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Querida Chihiro

Estou escrevendo para dizer o quanto sentimos a sua falta desde


que você e seus pais se mudaram. As notícias que temos de vocês nos
chega pelo seu criador, Sr. Myazaki. Ele tem nos contado em detalhes a
respeito das aventuras que, especialmente você, tem vivido aí. Essas
histórias têm me feito mergulhar em profundas reflexões especialmente
sobre o lugar da mulher na sociedade japonesa, sua cultura de consumo,
sobre o preconceito relativo à estética corporal, entre outras questões.
Percebo que você está amadurecendo e se tornando uma jovem muito
corajosa e questionadora, sem, no entanto, perder a pureza da infância.
Sr. Myazaki me contou que a sua pureza tocou profundamente um ser
mau e o fez parar de atacar pessoas. Achei um feito incrível!

Chihiro, o Sr. Myazaki me contou que o seu pai se perdeu no


caminho para a casa nova quando tomou um atalho para economizar
tempo, e, foi aí que tudo começou. Surpreendente vocês terem encontrado
uma vila abandonada, praticamente perdida, que mantinha um parque
de diversões e uma casa de banho. Me parece curioso, Chihiro que você
ainda criança, cruze o parque de diversões e termine de fazer essa
passagem numa casa de banho. Conversando com o Sr. Myazaki,
entendemos que, mesmo que você não se lembre, ou não interprete da
mesma forma, como você havia se perdido dos seus pais, o Haku, que se
apresentou como alguém que pretendia ajudar e até se tornou seu amigo,
de fato, estava te sequestrando para se tornar uma escrava na casa de
banho. Esse fato não somente nos entristeceu muito, mas nos fez lembrar
de um artigo intitulado “Eu compro, logo sei que existo: as bases
metafísicas do consumo moderno”, escrito pelo sociólogo britânico,
Chamado Colin Campbell, no qual ele diz:

Essa questão nada tema ver com “porque consumimos?”. Para tal questão
existe uma série de respostas amplamente aceitas, que vão da satisfação de
necessidades até a emulação dos outros, a busca do prazer, a defesa ou a
afirmação de um status etc. Contudo, ao procurar entender porque que o
consumo tem tanta importância na vida das pessoas, conclui-se que talvez
esteja suprindo uma função muito mais importante do que apenas satisfazer
motivos ou intensões específicos que incitam seus atos individuais. Em outras
palavras, é possível que o consumo tenha uma dimensão que o relacione com
as mais profundas e definitivas questões que os seres humanos possam se
fazer, questões relacionadas com a natureza da realidade e com o verdadeiro
propósito da existência – questões de “ser e saber”. Assim sendo, é esta a tese
que irei abordar aqui. (CAMPBELL, 2007, P.47)

A mim, me parece bastante complexo o fato das pessoas


consumirem tanto e consumirem não somente itens materiais, mas
pessoas, experiências, e porque não dizer, vidas. As casas de banho são
lugares luxuosos, onde somente japoneses ricos podem frequentar, e se
deleitarem com farta comida, bebida, e, além de mulheres, meninas,
como você. Desta forma, esses homens mantém, não somente o poder,
mas a sua própria possibilidade de existência, uma vez que para isso,
necessitam estar constantemente em posição de superioridade.

Chihiro, o Sr. Myazaki também me contou a assustadora


transformação dos seus pais em porcos, como uma punição da bruxa
Yubaba. Eu posso imaginar o quanto você ficou amedrontada
presenciando isso tudo. Então, quer dizer que quando se entregaram ao
consumo, de forma irracional, não somente se esqueceram de você, mas
também da sua própria humanidade! Muito forte isso, Chihiro! Enquanto
você ficou sozinha e exposta aos perigos.
Chamou-me a atenção também, esta punição da Yubaba,
transforar as pessoas em porcos gordos, porque no Japão há ainda muito
preconceito em relação às pessoas que estão acima do peso. Gostaria de
compartilhar com você, um trecho do livro chamado Sociologia da
Obesidade, de Jean-Pierre Poulin, que fala a esse respeito.

Um pequeno documentário pedagógico nos fornecerá um duplo exemplo dessa


modificação do valor simbólico e das formas rasteiras que a estigmatização
pode assumir no universo pedagógico. Trata-se de um documento produzido
por professores de uma língua estrangeira europeia para facilitar o aprendizado
do vocabulário. Pequenos desenhos apresentam um personagem denominado
Pierre que, como dizem, tem “muitos defeitos”, e outro denominado Ugo, que
teria “inúmeras qualidades”. Pierre é descrito como orgulhoso, avarento,
preguiçoso, mentiroso, insolente, desorganizado, distraído, desajeitado,
desonesto, colérico, rabugento”, e, para que não lhe falte nada, como “sujo”;
enquanto Ugo é “generoso, modesto, trabalhador, corajoso, um pouco tímido,
ordenado, atento, hábil, educado, honesto, limpo, e, claro, sempre de bom
humor. Como acham que Pierre e Ugo foram representados nos pequenos
desenhos? Adivinharam: Pierre é gordo e Ugo é magro. Agora, coloquemo-nos
no lugar de um menino gordinho, nessa sala de aula em que o livro foi utilizado.
(POULIN, 2013, P. 133)

O que você achou dessa história, Chihiro. Gostaria muito de saber a


sua opinião. Eu penso que o preconceito e a discriminação se traduzem
em um ato de violência muito grave, porque causa a dor não apenas de
ser ridicularizado pelo outros, mas de ser excluído. No caso das pessoas
gordas me parece ainda mais grave, porque elas são frequentemente
associadas a animais, tais como: mamute, elefante, baleia e o porco. Esses
animais estão longe de serem representações positivas, como o gato, a
gazela, a pantera, o tigre, usados comumente para retratar pessoas que
estão com o corpo dentro do padrão de beleza vigente.
Eu fiquei imaginando, ao ouvir o relato do Sr. Myazaki, o quanto
essa experiência, apesar de dolorosa, a fez amadurecer e conhecer a si
mesma. No entanto, Chihiro me parece que ser uma escrava ainda
criança, deve ter sido um grande desafio para você. Fazer a limpeza,
servir comida aos clientes e enfrentar alguns monstros, me parece uma
experiência muito dura. Por isso, em alguns momentos, você deve ter se
sentido desesperada e triste. Especialmente, quando precisou preparar o
banho do mostro do lixo. O Sr. Myazaki me contou que ele absorvia todo
o lixo que as pessoas jogavam no rio, e quando você lhe tirou o tampão,
todo aquele lixo saiu de dentro dele, e o deixou bem mais aliviado.
As pessoas tem produzido muito lixo com o excesso de consumo,
não é mesmo, Chihiro? Sujam todo o planeta! Essa cultura de consumo
tem relação com as pessoas terem se tornado nas últimas décadas, cada
vez mais individualistas, mas é importante analisarmos tmbém, outras
formas de consumo, pela visão contemporânea, que diz respeito até a
consumos coletivos, como de Leis, de segurança e de demais serviços
comunitários. (CAMPBELL, 2007)
Chihiro, mudando um pouco de assunto, o Sr. Myazaki me disse
também, que você descobriu que o Haku, também foi uma criança
sequestrada como você e foi treinado pela Yubaba para fazer o
“servicinho sujo” para ela, e que você o ajudou arriscando a sua vida
para salvá-lo. Creio que você é realmente uma heroína, e venceu
estrondosamente, porque você não reproduziu tudo de ruim que passou.
E, ao final, foi libertada e encontrou os seus pais.

Espero receber sua resposta em breve e te desejo tudo de melhor!

Boa sorte!

Gisela

Referências

CAMPBELL, Colin. Eu compro, logo sei que existo: as bases metafísicas do


consumo moderno. – in: Cultura, Consumo e Identidade, Campbell, Colin; Barbosa,
Livia (org). RJ: Ed. FGV, 2007. P. 47 - 64

Campbell MIYAZAKI, Hayao. A viagem de Chihiro. DVD (125 min.). Walt Disney
Home Video, 2001.

POULAIN, Jean-Pierre. Sociologia da Obesidade. Tradução: Cecilia Prada. ISBN


978-85-396-0437-1. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2013. P.133.

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