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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
ESTUDOS COMPARADOS DE LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA II
PROFESSORA DOUTORA VIMA LIA DE ROSSI MARTIN
MARCOS VINICIUS SOUZA SILVA

MARIA, DE CONCEIÇÃO EVARISTO, À LUZ DOS CONCEITOS DE


LITERATURA AFRO-BRASILEIRA

Este ensaio tem por intuito analisar os elementos que configuram o conto
Maria, de Conceição Evaristo, como pertencente à literatura afro-brasileira,
segundo as definições abordadas por Eduardo de Assis Duarte, em Por um
conceito de literatura afro-brasileira. Para isso, pretende-se explicitar os
conceitos alvos do ensaio e analisar como a junção de fatores inerentes à autora
e os moldes temáticos de sua narrativa corroboram para a vinculação do enredo
à produção afro-brasileira.
Primeiramente, cabe a possíveis leitores deste ensaio situarem-se a
respeito da autora alvo desta análise. Conceição Evaristo é uma autora brasileira
de origem humilde, nascida em Belo Horizonte, em 1946. Migrou para o Rio de
Janeiro na década de 1970, onde graduou-se em Letras pela UFRJ, trabalhou
como professora da rede pública de ensino e tornou-se Mestre em Literatura
Brasileira e Doutora em Literatura Comparada, titulações as quais obteve
defendendo trabalhos sobre autores negros. Dessa forma, cabe afirmar que a
poeta aborda tanto em sua trajetória acadêmica quanto em sua produção literária
a temática da afro-brasilidade. Autora de poemas, contos e romances, Evaristo
é participante ativa dos movimentos de valorização da cultura negra do Brasil,
portanto sua literatura é trajada de diversidade temática, promovendo a
denúncia, reflexão, exaltação e memória da voz feminina negra.
Situada a autora, desenvolve-se agora uma descrição sobre o enredo do
conto a ser analisado. A estória tem como personagem principal Maria, mulher
negra e trabalhadora doméstica vindo cansada da casa da patroa, carregando
consigo os restos do jantar da noite anterior que lhe foram doados juntamente a
uma gorjeta. Maria está feliz, pois o alimento que ganhara iria alimentar os dois
filhos menores que a aguardavam em casa, e o dinheiro extra serviria para
comprar xarope para os progênitos que estavam gripados.
Maria havia ferido a palma da mão com uma faca na noite anterior,
acidente de trabalho ocorrido ao cortar o pernil para a patroa, o que tornava ainda
mais dificultoso o ato de carregar as pesadas sacolas até o ponto de ônibus.
Enfim dentro do transporte público, Maria via-se aliviada por não estar tão
cheio, podendo assim se acomodar com um pouco mais de tranquilidade. No
entanto, tal tranquilidade foi quebrada, pois reconheceu um homem dentro do
veículo: o pai de um de seus filhos que não via há tempos. A imagem do homem
trouxe à tona diversas lembranças de seu passado. O indivíduo sentou-se ao
lado dela e trocaram algumas palavras a respeito do filho e sobre a atual situação
de ambos.
No entanto, algo que Maria não esperava aconteceu: o pai de um de seus
filhos levantou-se, sacou uma arma, e juntamente a um comparsa que estava no
fundo do ônibus, anunciou um assalto. A mulher tremia de medo, pensava em
seus filhos pequenos. Conforme o medo de Maria ia aumentando, os bandidos
recolheram os pertences de cada passageiro, deixando apenas a mulher mãe
do filho de um dos assaltantes livre.
Tal ato durou poucos minutos, e rapidamente os assaltantes saltaram do
ônibus, no entanto a agonia de Maria permaneceu. Os passageiros passaram a
afirmar que ela conhecia os assaltantes e que era cúmplice do crime. De fato,
ela conhecia. Um deles era pai de seu filho, porém ela não tinha nenhum
envolvimento com o caso: era vítima tanto quanto os outros.
Maria não teve tempo de se explicar, apenas declarou poucas palavras
inaudíveis, e quando deu por si havia sido xingada, linchada, pisoteada, socada
e dilacerada. O motorista do ônibus tentou defendê-la, mas não obteve sucesso.
Quando a polícia chegou, Maria já estava sem reação.
Uma vez que o leitor deste ensaio teve ciência do enredo do conto, é
pautável uma breve explicação sobre a produção de literatura afro-brasileira.
Sobre o tópico, Eduardo de Assis Duarte diz:
Desde a década de 1980, a produção de escritores que assumem seu
pertencimento enquanto sujeitos vinculados a uma etnicidade
afrodescendente cresce em volume e começa a ocupar espaço na
cena cultural, ao mesmo tempo em que as demandas do movimento
negro se ampliam e adquirem visibilidade institucional. Desde então,
cresce da mesma forma, mas não na mesma intensidade, a reflexão
acadêmica voltada para esses escritos, que, ao longo do século XX,
foram objeto quase que exclusivo de pesquisadores estrangeiros como
Bastide, Sayers, Rabassa e Brookshaw, entre outros. (DUARTE, 2011,
p. 1).

Como citado por Duarte, a literatura afro-brasileira dá-se primordialmente


pela produção literária de escritores que pertencem a uma etnicidade
afrodescendente, e que por meio de sua escrita não só protestam contra o
racismo ou diversas espécies de violência, mas também tratam do “tema do
negro, enquanto individualidade e coletividade, inserção social e memória
cultural.” (DUARTE, 2011, p. 3).
Todavia, tendo em vista a pluralidade de definições e abordagens
conceituais sobre a literatura afro-brasileira, principalmente na dualidade entre
literatura negra e literatura afro-brasileira, faz-se necessário alguns
identificadores para distinguir a segunda da primeira. Conforme Duarte explicita,
são eles:
Uma voz autoral afrodescendente, explícita ou não no discurso; temas
afro-brasileiros; construções lingüísticas marcadas por uma afro-
brasilidade de tom, ritmo, sintaxe ou sentido; um projeto de
transitividade discursiva, explícito ou não, com vistas ao universo
recepcional; mas, sobretudo, um ponto de vista ou lugar de enunciação
política e culturalmente identificado à afrodescendência, como fim e
começo. (DUARTE, 2011, p. 7).

Duarte afirma que se trata de um conceito em construção, desse modo


examinar-se-á mais detidamente cada um desses elementos, tendo como base
o conto de Conceição Evaristo, objeto deste ensaio.
O primeiro trata-se da Temática. Esse elemento é fundamental para
configurar o pertencimento de um texto à literatura afro-brasileira. Segundo
Octavio Ianni, o conceito diz respeito à abordagem do sujeito afrodescendente
não apenas no plano do indivíduo, mas também no “universo humano, social,
cultural e artístico de que se nutre essa literatura.” (1988, p. 209).
Para Eduardo de Assis Duarte, a temática pode abarcar diversos
segmentos: a denúncia da escravidão e de suas consequências; a glorificação
de heróis como Zumbi dos Palmares; as tradições culturais ou religiosas,
destacando a riqueza dos mitos e lendas; a modernidade brasileira com suas
ilhas de prosperidade cercadas de miséria e exclusão.
O último segmento citado nos interessa em especial, pois é utilizado por
Conceição Evaristo no conto Maria, em que temos um retrato moderno de uma
negra, pobre, habitante das favelas, a qual diariamente submete-se a serviços
domésticos para sua próspera patroa, e acaba sendo vítima do preconceito e da
marginalização ao ser linchada no transporte público por ser negra e ex-
companheira de um bandido.
A primeira voz, a que acordou a coragem de todos, tornou-se um grito:
Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões! O dono da
voz levantou e se encaminhou em direção a Maria. A mulher teve medo
e raiva. Que merda! Não conhecia assaltante algum. Não devia
satisfação a ninguém. Olha só, a negra ainda é atrevida, disse o
homem, lascando um tapa no rosto da mulher. Alguém gritou: Lincha!
Lincha! Lincha!... Uns passageiros desceram e outros voaram em
direção a Maria. O motorista tinha parado o ônibus para defender a
passageira: Calma, pessoal! Que loucura é esta? Eu conheço esta
mulher de vista. Todos os dias, mais ou menos neste horário, ela toma
o ônibus comigo. Está vindo do trabalho, da luta para sustentar os
filhos... Lincha! Lincha! Lincha! Maria punha sangue pela boca, pelo
nariz e pelos ouvidos. A sacola havia arrebentado e as frutas rolavam
pelo chão. (EVARISTO, 2014, p. 42).

Conforme afirma Duarte, a adoção da temática deve ser considerada na


sua interação com outros fatores, portanto agora recorreremos à discussão da
Autoria.
No tocante à Autoria, é necessária a não redução do autor a fatores
externos, como a cor de pele ou a condição social, mas sim compreender o
elemento como “uma constante discursiva integrada à materialidade da
construção literária.” (DUARTE, 2011, p. 9).
A instância da autoria como fundamento para a existência da literatura
afro-brasileira decorre da relevância dada à interação
entre escritura e experiência, que inúmeros autores fazem questão de
destacar, seja enquanto compromisso identitário e comunitário, seja no
tocante à sua própria formação de artistas da palavra. (DUARTE, 2011,
p. 9).

Com base na citação acima, mais uma vez é coerente a configuração da


autora Conceição Evaristo à literatura afro-brasileira, uma vez que a poeta
reivindica para seus textos o estatuto de escrevivência, que se trata justamente
da interação entre escritura e experiência, a qual é defendida por Duarte como
fator decorrente da Autoria de textos afro.
O estatuto de escrevivência, reivindicado por Evaristo, explicita um veio
documental em sua obra, o qual diz respeito a experiências vividas e/ou
presenciadas no presente e/ou passado da autora em espaços habitados
majoritariamente por negros, os quais tornam-se objeto de inspiração e
documentação de seus versos e enredos.
Desse modo, pode-se levantar a hipótese de que traços do enredo de
Maria, personagem principal do conto aqui analisado, podem ter sido frutos de
experiências reais relatadas a Conceição Evaristo durante suas vivências ou até
mesmo presenciadas ou vividas pela escritora, hipótese essa que corrobora com
o que a autora afirma sobre sua escrita: “Na origem da minha escrita, ouço os
gritos, os chamados das vizinhas debruçadas sobre as janelas, ou nos vãos das
portas, contando em voz alta umas para as outras as suas mazelas, assim como
suas alegrias.” (Evaristo, 2007, p. 19).
Sobre Autoria, Duarte conclui: “Deste modo, a autoria há que estar
conjugada intimamente ao ponto de vista. Literatura é discursividade e a cor da
pele será importante enquanto tradução textual de uma história própria ou
coletiva.” (2011, p. 10).
Sendo assim, apenas a utilização do tema ou a ascendência africana não
são suficientes para fundamentar a literatura afro-brasileira, é necessária a
utilização de um conjunto de valores culturais, perspectivas históricas e até
mesmo opções vocabulares e construções sintáticas que aludam à vida e às
condições dos indivíduos narrados.
Em vista disso, a Linguagem aparece como elemento inerente ao Ponto
de Vista, os quais juntos são utilizados para dar voz aos personagens narrados
em obras da literatura afro-brasileira, retratando não só experiências dos
oprimidos em papeis de opressão, mas também a valorização e a elevação do
negro através da apropriação paródica.
Em relação à personagem Maria, Conceição Evaristo assume o Ponto de
Vista da mulher negra, pobre, oprimida, moradora das favelas, que apesar de
obedecer às condições civis comuns a todos e não infringir a nenhuma lei, é
subjugada em uma situação de um crime, o qual também era vítima, e acaba
agredida verbal e fisicamente apenas pela justificativa de sua cor de pele.
Ouviu uma voz: Negra safada, vai ver que estava de coleio com os
dois. Outra voz ainda lá do fundo do ônibus acrescentou: Calma gente!
Se ela estivesse junto com eles, teria descido também. Alguém
argumentou que ela não tinha descido só para disfarçar. Estava
mesmo com os ladrões. Foi a única a não ser assaltada. Mentira, eu
não fui e não sei porquê. Maria olhou na direção de onde vinha a voz
e viu um rapazinho negro e magro, com feições de menino e que
relembrava vagamente o seu filho. (EVARISTO, 2014, p. 42).

No contexto da Linguagem, é necessário afirmar que tal elemento tem


finalidade estética e ideológica na literatura, utilizada para fruição da mensagem
literária e também para identificação cultural, política e ideológica dos
personagens narrados. Dessa forma, é possível afirmar que diferentes escolhas
vocabulares aproximam ou distanciam a narrativa do objeto narrado.
Em muitos casos, a Linguagem é utilizada como objeto deturpador dos
discursos e dos personagens narrados, atribuindo estereótipos que servem
como elementos de manutenção da desigualdade.
Dessa forma, cabe à literatura afro-brasileira romper com os padrões
dominantes da Linguagem, assumindo um sentido político de protesto que
defenda o discurso afrodescendente, utilizando, assim, determinadas escolhas
vocabulares, ritmos expressivos, entonações e ressignificações de palavras que
representem o seu povo. “Nesse contexto, o discurso afrodescendente busca a
‘ruptura com os contratos de fala e escrita ditados pelo mundo branco’
objetivando a configuração de ‘uma nova ordem simbólica’, que expresse a
‘reversão de valores’.” (DUARTE, 2011, p. 13).
No conto Maria, Conceição Evaristo utiliza uma linguagem popular que
representa as personagens narradas e aproxima de forma direta a temática do
ponto de vista abordados, abrindo mão de construções rebuscadas e valorizando
o coloquial através de interjeições, palavrões e expressões linguísticas.
Por último, cabe mencionar o elemento Público. Tal fator diz respeito a
necessidade da constituição de um público específico, que se identifique com a
literatura produzida. Tal fato não delimita apenas um povo leitor, mas sim
reafirma o papel do escritor como porta-voz de um grupo ou comunidade.
Sendo assim, cabe ao escritor articular-se para implementar a literatura e
o gosto pela leitura a um público marcado majoritariamente por pessoas pobres,
em um cenário ainda mais dificultoso visto a hegemonia dos meios eletrônicos
de comunicação.
Desse modo, o escritor de literatura afro-brasileira tem como dever levar
ao público este fazer literário, fazendo com que os leitores tenham contato não
apenas com essa diversidade de produção, mas também com o modelo
identitário inerente ao movimento.
Com relação à autora alvo deste ensaio, Conceição Evaristo, é notável a
sua articulação a diversos movimentos de difusão e valorização da literatura e
cultura afro-brasileira, atingindo diretamente diversos públicos, combatendo o
preconceito e reafirmando a importância da causa negra através de sua voz e
de seus escritos.
Consequentemente, é possível afirmar que no conto Maria, de Conceição
Evaristo, há a interação dinâmica dos cinco grandes fatores aqui explicitados –
temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público. Dessa forma, conforme
exemplificado através de trechos da obra e de recorrência à teoria crítica, o conto
pertence à literatura afro-brasileira em sua plenitude.

REFERÊNCIAS

DUARTE, Constância Lima; CÔRTES, Cristiane; PEREIRA, Maria do Rosário


Alves (Org.). Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de
Conceição Evaristo. Belo Horizonte: Idea Editora, 2016

DUARTE, E. A. e FONSECA, M. N. S. (Org.) Literatura e afrodescendência no


Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, vol. 4, História,
teoria, polêmica.

EVARISTO, Conceição. Olhos d'água. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação


Biblioteca Nacional, 2014. (Contos).

EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de


nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio
(Org). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas
interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.

IANNI, Octavio. Literatura e consciência. In: Estudos Afro-asiáticos, n. 15 –


junho de 1988. Publicação do CEAA da Universidade Candido Mendes. Rio de
Janeiro: 1988, p. 208-217.

LOBO, Luiza. Crítica sem juízo. 2 ed. revista. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.

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