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Universidade Federal do Paraná

UFPR Setor Litoral


Câmara de Linguagem e Comunicação
Interações Culturais e Humanísticas - Gênero e Diversidade
Projeto de Aprendizagem
Professora Dra. Luana de Conto
Professora Dra. Ana Josefina Ferrari
Guillaüme Hatschebach GRR 2021 1098

Você que inventou o pecado, esqueceu-se de inventar o perdão:


norma linguística, norma estatal ou legalidade moral?

Resenha crítica do texto Projetos de Lei contrários à "Linguagem Neutra" no Brasil,


de Fábio Ramos Barbosa Filho

Mas o pecado, tomando ocasião pelo


mandamento, operou em mim toda a
concupiscência; porquanto sem a lei estava morto
o pecado. E eu, nalgum tempo, vivia sem lei, mas,
vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu
morri.
- Romanos cap. 7, versículos 8 e 9

A disputa pela língua em sua pluriversidade é tão antiga quanto a escrita. Na


mitogonia do cristianismo a ontogênese da língua é uma língua universal. Em
Gênesis, em seu 11° capítulo, é narrada a criação de Babel, fortificação a alcançar
os céus em seu projeto, cidade chamada Babel ao designar o local onde Deus
destronou o ser social pela cobiça, gerando disputas internas pela confusão de
línguas existentes.
É curioso notar a datação bíblica ser aproximadamente 6.000 anos, ponto
onde podemos encontrar os primeiros registros escritos do Homo sapiens sapiens, e
um ponto de decadência por um passado glorioso mítico. Tal modelo se dispõe em
argumentações pela unidade linguística nacional e pela preservação (sic) desta.
Tal disputa semântica emerge de um contexto histórico, inscrevendo
significações aos termos. Não é mera fraseologia, é uma disputa de sentidos.
A respeito, afirma Barbosa Filhos (2022, p. 143-144):

Os debates sobre a proibição de outras línguas no Brasil atravessam


mais de três séculos - do Marquês de Pombal a Getúlio Vargas (cf.
Campos, 2006) -, passando pela discussão legislativa em torno do
nome da língua oficial do Brasil nas décadas de 1930 e 1940, até o
mais recente debate acerca dos estrangeirismos em 1999 (cf.
Posenti, 2004). A história é testemunha de verdadeiras batalhas não
apenas em torno da língua, mas pela língua.

Isto é, pelo acesso ao direito de dizer a si, contar sua história, história de si e
de seu grupo social, acesso por vias da língua e pela língua. Diria um poeta: quem
pertence a si, pertence a si também na palavra. Não é tão somente uma questão de
desinências, adjetivos e pronomes, mas antes um direito político travado por um
embate social, pelos dizeres e memória.
O autor busca com o texto restituir o contexto, reestabelecendo os sentidos
históricos neste embate, notadamente travado em meados de 2020, quando da
circulação de projetos de lei contrários ao uso da assim chamada linguagem neutra,
ou linguagem inclusiva de gênero.
Neste acontecimento discursivo há um espaço como ferida entre causas e
efeito, e aquele primeiro “parece exceder suas causas” (ZIZEK, 2017, p. 9). Neste
acontecimento discursivo que, à primeira vista, tem asserções técnicas no plano
gramatical da língua, observa a supersaturação ideológica, isto é, o mecanismo
ideológico a mobilizar os argumentos ditos técnicos.
A tudo que é óbvio e evidente, um espaço de circulação engendrado por
mecanismos ideológicos. Busca o autor, nestes termos, o resgate do estatuto
político e de moralidade vigente nas políticas de língua, isto é, do espaço discursivo
entre causas e efeito e da causalidade sócio-política embebida pelas
argumentações.
Feito um cajado no mar vermelho, recusa o autor as posições de língua como
código ou instrumento, isto é, a língua é conditio sine qua non do dizível, mas não
se restringe à mera comunicação, como abelhas ou baleias. É, depois da
linguagem, órgão da sensibilidade humana a ressonar na alteridade, ao passo que
“Só se diz, portanto, numa língua. Mas uma língua é também o lugar onde se
produz o falante como um efeito dessa estrutura inscrita na trama das relações
históricas.” (BARBOSA FILHO, 2022, p. 145).
No Brasil colônia o pito-de-pango criminaliza pela primeira vez o porte e uso
da Cannabis sativa, senão por boticas. A proposição de legislação caminha,
analogamente, como a criminalização do pito. É a história da própria embarcação
histórica. Naqueles idos pela acumulação primitiva de capital em terra brasilis
colonizada, então pela acumulação primitiva da economia libidinal.
A identidade em termos genéticos é a despossessão e despersonalização do
desejo nos oprimidos. Um querer outro imputado, uma memória discursiva
silenciada e apagada epistemologicamente, quando não corpórea, haja vista a
incidência de assassinatos homo-lesbo-bi-transfóbicas na terra brasilis do século
XXI.
É a defesa não da língua portuguesa in res abstrato, mas de uma língua
determinado pelo espaço imaginário que a detém, o que vale dizer, de um projeto de
sociedade, cultura e ser social, memória discursiva ontogeneticamente filiada à
interdição de dizeres, ditos e, tão logo, de seus falantes.
Para Barbosa Filhos (2022, p. 146) há um mito fundador para a constituição
de uma política linguística no Brasil, a saber, o Diretório dos Índios (Directorio, que
se deve observar nas povoaçoens dos índios do Pará, e Maranhão em quanto Sua
Magestade naõ mandar o contrario), obra de instrução do século XVIII, e as políticas
linguísticas do Estado Novo, entre 1937 e 1945.
O primeiro, destaca o autor (2022, idem), sublinha que a destituição de um
modo de vida bárbaro se faz pela destituição de sua língua mater, anunciando o
progresso e civilização cultural nos modos de vida e costumes pela implementação
da língua portuguesa. Na disputa pelo imaginário de unidade nacional impregnou-se
a convenção de uma língua oficial a dotar de civilidades os rústicos, sabida língua
da corte portuguesa. E a língua geral é contraposta pela língua portuguesa por seu
potencial civilizatório, dito de outro modo, em seu relevo pelo projeto de sociedade
que o contém.
O sujeito de direitos, norma estatal jungida pela Coroa, tem seu acesso
adstrito à língua portuguesa. Há neste momento histórico a interdependência da
norma estatal e da legalidade moral com efeitos na política linguística. Assevera
Barbosa Filho (2022, p. 147): “Isso poderia produzir, com o tempo, uma completa
indistinção entre índios e homens. O acesso à categoria homem dependia, portanto,
de uma conversão ao idioma da Coroa.”. O projeto de nação estabelecido fora,
então, um país homogêneo e indistinto pelas etnias e línguas.
A balbúrdia das proposições legislativas é tamanha que dois parlamentares
proponentes se utilizam de nome social, a saber, Chris Tonietto e Junior Amaral,
respectivamente Christine Nogueira dos Reis Tonietto e Geraldo Junio do Amaral. E
uma parlamentar, sabida Jéssica Ramos Moreno, é autopercebida e declarada
lésbica e atua em frente conservadora, nas urnas seu nome fora “Jessicão”, o que
faz valer a posição peuchetiana pela não-coincidência do imediato sensível ao
campo ideológico. Feitas nossas ressalvas a polemizar os interlocutores,
prosseguimos com o texto do professor Barbosa Filho.
O autor destaca seis projetos parlamentares a legislar por sobre a linguagem
neutra, dissociando léxicos da ideologia. Ora, se legislam sobre gênero isto nada
nos revela, haja vista o fato de serem contrários e pela não-coincidência
supracitada.
A respeito da posição discursiva, aponta Pêcheux (2009 apud BARBOSA
FILHO, 2022, p. 148):

o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição


etc., não existe em si mesmo (isto é, em sua relação transparente
com a literalidade do significante), mas ao contrário, é determinado
pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo
sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são
produzidas, isto é, reproduzidas. Poderíamos resumir essa tese
dizendo: as palavras, expressões, proposições etc. mudam de
sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as
empregam.

Podemos, a partir de Pêcheux, pensar a disputa significante por “gênero” e


“linguagem neutra” em curso, mobilizada pelas posições discursivas de seus
interlocutores. A depender do jogo de forças constituído, os sentidos são diferentes.
E é no funcionamento discursivo que atua o sentido em movimento.
No funcionamento discursivo do corpus linguístico do autor podemos
observar a atuação de um passado mítico (inexistente) e da decadência da língua,
ao lado da superposição de uma agenda exógena à sociedade e educação, como
na defesa (sic) contra a “ideologia do ‘gender’”.
Para o autor (BARBOSA FILHO, 2022, p. 150):

Há nesses projetos uma dupla tensão em torno do verbo 'proteger',


sempre articulado a um nós ('protetor') distinto de um eles. Nessa
tensão, ora protege-se a língua, ora protege-se o indivíduo (quase
sempre denominado, nos projetos de lei, de 'estudante').

No corpus em seu PL1, há denominação “norma culta” (sic) para o passado


mítico e a linguagem neutra a descaracterizar seu uso, a decadência. Adiante, é
designada por posição sociopolítica, o que contempla também a norma padrão,
então há um espaço discursivo que não diz o dito, diz um dito a interditar os dizeres
ali não-ditos. É uma interdição por uma suposta agenda exógena à sociedade e
educação. No PL2 temos o verbo corromper ligado às normas gramaticais, um
passado mítico (norma padrão) e a decadência pela corrupção.
No PL3 temos um pretenso suporte técnico na Constituição de 1988.
Vejamos o que esta diz a respeito da língua. Ocorre cinco vezes no texto normativo.
Para nosso interesse temático, destacamos os artigos 13 e 210.

Art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do


Brasil.
[...]

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de


maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores
culturais e artísticos, nacionais e regionais.

§ 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa,


assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas
línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

A linguagem neutra não defenestra a língua portuguesa, antes a conserva e


supera o não-marcado no masculino genérico pelo neutro de gênero. E, desde logo,
não é inconstitucional.
Ainda no PL3 ocorre “Português ensinado errado”, o que nos pensar a qual
valoração moral o português oficial obedece: a normativa do texto Constitucional? É
uma norma estatal, não código moral. A gramatical? Léxico não dispõe de
moralidade. E, depois desta, “Tentativa calculada de inserir a ideologia de gênero
nas escolas.”, o que nos faz refletir a propósito das condições de trabalho dos, das e
des docentes no Brasil: há vacuidade laboral para o mínimo cumprimento dos
currículos? Talvez seja desconhecimento da parte deste que redige.
NO PL4 há a ocorrência do adjetivo “temerária”, atribuindo qualidade à
prática docente pela implementação de questões relativas à saúde sexual, fisiologia
e anatomia, conteúdos do Ensino Fundamental para as séries finais, ou de
prevenção a ISTs no âmbito do Ensino Médio, o que nos faz perceber o receio
supersticioso aos temas relativos à sexualidade e identidade de gênero, temas
transversais, e "'influências ideológicas'; 'terceiro gênero'; 'linguagem ilegítima';
'Linguagem 'inexistente''; 'idioma ilegítimo a fim de atender a fins puramente
ideológicos'" expressam um caráter exógeno aos conteúdos, instigando pânico
moral em questões da vida prático-cotidiana.
Regressando ao texto de Barbosa Filho (2022, p. 150), o autor aponta uma
linha de tensão entre o eu e o eles no texto, destacando ao eu da interlocução
grupos conservadores reacionários, porquanto as proposições acima apontam para
um projeto de subserviência e subordinação, inscrevendo aliás, a educação como
prática de profissionalização para o mercado de trabalho (PL6), não como formação
humana integral. Para Barbosa Filho, este conservadorismo linguístico recorre à
técnica (gramática, Constituição, pátria, língua etc.) de modo a camuflar a perfídia.
Aponta Barbosa Filho (2022, p. 151):

Invariavelmente os argumentos linguísticos são subterfúgios para


que discutir coisas como a 'nação' e a 'ideologia de gênero'. Esse
paradoxo parece sustentar o debate contra a linguagem neutra. Ao
mesmo tempo em que se quer negar a ideologia, como se ela fosse
um atributo exclusivo do adversário ('eles'), é preciso negar qualquer
caráter ideológico dos PL, recorrendo a um debate exclusivamente
gramatical, jurídico e pedagógico.

No PL1, seguindo ao esteio da argumentação de Barbosa Filho, há uma


oposição entre “norma culta” - o que quer que seja esta - e a linguagem neutra. Um
aparente argumento gramatical, posto que há “dissonância” (PL1) entre os registros,
sinonimizando, conforme o autor (2022, idem), “língua portuguesa”, “ortografia” e
“norma culta” em metonímia. Ao passo da retórica, ao que tudo parece indicar,
técnica, o mesmo PL procede a designar a linguagem neutra de gênero por
“modismo ideológico”, afinal ideológico é inadvertidamente o outro.
Caminhando pari passu à ideologia, a linguagem neutra de gênero é
responsável pela segregação dos falantes e dos alfabetizandos. Não compete ao
âmbito desta resenha considerar o analfabetismo no período anterior à formulação
de propostas de linguagem neutra, mas nos parece anacrônico.
A sopa de chorume reacionário contaminada pelo mercúrio dos garimpos na
Amazônia tem seu tempero no PL5:
A denominada 'linguagem neutra', além de ser um português
ensinado errado, suprime as diferenças entre homens e mulheres,
impõe uma assepsia de gênero que destrói o princípio de separação
entre meninos e meninas. Impõe o caos e a confusão sexual,
sobretudo na cabeça de crianças.

Gostaria de elogiar, sobremaneira, o entusiasmo com políticas linguísticas. A


linguagem neutra de gênero não suprime (infelizmente) as desigualdades
historicamente determinadas pela divisão sexual do trabalho, misoginia e
apropriação desigual da humanidade imposta a mulheres, travestis, pessoas trans e
transgêneros. Antes, possibilita a enunciação de um eu antes não possível. Não
quer abolir a família de ninguém, quer incluir parentalidades não sanguíneas. Não é
capaz de reverter a realidade de segregação histórica, política e, sobretudo,
econômica entre homens e mulheres, pessoas cisgênero e transgênero.
Na animação televisiva Os Simpsons há uma personagem chamada Helen
Lovejoy. O bordão da figura caricata é “E as criancinhas, ninguém pensa nas
criancinhas?” (no original, - Won't somebody think of the children). Em um dos
episódios acusa Bart Simpson do furto de donativos para a Igreja, onde é a esposa
do reverendo Lovejoy, pastor desta. Infâmia apontada a desconhecer as causas da
subtração, uma relação imoral e infração estatal jurídico-criminal ter sido praticada
por sua filha, Jessica.
Assim age o punitivismo retrógrado cristão, empunhando o sabre da
ortografia, gramática, ou qualquer aspecto da “norma culta” em detrimento ao
silenciamento de identidades e sexualidades divergentes, desprezando inclusive o
fato da não correspondência entre gênero linguístico e identidade de gênero
(BARBOSA FILHO, 2022, p. 153), sabre a defender a “língua” da “ [...]
degenerescência dos valores morais, dos bons costumes, a erosão da boa e velha
tradição e outras posturas ligadas à agenda conservadora.” (BARBOSA FILHO,
2022, p. 154).
Para o autor há uma linha de força entre todos os PLs, sabido ao enunciado
de proposição que na língua portuguesa em seu registro padrão não há neutro,
pressupondo um dever ser moral (não há, e não deve), um normativo com
aparência de categórico linguístico, implicando uma externação deste pressuposto
ao “eles”, se eximindo da responsabilidade pela arguição, derivando ao final pela
identificação de identidade de gênero, identidade sexo e gênero, e de gênero
extralinguístico com linguístico (BARBOSA FILHO, 2022, p. 155).

REFERÊNCIAS

BARBOSA FILHO, Fábio Ramos. Projetos de Lei contrários à "Linguagem Neutra"


no Brasil. IN: POSENTI, Sírio et al Linguagem "neutra": língua e gênero em debate
- São Paulo: Parábola, 2022.
(BRASIL) Constituição da República Federativa do Brasil Constituição
(planalto.gov.br)
ZIZEK, Slavoj. Acontecimento: uma viagem filosófica através de um conceito - Rio
de Janeiro: Zahar, 2017.

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