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Danniel Carvalho
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Danniel Carvalho
Universidade Federal da Bahia/CNPq
dannielcarvalho@ufba.br
Apresentação
Não faz muito tempo a terra tinha dois bilhões de habitantes, isto é,
quinhentos milhões de homens e um bilhão e quinhentos milhões de
indígenas. Os primeiros dispunham do Verbo, os outros pediam-no
emprestado. Entre aquêles a êstes, régulos vendidos, feudatários e uma falsa
burguesia pré-fabricada serviam de intermediários. Às colônias a verdade: se
mostrava nua; as ‘metrópoles’ queriam-na vestida; era preciso que o indígena
as amasse. Como às mães, por assim dizer. A elite européia tentou engendrar
um indigenato de elite; selecionava adolescentes, gravava-lhes na testa, com
ferro em brasa, os princípios da cultura ocidental, metia-lhes na bôca
mordaças sonoras, expressões bombásticas e pastosas que grudavam nos
dentes; depois de breve estada na metrópole, recambiava-os, adulterados.
Essas contrafações vivas não tinham mais nada a dizer a seus irmãos; faziam
eco; de Paris, de Londres, de Amsterdã lançávamos palavras: ‘Partenon!
Fraternidade!’, e, num ponto qualquer da África, da Ásia, lábios se abriam:
‘... tenon! ... nidade!’ (SARTRE, 1968 [1961], p. 3-4)
palavras de Jakobson (1971, p. 130), uma “fala dentro da fala, uma mensagem dentro da
mensagem”.1 Assim como no discurso indireto, entendo que gênero, como categoria
gramatical, é um elemento representado na língua a partir do ponto de vista de uma
comunidade linguística, sendo assim um traço reportado, que dependerá do
conhecimento de seu mundo.
Ao tempo que não possui uma funcionalidade gramatical definida, como número
e pessoa2 (gênero é tradicionalmente definido como um instrumento engatilhador de
concordância (ver CORBETT, 1991; AIKHENVALD, 2016)), esse traço gramatical
parece refletir estritamente a percepção de mundo de seus falantes. Como será visto
adiante, a distribuição dos valores feminino, masculino e comum/neutro são
estabelecidos a partir do ponto de vista da tradição ocidental, refletida na estrutura de
sua gramática e mantida como instrumento didático até os dias atuais. Essa tradição
condicionou a existência dessa categoria/traço como universal linguístico.3
A representação linguística vem sendo discutida desde tempos imemoriais pela
dicotomia arbitrariedade versus motivação simbólica. É Saussure (2006 [1916]),
entretanto, quem confere caráter teórico à questão da opacidade (arbitrariedade) ou da
transparência (motivação) dos objetos linguísticos. Essa arbitrariedade, pelo menos
aparentemente, não se aplica, em termos de referência, a categorias como número e
pessoa, mas parece estar sempre associada quando se trata de gênero.
Gênero enquanto categoria pode não ter realidade material,4 como nos nomes
cujos referentes são entes inanimados, ou pode ter realidade material relativa, como nos
animados, em especial humanos.5 Relativa, pois, como toda representação (BHABHA,
1995), a realidade de gênero depende dos olhos que a veem e a arbitrariedade dessa
visão apresenta um movimento bastante enviesado por uma tradição falogocêntrica.
Esse falocentrismo epistêmico pode ser percebido em diversas estratégias de
1
Todas as traduções feitas no texto são de minha responsabilidade, salvo quando apresentados já
traduzidos nas referências bibliográficas finais.
2
O próprio argumento da representação extralinguística de número e pessoa como categorias gramaticais
sine qua non e “natural” é questionada em Carvalho (2021). Carvalho et al. (2020) discutem uma possível
função semântica de gênero gramatical como suplementar ao de número, funcionando como elemento de
perspectivização. Não desenvolverei aqui os argumentos apresentados nesses trabalhos e manterei, para
os fins da presente discussão, a imprescindência desses traços na gramática das línguas.
3
Considerarei a hipótese da universalidade de gênero como uma forma de taxonomia na qual os nomes de
uma língua são distribuídos em classes. Para uma discussão sobre gênero e classe, ver Aikhenvald e
Mihas (2019) e Carvalho (2020).
4
Faço aqui uma provocação ao usar a expressão realidade material platônica para resgatar suas
“imperfeições”, como apontado pelos idealistas, cujo pensamento é recobrado posteriormente por
racionalistas e neoidealistas (como Descartes e Hegel, respectivamente), que influenciaram sobremaneira
parte do pensamento linguístico dominante do século XX.
5
A noção de animacidade da ideia eclesiástica de corpo e alma (anima do latim).
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Qualquer que seja o ponto de partida para se entender o que seja uma língua, sua
constituição reflete a relação de poder da sociedade que a utiliza. Essa afirmação pode
soar categórica, reconheço, mas não é falaciosa. Seja a partir de um viés discursivo ou
do que constitui sua estrutura, o entendimento do que estabelece uma língua como tal é
reflexo de quem determina o que faz ou não parte sua. Desde que se pôde recuperar os
6
Generificação é a atribuição ou designação de um valor de gênero a algo ou alguém; o processo social
pelo qual há o encaixamento de corpos aos valores binários feminino/masculino.
7
A expressão neutering no inglês, por exemplo, cuja origem é o termo latino neuter, significa
“castração”, entendida como remoção dos órgãos reprodutivos em animais.
8
Passagem da matéria do jornal Harvard Crimson, de 26 de novembro de 1971, página 17, cujo excerto é
transcrito por Livia (2001, p. 3): “There is [...] no need for anxiety or pronoun envy” (Não há necessidade
para ansiedade ou inveja pronominal).
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primeiros textos em que se verificou as discussões iniciais acerca do que constitui uma
língua, encontramos referência a essas relações de poder. Por exemplo, o gramático
latino Marco Terêncio Varrão (116 a.C. – 27 a.C.) utiliza quatro critérios determinantes
para a estruturação da língua: a natureza da entidade linguística (natura), seus usos e
tradição (usus/consuetudo), sua organização estruturada (ratio) e a autoridade ancestral
grega na atribuição dos valores linguísticos (auctoritas). Esta última, segundo Varrão
(1990), possibilitaria a dispensa dos demais critérios na atribuição dos valores como os
de gênero. Assim, os valores feminino e masculino no latim e no grego são autorizados
devido à sua relação direta à morfologia dos corpos dos seres vivos (pelos menos do que
se conhecia sobre isso à época).
Essa tradição da autoridade gramatical greco-latina perpetuou-se no mundo
ocidental, servindo de parâmetro na descrição e análise das línguas no decorrer da
história. Sua referência ao padrão linguístico indo-europeu norteou toda a discussão
sobre linguagem desde então. E é no século XIX que ganha força científica com o
surgimento da hipótese darwiniana e o fortalecimento da tese de uma língua primordial
(protolíngua), o que afluiu nos modelos de análise linguística que conhecemos hoje. A
tradição ocidental nos estudos da linguagem baseia-se fundamentalmente no corpo
gramatical proposto nas Categorias de Aristóteles, na qual se definem as possíveis
predicações sobre o “ser”, aquele cujas características compõem as categorias
gramaticais (CARVALHO, 2021). Entre as predicações mais persistentes na descrição
das línguas indo-europeias é a consistente marcação de gênero gramatical, sendo sempre
relacionada a critérios de origem sexuada.
O título dessa seção foi retirado das páginas do livro Pronoun envy: literary use
of linguistic gender (“Inveja pronominal: usos literários do gênero linguístico”), de
Anna Lívia, publicado em 2001, no qual a autora reflete sobre o uso genérico do
masculino em línguas como o inglês e o francês. A “inveja pronominal” apontada no
texto de Livia faz menção à reação do departamento de Linguística da Universidade de
Harvard, nos Estados Unidos, encabeçado por Calvert Witkins, renomado linguista
estadunidense cujo foco de pesquisa eram os aspectos morfossintáticos das línguas
indo-europeias, em 1971, diante dos protestos das estudantes da referida instituição
acerca do uso generalizado do pronome he (ele) para referir-se ao deus cristão. O
argumento de Watkins e colegas em sua resposta (que dá título à esta seção) se baseia
na tese estruturalista de que, nas línguas indo-europeias, a forma masculina é a não
marcada na dicotomia masculino/feminino (CÂMARA JR., 1971). Segundo Lívia, essa
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Oyěwùmí utiliza a expressão anafemale e anamale para indicar corpos anatomicamente compreendidos
pelos ocidentais como mulheres e homens, respectivamente. Nascimento (2019) propõe a expressão
anafêmea e anamacho como tradução para o português.
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todos os conceitos trazem consigo suas próprias bagagens culturais e filosóficas, muitas
das quais se tornam distorções alheias quando aplicadas a culturas diferentes das quais
derivam” (OYĚWÙMÍ, 1997, p. x-xi). Para a autora,
10
Segundo Wendy Single-Rushton e Elin Lindström (2013, p. 130-131), interseccionalidade é “um
conceito teórico vagamente especificado - um termo guarda-chuva - que reúne um conjunto de ideias
sobre a complexa multidimensionalidade e estratificação social e as consequências de sua especificação
incorreta”. Para um debate mais aprofundado sobre o tema, ver Crenshaw (1989), Collins (1990), Dorlin
(2008), Bilge (2009), Akotirene (2019).
11
A escolha do termo híbrido para integrar esse debate foi feita devido à sua etimologia (do grego
hybris), que remete a ultraje, que desafia a Providência (HUXLEY, 1970). Tomo emprestado o termo
como manifestação tanto da ideia de hibridismo cultural (BAHBHA, 1994) como da própria ideia do
hibridismo corpóreo, cuja representação pode ser identificada em alguns corpos transgêneros, como os
das travestis.
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permite-nos verificar quão diversos são os pontos de vista sobre o tema. Umas das
premissas da chamada linguagem “neutra” é a não binaridade em relação à referência na
comunicação. Isso significa, em outras palavras, que línguas que possuem alguma
manifestação de gênero em sua estrutura, seja lexical, fonológica, morfológica ou
sintática, devem passar a perceber corpos que não se identificam com as formas
tradicionais de distinção sexual - o feminino e o masculino. Uma neutralidade da
linguagem recorre a um expediente universalista, pois o que não é feminino nem
masculino deve se encaixar em uma rasura única de gênero. Como nos lembra Berenice
Bento (2017, p. 43), “[o]s discursos universalistas têm em comum a produção de um
outro pelo esvaziamento das singularidades.” Assim, como já introduzido na
apresentação do presente texto, uma linguagem não binária é aquela cujos referentes
humanos são desvinculados aos seus papéis sociais de gênero.
Muitos críticos, uma boa parte formada por leigos dos estudos linguísticos, mas
ainda com linguistas em seu meio, entendem que a língua é uma entidade
completamente independente de qualquer movimento social. A introdução de estratégias
não binárias de referencialidade, para tais críticos, gera um deslustre no sistema
linguístico, ou ainda, uma artificialidade, uma “arbitrariedade” em seu funcionamento.
Curiosamente, muitas línguas não indo-europeias possuem essa estratégia. O guajiro é
um bom exemplo. Essa língua arawak colombiana não apresenta uma marcação de
gênero predeterminada a seus nomes.
inanimados. Sendo assim, umas das mais eficazes estratégias de pulverização de gênero
em uma língua seria aquela que se volte à representação pronominal pessoal, e não às
demais expressões nominais, uma vez que aquela exige uma identidade referencial de
interpretação, enquanto estas são consideradas expressões referenciais per se
(CHOMSKY, 1981).
Em seu artigo sobre a distribuição dos valores de gênero gramatical nas línguas
do mundo no World Atlas of Language Structures Online (WALS), Anna Siewierska
(2013) aponta que, virtualmente, todas as línguas do mundo possuem pronomes
pessoais independentes morfofonologicamente (o que os diferenciam de clíticos e
afixos) e que a marcação de gênero é mais comum na terceira pessoa do que na primeira
e segunda, como ilustrado no Quadro 1.
12
Apenas o irqw e o burunge, ambas línguas cuchíticas faladas no nordeste africano (Tanzânia), são
mencionadas no trabalho de Siewierska (2013). Outras línguas, no entanto, apresentam distribuição das
marcas de gênero na primeira e segunda pessoa, como o paez, língua colombiana (ver JUNG, 2008), e o
mwaghavul, língua chádica nigeriana. Esta última, curiosamente, apresenta apenas a forma masculina
para a primeira pessoa (BLENCH, 2010).
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com o que a autora chama de “de forma arbitrária ou de acordo com algum princípio
baseado semanticamente” (como em garifuna, língua aruaque do norte da América do
Sul). Das 124 línguas que possuem distinção de gênero, somente 20 delas (16%
aproximadamente) apresentam a possibilidade de marcação de gênero na primeira e/ou
segunda pessoa. Essa informação nos mostra que a indicação de gênero nos elementos
pronominais parece ser um fenômeno de referenciação nas línguas do mundo.
O inglês, o português e o russo são exemplos de línguas que possuem estratégias
linguísticas para a representação de referentes animados sexuados, tanto lexicalmente,
quanto em seus sistemas pronominais pessoais, ilustrados no quadro abaixo, que
apresentam os pronomes pessoais nominativos nessas línguas:
13
Em trabalhos recentes, Gabriel Othero e colegas têm argumentado em favor de uma aproximação da
retomada anafórica de 3ª pessoa não realizada foneticamente à leitura neutra de gênero. Assim, na
retomada anafórica pronominal de 3ª pessoa do singular, o português brasileiro leva em consideração
efeitos de concordância de gênero. Nesse sentido, essa língua lança mão do pronome ele para retomar
antecedentes com gênero semântico\biológico masculino; ela para antecedentes femininos e Ø para a
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plural da terceira pessoa (elas/eles), enquanto o inglês e o russo apresentam uma única
forma sem referência a gênero, they e oní, respectivamente.
Alternativamente, algumas línguas não apresentam distinção de gênero em seus
sistemas pronominais. É o caso da língua basca, que não faz distinção gramatical entre
as pessoas pronominais. Gênero nessa língua aparece apenas na morfologia verbal em
tratamento familiar. No exemplo em (1), os morfemas -k e -n aparecem na construção
verbal representando leitura masculina e feminina, respectivamente, cujo referente é a
segunda pessoa:
retomada anafórica de referentes de gênero semântico neutro (inanimados ou palavras como “cônjuge”,
“testemunha” ou “vítima”, por exemplo). Para uma discussão mais aprofundada, ver Othero et a. (2016),
Othero e Spinelli (2017, 2019), Othero e Goldnadel (2020).
14
1 = primeira pessoa; 2 = segunda pessoa; D = determinante; irr = irrealis; pl = plural; sg = singular;
masc = masculino; fem = feminino.
15
https://nonbinary.wiki/wiki/Main_Page.
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Em Hong Kong, uma outra forma pronominal não binária emerge entre falantes
não binários ou cuir, 佢 (qú), utilizada na fala coloquial e em alguns contextos escritos
al., 2015). A menção ao pronome hen remete a textos da década de 1960 na mídia
sueca, segundo Séden et al. (2015), mas sua implementação só passou a ser uma
realidade a partir da década de 2010. Hen apareceu pela primeira vez na mídia impressa
em 2012, no livro infantil Kivi och Monsterhund (“Kivi e o cachorro monstro”), de
Jesper Lundqvist. Em julho de 2014, foi anunciado que hen seria incluído na edição de
2015 do Svenska Akademiens Ordlista (“Glossário da Academia Sueca” - SAOL), que
constitui a norma (não oficial) da língua sueca (BENAISSA, 2014). Semelhantemente,
o pronome they (eles/elas, com leitura pluralia tantum) no inglês e hän (ele/ela) no
finlandês, são utilizados como formas pronominais de gênero neutro. Segundo Dennis
Baron (1986), they singular como uma forma neutra de gênero pode ser encontrada
ainda no século XVIII, mas seu uso como neutralizador de uma língua sexista ainda se
limita a determinados grupos sociais.
No Brasil, houve um movimento, ainda que tímido e restrito a determinados
círculos, de criação de um pronome “neutro”. Carvalho e Silva (2019) apontam a
existência de uma forma pronominal criada a partir da fusão fonética dos pronomes de
terceira pessoa masculino (ele - [eli]) e feminino (ela - [ɛla]): o êla ([ela]).16
Segundo os autores, “[ê]la é usado majoritariamente para se referir à indivíduos
transgêneros femininos e é utilizado na maioria das vezes por indivíduos masculinos
cisgêneros heterossexuais.” (CARVALHO; SILVA, 2019, p. 1080). Seu uso é restrito à
linguagem coloquial e seu registro pode ser verificado em algumas mídias sociais. As
Figuras 2-5 trazem algumas ilustrações dos usos de êla encontradas em algumas redes
sociais, os quais estão destacados.
16
Chamo atenção para o uso do circunflexo como marcação gráfica com o intuito de “fechar” a vogal, e
não para marcar a sílaba tônica, para, assim, evidenciar uma diferença entre êla e ela. Essa observação
vale menção especialmente pelo fenômeno do neopronome (forma pronominal criada para representar
seres não binários) ser encontrado predominantemente em registro escrito em português brasileiro.
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Fonte: http://desciclopedia.org/wiki/Ub%C3%A1
17
Liniker se identifica como não-binária. Por sua referência aparecer geralmente no feminino, manterei
essa marcação aqui.
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Fonte: http://www.thepictaram.club/share/BDhSvhAg2Y-
Figura 4 – Êla em uma postagem sobre a dançarina baiana Leocret no site Flogão
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Fonte: https://www.flogao.com.br/saiddy/27747483
Fonte: https://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20120304103452AABuxPB
18
Disponível em https://www.kboing.com.br/psirico/bate-cabelo/
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contrário, implica uma leitura mais marcada do que os demais pronomes generificados
no português.
Carvalho e Silva (2019) apresentam também resultado de uma consulta feita
com 50 usuários na rede social Facebook através da ferramenta online Google Forms, a
fim de desenhar o perfil dos possíveis referentes do pronome êla. Repetimos a consulta,
que foi respondida por 77 usuários. Uma das perguntas do formulário era “Em caso de
resposta positiva da pergunta anterior [Você já usou o pronome êla?], em que contexto
você usou o pronome êla e para se referir a quem?”. Obtivemos dez respostas por
extenso, que transcrevo integralmente a seguir:
Podemos observar que das dez respostas dadas pelos que já utilizaram o
pronome êla alguma vez, a maioria (sete respostas) mencionam terem associado o
referente ou a pessoas (mulheres) transgêneras ou a homens efeminados. Isso mostra
que há uma tendência à marcação do referente do pronome êla a sujeitos mais
feminizados.19 Assim, tanto a normatividade quanto o passado linguístico ampliam
ainda mais a nossa compreensão da sexualidade refletida na língua como
19
Sobre a categoria social feminização, ver Yannoulas (2011).
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O censo demográfico de 1872 declara que pessoas negras e mestiças correspondiam a 62% da
população brasileira (REIS, 2000).
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branda, mas aparentemente mais efetiva, pois parece regulamentar-se no vernáculo. Isso
pode explicar sua longevidade na língua inglesa. No entanto, outras línguas, na tentativa
de adotar tal estratégia, estabeleceram não apenas uma desexualização pronominal, mas
mesmo uma desumanização e/ou uma infantilização. É o que Natalia Knoblock (2021)
identifica em alguns usos do ucraniano, como no discurso político, que utilizam a
estratégia pronominal воно (pronome de terceira pessoa neutro) para reclamar uma
infra-humanização (nas palavras da autora) ou mesmo despersonificação (TEIXEIRA,
2014) do outro: воно pode ser usado para denotar uma criança. Esse expediente de
infantilização como infra-humanização é recorrente no pensamento ocidental como
herança de uma percepção do infantil como não humano (ver GONZALES, 1983;
LYOTARD, 1997, 1998; KOHAN, 2010). Nas palavras de Walter Omar Kohan, “[c]om
efeito, a infância não é apenas ausência de palavra, mas a palavra que não pode ser dita,
um resto de palavra indizível que habita toda palavra dita” (KOHAN, 2010, p. 127).21
Já a terceira tendência é utilizada por línguas como o sueco e o finlandês, que
criaram um elemento pronominal específico para a referência não binária. Essa
estratégia é mais radical e menos funcional que as demais, pois requer a regulamentação
de um novo item funcional inexistente na língua.
Essa estratégia diligencia uma intervenção política mais marcante e uma
conscientização popular de sua implementação. Na língua inglesa há a tentativa de
implementação de sistemas pronominais não binários, resumidos no Quadro 4.
Entretanto, a utilização dessas formas é, pelo menos, mais restrita que o uso do they
singular.
21
Não é à toa que o uso do diminutivo, da diminuição do referente é um recorrente instrumento
linguístico de dois extremos afetivos: o xingamento e a expressão de afeto. Em ambos, há uma conotação
ao infantil do diminutivo.
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O êla do português brasileiro é outro exemplo dessa terceira estratégia, mas sem
o respaldo institucional, necessário para sua implementação. Para além da inexistência
desse suporte político, nos deparamos com o já mencionado falogocentrismo como
“coluna dorsal das normas de gênero” (BENTO, 2017, p. 60). Isso justifica a
marginalização de sua referencialidade, exclusivamente a uma leitura de matiz
feminilizante, historicamente apagada nas sociedades ocidentais. A tendência brasileira
de os usos de um pronome não binário serem associados à marcação de corpos lidos
como feminis ou transgêneros, especificamente gays efeminados, travestis e mulheres
transgêneras, ilustra contundentemente esse cenário.
As estratégias identificadas não devem ser as únicas disponíveis para um
tratamento justo de gênero nas línguas, mas apareceram em nossa pesquisa e fomentam
o debate aqui proposto. Outras pesquisas, no entanto, mostram a introdução de novas
formas de referenciação pronominal não binária (ou não generificada) usadas, por
exemplo, por falantes do inglês londrino, como man (CHESHIRE, 2013), ou yo, em
uma variedade da língua inglesa falada na cidade estadunidense de Baltimore
(STOTKO; TROYER, 2007). Curiosamente, mas não coincidentemente, todas essas
estratégias foram registradas em comunidades jovens, o que pode indicar, segundo
Penelope Eckert (1988, 1989), uma orientação no sentido da implementação nessas
línguas.
A adoção de estratégias justas para gênero deve, portanto, visar a reduzir
estereótipos e a discriminação de gênero. O caso do português brasileiro ilustra como a
integração de pesquisas sobre estrutura da língua, políticas de linguagem e estilo
linguístico pode contribuir para uma justiça linguística de gênero, fomentando a redução
da estereotipificação linguística, geradora de discriminação.
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