos vividos,
CALON2 e se propõe a disseminar a cultura ciga-
reestabeleci contato com Maria, construindo percur-
na através da dança. Tornei-me membro desse
sos de pesquisa que pudessem revelar a riqueza da
grupo. Estudei, ensaiei, participei de apresenta-
relação que se estabeleceu entre Maria e a sua dança.
ções, frequentei festas de acampamento, enfim,
Assim, pretendo descrever aqui minhas des-
vivi experiências ímpares sobre as quais meus
cobertas acerca do tema, que se traduzem, em última
escritos ainda são insuficientes, considerando a
análise, às descobertas de Maria sobre si, através da
riqueza de informações registradas nesse tempo.
dança. Não se trata de um texto que propõe aprofun-
1 Utilizo o termo “danças ciganas” no plural com o intuito damento sobre a técnica da dança cigana, nem sobre
de preservar a diversidade de ritmos e estilos contidos na a metodologia empregada no ensino dessa técnica.
dança desse povo. Considerando que estarei me referin- Tampouco se direciona a quem busca compreender
do a um conjunto de danças praticadas na cultura cigana,
seria um equívoco utilizar o termo no singular. os benefícios físicos desta prática, embora sejam in-
questionáveis. O texto a seguir fala de sentimento, de
2 CALON é um dos grupos de etnia cigana que pode ser
encontrado no Brasil. Costuma-se distinguir pelo menos transformação, da experiência de si na relação com a
três grandes grupos de ciganos: os ROM ou ROMA, que dança. Trata da dança enquanto arte que interpela os
falam a língua romani e são predominantes nos países sujeitos, os atravessa e nesse atravessamento, pro-
balcânicos, mas a partir do século XIX migraram também
para outros países Europeus e para as Américas; os SIN- duz marcas e os transforma. Trata de buscar, como
TI, que falam a língua sintó e são mais encontrados na sugere Merleau-Ponty (1982) no trecho da epígrafe,
Alemanha, Itália e França; os CALON ou KALÉ, que falam compreender a relação entre o visível e o invisível.
a língua caló e vivem principalmente em Portugal e na Es-
panha, mas que no decorrer dos tempos se espalharam
também por outros países da Europa e foram deportados
ou migraram inclusive para a América do Sul. No Brasil 3 Nome fictício que adotei para manter a identidade do
predominam até hoje os ciganos CALON e ROM. sujeito da pesquisa em sigilo.

150 Marques // A Transformação de Maria: um estudo sobre representações do


feminino e construções identitárias na prática de danças ciganas
Revista Cena, Porto Alegre, nº 31, p. 149-160 mai./ago. 2020
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 31

Percursos metodológicos Tais elementos significativos serão o foco da


pesquisa proposta, através do estudo da transforma-
A pesquisa desenvolvida teve como objetivo ção de Maria.
analisar representações do feminino, presentes nas Devido à necessidade de detalhamento e
danças ciganas e de que modo essas representa- aprofundamento, considerei importante que fossem
ções podem refletir transformações naqueles que empregadas diferentes formas de obter e registrar in-
as praticam. Nessa perspectiva, busquei problema- formações, bem como de analisá-las. Assim, conciliei
tizar: Quais representações do masculino/feminino duas estratégias para reunir informações acerca do
podem ser identificadas nas danças ciganas? De caso: observações e entrevista narrativa com Maria.
que modo tais representações interpelaram Maria? As observações, realizadas de forma contínua
Que transformações podem ter sido desencadeadas e sistemática durante o período da pesquisa de cunho
a partir das representações do feminino na dança etnográfico, já referida, foram registradas em diário
praticada por Maria? Como isso se evidenciou? de campo e por meio de imagens fotográficas. Tais
A partir da abordagem qualitativa, optei pela registros compreendiam um tema mais abrangente
coleta de dados através da observação participante do que a atual proposta de estudo, portanto, apenas
e da entrevista narrativa. Através destes procedimen- alguns deles foram selecionados, considerando sua
tos, tive a intenção de descrever o processo de trans- relevância para o caso de Maria e estes, organiza-
formação de Maria, analisando possíveis processos dos em sequência cronológica para posterior análise.
de subjetivação desencadeados a partir das repre- A inclusão da entrevista narrativa no per-
sentações de gênero trabalhadas na dança cigana. curso metodológico teve como objetivo uma apro-
A abordagem qualitativa tem como caracte- ximação da experiência, não da forma como eu a
rística a busca de significados, a compreensão de observei, mas sim da forma como foi vivida pela en-
fenômenos centrada na descrição, na análise e na trevistada, ou como foi registrada por sua memória.
interpretação das informações obtidas, de forma Segundo Dutra,
contextualizada (MOLINA NETO; TRIVIÑOS, 1999).
Nesse sentido, é importante salientar que não bus- a modalidade da narrativa man-
tém os valores e percepções
quei chegar a generalizações a partir do caso de presentes na experiência nar-
Maria, mas sim, buscar possíveis articulações entre rada, contidos na história do
a prática da dança cigana, as representações femini- sujeito e transmitida naquele
momento para o pesquisador.
nas de uma cultura específica presentes nessa dança O narrador não “informa” sobre
e as transformações que aconteceram com Maria no a sua experiência, mas conta
período de um ano. Segundo Molina Neto e Triviños, sobre ela, dando oportunidade
para que o outro a escute e a
transforme de acordo com a
na pesquisa qualitativa, o fun- sua interpretação, levando a
damental, na maioria das ve- experiência a uma maior ampli-
zes, não é a quantidade de tude, tal como acontece na nar-
participantes a serem obser- rativa. (DUTRA, 2002, p. 374).
vados para validação do es-
tudo, mas a observação em
profundidade, por aportar ele- Para as análises, reuni observações, e
mentos significativos de deter- entrevista de forma articulada, buscando pontos
minadas situações. (MOLINA
NETO; TRIVIÑOS, 1999, p.70). convergentes ou divergentes entre minhas per-
cepções como observadora e a narrativa da en-
trevistada. É importante salientar que as análises
consideram não apenas os fatos narrados, mas

151 Marques // A Transformação de Maria: um estudo sobre representações do


feminino e construções identitárias na prática de danças ciganas
Revista Cena, Porto Alegre, nº 31, p. 149-160 mai./ago. 2020
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 31

também a forma como essa experiência rever- avaliadas pelo sistema CEP/CONEP (GAYA et al.,
berou na minha escuta, impregnada do referen- 2016). Nesse sentido, optei por utilizar o nome fic-
cial teórico estudado e das observações feitas. tício de “Maria” para preservar a identidade do su-
Dutra (2002) destaca a complexidade envol- jeito da pesquisa. Da mesma forma, os registros
vida na tarefa de compreender a experiência humana de imagem foram preservados, servindo apenas
dada a subjetividade que constitui cada ser que sente, como material de análise, sem exposição pública.
pensa e expressa através da linguagem sua própria Na intenção de manter a transparência du-
existência. Conforme a autora, a experiência humana rante todas as etapas da pesquisa, elaborei um
“é fluida, processual, semelhante e distinta de todas termo de consentimento informado que foi as-
as outras, o que exclui a possibilidade de explicá-la sinado pela entrevistada e duas testemunhas.
através de verdades estáticas e aplicáveis a todos os Neste termo constaram esclarecimentos sobre
outros seres” (DUTRA, 2002, p. 378). Nesse sentido, o tema abordado, procedimentos metodológi-
a entrevista narrativa sinaliza a possibilidade de pre- cos e sobretudo sobre o direito de desistir a qual-
servar, dentro do possível, a dimensão da experiência quer tempo ou mesmo de requerer indenização
vivida representada pela linguagem da entrevistada. em caso de danos provenientes da investigação.
Goldenberg (2004) refere que a observa- Além do período de observações e entrevista,
ção participante e as entrevistas em profundida- a pesquisa envolveu três etapas: a revisão bibliográfi-
de são procedimentos de pesquisa que têm suas ca, a seleção, organização e análise das informações
origens em uma tradição de pesquisa antropoló- e finalmente, a escrita desse texto. As três etapas
gica nas sociedades primitivas. Segundo a auto- mencionadas ocorreram durante o ano de 2017, sen-
ra, como os dados não são padronizados, não há do que a escrita avançou até o mês de janeiro de 2018.
como estabelecer com precisão o tempo adequa-
do de pesquisa, podendo essa durar semanas ou Danças ciganas: mistérios e significados
anos, por exemplo, conforme o tema, o pesquisa-
dor e seus pesquisados (GOLDENBERG, 2004). Durante o tempo que estive realizando a
Na pesquisa em questão, as observações pesquisa de cunho etnográfico obtive, com esse
foram realizadas no período de março a dezem- grupo específico, muitas informações sobre a dan-
bro de 2016, semanalmente, nas aulas de dança ça cigana e seus significados. Algumas foram no-
que tinham duração de duas horas, além dos en- vas descobertas para mim, baseadas na oralidade
saios, encontros culturais (palestras, festas de das pessoas com quem andei e nas práticas que
acampamento, viagens) e apresentações do gru- observei, outras confirmaram o que já havia lido em
po. A observação foi participante e envolveu con- fontes bibliográficas sobre o tema. A seguir, sem
versas informais, que foram registradas em diário a pretensão de produzir verdades absolutas ou
de campo, junto aos demais aspectos observados. mesmo generalizações, compartilho o que aprendi.
A entrevista narrativa foi desenvolvida em A música e a dança estão presentes na cul-
uma única sessão, com duração de aproxima- tura cigana, seja como forma de expressão dos
damente duas horas, tempo no qual Maria con- sentimentos, ritual de conexão com a natureza
seguiu abordar as questões propostas em pro- e com a espiritualidade, seja como ferramenta de
fundidade. O conteúdo foi gravado em arquivo subsistência. Para os ciganos, a dança é uma ma-
de áudio, transcrito e posteriormente analisado. nifestação de Deus, através do corpo e da alma.
A Resolução nº 510 do Conselho Nacional Nesse sentido, é utilizada de forma ritualística em
da Saúde, esclarece que as pesquisas com partici- festejos ou mesmo em ocasiões de profunda tristeza.
pantes não identificados não são registradas nem Pela reconhecida habilidade dos ciganos

152 Marques // A Transformação de Maria: um estudo sobre representações do


feminino e construções identitárias na prática de danças ciganas
Revista Cena, Porto Alegre, nº 31, p. 149-160 mai./ago. 2020
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 31

nessa área, e pela admiração que despertam, a em torno da mulher, sugerindo proteção, e também se
dança também é utilizada de forma artística, sen- posicionando imóvel, com um joelho ao solo ou de pé,
do apresentada predominantemente nas ruas, em servindo como eixo para os movimentos femininos.
troca de contribuições espontâneas, ou em even- Não há toque entre homem e mulher durante a dança,
tos fechados para os quais eventualmente são exceto quando são casados, em situações eventuais.
contratados. Além disso, dançar publicamente é Os ciganos podem utilizar adereços para a
uma forma de expressar sua cultura para o mun- dança, como chapéus ou faixas longas, os quais
do, de uma forma positiva, como um contraponto são incluídos na coreografia ou na dança espontâ-
a tantos preconceitos atribuídos ao povo cigano. nea. O figurino para a dança masculina é o mesmo
Segundo Kilkner, utilizado no dia a dia, dentro da cultura cigana: cal-
ças, camisas lisas ou estampadas, sapatos e even-
todas as danças ciganas, mes- tualmente coletes. Adornos como pulseiras, corren-
mo as danças festivas, apre-
sentam vínculo com o sagra- tes ou brincos de argola complementam o visual.
do. Nem todas objetivam a As mulheres executam, tanto nas danças in-
prescrição de uma tradição dividuais como nas danças de casal ou grupo, movi-
cultural, ou revivem um mito
de origem, mas inevitavelmen- mentos leves, delicados, incluindo dedos, mãos, bra-
te, pelas danças, solidificam-se ços, giros de peito, de corpo inteiro e passos suaves,
memórias e as práticas cor- que sugerem sensualidade. O olhar e a expressão fa-
porais ciganas dão sentido à
festa. (KILKNER, 2008, p.177). cial é um elemento importante nessas danças, trans-
mitindo força e mistério. No flamenco e em alguns
Os ritmos ciganos são contagiantes, geral- estilos de dança cigana, mais específicos, os movi-
mente acompanhados de palmas e sapateados, ao mentos são mais firmes e incluem o sapateado. Na
som de guitarras, violas, violinos, acordeões, cím- maioria das danças ciganas a mulher dança descalça,
balos, castanholas e pandeiros. As músicas, as mantendo o contato dos pés com a terra, que na cul-
vestimentas e as danças, compõem uma cena ale- tura cigana representa uma troca com esse elemento
gre e envolvente, repleta de significados culturais. da natureza. De qualquer forma, preservam a sen-
As danças ciganas são ensinadas de gera- sualidade e a delicadeza, exacerbando sentimentos.
ção para geração. Tanto na forma ritualística, como Valores como liberdade, alegria, amor e união
na forma artística, são praticadas por homens são cultuados através da dança cigana e podem ser
ou mulheres, individualmente, em casais ou gru- observados através das composições coreográficas.
pos. Ao dançar, homens e mulheres utilizam mo- Além disso, muitos artefatos4 são utilizados na dança
vimentos distintos, expressando, de certo modo, cigana, como rosas, leques, xales, echarpes, lenços,
papéis que assumem dentro da cultura cigana. véus, fitas, punhais, espadas, pandeiros, castanho-
Na dança individual, os homens executam las, tochas, fogueiras, etc. Tais artefatos assumem
movimentos vigorosos, incluindo figuras de braço, papel primordial tanto nas coreografias, como nas
giros e sapateados, como se observa, por exemplo, danças espontâneas, pois estão relacionados a
no flamenco, considerado uma modalidade de dança significados específicos e representam rituais da
cigana. O olhar e a expressão facial sugerem força,
alegria e na presença da mulher, contemplação, es- 4 Utilizo o termo “artefato” referindo-me ao conceito de
artefato cultural. Hall (1997) afirma que a representação
tando o olhar masculino voltado todo o tempo para é uma prática que usa objetos e efeitos materiais, mas o
seu par. Nas danças de casal, ou em grupo, atuam de significado depende não da qualidade material do signo,
certa forma, como coadjuvantes para a dança femi- mas de sua função simbólica. O artefato cultural consiste
no próprio objeto, porém, considerando o que ele repre-
nina, executando movimentos circulares e delicados senta para uma determinada cultura.

153 Marques // A Transformação de Maria: um estudo sobre representações do


feminino e construções identitárias na prática de danças ciganas
Revista Cena, Porto Alegre, nº 31, p. 149-160 mai./ago. 2020
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 31

cultura cigana. Assim, as danças ciganas incluem dade e consiste num símbolo materno. Os cabelos,
a “dança das rosas”, a “dança do leque”, a dança longos e soltos ou presos em tranças, representam,
do punhal”, a “dança da fogueira” a “dança do véu” além da feminilidade, a honra da mulher cigana, por-
e tantas outras, conforme os elementos utilizados. tanto, precisam ser muito cuidados e preservados,
A dança das rosas, por exemplo, é executa- sendo que em algumas comunidades ciganas, o
da predominantemente com rosas vermelhas que adultério pode ser punido com o corte dos cabelos.
representam o amor, a beleza, a energia que vem Considerando que as danças ciganas têm
da terra, a conquista e a sedução. Com rosas de no corpo o local da expressão divina e que para os
outras cores, a dança das rosas assume outras in- ciganos, Deus se manifesta mitologicamente, na
tencionalidades, considerando que as cores para personificação dos fenômenos naturais, a relação
os ciganos também têm significados específicos. entre dança e elementos da natureza é direta. Co-
Com a sua dança, os ciganos compartilham a ener- res, artefatos e movimentos corporais trazem para
gia desse ritual, finalizando com a entrega da rosa, a dança cigana quatro elementos fundamentais da
ou das rosas para alguém do público, conforme natureza – a terra, o ar, a água e o fogo – evocan-
sua intuição definir. A pessoa leva consigo a lem- do suas energias para que aqueles que dançam
brança da dança e a energia materializada na rosa. e aqueles que assistem possam ser beneficiados
O figurino da dança feminina, semelhante ao na forma de ritual. Nessa direção, Lyz refere que
que se usa no dia a dia dos acampamentos ciganos,
compreende saias longas, coloridas e rodadas (para na tradição cigana o elemento
fogo representa a sensualida-
a dança mais rodadas do que para o uso diário) – no de, demonstração viva do amor,
mínimo duas sobrepostas – bombachinhas compri- da união, do calor humano e
das por baixo das saias, blusas predominantemente da harmonia, na dança, é re-
presentado com movimentos
com babados, ombros a mostra e fartos decotes, len- de serpente, ondulatórios de
ços com ou sem moedas na cintura, pés descalços, quadril, e também através das
lenço nos cabelos para as mulheres casadas, flores cores das roupas nos tons
quentes (vermelho, laranja); o
ou outros adereços nos cabelos para as solteiras. elemento água lava e limpa as
Como complementos, brincos, pulseiras, anéis e co- suas vidas e os livra de toda
lares em abundância. Para o flamenco, são utilizadas carga negativa e interferência
do comportamento; desblo-
saias justas com babados a partir da altura dos joe- queia emoções, traz alegria
lhos com blusas combinando em cores lisas, ou em e bem estar, este elemento é
estampas florais, de lunares ou com outras figuras ge- representado esteticamente
através dos véus; já o elemen-
ométricas. Também podem ser utilizados vestidos ou to terra evoca a prosperidade,
calças, conforme a necessidade da dança proposta. a renovação, a sobrevivência,
As saias de ampla roda são fundamentais em a força e o equilíbrio, faz-se
representar pelas batidas dos
algumas danças ciganas para a execução dos mo- pés e movimento de represen-
vimentos que representam a limpeza das energias tação de crescimento de uma
do ambiente, o elemento ar, que dá vida e renova. árvore; e por fim, o elemento
ar surge como o sopro mágico
O cumprimento longo e a utilização de duas saias da vida, das energias físicas e
além das bombachas têm a finalidade de cobrir as da saúde, e é demonstrado na
pernas, que de acordo com a cultura cigana, jamais dança, através das ondulações
das mãos. (LYZ, 2000, p. 45).
devem ser expostas. Por outro lado, os decotes dei-
xam muitas vezes parte dos seios à mostra, tendo
em vista que esta parte do corpo representa fertili-

154 Marques // A Transformação de Maria: um estudo sobre representações do


feminino e construções identitárias na prática de danças ciganas
Revista Cena, Porto Alegre, nº 31, p. 149-160 mai./ago. 2020
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 31

De diferentes formas, esses elementos es- A dança como experiência: o caso de Maria
tão sempre presentes, assim como os artefatos cul-
turais, que vão das peças do vestuário à forma de Compreender a dança como experiência,
arrumar o cabelo. Num misto de arte e religiosidade, exige um aprofundamento acerca desse concei-
a dança cigana tem seu universo próprio e surpre- to. Partindo do pressuposto de que nem toda a
ende a cada descoberta, revelando seus mistérios. prática de dança constitui uma experiência para o
Para além da prática de uma modalidade de sujeito, no sentido da “experiência” que pretendo
dança, esse contexto rico em significados interpela adotar nesse texto, vale refletirmos sobre o termo.
os sujeitos que com ele se identificam e passam a Larrosa, afirma que “a experiência é o que
ter uma experiência tão profunda, quanto transfor- nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.
madora. A mulher cigana, protagonista da dança, Não o que se passa, não o que acontece, ou o que
detentora dos seus mistérios, enfeitada, colorida, toca” (LARROSA, 2002, p.21). Nessa perspectiva,
capaz de evocar energias da natureza, de transmi- podemos compreender o caráter pessoal da expe-
tir alegria ou amenizar a tristeza, apta a exibir, ao riência, o quanto ela é particular para cada sujeito
mesmo tempo, força, leveza e sensualidade, eclo- e por isso mesmo, produz diferentes marcas quan-
de na dança e pode refletir mudanças significati- do os toca. É possível concluir ainda, que nem tudo
vas, que extrapolam a técnica ou a arte de dançar. o que acontece, passa ou toca, chega a interpelar
Segundo Hall, as identidades se consti- a todos da mesma forma, resultando para alguns
tuem “do diálogo entre os conceitos e definições em mero acontecimento e para outros numa ex-
que são representados para nós pelos discursos periência. Ainda que um grupo de pessoas partici-
de uma cultura e pelo nosso desejo (conscien- pe do mesmo acontecimento, ao mesmo tempo e
te ou inconsciente) de responder aos apelos fei- no mesmo espaço, a forma como esse aconteci-
tos por esses significados” (HALL, 1997, p.26). mento vai tocá-lo é única, contingente e pessoal.
O autor trata ainda da produção de subjetivi- Para Larrosa, “o sujeito da experiência se-
dades afirmando que utiliza o termo identidade sig- ria algo como um território de passagem, algo como
nificando uma superfície sensível que aquilo que acontece
afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscre-
o ponto de encontro, o ponto ve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns
de sutura, entre, por um lado,
os discursos e as práticas que efeitos” (LARROSA, 2002, p.24). No entanto, o au-
tentam nos “interpelar”, nos fa- tor salienta que para isso aconteça, é preciso que o
lar ou convocar para que assu- sujeito esteja “ex-posto”, ou seja, que esteja aberto,
mamos nossos lugares como
os sujeitos sociais de discursos disposto a um gesto de interrupção em tudo aquilo
particulares e, por outro lado, os que põe, propõe, impõe, para permitir-se viver inten-
processos que produzem sub- samente a experiência. Sobre esse aspecto, Maria
jetividades, que nos constroem
como sujeitos aos quais se pode refere na entrevista: “Não tirava folga, teve épocas
“falar”. (HALL, 2000, p.111). que eu trabalhei de segunda a segunda e assim tu
vais cansando. Hoje me dou esse momento. Digo
Assim, ao analisar representações pre- não, terça-feira é sagrada! Então é meu momento!”
sentes na dança cigana e, em especial, re- (Trecho da entrevista realizada com Maria, 2017).
presentações do feminino, busco o “ponto de Larrosa (2002) destaca que o saber prove-
sutura” entre tais representações e possíveis pro- niente da experiência se dá na relação entre o co-
cessos de subjetivação desencadeados em Maria. nhecimento e a vida humana, de modo que esse
saber não reflete verdade absoluta sobre o que

155 Marques // A Transformação de Maria: um estudo sobre representações do


feminino e construções identitárias na prática de danças ciganas
Revista Cena, Porto Alegre, nº 31, p. 149-160 mai./ago. 2020
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 31

são as coisas, mas sim, o sentido ou o sem senti- ta a adquirir o repertório necessário e tornar-se
do do que acontece. Nessa direção, ao pensar na membro - no que se refere à dança - dessa cultura.
dança como experiência, podemos afirmar que, a
dança se deu como experiência para Maria a partir Maria chegou demonstrando ti-
midez. Ia fazer uma aula experi-
do momento que ela se expôs e se colocou como mental. Estava vestida de preto,
território de passagem, deixando aquele universo saia longa e reta, blusa de gola
que a fascinava, se tornasse parte dela. Sobre o alta colada ao pescoço, botas
de cano curto. Ela usava ca-
motivo que a levou até a dança, Maria respondeu: belos curtos, mas com cumpri-
mento suficiente para estarem
Nunca tinha feito nenhum tipo presos bem esticados, escon-
de dança. Eu tentei fazer em dendo seu volume e os cachos
2002, 2003 dança do ventre. En- característicos dos cabelos
tão cheguei a fazer acho que um crespos, brincos pequenos e
mês ou dois e tive que parar por- nenhuma maquilagem visível.
que não tinha tempo e comecei Apresentou-se para o grupo es-
a faltar. E aí tu ficas com aquela clarecendo que não era cigana,
coisa. Vontade de fazer dança! mais amava tudo o que se rela-
Porque na dança tu consegue cionava com esse povo e estava
te soltar né? Sempre passava pronta para aprender. Imediata-
na frente da escola, de ônibus. mente tirou os sapatos, aceitou
E pensei, um dia vou descer uma saia emprestada pela pro-
aqui para ver quanto é e como fessora e sorriu demonstrando
funciona. (Trecho da entrevis- satisfação de estar ali. (Tre-
ta realizada com Maria, 2017). cho do diário de campo, 2015).

Tanto a dança do ventre, primeira tentativa A tecnologia de si implica a reflexão sobre


de Maria, como a dança cigana tem como caracte- os modos de vida, sobre as escolhas existenciais
rística marcante a sensualidade da figura feminina. e sobre a maneira de autorregular a conduta, fi-
Ela menciona na entrevista a necessidade de “se xando para si mesmo os fins e os meios (FOU-
soltar”. Penso que essa característica pode ser um CAULT, 2003). Foucault define como técnicas de si
indicador do que ela estava procurando naquele
momento: soltar a sensualidade, libertar aspectos os procedimentos, que, sem
dúvida, existem em toda civili-
de sua personalidade que estavam “presos”. Não zação, pressupostos ou prescri-
houve uma identificação maior na primeira tentati- tos aos indivíduos para fixar sua
va, a ponto de motivá-la para prosseguir. Entretan- identidade, mantê-la ou trans-
formá-la em função de determi-
to, o desejo persistiu e a levou para a dança cigana nados fins, e isso graças a rela-
num segundo momento. Para Maria, aquela dança ções de domínio de si sobre si
fazia sentido de um modo particular, e isso permi- ou de conhecimentos de si por
si. (FOUCAULT, 1997, p.109).
tiu que saberes fossem agregados pela experiência.
Baseado em Foucault, Larrosa (1997) fala
Assim, podemos compreender que a dança
da experiência de si, afirmando que toda cultu-
cigana consiste num procedimento, uma técnica
ra transmite certo repertório de “modos de expe-
de si, pela qual se aprende sobre “ser homem” ou
riência de si” e todo novo membro de uma cultura
“ser mulher” na cultura cigana. As prescrições sobre
precisa aprender a ser sujeito dessa cultura em
vestimentas, comportamentos, movimentos e todo o
alguma das modalidades incluídas nesse reper-
conjunto de elementos que compõem a representa-
tório. Maria não era de etnia cigana, mas queria
ção proposta, apontam para uma identidade femi-
aprender a dança e seus códigos. Estava dispos-

156 Marques // A Transformação de Maria: um estudo sobre representações do


feminino e construções identitárias na prática de danças ciganas
Revista Cena, Porto Alegre, nº 31, p. 149-160 mai./ago. 2020
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 31

nina ou masculina a ser mostrada. De algum modo, sobre o que a dança cigana ensina, Maria respondeu:
Maria se encantou e acolheu para si, ou para a sua
dança, essa identidade. Na entrevista (2017), ain- Ela ensina, a dança cigana, a
tu te amar mais. Te respeitar
da falando sobre os motivos que à levaram à dan- como mulher, te valorizar, ser
ça cigana, ela relata: “Fiz uma aula experimental e mais sedutora. Tu não tens
comecei, e aí me apaixonei. Porque é apaixonante aquele medo de usar aquele
batom vermelho e se impor-
a dança né? É uma coisa muito boa, tu te soltas, tar com o que as pessoas vão
máxima. A mulher que estava escondida, ela brotou”. pensar de ti. (...) Eu sempre fui
Relacionando as representações do femini- uma pessoa muito mística e
pessoas que já me conheciam
no na dança cigana, com as tecnologias de si de- há anos, dizem: “Bah! Até que
sencadeadas em Maria a partir dessa prática, po- enfim tu botaste para fora aque-
demos interpretar que “a mulher escondida” a qual la mulher que estava escondida
ai dentro! (Trecho da entrevis-
ela se refere se identificava com o contexto apre- ta realizada com Maria, 2017).
sentado e por meio da dança, libertou-se. Ao dan-
çar, Maria conseguiu expressar o que estava opri- Corroborando nesse sentido, Maia refere que
mido, como se a dança fosse um grito de liberdade. a dança cigana “contribui para o aumento da autoesti-
Em entrevista a Kilkner, ao ser questionado ma, pois desperta, do ponto de vista psicológico e emo-
sobre o que significa a dança na sua cultura, o pa- cional, a alegria, força, altivez, sensualidade e beleza,
triarca do clã cigano, Kalderash, responde: “A dan- destravando energias negativas e as transformando
ça? A dança do nosso povo é um grito. Um grito que em energias positivas” (MAIA, 2013, p.21). A redu-
ecoa no tempo e no espaço” (KILKNER, 2008, p. 182 ção ou ampliação da autoestima pode ser percebida
e 183). Maria foi interpelada por esse significado de muitas formas e relacionada a inúmeros fatores.
e “gritou” que havia uma outra mulher dentro dela. Maria relaciona a redução de sua autoestima,
Lyz afirma que a prática da dança cigana dentre outros fatores, ao trabalho que desenvolve
como cuidadora de idosos:
tem servido para muitos, como
terapia e melhor qualidade de
vida ou como forma de libera- Trabalho com a morte pratica-
ção das emoções interiores, mente. Pego os pacientes já
de dar vazão aos sentimen- morrendo. Então tu não tens
tos e às íntimas necessidades, tempo pra te cuidar. Tu ficas
revelando o caráter e certos em função de doença. Ah o
sentimentos (preguiça, timi- cabelo tá branco e deixa! Tu
dez, depressão, desânimo...) passas um batonzinho e deu!
dos praticantes, pois como é Não pinta a unha e a unha
uma dança de corpo, mente e descasca... ah depois eu faço!
alma, esses sentimentos deve- Porque tu vives muito no meio
rão ser trabalhados no decorrer disso né? (Trecho da entrevis-
do processo de cada um, atra- ta realizada com Maria, 2017).
vés dos movimentos, postura,
respiração e conscientização Da mesma forma, relaciona à dança o resga-
corporal. (LYZ, 2000, p. 58).
te dessa autoestima:

Na história de Maria, fica evidente que a dança Depois da dança não! Comecei
lhe proporcionou rever questões interiores e ter uma a usar as bijuterias que não usa-
vida de maior qualidade, a partir da liberação do seu va mais, comecei a usar roupas
mais coloridas, mais alegres,
jeito de ser e dos seus desejos. Ao ser questionada deixar o cabelo crescer porque

157 Marques // A Transformação de Maria: um estudo sobre representações do


feminino e construções identitárias na prática de danças ciganas
Revista Cena, Porto Alegre, nº 31, p. 149-160 mai./ago. 2020
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 31

eu cortava curto por ser prático. A dança é uma forma de expressão rica
Lavou tá pronto! Então assim, em significados. Tais significados são expos-
tu passas a te cuidar mais, de-
pois que a dança dá aquele click tos não somente pelo repertório de movimen-
dentro de ti, então acho que tu tos executados, mas pelo conjunto de elemen-
renasces. (Trecho da entrevis- tos que compõem a cena. Sobre o figurino, por
ta realizada com Maria, 2017).
exemplo, Vargas, Rieth e Pereira pontuam:

Maria afirma que essa transformação aconte- Temos estudado a importân-


ceu aos poucos. Conta que no início, modificava seu cia do figurino como elemento
visual no dia da aula de dança: “Era o dia que eu ia constituinte da cena, pois este
não pretende ser apenas uma
para frente do espelho, fazer um reboco caprichado, roupa e sim um instrumento ritu-
tirar foto, fazer exposição de figura, me encher de al do ator/bailarino para compor
pulseiras, de brincão”. Depois, expandiu essa forma com as regras da encenação
e interagir com o conjunto do
de se arrumar para todos os dias, independentemen- espetáculo, sendo a ligação en-
te de ter ou não aula de dança: “Não tô nem aí se es- tre o corpo do artista e a pele
tou nos lugares e estou com flor no cabelo, se estou do personagem. (VARGAS;
RIETH; PEREIRA, 2016, p.9).
com brincão, pulseira, saião, o que importa é eu me
sentir bem, e não o que os outros vão achar! ” A timi-
As roupas, os adereços, as cores, dão forma
dez deu espaço a uma mulher extrovertida, empode-
a uma imagem de mulher que Maria passou a querer
rada dos desejos que tinha em relação a si mesma
representar também fora do espaço restrito à sala de
e promoveu mudanças interiores, refletidas na apa-
danças ou ao palco. Desse modo, para que a per-
rência física. Sobre esse ponto de vista, Maria relata:
sonagem extrapolasse a cena da dança, foi preciso
Como eu costumo dizer, em re- levar sua “pele” para outros espaços. Quando Maria
lação a exposição da figura, a diz “não ter mais vergonha” mostra a superação de
gente não tem mais vergonha um comportamento contido que lhe desagradava.
de expor a figura. Mais é mais!
Então coisa boa chegar num Demonstra prazer em ser vista, em chamar a aten-
lugar com as mulheres boniti- ção, pois seu jeito de ser agora está de acordo com
nhas, simplesinhas e tu chegar o que deseja mostrar. Parece ter orgulho de si e da
bem cigana! Ver que te olha-
ram! Então tu passas a chamar transformação pela qual passou através da dança.
a atenção. A dança acrescenta A transformação de Maria chegou a refletir
muito no universo feminino, ela em aspectos que há algum tempo estava “ador-
exerce esse poder de transfor-
mação, de um reencontro da mecidos” na sua vida. Na entrevista ela conta que
gente. E a alma da gente fica está de casamento marcado, pois “a nova Ma-
feliz também, tu passas a ver ria” trouxe para ela um novo amor. Ela reflete:
o mundo com outros olhos. Tu
passas a ser mais alegre. Às
vezes tu estás ouvindo uma mú- Tinha medo de me envolver
sica e não precisa ser música com alguém. Quando a gente
cigana, tu já sais dançando. Tu aprende a se amar, muda até
te soltas. Não tem mais vergo- o olhar da outra pessoa! Quan-
nha de sair cantando, sair dan- do a gente não sabe se amar,
çando. Então, essa é a magia vem um namorado e a gente
da dança. (Trecho da entrevis- se sujeita, muda a nossa per-
ta realizada com Maria, 2017). sonalidade, aquela pessoa vai
podando a gente. Quando a
gente se ama fala logo: “Oh eu
sou assim! Quer? Não quer?

158 Marques // A Transformação de Maria: um estudo sobre representações do


feminino e construções identitárias na prática de danças ciganas
Revista Cena, Porto Alegre, nº 31, p. 149-160 mai./ago. 2020
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 31

Tchau pra ti! Eu me sinto bem para promover reflexões, como tecnologia de si e
assim”. (Trecho da entrevis- desencadear transformações positivas. A dança
ta realizada com Maria,2017).
como experiência de si pode levar os sujeitos a (re)
encontros com seus mais íntimos desejos e servir
De qualquer forma, segundo Maria, o
ainda como um caminho na arte de expressá-los.
casamento não é o mais importante e sim a
As representações do feminino, presentes
nova relação que estabeleceu com ela mes-
na dança cigana são carregadas de misticismo e
ma. A nova Maria está feliz sozinha ou acom-
muito próprias da cultura desse povo. No entanto,
panhada, contanto que não lhe falte a dança!
foram ao encontro do que Maria buscava para na-
quele momento. A transformação se deu justamen-
Finalizando a dança: considerações finais
te por essa afinidade entre expectativas, desejos e
elementos disponíveis na dança para materializá-
Da mesma forma que Maria foi interpelada
-los. Uma nova Maria evidenciou os resultados al-
pela dança, fui interpelada como pesquisadora pela
cançados, nesse caso. Para Maria, a experiência
sua história. Impossível olhar para ela hoje – colo-
teve um significado particular, que coincide com o
rida, enfeitada, sorridente, falante – e não lembrar
significado da dança para a cultura cigana: repre-
como era antes de começar a dançar. A mudança
sentou um grito que ecoou naquele momento vivi-
é visível! Tão visível, quanto inquietante. Afinal, que
do, em diferentes espaços, na busca da liberdade.
pesquisador se contentaria apenas com o que é
visível? O que nos move, é justamente o invisível.
Referências
Não sei o que a antiga Maria teria a nos dizer
e como ela nos contaria a sua história. Contudo, a
CONSELHO NACIONAL DE SAUDE. Resolução 510.
nova Maria nos proporcionou uma profunda reflexão
Abril, 2016. In: GAYA, A. C. A; GAYA, A. R.; REPPOLD
sobre o invisível. Falou-nos sobre o que tinha contido
FILHO, A. R.; CARDOSO, M.; BRASILIENSE, A. M.;
e sobre como aconteceu sua “libertação”. Guiou-nos
SBRUZZI, G. Projetos de pesquisa científica e pe-
no percurso da pesquisa, reconstituindo sua imersão
dagógica: o desafio da iniciação científica. 1ª ed.
no universo da dança cigana, repleto de sentimen-
Belo Horizonte: Casa da Educação Física, 2016.
tos: medos, receios, angústias, mas sobretudo supe-
ração. Tornou possível compreendermos que o elo
DUTRA, E. A narrativa como uma técnica de pes-
entre o visível e o invisível nesse caso, foi a dança.
quisa fenomenológica. Estudos de Psicologia.7(2),
A Maria de roupas sóbrias e passos tímidos
p.371-378. 2002.
se revelou uma bailarina segura, com um brilho
especial no olhar, de roupas coloridas e acessó-
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade. In: FOU-
rios exuberantes! Ela não era mais a mesma, nem
CAULT, M. Resumo dos cursos do Collège de Fran-
a sua dança. Ao vê-la entrar em cena, a transfor-
ce (pp. 107-116). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
mação se tornava visível. A conexão de Maria com
a música, com os passos, com o grupo de bailari-
FOUCAULT, M. Ditos e Escritos, Vol. IV: estratégia po-
nas não deixava dúvidas de que ela representava
der saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
ali o resultado de um processo encantador de de-
senvolvimento, não somente em sua performance,
GOLDENBERG, M. A arte de pesquisar: como fazer
mas na identidade feminina que assumia para si.
pesquisa. 8ª ed. Qualitativa em Ciências Sociais /
Certamente, não é possível produzir gene-
Mirian Goldenberg. Rio de Janeiro: Record, 2004.
ralizações a partir do estudo apresentado, porém,
podemos reconhecer o potencial que a dança tem,

159 Marques // A Transformação de Maria: um estudo sobre representações do


feminino e construções identitárias na prática de danças ciganas
Revista Cena, Porto Alegre, nº 31, p. 149-160 mai./ago. 2020
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 31

HALL, S. A identidade cultural na pós-Moderni-


dade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Gua- Aprovado: 06/02/2020
cira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 1997. Recebido: 23/05/2020

HALL, S. Quem precisa de identidade? In: SIL-


VA, T. T. da. (Org.). Identidade e diferença: a pers-
pectiva dos estudos culturais. Tradução de To-
maz Tadeu da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

KILKNER, R. A. R. Ciganos: peregrinos do tempo.


Ritual, cultura e tradição. 2008. Tese (Doutorado em
Multimeios). Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Artes, Campinas/SP. 2008.

LARROSA, J. Tecnologias do eu e educação. In: Sil-


va, Tomaz Tadeu. O sujeito da educação. Petrópolis:
Vozes, 1997.

LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber


de experiência. Revista Brasileira de Educação –
nº19. jan/fev/abr, 2002.

LYZ, S. A Magia da Dança Cigana. São Paulo: Berka-


na Editora, 2000.

MAIA, S. B. A dança cigana como prática artísti-


ca e pedagógica. 2013. Trabalho de Conclusão de
Curso (Licenciatura em Dança). Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Norte. Natal – RN. 2013.

MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível.


Tradução de José Arthur Giannotti e Armando
Mora d’Oliveira. São Paulo: Perspectiva, 1982.

MOLINA NETO, V.; TRIVIÑOS, A. N. D. S. (Org.). A


pesquisa qualitativa em Educação Física: alterna-
tivas metodológicas. 2ª ed. Porto Alegre: UFRGS/
SULINA, 2004.

VARGAS, L. A. D.; RIETH, T. R.; PEREIRA, A.


L. N. Vestido de Cena. V Encontro de Gradua-
ções em Dança do RS. Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Porto Alegre – RS. 2016.

160 Marques // A Transformação de Maria: um estudo sobre representações do


feminino e construções identitárias na prática de danças ciganas
Revista Cena, Porto Alegre, nº 31, p. 149-160 mai./ago. 2020
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena

Você também pode gostar