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UM ELO PERDIDO: STANISLAVSKI, MÚSICA E

MUSICALIDADE, TEATRO, GESTO E PALAVRAS

Michel Mauch – EMAC/UFG


mauch.michel@gmail.com
Adriana Fernandes – UFPB
fernandesufpb@gmail.com
Robson Corrêa de Camargo – EMAC/UFG
robson.correa.camargo@gmail.com

RESUMO: Este trabalho descreve alguns aportes do ator e diretor de teatro russo Constantin Stanislavski
(1863-1938) sobre a prática teatral, concentrando-se na sua relação com o fenômeno musical,
fundamental em sua teorização sobre as técnicas de atuação no teatro. Stanislavski foi diretor do Estúdio
de Ópera Bolshoi a partir de 1918. O diretor russo apoiava seu trabalho de ator e encenador fortemente na
discussão sobre o papel do tempo e do ritmo na prática do ator. Existem também importantes partes de
seu trabalho, principalmente o anexo do livro El Trabajo del Actor Sobre Sí mismo en el Proceso
Creador de la Encarnación, que não foram traduzidos nas edições ocidentais e que serão aqui tratados.
PALAVRAS-CHAVES: Voz; Teatro; Musicalidade.

ABSTRACT: This paper focus in some musical aspects of the theatrical work of the director Constantin
Stanislavski (1863-1938). Stanislavski was the main director of the Bolshoi Opera Studio (1918b). The
Russian director supports his acting work strongly in rhythm and time as the bases of his actor´s and
director´s work, and there are many substantial parts of his work that is not translated to English or
Portuguese and it will be focused here, mainly some aspects of the El Trabajo del Actor Sobre Sí mismo
en el Proceso Creador de la Encarnación.
KEY WORDS: Voice; Drama; Music.

Em janeiro de 1921, Stanislavski mudou-se para uma nova e enorme casa


onde funcionou também seu laboratório, e onde foram sendo elaborados os passos
principais e finais de seu “sistema” sobre o trabalho do ator. Nesta casa, como podemos
notar na obra Stanislavski on Opera, o “[...] piano nunca cessava de tocar, exceto à noite
[…] (STANISLAVSKI, 1984, p.1)”. Nesta época o diretor trabalhava, em sua casa
estúdio, técnicas para a Ópera do Bolshoi, sob sua responsabilidade desde 1918, em
ensaios que começavam bem cedo e iam até o final da tarde, estudando intensamente a
forma de aprofundar seu “sistema” de interpretação junto ao teatro operístico. Em 1922,
ano em que o Teatro de Arte de Moscou iniciara sua turnê mundial, Stanislavski
encenara um de seus grandes trabalhos, Eugene Onegin, com música de Tchaikovsky,
encenação esta considerada uma das grandes reformadoras da Ópera russa
(ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA, 2009, On line).
O Estúdio de Ópera Bolshoi, mais tarde chamado Estúdio Ópera
Stanislavski, foi formado principalmente por três cantores Antarova, Sadovinikov,

1
Sadamov e por jovens do Conservatório de Música de Moscou, procurando juntar
experientes cantores e atores. Sua metodologia principal, tal qual nos mostra
Stanislavski (1988), consistia na prática de seu sistema, exercícios musicais, treino de
posições corporais e movimento no espaço, liberação de tensões corporais e,
principalmente, o canto de árias e baladas. Tudo isto antes de encenar qualquer
produção. Toda essa preparação contava ainda com a ajuda de sua irmã Zindaida
Sololova - responsável pela partitura interior da personagem “inner score” - e seu irmão
Vladimir Alexeiev, importante pianista, que aprofundava a parte lidada ao ritmo. Já no
desenvolvimento da dicção cantada e da ortofonia, seguiam-se os conselhos de M.
Safonov.
Stanislavski reconhece a importância do ator trabalhar intensamente a sua
corporeidade sob as mais diversas modalidades, reportando-se à música e seus
princípios como uma ferramenta fundamental. O mesmo Stanislavski (1964), em seu
livro A preparação do ator, declara que o trabalho corporal de um ator deve ser feito de
forma consciente, com possibilidades para desenvolver a organização espaço-temporal,
a resistência, a flexibilidade, reconhecendo a importância fundamental da preparação
musical para os atores.
Através de seu heterônimo, Tórstov1, Stanislavski revela em seus livros,
como os atores em um processo de ensaio podem aprender com o tempo-rítmo. A
relação deste diretor russo com a música era de tal forma intrínseca que ele a utilizava
de forma permanente e crítica. Um dos métodos de ensino de seu estúdio foi o de
Dalcroze, o qual Stanislavski conhecia tão bem que chegava a utilizá-lo de maneira
crítica. Deste modo, formas de ginástica rítmica eram comuns em seu processo de
ensino-aprendizagem.
Infelizmente a compreensão plena do trabalho deste ator, diretor, pedagogo
e escritor não é conhecida, pois as traduções ao inglês e as de todo o ocidente, assim
como a respectiva ao português, possuem partes centrais eliminadas de seu trabalho que
são oriundas da edição norte-americana. Felizmente, na Argentina 2, na década de 1970,

1
Nome da personagem fictícia que, em alguns de seus livros, é um respeitado professor de teatro.
2
Estas foram “[...] através de Salomón Merecer, traduzidas diretamente do russo [...]” (MAUCH e
CAMARGO 2008, p. 4414). Colocamos aqui os nomes dos livros de Stanislavski traduzidos diretamente
do russo para o espanhol e, entre parênteses, os seus respectivos nomes traduzido, a partir da versão
norte-americana, ao português: Mi Vida en el Arte (Minha Vida na Arte), El Trabajo del Actor Sobre Sí
Mismo en el proceso Creador de las Vivencias (A Preparação do Ator), El Trabajo del Actor Sobre Sí
mismo en el Proceso Creador de la Encarnación ( A Construção da Personagem) e El Trabajo del Actor

2
foram feitas traduções, ilegais, nas quais se buscou a totalidade das idéias do autor.
Podemos observar nestas traduções algumas afirmações que podem ajudar no melhor
entendimento da música em sua propositura para o teatro.
A partir dos escritos do título “I. Materiales Suplementarios para el Tercer
Tomo”, o qual se inserem no capítulo “Apendices” do livro El Trabajo del Actor Sobre
Sí mismo en el Proceso Creador de la Encarnación, podemos verificar melhor esta
relação música e palavra.
No subtítulo “I. Sobre la Musicalidad de Lenguaje” (a musicalidade da
linguagem), a primeira informação relevante é esta comparação que Stanislavski faz da
voz falada com o canto:

Ao declamar, eu tratava de falar do modo mais simples possível, sem um fino


patetismo, sem falsa cantoria, sem uma exagerada métrica dos versos, seguin-
do o sentido interior da obra, sua essência. Não se tratava de uma mesquinha
simplificação e seguia sendo uma linguagem formosa. Contribuía para isso
que as sílabas das frases teriam sonoridade de um canto e isto lhes dava
nobreza e musicalidade. (Esta, e as demais, traduções ao português são de
nossa autoria)

─ Al declamar, yo trataba de hablar del modo más simple posible, sin un fino
patetismo, sin falso canturreo, sin una exagerada medida de los versos,
siguiendo el sentido interior de la obra, su esencia. No se trataba de una
mezquina simplificación, y seguía siendo un lenguaje hermoso. Contribuia a
ello que las sílabas de las frases tenían sonoridad, como un canto, y esto
les daba nobleza y musicalidad (STANISLAVSKI 1997, p.316 – Grifos
nossos).

A partir deste ponto, abordando a palavra como sonoridade ou


musicalidade, pode-se perceber a importância que Stanislavski dava a cada sílaba e a
cada palavra. Primeiramente, ele nos mostra que é possível conseguir uma bela
musicalidade com a simplicidade, sem ter que se extraviar para exageros na pronúncia e
tendo como apoio o intrínseco ou “interior” da obra, ou seja, as idéias e propósitos da
trama. Para isto o que contribui bastante é a capacidade do ator, assim como do cantor,
de dar uma determinada sonoridade qualificada à palavra e, conseqüentemente, a uma
frase e, por fim, em toda a obra do autor.
Entretanto o autor de Minha Vida na Arte adverte:

[...] Tem que saber não somente desfrutar pessoalmente com a própria
linguagem, mas, também, dar aos espectadores a possibilidade de captar,
entender e assimilar o que é digno de atenção. Tem que se transmitir, de

Sobre su Papel (A Criação de um Papel).

3
modo imperceptível, as palavras e a entonação ao ouvido de quem escuta. É
fácil tomar um caminho errado e começar a exibir ante o espectador a
própria voz, coquetear com ela, vangloriar- se da maneira de falar.

[...] Hay que saber no sólo disfrutar uno mismo con el proprio lenguaje sino,
también, dar a los espectadores la posibilidad de captar, entender y asimilar
lo que es digno de atención. Hay que transmitir, de modo imperceptible, las
palabras y la entonación al oído del escucha. Es fácil tomar un camino
errado y empezar a exhibir ante el espectador la propia voz, coquetear con
ella, vangloriarse de la manera de hablar (STANISLAVSKI, 1997, p.316).

Assim sendo este diretor russo aborda problemas muito comuns até hoje na
voz falada dos atores e cantores de teatro 3, que é a capacidade de um ator/atriz, que ao
dominar aspectos técnicos da voz e procura mostrar ao seu público principalmente este
aspecto de “virtuose”.
Sobre a utilização da linguagem junto às técnicas sonoras, Stanislavski
continua:

Eu reconheci o que em nossa linguagem se chama sentir a palavra.


A linguagem é música. O texto do papel e da peça são melodias, óperas ou
sinfonias. A pronúncia na cena é uma arte não menos difícil que o canto, que
requer grande preparação e técnica que chega ao virtuosismo. Quando um
ator com voz bem exercitada, que possui uma refinada técnica da
pronunciação, diz com excelente sonoridade seu papel, cativa-me com sua
maestria. Quando tem ritmo, e a margem de sua vontade se entusiasma com
o ritmo e a fonética de sua linguagem, emociona-me. Quando o ator penetra
na alma das letras, as sílabas, as frases e os pensamentos, arrastam-me para
os segredos profundos da obra do autor e de sua própria alma. Quando
pinta com vivas cores e delineia com a entonação o que está vivendo dentro
de si, faz-me ver com o olhar interior as imagens e quadros de que falam as
palavras do texto e os que criam sua imaginação.

Yo reconocí lo que en nuestro lenguaje se llama sentir la palabra.


El lenguaje es música. El texto del papel e de la pieza son melodías, óperas o
sinfonías. La pronunciación en la escena es un arte no menos difícil que el
canto, que requiere gran preparación y técnica que llegan al virtuosísimo.
Cuando un actor con voz bien ejercitada, que posee una refinada técnica de
la pronunciación, dice con excelente sonoridad su papel, me cautiva con su
maestría. Cuando tiene ritmo, y al margen de su voluntad se entusiasma con
el ritmo y la fonética de su lenguaje, me emociona. Cuando el actor penetra
en el alma de las letras, las sílabas, las frases y los pensamientos, me
arrastran hacia los secretos profundos de la obra del autor y de su propia
alma. Cuando pinta con vivos colores y delinea con la entonación lo que está
viviendo dentro de sí, me hace ver con la mirada interior las imágenes y
cuadros de que hablan las palabras del texto y los que crea su imaginación
(STANISLAVSKI, 1997, p. 316)

3
Constatamos isto através de nosso trabalho empírico desenvolvido junto aos atores e estudantes teatro
desde 1970.

4
Novamente, Stanislavski, mostra a voz falada como uma melodia e acentua
a capacidade do ator trazer, a partir dela e do uso parcimonioso da técnica, uma
determinada atmosfera para o público.
Em primeiro lugar temos aquele ator que tem ciência sobre as técnicas e
nelas sabe desenvolver o som, de certa forma estruturada e racional. Mas quer o diretor
russo sublinhar o trabalho do ator, que sabe se servir do ritmo para “brincar” com as
palavras, trazendo através dele os sentimentos da personagem.
Em terceiro lugar, um ator que sabe “saborear” as palavras, as frases e a
idéia do autor, levando através da sonoridade criada, o espectador para junto dele em
palco. Por último, um ator magistral. Este, além de trazer o espectador para junto dele
em cena, por meio de suas entonações, cria imagens para o público através da voz,
apresenta estas imagens que estão em seu interior para o exterior, mostrando-as para que
o assiste e faz viver a ludicidade desta criação total. O diretor moscovita completa:
Quando o ator que controla seus movimentos, completa com eles o que dizem as
palavras e a voz, parece-me que escuto o acompanhamento harmonioso de uma
magnífica canção [… ](STANISLAVSKI 1997, p.316 – 317)”4.
Desta forma, o autor de Minha Vida na Arte, vai elaborando uma sinfonia na
palavra falada do ator, que se conclui com a diferenciação dada pelas pausas e pelos
acentos. Para elaborar este exemplo ele nos oferta a seguinte frase “Eu sem você não
posso viver (STANISLAVSKI 1997, p.316 – 317)” 5, através da qual ele expõe:

De que modos diferentes, sempre novos a cada vez, pode-se cantar esta
frase! Quantos significados diversos contêm, que numerosos e distintos
estados de ânimo se pode extrair dela! Façam a prova de distribuir em
diferentes formas as pausas e os acentos e obterão, sem cessar, novos
significados! Pausas breves, junto com o acento, separam precisamente a
palavra principal, apresentam literalmente em uma bandeja e a servem
separadamente das outras. As pausas largas e silenciosas dão a
possibilidade de satisfazê-las com um novo conteúdo interior. Ajuda a este o
movimento, a mímica, a entonação. De estas trocas surgem constantemente
novos estados de animo, originam-se novo conteúdo de toda a frase.

De qué modos diferentes, nuevos cada vez, se pueden cantar esta frase!
¡Cuántos significados diversos contienen, qué numerosos y distintos estados
de ánimo se pueden extraer de ella! Hagan la prueba de distribuir en
diferentes formas las pausas y los acentos, y obtendrán, sin cesar, nuevos
significados! Pausas breves, junto con el acento, separan precisamente la
palabra principal, la presentan literalmente en una bandeja y la sirven
4
“Cuando el actor que controla sus movimientos, completa con ellos lo que dicen las palabras e la voz,
me parece que escucho el acompañamiento armonioso de una magnifica canción […]
5
“¡Yo sin ti no puedo vivir!

5
separadamente de las otras. La pausas largas y silenciosas dan la
posibilidad de colmarlas con un nuevo contenido interior. Ayudan a esto el
movimiento, la mímica, la entonación. De estos cambios surgen
constantemente nuevos estados de ánimo, se originan un nuevo contenido de
toda la frase (STANISLAVSKI 1997, p.318 – Grifos nossos).

Como percebemos, Stanislavski demonstra que grande parte para a


diferenciação de uma mesma frase é a forma de “cantar a frase”. Outro ponto,
minuciosamente estudado pelo diretor russo, está relacionado as pausas e a capacidade
desta de modificarem o sentido de uma frase.
A partir deste ponto, embarcamos no segundo subtítulo deste capítulo, sobre
o manuscrito das leis da linguagem (“2. Del Manuscrito “Leyes del Lenguage”), no
qual, Stanislavski conclui sua idéia dizendo que: “O ator atua na cena com a palavra,
mediante as entonações (subidas e descidas), os acentos (força) e as pausas
(detenções) (STANISLAVSKI, 1997, p.318)”6. Adiciona à idéia de entonação o fato de
que:

[...] A aula de canto lhe ajudará neste trabalho, e o resultado se revelará


com o tempo, quando para sua entonação se abra uma ampla gama vocal
[...] Quanto mais amplo é o diapasão, maior é o que se pode expressar com
ele

[...] La clase de canto le ayudará en este trabajo, y el resultado se revelará


con el tiempo, cuando para su entonación se abra una ancha gama vocal
[...] Cuanto más amplio es el diapasón, es más lo que se puede expresar con
él (STANISLAVSKI 1997, p.320).

Outra questão que Stanislavski evidencia é o signo de pontuação, pois para


cada um deles consiste [...] em agrupar as palavras da frase e indicar as paradas da
linguagem ou pausas [...] cada signo de pontuação requer a entonação características que lhe
7
corresponde [...] (STANISLAVSKI, 1997, p.320) . Portanto, como pode se constatar, a
partir desta breve discussão, é intensa a relação do trabalho atoral, com os parâmetros
musicais na preparação do cantor ou do ator, no “sistema” stanislavskiano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

6
“...Por conseguinte, el actor actúa en la escena con la palabra, mediante las entonaciones (subidas y
bajadas), los acentos (fuerza) y las pausas (detenciones)”.
7
“[...] en agrupar las palabras de la frase e indicar las paradas del lenguaje o pausas [...] cada signo de
pontuación requiere la entonación características que le corresponde [...]

6
CAMARGO, Robson Corrêa. O Espetáculo do Melodrama. Tese de doutorado em
Artes Cênicas. Orientação: Ingrid Dormien Koudela. Escola de Comunicação e Artes/
Universidade de São Paulo: São Paulo, 2005
ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA. Konstantin Sergeyevich Stanislavsky.
Disponível em:<http://www.britannica.com/EBchecked/topic/563160/Konstantin-
Sergeyevich-Stanislavsky>. Acesso em 30 de ago de 2009.
GUINSBURG, Jacó. Stanislávski e o Teatro de Arte de Moscou. São Paulo:
Perspectiva, 2006.
MAUCH, Michel; CAMARGO, Robson Corrêa de. O Método Stanislavski: a edição
de A Construção da Personagem em português e espanhol, um estudo
comparativo. In: XVI Seminário de Iniciação Científica (In: V Congresso de Ensino
Pesquisa e Extensão), 2008, Goiânia: UFG, 2008. p. 4411-4425.
STANISLAVSKI, Constantin. El Trabajo del Actor Sobre Sí mismo en el Proceso
Creador de la Encarnación. Tradução de Salomón Merecer. Buenos Aires: Quetzal,
1997.
______. A Construção da Personagem. Tradução: Pontes de Paula Lima. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
______. On Opera. Theatre Arts Book. NY: Março 24, 1998. (1974 1. Ed.).

7
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