raça em “Maria”, de Conceição Evaristo Quem é Conceição Evaristo?
‘Minha escrita é contaminada pela condição
de mulher negra.’’ Sobre o livro E quando a dor vem encostar -se a nós, enquanto um olho chora, o outro espia o tempo procurando a solução. A mulher negra como “outro do outro”? Segundo Grada Kilomba, na dinâmica do racismo, o sujeito negro torna-se “o outro” aquele sobre o qual o sujeito branco, identidade privilegiada nesse sistema, faz afirmações do que se recusa a reconhecer em si próprio: o violento; selvagem; primitivo; animalizado, em oposição ao que projeta sobre si mesmo como ser de cultura, civilidade e beleza. Ou seja, a “outridade”: personificação de aspectos repressores do sujeito branco. • Assim, o sujeito negro não é reconhecido em si mesmo, mas sempre “em relação a‘, ou seja, em relação ao sujeito branco. • Não é com o sujeito negro que estamos lidando, mas com as fantasias brancas sobre o que a negritude deveria ser. Fantasias que não nos representam, mas, sim, o imaginário branco. Tais fantasias são os aspecto negados do eu branco reprojetados em nós, como se fossem retratos autoritários e objetivos de nós mesmas/os. • Nas experiências de mulheres negras, essa Outridade é atravessada pelo sexismo, ou seja, racismo e machismo se interconectam para a construção do papel dessas mulheres segundo a dinâmica colonial. Nesse sentido, essas mulheres são representadas como servis; intelectualmente incapazes; sexualmente disponíveis; inferiores não somente em termos de raça, mas também de gênero. O conto “Maria” • “Foi quando uma voz acordou a coragem dos demais. Alguém gritou que aquela puta safada conhecia os assaltantes[...] Ouviu uma voz: Negra safada, vai ver que estava de coleio com os dois. Outra voz ainda lá do fundo do ônibus acrescentou: Calma gente! Se ela estivesse junto com eles, teria descido também. Alguém argumentou que ela não tinha descido só para disfarçar. Estava mesmo com os ladrões. Foi a única a não ser assaltada. Mentira, eu não fui e não sei porquê. Maria olhou na direção de onde vinha a voz e viu um rapazinho negro e magro, com feições de menino e que relembrava vagamente o seu filho. • A primeira voz, a que acordou a coragem de todos, tornou-se um grito: Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões! O dono da voz levantou e se encaminhou em direção a Maria. A mulher teve medo e raiva. Que merda! Não conhecia assaltante algum. Não devia satisfação a ninguém. Olha só, a negra ainda é atrevida, disse o homem, lascando um tapa no rosto da mulher. Alguém gritou: Lincha! Lincha! Lincha![...] • O motorista tinha parado o ônibus para defender a passageira: Calma, pessoal! Que loucura é esta? Eu conheço esta mulher de vista. Todos os dias, mais ou menos neste horário, ela toma o ônibus comigo. Está vindo do trabalho, da luta para sustentar os filhos... Lincha! Lincha! Lincha! Maria punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. A sacola havia arrebentado e as frutas rolavam pelo chão. Será que os meninos gostam de melão? [...] Quando o ônibus esvaziou, quando chegou a polícia, o corpo da mulher já estava todo dilacerado, todo pisoteado. Conclusões Esse encontro releva como raça e gênero são inseparáveis. A experiência envolve ambos porque construções racistas baseiam-se em papéis de gênero e vice-versa, e o gênero tem um impacto na construção de “raça”e na experiência do racismo. O mito da mulher negra disponível, o homem negro infantilizado, a mulher muçulmana oprimida, o homem muçulmano agressivo, bem como o mito da mulher branca emancipada ou do homem branco liberal são exemplos de como as construções de gênero e de raça interagem. (KILOMBA, Memórias da Plantação,p.97) Mulheres negras têm sido, portanto, incluídas em diversos discursos que mal interpretamnossa própria realidade: um debate sobre racismo no qual o sujeito é o homem negro; um discurso feminista no qual o sujeito é a mulher branca; e um discurso de classe no qualnão tem nem lugar. Habitamos uma espécie de vácuo de apagamento e contradição. Este é, de fato, um sério dilema teórico, em que os conceitos de raça e gênero se fundem estreitamente em um só.Tais narrativas separadas mantêm a invisibilidade das mulheres negras nos debates acadêmicos e políticos. ( KILOMBA, Memórias da plantação, pp. 97-98.) Referências Bibliográficas Maria. In : EVARISTO, Conceição: Olhos d’água,p.39-42. Rio de Janeiro : Pallas : Fundação Nacional, 2016. KILOMBA, Grada. Memórias de plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019