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Revista Estudos Feministas

ISSN: 0104-026X
ref@cfh.ufsc.br
Universidade Federal de Santa Catarina
Brasil

Pena Pereira, Ondina


Reseña de "Las estructuras elementales de la violencia. Ensayos sobre género entre a antropología,
el psicoanálisis y los derechos humanos" de Rita Segato
Revista Estudos Feministas, vol. 15, núm. 1, janeiro-abril, 2007, pp. 253-254
Universidade Federal de Santa Catarina
Santa Catarina, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=38115117

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A regra secreta
Las estructuras elementales de violência, Rita dá um lugar decisivo à história do
gênero na condução da história da espécie.
la violencia. Ensayos sobre Com e contra o estruturalismo, a construção
género entre a antropología, el da argumentação de Rita Segato nos conduz ao
psicoanálisis y los derechos núcleo mesmo da Lei: a hierarquia que surge nas
relações entre os gêneros – hierarquia adocicada
humanos. nas páginas de Lévi-Strauss, assim como nas de
Lacan – constitui-se como forma paradigmática
SEGATO, Rita. do poder. Ao ver o poder surgir primordialmente
nas relações entre os gêneros e estender-se às
Bernal: Universidad Nacional de demais relações sociais, a autora fornece um
Quilmes, 2003. 264 p. modelo que dá visibilidade às diversas formas de
usurpação, seja em termos étnicos, de classe, de
organização das regiões e das nações, etc.
A teoria da usurpação “primeva” é
sofisticada. Trata-se de associar ao modelo
estruturalista de Lévi-Strauss a dinâmica da
A riqueza do conjunto de ensaios que violência. A estrutura, tão minuciosamente
compõem o livro de Rita Laura Segato reside no descrita pelo clássico da antropologia, na
grande fôlego teórico e na força crítica da autora, perspectiva de Rita Segato só se realiza e se
que resultam de sua honestidade intelectual sustenta através de uma violência cotidiana, que,
insubmissa. Já o título da obra, As estruturas por sua vez, só ganha visibilidade na medida em
elementares da violência, explicita o que é analisada como elemento da estrutura
reconhecimento da presença do sistema clássico geral. Os dois eixos da estrutura são, de acordo
de Lévi-Strauss na construção de sua teoria, o que com Lévi-Strauss, o horizontal, correspondendo ao
não impede que a autora – mantendo diálogo eixo das trocas, da circulação de dádivas e
aberto com a tradição – reinvente as mercadorias; e o vertical, correspondendo às
possibilidades de aplicação do método trocas conjugais e à progenitura. Este último é
estruturalista. condição de possibilidade para a constituição
Lévi-Strauss descreveu os fundamentos da do primeiro. Analisado com as lentes da autora,
cultura humana através de um estudo minucioso o eixo vertical, formado por relações de
dos sistemas de parentesco em que descobre a hierarquia e graus de valor, permite ver uma rede
universalidade da proibição do incesto, que se de relações marcadas pela violência da
realiza através da troca de mulheres entre os cobrança de tributo. No caso específico do
grupos. Trata-se, segundo o autor, da Lei parentesco, que dá forma às relações de gênero,
Primordial, que permitiu a passagem dos humanos “o tributo é de natureza sexual”.
do estado de natureza para o estado de cultura. Tal noção de tributo dá um sentido pungente
Se a história da espécie tem início na exigência ao exercício de poder e ao fenômeno da
de buscar alianças fora do grupo e essas alianças violência, que a autora parece ter capturado de
se constituem na medida em que as mulheres forma possivelmente definitiva: a ordem formada
são trocadas, a história do gênero não tem por pares, por iguais, depende da capacidade
distinção com relação à história da espécie. de cobrança de tributos que se faz na ordem dos
Nesse ponto intervém a sutileza da desiguais, em que o outro passa a valer menos
argumentação de Rita Segato. Embora a autora porque tem como carga a obrigatoriedade de
concorde com a realidade da confusão entre as pagar, de se doar ao extremo de poder vir a
histórias – de gênero e espécie – é capaz, no tornar-se vítima sacrificial. É como se a autora
entanto, de criar um lugar, deslocar a “casa vazia” tivesse encontrado, entrelaçada a uma lei
da estrutura, a partir de onde desentrelaça as universal, uma regra do jogo que circula
duas temporalidades e vê as duas histórias secretamente entre os pares, mas não é jamais
correndo paralelas. Com esse procedimento, explicitada, pois se constitui como crime à luz da
aponta o que Lévi-Strauss não viu: o ato de lei.
violência que funda o sistema de trocas dessa Com esse modelo, é possível levar mais
forma instituído. No desvelamento desse ato de longe até mesmo os termos do mito da horda

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primitiva de Freud. Se a entrada na linguagem últimas conseqüências. Nas palavras da autora,
pressupõe o crime dos irmãos, o assassinato do “o tributo, rendido em um festim macabro, aqui
pai para garantir acesso às mulheres do grupo, coincide com a própria vida subalterna, e seu
aqui, ao mesmo tempo em que internalizaram a destino é dar crédito aos confrades para o
lei, os irmãos se tornaram cúmplices no ingresso ou a permanência na ordem dos pares.
estabelecimento de uma regra que compensa a Neste sentido, esta nova modalidade de femicídio
lei. Enquanto esta interdita o crime, a regra – o femicidio mafioso ou femicidio de fratrias – é
partilhada pelos iguais os condena a perpetrarem a alegoria per feita, o caso extremo e a
a dominação exercida pelo pai sobre o corpo concreção mesma do modelo que aqui
feminino, única forma de se manterem iguais. Ou apresento” (p. 255).
seja, a lei universal, garantia da igualdade entre Intelectual argentina vivendo no Brasil há
os irmãos, sustenta-se na regra do tributo, que mais de vinte anos, Rita Segato desenvolveu a
vitimiza sacrificialmente os subalternos. singularidade do seu olhar antropológico movida
O paradigma desenhado por Rita Segato pela fina sensibilidade para com o outro: a partir
torna-se mais claro ainda quando a autora, no do intenso contato com a tradição religiosa afro-
último capítulo do livro, refere-se ao femicídio que brasileira do Recife, abriu-se a possibilidade de
se pratica na fronteira do México com os Estados polimento do seu principal instrumento de
Unidos. Esses assassinatos de extrema crueldade trabalho – a lente do relativismo –, tornando-a
cometidos contra jovens mulheres têm entre si apta a ver as relações de gênero ganharem novo
características semelhantes, mas permaneceram movimento e uma nova estatura na construção
e continuam insondáveis durante muito tempo, de suas futuras análises sobre as relações de
já que a suposição mais óbvia de crime de poder e sobre a violência. A autora faz questão
estupro não é capaz de iluminar o fenômeno. No de reconhecer essa dívida, ao dizer na
entanto, a investigação atenta da autora revelou introdução: “O culto Xangô do Recife foi minha
exatamente a existência da regra secreta das grande escola de análise de gênero, o que me
fraternidades mafiosas. Trata-se de realizar, diante facilitou, mais tarde, a leitura da completa
dos pares – o eixo horizontal, no caso em questão, produção intelectual desta área de estudos e
dos poderosos, dos traficantes –, uma também a leitura da perspectiva psicanalítica
demonstração de força, de poder, condição para lacaniana” (p. 18).
que não sejam expulsos da confraria e passem a Longe de pretender resumir aqui o rico
ocupar o lugar de subordinados na ordem conteúdo dos artigos de Rita, quis-se indicar
hierárquica. Saltam aos olhos, então, as apenas o seu fio condutor, que testemunha a sua
atrocidades cometidas em nome do equilíbrio saudável desconfiança no mito da maioridade
instável da comunidade de pares na ordem do ser humano, associada, por outro lado, à sua
patriarcal. Bem poderíamos aqui falar numa mais- aposta, apesar de tudo, em nossa capacidade
valia de gênero. Se, do ponto de vista econômico, de reflexão. Para além dos conteúdos transmitidos
a injustiça social do capitalismo se revelou com pela sua obra, a autora nos ensina, com sua
a noção marxista de extração de mais-valia, n’As inquietação, que é necessário deixar para trás a
estruturas elementares da violência vê-se pergunta sobre se existe ou não um pensamento
claramente quem paga o preço do ingresso e próprio na América do Sul. Em vez disso, ela
da sustentação nessa ordem humana, constrói seu lugar de fala, marcado pela
demasiado humana. complexidade multifacetada da sua trajetória e,
Ao colocar às claras essa regra secreta, Rita simplesmente, pensa.
mostra em relevo aquilo que fica mais escondido
pela estrutura patriarcal, o regime que a alimenta Ondina Pena Pereira
e a mantém, levando Lacan e Lévi-Strauss às Universidade Católica de Brasília

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