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RESENHAS 249

GORDON, César. 2006. Economia selvagem:


ritual e mercadoria entre os Xikrin-Mebên-
gôkre. São Paulo/ Rio de Janeiro: Editora
da Unesp, ISA e NUTI. 452pp.

Nicole Soares Pinto


Mestranda PPGAS/UFPR

Economia selvagem é um livro neces-


sário. Principalmente porque consegue,
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satisfatoriamente, dissipar o clássico lógicas; aldeias circulares dispondo de


fantasma da não-contemporaneidade um anel de casas e um centro cerimonial;
entre o nativo e o pesquisador ao abordar grande investimento na vida ritual —
uma sociedade indígena na sua relação congruente com a perspectiva do se
com o mundo dos brancos sem, no en- fazer ver; divisão da coletividade em
tanto, apelar para o discurso um tanto “turmas”, grupos de produção masculinos
militante da resistência cultural. César que podem se manifestar como facções
Gordon faz isso explicando o desejo políticas; e importância da classificação
dos Xikrin-Mebêgôkre por dinheiro e etária.
mercadorias através de sua lógica tra- O Cateté, porém, guarda uma carac-
dicional de significação da alteridade. terística específica. É um local onde a
O autor demonstra que, antes de ser presença e a afluência de mercadorias é
objeto de um passado absoluto, a tra- enorme, haja vista os suntuosos aportes
dição mebêngôkre de valorização dos financeiros provenientes do convênio
nekréts –objetos com poderes sociais com a empresa de exploração mineral
de atribuição agentiva, constituintes da Companhia Vale do Rio Doce. Este
pessoa mebêngôkre — permaneceu, mas fato forçou Gordon a redirecionar sua
modificando-se. Isto porque agora são pesquisa pois, se no primeiro momento
atribuídas ao dinheiro e às mercadorias intentava estudar o sistema de alianças,
essas mesmas capacidades “nékréts”, surpreendeu-se ao constatar que os
resultado da inflexão pela contingência Xikrin alçavam a um plano importante
histórica em relação aos princípios ge- da existência a sua relação com os bens
rais de funcionamento do maquinário dos brancos. Ao mesmo tempo, falavam
reprodutivo mebêngôkre. e agiam em termos de tradição e mu-
Visualiza-se, portanto, uma transfor- dança. O autor (re)definiria então os
mação estruturalmente balizada de um seus objetivos de pesquisa da seguinte
sistema de processamento da alteridade. maneira: entender o que faz os Xikrin
A importância dessa asserção reside no desejarem os objetos produzidos pelos
fato de que, ao demonstrar uma con- brancos, as suas significações e quais as
tinuidade sociocosmológica no modo implicações da entrada desses objetos
de relação com a alteridade que agora para o modo xikrin de produção social.
opera na conexão entre os brancos e Para tal, o autor propõe uma análise
os seus objetos, dissipam-se quaisquer diacrônica de um tema importante da
explicações que tratam desse fenômeno etnografia sobre os grupos Mebêngôkre,
através de uma lógica utilitarista ou na- a saber, aquela que trata de um conjunto
turalizante, segundo a qual o interesse de objetos e de prerrogativas cerimo-
indígena por mercadorias é imediato e niais — os nékréts citados acima —
instrumental ou, ainda, proveniente de incorporados de outras coletividades ou
uma dependência contraída à revelia de seres que povoam o universo que, em
sua vontade. momento posterior, passam a circular
Gordon realizou pesquisa de campo mediando relações sociais internas e
no Xingu, entre os Xikrin do Cateté. Es- constituindo valor.
tes são mais ou menos em número de 900, Toda essa bibliografia aponta para
falantes da língua mebêngôkre, família uma sociedade hierárquica, fundada
Jê. Compartilham com os Mebêngokre na distinção, de um lado, entre pessoas
uma mesma origem e certas caracterís- “bonitas, belas, completas”, possuidoras
ticas socioculturais, como metades socio- de nomes agradáveis e prerrogativas
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cerimoniais e, de outro, de pessoas “co- relação, pois daria unidade a princípios


muns”. Com efeito, Gordon tem à sua opostos e intercambiáveis — noções que
disposição uma vasta literatura, cuja Gordon irá defender, no adiantado do
referência principal são os trabalhos de livro, como propensas a serem atribuídas
Terence Turner e Vanessa Lea. Assim, à realidade Xikrin.
arquiteta sua análise a partir do contraste Lea, porém, realiza uma espécie
entre essa bibliografia e os seus dados de torção conceitual, retendo a idéia
etnográficos, o que lhe permite estabe- de que as propriedades mantidas pela
lecer conexões, concordâncias e críticas Casa apresentam um caráter diacrítico,
aos trabalhos anteriores. mas botando peso na descendência.
Turner concebe a sociedade Mebên- Advoga, então, que a propriedade dos
gôkre como uma estrutura hierarquica- bens simbólicos agentivos da sociedade
mente segmentada, cujos níveis, que Mebêngôkre (nomes e nekréts) deve ser
encontram expressão territorial, são atribuída às casas da periferia da aldeia,
articulados através de englobamentos definidas por ela como pessoas jurídicas
sucessivos. Para ele, a sociedade kaiapó ou unidades corporadas e perpétuas
só pode ser satisfatoriamente entendida de descendência matrilinear. Assim,
se apreendermos sua interioridade como as Casas constituiriam mais do que
uma ordem política baseada em relações a esfera doméstica por manifestarem
de exploração social — das mulheres sua essência na esfera cerimonial —
pelos homens, dos genros pelos sogros propriedades simbólicas e definidoras —
e dos mais novos pelos mais velhos. Este e seu conjunto compreenderia a socie-
autor pensa a organização das metades dade Kaiapó.
como função de oposições epistêmicas, Gordon, para pensar o que acontece-
subentendo uma hierarquia entre elas e ria às mercadorias — caso o seu regime
vinculando-as a determinados aspectos de transmissão fosse idêntico; se seria
da socialidade e de seus agentes. Assim, válido tratá-las como expressão do mes-
enquanto o centro da aldeia é lugar da mo princípio de distintividade social que
cultura — público, político e masculino — os nékrets têm; ou ainda, se seria possível
a periferia é o lugar da natureza — pri- identificar o atual consumismo xikrin
vado, íntimo e feminino. O mecanismo como uma forma de predação ontológica —
totalizante que neutraliza tal assimetria, articula sua etnografia oscilando entre
previamente dada, é obtido pela orga- “a economia simbólica da alteridade” e a
nização cerimonial, realizada no e pelo “economia política do controle”.
centro da aldeia, que reintegra todas as Gordon abandona a idéia de oposi-
oposições em uma unidade transcen- ções hierárquicas englobantes de Turner,
dental. acolhendo, porém, as questões do con-
Lea, por sua vez, em declarada opo- trole, da desigualdade de distribuição e
sição às asserções de Turner, implode da hierarquia ao partir de outro prisma.
as oposições entre natureza e cultura, Não se trata, pois, de uma oposição
doméstico e privado, quando subsumidas entre homens e velhos, de um lado, e
à interseção dos domínios territoriais e mulheres e jovens, do outro, mas sim
de gênero. A autora se vale do conceito de uma operação pelo valor diferencial
de “casa” lévi-straussiano, fundado na da pessoa (isto é, a beleza) através dos
aliança e no parentesco cognático, no objetos e das prerrogativas cerimoniais.
qual a casa deixa de ter um substrato ob- De Lea, ele retém a problemática da
jetivo e passa a ser a objetivação de uma propriedade de tais bens e o direito de
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transmissão, mas não enquanto defini- objetivada em sua cultura material, seu
dores de grupos corporados perpétuos, conhecimento, seus saberes, sua expres-
mas sim como marcadores de prestígio e sividade técnica e estética” (:98) que, ao
distintividade pessoal e coletiva. No en- entrarem no sistema, transformam-se
tanto, até aqui, Gordon dá conta somente em valores distintivos constituintes das
do segundo momento da relação com a pessoas. Não há necessidade, portanto,
alteridade: seu processamento, ou seja, da destruição de corpos.
o caráter centrípeto da sociedade Xikrin. “Armado” com essas elaborações teó-
Antes disso, precisaria conceitualizar o ricas, Gordon irá dedicar seus capítulos
momento da aquisição desses bens, o ao processo de aquisição dos bens e à
caráter centrífugo. sua circulação no interior da sociedade
É assim que o autor de Economia Mebêngôkre. O autor intenta dar conta
selvagem problematiza a tipologia idea- de um duplo movimento: primeiro, as
lizada por Carlos Fausto, segundo a qual relações de predação da alteridade no
as sociedades Jê seriam predominante- exterior da sociedade e, segundo, sua
mente centrípetas. Nelas, a produção significação realizada no interior: atra-
de pessoas é fundada na acumulação e vés da confirmação ritual desses signos
na transmissão interna de capacidades relacionais, cuja função (cru) é marcar
e riquezas simbólicas que confirmam a alteridade e/ou a distintividade no
diferenças sociológicas. Ali predominaria interior da sociedade, ou por meio da
a idéia de uma fundação em que as con- sua circulação cotidiana, cuja função
dições de reprodução social são dadas (cozido) é a produção da identidade,
de uma vez por todas, ao contrário dos ou seja, da construção de um corpo
sistemas centrífugos, em que a produção de parentes através da ampliação das
depende necessariamente da reposição relações de cuidado, troca, partilha e
contínua de novos elementos adquiridos convívio.
no exterior. O livro, no entanto, é um tanto de-
Gordon, no entanto, irá insistir no ca- salentador na medida em que elucida
ráter centrífugo da sociedade Xikrin, pois as contradições do modo de vida xikrin.
na economia política de pessoas e no sis- Se, por um lado, o acesso fácil aos
tema de personificação ou subjetivação, bens dos brancos permite aos Xikrin a
o processo de circulação imprime uma realização de muitas festas de confir-
perda progressiva de valor dos nékrets mação dos nomes bonitos, produzindo
e dos objetos, dinamizando a natureza mais identidade onde se deveria estar
expansionista e o caráter centrífugo do produzindo mais alteração, por outro, a
sistema. Além disso, outra problemá- diferença é buscada em outro nível, qual
tica que Gordon coloca em relação às seja, no consumo diário dos bens dos
elaborações de Fausto diz respeito ao brancos, o que aumenta, para os Xikrin,
conceito de consumo produtivo para a o risco de virarem kuben (branco). Daí
guerra ameríndia, que enfatiza o caráter a necessidade de novas confirmações
destrutivo de corpos como impulsionador rituais e, por conseguinte, mais consu-
da produção social de pessoas. Na pre- mo. A questão é que esse ciclo vicioso
dação mebêngôkre, o que interessa não retroalimenta-se cada vez mais da
são as propriedades imediatamente cor- fome, inflacionando sempre o sistema
póreas do inimigo; a ênfase está menos e afligindo, nas palavras do autor, os
na morte que no butim. Destina-se antes “irredutíveis Xikrin”.
a “absorver a diferença do estrangeiro

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