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Para citar esse documento:

LARANJEIRA, Carolina Dias; LIMA, Ewellyn Elenn de Oliveira. Ancestralidade e


estados do corpo: o processo criativo-pedagógico de reza. Anais do VI Encontro
Científico da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança - ANDA. Salvador:
ANDA, 2019. p. 1620-1626.

www.portalanda.org.br

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ANCESTRALIDADE E ESTADOS DO CORPO:
O PROCESSO CRIATIVO-PEDAGÓGICO DE REZA

Carolina Dias Laranjeira (UFPB)i


Ewellyn Elenn de Oliveira Lima (UFPB)ii

RESUMO: O presente trabalho trata de um relato de experiência compartilhado


entre docente e discente sobre proposta de ensino das disciplinas de Danças
Populares no curso de Licenciatura em Dança da UFPB, baseada em pesquisa
autobiográfica inspirada na metodologia de ensino da Dança de Inaicyra Falcão dos
Santos. Tal proposta resulta em experimentos artísticos gerados pela investigação
de uma ancestralidade centrada na relação entre neta e avó que se expressa pela
corporalidade e modos de perceber o mundo da Reza, ou Benzimento e apontam
para uma poética autoral em dança. Além disso, os resultados sugerem novas
perspectivas para o trabalho com estados corporais ao procurar incluir perspectivas
que vão além da materialidade dos estudos ocidentais em Dança.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino universitário em Dança. Processo Criativo.


Benzimento. Danças Populares.

ABSTRACT: This text deals with a report of shared experience between one
professor and one student on the teaching proposal of the disciplines of popular
dances in the undergraduate course in dance of UFPB, based on autobiographical
research inspired by the methodology of Inaicyra Falcão dos Santos. This proposal
results in artistic experiments generated by the investigation of a ancestry centered
on the relationship between granddaughter and grandmother expressed by the
corporality and ways of perceiving the world of Reza (popular blessing) and point to a
poetic authoral in dance. Moreover, the results suggest new lens through which we
can see the work of body states when seeking to include perspectives that go
beyond the materiality of Western studies in dance.

KEYWORDS: University Dance Education. Creative process. Popular blessing.


Popular dances.

Este relato se faz por quatro mãos. Trata-se de entrelaçamento de


experiências de duas dançarinas em um processo de ensino-aprendizagem no qual
ambas ensinam, aprendem e pesquisam a partir de papeis diferentes: professora-
orientadora e estudante. A primeira reflete sobre sua prática como educadora-
pesquisadora de três disciplinas do eixo curricular de Danças Populares 1, que
estrutura o projeto pedagógico da Licenciatura em Dança da UFPB e a outra, como
dançarina-criadora, autora de trabalhos artísticos e um TCC cujas pesquisas foram

1
Fazem parte do eixo as seguintes disciplinas obrigatórias: Tradições Brasileiras, Danças populares:
Matrizes étnicas e corporalidades, Danças Populares Técnicas e processos criativos e Danças 1620
Populares: Investigações artísticas e pedagógicas.
impulsionadas pelos processos pedagógicos e se desenvolveram para além dele.
Para relatar o processo e seus resultados é necessário refazer os percursos das
duas autoras.

Eu, Carolina...

Entre 1998 e 2003 fiz a graduação em Dança na Unicamp, e é nesse


ambiente que meu interesse por pesquisar danças de culturas tradicionais é
despertado. As aulas de Danças Brasileiras, ministradas por Inaicyra Falcão dos
Santos e Graziela Rodrigues, no período em que cursei a graduação, certamente
foram os marcos iniciais para a trajetória profissional que me levariam à proposta
pedagógica que relatamos. Pontualmente, apresento dois aspectos comuns 2 dos
trabalhos das professoras com os quais me identifiquei e que entendo ter
influenciado a abordagem metodológica em questão. Ambas utilizam a pesquisa
sobre a história e tradições relacioadas às vidas dos estudantes e a pesquisa de
campo como procedimentos para a criação em dança. Para Santos (2002), a
utilização do livro Bisa Bia Bisa Bel de Ana Maria Machado3 é ferramenta didática
usada para a reconexão do estudante com sua ancestralidade, descoberta de si
mesmo que fundamenta a relação entre tradição-criação. Para Rodrigues (2015), o
Inventário no corpo, é um dos eixos dinâmicos que estrutura seu método Bailarino
Pesquisador Intérprete. Este é considerado, de forma didática, como uma etapa de
autodescoberta, na qual faz parte o “escavar” aspectos da história familiar que
podem estar velados. Nas aulas, seus métodos de criação certamente não foram
vivenciados por mim em sua totalidade, entretanto, os dois procedimentos
pedagógicos podem ser considerados como princípios fundamentais das propostas
criativas em danças populares ou tradicionais centradas na experiência pessoal dos
dançarinos.

2
Destaco que as práticas pedagógicas das professoras mencionadas são fundamentalmente
diferentes e ao apontar aspectos em comum não intenciono negar a particularidade de suas
metodologias. Pretendo apenas apontar aspectos gerais que influenciaram o meu trabalho. Para
entender suas pesquisas ver: Santos (2002) e Campos; Rodrigues (2015).
3
A autora, ao contar a história de Bel e de sua bisavó Bia, reconectadas por meio de uma antiga
fotografia, relata um encontro intergeracional comovente que abre campo para assuntos sobre 1621
política, gênero, relações de classe, costumes, juventude e ancestralidade.
As disciplinas feitas com as professoras mencionadas me influenciam a
perceber, apreciar e participar de diversas práticas culturais que envolvem a dança.
Mas foi durante a pesquisa artística ocorrida após o fim da graduação que me
proporcionou maneiras próprias de criar a partir de um referencial corporal
específico que rendeu um mestrado, um doutorado e dois espetáculos. O objeto de
pesquisa foi a brincadeira do Cavalo Marinho, que me fez reconhecer como os
brincadores, representados por Mestres Inácio Lucindo, Aguinaldo Roberto da Silva
e Fábio Soares, produzem conhecimento próprio a partir de suas práticas de festa e
de dança ancoradas em suas maneiras de viver e perceber a vida. No
doutoramento, orientado por Eloísa Domenici (2015), pude relacionar aspectos
simbólicos da brincadeira com suas corporalidades e perceber que a maneira como
eu criava buscava recriar ou produzir estados a partir da repetição dos padrões de
movimento e sua transformação.

São estas experiências como dançarina-pesquisadora que alimentaram as


propostas pedagógicas sobre as quais relato. Na primeira disciplina ministrada em
2015 para a turma de Ewellyn, cujo conteúdo é predominantemente teórico,
apresentei os mitos fundadores da ideia de nação brasileira, conceituei cultura
popular e folclore, apresentei algumas manifestações populares do Brasil e, ao
mesmo tempo, propus aos discentes que escrevessem sobre sua história pessoal,
buscando tradições na sua família. Foram propostas também pesquisas de campo
com mestres de tradições locais da cidade de João Pessoa. No ano seguinte,
ministrei para a mesma turma disciplina prática na qual trabalhamos com princípios
técnicos, organização postural e dinâmicas de movimento de danças sobre as quais
pesquisei. Iniciei a disciplina com a leitura de Bisa Bia Bisa Bel, inspirada nas aulas
de Inaicyra, servindo de impulso para a criação de um exercício cênico sobre
aspecto levantado no trabalho da disciplina anterior, no qual dançaram ideias e
sensações de algo que lhes afetassem em relação à história pessoal. Também
fizemos uma curta pesquisa conjunta sobre danças indígenas e uma pesquisa de
campo na qual vivenciamos o Toré do povo Potiguara, habitantes do litoral norte
paraibano. Numa terceira disciplina ministrada para a mesma turma, fizemos
pesquisas de campos e a prática foi conduzida da mesma forma, entretanto, nos
concentramos nas corporalidades do Cavalo Marinho.
1622
Eu, Ewellyn...

Em 2015, vivenciei durante a graduação em Dança, o componente curricular:


Tradições brasileiras. Dentre as propostas dessa disciplina, nos foi sugerida a
construção de um inventário pessoal, onde iríamos discorrer sobre uma tradição
familiar ou próxima a nossa história. A partir daí, rememorando a importância da
prática do Benzimento em minha família, e diante da situação de saúde de minha
avó, nestes momentos com Alzheimer, tomei para mim como desafio escrever-
mover essa prática de cura, compartilhada por minha Bisa Dulce e por minha avó
Odete com familiares e pessoas da comunidade.

Após a escrita desse inventário, senti a necessidade de continuar a investigar


o universo de cura, que até então era parte do cotidiano e nessa fase ia-se
fragmentando pouco a pouco com a memória de voinha. Esse meu desejo era
motivado por guardar e buscar ao máximo vestígios dessa sabedoria em estado de
crise, de entender os fios que conduziam essa prática ao universo popular de minha
cidade Cabedelo e pelas inquietações que nossa futura despedida me causava.
Entendendo os processos de curas como uma estreita relação com os nossos
ancestrais e tais doenças provindas de um campo não humano que reflete e
reverbera em nosso físico, comecei a construir pequenas pontes entre o ritual da
cena e o ritual da cura, pedindo assim licença para entrelaçar tais feituras. Motivada
pelas experiências que me atravessavam no meio acadêmico decidi me aproximar
da cidade onde vivo, cenário de todas essas memórias, e assim buscar nas
referências do meu lugar estruturas para mover o meu lugar.

Dentre alguns mergulhos, a Capoeira Angola foi uma de minhas mais densas
imersões. Nesta pude vivenciar além de movimentações, organizações corporais e
fisicalidades, outras relações ancestrais me levando a encontrar em meio às rodas,
metáforas entre o Jogo de Angola e o Benzimento. Nesse percurso, outras
metáforas foram sendo estabelecidas diante dessas novas experiências e também
diante de novas relações com elementos familiares ao ritual, como por exemplo a
Liamba, erva utilizada durante as rezas. Diante dessa fase de inquietudes, levei
esse universo da cura a uma caminhada comigo durante o meu processo de 1623
graduação. Levei o benzimento para o espaço da fotografia, da performance, e de
outros experimentos coreográficos, até chegar em meu trabalho de conclusão de
curso (LIMA, 2018). Neste trabalho faço uma análise e rememoração desse
percurso a fim de explicitar pontos de intercessão, procedimentos criativos, linhas
estéticas e poéticas que traçaram caminhos para a investigação do solo de Dança
REZA.

Esse foi um momento que me tirou de uma zona de conforto em relação ao


fazer-pensar dança a partir de passos pré-estabelecidos e coreografias previamente
desenhadas. Reza foi e é a crise. Está no sentir vibrações. As minhas, e de minhas
ancestralidades, é o movimento que me conecta com o passado muito distante e o
passado próximo. Tenho entendido esse solo como uma forma de desenhar nos
espaços movimentos que advêm de influências de minhas experiências e memórias
em jogo com outras energias que convido para a cena, energias essas que me
cutucam, me instigam, me amedrontam, me conduzem, me abraçam. Nesse diálogo
surgem novas possibilidades cênicas sobre o Benzimento, mas também novos
benzimentos na cena. Esses percursos moventes me direcionam a um novo olhar
sobre a minha própria história e a história de minha família, que absorveu a minha
inquieta busca como algo de interesse comum. Posso dizer que Reza foi criado
como rede de pesca passando pelas mãos de vários pescadores e sendo
remendada de tempos em tempos. Nesse movimento, senti a reaproximação com a
minha identidade étnica, afro-brasileira, e, por outro lado, descobri a indígena, que
ainda estou buscando compreender e me reaproximar para me apropriar.

Considerações finais: pesquisas entre professora e estudante

A proposta pedagógica se inicia na busca pela história de cada um e as


manifestações populares dos seus lugares, conduzidos pela leitura de Bisa Bia Bisa
Bel. Num segundo momento, o contato com códigos, repertórios de movimentos e
modos de dançar das culturas populares são estudados na prática, sob o princípio

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do contato direto com mestres por meio de aulas de campo, em consonância com os
demais professores responsáveis por esta disciplina4.

O processo criativo desenvolvido em Reza reflete as retroalimentações entre


espaço cênico e ritual como uma dança de estados corporais, conceito estudado no
grupo de pesquisa provocando sua revisão. Antes baseado na ideia de estados
tônicos (GODARD, 2005) e suas relações com as metáforas das culturas locais ou
imagens que emergiam das investigações em dança (LARANJEIRA, 2013), agora
são considerados para além da materialidade. A convivência com uma prática de
cura evidencia uma maneira própria de se relacionar com as plantas, com humanos
e não humanos e faz pensar que os mundos com e nos quais atuamos podem
produzir outros agenciamentos de estados corporais. A ideia aqui não é responder
como lidamos com essas outras forças mas ressaltar como é importante reconhecer
esses outros mundos que co-existem e considerar que a universidade sim é o
espaço para estarmos em co-existência.

Referências

CAMPOS, Flávio; RODRIGUES Graziela Estela Fonseca. O Processo BPI e suas


Especificidades Epistemológicas. Revista Brasileira de Estudos da Presença,
Porto Alegre, v. 5, n. 3, p. 490-506, set./dez. 2015. Disponível em:
http://www.seer.ufrgs.br/presenca. Acesso em: 10 jul. 2018.

DOMENICI, Eloisa Leite. A brincadeira como ação cognitiva: metáforas das danças
populares e suas cadeias de sentidos. In: KATZ, Helena e GREINER, Christine.
(Org.). Arte e cognição: Corpomídia, Comunicação, Política. São Paulo:
Annablume, 2015, p. 191-236.

GODARD, Hubert. Gesto e Percepção. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (Org.).
Lições de Dança 3. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2003.

LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança de estados corporais a partir do samba


do Cavalo Marinho: corporalidades e dramaturgias da brincadeira em diálogo com o
processo de criação de Cordões. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) Escola de
Teatro, UFBA, Salvador, 2013.

LIMA, Ewellyn Elenn de Oliveira. Reza: Um processo de investigação em Dança em


diálogo com memórias sobre o benzimento. Trabalho de Conclusão de Curso,

4
Ver artigo apresentado em mesa sobre as Danças Populares nas universidades brasileiras do 1625
Engrupe Dança, de 2013, ocorrido na UFPE (VICENTE et al, 2013).
Licenciatura em Dança, Departamento de Artes Cênicas, Universidade Federal da
Paraíba, 2018.

SANTOS, Inaicyra Falcão dos. Corpo e ancestralidade: uma proposta pluricultural


de dança-arte-educação, Salvador: EDUFBA, 2002.

VICENTE, Ana Valéria; LARANJEIRA Carolina Dias; OLIVEIRA Sergio. Engrupe


Dança – Interculturalidade e Diásporas, n. 4, 2013. Anais. Disponível em:
http://engrupe.cooperacdanca.org/index.php/engrupe/engrupe-n4/paper/view/98/97.
Acesso em: 20 jun 2019.

i
Professora do Mestrado Profissional em Artes (Prof-Artes/UFPB) e dos cursos de Dança e Teatro da
UFPB. Graduada em Dança e Mestre em Artes (UNICAMP), Doutora em Artes Cênicas (UFBA), suas
pesquisas abrangem os campos da dramaturgia da dança, estados corporais e processos criativos na
interface entre culturas tradicionais e a dança contemporânea. ca.laran@gmail.com
ii
Graduada em Licenciatura em Dança pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), professora de
Artes no município de Cabedelo, de dança contemporânea e Balé Clássico. Direciona sua pesquisa
em dança para a cena contemporânea relacionando-a a corporeidades da cultura e manifestações
populares, bem como a questões performáticas e tecnologias da imagem para a cena.
ewellynlima.o@gmail.com

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