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PIERRE-ANDRÉ TAGUIEFF

OIAClSMO

INSTITUTO
PIAGET

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Devemos distinguir duas visões do racismo.
A visão universalista consiste em reduzir o racismo
a um diferencialismo, e isso leva-nos a reconhecê-lo
segundo um critério: a negação da unidade
do género humano. A visão diferencialista consiste
em reduzir o racismo a um universalismo reconhecível
por um critério: a negação das especificidades
culturais, étnicas ... ou a vontade de erradicar
as identidades grupais.

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Os fundamentos
As concepções diferentes do racismo prescrevem do anti-racismo
concepções diferentes de anti-racismo
(que se apresenta quer como universalismo
quer como diierencialismo). Surge um conflito
de valores e de normas, perante o qual importa
não nos esquivarmos. Convém, pelo contrário,
pensar em todas as suas implicações.
Segundo a oposição universalismo / diferencialismo,
a determinação dos fins da acção anti-racista
choca-se com um dilema.
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«O que há num nome?»

A despeito da banalização do termo, aquilo


a que se acordou chamarmos o «racismo»
não cessou de colocar problemas de definição. '
A luta contra o racismo deve sempre e ainda
agora ser interrogada, não apenas quanto à sua
eficácia, e mesmo quanto à sua utilidade sob
~\:~ algumas formas, mas também e sobretudo quanto
aos seus fundamentos. Não poderemos, com
efeito, contentar-nos com referir-nos, vagamente,
It com a indignação requerida, ao «racismo» como
a um dos nomes ideológicos do Mal, e mesmo
Manifestação a favor dos direitos cívicos do Mal absoluto, supondo ingenuamente
nos Estados Unidos (1965) }:'
que, da existência do substantivo «racismo»,
Nos anos 1960, Martin Luther King impôs-se como o líder da possamos inferir que existe necessariamente
estratégia inier-racial, forma de luta contra o racismo baseado uma entidade una, homogénea e invariável,
na solidariedade entre brancos e negros, com referência a valores
definível enquanto «racismo», claramente re-
universais e aos principios democráticos,
conhecível, e cuja erradicação pudéssemos visar
© B. Davidson / Magnum Photos
~ 86 proximamente. Talvez seja necessário supor 87

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primeiramente a existência de vários racismos, «neutralizá-Io». As palavras das xenofobias e
passar do singular ao plural. E, em seguida, I..~, dos racismos, que diabolizam ou bestializam,
supor que as visões racistas variam, se transfor- \'~ funcionam ordinariamente deste modo. Mas é
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mam, se adaptam a diversos contextos, se reei- I: também muitas vezes o caso da própria palavra
r ~\ clam, numa palavra, se metamorfoseiam. Daí «racismo» nos seus usos contemporâneos: esta-
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resulta que a definição das tarefas e dos fins do beleceu-se que ela designa com desprezo, receio,
anti-racismo deve ser repensada com referência repulsão, e mesmo com horror, uma caracterís-
às deslocações das representações racizantes e tica suposta do indivíduo ou do grupo visado,
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às reformulações dos argumentos racistas . percebido como adversário ou inimigo, denun-
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«O que há num nome? Aquilo a que nós cha- ciado como perigoso ou desprezível. O que
mamos rosa/ com um nome diferente conti- supõe garantido, para os que denunciam o
nuaria a cheirar bem.» Assim fala Julieta, diri- «racismo» ou estigmatizam os «racistas»,
gindo-se ao Romeu, na peça de Shakespeare. o poder de nomear ou de qualificar. A questão
Poderemos nós afirmar, com a mesma segurança, da palavra legítima, do lugar que ela ocupa e
que aquilo a que chamamos «racismo» com um do grupo ou dos grupos que possuiíem) o seu
nome diferente cheiraria igualmente mal? exercício (e mesmo o seu monopólio)" põe-se,
Responder positivamente a esta questão, seria portanto, a propósito dos usos contemporâneos
negligenciar o poder modelador da linguagem da palavra «racismo». Talvez seja necessário
ordinária, e muito particularmente o facto de que supor a existência de graus de legitimidade no
as categorias desta impõem sub-repticiamente, exercício da palavra legítima, portanto, no poder
aos actores, modos de divisão e de percepção dos de nomear. O direito e o poder de nomear o
fenómenos sociais, que implicam julgamentos racismo e de designar como «racista» pertence-
de valor e que transmitem normas. Eles podem riam plenamente, desde agora, aos que se encon-
suscitar sentimentos intensos, despertando lem- tram no vértice da hierarquia da credibilidade.
branças ou alimentando uma parte considerável
do imaginário social. Resumindo, mesmo que
uma palavra não nomeie da mesma maneira que Da educação científica
uma palavra diferente, ela também não realiza da humanidade à repressão judiciária
os mesmos actos que uma outra qualquer, não
produz os mesmos efeitos que uma diferente. A questão do domínio da palavra, e mais
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Se «as palavras são armas», algumas palavras geralmente a do poder aplicar e definir os
,;! podem funcionar como flechas envenenadas, termos «racismo» e «racista», essa vasta ques-
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.",' 88 destinadas a abater seguramente o inimigo, a tão põe-se de maneira mais exacta, no seio dos 89
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Estados que estabeleceram para si mesmos passa como se a criminalização do racismo (sem-
uma legislação dita «anti-racista», no quadro do pre mais ou menos confundido com a xenofo-
direito e da lei: dependem do «racismo» atitudes bia), se tivesse estendido sub-repticiamente a
e condutas discriminatórias que são consi- toda a forma de fidelidade julgada exclusivista e
deradas como «delitos» e como tais são exclusionária. O racismo tornou-se o epónimo
sancionadas pela lei. É o caso da legislação implícito de todos os maus «ismos», percebidos
francesa. O artigo primeiro da lei n.? 90615, de como tendo com ele «um ar de família». Seja
13 de Julho de 1990, enuncia-se do seguinte como for, o racismo tornou-se um delito, que
modo: «É proibida qualquer discriminação deve ser sancionado pela aplicação da lei. Esta
baseada na pertença ou não pertença a uma redução judiciária do racismo, esta visão estrita-
etnia, a uma nação, a uma raça ou a uma reli- mente repressiva daquilo a que chamamos
gião.» Este enunciado pressupõe que as raças «racismo» constitui uma relativa novidade.
existem a mesmo título que as etnias, que as A mira repressiva parece ter expulsado a mira
nações ou as religiões. A discriminação segundo preventiva.
a «raça» (ou a representação social da identidade Após este sobrevoo do recente processo de
racial) aparece apenas nesse quadro como uma judiciarização da questão do racismo - processo
das discriminações «interditas». O anti-racismo em vias de aceleração =, estamos aptos a avaliar
judiciário implica, portanto, ao mesmo tempo, melhor a mudança de problemática do pro-
por um lado, um alargamento do campo daquilo grama anti-racista institucional, desde as
a que chamamos «racismo» (na extensão do 'I· primeiras declarações da UNESCO (18 de Julho
termo, encontramos explicitamente, além das de 1951, etc.) centradas na luta intelectual e na
discriminações segundo a «raça», discriminações instrução científica. Num meio-século, o trata-
segundo a religião, a nacionalidade, a etnia), mento anti-racista do «racismo» transformou-se
e, por outro lado, a posição de um interdito. de alto a baixo, passando de um programa uni-
Se interpretarmos formalmente o artigo de versalista de educação científica à prática sis-
lei, poderíamos concluir que o nacionalismo é temática da sanção judiciária. Nos finais dos
tão estritamente interdito como o racismo, e que anos 40, a UNESCO estabelecia, com efeito, para
ele constitui um delito. Poderíamos dizer a si «um programa de difusão de factos científicos
mesma coisa do etnismo e de qualquer forma de destinados a fazer desaparecer o que se conven-
integrismo ou de fundamentalismo religioso, e ci on ou chamar os preconceitos de raça».
mesmo do anticlericalismo ou do ateísmo mili- Os sábios, os biólogos e antropólogos, a pedido
tante, visto que faltariam ao respeito relativa- da UNESCO, aplicavam-se a denunciar «um
90 mente a práticas ou a crenças religiosas. Tudo se mito absurdo [... ], o racismo». No centro desse 91

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«mito», eles viam consensualmente «o dogma da em psicologia social a pedir emprestado à psi-
desigualdade das raças», pressupondo em canálise o conceito de mecanismo de defesa,
comum que «os ódios e os conflitos raciais se ali- suposto dar conta da função psicossocial
mentam de noções cientificamente falsas e que preenchida pelo preconceito (ou estereótipo).
vivem da ignorância». O programa anti-racista Acrescentamos a isso de boa vontade os con-
determinava-se a partir de então como um pro- ceitos de deslocação e de projecção, de recalca-
grama pedagógico, de transmissão e de difusão mento e de retorno do recalcado. Daí, o recurso,
universais dos «dados científicos» sobre as por exemplo, ao modelo da «frustração-agressão»
diversas características da espécie humana, a que equivale a reformular o modelo popular do
fim de lutar contra a exploração «da ignorância» «bode expiatório*», ou ao da «personalidade
e do «preconceito racial», sendo este concebido autoritária». Pressupõe-se, em todos os casos,
como o efeito da ignorância e da irracionalidade. que o fundamento real do preconceito racial não
A luta contra o racismo confundia-se, portanto, deve ser procurado simplesmente na ignorância
com o apelo às Luzes da ciência e da clareza do do sujeito preconceituoso sobre o «fora-de-
espírito racional. O ideal anti-racista devia -grupo» rejeitado, nem nas características da
realizar-se pela instrução e pela educação, e não situação social (concorrência económica, explo-
pela interdição e pela sanção. ração, etc.), mas antes de tudo nos conflitos
O relativo optimismo do anti-racismo cogni- psíquicos do próprio sujeito. Numa palavra,
tivo preconizado pela UNESCO depressa se supõe-se que o preconceito funciona como um
chocou - a partir dos anos 40 -, com as con- sintoma, uma formação de compromisso. Ele
clusões das investigações conduzidas pelos exprime e realiza nesse sentido um modo
psicólogos sociais sobre os preconceitos e os de racionalização.
estereótipos - fortemente influenciadas pela Tomemos o exemplo dos mecanismos de
conceptualidade psicanalítica. O ideal instru- defesa que o rigorismo moral dos «anti-semitas
cionista só pode, com efeito, chocar-se com o pôr puritanos» estudados por Else Frenkel-Brunswik
em evidência do carácter funcional da irraciona- e R. Nevitt Sanford exprime: o judeu fantasiado
lidade atribuída ao «preconceito racial», o que por esses sujeitos anti-semitas como um crimi-
parece explicar a resistência deste às tentativas noso sexual, ao mesmo tempo violador e sedutor
de o reduzir pelo estabelecimento de factos ou perigoso, capaz de manchar as donzelas cristãs,
de dados «científicos». O sujeito preconceituoso puras e inocentes. Esses mecanismos de defesa
recusa-se a admitir os factos, parece guardar preenchem a função de «reduzir a ansiedade e
a todo o custo as suas ideias falsas: essa veri- a culpabilidade consciente». Se esta descrição
92 ficação conduziu numerosos investigadores for correcta, podemos concluir daí que o conhe- 93

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cimento e a experiência são impotentes para A personalidade autoritária e a personalidade


fazer desaparecer o preconceito alófobo, seja dita «antidemocrática», pouco mais ou menos
qual for o alvo. Marie [ahoda propõe em 1960, assemelhadas urna à outra, estão fortemente cor-
nessa perspectiva, definir de maneira lata o pre- relacionadas com o etnocentrismo. Esses traços
conceito dito racial: «Há preconceito quando a de personalidade provêm de urna primeira mode-
atitude hostil para com um "fora-de-grupo" não lagem pela educação e são os rebentos de urna
pode ser modificada pela experiência e preenche socialização feita de repressão e de frustração.
urna função psicológica junto daquele que o Basta em seguida supor inevitáveis retornos do
adopta.» Só urna terapia pode, portanto, permi- recalcado e descrever as deslocações e projecções
tir a um sujeito racista (anti-semita, xenófobo, das pulsões ou dos afectos recalcados sobre
etc.) sair do seu triste estado. A cura psicanalí- bodes exp iatór ios e encontramos o modelo
tica apresenta-se corno a única via de salvação. «frustração-agressão». Resumindo: o racismo é
Urna irónica declaração feita em 1968 pelo mili- um assunto de patologia individual sobre um
tante revolucionário negro americano Eldridge fundo de socialização autoritária e repressiva.
Cleaver basta para mostrar a estreiteza interpre- Os racistas são assim patologizados, tratados
tativa da abordagem psicanalítica (ou psicolo- corno se tivessem sido vítimas, na sua infância,
gizante), face ao racismo: «Quando eu falo dos de um «vírus» ideológico. A concepção do pre-
meus problemas com os brancos, o meu psiquia- conceito racista corno sintoma de algumas expe-
tra apenas se interessa pela minha família e riências de frustração choca-se com o facto de
diz-me que odeio a minha mãe.» Acontece que que é «impossível provar que as pessoas que
esse modelo psicopatológico do preconceito tem têm preconceitos marcados tenham sofrido mais
pelo menos o mérito de mostrar os limites de frustrações dos que as outras». Nem verificável,
urna luta estritamente cognitiva contra o racismo. nem refutável, essa concepção parece muito
Mas ele próprio tem os seus limites, corno o frágil. E a categorização do racista corno doente
mostra um breve exame da teoria da «perso- mental não vai sem essencialização: um sujeito
nalidade autoritária». De acordo com os seus declarado racista tende a ser definido essencial-
defensores (Adorno et al.), os sujeitos racistas são mente corno racista, o racismo é-lhe atribuído
«dotados de traços psicológicos "estabilizados", corno urna natureza, e urna mancha.
referenciados por questionários, conversas e Além disso, um certo número de críticas,
testes de personalidade». A suposta personali- avançadas ao longo do anos 50, do modelo da
dade racista é composta de diversos elementos: «personalidade autoritária» mostraram que
etnocentrismo, «fascismo»,conservantismo, estilo Adorno e os seus colaboradores tinham estabele-
94 cognitivo rígido (o pensamento por clichés), etc. cido abusivamente um vínculo estrito entre 95
etnocentrismo, autoritarismo e «conservan- Anti-racismo e pessimismo
tismo». Particularmente, Milton Rokeach, em
1960, pôs em evidência que o autoritarismo se Convém que nos interroguemos sobre o
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encontrava tanto à esquerda como à direita, que
os traços da «personalidade autoritária» podiam
retorno (ou essa subida) do pessimismo no
próprio espaço do militantismo anti-racista. Há
reconhecer-se tanto junto dos revolucionários pessimismo quando se diz que o racismo é
como junto dos conservadores ou dos reaccio- atribuído à natureza humana, ou se aceita que as
nários. O que se observa é a rigidez mental, ou origens das atitudes ou dos comportamentos
seja, um conjunto de tendências para dogmati- ditos «racistas» (discriminação, segregação, etc.)
zar, susceptíveis de se fixarem em todas as são identificados como tendências ou dis-
posições ideológico-políticas. Os anti-racistas
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posições primárias da espécie humana. Os
não lhe escapam mais do que os racistas. Con- escritos de Memmi sobre o racismo ilustram
tudo, com a oposição entre «espírito aberto» bem essa visão antropológica do racismo,
e «espírito fechado», fica-se no domínio das cujas «funções psíquicas e sociais» ou as suas
modelizações patologizantes. Os factores sociais «raízes» parecem ser consubstanciais à espécie
apenas intervêm enquanto factores de socializa- humana. O racismo é reduzido a um duplo
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ção primária dos sujeitos «rígidos» ... modo de legitimação: «medo do Outro», que
I Finalmente, as dificuldades encontradas ulte- «vem do fundo dos tempos», e interesses ligados
'1,1
i riormente pelos psicossociólogos ou pelos psi- ao domínio ou a exploração (esclavagismo, colo-
canalistas nas suas tentativas em reduzir os pre- nialismo, capitalismo, imperialismo, etc.).
conceitos por meio de contactos inter-raciais O racismo é, portanto, um herdeiro da xeno-
supostos terapêuticos, essas dificuldades con- fobia suposta primordial e um efeito das lógicas
duziram insensivelmente os meios anti-racistas, sociais de dominação.
colhidos por um sombrio pessimismo sobre a Mas estas duas motivações (o medo e o inte-
natureza humana, a preconizarem a preservação resse) são universais e para além da história: isso
dos «tabus», e mesmo a sua restauração, através é desistoricizar o racismo, postular que existem
do elogio do limite simbólico representado pela no homem «sementes de racismo». Memmi
lei. Quando já não se acredita nos poderes trans- parece assumir as consequências lógicas dessa
formadores das Luzes, nem nos efeitos tolerantes teoria ultralarga do racismo: «Se o espírito
do diálogo, faz-se o elogio do interdito, deplo- humano tem tais tendências para ser racista,
rando o «fim dos tabus», e propondo a sua res- existem possibilidades para que um tal compor-
tauração. A repressão judiciária tende a tornar-se tamento se perpetue. [... ] É o racismo que é natu-
96 o único método de luta contra o racismo. ral e o anti-racismo que o não é: este último 97

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apenas pode ser uma conquista, fruto de uma outros, através dos laços do amor, uma grande
longa e difícil luta, e sempre ameaçada, como o é massa de homens, na condição de que fiquem
toda a aquisição acultural.» O esquema «cultura alguns deles fora dela para receberem as
contra a natureza» permite assim elaborar a pancadas.»
definição anti-racista: este toma-se um insurreição i.
Numa palavra, no exterior das fronteiras do
permanente contra o eterno retorno da má grupo de pertença é o estado de natureza, regido
natureza na frágil ordem da cultura. O anti- pelo princípio homo homini lupus (o homem lobo
-racismo resulta do domínio da natureza no do homem). Ao estabelecer a hipótese de que há
homem, duplo domínio dos seus medos irra- continuidade entre as atitudes e os comporta-
cionais e dos seus interesses imoderados. A luta mentos primordiais de tipo xenófobo (implica-
contra o racismo é uma luta infinita contra a dos pelo etnocentrismo, fenómeno suposto uni-
natureza humana. O mito de Sísifonão está longe. versal) e as formas modernas de inferiorização
O pessimismo consiste aqui em naturalizar o ou de exclusão (cujo racismo constitui a sua
mal ou a natureza do mal, em postular intrans- ilustração por excelência), deixa-se entender que
ponível a «parte má» do humano. O pessimismo o racismo tem um fundamento natural, que ele
antropológico e sociopolítico dos anti-racistas pertence à natureza das sociedades humanas.
desiludidos exprime-se primeiramente, no discur- Por conseguinte, a luta contra o racismo choca-se
so erudito, através das considerações sobre as com a constituição afectiva e mental do homem,
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relações necessárias entre a solidariedade interna e com o funcionamento suposto elementar de
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de um grupo e a estigmatização de um «fora-de- todo o agrupamento social. A origem do mal
-grupo» que se estabeleceu como inimigo. Marie é naturalizada, quer a referenciemos no etnocen-
[ahoda afirma assim: «Sabemos a que ponto a trismo, no tribalismo ou na agressividade como
presença de um inimigo exterior contribui para instinto ou tendência específica.
reforçar a solidariedade do grupo - de tal modo ;;
..

que, quando esse inimigo não existe, inventamo- . .~.'

-10.»Depois, e correlativamente, insistimos sobre o erro de interpretação


a necessidade funcional de fronteiras entre os gru- «disposicional ieta»
pos, para que a distinção intergrupal seja garanti-
da pela distância. O imperativo de distância ou As explicações do sentido comum ou as teorias
«de boa distância», social e territorial, foi formu- implícitas dos actores sociais a respeito das causas
lado como um princípio antropológico por do comportamento dos seus semelhantes põem
Sigmund Preud que, não sem humor e azedume, em acção mecanismos cognitivos e emotivos com-
98 escrevia em 1929:«É sempre possível unir uns aos plexos, cujos resultados observáveis e analisáveis 99

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mostram a persistência ou a resistência de erros de difundem-se a partir do momento em que


interpretação e de ilusões. Muitas de entre elas surgem interrogações que dizem respeito a fenó-
podem ser explicadas pela sobrestima ordinária menos surpreendentes, imprevistos, atípicos
das causas «disposicionalistas» do comporta- ou escandalosos: «Os judeus são criticados
mento. Esse erro interpretativo é partilhado pelas porque ... » «os pobres são explorados porque ... »
teorizações que resultam do conhecimento Encontramos aqui o mecanismo de desumaniza-
ordinário e de algumas teorias exp licati vas ção que numerosos historiadores descreveram,
propostas por psicólogos ou psicólogos sociais, na situação colonial, ou seja, a negação litânica
especialmente os que se inspiram em modelos de «todas as qualidades que fazem do colonizado
psicanalíticos ou em modelos etnológicos. um homem». A desumanização, modo de legiti-
O «erro fundamental na atribuição» consiste mação do staiu quo, pressupõe a categorização
na tendência em atribuir o comportamento de um globalizante de uma população à qual se atribui
actor quase exclusivamente às disposições deste e uma identidade substancial comum, como se
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em ignorar correlativamente a situação enquanto todos os indivíduos que pertencem ao grupo
determinante poderoso do comportamento.
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essencializado ilustrassem a identidade do
Podemos supor que o dito «erro fundamental» grupo como dones uns dos outros. A «marca
poderia ser explicado pela eficácia simbólica de do plural» imposta aos membros do grupo
uma teoria «disposicionalista» geral, imbricada na essencializado dão testemunho disso: «Eles são
trama da cultura ocidental. Um estudo genealó- isto ... Eles são todos a mesma coisa.» A norma
gico do erro de interpretação «disposicionalista» lógica da categorização indiferenciadora é:
poderia, mais precisamente, identificar a origem «Todos os x (membros da classe x) são y (classe
deste na ideologia individualista moderna. de características).» É isso, a essenciliazação, que
Além disso, as representaçõe sociais impõem envolve uma geração abusiva (a passagem de
explicações inteiramente feitas; elas oferecem «um x» ou «alguns x» a «todos os x»),
imediatamente, antes de toda a investigação Será necessário precisar que esta análise críti-
ca do erro de interpretação «disposicionalista»
pormenorizada e análise da informação, res-
se aplica à famosa teoria da «personalidade
postas pré-construídas às questões que incidem . :.
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autoritária», na qual os comportamentos ditos
sobre o comportamento social. Numa palavra, i."

fascistas, racistas/xenófobos e anti-semitas estão


os actores sociais procedem a atribuições ou
relacionados com complexos de disposições para
a imputações na base de um saber fornecido
ser fascistas, racistas/xenófobos e anti-semitas?
antecipadamente, constituído pelas represen-
Uma teoria explicativa expressamente anti-
tações sociais disponíveis. Respostas automáti- racista pode assim afundar-se na ilusão «disposi-
100 cas, marcadas pelo simples operador «porque» cionalista» . 101
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.tr:

Não se nasce racista, as pessoas tornam-se


nisso. E pode-se deixar de o ser, mesmo quando
Porquê ser anti-racista?
já se foi. O racismo manifestado pelo comporta-
mento de um actor social não se poderá explicar
pelas tendências ou pelas disposições deste.
O principal factor explicativo de uma atitude ou
de uma conduta racista é á situação. Memmi deu
há pouco a fórmula do mecanismo da geração do
colonialismo, processo interactivo: «A situação
colonial fabrica colonialistas, como fabrica colo-
nizados.» A razão do sistema colonial não se j,

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encontra nas disposições dos colonialistas. As
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explicações racistas recorrem precisa e sistemati-
. 'I',,',.'
camente, quanto a elas, à «natureza» dos indiví-
duos para explicar os seus comportamentos, na
medida em que essa «natureza» for particular,
for a da sua «raça» ou da sua «etnía»: diz-se que

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os membros de tal grupo humano fizeram isto
ou aquilo em razão da sua própria «natureza»,
P ONHAMOS sem rodeios a questão aparen-
temente simples: porquê ser racista?
As respostas fundamentais a esta questão não
das suas predisposições específicas. Aí está um
podem ser estritamente de ordem política ou
,
«preconceito fundamental» como o mostrou
jurídico-política; elas põem em jogo pressu-
Memmi, que dava dele a seguinte ilustração:
I
I «Os europeus conquistaram o mundo porque a
posições morais, metafísicas e religiosas, ou
I teológico-religiosas. Na verdade, trata-se de
sua natureza os dispunha para isso, os não
europeus foram colonizados porque a sua determinar o fundamento da acção contra
natureza os condenava a isso.» A conclusão o racismo, e, por conseguinte, os fins do anti-
racista/racialista é evidente: os conquista- -racismo. Distinguirei seis respostas teóricas ou
dores/ dominadores são de uma natureza supe- especulativas à questão «Porquê ser anti-
rior, os conquistados/dominados são de uma -racista?», respostas que, todas, se seguirmos
natureza inferior. A ilusão «disposicionalista» vai as suas lógicas respectivas, fazem surgir con-
.)
~. I
de par com as pseudo-explicações essencialistas tradições, paradoxos ou aporias, e não apare-
e os recursos aos modos de legitimação por cem, na análise, inteiramente compatíveis umas

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I 102 naturalização dos fenómenos sociais. com as outras. 103



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Em nome das Luzes doutrinas «daqueles que querem tornar a
r I humanidade melhor». Pode igualmente ser ape-
Porquê, portanto, ser anti-racista? Primeira nas uma expressão particular do progressismo,
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resposta, na esteira das Luzes, em nome da civi- isto é, dessa forma de historicismo que é a visão
,1\ i lização, do progresso ou da humanidade ver- necessitarista do progresso, que permite a pre-
;J ~. 1 dadeira, realizada, do futuro: para lutar contra dição de que a marcha do menos bem para o
: ~i I a barbárie, e, mais ambiciosamente, pôr fim à
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I
_~
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melhor se fará em virtude das leis da história.
i barbárie no mundo dos homens. O anti-racismo Ser anti-racista já não é lutar por inscrever na
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é um humanismo. Trata-se de acabar com o pas-
sado da humanidade, com as formas arcaicas de
realidade social-histórica valores superiores
ou fins propriamente humanos, mas é, sim,
comportamento humano. Romper com o passa- situar-se no sentido da história, é voltar a ligar-
do tribal, ultrapassar definitivamente a barbárie -se ao suposto bom sentido do curso histórico,
das origens. A «barbáríe» é a categoria que reúne num tempo linear e balizado.
todas as figuras do passado repulsivo da espécie Esta primeira resposta à questão pressupõe a
humana. Trata-se de impedir o regresso do primi- existência de um limite definível entre a barbárie
tivo no presente. Conhecemos as suas principais e a não barbárie, e, mais precisamente, a exis-
fórmulas: pôr fim à exploração do homem pelo tência de uma diferença hierarquizante entre
homem, à desigualdade entre os homens, ao bárbaros e civilizados, ou entre humanos incom-
domínio das maiorias por minorias, à discrimi- pletos, e mesmo desumanos, e aqueles que
nação e à segregação, e, com certeza, à violência seriam propriamente humanos. Daí o postulado
sob todas as suas formas. Radicalizada, esta von- de uma escala de valores - desigualdade inter-
tade de realizar as promessas da civilização, de -humana ou graus de humanidade -, que confere
civilizar radicalmente a humanidade, implica o seu conteúdo, por efeito perverso, a um contra-
erradicar as paixões negativas da natureza -racismo elementar. Este opera sub-repticiamente
humana, de eliminar no homem a sua parte má uma categorização racial ou com forma racista.
ou patológica. Ser anti-racista, nesse sentido, .é Na verdade o anti-racista classifica-se a si
postular que o «racismo» designa o conjunto próprio, pela sua postura antibárbaros, entre os
dessas paixões, dessas atitudes e desses compor- civilizados e civilizadores; ele outorga-se a si
tamentos condenáveis, ou que então caracteriza mesmo o título do mais humano entre os
as suas manifestações extremas. O anti-racismo humanos; e classifica os «racistas», aqueles que
pode apresentar-se como uma empresa de uma ele percebe como tais, entre os semi-humanos a
nova humanização de uma humanidade insufi- melhorar, os desumanos a controlar, os humanos
104 ciente. Nesse sentido é uma melhoria: é uma das caídos a cuidar ou salvar, os semi-humanos a 105

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reerguer, e mesmo os sub-humanos a afastar, «não evoluídos» (arcaicos, primitivos, sel-
a vigiar e a punir. Ora, não existe racismo que vagens). O anti-racismo parece aqui ter her-
não suponha a existência de uma oposição entre dado a ambivalência e a reversibilidade do
:[,
«Nós» e «Eles» (ou «os Ou tros»), sendo r, humanismo, culto da Humanidade suprema.
çj::':
I~~
estes últimos, no racismo biológico-inigualitário :1"; Esta primeira resposta não é, portanto, satis-
1\
clássico, rejeitados pelo lado da selvajaria ou da fatória, não nos leva a sair do círculo de
", .
barbárie, humilhados enquanto representantes evidências cognitivas, avaliativas e normativas
de uma natureza primitiva e perigosa, ou de do pensamento racista clássico.
uma sub-humanidade. A visão evolucionista do
«progresso» (ou da «civilização»), que implica a
projecção, na história linear, de uma escala de Em nome da verdade científica
valores (dos inferiores aos superiores, do menos
bem para o melhor), mostra-se assim compatível Segunda resposta, em nome da verdade,
,~:':
com um comprometimento anti-racista e de e mesmo da verdade científica e do progresso do
igual modo com um compromisso racista. a- conhecimento: para lutar contra o poder da falsi-
"

O anti-racismo progressista ou melhorísta é dade e da mentira. O antí-racismo define-se, e


a sombra trazida do racismo evolucionista. Daí, v. por essa circunstância se autofundamenta, como
(
o singular face a face ao inigualitário e reversí- '~- um discurso de verdade, levado pelo dever
vel entre os representantes autodeclarados
1\:
, de combater as ideias falsas, os julgamentos
da própria humanidade e as incarnações da errados, os raciocínios incorrectos, as teorias
barbárie, isto é, os desumanos que tendem a ser ;,
pseudo-explícativas ou as pseudoteorias cientí-
:~
~'J.
tratados como sub-humanos. Vemos que a "
ficas. Procedendo desta forma, o anti-racismo
"
posição antí-racista, nesse caso modelo não 1}
liga o seu destino ao das verdades científicas,
escapa à sombra daquilo que ela denuncia e ~~\

inseparáveis de teorias que evoluem, variam, e


~;,
condena, o racismo. O anti-racismo pede desaparecem para dar lugar a outras teorias.
emprestados ao racismo alguns dos seus Todavia, se é verdade que hoje nada permite,
modos de representação, reconstituindo, do ponto de vista da genética das populações,
'Ir ~
através da (ou da sua) polémica que visa o 'j',
é,
dividir a espécie humana em raças distintas
racismo, uma escala hierarquizante dos valores. ~J

1,1,
definidas de maneira tipológica (enquanto
Assim se encontra bem distribuída e parti- variedades bioculturais da espécie), nada nos
, lhada, no anti-racismo como no racismo, uma ~~ .
I"", assegura que amanhã venha a ser a mesma
;~:i-,'
diferença de valor entre os superiores e os infe- coisa. A derrota científica actual de um certo
riores, os bons e os maus, os «evoluídos» e os número de teorias racialistas com pretensão

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106 107
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científica não antevê o estatuto científico futuro da actividade humana consiste em se bater
de eventuais novas teorizações da diferença desde sempre contra aquilo que o seu ambiente
intergrupal (<<racial»ou não). Contentar-se com lhe quer impor. Seja o que for que se possa
afirmar que o «racismo» - reduzido a um con- demonstrar, a Natureza não tem que ditar a
junto de teses, portanto a um racialismo dogmático minha moral.» A recusa moral do racismo
- é cientificamente falso, ~ não só comprometer- parece mais sólido, independentemente de toda
-se com o nocivo infinito do relativismo epis- a referência à cientificidade actual ou futura
témico, mas é, também, recorrer ao uso cientista desta ou daquela tese «racista». O imperativo
do argumento de autoridade (<<aciência diz moral é incondicional- e a sua mensagem anti-
que ...»). Com um dogmatismo cientista - o do -racista de uma grande clareza: naquilo em
pretendido «racismo científico», que baseia a que ela abole ou nega a dignidade humana,
tese da «desigualdade das raças», por exemplo, o racismo deve ser absolutamente condenado.
nos resultados dos «brancos» e dos «negros» Será ainda necessário precisar em que é que a
americanos nos testes de QI - não se evita que dignidade é afectada pelas diversas expressões
,
I se replique através de um outro dogmatismo do racismo. A negação da unidade biológica,
científico, estabelecido em bases necessaria- mental e moral do género humano pode, com
mente provisórias e incertas (<<araça não existe»>- efeito, operar-se quer por uma recusa de
«as raças não têm fundamento genético», etc.). humanidade (declaramos infra-humano tal
Isso seria definir a oposição anti-racista apenas grupo de aparência humana), quer por uma
nos restritos limites do saber biológico, e de um recusa de identidade (não reconhecemos como
biologismo ou de um naturalismo científico, digno de respeito tal cultura, desumanizamos
como se a ciência devesse basear a moral e a tal comunidade humana).
I
I
política, e substituir as formas da percepção
comum (para a qual as «raças» existem) por
modelos formais. Face aos que crêem poder Em nome do Bem
contentar-se com lutar contra o racismo, expli-
cando aos ignorantes que as raças humanas são Coloquemos de novo, portanto, a questão:
ficções naquilo em que parecem actualmente «Porquê ser anti-racista?» Terceira resposta, em
destituídas de fundamento genético, o gene- nome do Bem, da vontade ou da esperança que
ticista Pierre-Henri Gouyon coloca o verdadeiro advenha o reino do Bem, o que implica acabar
problema, isto é, reformula-o: «E se elas tives- com todas as figuras ou causas do Mal ou da
sem um fundamento? Seria necessário, não infelicidade humana, com tudo o que divide e
108 obstante, ser racista? Não. Uma parte gigantesca opõe os homens, com o que os fere e humilha. 109

, I

l __ I
l
o anti-racismo levado pelo ideal do bem de simbólica feita à diversidade: esta não é reco-
todos os homens estará, portanto, em revolta nhecida como valor, o exclusivismo e o espírito
contra um certo número de factos ou de fenó- de ortodoxia derivam dela assim como o apelo à
menos observáveis, supostos serem obstáculo ao cruzada. Daí, por vezes, o aparecimento de for-
estabelecimento do reino do bem aqui na terra: mulações paradoxais e inquietantes do impera-
I
,- ' por um lado, o particular, o limitado, o confli- tivo anti-racista, rebento, todavia, da pura lei
i: I tua I, o desigual; por outro lado, o ódio, o des- de amor: odiar o ódio, desprezar o desprezo,
i I

prezo, a guerra, a violência sob todas as suas excluir a exclusão, fazer guerra à guerra,
formas, o domínio, a exploração, a exclusão mostrar-se intolerante não apenas a respeito da
socioeconómica ou cultural, etc. O anti-racismo intolerância, mas também face à própria tolerân-
moral ganha assim a figura de um humanita- cia, suspeita de ser apenas complacente (para
rismo, que visa na indistinção assegurar a felici- com a falsidade), etc. A lei da espada de dois
dade ou a salvação de todos os homens, num gumes seria o reverso da lei do amor? É a terrív-
,[
mundo por fim pacificado e fraterno. A metáfora el via, juncada das melhores intenções caritati-
I da «fraternidade universal» veste a mensagem vas, aberta a tantas ideias «generosas)), a via da
I universalista de uma referência aos laços de purificação ideológica, mental, ética, judi-
!
I
I sangue: a Humanidade deve «realizar» a sua ciária ... O seu remédio apenas pode encontrar-se
unidade - no duplo sentido do verbo: cumprir e na tolerância. Mas a «virtude incômoda» que é a
tomar consciência -, numa palavra, tornar-se o tolerância gera, logo que a queremos ilustrar na
que ela é, isto é, uma grande família. Voltamos a conduta, efeitos paradoxais: a tolerância obriga
encontrar a lição teológico-religiosa de origem a não tolerar de modo nenhum a intolerância,
bíblica: a unidade da espécie humana baseia-se a rejeitar o intolerável, portanto, a limitar-se a
na crença de que somos todos filhos (ou filhas) ela própria, até converter-se em intolerância.
de um mesmo Pai. A metáfora da fraternidade A-vontade de abolir todo o intolerável, a elimi-
ganha todo o seu sentido relativamente à filiação nar do mundo humano todas as formas do
metafórica afirmada pela tradição monoteísta. intolerável - sem distinção -, metamorfoseia-se
O anti-racismo fraternal é bem de origem judeo- em vontade absolutamente intolerante. O dever
-cristã, ele mergulha as suas raízes num ima- de tolerância converte-se em dever de intolerân-
ginário unitarista, estranho e hostil a todo o cia: «Nada de tolerância para com os inimigos
pluralismo. da tolerância!» ... Ora, segundo a fórmula de
.:..
) ..
Acontece que a doçura fraternal possui um Anatole Leroy-Beaulieu, «a intolerância provoca
reverso da medalha: a dureza da via única e da a intolerância». Círculo vicioso. Este leva-nos a
110 unidade/unicidade da humanidade. Violência voltar a pôr a questão do «porquê». 111

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I.

Em nome do impedimento do pior Três tipos de tolerância podem ser formal-


',i
t,'· mente distinguidos, os quais conduzem a
Sendo o racismo identificado como o pior dos normas e a prescrições não necessariamente
«ismos», e a mais desumana das práticas políti- compatíveis, e ainda menos adicionáveis:
cas, esta quarta resposta é ainda de ordem - suportar os insuportáveis: postura do
moral: evitar o pior, ou pelos menos limitar os fatalismo céptico, face a uma huma-
seus efeitos. O seu fundamento normativo é a nidade por natureza imperfeita;
boa vontade de abolir não propriamente todo o - reconhecer o valor de tudo o que difere:
mal, mas as suas piores manifestações. O campo atitude benevolente para com o mundo,
do intolerável já não é globalmente caracterizado que é a do pluralismo igualitário radical,
para ser totalmente denunciado e condenado, e que pode ir até ao culto da diferença,
é, sim, analisado em figuras definidas como mais propriamente sacralizada;
ou menos intoleráveis. O intolerável já não - suportar as únicas diferenças que dife-
é percebido como um bloco, mas como uma rem bem, e rejeitar as intoleráveis,
progressão. Daí, a visão de uma escala graduada as que diferem mal (segundo critérios
do mais intolerável ao menos intolerável. variáveis); a atitude tolerante mostra-se
A vontade de realizar o Bem, ou o conjunto aqui indissociável de uma autolimi-
dos valores positivos, no mundo histórico onde tação. Ela pára diante do intolerável.
vivem os homens constituía uma resposta moral Mas a definição do limiar deste não
;', . forte, e imodesta, à questão: «Porquê ser anti- escapa à flutuação dos juízos de valor.
-racista?» Uma resposta moral modesta pode, Como evitar aqui o relativismo e o sub-
contudo, ser formulada na base do princípio de jectivismo, que tornam arbitrária toda
tolerância, reduzido a prescrição: tudo pode e a definição do intolerável, e lançam o
deve ser tolerado, salvo o pior. Desde logo, já descrédito sobre aqueles que pretendem
não é a realização do bem mas o impedimento denunciá-lo?
do pior que deve ser procurado. Se o pior é o
racismo, comparado ao Mal absoluto, o dever de Observa-se, com efeito, uma incessante e
luta contra o racismo define-se como o único significativa oscilação da prática da tolerância
imperativo incondicional. O que é absoluta- entre dois pólos: por um lado, a tolerância tole-
mente intolerável, e que deve ser negado - ao rante, expressão do pluralismo (o das opiniões
mesmo tempo especulativa e praticamente -, é o como o das culturas ou das mentalidades), que
racismo. O resto, fora do círculo do Bem, é jul- , I prescreve que se suporte aquilo que não pode-
112 gado relativamente intolerável,portanto, tolerável. mos impedir, o que equivale à aceitação da 113

__ I
diversidade, suposta constituir o real, que não Em nome da paz e da igualdade
seríamos capazes de abolir; por outro lado, a tole-
rância intolerante, que exclui do seu campo de A quinta resposta à questão do «porquê»
aplicação o que é julgado indigno de ser tolerado. enuncia-se, portanto, em nome do dever univer-
Esta última postura, intrinsecamente paradoxal, salista de realizar a todo o custo a paz e a igual-
conduz à posição de fronteiras intransponíveis, e, dade, em e através da unificação final do género
todavia, variáveis, entre o tolerável e o intolerá- humano. Exorta-se a suprimir todas as fronteiras
vel, cujo fundamento último é a subjectividade: raciais, étnicas, culturais, nacionais, etc., que
«O que é tolerável sou eu que o fixo e defino»; o dividem os humanos e que os opõem, ou são
arbitrário é aqui ameaçador ... Mas o subjecti- supostas opô-los. Supõe-se que toda a divisão
vismo não é, ele próprio, a última palavra, não é
ou diferenciação é uma exclusão intolerável,
mais do que o conformismo que equivale a
uma discriminação escandalosa. A visão norma-
reduzir o intolerável a não conveniente, a incon-
tiva da indiferenciação universal, pensada como
veniente. A definição do intolerável pertence real-
o próprio movimento do progresso, pode
mente aos assuntos social e culturalmente qualifi-
alargar-se até ao colocar em questão das dife-
cados ou autorizados, daí o risco de limitações
renças de classe e de «gênero» (sexo), e mesmo
por conveniências pessoais do campo da tolerân-
cia - e mesmo de interrupções voluntárias de de geração (não só através da emergência da
tolerância em nome das «melhores» intenções. exigência ambivalente do direito de procriar
A questão reanima-se. Chegamos à última, em após a menopausa, mas também dos «direitos da
data, das formas «sloganizadas» do anti-racismo, criança», depois dos «direitos do feto» ou «do
a que eu propus chamarmos o antinacionalismo. embrião»), comparadas com as diferenças de
Tal é, com efeito, a principal corrupção ideológica raça, portanto, condenáveis. Assim alargado,
contemporânea. Do anti-racismo, produzida por redifinido como imperativo antidiscriminatório,
uma deslocação de categoria (do racial para o o anti-racismo torna-se uma actividade teórica e
nacional) e uma amálgama polémica (o nacional prática tendo como objectivo a realização da
ou o estato-nacional que é reduzido ao naciona- «civilização mundial». Os seus instrumentos
lismo xenófobo, ao «tribalismo», a um retorno privilegiados seriam as trocas e as misturas:
convulsivo do arcaico no presente suposto «civi- a mundialização económico-informacional e a
lizado», isto é, pós-nac}onal); tudo o que é mestiçagem planetária são assim erigidas em
nacional é diabolizado. E a conclusão de uma imperativos anti-racistas. Dos deveres de troca e
extensão imoderada do princípio de abolição de mistura deriva o dever negativo de rejeitar
dos limites (barreiras, fronteiras, distinções) tudo o que se opõe à realização do projecto
114 entre os humanos. unitarista, a começar pelos Estados-nações. As 115
identidades nacionais tornam-se obstáculos a esta declaração despida de ambiguidade: «Os
mesmo título que as identidades culturais, sejam Franceses, estamo-nos borrifando para eles, não
quais possam ser as suas definições. A existência queremos de modo nenhum mais fronteiras.»
dos grupos humanos chegam desta forma Assiste-nos o direito de nos interrogarmos:
a causar escândalo, pelo facto de ela impedir porquê reclamar «papéis para todos os imi-
o estabelecimento do grupo humano único e grantes» (outro slogan proferido no 15 de Junho
unificado. . de 1996), quando se trata de abolir as fronteiras
Reconhece-se a retórica antinacionalista e que dão um sentido e um valor aos documentos
mais radicalmente «antinacionalista» de alguns de identificação? Contradição interna do pensa-
militantes anti-racistas contemporâneos (de pre- mento militante, quando ele fala sem pensar.
ferência chamados neo-anti-racistas, enquanto Há aí uma fuga para a frente em direcção à
já não se preocupam centralmente com o clás- abstracção e uma radicalidade inteiramente
sico «preconceito das raças») que preconizam a retórica. Reconhecemos nisso a «preferência pelo
mestiçagem planetária e a abolição total das extremismo» cara aos intelectuais comprome-
fronteiras como os dois fundamentos do seu tidos, segundo a fórmula de [acques Julliard,
método de salvação. Devemos aqui recordar o a forma ideológico-política de uma postura
famoso slogan lançado em Maio de 1968, que se maximalista na qual se reconhece a sedução por
converte numa acusação xenófoba (<<ojudeu um extremismo angélico, unitarista, pacifista,
alemão Cohn-Bendit») proferida por um estali- humanitarista, esse conjunto de bons sentimen-
nista da época, slogan fortemente sublinhado por tos e de bons pensamentos que é transfigurado
ocasião de diversas manifestações (em defesa de por uma visão escatológica (acabar com o Mal).
Daniel Cohn-Beridit): «Estamo-nos borrifando Antinacionalismo, etnofobia, mixofilia:
{ para as fronteiras; nós somos todos judeus o paradoxo liga-se aqui àquilo a que alguns anti-
I alemães.» No contexto, é claro que o tipo «judeu -racístas, adeptos da utopia unitarista, eles
alemão» equivale, por sinédoque (isto é, tomando próprios, chegam a praticar a heterofobia, a pre-
a parte pelo todo), ao tipo humano como tal, conizar mesmo, por vezes, a recusa fóbica de
pensado para além de todas as fronteiras, numa toda a diferença, recusa comummente atribuída
palavra, desnacionalizado, cidadão da Terra- aos sujeitos ditos «racistas». Nova figura
-Pátria, despido de Mãe-Pátria. Mais recente- da rivalidade mimética entre «racistas» e «anti-
mente, realçar-se-á, entre os slogans proferidos -racistas», que sacrificam ao culto do Mesmo.
pelos meios de extrema-esquerda por ocasião da Há desde logo uma objecção mais fundamen-
manifestação de 15 de Junho de 1996, em defesa tal a uma tal empresa anti-racista: o custo da
116 dos «sem-papéis (documentos)» (sans-papiers), construção de uma «civilização mundial» não 117

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correrá o risco de ser extremamente elevado? difusão de outras imagens, positivas, isto quer
A questão foi colocada vigorosamente por dizer corrigir os estereótipos. Frouxo, ainda
Claude Lévi-Strauss. Não correremos nós o risco aqui, o resultado da acção não é conforme à
de fazer pagar a unidade ou a unificação final do intenção, embora louvável em si mesma.
género humano com o preço mais elevado, a Essa idealização cultural do mestiço, inseparável
supressão total da sua diversidade cultural , isto
.
do novo exotismo de massas que favoreceu a
é, uma das condições da sua vida propriamente moda «rnultíétnica», tende a gerar um novo
humana? Não nos exporemos nós a desuma- racismo (ou um contra-racismo) estético, cujas
nizar a humanidade ao querer a todo o preço imagens publicitárias não deixaram de se
unificá-Ia e pacificá-Ia? Tanto mais que essa apossar, para o explorar não sem cinismo.
unificação apenas se poderia realizar prolon- '. Finalmente, podemos supor, na esteira de René
Girard e de outros autores (Jean-Pierre Dupuy ou
gando e radicalizando uma pesada tendência
Franck Tinland), que os conflitos sobem aos
actual da mundialização, que é a imposição a
extremos a partir do momento em que as dife-
todos os povos de um modelo de civilização
renças se apagam e que a homogeneidade ameaça.
única, derivado de alguns traços da civiliza-
Como se fosse necessário recriar diferença, isto é,
ção ocidental, a neocivilização gerada pela
ordem. Não reconhecer as diferenças, é exacerbar
pseudodemocracia de mercado e pela sociedade
i o desejo de diferenciação, é tornar patológica a
'I
'j de comunicação/consumo, sem cidadãos, sem
necessidade de identidade distintiva. São esses os
I outros valores que (diferentes da) não os da mer-
limites e os efeitos perversos, de um programa
cadoria e do lucro nascido da especulação finan-
j

anti-racista de tipo universalista, enquanto ele não


ceira ... A lição de Hegel continua a ser preciosa. for acompanhado de uma auto-reflexão crítica.
«Toda a passagem para além dos limites não é O apelo a uma marcha forçada do género humano
uma libertação.» Temos, por isso, boas razões em direcção a uma unidade indiferenciada é uma
para perceber um mundo humano homogéneo viólência que se faz à humanidade do homem.
como um mito repulsivo. A exigência de universalidade é assim compreen-
Além disso, a idealização anti-racista do tipo dida pela corrupção ideológica.
«híbrido» ou «mestiçado», a sua transfiguração
ética e estética, faz-se acompanhar da sua
erecção sub-reptícia - e inquietante - em tipo Em nome do direito à diferença
humano «superior» - por exemplo, naquilo que
seria mais «rico em diferenças». A boa intenção Sexta resposta, em nome da preservação
não está em causa: lutar contra a predominância da diversidade e do respeito das identidades
118 de imagens negativas (aqui, da mestiçagem) pela colectivas: para afirmar e manter as diferenças 119

,~,
(- ....•....
.~;&~:
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- I,

r
culturais entre os homens, para defender e ilus-
trar o direito à diferença, para fazer que sejam
respeitadas as identidades colectivas (étnicas ou
culturais). Supomos então que a diversidade
cultural é um atributo da natureza humana, ou
que faz parte da humanidade do homem, da
sua essência. Segue-se que o apagamento da
variabilidade cultural da humanidade equivale-
ria a urna negação daquilo que confere ao modo
de ser dos homens a possibilidade de urna
existência dotada de sentido e de valor. Reco-
nhecer a dignidade de um ser humano é reconhe-
cer a dignidade da sua comunidade de pertença,
ou ainda o valor da sua identidade colectiva, a
que ele assume, a que ele privilegia ou a que ele
escolheu. Urna tal visão antropológica pode ser
caracterizada corno um essencialismo pluralista:
este assenta no postulado de que a diversidade
cultural está inscrita na própria essência da
humanidade. A desumanização realiza-se então
pela denegação de identidade; não reconhecer o
valor da comunidade de pertença de um ser
humano é não reconhecer este como plenamente
humano. A pertença a um género humano é
A estratégia separatista na luta contra o «racismo branco» mediatizada pela pertença comunitária. A visão
De Marcus Garvey a Malcom X, do movimento Black Power
antropológica duplica-se assim com um sentido
(Poder Negro), à política ideniitdria preconizada por Louis moral.
Farrakhan, a luta dos negros americanos contra o racismo branco Se o valor for incarnado pelas identidades
tomou a forma de um nacionalismo étnico e separatista. O desvio culturais antes de o ser pelos indivíduos na quali-
deste anti-racismo diferencia lista para um racismo antibranco
dade de pessoas, a luta contra o racismo baseia-
constitui o reverso do elogio exclusivo da negritude. (Mil/ion man
March, Washington, 1995). -se inteiramente no respeito incondicional das
comunidades de pertença. O anti-racismo é um
© B. Glinn / Magnum Photos
120 diferencialismo. Esta postura anti-racista é 121

.'--------------------------------------~ j __.u ••
expressamente pluralista, ela apresenta-se como apenas um etnocentrismo disfarçado, a extensão
uma moral e como uma política pluralistas. enganadora de um simples narcisismo de grupo.
Esta concepção diferencialista da luta contra o Os direitos do homem, expressão por excelência
racismo constituiu-se historicamente, em do universalismo doutrinal, reduzir-se-iam
primeiro lugar nos Estados Unidos, como uma assim a uma imposição violenta a todos os
interpretação militante do relativismo cultural homens dos direitos do homem ocidental, de
metodológico dos etnólogos e dos antropólogos raça branca e de civilização judeo-cristã. Numa
sociais (Franz Boas, Ruth Benedict, Melville palavra, relativamente ao anti-racismo diferen-
J. Herskovits). Ao tirar lições éticas e políticas do cialista radical, a universalidade é uma impos-
relativismo cultural, os militantes anti-racistas tura, e o universal uma ilusão ou uma ficção.
difundiram a evidência segundo a qual o racismo Segue-se que o racismo aparece não só como um
é destituído de identidade, recusa da diferença, universalismo, mas também como a forma
rejeição em reconhecer a dignidade de todo ideológico-política por excelência do universa-
o grupo humano compreendido na sua específi- lismo. A sua forma propriamente moderna,
cidade. Está aí o núcleo duro do anti-racismo e a mais temível.
.1
! diferencialista ou «heterófilo», que se reconhece Se confrontarmos as duas últimas respostas
i
I
àquilo que ele crê encontrar no relativismo (a quinta e a sexta), que definem uma e outra o
cultural o princípio de tolerância que constitui que é o anti-racismo e o que deve ser, somos
a arma absoluta contra o «racismo científico». conduzidos a formular o dilema fundamental do
Todavia, o anti-racismo diferencialista implica, anti-racismo, tomado nos seus fundamentos e
como um acto de intolerância velada, um anti- nos seus fins: dever de respeito pelas diferenças,
-universalismo radical baseado na convicção de a fim de preservar a diversidade humana; ou
que o racismo é uma forma de universalismo, então dever de mistura para realizar a unidade
incarnando este a violência da abstracção que da' espécie humana. Ou julgamos que as dife-
reduz tudo ao mesmo, ou ainda, de que o renças são boas em si mesmas, e que, por con-
racismo funciona principalmente para a negação seguinte, as devemos respeitar incondicional-
da diferença e para a erradicação das iden- mente (ao mesmo tempo que as identidades de
tidades colectivas. O racismo é assim reduzido grupo cuja existência elas garantem); ou então
a uma heterofobia biologizante. O que per- julgamos que só a unidade do género humano
mite compreendê-Io como o revelador do constitui um fim em si mesmo, que nos devemos
segredo ou da «verdade» de todo o universa- esforçar por realizar incondicionalmente, atra-
lismo, que seria apenas, por de trás do seu vés do apagamento das diferenças. O dilema
122 renovo das diferenças, um particularismo travesti, vem do choque de duas obrigações morais 123

; .
I

contraditórias, baseadas respectivamente em fosse insuficientemente conhecido ou incorrecta-


dois princípios práticos distintos: o princípio mente compreendido. As dificuldades especula-
deontológico e o princípio consequentalista, tivas encontradas pela tentativa de basear a luta
sendo um e outro de tipo universalista. contra o racismo podem e devem ser postas
O primeiro princípio exige que não façamos entre parênteses nos contextos onde a acção não
- :.~
nunca certas coisas a outrem (mentir-lhe, não puder esperar. Numa palavra, escolhas axioló-
respeitar a sua identidade cultural, etc.), sejam gicas e normativas podem ser feitas em situa-
quais forem as suas consequências, portanto, ções em que é necessário agir com urgência.
«mesmo que daí deva resultar globalmente um A questão agora já não é senão de oportunidade,
bem menor ou um mal maior». Quanto ao e a finalidade reduz-se à obtenção de resultados,
princípio consequencialista, ele exige que através da adaptação às condições do contexto.
façamos «o que produzir globalmente o bem A eficácia da estratégia adoptada impõe-se como
maior, tendo em atenção todos os que forem o critério provisório da escolha que incide sobre
afectados pela nossa acção». Ao respeito incon- a orientação geral - universalista ou diferencia-
dicional das identidades colectivas ou das lista - da acção anti-racista, com a condição
diferenças culturais opõe-se, portanto, o dever de defendermos apenas o direito à diferença,
imperativo de contribuir para realizar a unidade subordinando-o à exigência de universalidade.
É necessário, portanto, fazer escolhas tácticas,
da espécie humana, a qual deve beneficiar todos
de acordo com o perigo principal tal como o
os homens. Nenhuma síntese final nem terceira I ~

via parecem determináveis. avaliamos. Escolha do mal menor, que postula


i
que não há nem soluções simples nem soluções
I Não será necessário reconhecer a dificuldade
I
definitivas. É por isso que a luta contra os racis-
especulativa, custe-nos o que nos custar? Trata-
mos é uma tarefa infinita. Pascal ensinou-o uma
-se nesse caso da última aporia encontrada pelo
vez por todas: «Não devemos dormir.» Devemos
pensamento anti-racista, visto que ela vai até
guardar-nos dos pensamentos embaladores,
ao extremo das suas exigências fundamentais, calmantes e consoladores. Pensar o trágico da
as quais são contraditórias. O conflito dos valo- existência, isto é, o conflito intransponível dos
'!
res e dos deveres parece aqui intransponível. valores, não é necessariamente retirarmo-nos da
Contudo, o anti-racismo não pode ser abor- existência, nem proibir-nos de agir.
i 1
dado apenas do ponto de vista dos seus funda-
mentos, da mesma forma que o racismo não é
redutível a um problema para o pensamento.
Este é também, no quadro da acção, o que deve
124 ser imperativamente combatido, mesmo que 125

;
~_,.----,!" ~__.
-l-...__ .__ .

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