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Reflexões sobre Racismo, Etnocídio e Epistemicídio no Brasil

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Gusmão, Gisela de O .

Resumo

Este texto corresponde ao trabalho de conclusão da disciplina ―Vozes contra os Genocídios:


Perspectivas Contemporâneas‖ que faz parte do programa ―Vozes contra os Genocídios‖, uma iniciativa
interinstitucional, cuja metodologia congrega sabedores/as tradicionais e acadêmicos/as por meio de
aulas/diálogos conjuntos, a fim de problematizar este tema. Tem como objetivo refletir sobre racismo a
partir dos diálogos entre o quilombola Mestre Antônio Bispo dos Santos, o Babalorixá e Prof. Dr. Sidnei
Nogueira (Faculdade Anhanguera da São Caetano e (UNIESP), a Yalorixá Thiffany Odara, Profa. Dra.
Lia Vainer Schucman (UFSC) e Profa. Dra. Regina Marques (UFRB), dentre outros comentadores. A fim
de enriquecer a discussão, me apoiei também em autores como Ortiz (2013), Munanga (2003),
Santos(2015 e Nogueira (2020).

Palavras-Chave
Racismo; Genocídios; Etnocídio e Epistemicídios; Contra-Colonialidade; Decolonialidade.

Introdução

A colonização tem sido um tema de estudo bastante complexo. Neste trabalho, mantive
o foco na escuta não de dois grandes autores, grandes representantes da população
negre, mas especialmente à suas histórias de vida, que se configuram em grandes
ensinamentos e num arsenal de provas do crime de racismo. Pelo ponto de vista de
Nogueira (2020), colonização diz respeito a um processo de produção de inferioridade
e de alienação do colonizado, impondo ‗valores civilizatórios universalistas‘ a fim de
difundir a ideia de superioridade do colonizador, justificando sua intervenção. Desta
forma, a colonização é percebida como um benefício aos colonizados, vistos como
selvagens e primitivos, enquanto ao colonizador é conferido o título de herdeiro legítimo
dos bons valores. A esse respeito, Santos (2015) converge citando em seu livro, muitas
passagens do relatório do descobrimento do Brasil, bem como trechos bíblicos que
demonstram com muita força o sentimento de discriminação e de julgamento raso dos
invasores em relação aos povos originários. Ambos os autores, afirmam que não
somente o processo de colonização do Brasil, mas de outros territórios e populações,
não teria sido possível sem o trabalho da igreja católica. A fim de distanciar-se do
senso comum e da história do racismo escrita por brancos, Santos (2015) usa uma
terminologia própria, como por exemplo, ao referir-se aos brancos, diz ―euro cristãos
monoteístas‖. Este texto se propõe a expressar minhas reflexões a respeito do que
1
Psicóloga, mestranda do PPGECCO – UFMT.
pude apreciar nos vídeos do tão relevante projeto ‗Vozes Contra os Genocídios‘ do
qual participei como aluna, e, me convidou a reflexões muito profundas a respeito da
minha vida, como brasileira miscigenada e estigmatizada por ser filha de mãe branca e
pai mestiço. Uma união que contrariou as minhas duas famílias e a sociedade. Eu vivi a
falácia construída por autores bastante relevantes que, desde o século XIX como
descreve Santos (2015) de um Brasil sem racismo, de harmonia entre as raças.
Portanto, escolhi esse tema a fim de compreender um pouco melhor a minha própria
existência. E, foi uma experiência maravilhosa, por meio da qual aprendi muito e tive a
oportunidade de me aproximar mais desses dois mestres que tanto têm contribuído
para a decolonialidade e a contra-colonialidade, expressões que serão melhor
abordadas no decorrer do texto.

Racismo no Brasil – viva a resistência!

O vídeo ‗Vozes contra o genocídio do povo negro, quilombola e de terreiro‘


apresenta o diálogo entre o líder quilombola Mestre Antônio Bispo dos Santos,
conhecido como Nego Bispo, morador de uma comunidade rural de agricultura familiar
no Piauí, autodidata que se desenvolveu como poeta, filósofo, historiador e ensaísta, e,
o Babalorixá e Prof. Dr. Sidnei Nogueira, linguista com mestrado e doutorado em
Semiótica, coordenador do Instituto Ilê Ará. Durante o diálogo, ambos reiteram a
importância das palavras e das expressões, sendo que Bispo criou inúmeras
expressões para, em suas análises, sair dos significados e significações introjetados na
memória coletiva brasileira, abrindo possibilidade para ressignificações dos lugares e
das relações cristalizadas há séculos. Questionam também a narrativa construída para
valorizar os colonizadores e seus descendentes, e, ao mesmo tempo, apagar a história
do povo negre.
A respeito do racismo como ferramenta de subalternização de um povo ou de
populações que compartilham o mesmo território, bem como dos termos que
favorecem o jogo retórico do colonizador, Munanga (2003) explica que especialmente
no Brasil, as etnias Branca, Amarela e Negra, que chegaram nesse território, incluindo-
se a nativa Indígena, não deveriam ser tratadas como raças e sim como populações,
devido à miscigenação, cabendo menos ainda o conceito biológico e genético.
Entretanto, segundo o autor, a discriminação se dá mais fortemente pelos fatores
sócio-culturais e político-ideológicos.
Munanga (2003) discute o racismo fazendo um percurso histórico desde a
primeira aplicação do termo ‗raça‘, que se propunha a classificar plantas, daí o
componente biológico associado ao racismo. Em 1684, o termo ‗raça‘ passa a ser
empregado para classificar o que François Bernier apud Munanga (2003) denomina de
‗diversidade humana‘, em grupos que divergem nas características físicas. Segundo o
autor, entre os séculos XVI-XVII, o conceito de raça, na França foi aplicado para
diferenciar grupos na hierarquia social, os Francos, considerados raça pura, da Plebe.
E, posteriormente, passou a indicar a descendência, a linhagem e um grupo de
pessoas que apresentam traços físicos semelhantes, por compartilharem da mesma
origem ancestral. Analisando os conceitos de raça e etnia, faz importantes revelações a
respeito do racismo, dizendo:

A maioria dos pesquisadores brasileiros que atuam na área das relações


raciais e interétnicas recorrem com mais frequências ao conceito de raça. Eles
empregam ainda este conceito, não mais para afirmar sua realidade biológica,
mas sim para explicar o racismo, na medida em que este fenômeno continua a
se basear em crença na existência das raças hierarquizadas, raças fictícias
ainda resistentes nas representações mentais e no imaginário coletivo de todos
os povos e sociedades contemporâneas. Alguns, fogem do conceito de raça e
o substituem pelo conceito de etnia considerado como um lexical mais cômodo
que o de raça, em termos de ―fala politicamente correta‖. Essa substituição não
muda nada à realidade do racismo, pois não destruiu a relação hierarquizada
entre culturas diferentes que é um dos componentes do racismo. Ou seja, o
racismo hoje praticado nas sociedades contemporâneas não precisa mais do
conceito de raça ou da variante biológica, ele se reformula com base nos
conceitos de etnia, diferença cultural ou identidade cultural, mas as vítimas de
hoje são as mesma de ontem e as raças de ontem são as etnias de hoje. O
que mudou na realidade são os termos ou conceitos, mas o esquema
ideológico que subentende a dominação e a exclusão ficou intato. É por isso
que os conceitos de etnia, de identidade étnica ou cultural são de uso
agradável para todos: racistas e anti-racistas. Constituem uma bandeira
carregada para todos, embora cada um a manipule e a direcione de acordo
com seus interesses. (MUNANGA, 2003, p. 13)

Segundo Santos (2015) a história que lhe contaram na infância, a respeito do


descobrimento do Brasil, que ele considera exótica, o levou a várias reflexões. Os
colonizadores, mesmo reconhecendo que não estavam na Índia, nominaram
primeiramente o território de Monte Pascoal e por fim de Brasil, sendo que na língua
Tupi se chamava Pindorama. No entanto, seguiram trataram os nativos por índios
ignorando suas diversas nações e costumes. Segundo o autor, a mudança de nome e
a generalização são estratégias de desumanização utilizada pelos colonizadores para
facilitar o adestramento dos colonizados. Portanto, Santos (2015) os trata por povos
pindorâmicos e aos negres por afro-pindorâmicos.
Com respeito aos Quilombos, Santos (2015) diz que ao contrário do que conta a
história eles sempre existiram, pois os africanos se rebelaram desde que chegaram,
correndo para a mata virgem e criando seus refúgios. Em sua fala, Bispo diz que
quando Zumbi chegou em Palmares/AL e Antônio Conselheiro em Canudos/CE já
havia uma estrutura. E que, desde a época da escravidão até o surgimento do
Nazismo, e no decorrer da Segunda Guerra Mundial e da Ditadura Vargas, os
quilombos foram lugares de fuga do Etnocídio. Cita que em Caldeirão/CE mais de 5 mil
pessoas foram enviadas por Pe. Cícero, para serem protegidas, e depois foi
bombardeado por ordem de Getúlio Vargas. Houve nessa época também um campo de
extermínio em 1942, em Pau de Colher. Getúlio mandou matar e queimar. Onde,
segundo uma sobrevivente, na roça de seu pai foram encontrados dois mil crânios das
pessoas queimadas (PPGECCO UFMT, 2021, aula 2, 8‘50‖-16‘10‖).
Bispo considera assustador que nos livros de história, escrito por pesquisadores
que se autodeclaram progressistas, esses fatos não tenham sido narrados. Bispo conta
que Getúlio mandou matar e queimar tudo nessas comunidades e explica que o ritual
de queimar o local tem como objetivo apagar a memória e destruir símbolos e
significados de um povo. Segundo ele, ―Toda vida morreu nosso povo‖. Atualmente não
está pior, mas devido à tecnologia é mais divulgado. Bispo considera que a sociedade
euro-cristã monoteísta é o mesmo que sociedade colonialista, tendo sempre praticado
o etnocídio e segue nesse caminho. Bispo cobra a academia para que estudem esses
fatos e revelem a verdadeira história dos genocídios praticados contra negres. Bispo
questiona em sua fala os pesquisadores da área das ciências humanas, e os
historiadores de esquerda e decoloniais, dizendo-se contra-colonial e não ‗de‘, que
segundo ele tem sido omissos em relação ao etnocídio praticado especialmente em
Palmares, Canudos, Caldeirão e Pau de Colher. Para Bispo, quando a sociedade
etnocida não atacou diretamente, foi omissa e deve ser responsabilizada da mesma
maneira (PPGECCO UFMT, 2021, aula 2, 16‘11‖-20‘00‖).
Bispo demonstra certo ressentimento pela atuação omissa por parte das
próprias lideranças de esquerda dizendo: ―Os Governos dito de esquerda, Lula e Dilma,
fizeram a comissão da verdade, para quem? para quem participou na guerra do
Araguaia, cujos líderes foram euro cristãos monoteístas, estudantes da classe média‖.
Segundo ele negros e indígenas não estavam na universidade naquela época.
Pergunta também o porquê não fizeram comissão da verdade de quem sofreu em Pau
de Colher e em Caldeirão, indenizando, inclusive vítimas ainda sobreviventes
(PPGECCO UFMT, 2021, aula 2, 22‘01‖-22‘:23‖).
O Pai Sidney de Xangô discorda em partes de Mestre Antônio Bispo dos Santos
dizendo: ―a academia não foi feita para nós‘. Mas, que o povo negre está adentrando e
tem podido falar por si, ainda que desagradando uma burguesia que se acostumou a
falar em seu nome. Segundo ele o Brasil ainda arrasta uma corrente colonial enunciada
pela sua burguesia que se pensa colonizadora. Afirma também que tudo o que vivemos
no Brasil é consequência de um projeto civilizatório humanista europeu, que trata-se da
construção de lugares de ausências e da produção de ausências. Desta forma, os
negros não existem ou sua existência é considerada incômoda, portanto, é
desnecessário falar desse povo e da sua história (PPGECCO UFMT, 2021, aula 2,
27‘10‖-29‘:20‖).
Esse fenômeno de não reconhecimento da existência e de apagamento da
história é analisado por Santos (2015) que define como colonizador como aquele que
invade um território a partir de uma visão etnocêntrica, que justifica a expropriação e o
etnocídio a fim de subjugar e impor sua cultura. No caso do Brasil, o autor inclui os
povos originários na mesma categoria dos africanos e os colonos que vieram
posteriormente na condição também de colonizadores, uma vez que eram também
euro cristãos. Há no senso comum a ideia de que os colonos também vieram para
serem escravizados, mas a própria história prova que essa teoria não se fundamenta
porque na guerra cultural eles estavam do lado oposto, e, portanto, ascenderam,
enquanto que os povos originários e a população negra continuaram sendo
marginalizados e dizimados a partir da criminalização dos costumes, como muito bem
dito no trecho a seguir:

Um exemplo bastante ilustrativo da continuidade da perseguição aos


Quilombos é o Capítulo XIII — Dos Vadios e Capoeiras do Código Penal da
República, instituído pelo Decreto de No 847 de 11 de outubro de 1890, que
proibiu e criminalizou a prática da capoeira, ainda na fase de implantação da
República, durante o governo provisório, antes mesmo da promulgação da
primeira constituição republicana e apenas dois anos após a abolição da
escravatura. Destaca-se que era considerada circunstância agravante
pertencer o capoeira a alguma banda ou malta, prevendo pena em dobro caso
fosse chefe ou cabeça do grupo, além de deportação após cumprimento da
pena, caso fosse estrangeiro (leia-se africano). (SANTOS, 2015, P. 49)

Outra forma de apagamento era o estupro de mulheres negras, numa tentativa


de embranquecer essa população o Pai Sidney de Xangô, em sua fala diz: ―Nós é que
estamos escurecendo a sociedade. Nós é que somos negres, pretos e pardos, 53,2%‖,
quando se refere ao fenômeno chamado por alguns de embranquecimento do terreiro,
quando ele vê como o contrário, o escurecimento da sociedade, num ato de subversão
da ordem. Segundo ele, são tentativas frustradas de embranquecimento que se notam
desde o século XIX, mas povo negro tem a força da resistência e hoje o que dizem do
embranquecimento dos terreiros, são os brancos que tem buscado a cura por meio da
―magia preta de terreiro‖, procurando aprender e assimilar a cosmo-percepção negra
(PPGECCO UFMT, 2021, aula 2, 39‘:40‖-47‘12‖). Nogueira (2020) reflete sobre as
epistemes desse caminho completo das resistências, que não refuta o erro ou da
morte, pois podem se configurar em estados para a reparação e continuidades,
diferentemente da sociedade branca que teme a punição por errar e teme a morte
como um fim. Entretanto, elegem quem ou o que deve morrer e quem pode matar de
acordo com o trecho a seguir.

A perseguição e a intolerância tão marcadamente focadas nas religiões negras


não se dão ao acaso. As instituições hegemônicas sabem o perigo que
representam quilombos-famílias que dão instrumentos de luta, resiliência,
saúde mental e espiritual ao oprimido. A demonização e o epistemicídio são
formas de controle social do oprimido, que, reintegrado aos seus, à sua
ancestralidade e ao seu Eu divino-natureza-ancestral, podem representar
perigo iminente para a manutenção do status quo hegemônico. Entre os tantos
perigos, o que mais afronta a intolerância tão vinculada à história das
instituições cristãs é a crença de que o marginalizado tem algo a acrescentar,
pois é potência divina. Ele é existência ancestral, é vida e gera vida, é criação e
recriação, é desejo de diversidade e alteridade, é memória ancestral traduzida
em possibilidades de ser no mundo. A episteme preta é a episteme da vida em
oposição à negação da vida. Não é episteme do carrasco, daquele que sente
menos medo e se sente mais seguro porque eliminou a diferença. Não se trata
de uma episteme do atalho. Até porque atalho nunca é caminho completo,
segundo diz a sabedoria iorubá. (NOGUEIRA, 2020, P. 63)

Enriquecendo a discussão Bispo trás o conceito de Cosmovisão que reúne


muitas manifestações culturais e identitárias do povo preto. Dá o exemplo de Nossa
Senhora do Rosário dizendo: ―Para o nosso povo a mãe de Jesus é mais importante
que o seu pai. Isso é contra colonizar‖. É preciso pensar e articular bem, usando as
palavras como se fosse uma metralhadora, e, agregar o saber orgânico ao saber
sintético da sociedade colonialista capitalista. Portanto, diz apresentar-se como Negro,
Quilombola, Feiticeiro, etc. Bispo diz usar as palavras que sirvam melhor para que ele
possa se defender (PPGECCO UFMT, 2021, aula 2, 02‘11‖ – 02‘13‖).
Pai Sidney de Xangô Inicia suas palavras falando sobre os mortos pela COVID-
19, e as denomina de mortes sacrificiais, resultado do que ele entende como
universalismo genocida, denunciando que são mortes pelo neoliberalismo, pelo
capitalismo, pelo colonialismo, o epistemicídio e o genocídio; e, denuncia, que ao
contrário do que dizem, nos terreiros não se faz sacrifício (PPGECCO UFMT, 2021,
aula 4, 04‘00‖-05‘55‖). Segundo Nogueira (2020) a imolação de uma animal, de acordo
com a sua ancestralidade, é um ato sagrado de gratidão às divindades pelo alimento e
pela vida. O profano estaria na órbita do que é nocivo e destrutivo, do mau-caratismo.
Muito bem dito no trecho abaixo.

Na verdade, a sacralização por meio do abate animal é um gesto de


manutenção das relações entre as forças visíveis e invisíveis da natureza
enquanto uma única comunidade. Nesse momento temos o axé – força vital –
reforçado, restaurado, ressignificado. Temos a energia harmonizada, a vida
protegida, a morte prematura afastada. A imolação é uma grande metáfora.
Imola-se para agradecer às forças consciências divinas ancestrais pela
possibilidade de ter o que comer, pela manutenção da sua vida e a dos seus,
pela possibilidade de existir e ser de forma íntegra. Nossos entes divinos não
são nada distantes ou apartados de nós. Eles comem conosco, pois somos
parte de um coletivo que atravessa dimensões. Assim, alimenta-se e imola-se
para nutrir-se em todos os sentidos que o verbo nutrir possa atingir, física e
metafisicamente. (NOGUEIRA, 2020, P. 53)

Além disso, de acordo com o autor, trata-se de um ritual para o qual as pessoas
se preparam com banhos, tranquilizando seu espírito, sua mente e sintonizando com
toda a atmosfera do ritual, embalado por cânticos e rezas.
‗Babalorixá é a minha camada de negritude enquanto professor é a minha
camada de branqueamento‘. Com essas palavras, Pai Sidney de Xangô, inicia uma
profunda reflexão a respeito do apagamento e da imposição cultural do projeto
colonialista humanista civilizatório e diz que ser Babalorixá foi o que lhe restou por
direito dos valores da África ancestral. Apresenta-se orgulhosamente como uma
pessoa preta e de fala decolonial, da qual garante sua expressividade livre,
considerando que durante muito tempo, como pessoa negra, teve que ouvir o que não
queria. Reconhece que a realidade do racismo no Brasil ainda pretende calar a ele e ao
seu povo, mas tanto ele como alguns outros, falam porque furaram a máscara da negra
Anastácia (PPGECCO UFMT, 2021, aula 4, 05‘56‖-11‘30‖).
Considerando que os idiomas predominantes sempre foram as línguas hindu-
européias, quando Pai Sidnei de Xangô entrou no doutorado e decidiu estudar a língua
Nago Ketu, durante uma apresentação num congresso, foi advertido para deixar o
Babalorixá fora da academia, e, se sentiu profundamente afrontado. Falando do lugar
de vítima de um crime, racismo religioso, reflete o porquê um padre ou um pastor
nunca necessitaram deixar sua religião de fora. Pai Sidnei de Xangô explica que
quando o Brasil foi colonizado já existia aqui uma civilização de 4 mil anos e os
Africanos eram uma civilização de 6 mil anos, sendo inconcebível a negação de sua
epistemologia civilizatória e todo o epistemicídio, e o etnocídio que objetivou o
apagamento das suas ancestralidades bem como o seu genocídio (PPGECCO UFMT,
2021, aula 4, 22‘00‖-22‘28‖). A esse respeito, Munanga (2003) nos recorda de que a
Bíblia ignorava a existência dos índios e os negros eram estigmatizados.

Para aceitar a humanidade dos ―outros‖, era preciso provar que são também
descendentes do Adão, prova parcialmente fornecida pelo mito dos Reis
Magos, cuja imagem exibe personagens representes das três raças, sendo
Baltazar, o mais escuro de todos considerado como representante da raça
negra. Mas o índio permanecia ainda um incógnito, pois não incluído entre os
três personagens representando semitas, brancos e negros, até que os
teólogos encontraram argumentos derivados da própria bíblia para demostrar
que ele também era descendente do Adão. (MUNANGA, 2003, p. 2)

O racismo se fundamenta na lógica e na ideologia de raças para determinar e


classificar, mesmo a partir de condições desiguais, uma hierarquia entre elas. ―O
racista cria a raça no sentido sociológico, ou seja, a raça no imaginário do racista não é
exclusivamente um grupo definido pelos traços físicos. A raça na cabeça dele é um
grupo social com traços culturais, linguísticos, religiosos, etc. que ele considera
naturalmente inferiores ao grupo a qual ele pertence‖ (MUNANGA, 2003, p. 8).
Para Pai Sidnei de Xangô, a ausência do outro face ao colonialismo euro-cristão,
que produz o que ele denomina de ―um eu ausente num não lugar‖ é o mesmo que
morte e diz: ―[...] O Babalorixá é a minha camada de negritude. Eu sou uma autoridade
tradicional civilizatória, eu me rendi aos rituais de Candomblé, orgulhosamente. Eu sou
uma pessoa iniciada em Xangô aos 16 anos de idade. Eu tive minha cabeça raspada.
Eu levei banho de sangue. O sangue do carneiro que está somado a mim, que não
morreu. Eu sou um homem Xangô Carneiros! [...]‖ (PPGECCO UFMT, 2021, aula 4,
29‘35‖-33‘:25‖).
Atenta para os riscos de um projeto religioso de poder que tenta transformar
tudo em obra do mal para venderem o bem, e refere-se ao projeto neopentecostal.
Entretanto, segundo o Pai Sidnei de Xangô, o discurso é revestido de religioso, mas de
fato é um discurso de poder que ameaça a existência do povo negre em todos os seus
aspectos. Nessa perseguição à religião e à religiosidade negre, seus rituais de
imolação tem sido criticados, deixando evidente que a vida de uma galinha preta vale
mais do que as vidas do povo negre, que até hoje sofrem genocídio, etnocídio e
epistemicídio, termo muito bem cunhado por Boaventura Santos (1940). Assim,
sobreviver significa aceitar a identidade negre construída pelo branco e a morrer,
rejeitá-la. A perseguição aos terreiros, que se tornaram lugares de aquilombamento,
segundo Pai Sidnei de Xangô, devem ser entendidas como racismo religioso, porque o
ponto central é a questão racial (PPGECCO UFMT, 2021, aula 4, 33‘26‖-). De acordo
com Nogueira (2020) o caminho para se criar uma epistemologia afro-brasileira e
romper com os padrões eurocêntricos é a afrocentricidade. Remover o europeu do
centro da realidade africana, muito bem explicado abaixo.

Este é o caminho necessário para a produção de uma episteme preta a partir


do somatório da afro-centricidade com os saberes tradicionais das CTTro no
Brasil. É importante que tenhamos uma dialética que se dá por meio das
articulações entre africano e africano. Trata-se de uma postura decolonial
contra a colonialidade do poder que está posta na produção de verdades
universais que devem ser aceitas independente de quanto essas verdades
subalternizam tudo que se relacione à alteridade. (NOGUEIRA, 2020, P. 65)

Munanga (2003) nos provoca quando afirma que a etnia não é uma ‗entidade
estática‘, mas trás em si uma história, desde a sua origem evoluindo no tempo e no
espaço, como no caso dos afro-brasileiros, e, um olhar cuidadoso para a história de
todos os povos, revela que as etnias nascem e desaparecem de tempos em tempos. E,
ainda fortemente impregnados pelas visões biológica e genética, mudam-se apenas os
termos. Segundo o autor, Por esse prisma, é possível falar de novas etnias ou etnias
contemporâneas.
Um exemplo impressionante de resistência, que teve início a mais de 200 anos,
é contado pela Sra. Maria Aparecida Mendes - Coordenadora Nacional de Articulação
das Comunidades Rurais Quilombolas/CONAQ, sobre a comunidade Conceição das
Crioulas/PE, cuja fundação se deu pela chegada de N. S. da Conceição, trazida por um
senhor, acompanhado de 6 mulheres negras que fizeram a promessa de que se não
fossem escravizadas construiriam uma igreja em nome da Santa. Com o tempo o
território começou a ser invadido por pessoas comuns e mais tarde por fazendeiros que
iludiram alguns para o trabalho sem pagamento ou como mão-de-obra barata. Mas, um
grupo de resistência, formado em torno de lideranças e da importante luta das
mulheres, conseguiu realizar uma grande transformação nessa comunidade. O esforço
para que as jovens estudassem para desenvolver a educação local para além do
curriculum tradicional, mantendo sua história e seus costumes, e o seu trabalho na
cooperativa de artes manuais produzindo utensílios de cerâmica e bonecas de sisal,
que de acordo com o Sr. Pedro Reis - Vice-presidente do Conselho Municipal de
Promoção de Igualdade Racial – CMPIR, tem uma forte relação com a ancestralidade e
essa comunidade é a única que tem mantido o artesanato em sisal. A forma com que
elas trabalham favorece a conservação da biodiversidade pela visão ancestral que
mantem da relação com a natureza (PPGECCO UFMT, 2021, aula 9, 16‘00‖-31‘55‖).
Essa relação com a terra, a partir da lógica sustentável, é descrita por Santos
(2015) como Biointeração e é englobada pelo seu conceito de Cosmovisão. De uma
forma bastante poética, o autor diz ter aprendido com os mestres e as mestras que o
melhor lugar para guardar a mandioca é na terra. Portanto, o que se tira é para uso e
para repartir. Segundo ele, a relação de biointeração é de comunhão prazerosa com a
terra, ao contrário de Adão e seus descendentes, que foram condenados pelo ‗Deus
Bíblico‘, á fadiga para produzir o alimento. E, continua a seguir.

Assim, como dissemos, a melhor maneira de guardar o peixe é nas águas. E a


melhor maneira de guardar os produtos de todas as nossas expressões
produtivas é distribuindo entre a vizinhança, ou seja, como tudo que fazemos é
produto da energia orgânica esse produto deve ser reintegrado a essa mesma
energia. Com isso quero afirmar que nasci e fui formado por mestras e mestres
de ofício em um dos territórios da luta contra a colonização. (SANTOS, 2015,
P. 85)

A história da luta pela identidade contada pela Sra. Maria Aparecida Mendes,
trás claramente a forma de manipulação que ataca os aspectos psicológicos e morais
de um povo subalternizado, como na sua fala de aos olhos dos de fora, o território é
pobre, bem como o seu povo. Mas, ao contrário, ela afirma que quando se uniram a
outros grupos que estavam mais avançados na luta por seus direitos, entenderam que
o território sim é rico e o que lhes faltava era a acessibilidade aos serviços básicos dos
quais foram excluídos. Passando a integrar comissões de discussões a respeito das
políticas públicas, conquistaram não somente o reconhecimento de pelo menos parte
do seu território, como também educação e serviços, para alcançarem o
desenvolvimento que tem hoje. Quando a Sra. Maria Aparecida Mendes fala do que
produzem, reitera que, de fato, é a natureza que produz e o êxito da comunidade é
fruto da relação de respeito entre o seu povo e a natureza. Rompendo essa relação
ancestral com a natureza estariam aceitando o projeto dos Governos que é matar seu
povo, quando os empurram para as grandes cidades para viverem em favelas.
(PPGECCO UFMT, 2021, aula 9, 01‘00‖-‖).
Percebe-se nos depoimentos e reflexões desses líderes e mestres que
participaram do projeto ‗Vozes Contra os Genocídos: Perspectivas Contemporâneas‘,
que de fato parece equivocado o conceito de mestiçagem e harmonia entre as raças,
que predominou até meados do século XX, segundo Ortiz (1986) ignorou o preconceito
à mestiçagem por ignorar a problemática racial. Em busca de uma identidade nacional,
mecanismo sutil de adequação dos colonizados, como numa suposta evolução do
Candomblé para a Umbanda como descreve (ORTIZ, 1986, P. 108) ―A macumba e a
umbanda representariam o momento em que a superestrutura se adaptaria ao
processo de transformação da história brasileira, isto é, as ideias africanas se
adequariam pouco a pouco à totalidade nacional‖.

Considerações

O curso me permitiu aprender muito e refletir profundamente a respeito do meu


lugar na nossa sociedade. Sigo refletindo. E me parece claro, que a dessacralização e
demonização dos rituais e dos costumes dos colonizados continua sendo uma
estratégia discriminatória do colonizador fazendo com que o outro sinta-se
constrangido nas suas vestes e nas suas práticas culturais. O lugar de povo
desenvolvido parece seduzir o colonizado a aceitar os modos dos seus opressores
como se fosse uma evolução natural, perceptível no posicionamento firme de Bispo
como contra colonial e não decolonial, explicado em seu livro ‗Colonização, Quilombos:
modos e significações‘, quando ele relata que tão logo chegaram ao Brasil, muitos
Africanos fugiram e iniciaram os quilombos não permitindo que a cultura euro cristã
ocupasse o centro da sua sociedade e desta forma os quilombolas vivem até hoje,
preservando a sua ancestralidade.

Referências

ORTIZ, Renato. ―Imagens do Brasil‖. Em: Revista Sociedade e Estado - Volume 28


Número 3 Setembro/Dezembro 2013.

MUNANGA, Kabenguele. Uma Abordagem Conceitual das Noções de Raca,


Racismo, Identidade e Etnia. Palestra proferida no 3º Seminário Nacional Relações
Raciais e Educação-PENESB-RJ, 05/11/03. Disponível em:
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