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Faculdade Santa Marcelina

Marcos Leandro do Nascimento

Passagem de registros: história e contribuições da pedagogia vocal acústica

Trabalho apresentado como


requisito parcial para a conclusão
da pós-graduação lato sensu
Pedagogia vocal: expressão e
técnica, sob orientação da Profa.
Doutora JOANA MARIZ.

São Paulo
2022
2

Passagem de registros: história e contribuições da pedagogia vocal acústica

Marcos Nascimento (FASM)

Resumo: O treinamento vocal acontece por meio da utilização de ferramentas pedagógicas que
visam proporcionar a coordenação de vários setores do corpo humano, tais como: respiração,
postura, fonação, articulação, entre outros, a fim de que o cantor possa desenvolver suas
potencialidades expressivas e o domínio saudável e equilibrado da voz. A pedagogia vocal foi
desenvolvida a partir de saberes que envolvem as grandes áreas do conhecimento: exatas
(acústica), biológicas (fisiologia) e humanas (música e artes). Visto a dificuldade de abarcar a
diversidade de saberes que constituem a pedagogia vocal, é comum que professores com uma
formação pouco abrangente obtenham muitas vezes resultados inconstantes na sua prática de
ensino de canto. O presente trabalho pretende elucidar alguns pontos da acústica da voz cantada
sob o prisma da pedagogia acústica de Kenneth Bozeman (uma abordagem que leva em
consideração os princípios da física acústica e psicoacústica), com foco na cobertura da
passagem de registro laríngeo. A intenção é contribuir para o entendimento e difusão desses
conceitos no ensino de canto, numa linguagem acessível.
Palavras-chave: Técnica vocal. Pedagogia vocal. Pedagogia acústica. Cobertura da passagem
de registro laríngeo. Passaggio vocale.

1 - Introdução
A terminologia da física acústica aplicada na pedagogia vocal tem sido considerada um
aspecto quase transcendental na prática docente, um tabu evitado por alguns e ignorado por
muitos, como se uma aura de ocultismo pairasse sobre termos como: formantes, harmônicos,
sintonias etc. A palavra ressonância tem sofrido uma espécie de assassinato de reputação. Na
Internet, por exemplo, o termo é por vezes usado em frases e jargões como estratégia de
marketing digital1, para engajamento2 de vídeos e propagandas de produtos relacionados ao
ensino de canto. Outras vezes, os termos aos quais a terminologia acústica se refere são usados
na forma de metáfora, para justificar uma didática mais tradicionalista3 e empírica4, como
reafirmação de pedagogias feitas a partir de releituras baseadas em experiências pessoais, e não
testadas cientificamente.

1
Ações de comunicação utilizando a Internet, telefonia celular, e outros meios digitais para divulgar e
comercializar produtos ou serviços.
2
Engajamento digital ocorre quando um usuário realiza ativamente uma ação com um conteúdo em uma rede
social. Essa ação pode ser um clique, uma curtida, entre outras. Em geral é medido em relação ao alcance do post,
ou ao número de seguidores em uma taxa de engajamento.
3
Filosofia que defende a utilização de uma realidade passada como norma, ou prática, pelo simples fato de
pertencer a uma tradição, e neste sentido promove uma percepção passiva do aluno em relação ao ensino
aprendizagem. (SCHETTINO, 2017).
4
Filosofia que argumenta que todo o conhecimento deve ser adquirido por meio de experiências sensoriais. O
Empirismo surge para contrastar com o Racionalismo, no qual o conhecimento deve ser adquirido a partir da
razão. (OLIVEIRA, 2004).
3

O próprio autor deste estudo, que é cantor e professor de canto, passou anos
compreendendo de forma equivocada tais princípios. Este percurso decorre de minha formação
musical, mais empírica, metafórica e arraigada na tradição (maneira de se trabalhar e ainda
muito presente no círculo de ensino de canto no nosso país). Eu buscava, por exemplo,
direcionar minha voz por meio das sensações vibratórias no crânio5. Acreditava ser a melhor
estratégia, pois estaria me baseando em um fator concreto, podendo ser repetido e treinado.
Percebi que essa didática apresentava resultados inconstantes, que criaram tensões inexistentes
ao início do treinamento.
Ao continuar meus estudos de formação acadêmica, compreendi que a origem desse
pensamento e o apego às tradições do ensino de canto são oriundos da pedagogia vocal do
século XIX que chegaram por aqui principalmente com a imigração alemã (1824) e italiana
(1887)6. Para explicar melhor e justificar a importância dessa discussão, voltarei ao exemplo
mencionado acima sobre o direcionamento da voz.
O conceito de que o som pode ser direcionado para os seios paranasais baseia-se na
Teoria Inharmônica (Edward Wheeler Scripture 1864 – 1945) que acreditava que as pregas
vocais não seriam capazes de produzir os harmônicos da voz humana, mas ao invés disso,
produziam pequenas baforadas (pufes) de ar, que seguiam pelo duto oral até encontrar
cavidades ósseas da face, como os seios paranasais – foi dessa teoria se originou o termo voz
na máscara, por exemplo. Essa ideia foi refutada pela Teoria Harmônica (Hermann Von
Helmholtz 1821 – 1894) já no século XIX, que afirma que as pregas produzem frequência
fundamental e harmônicos, e que é válida até os dias atuais (MARIZ, 2013, p. 61). O tremor
vibratório ósseo pode ser sim, um indicativo de boa sintonização acústica, mas como recurso
pedagógico de memória somestésica7, ou seja, como habilidade de reproduzir um estímulo
proprioceptivo não se mostra muito eficiente pois, uma sensação emerge de configurações
específicas dos mecanismos fonoarticulatórios e não um disparador dessas configurações.

Em resumo, podemos dizer que as vibrações no crânio refletem não somente


aspectos fonatórios, como também articulatórios. Assim, a relação entre os
padrões vibratórios no rosto e a fonação não é simples nem direta, e, portanto,
o controle da fonação mediante essas vibrações não constitui uma tarefa trivial.
(SUNDBERG, 2018, p. 222).

5
Ou Palestesia (suscetibilidade vibratória como aquela que pode ser sentida quando se aplica o diapasão numa
protuberância óssea) – sensação humana da vibração (BOZEMAN 2021, p. 37).
6
Disponível em < imigração no Brasil | Britannica Escola >
7
São mais confiáveis em frequências até 1000 Hz para estímulos internos (BOZEMAN 2021). Essa memória de
acesso oferece melhor resposta quando são utilizados estímulos externos, como por exemplo, no treinamento da
percepção musical.
4

O exemplo deste autor, infelizmente, é bastante comum, fato que motiva e justifica a
necessidade da pesquisa a qual este artigo se dedica e convida a discutir.
Sabendo que a pedagogia vocal envolve uma grande abrangência de assuntos e
conceitos de diversas áreas do conhecimento científico, tais como exatas (acústica, rítmica,
harmonia etc.), biológicas (fisiologia, anatomia, motricidade etc.) e humanas (artes, música,
psicologia etc.); este trabalho se dedica a destrinchar, sob o ponto de vista da história da
pedagogia vocal e da acústica, um fenômeno específico: a cobertura da passagem do registro
laríngeo (ou registro vocal). Para tanto, utilizarei referências que revisam a história da evolução
da técnica vocal e um referencial bastante atual e, até o presente momento, pouco conhecido no
país, que é a abordagem pedagógica proposta por Kenneth Bozeman entre outros autores do
início do século XXI, tais como Donald Miller e Christian Herbst, denominada pedagogia
acústica (BOZEMAN, 2018).8

Agora percebemos cada vez mais que o registro no canto não é exclusivamente
laríngeo; é tanto muscular quanto acústico. Embora uma mudança gradual, ou
pelo menos suave, da dominância dos músculos tireoaritenóideos para os
cricotireóides ocorra no cantor masculino treinado que sobe na escala, fatores
acústicos facilitam ou impedem essa coordenação de forma muito significativa.
(BOZEMAN, 2007, p. 267).9

A pedagogia acústica é um braço da pedagogia vocal que não substitui outras


abordagens, mas que, ao contrário, nos oferece um caminho pedagógico complementar, pois
baseia na resultante10 da ação conjugada de diferentes fatores na configuração das estruturas
fisiológicas, que nem sempre são fáceis de entender e aplicar. No entanto, esse conteúdo
favorece ao docente um repertório de possibilidades didáticas mais assertivas, primeiro
clarificando suas habilidades no diagnóstico11 vocal, segundo clarificando a complexidade da
técnica vocal como um todo, pois conforme aumenta nossa compreensão sobre a complexidade
do fenômeno vocal, aumenta também nossa habilidade para manejar a voz.
A seguir, faço uma breve retrospectiva histórica da relação entre a pedagogia vocal e as
ciências da voz para, então, introduzir os conceitos sore cobertura da passagem de registros,
tais como abordados dentro da pedagogia acústica.

8
Todas as traduções são de autoria do autor deste artigo.
9
We now increasingly realize that registration in singing is not exclusively laryngeal; it is both muscular and
acoustic. While a gradual, or at least smooth shift from dominance of the thyroarytenoid to the cricothyroid
muscles does occur in the trained male singer ascending the scale, acoustic factors either facilitate or impede this
coordination to a very significant extent. (BOZEMAN, 2007, p. 267).
10
Efeito, consequência.
11
Análise, investigação inicial.
5

2 - Um breve histórico da relação entre a pedagogia vocal e ciências da voz e o surgimento


do fenômeno acústico da cobertura
A história do manejo dos registros vocais no ensino do canto se confunde com a própria
história da pedagogia vocal.
Talvez, os primeiros documentos que se pôde apurar até o momento, que indiquem
orientações sobre o ensino de canto, sejam do padre espanhol Isidoro de Sevilla (560 – 636),
como nos relata Farah (2019, p. 23). Ele descreve orientações de como deveria ser a sonoridade
dos cantores na hora de entoar os salmos nas missas; eles deveriam cantar seguindo a liturgia12:
a melhor forma seria com um timbre13 claro, boa dicção para que a comunidade entendesse os
textos sacros e o rito eclesiástico14: “Uma voz perfeita é aguda, doce e clara: aguda que alcance
notas agudas, doce que o espírito dos ouvintes fique envolvido, e clara que encha os ouvidos”
(FARAH, 2019, p. 23).
Orientações como estas comumente publicadas em forma de tratados15 aumentaram ao
longo dos anos devido ao desenvolvimento artístico-musical da cultura religiosa ocidental,
havendo a necessidade de um recrutamento maior de pessoas para o ofício eclesiástico16. Esses
primeiros tratados não relatam como eram os treinamentos da época, os procedimentos
executados, as técnicas; somente delimitavam como deveria ser o resultado, o que se esperava
de um “belo modo de cantar”, em relação ao ofício desempenhado. Mariz (2013, p. 17) nos
relata que esses parâmetros eram descritos por meio de adjetivos variados: o cantar deveria ser
agradável, limpo, sonoro, estável etc. “eram regras estilísticas a serem cumpridas por aqueles
interessados a seguir uma carreira de canto” (MARIZ, 2013).
Em 1474 o padre alemão Conrad Von Zabern (? – 148?) escreve o primeiro manual
dedicado a técnica vocal, segundo Farah (2019). Ele propõe, dentre outras coisas, a passagem
suave entre os registros17, e, condenava cantar notas altas com voz plena. O texto de Zabern,
segundo a autora, é o primeiro a nos dar pistas de que a técnica vocal com abaixamento de
laringe (ou laringe estável, não alta) já era usada na época (FARAH, 2019, p. 24).
No final do século XVI, Zacconi expressa em seu tratado, talvez a primeira menção de
registros vocais:

12
Reunião de elementos ou práticas que fazem parte de uma tradição religiosa.
13
Sonoridade que nos permite diferenciar vozes, devido a propriedades acústicas específicas.
14
Conjunto dos modos usados no desenvolvimento dos ofícios e/ ou sacramentos.
15
Texto contendo conjunto de regras e procedimentos permitidos e não permitidos em um acordo pré-estabelecido.
16
Ofício eclesiástico indica o serviço que no âmbito de uma função é prestado à comunidade – Múnus.
17
Extensão de sons da voz humana produzida por um determinado padrão vibratório das pregas vocais, a pedagogia
vocal moderna aponta a existência de quatro registros vocais: registro pulsátil ou vocal fry, registro de peito,
registro de cabeça e registro de apito ou whistle, baseada nos mecanismos laríngeos.
6

Provavelmente, a primeira menção explícita aos registros vocais foi feita por
Zacconi no final do século XVI. Em sua Prattica di musica, ele distinguiu voce
di petto (literalmente traduzido como “voz do peito”) de voce di testa (“voz da
cabeça”). (HERBST, 2020, p. 176).

Em seu tratado de 1602, o compositor e cantor italiano Giulio Caccini (1551 – 1618),
propõe que as canções devem ser transpostas18 e que o cantor deve escolher seus próprios tons,
no qual não precise trapacear (palavras do autor) usando o falsete ou força (FARAH, 2019, p.
25). A partir desse ponto no século XVII, as demandas do repertório vocal: fraseados, projeção
e a presença de coloraturas19 podem ter favorecido a preferência e prevalência de uma técnica
vocal com a laringe mais estabilizada, fato que pode ter favorecido também o desenvolvimento
da expressividade vocal por meio de uma sonoridade com maior amplitude acústica.
A partir do século XIX, seguindo no rastro do desenvolvimento científico, segundo nos
sugere Mariz (2014), o conceito já existente de técnica vocal emerge para um patamar mais
independente.

Com a explosão científica do século XIX e a emergência da abordagem


positivista do mundo, a voz passa a ser vista como objeto passível de
investigação lógica e científica, e os vários pressupostos técnico-estéticos do
canto erudito de então como partes de um mecanismo a ser dominado pelo
cantor. Surge, portanto, de forma relativamente autônoma em relação à
expressão musical, o conceito de “técnica vocal” como hoje conhecemos.
(MARIZ, 2014, p.2).

Os parâmetros estabelecidos pela ciência do século XIX foram fundamentais para as


grandes transformações na pedagogia vocal criando bases de formulações de conceitos e
tendências que até hoje são alvos de pesquisa e atualizações. Um dos grandes pedagogos vocais
do século XIX foi Manuel Garcia II (1805 – 1906). Além de inventor do laringoscópio20, Garcia
foi profícuo escritor e seus tratados são investigados e considerados até hoje:

Como professor de canto, Garcia promoveu muitos artistas, incluindo Mathilde


de Marchesi, uma cantora que se tornou famosa como professora de cantores,
tais como Julius Stockhausen, professor e especialista em Lieder e Charles
Stanley, professor e barítono inglês. O método de Garcia foi fundamentado em
conceitos e hipóteses científicas do mecanismo vocal, com atenção concentrada
em fundamentos tais como:
 Postura
 Fonação (golpe de glote)
 Centro respiratório
 Enunciação
 Uso de três registros (voce di petto, voce mista e voce di testa)
(VIDAL, 2000, p.13).

18
Transposição ou mudança de tom – é o processo de alteração da altura (graves e agudos) de uma melodia, ou
harmonia.
19
Execução ágil de diversas notas musicais em uma mesma sílaba.
20
Aparelho composto de espelhos, no qual se pode fazer uma laringoscopia indireta, procedimento que possibilita
a observação da glote e partes internas da laringe.
7

Antes de Garcia, outros tratadistas importantes como Pier Francesco Tosi (1653 – 1732)
basearam suas pedagogias na prática vocal dos Castrati. Ele mesmo, um castrato italiano,
professor, compositor e diplomata, foi o tratadista mais importante na transição dos séculos
XVII e XVIII com sua obra “Opinioni de’ cantori antichi e moderni (originalmente escrito em
1723), traduzido em vários idiomas nas décadas seguintes e baseado na brilhante carreira do
autor (PACHECO, 2004, p. 11, 12).

É possível perceber de TOSI (1743)21 a GARCIA (1924)22 uma crescente aproximação


das questões relativas à fisiologia da voz e à técnica vocal, segundo nos relata Mariz (2013, p.
17).

No século XIX a música vive o apogeu do Romantismo: um longo e importante período


com grandes variações de compositores e intérpretes vocais, orquestrações densas, teatros para
um maior número de pessoas exigindo mais volume dos cantores; o gosto do público vai se
alterando e passa a rejeitar a voz dos castrati. Farah (2019, p.27) descreve neste contexto, uma
mudança técnica importante para as vozes líricas masculinas:

O grande evento desencadeador na mudança da técnica vocal foi o “dó de peito”


em 1837 do tenor Gilbert Duprez na opera Guilhaume Tell (1829), de Gioachino
Rossini (1792 – 1868), em Paris (antes dessa data Giacomo e Giovanni David,
pai e filho, já chegavam ao sol 3 com laringe baixa. Domenico Donzelli iria até
o lá 3 com registro de peito). (FARAH, 2019, p. 27).

Ao aspecto escuro da voz, quando a laringe está abaixada, deu-se o nome de voix
sombree23. Este efeito acústico permite o aumento da projeção e imprime uma característica
mais viril e heroica aos personagens de ópera, promovendo uma cisão definitiva com a estética
dos castrati. (FARAH, 2019, p. 27). O “evento desencadeador” citado por Farah (2019), o “dó
de peito” de Gilbert Duprez, pode ter relações claras com o fenômeno da cobertura, pelo fato
de permitir a movimentação dos elementos acústicos sem a ação ativa do articular laríngeo,
sendo esse um dos aspectos da pedagogia acústica proposta por Bozeman (2018), que irei
abordar mais à frente.

21
Possivelmente ano da versão em alemão, por Johann Agrícola.
22
A edição original é de 1841, a edição utilizada no estudo citado neste artigo, é uma versão editada por Albert
Garcia, neto do autor original.
23
Literalmente “voz sombria”, referindo ao escurecimento do timbre pelo abaixamento da laringe.
8

As grandes transformações no cenário musical e o tratado de Manuel Garcia II


apresentado à Sociedade Científica Francesa na metade do século XIX protagonizaram
mudanças na produção literária da pedagogia vocal da época: metade dos livros de então
incluíam em suas páginas ilustrações sobre a fisiologia e anatomia do aparelho fonador, mas
como o assunto ainda era novo e sua compreensão não tão simples, as explanações continuavam
vagas e sem comprovação científica, muitas vezes cheias de críticas a outras abordagens
pedagógicas (MARIZ, 2013, p. 19).

Os autores posteriores a Garcia e anteriores à revolução tecnológica pós II


Guerra Mundial inauguraram uma série de questionamentos sobre a falta de
clareza ou mesmo competência dos professores de canto. Tais questionamentos
eram em geral utilizados como justificativa para a publicação de seus pontos de
vista pessoais na forma de manuais de treinamento técnico-vocal, que
prometiam esclarecer os problemas do canto com simplicidade (MARIZ, 2013,
p. 20).

Uma demanda alta de profissionais no mercado, uma nova realidade na pedagogia vocal
a partir das contribuições de Garcia, podem ter sido alguns dos fatores que propiciaram um
cenário competitivo e aberto para palpites e promessas de soluções fáceis.
Em períodos de transição como este é comum observarmos que todo tipo de informação,
mesmo que minimamente coerente, ganha um status de verdade absoluta e definitiva. Neste
período pós Garcia, acontece uma explosão de publicações sobre o assunto – muitos deles sem
referências bibliográficas (MARIZ, 2013, p. 19), que seguiu até meados do século XX.
Outro exemplo, é a utilização de fontes de diversas áreas do conhecimento no sentido
de dar suporte para as metodologias da época, como as publicações de Henry Holbrook Curtis
(1856 – 1920) e Edward Wheeler Scripture (1864 – 1945).

Nessa época, dois cientistas, um psicólogo e outro médico, escreveram obras que
tiveram grande peso para a nova estética e pedagogia do canto lírico. O médico foi
Henry Holbrook Curtis (1856 – 1920), com Voice Building and Tone Placing (1896).
Curtis, além de inaugurar o uso das sensações sinestésicas24 na pedagogia vocal,
preconizava o inverso de Garcia: trazer o registro leve até o limite inferior. O psicólogo
foi Edward Wheeler Scripture (1864 – 1945), autor de Thinking Feeling Doing (1895)
e The New Psychology (1897) que estudou as sensações cinestésicas25. Tiveram
admiradores entre cantores, sendo uma delas Lilli Lehman (1848 – 1929), famosa pelo
seu “capacete” de sensação de colocação da voz em função da frequência, descrita em
seu livro Meine Gesangkunst (1914). (FARAH, 2019, p. 29).

24
Referente a uma sensação secundária que acompanha uma percepção (Michaelis, 1998). Entendido comumente
como sinônimo de Propriocepção. Exemplo: estômago embrulhado, inspirar gelado etc.
25
Conjunto de sensações que nos permite a percepção dos movimentos do corpo (Michaelis, 1998). Exemplo:
percepção da dança, da luta etc.
9

Em seu livro (Meine Gesangkunst 1914 – 1924), Lehmann relata que a ciência ainda
não seria capaz de explicar os fenômenos do canto, por isso os cantores só poderiam confiar em
suas sensações e que essas seriam universais (MARIZ, 2013, p. 20). Este pensamento de que a
sensação vibratória é comum a todos, apesar de não ser considerado científico, inclusive pela
própria literatura que influenciou muitos cantores neste período, ganhou muita adesão e passou
a ser considerado estratégico na didática docente até os dias de hoje, sendo que no ensino de
canto lírico brasileiro é particularmente presente (MARIZ, 2013, p. 21).
Herbst (2020), ao citar Lehmann, nos dá uma boa definição sobre a evolução dos
conceitos ligados às sensações e da não universalidade das sensações proprioceptivas:

As respectivas sensações proprioceptivas podem não ser comparáveis entre os cantores,


devido às diferenças anatômicas intra-individuais. Por essas razões, conceitos de
“colocação de voz”, como o proposto por Lilli Lehmann, devem, na opinião deste autor,
não ser tratados como verdade absoluta, pois pode haver limites para generalizá-los. Em
vez disso, tais conceitos são úteis para ilustrar princípios proprioceptivos. Eles podem
ser utilizados individualmente. Existe potencialmente um “mapa corporal de
posicionamento de voz” para cada cantor, que depende da anatomia pessoal e das vogais
e tons cantados. Esses mapas precisam ser desenvolvidos com cuidado e
individualmente no treinamento de voz. (HERBST, 2020, p. 177).

Figura 1 – Capacete das sensações (LEHMANN, 1914, p. 99).

Herbst (2020) expande o pensamento de Lehmann no sentido de que as sensações


palestésicas podem oferecer um caminho pedagógico eficiente se aplicado individualmente.
10

3 - Aspectos acústicos na pedagogia vocal moderna

Como mencionamos anteriormente, a primeira metade do século XX é dotada de grande


variedade de publicações literárias sobre técnica vocal, concomitantemente, crescem as
pesquisas científicas sobre o assunto e, muitas delas, seriam os embriões para a formulação de
uma pedagogia vocal dotada de terminologia objetiva e cientificamente informada: a pedagogia
vocal moderna.

A literatura em língua inglesa se consolida no século XX. William Earl Brown transmite
as lições de seu mestre Lampertti, em Maxims of G.B. Lampertti (1931), uma obra de
grande influência. Os outros alunos de Lampertti são William Shakespeare (1849 –
1941) (homônimo do dramaturgo), com o seu The Art of Singing (1921) e Herbet
Whiterspoon (1873 – 1935) que escreveu Singing (1925) [...] Douglas Stanley (1890 –
?) com The Science of Voice (1929) e os três livros de seu aluno e contestador Cornelius
Reid (1911 – 2008): Bel Canto: Principles and Practice (1950), The free voice: A guide
to natural singing (1965), e Voice: Psyche and Soma (1975). Estes dois autores
enfatizaram principalmente os vários registros vocais. (FARAH, 2019, p. 29).

Assim como acontece nos dias de hoje, a ciência caminha paralelamente às demandas
do mercado e da sociedade como um todo, e é da pesquisa acadêmica que surgem as soluções
e as principais perguntas que nos impulsionam. Segundo Farah (2019), as publicações de 1967
de William Vennard e Ralph Appleman inauguram um período mais científico da pedagogia
vocal.

O ramo da literatura que associa a técnica vocal às descobertas nos ramos da fisiologia,
acústica e fonética é inaugurada em 1967 com os livros de William Vennard (1967) e
Ralph Appleman (1967). [...] O cantor e professor de canto Vennard em muito adianta
o que o cientista Sundberg vai explorar e provar com maior consistência científica, [...]
Já Appleman trata separadamente da parte da ciência e da parte do ensino do canto sem
integrá-las e seu interesse é a fonética. (FARAH, 2019, p. 29).

Ao mesmo tempo em que essas transformações acontecem, em que se dá o acoplamento


das experiências científicas com a pedagogia vocal, existe uma preocupação com a transmissão
desse conhecimento. Mais uma vez a história se repete: há a necessidade de uma terminologia
objetiva, e, da disseminação de forma clara dos conceitos pedagógicos agora parcialmente
testados. Por outro lado, existe grande interesse na conservação da estética tradicional do canto
lírico, bem como os processos vicariantes26 de ensino-aprendizagem, neste aspecto Mariz
(2013) nos explica:

26
Método de ensino baseado na reprodução de modelos – reforço vicariante – observação e repetição.
11

Esse tipo de formação em geral depende de um ambiente de admiração e


confiança e de um compromisso de entrega incondicional por parte do aprendiz
para funcionar, pois se fundamenta justamente na ideia de que o mestre é o
modelo ideal a seguir. Nesse contexto, termos, gestos, vocalises, preferências
estéticas e até mesmo ideias e posturas éticas fazem parte de um complexo
amálgama que representa a totalidade da figura do mestre. (MARIZ, 2013, p.
23).

Isso justificaria, inclusive, o fato de que alguns termos relacionados ao modo de cantar
foram abarcados como sinônimos de certas sonoridades e que fora do contexto são muito
difíceis de entender; o que poderia explicar o pensamento comum de que nem todos possuem
talento para o desenvolvimento vocal. Nesse aspecto, surge Richard Miller com National
Schools of Singing (1977), seu primeiro livro, no qual ele compara a técnica e estética das
escolas nacionais inglesa, italiana, francesa e alemã (FARAH, 2019, p. 29) – um primeiro passo
no sentido mais amplo e unificado da terminologia.

3.1 - Acústica e série harmônica

A acústica é uma área da Física que estuda os aspectos relacionados às ondas mecânicas,
como o som, o ultrassom e as vibrações que se propagam em meios sólidos, líquidos e gasosos.
A acústica tem aplicações diretas na música e, uma delas, é o estudo dos harmônicos em cordas
e em tubos sonoros.27 O trato vocal é um tubo sonoro flexível que permite uma série de
configurações para ajustes timbrísticos e fonéticos. Ao estudarmos os fenômenos acústicos da
produção da voz, utilizamos as definições e conceitos já existentes nesta área do conhecimento
científico humano (exatas).

Para melhor entendimento das questões acústicas ligadas à produção do som, revisou-
se o conceito de Série Harmônica. Segundo Abdounur (2007), desde a Grécia antiga já se
conhecia a respeito de uma sequência de parciais sobre um som fundamental – uma corda em
vibração irradia não somente o som percebido originalmente (por isso identificado como
“fundamental” ou “gerador”) mas, outros de intensidade menor que por afinidade acústica se
relacionam com ele, pois são gerados a partir dele – sons harmônicos, ou simplesmente
“harmônicos”.

27
Disponível em < https://brasilescola.uol.com.br/fisica/acustica.htm >
12

Uma das grandes questões que vinham acompanhando a acústica musical até
então referia-se ao mistério de harmônicos do som. Tentativas de teorizá-los já
haviam sido realizadas desde a Grécia Antiga, ganhando maior importância a
partir do Renascimento, quando teóricos tais como Gioseffo Zarlino (1517-1590),
René Descartes (1596-1650), Galileo Galilei (1564-1642), Marin Mersenne
(1588-1648), John Wallis (1616-1703), Joseph Sauveur (1653- 1716), Daniel
Bernoulli (1700-1782), Jean Baptiste Joseph Fourier (1768 – 1830), Georg Simon
Ohm (1789 – 1854), dentre outros, contribuíram para sistematizar a Série
Harmônica (ABDOUNUR, 2007, p. 373).

A série harmônica está presente na construção e afinação dos instrumentos musicais, na


técnica vocal e na notação musical ocidental. No exemplo abaixo, pode-se identificar a
representação da série harmônica em intervalos musicais (MED, 1996).

Figura 3 – Série harmônica de Dó (MED, 1996, p. 93).

Na produção vocal, a fonte glótica – que é o som produzido pelas pregas vocais – deve
ser forte o bastante para gerar a série harmônica.

Consideremos a série harmônica de um f0 de 100 Hz, que por questão de simplicidade,


deixaremos substituir G2 (que é, mais precisamente, 98 Hz). Os primeiros dez
harmônicos (incluindo f0, que é o primeiro harmônico) são estes tons. (D MILLER,
2008, p. 15).
13

Figura 4 – Série harmônica de Sol (G) D Miller (2008)

A seguir, dois exemplos de séries harmônicas; no primeiro (acima) um espectrograma


de um sinal acústico – cada linha representa um parcial (harmônico). No segundo (abaixo) a
amplitude dos harmônicos, nota-se que o gráfico está invertido, o primeiro harmônico (H1) está
em cima, este é o som fundamental (mais grave). Ambos representam apenas uma nota com
seus harmônicos.

Figura 5 – Espectrograma de uma série harmônica (HERBST 2020, p. 180)

3.2 - Aspectos acústicos: ressonância, formantes e harmônicos


Ressonância vocal é o resultado das interações dos harmônicos produzidos pelas pregas
vocais e as frequências ressonantes disponíveis no trato vocal. Entenda-se: um bom exemplo
seria soprar em garrafas vazias de diversos tamanhos. O som produzido pela coluna de ar é
fruto da ressonância disponível que a garrafa apresenta28.
Na introdução deste artigo, mencionou-se a palavra ressonância para descrever o cenário
confuso em que o ensino de canto se encontra em determinados ambientes. Mas, afinal, o que
é ressonância?

28
Disponível em < Formantes - VOZ - FOB - USP >
14

Corusse (2021) afirma que o primeiro ponto para se tratar em relação ao termo
ressonância seria compreender aquilo que ela não é:

Por vezes, o seu entendimento é cercado de confusões. O que ocorre é que se tende a
manter ideias equivocadas como a de um direcionamento ou colocação da voz e,
também, generalização desse nível da produção para toda a qualidade vocal, pois o
conceito de ressonância historicamente se confunde com o de sonoridade. (CORUSSE,
2021, p. 47).

Ressonância não é de fato sinônimo de sonoridade e sim de uma propriedade acústica


que interfere na qualidade do som. Neste sentido, ressonância não pode ser relacionada
diretamente aos registros vocais e modos de fonação, por exemplo, pois trata-se de causa e não
efeito desses processos.

Ressonância: pico na curva de frequência do trato vocal determinado pela interação


entre as ondas sonoras que se propagam no trato vocal. A amplificação de determinadas
frequências em detrimento de outras está relacionada às dimensões do trato vocal. As
ressonâncias do trato são chamadas de formantes. (SUNDBERG, 2018, p. 309).

Em sua definição, Sundberg (2018) nos mostra que ressonância é a interação das ondas
sonoras irradiadas no trato vocal, capaz de ampliá-las e, portanto, dentro desse contexto ser
relacionada aos formantes. Mais à frente será ampliado o conceito de formantes e harmônicos
sob o ponto de vista da pedagogia acústica, por hora voltemos ao termo ressonância.
Não se pode definir ressonância sem a compreensão primária da sua relação com o trato
vocal, ao exemplo das garrafas citado no início da seção, o trato vocal é a própria garrafa, só
que com o poder de se transformar em várias outras garrafas.

Trato vocal é o espaço constituído pelas cavidades da faringe e oral, ou seja, pelas vias
aéreas entre a glote e a abertura labial. As formas e comprimentos do trato vocal
determina suas ressonâncias, ou seja, as frequências dos formantes. (SUNDBERG,
2018, p. 310)
.
Irei tratar com mais propriedade o trato vocal e seus articuladores mais adiante.
Resumindo: ressonância é a amplificação das frequências emitidas pelas pregas vocais no trato
vocal, essa amplificação pode ser manipulada pelos articuladores do trato vocal.
Acontece que, ao se mudar a configuração do trato vocal, por meio da movimentação
dos articuladores (laringe, língua, lábios etc.), se altera um agente importante neste processo,
os formantes.
Segundo Bozeman (2021), pode-se, em algumas situações, considerar ressonância e
formantes29 como sinônimos.

29
Figura 2 – As frequências (ondas) irradiam-se (percorrem) pelo trato vocal, formando potenciais picos de
energia.
15

Formantes foram, portanto, definidos em grande parte da literatura como


“ressonâncias do trato vocal”30, tornando os termos sinônimos. No entanto, uma
ressonância do trato vocal muitas vezes não é equivalente a um pico de
frequência no espectro irradiado31. (BOZEMAN, 20121 p. 6).

Bozeman (2021) esclarece que no início as pesquisas foram feitas com ruídos e sons de
baixa frequência como os sons da fala, e, neste caso, havia equivalência entre os formantes
(picos de intensidade no espectro) e as frequências ressonantes do trato vocal, isto é, no caso da
fala as frequências de ressonância e os formantes seriam intercambiáveis. (BOZEMAN, 2021,
p. 6).
Para sons cantados de alta frequência32, no entanto, os harmônicos de origem – sons que
saem da prega vocal – são amplamente espaçados33, e podem não coincidir com as frequências
ressonantes do trato vocal34, por isso necessitamos ajustar articulatoriamente o trato em função
de sintonizar os formantes, a fim de controlar o timbre e a clareza dos fonemas desejados.
Entende-se, então, que ressonância são picos das frequências no espectro irradiado35,
ora comportando-se como potência – enquanto evento sonoro real – ora como potenciais
frequências no plano acústico, passíveis de ajuste. (BOZEMAN, 2021, p. 7).

As ressonâncias refletem as respostas de picos potenciais do trato vocal à


energia acústica introduzida pela fonte de voz, ou seja, as características de
transferências de som do trato vocal – a maneira característica pela qual o trato
vocal transfere o som da glote para o mundo exterior. (BOZEMAN, 2021, p. 7).

Figura 2 – Formantes (picos) no espectrograma (CORUSSE, 2021, p. 50).

30
Figura 6 – O trato vocal corresponde ao espaço das vias aéreas superiores que tem como limite inferior as pregas
vocais e como limite superior os lábios.
31
Espectro irradiado é o sinal resultante no final do trato vocal, ou seja, a sonoridade que nosso ouvido capta.
32
Notas agudas ao longo da extensão vocal.
33
Quanto mais agudo, mais espaçados são os harmônicos.
34
No nível da fala são correspondentes.
35
Representação gráfica da movimentação das ondas sonoras.
16

Segundo Bozeman (2018), dois fatores nos fazem recorrer ao primeiro e ao segundo
formantes do trato vocal para maior coordenação do timbre: não podemos localizar com
exatidão todos os formantes no trato vocal, e devido a reatância36 alguns formantes perdem
força.

Como não temos controle sobre a localização dos harmônicos (eles são determinados
pela altura que devemos cantar), o principal fator que podemos fazer a fim de sermos
ressonantes é a localização (sintonia) dos dois primeiros formantes. O cantor lírico vai
querer que a localização dos formantes mais altos seja o mais estável possível para a
consistência do timbre. [...] os primeiros dois formantes podem ser ajustados para
ressoar os harmônicos disponíveis. (BOZEMAN, 2018, p. 16).

Herbst (2021) também orienta que ajustes finos no articulador laríngeo e adaptações
ressonatórias da região supraglótica do trato vocal modificam os valores das frequências de
formantes F1, e, portanto, são fatores preponderantes na interação dos formantes na mixagem
do passaggio37. como veremos mais adiante.

Os formantes, portanto, são caracterizados como faixas de concentração de energia que


amplificam as frequências dos harmônicos pelo fenômeno da ressonância. São conhecidos
como F1, F2, F3, F4 e F5.

As frequências dos formantes que conferem a identidade fonética às vogais são


especialmente as primeiras (F1 e F2). Tais frequências estão relacionadas
respectivamente à conformação da cavidade posterior (faringe), atrás do ponto de
máxima constrição lingual (F1) e à cavidade anterior (cavidade oral) à constrição
lingual (F2). Considera-se também que F1 sofra influências da altura da língua e da
abertura da boca e F2, variações no eixo antero-posterior. O terceiro formante (F3) está
relacionado à passagem da constrição, ou seja, à cavidade atrás da constrição da língua
e na frente dela. (LIMA, 2007, p. 100).

A configuração dos articuladores no trato vocal influencia diretamente as frequências


dos formantes. Os dois primeiros estão mais relacionados às vogais e os demais às
características individuais do timbre. Outro aspecto é a alternância pela articulação da língua,
do volume entre as cavidades do trato vocal: cavidade posterior maior, maior incidência de
amplificação das frequências graves em F1, e cavidade anterior maior, maior incidência de
amplificação das frequências agudas em F1.

36
Grandeza que representa a oposição que um sistema oferece à passagem de uma onda sonora. Impedância.
(MICHAELIS, 1998)
37
Do idioma italiano, literalmente: Passagem; zona di passaggio: região ou área de passagem
17

Os harmônicos são parciais de uma frequência fundamental (f0) emitida pelas pregas
vocais localizadas na laringe, como já observado no tópico apresentado sobre acústica e série
harmônica. O som gerado é uma onda complexa e quase periódica capaz de emitir uma sucessão
de outras frequências parciais da fundamental, que podem ser reforçados ou abafados pelos
articuladores do trato vocal. Esses parciais são chamados de harmônicos e são numerados do
mais grave ao agudo38. Sobre esse aspecto, Corusse (2021) afirma:

Como foi visto, os harmônicos são definidos a partir de F0. Portanto, não há a
possibilidade de modificar a frequência de um determinado harmônico isoladamente.
Em contrapartida, as frequências dos formantes podem ser alteradas a partir das posturas
assumidas no trato vocal. Assim, há várias estratégias passíveis de sintonização.
(CORUSSE, 2021, p. 55).

3.3 - Aspectos acústicos nas sintonias e ressonâncias no trato vocal


Segundo Sundberg (2018), as frequências dos formantes são determinadas pelo
comprimento e forma do trato vocal, essas frequências influenciam diretamente o timbre e os
fonemas, pois, ao interagir com os harmônicos, determinam a intensidade desses últimos. É
possível identificar a forma do trato vocal através da função de área39, “que pode ser descrita
por meio de um gráfico que considera o comprimento do trato vocal – distância entre a abertura
labial e a glote, e a variação da área transversal ao longo do trato (forma)” (SUNDBERG, 2018,
p.44, 45).

Figura 6 – Trato vocal – articuladores e cavidades (CORUSSE, 2021, p. 49).

38
Disponível em < Formantes - VOZ - FOB - USP >
39
Curva representada em um gráfico contendo no eixo horizontal a distância ente a abertura labial e a glote, no
eixo vertical a variação da área transversal.
18

O comprimento do trato vocal depende, em primeiro lugar, das características


anatômicas e morfológicas de cada indivíduo. A partir destas características cada pessoa pode
modificar suas configurações do trato vocal por meio da articulação, modificando tanto o
comprimento, quanto a área transversal dele. Com a mudança da postura dos articuladores,
pode-se modificar os valores das frequências ressonantes: cada formante tende a ser mais ou
menos sensível ao movimento de determinados articuladores (SUNDBERG, 2018, p. 47).
Corusse (2021) sintetiza ao citar Sundberg:

Embora as frequências dos formantes sejam estabelecidas a partir da disposição do trato


vocal como um todo, o primeiro formante é particularmente sensível à abertura da
mandíbula, F2 à forma do corpo da língua e F3 ao espaço entre a ponta da língua e os
incisivos inferiores. F4 e F5 são mais determinados pelo comprimento geral do trato
vocal. (CORUSSE, 2021, p. 52).

Figura 7 – Gráfico de função de onda em comparação com o contorno do trato vocal (forma) adaptado de
Sundberg (2018, p. 45).

3.4 - Aspectos acústicos na sobreposição dos registros laríngeos


Segundo R Miller (2019) a voz masculina possui duas regiões de passagens (também
comumente chamada de quebra ou muda de registro) e uma grande zona de transição entre elas.
Apesar de ser uma zona de sonoridade frágil, também é uma região que traz novidade ao canto,
pois é um ambiente de contraste e, possivelmente, é onde a técnica vocal do cantor é mais
exigida.
19

Herbst (2021) nos fala a respeito dessa região como zona de sobreposição dos registros:
No que diz respeito aos registros vocais, as pregas vocais podem, sob certas condições
fonatórias especialmente na zona di passaggio – adotar o padrão vibratório tanto no registro de
peito quanto do falsete (HERBST, 2021, p. 34).
O treinamento vocal nas regiões de sobreposição faz parte de um rito saudável para a
voz, pois os registros assumem comportamentos cruzados (voz de peito com comportamento
de voz de cabeça, e voz de cabeça com comportamento de voz de peito) aumentando a
flexibilidade da musculatura intrínseca da laringe.
D Miller (2008), ao analisar a espectrografia de tenores, observou que F1 amplificava
também outros harmônicos em alguns casos, para que a sintonia alcançasse também H3.
Bozeman (2018) relatou também sintonias F2/ H3 e H4. A pedagogia acústica sugere o termo
registro acústico para as transições timbrísticas que ocorrem como resultado de interações de
harmônicos com o primeiro formante (BOZEMAN, 2018, p. 100). Dentre esses termos,
Bozeman sugere voce aperta para os timbres abertos e voce chiusa para os timbres fechados.

Timbre aberto (voce aperta40) e timbre fechado (voce chiusa41): sempre que um
harmônico cruza o primeiro formante, há um efeito sonoro descrito como fechamento
do timbre. Sempre que um harmônico cai abaixo de F1, o timbre pode ser ouvido
abrindo em algum grau. (BOZEMAN, 2018, p. 16).

Apesar do treinamento de sobreposição de registros laríngeos não fazer parte das


estratégias propostas por Bozeman na pedagogia vocal acústica, o autor deste artigo tem feito
uso dessa estratégia como treinamento preparatório para o desenvolvimento da coordenação
muscular e perceptiva das modificações timbrísticas.

3.5 - Aspectos da pedagogia vocal acústica na Sintonia F1/ H1


Do ponto de vista da Física, sintonia é a condição de dois sistemas capazes de emitir e
receber oscilações de uma mesma frequência (MICHAELIS 1998). Embora, todos os
harmônicos produzidos pela prega vocal sejam importantes para o timbre final, algumas
estratégias de sintonização privilegiam determinados harmônicos em detrimento de outros e
podem auxiliar no efeito de uniformidade timbrística sendo estratégias pedagógicas usadas por
muitos professores e cantores profissionais.

40
Voz ou timbre claro ou aberto – traduzido do italiano.
41
Voz ou timbre escuro ou fechado – traduzido do italiano.
20

A sintonia F1/ H1 é bastante usada por vozes femininas no canto lírico, principalmente
na região aguda e na cobertura do passaggio pois, segundo Bozeman (2018), nas regiões mais
agudas os harmônicos ficam muito espaçados e o 1º harmônico é o mais disponível – em
algumas notas, o único – para se fazer a integração da ressonância.

Se houver dois ou mais harmônicos abaixo do primeiro formante, ou seja, ao cantar tons
mais baixos, há pouca necessidade de afinação do formante, uma vez que nessa situação
geralmente haverá muitos harmônicos disponíveis para ressonância [...] com
frequências fundamentais mais altas, os harmônicos são mais amplamente espaçados,
deixando menos harmônicos dentro da faixa dos dois primeiros formantes a serem
ressonados. (BOZEMAN, 2018, p.16).

O canto feminino, sobretudo no canto lírico, necessita de frequências bem mais agudas
que as frequências utilizadas na conversação, conforme Vieira (2004). Um grande problema
acontece em relação ao espaçamento dos harmônicos: à medida que a fundamental (F1) fica
mais aguda, diminui a concentração de harmônicos em torno dos formantes, e, a voz vai
perdendo os ganhos oferecidos pela ressonância.
A técnica utilizada para aumentar a amplitude do harmônico fundamental é ajustar o
primeiro formante (F1), fazendo-o coincidir com f0, através do abaixamento da
mandíbula, gesto que tem certa seletividade sobre F1 [...] o harmônico fundamental
aumenta pela ressonância com F1, resultando num ganho na audibilidade da voz sem
que haja aumento na energia utilizada na fonação. (VIEIRA, 2004, p. 74).

Figura 8 – Gráfico demonstrativo da relação entre harmônicos e formantes – observe os tracinhos verticais
acima do teclado: cada traço indica um harmônico pertencente à série harmônica. Neste caso, o primeiro
harmônico está abaixo do primeiro formante. (BOZEMAN, 2018).

Na figura acima, pode-se observar vários harmônicos da série que ultrapassam as


últimas teclas do piano (pequenos traços acima do teclado). O primeiro tracinho está
posicionado em 264 Hz (Dó 4), F1. Seu harmônico correspondente H2 está uma oitava acima,
528 Hz (Dó 5).
21

Figura 9 – Gráfico demonstrativo da relação entre harmônicos e formantes – agora o tracinho está fixado em
940,9 Hz e seu Harmônico correspondente em 1881,8 Hz. (BOZEMAN, 2018).

Nesta outra figura, o primeiro harmônico, ou f0 está fora da primeira frequência de


ressonância. Por causa disso, tanto o timbre quanto o fonema estariam grandemente
prejudicados, até porque há apenas 3 harmônicos dentro de nossa faixa privilegiada de audição.
Portanto, uma boa estratégia seria a utilização da sintonia F1/ H1, isto é, usar a articulação para
fazer com que F1 coincida com a frequência fundamental cantada (como na figura a seguir):

Figura 10 – Gráfico demonstrativo da relação entre harmônicos e formantes na sintonia F1/ H1. (BOZEMAN,
2018).

Na figura acima, F1 está em sintonia com o primeiro harmônico (H1), o que gera um
pico de intensidade sobre a frequência fundamental no espectro irradiado.
22

4 - Algumas possibilidades de estratégias da pedagogia vocal acústica para o treinamento


da passagem de registro laríngeo

1. Treinamento do Timbre flautado (Whoop) F1/ H1 – princípio acústico:


Um aspecto acústico natural da voz é o grito de celebração Whoop, um recurso
de comunicação social ancestral. Bozeman (2021) propõe a utilização dessa ação
linguística, pelo fato de trazer consigo a configuração individual42 das estruturas
fisiológicas necessárias para se acessar a sintonia F1/ H1 (já mencionado na
seção anterior). Segundo o autor, se acionarmos o grito de celebração “Whoop”
– som flautado em português – ou em uma livre interpretação deste autor:
“Urrul!43” produziremos um efeito acústico que surge quando H1 atinge a
frequência do primeiro formante (F1). Esse timbre caracteriza-se pela frequência
fundamental ressonante (também conhecido por essa nomenclatura: f0
ressonante) porém, mais suave e menos forte podendo estabelecer-se no registro
de cabeça. (BOZEMAN, 2018, p. 19).
Herbst (2021) relata também esse fenômeno quando fala da sobreposição
dos registros, o autor nos relata que é bom para o desenvolvimento da
coordenação das habilidades vocais, porém, a sintonia F1/ H1 apresenta falta de
nitidez das vogais.

Figura 12 – No gráfico podemos observar H1 em sintonia exata com F1. Adaptado de (BOZEMAN, 2018, p.
21).

42
Apesar de ser reconhecido quase que universalmente, cada pessoa expressa essa sonoridade dentro das suas
características anatômicas e fisiológicas. A reprodução dessa sonoridade se dá pela percepção timbrística do
recurso em si.
43
Outras propostas de expressão dessa sonoridade (em uma livre interpretação deste autor): Vaia, Uivo e pio de
coruja.
23

2. Treinamento do Timbre aberto (voce aperta) F1/ H2 – princípio acústico:


O timbre aberto ou brado estridente44 está antropologicamente ligado as nossas
reações primitivas como forma de comunicação social – este tipo de brado faz
parte da nossa práxis vocal para advertir, reprimir ou chamar por alguém que
está longe. Segundo Bozeman (2018) a sintonia F1/ H2 é mantida por meio da
laringe em elevação e abertura da boca. Na vocalização a sintonia F1/ H2 se
manterá até o limite da registração, pois o primeiro formante irá seguir o segundo
harmônico até a quebra (ou mudança de registro). Essa estratégia também é boa
para treinar cantores jovens a respeito dos limites do passaggio e muito valiosa
no teatro musical, e na música popular como um todo. (BOZEMAN, 2018, p.
17).

Figura 11 – No gráfico podemos observar H2 em sintonia exata com F1. Adaptado de (BOZEMAN, 2018, p.
18).

3. Treinamento da cobertura (Voce chiusa) – princípio acústico:


A pedagogia acústica desenvolvida por Bozeman (2018) sugere a
propiciar a migração passiva das vogais propiciadas inicialmente por uma
configuração estável, porém flexível da laringe. Na proposta de Bozeman, as
vogais migram de timbre naturalmente – isto é, com uma mesma forma
articulatória uma determinada vogal muda de cor ao ascender na escala.
(BOZEMAN, 2018, p. 24).
Outros autores como Donald Miller (2008), por exemplo, entendem tais
fenômenos de transição dos harmônicos como oriundos da modificação das

44
Referente a qualidade timbrística aberta da voz no grito (ou brado) estridente, e não no modo de fonação denso.
24

vogais, sugerindo alterações e ajustes a articulatórios no trato vocal e laringe


para o domínio do fenômeno da cobertura (modificação ativa da vogal, segundo
Bozeman).

Figura 13 – No gráfico podemos observar H2 sintonizado com F1 e as setinhas indicando o cruzamento


iminente. Adaptado de (BOZEMAN, 2018, p. 21).

Mas, o que acontece no cruzamento do segundo harmônico com o primeiro formante?


Nesse fenômeno acústico acontece uma potencialização do segundo harmônico quando este
atinge e ultrapassa a frequência do primeiro formante. Outros harmônicos também são
excitados nesta sintonia e colaboram para o processo de ressonância (BOZEMAN, 2021).
Acontece uma mudança timbrística característica neste cruzamento conhecida como cobertura,
pois é assim que percebemos auditivamente este fenômeno. O que historicamente foi chamado
de cobertura acontece, portanto, quando permitimos que o segundo harmônico ultrapasse o
primeiro formante, sem manipular a articulação (abrir a boca ou elevar a laringe) para que este
formante comece a “seguir” este harmônico (BOZEMAN, 2021). Assim, quando F1 permanece
estável e H2 o ultrapassa, ocorre um escurecimento do timbre vocal e a voz entra em uma região
de transição que permite a ascensão da escala sem quebra – em contraste ao que ocorre na
passagem mantendo a voce aperta, que justamente evita esta transição até um limite em que a
quebra se torna inevitável.

O treinamento do passaggio masculino requer uma posição laríngea estabilizada


e “flutuante” e algum grau de espaço faríngeo (sem ativação do músculo da
deglutição). O desafio para o cantor é continuar a usar uma mistura laríngea de
ativação dos músculos da cabeça e de peito, mantendo o comprimento do tubo.
Isso necessariamente resultará em H2 passando por e acima de F1 (BOZEMAN,
2010 p. 294).
25

Com o domínio deste recurso os cantores aumentaram suas tessituras45 ao longo da


história, pois ela permite cantar notas agudas em um mesmo mecanismo laríngeo, sem a
necessidade de mudança abrupta de registro.

Um ponto de difícil percepção acústica no treinamento vocal é o comportamento da voz


na passagem do segundo registro laríngeo. Neste momento, talvez o nosso foco se faça mais
presente no resultado fonético, por isso nos atentamos inteiramente aos articuladores.

Bozeman (2007), oferece uma nova perspectiva através da percepção dos movimentos
acústicos dos harmônicos na ressonância com os formantes. A voce chiusa (timbre fechado) é
um exemplo dessa proposta, pois ela se configura no espaço acústico entre o primeiro
harmônico (H1) e o segundo harmônico (H2) na sintonia com o primeiro formante.

Anteriormente, eu havia assumido que as mudanças de cor (modificações


vocálicas) do passaggio eram o resultado da mudança muscular gradual da voz
de peito (dominância TA) para a voz de cabeça (dominância CT). O que
começou a emergir dessa experiência foi a compreensão de que as mudanças
timbrísticas da passagem eram provocadas principalmente por interações
acústicas, independentemente dos ajustes de registro muscular que pudessem
acompanhá-las. (BOZEMAN, 2007 p. 267).

Na estratégia de Bozeman (2018) na medida em que os harmônicos (H4, H3 e H2


principalmente) vão passando pelo primeiro formante (F1), mantendo-se a laringe estável
dentro de uma mesma vogal (sem subir o articulador laríngeo) acontecerá uma migração passiva
dos harmônicos que seguirá até o segundo harmônico (H2). Nesse ponto é que se percebe em
nível psicoacústico46 a detecção de um fechamento do timbre, como se a voz estivesse entrando
em “cobertura”, ou “virando”, embora, o fato ocorrido tenha sido apenas o cruzamento do
segundo harmônico (em rota com primeiro harmônico), com o primeiro formante do trato vocal.
Essa percepção dos eventos sonoros internos e externos são mapeáveis e acessíveis
(BOZEMAN, 2010). O cruzamento de H2 com F1 deve ocorrer antes da sintonia de H1 com
F1, ou seja, ao se aproximar do primeiro harmônico, no trânsito entre H2 e H1 por sobre F1.

Nesse ponto a manobra passa a ser ativa na migração do timbre aberto para o fechado,
e o cantor escolhe sua estratégia: faz a cobertura (cruzamento H2/ F1) na passagem do segundo
registro, sem quebra e segue para a sintonia F1/ H1 (falsete, voz de cabeça ou Whoop) nos
superagudos, ou faz a cobertura e segue manipulando a vogal para não entrar F1/ H1.

45
Conjunto de notas que um cantor consegue articular com qualidade dentro de sua extensão vocal.
46
A psicoacústica é uma subdisciplina da psicofísica que estuda a relação entre estímulos sonoros e
as sensações auditivas decorrentes destes estímulos. Disponível em < Psicoacústica e qualidade sonora –
Engenharia Acústica (ufsm.br) >
26

Baseado nos conceitos apresentados neste artigo, sugere-se um quadro com alguns
princípios que poderão auxiliar o docente na criação de exercícios de treinamento vocal para a
exploração da cobertura de passagem do registro laríngeo para vozes masculinas (cruzamento
de H2 por F1).

Salienta-se que o quadro abaixo não é um passo a passo, cartilha ou método a ser
aplicado para obtenção da competência mencionada acima, e sim uma proposta baseada na
experiência pessoal e nos conceitos estudados pelo autor deste artigo com os professores
de acústica vocal do curso de pós-graduação em pedagogia vocal da FASM (Faculdade Santa
Marcelina) sob a coordenação da professora Dra. Joana Mariz, bem como a participação
deste autor em 2021, de um curso para professores brasileiros ministrado pelo próprio
professor Kenneth W. Bozeman, por meio da iniciativa do canal de educação musical
VOZERIO.

É importante destacar que o docente deverá ter conhecimento básico sobre conteúdos
pedagógicos fundamentais tais como: Registros vocais, modos de fonação, fisiologia e acústica.

PROPOSTA DE TREINAMENTO VOCAL PARA HABILITAÇÃO DA SINTONIA DE CRUSAMENTO


ACÚSTICO DE H2 POR F1 (COBERTURA DA PASSAGEM DE REGISTRO LARÍNGEO)

Tipo de exercício Conhecimento prévio Conceitos de origem Objetivo

Acessar a sintonia F1/ H1,


Habilitar os harmônicos
 Registros vocais através do recurso linguístico do
(principalmente H1) e
1º Registro de cabeça  Modo de grito de celebração “Whoop”
despertar a percepção
fonação (timbre flautado, vaia ou
deste fenômeno acústico
“Urrul”47). (BOZEMAN 2018).

Exploração da
 Registros vocais Acessar a sintonia F1/ H2 timbre
sonoridade e dos limites
 Fisiologia aberto (voce aperta), através do
2º Registro de peito do registro da voz de
 Domínio recurso linguístico do Brado
peito, e a movimentação
articulatório estridente. (BOZEMAN 2018).
da laringe nesta sintonia.

47
Livre interpretação do autor deste artigo.
27

 Regiões de passagem e
zona de transição Percepção e coordenação
(MILLER 2019) de determinado registro
 Percepção dos (de cabeça, ou peito)
fenômenos acústicos com comportamento do
Sobreposição de  Registros vocais
3º (MILLER 2008) outro e vice-versa, na
registros laríngeos  fisiologia
 Coordenação das região comum entre os
habilidades dois registros (HERBST
decorrentes deste tipo 2021)
de treinamento
(HERBST 2021)
 Registros vocais
 Conteúdos acima
 Modos de
 Conceito de migração Coordenar o passaggio
fonação
das vogais por meio da por meio do fenômeno
 Acústica vocal
4º Cruzamento H2/ F1 estabilidade laríngea acústico, sem a ação
 Domínio
durante a articulação ativa do articulador
articulatório
das vogais laríngeo.
 Boa
(BOZEMAN, 2018).
propriocepção

5 - Conclusão

Na breve revisão histórica no início do artigo, aborda-se sobre o tenor Gilbert Duprez
(FARAH, 2019), que em 1837, por meio da manobra acústica de cobertura do registro laríngeo
trouxe grande novidade ao cenário musical, desencadeando muitas inquietações sobre a prática
vocal da época. O ajuste vocal voix sombree de Duprez, permitiu novas possibilidades acústicas
por meio da estabilidade laríngea acrescentando a oitava superior ao registro de peito dos
tenores, mudando os rumos e o protagonismo da ópera. Esse fenômeno acústico é sem dúvida
um fator muito importante na trajetória de qualquer cantor.

Durante uma aula com Richard Miller, de fato, tive a surpreendente experiência de uma vogal
fechada /e/ "virar" um pouco mais baixo na passagem do que o esperado, tornando-o
visivelmente menos trabalhoso. Assustado com minha percepção interna do som, perguntei se
era aceitável. Richard confirmou que o timbre e a vogal soaram bem. (BOZEMAN, 2007 p. 267).

Como pôde-se observar na citação acima, até mesmo o próprio Kenneth Bozeman, que
foi aluno de Richard Miller, relatou em um de seus artigos o momento em que um fenômeno
acústico aconteceu de forma natural em seu treinamento.
28

Donald Miller (2008) dedicou em seu livro um capítulo inteiro ao tenor Luciano
Pavarotti, onde estudos acústicos sobre os fenômenos de ressonância do cantor são apresentados
em forma de gráficos e estudos comparativos (D MILLER, 2008, p. 1). Cada vez mais a técnica
vocal torna-se objeto de apreciação científica. Nesse cenário, pedagogos vocais se dedicam a
estudar as habilidades dos cantores dentro de uma metodologia objetiva e prática. O resultado
é uma didática inclusiva e com maiores resultados positivos.
Em resumo, pode-se destacar sobre as estratégias propostas neste artigo: por meio do
treinamento do timbre Whoop (grito ancestral de celebração), sintoniza-se o primeiro formante
com o primeito harmõnico – F1/ H1 – por articulação passiva e sua manutenção se dá por
manobras articulatórias como abrir a boca, por exemplo. O timbre Whoop é uma boa estratégia
de treinamento do registro laríngeo de cabeça (ou falsete).
O timbre aberto (brado ancestral de comando e alerta) ou voce aperta, acontece na
sintonia acústica do primeiro formante do trato vocal, com o segundo harmônico da série
harmônica emitida pelas pregas vocais – F1/ H2 – quando na passagem de H2 por F1, este vai
seguindo o harmônico, por meio da elevação da laringe, e abertura da boca. É uma boa estratégia
de treinamento do registro laríngeo de peito, e da percepção da quebra ou mudança de registro.
Já o timbre fechado (voce chiusa) não é caracterizado pela a articulação do primeiro
formante em seguir os harmônicos (sintonia) como os demais timbres, ao contrário, ele é
caracterizado pela movimentação da oitava48 entre H2 e H1 por sobre F1 e nós percebemos essa
mudança na sonoridade como um fechamento do timbre, uma cobertura.
A utilização da expressividade da comunicação não-verbal proposta pela pedagogia
acústica de Bozeman, como forma de se chegar aos resultados vocais desejados, ora, em
oposição às padronizações das sensações da metodologia tradicionalista, ora reforçando o
treinamento e os saberes adquiridos durante séculos de percepção dos recursos fonéticos e
acústicos da linguagem musical, valoriza a individualidade do cantor, sem interferir na
coletividade do ensino, contribuindo para o crescimento e popularização do canto clássico, e
manutenção do refinamento artístico adquirido ao longo da história.
Dentre esses aspectos, concluo o presente artigo na esperança de que os assuntos
apresentados aqui possam inspirar o aprendizado de canto e fomentar a pedagogia acústica
como ferramenta didática no Brasil. A ciência como um todo é de fato complexa, mas na medida
em que aprofunda suas bases, agrega pessoas e amplia suas potencialidades.

48
Na série harmônica, a razão entre a frequência do primeiro e do segundo harmônico é de 2/1 equivalente ao
intervalo musical de 1 oitava. Disponível em < Escalas musicais da série harmônica - Musicologia na Mídia
(unicamp.br) >
29

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