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MÓDULO VI

PERÍODO
HELENÍSTICO

Curso Online

Filosofia 360°
Prof. Dr. Mateus Salvadori
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PERÍODO HELENÍSTICO

1. CINISMO E EPICURISMO (História da Filosofia, vol. 1, de Reale e An�seri)

1.1 Da era helênica à helenís�ca

. O desmoronamento da pólis:
- Enfraquecidos pela Guerra do Peloponeso, os gregos não resis�ram ao
ataque macedônico na batalha de Queroneia (338 a.C.) e sucumbiram diante
do rei Filipe II. O domínio macedônico não ficou só na Grécia. Com a morte do
rei Felipe II, seu filho Alexandre (336-323 a.C.) de apenas 18 anos, assume o
poder e conquista os grandes domínios do Império Persa, expandindo o pode-
rio macedônico até a Índia.
- Alexandre foi educado nos costumes gregos, teve Aristóteles como seu pro-
fessor e espalhou a cultura grega por um vas�ssimo território. A expansão e
mistura da cultura grega com a dos povos orientais originou o que foi conheci-
do de helenismo ou cultura helenís�ca. Seu império não resis�u à sua morte.
Foi dividido entre seus generais e foi conquistado pelos romanos. No entanto,
as cidades fundadas por ele con�nuaram transmi�ndo a cultura grega para
diversos povos ao longo de séculos. Como exemplo, podemos citar Alexandria
no Egito, Pérgamo na Ásia Menor e a Ilha de Rodes no Mar Egeu.
- A grande expedição de Alexandre Magno para o oriente e as sucessivas con-
quistas territoriais, com a formação de um império vas�ssimo e a teorização
de uma monarquia universal divina, �veram como efeito imediato o de colocar
em gravíssima crise a pólis. Não se tratou apenas de revolução política, mas
também e, sobretudo, de revolução espiritual e cultural. Alexandre com sua
expansão promove gradualmente a queda da pólis.

. Mudanças:
- Com o declínio da importância da par�cipação do cidadão na pólis, pois
Atenas perdeu sua hegemonia para a Macedônia, a reflexão polí�ca é abando-
nada e surgem as filosofias da era helenís�ca. Agora temos os grandes impé-
rios: de Alexandre (IV) e depois dos romanos.
- Há, neste período, a passagem da helênica à helenís�ca, do ideal da pólis
para o ideal cosmopolita (o mundo é uma grande pólis), do homem citadino ao
homem-indivíduo.
- Surgiu a exigência de novas filosofias mais eficazes do ponto de vista prá�co,
que ajudassem a enfrentar os novos acontecimentos e a inversão dos an�gos
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valores aos quais estavam estreitamente ligadas. Todos buscam a ataraxia (au-
sência de preocupação) (termo que surge com Demócrito), mas por caminhos
diferentes: 1. Cínicos (autarquia); 2. Epicuristas (prazer = ausência de dor – na
alma, ataraxia e no corpo, aponia (ausência de dor); 3. Estoicos: apatia (au-
sência de paixões); 4. Cé�cos (afasia = não falar / epoché).
- A cultura helênica difundiu-se em vários lugares e tornou-se a cultura hele-
nís�ca e o centro da cultura passou de Atenas para Alexandria, cidade que
mais se destacou ao possuir a maior biblioteca do mundo de sua época e por
ter formado uma escola com grandes pensadores.

1.2 O cinismo como movimento an�culturalista

- Embora fundado pelo socrá�co An�stenes (445-365 a.C.) depois da morte de


Sócrates, o cinismo encontrou uma espécie de refundação com Diógenes de
Sinope (413-323 a.C.), mais conhecido como Diógenes, o cão (kynicos), que
levou o cinismo a grande sucesso. Diógenes rompeu a imagem clássica do
homem grego.
- Ele imprimiu ao movimento uma clara orientação an�culturalista, no sen�do
de que declarou completamente inú�l a pesquisa filosófica abstrata e teórica
para fins de alcançar a felicidade. Ele considerava inúteis a matemática, a
física, a astronomia, a música e o absurdo das construções metafísicas. Eram
necessários, sobretudo, O EXEMPLO E A AÇÃO.
- Por isso, o ensinamento de Diógenes se concentrou sobre uma vida vivida
fora de qualquer convenção social e reduzindo as necessidades ao essencial.
Ele viveu em Atenas de acordo com o que acreditava, morando em um barril e
comendo apenas o que os outros lhe davam, já que o cinismo pregava que a
pessoa deveria viver da forma mais simples possível, como um animal, des-
prezando todas as convenções sociais. Tudo que era natural deveria ser feito
aos olhos de todos e considerava coisas tolas a riqueza, a fama, o poder e as
honras.
- O ideal foi o da AUTARQUIA, do bastar-se a si mesmo e do tornar-se indepen-
dente dos outros. Ou seja, a vida cínica se concretizava em conduta inteira-
mente livre, sem regras. Para alcançar tal obje�vo era preciso ter total despre-
zo pelo prazer e libertar-se dele, e até atuar uma revalorização da fadiga,
capazes de temperar o espírito e torná-lo independente das necessidades
supérfluas.
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- Em busca de uma pessoa que não fosse corrupta, ele andava com uma lanter-
na interpelando a todos que encontrava. Certa vez, o imperador Alexandre foi
ao seu encontro e disse-lhe que daria qualquer coisa que pedisse. Diógenes
pediu apenas que ele saísse da frente do sol, pois estava impedindo-o de rece-
ber sua luz.
- DEPOIS DE DIÓGENES, o cinismo manteve a linha an�culturalista e an�ssocial
que o mestre lhe havia imposto. CRATES procurou realizar uma vida matrimo-
nial de �po cínico, fora de qualquer convenção. Ele casou-se com HIPARQUIA,
que abraçara o Cinismo e com ela viveu uma vida cínica.

1.3 Epicurismo: lógica e sensação

. Hedonismo de Epicuro:
- Epicuro de Samos (341 – 271 a. C), que fundou sua Escola em Atenas em
307/306 a.C., retomou de Leucipo e Demócrito a teoria atomista, de Sócrates
o conceito de filosofia como arte de viver e estabeleceu uma estreita relação
entre felicidade e prazer.
- Epicuro ensinava que os homens devem se libertar dos medos e viver uma
vida voltada para os simples prazeres (hedonismo), como beber quando se tem
sede, comer quando se tem fome, aproveitar a presença dos amigos e familia-
res. Tudo com moderação. Estes prazeres seriam entendidos como a superação
dos desejos estimulados em sociedade, como a busca por fama, riqueza e
poder.
- Epicuro dividiu sua filosofia (finalizando as primeiras duas partes com a ter-
ceira), em: 1) Lógica (chamada “cânon”); 2) �sica; 3) é�ca. Xenócrates foi
quem pensou esta tripar�ção da filosofia: a lógica elabora os cânones que
reconhecemos a verdade; a �sica estuda a cons�tuição do real; a é�ca trata do
fim do homem (a felicidade) e as maneiras para alcançá-la.

. Lógica/cânon:
- Epicuro diz que o conhecimento se fundamenta sobre a sensação, sobre a
prolepse e sobre os sen�mentos de dor e de prazer.
-- Platão disse que a sensação confunde a alma. Epicuro diz que a SENSAÇÃO
“colhe o ser” de modo infalível. Epicuro prova a veracidade absoluta das sen-
sações da seguinte maneira: 1) a sensação é uma afecção e, portanto, passiva;
como tal, é produzida por alguma coisa da qual é o efeito correspondente e
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adequado; 2) a sensação é obje�va e verdadeira, porque é produzida e garan-


�da pela estrutura atômica da realidade. De todas as coisas emanam comple-
xos de átomos, que cons�tuem “imagens” ou “simulacros”, e as sensações são
exatamente produzidas pela penetração em nós de tais simulacros; 3) a sensa-
ção é a-racional e, portanto, incapaz de re�rar ou acrescentar a si mesma
alguma coisa e, por isso, é obje�va. DA SENSAÇÃO, TEMOS AS PROLEPSES E OS
SENTIMENTOS (DE DOR OU PRAZER).
-- O segundo critério de verdade são as PROLEPSES: antecipações, pré-noções,
que são as representações mentais das coisas, as quais não são senão “memó-
ria daquilo que frequentemente mostrou-se a par�r do exterior”. Portanto, a
experiência deixa na mente uma impressão das sensações passadas e essa im-
pressão permite-nos conhecer antecipadamente as características das coisas
correspondentes, mesmo sem tê-las atualmente presentes diante de nós. As
prolepses assumem a função dos conceitos, mas sua validade depende de sua
ligação com a sensação. Os nomes são expressões naturais dessas prolepses:
eles cons�tuem uma natural e não convencional manifestação da ação origi-
nária das coisas sobre nós.
-- O terceiro critério de verdade são os SENTIMENTOS DE DOR OU PRAZER: as
afecções de dor ou prazer são obje�vas pelas mesmas razões que o são todas
as sensações. Além de ser um critério para dis�nguir o verdadeiro e o falso, o
ser e o não-ser, os sentimentos também constituem o critério axiológico para
distinguir o bem do mal, sendo, assim, a regra de nosso agir.
- Sensação, prolepse e sen�mentos de dor e de prazer são EVIDENTES. Mas
até a�ngirmos esta evidência, não podemos errar. Aí temos a OPINIÃO. Como
as opiniões podem ser verdadeiras ou falsas, é necessário um critério para dis-
�ngui-las. São verdadeiras as opiniões que: a) recebem testemunho compro-
batório, isto é, confirmação por parte da experiência e da evidência; b) não
recebem testemunho contrário, ou seja, não recebem desmen�do da experi-
ência e da evidência. São falsas as opiniões que: a) não recebem testemunho
probante; b) recebem testemunho contrário.
- CRÍTICAS: afirmando que todas as sensações são verdadeiras, pode-se dedu-
zir tanto o obje�vismo absoluto, como fez Epicuro, quanto o subje�vismo ab-
soluto, como fez Protágoras.

1.4 Epicurismo: �sica e materialismo


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. Ontologia materialista:
- Sobre a Física, Epicuro diz que para fundamentar uma “ontologia materialis-
ta” (visão geral da realidade em sua totalidade e em seus princípios úl�mos) é
necessário tomar dos atomistas o “conceito de átomo” e a “ideia de que não
existe geração do nada nem aniquilamento”. O NASCIMENTO e a MORTE se
dão por agregação ou desagregação de átomos.

. Os fundamentos de sua �sica são:


- 1) Nada nasce do não-ser e nenhuma coisa se dissolve no nada: dado que
nada nasce e nada perece, a realidade em sua totalidade sempre foi como é
agora e sempre será assim. O todo (a totalidade dos átomos, que para o mate-
rialista Epicuro esgota a totalidade do ser) se mantem idên�co;
- 2) O todo (a totalidade da realidade) é determinado por dois compostos
essenciais: os corpos e o vazio;
- 3) A realidade é infinita: os átomos são infinitos em número, mas finitos nos
�pos e formam infinitos mundos que se reformam infinitas vezes. Há mundos
infinitos: alguns são iguais ou análogos ao nosso, outros muito diversos. Esses
mundos infinitos nascem e se dissolvem, alguns mais rapidamente, outros
mais lentamente, na duração do tempo. Na raiz dessa cons�tuição de infinitos
universos não está nenhuma Inteligência, nenhum projeto e nenhuma finali-
dade. O mundo está aí ao acaso;
- 4) Alguns corpos são compostos; outros são simples e indivisíveis.

. Diferença entre o atomismo de Epicuro e de Demócrito:


-- 1) os antigos individuam os átomos graças à figura, à ordem e à posição; Epi-
curo os caracteriza através da figura, do peso e da grandeza, não tendo quali-
dades como cor e odor;
-- 2) Epicuro introduz a teoria dos mínimos: todos os átomos, dos maiores aos
menores, são �sica e ontologicamente indivisíveis. Mas por terem figura, do
peso e da grandeza, eles teriam partes. São partes não separáveis ontologica-
mente, mas apenas lógica e idealmente dis�nguíveis (porque o átomo é indivi-
sível). Assim, a “mínima” cons�tui a unidade de medida;
-- 3) os antigos falavam em movimento de voltejar (dar voltas) dos átomos;
Epicuro diz que o movimento é de queda do alto para baixo no espaço infinito,
devido ao peso dos átomos, como um movimento tão veloz quanto o pensa-
mento e igual para todos os átomos, sejam pesados ou leves. Como, então, os
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átomos não caem em linhas paralelas, ao infinito, sem nunca se tocar? Epicuro
introduz a teoria da declinação ou desvio. A declinação (clinámen) ou desvio
representa o deslocamento mínimo e casual da linha de queda (que é do alto
para baixo) dos átomos. De outro modo, eles não teriam se encontrado,
caindo em linha reta. O “desvio” tem importância para o plano MORAL, pois
permite uma certa LIBERDADE.
- Também a ALMA (dis�nta em racional e irracional) é um agregado de
átomos; trata-se, porém, de átomos diferentes dos outros. E ainda átomos de
caráter especial são os que cons�tuem os DEUSES, cuja existência Epicuro se
mostra absolutamente certo. Os deuses de Epicuro tem numerosas caracterís-
�cas em comum com os deuses da religião tradicional, exceto por um detalhe:
não se ocupam de modo nenhum do mundo e dos homens e vivem uma vida
absolutamente feliz e beata. Assim, tudo o que existe é composto de corpos
(até mesmo a alma e Deus, que são átomos especiais) (provados pelos sen�-
dos) e de vazio (provado pelo movimento).

1.5 Epicurismo: é�ca e prazer

. �ca e �pos de prazeres:


- Sobre a É�ca, o verdadeiro bem é o prazer; o máximo prazer é a ausência de
dor, sendo os prazeres (e as dores) da alma superiores aos do corpo. Com
efeito, a alma sofre também por causa das experiências passadas e por causa
das futuras, enquanto o corpo sofre apenas por aquelas presentes. A ausência
da dor, tanto em relação a alma (ataraxia) como em relação ao corpo (aponia),
é considerada como sumo prazer, porque é o único que não pode crescer ulte-
riormente e, portanto, não pode nos deixar insatisfeitos.
- Para poder alcançar a ataraxia, Epicuro dis�nguiu acuradamente os vários
�pos de prazeres: os naturais e necessários (comer o suficiente para matar a
fome, beber o suficiente para matar a sede etc.), os naturais e não necessários
(comer alimentos refinados, beber bebidas refinadas etc.), e, por fim, os não
naturais e não necessários (os prazeres ligados a riqueza, as honras, ao poder).
Portanto, apenas os primeiros devem sempre ser buscados, porque são os
únicos que encontram em si um limite preciso; os segundos, podemos nos con-
ceder apenas de vez em quando; os últimos, que nos tornam insaciáveis,
nunca.
. O mal �sico e o mal da alma:
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- Não são eles obstáculos insuperáveis que se opõem à felicidade do homem?


A resposta de Epicuro é um não categórico.
- Com efeito, o mal físico ou é facilmente suportável, ou, se é insuportável, dura
pouco e leva a morte. E a morte não é um mal: quando existimos, ela não
existe, e quando ela existe, nós não existimos. Com a morte vamos para o nada.
- No que se refere aos males da alma, a filosofia está em grau de curá-los e de
nos libertar completamente deles. Para realizar seu ideal de vida, o homem
deve fechar-se em si, e permanecer distante da mul�dão e dos encargos polí�-
cos, que só trazem perturbação e fas�o. A única ligação com os outros a ser
cul�vada deve ser a amizade, que nasce certamente pela busca do ú�l ou para
ter determinadas vantagens, mas depois, uma vez nascida, torna-se ela pró-
pria fonte autônoma de prazer.

. Quadrifármaco:
- Epicuro forneceu uma síntese de sua mensagem no assim chamado quadri-
fármaco, ou seja, no quádruplo remédio para os males do mundo:
-- 1) são vãos os temores dos deuses e do além;
-- 2) é absurdo o medo da morte;
-- 3) o prazer, quando for entendido de modo justo, está à disposição de todos;
-- 4) o mal ou é de breve duração ou é facilmente suportável.
- Aplicando estas regras, o homem pode assumir a atitude de absoluta imper-
turbabilidade que dis�ngue o sábio e que lhe concede felicidade intangível,
análoga a divina: com exceção da eternidade – diz Epicuro –, Zeus não possui
nada mais que o sábio. A felicidade seria, portanto, essa libertação dos desejos
e prazeres, com o obje�vo de se levar uma vida serena e simples, própria de
um sábio, com uma alma imperturbável, em serenidade, para eles, em ata-
raxia.

. Moral hedonista:
- A moral epicurista é uma moral hedonista. O fim supremo da vida é o prazer
sensível; o critério único de moralidade é o sentimento. O único bem é o prazer,
como o único mal é a dor; nenhum prazer deve ser recusado, a não ser por
causa de consequências dolorosas, e nenhum sofrimento deve ser aceito, a não
ser em vista de um prazer, ou de nenhum sofrimento menor. No epicurismo não
se trata, portanto, do prazer imediato, como é desejado pelo homem vulgar
(cirenaicos); trata-se do prazer mediato, refletido, avaliado pela razão, escolhi-
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do prudentemente, sabiamente, filosoficamente. É mister dominar os prazeres


e não se deixar por eles dominar; ter a faculdade de gozar e não a necessidade
de gozar.

. Tito Lucrécio Caro:


- Foi um poeta e filósofo romano que viveu no século I a.C e escreveu Da natu-
reza das coisas. Ele apresenta uma singular síntese de epicurismo e materialis-
mo atomista. Eis algumas de suas teses:
-- Uma física atomista: Lucrécio se opõe à religião, que pretende explicar o uni-
verso pelo milagre. Ele explica por dois princípios racionais: “nada nasce de
nada” e “nada retorna ao nada”. O universo é feito de átomos e de vazio (espa-
ço infinito que permite o movimento dos átomos). A formação de tudo o que
compõe o universo explica-se pelos choque dos átomos devidos ao clinámen.
-- A crítica do finalismo: explicar a organização dos seres vivos por sua finalida-
de (os olhos foram criados para ver) é cometer um erro de raciocínio: inverte-
-se a ordem das coisas colocando a causa depois do efeito. Contra o finalismo
dos estoicos e de Aristóteles (“a natureza não faz nada em-vão”), Lucrécio afir-
ma-que “o órgão que cria o uso”.
-- Uma psicologia materialista: a alma é material: ela é composta de duas
partes, que são o animus (pensamento), situado no peito, e a anima (sensibili-
dade), dispersa por todo o corpo. As diferentes funções da alma são explicadas
pela teoria dos simulacros.
-- O conhecimento racional vence o medo da morte: o medo da morte impede
os seres humanos de desfrutar serenamente da vida.
-- A condenação da paixão amorosa: arqué�po da loucura humana, o amor
nasce do desregramento do desejo sexual sob a influência da imaginação.
Ligando à pessoa amada representações ilusórias, o apaixonado torna-se intei-
ramente dependente dela, sem que a posse jamais possa sa�sfazer o desejo.
O amor condena o ser humano a um perpétuo sofrimento.

2. ESTOICISMO (História da Filosofia, vol. 1, de Reale e An�seri)

2.1 An�ga e Média Estoá

2.1.1 An�ga Estoá: Zenão de Cí�o (IV), Cleanto (IV/III) e Crisipo (III)
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. No fim do séc. IV a.C., após o nascimento do Jardim, nascia em Atenas outra


escolha. Zenão não era cidadão ateniense e, por isso, não �nha o direito de ad-
quirir um edi�cio. Por isso, ministrava suas aulas num pór�co (stoá).
. A teóricos da an�ga Estoá aceitam a tripar�ção da filosofia estabelecida pela
Academia (que fora acolhida por Epicuro). A filosofia em seu conjunto é com-
parada por eles a UM POMAR, no qual a lógica corresponde ao muro circun-
dante, que delimita o âmbito do pomar e que cumpre ao mesmo tempo o
papel de baluarte de defesa; as árvores representam a �sica, porque são como
que a estrutura fundamental, ou seja, aquilo sem o que não exis�ria o pomar;
finalmente, os frutos, que são aquilo a que todo o plan�o visa, representam a
é�ca.

. Lógica:
- A SENSAÇÃO nasce da impressão dos objetos sobre os sen�dos. A verdade é
algo de material, “é um corpo”. Da sensação surge a REPRESENTAÇÃO que
nasce quando o dado sensível se apresenta à alma. O LOGOS (razão humana)
examina a representação: catalép�ca/compreensiva ou acatalép�ca/descarta-
da (a representação da verdade não implica só um “sen�r”, mas postula um
“assen�r”, um aprovar proveniente do logos que está em nossa alma). Após, a
REPRESENTAÇÃO CATALÉPTICA torna-se intelecção e conceito, ou seja, torna-
-se universal.
- Mesmo admi�ndo que a verdade é algo de material, eles defendiam a exis-
tência de ideias inatas, inerentes à natureza humana, chamadas de NOÇÕES
ou PROLEPSES. O ser é sempre e somente “corpo” e individual; o universal não
pode ser corpo, é um incorpóreo, não no sen�do posi�vo platônico, mas no
sen�do nega�vo de “realidade empobrecida de ser”, uma espécie de ser
ligado somente à a�vidade do pensamento.

. Física:
- O mundo é corpo. A matéria é o princípio passivo e o logos é o princípio ativo.
O ser, dizem os estoicos, se iden�ficava com o “corpo”, razão pela qual tudo o
que existe (também os vícios, o bem e as virtudes) são “corpos”. E todo corpo
é formado pela ação de uma causa a�va com uma causa passiva, isto é, pela
ação da razão (logos) sobre a matéria, produzindo entes de caráter “hilemórfi-
co”, isto é, feitos de matéria e forma. A forma de cada objeto seria, portanto,
o resultado da ação de uma única força racional que dá forma (definição) a um
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substrato indefinido.
- O fogo (pneuma, natureza, Deus, panteísmo) penetra toda a realidade, aque-
cendo-a, dando vida a ela. Esta força racional iden�fica-se com a natureza
(physis) e, portanto, com o princípio divino, e em sen�do mais específico, com
o fogo ou sopro (pneuma) afogueado que penetra toda a realidade, aquece-a
e (segundo as concepções cien�ficas da época, que viam no calor o princípio
vital) lhe dá vida. Aparece, portanto, evidente que para os estoicos o cosmo é
como um imenso organismo vivo em que tudo é vida.
- A matéria penetra a matéria, pois há a infinita divisibilidade dos corpos.
Como é possível que o fogo (natureza-Deus), que, como sabemos é corpóreo
e material, penetre o cosmos que é também material? É possível que os
corpos se penetrem mutuamente? Os estoicos introduziram o princípio da
infinita divisibilidade dos corpos e, portanto, admi�ram a possibilidade de que
as partes de um corpo penetrem completamente entre as partes de outro
(princípio da “mistura total dos corpos”).
- O logos gera tudo, pois ele é a semente (razão seminal) de todas as coisas.
Como pode o fogo (logos), que é único, produzir infinidades de forma? Os
estoicos representaram o logos como “semente de todas as coisas”, ou seja,
como semente capaz de gerar muitas outras sementes (razões seminais).
Como a semente, que é única, consegue produzir a infinita variedade dos
ramos, das flores e dos frutos de uma árvore, do mesmo modo o único logos
produz a infinita variedade das formas presentes no mundo.
- Tudo é Deus, o todo são corpos/materialismo e tudo tende ao seu melhor,
pois tudo é dirigido por Deus. A presença do Deus-logos na realidade implica
que tudo seja por ele dirigido de modo infalível, isto é, que tudo seja endere-
çado ao melhor fim (o logos não pode errar). O finalismo universal se traduz
em Providência.
- A vontade do homem não é livre; a liberdade é querer o que o destino quer. A
verdadeira liberdade estaria em uniformizar-se ao logos.

. �ca:
- Todos os seres vivos são dotados de um princípio de conservação (instinto pri-
mário chamado oikéiosis), que instintivamente os leva a evitar aquilo que os
prejudica e a buscar aquilo que os beneficia. O bem de um ser é aquilo que lhe
é benéfico, e o mal é o que danifica. Todo ser vivo pode e deve viver segundo
a natureza. Ora, a natureza do homem é racional e a sua essência é a razão.
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Assim, para o homem atuar via o princípio de conservação, ele deve buscar as
coisas e apenas as coisas que incrementam sua razão e fugir das que o prejudi-
cam.
- Quando o princípio da conservação se aplica ao logos (bem: virtudes, mal:
vício, que nasce das paixões – apatheia: ausência de paixões) e quando se
aplica ao corpo (prejudica: indiferente rejeitadas; beneficia: indiferente prefe-
ríveis). As realidades que correspondem a estas caracterís�cas são a virtude e
o vício, portanto, apenas a virtude é “bem” e só o vício é “mal”. E todas as
outras condições que concernem à natureza �sica do homem (ex.: saúde,
doença, riqueza, fama, morte etc.), como deverão ser julgadas? Não são nem
males nem bens, mas moralmente indiferentes. Por ser uma resposta drás�ca
e pouco pra�cável, ela foi posteriormente refeita: os estoicos admi�ram que
também para a componente �sica devia exis�r uma oikéiosis específica, que
permi�ria dis�nguir as coisas que prejudicam o corpo das que o beneficiam,
atribuindo às primeiras o caráter de “indiferente que devem ser rejeitadas” e
às segundas de “indiferentes preferíveis”.
- Os estoicos elaboraram também um quadro das ações, distinguindo as
“ações retas” (ou moralmente perfeitas) e as “ações convenientes” ou “deve-
res”. A diferença entre os dois �pos depende não da natureza da ação (uma
mesma ação pode ser tanto dever como ação correta), mas sobretudo da
intenção de quem a realiza. Se quem a realiza está em sintonia com o logos e,
portanto, é um sábio, e suas ações serão sempre ações corretas; se, ao contrá-
rio, age sem esta consciência, suas ações, embora formalmente conformes a
natureza, são deveres. Disso derivam duas consequências significa�vas: de um
lado, que quem não é sábio, faça o que fizer, jamais realizará uma ação correta;
do outro, que quem é sábio, qualquer coisa queira ou faça, realizará sempre
ações corretas, justamente porque sua vontade quer aquilo que o logos quer.
- Os estoicos consideravam que a oikéiosis não era um fato apenas individual,
mas devia estender-se a toda a humanidade, de modo a definir o homem como
“animal comunitário” (isto é, participante da comunidade humana), e não
mais, como queria Aristóteles, “animal político” (isto é, inserido na pólis). Esta
mudança de perspec�va favoreceu a difusão de ideais de igualitarismo e de
aversão a escravidão (todos os homens par�cipam do logos e, portanto, todos
os homens são iguais, e ninguém é por natureza escravo). Não se deve pensar
que o sábio provê um “sen�mento” de simpa�a ou solidariedade com os
outros homens. Com efeito, os sen�mentos de misericórdia, de par�ci-
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pação humana, de amor são entendidos como “paixões” e, portanto, como


vícios da alma.
- O ideal do sábio é a “impassibilidade” (apatia), pela qual não se trata apenas
de moderar as paixões, mas de eliminá-las inteiramente, nem mesmo senti-las.
E isso se compreende bem, se considerarmos que as paixões são a fonte do
mal e do vício e se configuram como erros do logos. É claro, portanto, que os
erros não podem ser moderados ou atenuados, mas devem ser cancelados.

2.1.2 Média Estoá: Panécio (II/I a. C) e Possidônio (II/I a. C)

- A média Estoá, desenvolvida nos séc. II-I a.C., teve como representantes
Panécio de Rodes e Possidônio de Apaméia, que, embora deixando intacto os
fundamentos da doutrina, corrigiram alguns pontos dela, em perspec�va eclé-
�ca.
- Panécio desenvolveu a doutrina dos deveres. Mi�gou a aspereza da é�ca, sus-
tentando que a virtude sozinha não é suficiente para a felicidade, sendo preci-
so ainda boa saúde, meios econômicos e força. Valorizou os deveres e, por fim,
repudiou a apa�a. Sua obra Sobre os deveres influenciou Cícero.
- Possidônio empenhou-se em colocar a filosofia estoica a par do progresso
científico de seu tempo. Seguindo a linha de seu mestre Panécio, Possidônio
abriu o Pór�co às influencias platônicas e aristotélicas, não hesitando corrigir
Crisipo com Platão, embora mantendo firme a visão de fundo da Estoá. Ele foi
considerado, na época, do tamanho de Aristóteles.

2.2 Nova Estoá: Sêneca

. Sobre o neoestoicismo:
- O úl�mo grande florescimento da filosofia do Pór�co deu-se em Roma (estoi-
cismo romano, neoestoicismo). O estoicismo foi a filosofia que, em Roma,
sempre teve maior número de seguidores e admiradores, tanto no período
republicano como no período imperial. Por quê?
-- interesse pela é�ca (o interesse pela lógica e pela �sica reduziu-se e a teolo-
gia, que era um ramo da �sica, assumiu uma versão mais espiritualista);
-- reduzidos os laços com o Estado e com a sociedade, o indivíduo passou a
buscar a própria perfeição na interioridade da consciência, criando assim um
clima in�mista, nunca encontrado até então na filosofia;
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-- absorveram elementos do platonismo;


-- irrompeu um forte sen�mento religioso (há uma série de preceitos que lem-
bram preceitos evangélicos, como o parentesco comum de todos os homens
com Deus, a fraternidade universal, a necessidade do perdão, o amor ao próxi-
mo e até o amor por aqueles que nos fazem mal).

. Teologia, antropologia, psicologia e fraternidade universal em Sêneca:


- Nasceu em Córdoba, na Espanha, entre o fim da era pagã e o início da era
cristã. Em Roma, par�cipou a�vamente e com sucesso da vida polí�ca. Conde-
nado por Nero ao suicídio em 65 d.C., Sêneca matou-se com estoica firmeza e
admirável força de espírito. Ele oscilou entre o naturalismo do estoicismo e o
dualismo platônico; âmbito teológico: sua visão de Deus oscila entre panteís-
mo e personalismo; antropológico: a alma é superior ao corpo, mas ela é feita
com a mesma substância do corpo; é�co: introduz dois novos conceitos: cons-
ciência e vontade (faculdade diferente da razão), dando um passo em direção
a uma moral interior.
- Concepção teológica: Sêneca é um dos expoentes da Estoá em que mais se
evidenciam a oscilação em relação ao pensamento de Deus, a tendência a sair
do panteísmo e as instâncias espiritualistas, inspiradas em acentuado sopro
religioso. Sêneca parece alinhado com o dogma panteísta da Estoá que afirma
ser Deus a Providência imanente, entretanto, onde a reflexão de Sêneca é
mais original, seu Deus assume traços espirituais e até pessoais, que ultrapas-
sam os marcos da ontologia estoica.
- Antropologia e psicologia: um fenômeno análogo descobre-se também na
psicologia. Sêneca destaca o dualismo entre alma e corpo com acentos que
não raramente recordam de perto o Fédon platônico. O corpo é peso, vínculo,
cadeia, prisão da alma; a alma é o verdadeiro homem, que tende a libertar-se
do corpo para alcançar sua pureza. Assim, Sêneca vai além do materialismo
estoico, mas faltando-lhe as categorias ontológicas para fundamentar e desen-
volver tais intuições, as deixa suspensas no ar. Sêneca descobre a “consciência”
(conscientia) como força espiritual e moral fundamental do homem, colocan-
do-a em primeiro plano. A consciência é o conhecimento do bem e do mal, ori-
ginário e ineliminável. Ninguém pode esconder-se dela, porque o homem não
pode esconder-se de si mesmo. Em conformidade com a tendência intelectua-
lista de toda a é�ca grega, a disposição de espírito deriva do “conhecimento”,
que é próprio do sábio e nele se resolve. Pela primeira vez no pensamento
14
PERÍODO HELENÍSTICO

clássico, fala-se da vontade como de uma faculdade distinta do conhecimento.


Nessa descoberta, Sêneca foi ajudado de modo determinante pela língua
la�na: o grego não tem um termo que corresponda perfeitamente a voluntas.
Outra novidade é que homem é estruturalmente pecador: se alguém nunca pe-
casse, não seria homem; o próprio sábio, enquanto permanece homem, não
pode deixar de pecar.
- A fraternidade universal: Sêneca foi o pensador que mais contrariou a ins�-
tuição da escravidão e as dis�nções sociais: o verdadeiro valor e a verdadeira
nobreza são dados somente pela virtude, que está indistintamente a disposi-
ção de todos, pois exige unicamente o “homem nu”. Eis a norma que Sêneca
propõe para regular o modo como o senhor deve se comportar em relação ao
escravo e o superior em relação ao inferior: “comporta-te com os inferiores
como gostarias que se comportassem con�go aqueles que te são superiores.”
No que se refere as relações entre os homens em geral, Sêneca põe como fun-
damento a fraternidade e o amor.

. Cartas a Lucílio: autarquia e ser sábio


- Autarquia: não significa desligar-se do mundo, mas ter uma alma livre que
sabe apreciar os presentes da fortuna e jamais ser tomado de surpresa pelas
inconstâncias da vida. Um sábio deve saber desposar o evento, agindo ao
mesmo tempo de tal forma que a fortuna não o pegue desprevenido. Fortuna
era a deusa romana do acaso, da sorte (boa ou má), do des�no e da esperança.
Não se pode planejar a próprias vida, pois um revés da fortuna sempre é possí-
vel e é preciso preparar-se para ela. Isso não quer dizer gostar de penúrias e
misérias pelo prazer de enfrentá-las, mas o obje�vo é saber evitar todo
embate;
- Ser sábio: o sábio deve ser senhor de sua própria vida; deve parar de aceitar
que o tempo lhe seja roubado ou perdido em angús�a vã; deve aproveitar
cada dia como se fosse o úl�mo; não deve temer a morte (cada dia nós morre-
mos e, por isso, é preciso não ter medo do úl�mo momento. Ninguém se preo-
cupa em viver bem, mas em viver muito tempo, enquanto é acessível a todos
viver bem. O suicídio pode ser visto mais como uma possível saída, não como
uma fuga); não deve separar-se do mundo, mas deve buscar a companhia de
amigos verdadeiros. Para alcançar isso tudo, apenas a vontade de ser sábio
não basta: é preciso transformar este impulso entusiás�co em estado constan-
te, é preciso confrontar-se com dificuldades reais (ex.: mesmo quando temos
15
PERÍODO HELENÍSTICO

muito dinheiro, devemos exercitar-nos em viver na pobreza).

2.3 Nova Estoá: Epicteto

. Epicteto, o estoico escravo:


- Além de Sêneca, Epicteto viveu a maior parte de sua vida em Roma, como
escravo a serviço de Epafrodito, o cruel secretário de Nero que, segundo a tra-
dição, uma vez lhe quebrou uma perna. Ainda como escravo, conseguiu assis-
�r as preleções do famoso estoico Caio Musônio Rufo.
- Expulso de Roma por Domiciano, juntamente com outros filósofos (em 88/89
ou em 92/93 d.C.), deixou a Itália, re�rando-se para a cidade de Nicópolis, no
Épiro, onde fundou uma escola que alcançou grande sucesso, atraindo ouvin-
tes de todas as partes. Não se conhece a data de sua morte (alguns pensam
em 138 d.C.).
- Querendo ater-se ao modelo socrá�co do filosofar, Epicteto não escreveu
nada. Felizmente, suas aulas eram frequentadas pelo historiador Flávio Arria-
no, que escreveu suas lições.

. Manual: o que depende e o que não depende de nós


- Não devemos teorizar a filosofia estoica, mas colocá-la em prática: uma vida
feliz e uma vida virtuosa são sinônimos. Felicidade e realização pessoal são
consequências naturais de a�tudes corretas;
- Os princípios da diáiresis e da proáiresis:
-- a diáiresis é o princípio segundo o qual as coisas são dis�ntas em duas clas-
ses: as que “dependem de nós” e as que “não dependem de nós”. O QUE DE-
PENDE DE NÓS: atos voluntários, nossos julgamentos, uso correto das repre-
sentações, nossa maneira de abordar e de viver o nosso papel; o bem e o mal
residem exclusivamente na classe das coisas que estão em nosso poder. O QUE
NÃO DEPENDE DE NÓS: nosso corpo, nossas posses, nossa reputação, ou seja,
todas as coisas que não são a�vidades nossas.
-- a proáiresis é deliberação, pré-escolha, pré-decisão, escolha de fundo que o
homem faz de uma vez para sempre e com a qual determina o diapasão do seu
ser moral, e disso depende tudo o que fará e como fará. A autên�ca proáiresis
coincide com a aceitação do seu grande princípio (que dis�ngue as coisas no
que deliberamos e no que não deliberamos). Essa escolha cons�tui a substân-
cia de nosso ser moral: “não és carne nem pelo, mas sim escolha moral. Se esta
16
PERÍODO HELENÍSTICO

for bela, serás belo”. Essa escolha de fundo poderia parecer um ato de vonta-
de, mas é um ato da razão.
- Não são as coisas que perturbam os seres humanos, mas as avaliações que
eles fazem das coisas. O que isso significa? Que os males não vêm da natureza,
mas de nossas próprias avaliações. Toda a infelicidade dos seres humanos de-
ve-se ao fato de que eles confundem o que está em seu poder e o que não está
em seu poder. Por isso, desejam o que não depende deles, tornando-se escra-
vos dos acontecimentos. O obje�vo de Epicteto é que nos tornamos senhor de
nós mesmos, vivendo assim uma vida sem perturbações.
- Devemos desempenhar bem o nosso papel. O ser humano é um ator numa
peça que ele não escolheu. Ou como diz Shakespeare, “o mundo inteiro é um
palco e todos os homens e mulheres não passam de meros atores. Eles entram
e saem de cena e cada um no seu tempo representa diversos papéis”. Uma
vida bem-sucedida é aquela em que se terá cumprido da melhor maneira seu
papel.
- Deus é inteligência, ciência, bem. Deus é providência, que não cuida somente
das coisas em geral, mas também de cada um de nós em par�cular. Obedecer
ao logos e fazer o bem, portanto, significa obedecer a Deus e fazer sua vonta-
de. A liberdade coincide com a submissão à “vontade de Deus”.

2.4 Nova Estoá: Marco Aurélio

. Marco Aurélio, o estoico imperador:


- O imperador romano Marco Aurélio (121-180) apaixonou-se muito cedo pela
filosofia. Marcado pela leitura de Epicteto, ele escolheu a escola estoica, da
qual será o úl�mo representante. Com a idade de quarenta anos, sucedeu An-
tonino à frente do Império Romano, então ameaçado no interior pelas revoltas
e nas suas fronteiras pelas invasões.
- É durante suas campanhas contra os povos germânicos que ele redige as Me-
ditações. Trata-se de notas pessoais tomadas no dia a dia, para lembrar-se, no
meio das adversidades da vida e da iminência da morte, dos princípios essen-
ciais de conduta.
- A questão central da filosofia é o problema de como se deve encarar a vida
para que se possa viver bem.

. A nulidade das coisas e a antropologia:


17
PERÍODO HELENÍSTICO

- A nulidade das coisas: ele defende a caducidade das coisas, sua passagem
inevitável, sua monotonia, insignificância e substancial nulidade. O mundo
an�go está se dissolvendo e o cris�anismo começa a conquistar os espíritos.
Encontra-se em andamento a maior revolução espiritual. E é essa reviravolta
que dá ao homem o sen�do da nulidade de tudo. Marco Aurélio, porém, está
profundamente convencido de que o an�go verbo estoico con�nua em condi-
ções de mostrar que as coisas e a vida, para além de sua aparente nulidade,
têm sen�do preciso.
-- a) No plano ontológico e cosmológico, é a visão panteísta do Uno-todo, fonte
e estuário de tudo, que resgata as existências individuais da falta de sen�do;
-- b) No plano ético e antropológico, é o dever moral que dá sen�do ao viver.
- A antropologia: a Estoá dis�nguira o corpo da alma no homem, dando clara
proeminência à alma. Entretanto, essa dis�nção nunca chegou a ser radical,
porque a alma con�nuava como ente material, um sopro quente, ou seja,
pneuma, permanecendo, portanto, com a mesma natureza ontológica do
corpo. Marco Aurélio rompeu esse esquema, assumindo três princípios como
cons�tu�vos do homem: a) o corpo, que é carne; b) a alma, que é sopro ou
pneuma; c) o intelecto ou mente (nous), superior à própria alma. Enquanto a
Estoá iden�ficava o princípio diretor do homem (a inteligência) com a parte
mais alta da alma, Marco Aurélio o coloca fora da alma, iden�ficando-o preci-
samente com o nous, o intelecto. A alma intelec�va cons�tui nosso verdadeiro
eu, o refúgio seguro para o qual devemos nos re�rar para nos defendermos de
qualquer perigo e para encontrar as energias de que necessitamos para viver
uma vida digna de homens.

. Meditações: guia para viver em harmonia com o todo


- O sábio deve viver segundo sua natureza: viver de acordo consigo mesmo é
viver em harmonia com o todo do qual se faz parte. O sábio toma como guia
seu deus interior (parcela do deus cósmico, presente em cada um de nós), im-
pondo uma disciplina a cada uma das três funções superiores da alma: contro-
lar seu julgamento (assen�mento), alegrar-se com o que nos acontece (dese-
jo) e não se lançar senão às ações úteis à comunidade (impulso ou vontade).
- Controlar o seu discurso interior: pela sensação, a alma é afetada por coisas
exteriores (objetos, acontecimentos...) que produzem nela imagens ou repre-
sentações. Estas vão em seguida ser refle�das pela alma, que produz sobre
elas um discurso interior, um julgamento. Este pode ser adequado, quando a
18
PERÍODO HELENÍSTICO

alma descreve a coisa tal qual ela é na realidade, ou inadequado, quando ela o
interpreta acrescentando-lhe julgamentos de valores subje�vos decorrentes
das paixões e dos preconceitos. São esses úl�mos que perturbam a paz da
alma, e não as coisas em si mesmas, que são indiferentes e necessárias. O
sábio também deve controlar seu discurso interior para “não dar seu assen�-
mento ao que é falso ou duvidoso”. E no poder absoluto que ele tem sobre
seus julgamentos que está sua liberdade.
- Alegrar-se com o que nos acontece: o curso dos acontecimentos é inteira-
mente determinado e querido pela razão universal. Portanto, é preciso reinte-
grar o que nos acontece no movimento geral do todo, no seio do qual todos os
eventos se harmonizam. Por conseguinte, o sábio não deseja mudar a ordem
do mundo, porque compreende sua perfeição de conjunto e consente inteira-
mente com sua harmonia: ele não se revolta com seu des�no, mas lhe dá seu
consenso, iden�ficando assim sua vontade com a vontade divina. Agir de tal
forma que a alma “não se afeiçoe senão ao que depende dela e que ela queira
tudo o que lhe é atribuído pela natureza universal”. Esta é a disciplina de
desejo.
- Só fazer o que presta serviço à comunidade humana (cidade do mundo): o
sábio se compreende como membro da “cidade do mundo”, que é a comuni-
dade dos seres racionais. Ele também só deve realizar ações apropriadas à sua
natureza, conformando sempre sua vontade às leis da razão, isto é, elevando-
-se do ponto de vista individual do egoísmo ao ponto de vista universal do inte-
resse comum. Ele entende que fazer bem aos outros é fazer bem a si mesmo.
É guiado pelo ideal da jus�ça divina, “que cons�tuiu os seres racionais uns
para os outros, a fim de que eles se ajudem mutuamente, segundo seu respec-
�vo valor, sem prejudicar-se absolutamente”. Cumprir o papel que a Providên-
cia lhe atribuiu é, para Marco Aurélio, trabalhar para o bem de sua pátria, mas
também, em sen�do mais amplo, para o bem da humanidade, enquanto ele é
não apenas cidadão romano, mas também cidadão do mundo.

3. CETICISMO, ECLETISMO E NEOPLATONISMO (História da Filosofia, vol. 1, de


Reale e An�seri)

3.1 Ce�cismo e Ecle�smo

. Ce�cismo de PIRRO DE ÉLIDA (IV/III):


19
PERÍODO HELENÍSTICO

- Não criou uma escola (como Stoá e Jardim) nem escreveu (como Sócrates).
- Os 3 pilares do pirronismo: é possível viver “com arte” uma vida feliz, ainda
que sem a verdade e sem os valores, ao menos como eles foram concebidos e
venerados no passado. O divino é estável; as coisas, provisórias. Tímon diz que
Pirro mostra que as coisas:
-- 1) TODAS AS COISAS SÃO SEM DIFERENÇA. São igualmente sem diferença,
sem estabilidade, indiscriminadas; logo, nem nossas sensações nem nossas
opiniões são verdadeiras ou falsas. São as coisas que, sendo feitas assim,
tornam os sen�dos e a razão incapazes de verdade e de falsidade. Pirro negou
o ser e os princípios do ser, e resolveu tudo na “aparência”. Esse “fenômeno”
(aparência) transformou-se, nos cé�cos posteriores, no fenômeno entendido
como aparência de algo que está além do aparecer (ou seja, de uma “coisa em
si”). Dessa transformação, foram extraídas numerosas deduções que, na ver-
dade, não parecem estar presentes em Pirro;
-- 2) O PERMANECER SEM OPINIÕES E INDIFERENTE. Não é necessário ter fé
nelas, mas sim permanecer sem opiniões, sem inclinações, sem agitação. Se as
coisas são “indiferentes”, “sem medida” e “indiscerníveis” e se os sen�dos e a
razão não podem dizer nem o verdadeiro nem o falso, a única a�tude correta
que o homem pode ter é a de não dar nenhuma confiança, nem aos sen�dos
nem à razão, mas permanecer “sem opinião”, ou seja, abster-se de julgar (o
opinar é sempre um julgar) e, em consequência, permanecer “sem nenhuma
inclinação” (não se inclinar mais em direção a uma coisa do que em direção a
outra), e permanecer “sem agitação”, ou seja, não se deixar perturbar por
algo, isto é, “permanecer indiferentes”. Esta “abstenção de juízo” se expressa
posteriormente com o termo epoché, que é de derivação estoica, mas exprime
o mesmo conceito.
-- 3) A AFASIA E A FALTA DE PERTURBAÇÕES. A afasia comporta a ataraxia e a
imperturbabilidade, ou seja, a ausência de perturbação, a quietude interior, “a
vida mais igual”. Afasia, significa, literalmente, falta de palavra. Do ponto de
vista filosófico indica a a�tude do não-dizer-nada de defini�vo e com valor de
verdade.
- Em suma, as coisas são indeterminadas, incomensuráveis, indiscrimináveis e
indiferenciáveis, não tendo em si uma essência estável, sendo pura aparência.
Não existe uma verdade certa. Segue-se que o homem deve permanecer: sem
inclinações, indiferente (porque não existe nada que seja digno de interesse e
de temor), sem opinião (deve abster-se do julgamento), sem exprimir julga-
20
PERÍODO HELENÍSTICO

mentos (=afasia). A afasia (abstenção consciente de qualquer juízo originada


pelo reconhecimento da ignorância) e epoché (não dizer nada, não expressar
qualquer �po de julgamento defini�vo) e isso o levará a ataraxia (imperturba-
bilidade).

. Ce�cismo de TÍMON DE FLIUNTE (IV/III):


- O discípulo mais significa�vo de Pirro foi Tímon. A sua importância reside em
ter escrito as doutrinas do mestre, em tê-las sistema�zado e em ter tentado
pô-las em confronto com as dos outros filósofos.

. Ce�cismo na academia platônica (na Grécia):


- ARCESILAU DE PITANE (IV/III): razoabilidade. Jamais se verificam as condi-
ções para a evidência, falta um critério absoluto de verdade e, por isso, é preci-
so ater-se ao que é razoável.
- CARNÉADES DE CIRENE (III/II): probabilismo nega�vo. Tudo é incompreensí-
vel; portanto, ou se suspende o julgamento (epoché) ou é preciso ater-se ao
que a nós parece provável.

. Ecle�smo na academia platônica (na Grécia):


- FÍLON DE LARRISA (II/I): probabilismo posi�vo. A verdade existe, mas o
homem não a conhece e, portanto, deve concentrar-se com o provável.
- ANTÍOCO DE ASCALON (II/I): certeza verita�va. A verdade não somente
existe, mas é também cognoscível.

. Ecle�smo em CÍCERO (em Roma) (II/I):


- Cícero teve acesso às várias doutrinas que circulavam pelo Império Romano
naquela época. Desde Fílon, seu primeiro mestre, passando pelos estoicos
Panécio e Possidônio, dentre outros pensadores e escolas, influenciaram o
pensamento do grande orador, especialmente no que diz respeito à determi-
nação da lei natural sobre a conduta moral e é�ca do homem. Com Cícero, res-
surgem em Roma os ques�onamentos feitos na Grécia sobre o justo por natu-
reza e o justo por convenção.

. Neoce�cismo:
- ENESIDEMO DE CNOSSOS (I a. C.): heracli�smo. Resolve o ser no parecer, a
substância nos acidentes, o que é estável no que muda constantemente. Tudo
21
PERÍODO HELENÍSTICO

escorre e nada pode ser fixado no pensamento.


- SEXTO EMPÍRICO (II/III): fenomenismo. O homem não conhece as coisas,
mas o que aparece das coisas (o fenômeno). Ce�cismo: “a toda razão opõe-se
uma razão de igual valor”.

3.2 Ciência, neo-aristotelismo, médio-platonismo e neopitagorismo

. Ciência:
- Com as expedições de Alexandre (IV) para o Oriente há o deslocamento de
Atenas para Alexandria. O Egito é dado para Ptolomeu. Ele e seus sucessores
conservaram a cultura milenar do Egito, mas com uma exceção: Alexandria
(Museu e Biblioteca).
- Com Ptolomeu II, havia 500 mil livros e ocorreu o desenvolvimento das ciên-
cias por um século e meio: geometria (Euclides e Apolônio), mecânica (Arqui-
medes e Heron), astronomia (Eudóxio, Calipo, Hiparco e Aristarco), medicina e
geografia (Eratóstenes).
- Mas no ano 145 a.C. (primeira crise), houve o desentendimento de Ptolomeu
com intelectuais gregos e ele abandonou Alexandria.
- Em 47 a.C. (segunda crise), durante a campanha de César no Egito, a bibliote-
ca foi incendiada (�nha 700 mil livros e muitos se perderam).
- Em 30 a.C. (terceira crise), Otaviano conquista Alexandria e o Egito se torna
uma província do Império Romano (centro do mundo), com interesses apenas
prá�cos. Há, assim, a crise da ciência, com exceção da astronomia (Ptolomeu)
e da medicina (Galeno).

. Neo-aristotelismo:
- Andrônico de Rodes (tradutor, I a. C) e Alexandre de Afrodísia (comentador,
II/III).
- A Escola peripaté�ca ou Peripatoi (do grego, que caminha), fundada por Aris-
tóteles, permaneceu exis�ndo ao longo da época helenís�ca. Aristóteles
morreu um ano após Alexandre e a direção do Liceu ficou a cargo de Teofrasto.
O pensamento aristotélico se manteve como base fundamental, embora
novas tendências na noção de universalidade tenham se estabelecido. Para os
peripaté�cos, o modo de obter a felicidade estava em encontrar a moderação
(média) entre dois extremos (ausência e excesso). Assim, para uma vida de vir-
tudes era importante um equilíbrio entre razão, hábitos e natureza.
22
PERÍODO HELENÍSTICO

- Alexandre de Afrodísia foi seu máximo representante. Os mais importantes


contributos dele se referem à noética (isto é, à doutrina do intelecto). Ele
afirma que Aristóteles admi�a três gêneros de intelecto: o intelecto material,
que é a pura possibilidade de conhecer todas as coisas; o intelecto adquirido
ou in habitu, que é o intelecto posto em ato com o “hábito” de pensar; o inte-
lecto agente ou produtivo, do qual depende a a�vidade de pensar do intelecto
material e, portanto, seu tornar-se in habitu. O intelecto agente para Alexan-
dre seria o próprio Deus e, portanto, único para todos. Deus, com efeito, en-
quanto pensamento de pensamento, é, ao mesmo tempo, inteligível supremo
e intelecto supremo: enquanto inteligível supremo é causa da inteligibilidade
de todas as coisas; enquanto intelecto supremo é a realidade que leva nosso
intelecto ao ato. Mas, para que isso aconteça, é preciso postular uma relação
direta, uma tangência entre Deus e nós, que desemboca em uma “assimilação
de nosso intelecto ao intelecto divino”.

. Médio-platonismo:
- Com a destruição da academia, em 86 a.C., o platonismo cessava suas a�vida-
des em Atenas, mas ressurgia em Alexandria. Destaque para: Eudoro (I a.C.),
Trasilo, Plutarco, Gaio, Albino, Apuleio, Téon e Á�co (I e II d.C.).
- As caracterís�cas do Médio-platonismo são:
-- 1) recuperação da dimensão do suprassensível;
-- 2) interpretação das ideias platônicas como objetos do pensamento de
Deus;
-- 3) reformulação da é�ca em chave religiosa segundo o princípio da “imita-
ção de Deus” ou da “assimilação a Deus”.
- Este movimento é importante tanto para a compreensão do primeiro pensa-
mento cristão, como para a compreensão do Neoplatonismo, do qual prepa-
rou o nascimento.

. Neopitagorismo:
- Nos anos I e II d.C., ao mesmo tempo que o Médio-platonismo, renasceu o
pitagorismo, cujos representantes centrais são Moderato de Gades, Nicôma-
co de Gerusa e, sobretudo, Numênio de Apaméia.
- Os Neopitagóricos repuseram em primeiro plano a dimensão do imaterial,
caída em total esquecimento durante o período do Helenismo. Retomaram a
doutrina da Mônada e da Díade de Platão, modificando-a em alguns pontos.
23
PERÍODO HELENÍSTICO

Deram máximo relevo à Mônada, fazendo derivar dela também a Díade. A


doutrina platônica das ideias passou para segundo plano, enquanto a doutrina
dos números adquiriu grande importância, também com valência alegórica e
teológica. Neste clima par�cular a moral adquiria forte coloração mís�ca.

3.3 Neoplatonismo e o fim da filosofia pagã

. Neoplatonismo:
- Amônio e Plotino: Amônio Sacas (175-242) fundou a Escola Neoplatônica de
Alexandria. Entre seus discípulos se sobressai Plo�no (205-270), o úl�mo dos
grandes pensadores gregos que, com um imponente sistema, se coloca no
mesmo plano de Platão e Aristóteles.
- Enéadas: Há 3 hipóstases: processão é o movimento pelo qual os seres
emanam do uno e isso opõe-se a criação que implica reflexão, temporalidade
e divisão: 1) Uno-bem: único, imóvel, eterno, infinito, ilimitado e sem forma;
tudo o que existe é ser, mas acima do ser há o uno; o uno não pode ser (e aqui
há uma crí�ca a Parmênides que diz que o uno é); todo ente é tal por causa de
sua unidade; o uno se autocria e, portanto, é livre; o nosso raciocínio não con-
segue captar aquilo que extrapola a finitude, aquilo que vai além do ser e da
linguagem; podemos, assim, falar do uno apenas pela via nega�va (aquilo que
ele não é) ou por meio de analogias (sol, fonte): se o uno é o pensamento, ele
é o super-pensamento, se ele for a vida, ele é a super-vida; 2) Nous (intelecto
ou espírito): introduz a dualidade pensamento/pensado e a mul�plicidade das
ideias; o nous é pensamento/ser/vida por excelência; o uno torna-se nous
para poder pensar; 3) Alma: sua a�vidade é criar o mundo; é a úl�ma deusa,
isto é, a úl�ma realidade inteligível; em sen�do horizontal, ela é uma-e-mui-
tas, enquanto se divide nos vários corpos; em sen�do ver�cal, ela divide-se em
alma suprema/universal (que permanece em união com o espírito), alma do
todo (que cria o cosmo �sico) e almas par�culares (que nascem para animar os
corpos); o uno torna-se alma para poder criar; não há oposição entre forma-
-matéria e espírito-corpo, porque tudo par�cipa do uno, em diversos graus de
afastamento e cada grau da realidade se explica pelo grau superior. Agora,
vamos aprofundar isso.
- O Uno supremo: para Plo�no, a realidade se ar�cula em três hipóstases
(substâncias): o Uno, a Inteligência/Espírito e a Alma. No vér�ce da realidade
há uma hipóstase, o Uno-bem, capaz de dar unidade a todas as coisas, de infi-
24
PERÍODO HELENÍSTICO

nita potência. Todavia, nosso raciocínio pode captar apenas entes finitos e co-
notações definidas das coisas. Por conseguinte, deste Um supremo se pode
falar prevalentemente em termos nega�vos, ou seja, pode-se dizer sobretudo
o que não é. Ou se pode falar dele em termos posi�vos, mas por via analógica:
por exemplo, pode-se dizer que é pensamento, entendendo com isso que se
“assemelha” ao pensamento, mas, na realidade, é “super-pensamento”; ou se
pode dizer que é “vida”, mas na realidade é “super-vida”.
- Por que o Uno existe e por que é aquilo que é? Plo�no lança esse problema
que é totalmente novo no pensamento grego. E ele responde introduzindo o
revolucionário conceito de “autocriação”. O Uno existe porque se auto-criou;
e é aquilo que é, ou seja, Bem absoluto, porque quis ser no melhor modo pos-
sível.
- Por que e como do Uno derivam os muitos? Se o Uno gozava já de absoluta
perfeição, por qual mo�vo produziu algo diferente de si? Plo�no responde,
notando primeiro que o gerar do Uno não o empobrece (como a luz produzida
por uma fonte não empobrece aquela fonte), além disso que o gerado é
sempre de natureza inferior em relação àquele que gera. A geração dos entes
a par�r do Uno não deve ser entendida como “emanação”, mas como “proces-
são”, fruto de uma a�vidade par�cular.
- A atividade do Uno e das outras hipóstases: para sermos precisos, o Uno
(como qualquer outra hipóstase) tem duas a�vidades: 1 – uma, chamada ativi-
dade do Uno, que lhe permite subsis�r; 2 – outra, chamada atividade a partir
do Uno, que faz com que do Uno derivem todas as coisas. E se a primeira é a�-
vidade livre, a segunda é necessária, como é necessário que, uma vez acesa a
chama, desta derive o calor. De um ponto de vista meta�sico, poderemos dizer
que o Uno deve gerar as outras hipóstases para realizar toda a sua potência
infinita.
- O nascimento do Espírito: a par�r do Uno deriva uma potência informe (que
é como matéria inteligível), a qual, para subsis�r, deve voltar-se para contem-
plar o princípio do qual derivou, e depois deve autocontemplar-se. Quando a
matéria inteligível contempla o Uno, ela “se fecunda”, ou seja, se enche das
Ideias, entendidas no sen�do platônico do verdadeiro ser; quando, ao contrá-
rio, se autocontempla, nasce o pensamento verdadeiro e próprio. O Uno devia
produzir o Espírito se queria se atuar como pensamento.
- Ser, Pensamento e Vida: desse processo temos consequências significa�vas:
1) antes de tudo, o Nous, Inteligência ou Espírito, se qualifica como Ser (o
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cosmo inteligível das ideias que contêm), como Pensamento (a a�vidade que
desenvolve) e como Vida (justamente enquanto vida de pensamento); 2) em
segundo lugar, com o pensamento nasce a mul�plicidade sob a forma de duali-
dade de “pensamento” e “pensado”.
- A contemplação criadora: além disso, devemos salientar que a produção de
toda realidade, a “criação” em geral e em par�cular, ocorre por meio da “con-
templação”, e os dois termos criação e contemplação em sen�do filosófico se
iden�ficam.
- A Alma e a hierarquia das almas: como o Uno para pensar deve tornar-se
Espírito, também para criar deve tornar-se Alma. E o modo de produção da
Alma por parte do Espírito é idên�co ao do Espírito por parte do Uno: também
aqui é preciso dis�nguir a atividade do e a atividade a partir de (desta vez do e
a par�r do Espírito), ou seja, o nascimento de uma potência, a definição desta
potência por via de contemplação (desta vez do Espírito, e, através do Espírito,
do Uno) e, por fim, a autocontemplação (da Alma). Como, à medida que nos
afastamos do Uno, a força unificante diminui, a Alma como hipóstase perde
em parte a forte unidade, que era própria do Espírito e ainda mais do Uno. A
Alma se ar�cula em três almas: 1) a Alma Suprema, que contempla a hipóstase
superior; 2) a Alma do Todo, que é a que cria o mundo; 3) e por fim as almas
par�culares, que dão vida aos corpos.
- Relação com o mundo: exatamente porque a tarefa da Alma é a de criar o
cosmo, dando-lhe vida, ela se encontra, por assim dizer, dividida no mundo
material, sem, por isto, perder completamente sua unidade, porque – diz Plo-
�no – ela se encontra toda em tudo.
- A matéria: também a matéria, apesar da sua nega�vidade, tem razão de ser
no sistema plo�niano. Ela cons�tui a etapa extrema da processão a par�r do
Uno, em que a potência que deriva do Uno se enfraqueceu, a ponto de não ter
mais a força para contemplar. E, uma vez que a contemplação é a força que
permite criar, a matéria é um nega�vo. Mas, enquanto ela é vivificada e como
que resgatada pela Alma, de algum modo espelha as formas das hipóstases
superiores e assume, à medida do possível, o posi�vo.
- O homem é a sua alma: o homem é fundamentalmente sua alma, e a alma
humana é um momento da hipóstase Alma, da qual par�cipa o caráter de a�-
vidade; portanto, também quando está no corpo, a alma exercita todas as a�-
vidades cognosci�vas, incluindo a sensação, que Plo�no não entende como
momento passivo, mas como “pensamento oculto” da alma.
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- A via do retorno ao Uno: a condição ideal da alma é a liberdade; mas, essa se


obtém apenas na tensão para o Bem, ou seja, mediante a separação do corpó-
reo e a reunião com o Uno. Exatamente nisso está o vér�ce da é�ca plo�niana,
na “unificação” (ou, como também diz, no “êxtase”), ou seja, na capacidade de
despojar-se de tudo, de toda alteridade, e de unir-se ao Uno. Tal i�nerário é
chamado também de via do “retorno” ou da “conversão”, enquanto devolve o
homem às origens de seu ser.
- Desenvolvimentos do neoplatonismo: o neoplatonismo se ar�culou em várias
escolas sucessivas com orientações diversas: a) a orientação meta�sico-espe-
cula�va, que caracterizava as escolas de Amônio e de Plo�no; b) a orientação
que unia ao rigor filosófico a inspiração mís�co-religioso-teúrgica (teurgia:
ciência do maravilhoso; arte de fazer milagre), e que caracterizou sobretudo a
Escola siríaca de Jâmblico (pouco depois de 300 d.C.) e a Escola de Atenas de
Proclo (sécs. IV-V d.C.); c) o direcionamento religioso prevalentemente teúrgi-
co, com escassa importância filosófica, �pico da Escota de Pérgamo (por volta
de 325 d.C.); d) por fim, o direcionamento erudito próprio da segunda Escola
de Alexandria (sécs. V-VII).

. Fim da filosofia pagã:


- O fim da filosofia pagã an�ga tem data oficial, ou seja, 529 d.C., ano em que
Jus�niano proibiu aos pagãos qualquer o�cio público e, portanto, também a
possibilidade de manter escolas e ensinar. Eis um trecho significa�vo do Códex
de Jus�niano:
-- “Nós proibimos que seja ensinada qualquer doutrina por parte daqueles que
estão afetados pela loucura dos ímpios pagãos. Por isso, que nenhum pagão
simule estar instruindo aqueles que, desventuradamente, frequentam sua
casa enquanto, na realidade, nada mais está fazendo do que corromper as
almas dos discípulos. Ademais, que não receba subvenções públicas, já que
não tem nenhum direito derivado de escrituras divinas ou de éditos estatais
para obter licença para coisas desse gênero. Se alguém, aqui (em Constan�no-
pla) ou nas províncias, resultar culpado desse crime e não se apressar a retor-
nar ao seio de nossa santa Igreja, juntamente com sua família, ou seja, junta-
mente com a mulher e os filhos, recairá sob as referidas sanções, suas proprie-
dades serão confiscadas e ele próprio será enviado ao exílio.”
- Esse édito é sem dúvida muito importante para o des�no da filosofia greco-
-pagã, bem como a data em que foi promulgado. Entretanto, devemos desta-
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car que o ano de 529 d. C., como todas as datas que abrem ou encerram uma
época, nada mais faz do que sancionar com um acontecimento de repercussão
aquilo que já era realidade produzida por toda uma série de acontecimentos
anteriores. O édito de 529 d. C., portanto, nada mais fez do que acelerar e
estabelecer de direito aquele fim ao qual, de fato e por si mesma, a filosofia
pagã an�ga estava des�nada inexoravelmente.

INDICAÇÕES DE LEITURAS

1. Diógenes, o Cínico, de Luiz E. Navia


2. Os cínicos. O movimento cínico na Antiguidade e o seu legado, de R. Bracht
Branham
3. Carta sobre a felicidade (A Meneceu), de Epicuro
4. Epicuro e as bases do epicurismo (Ensaios filosóficos), de Miguel Spinelli
5. Os caminhos de Epicuro, de Miguel Spinelli
6. Da natureza das coisas, de Lucrécio
7. Ler os estoicos, de Jonathan Barnes
8. A Vida Dos Estoicos: A Arte de Viver, de Zenão a Marco Aurélio, de Ryan Holi-
day e Stephen Hanselman
9. O Pequeno Manual Estoico, de Jonas Salzgeber e Fernanda Lizardo
10. Cartas a Lucílio, de Sêneca
11. Manual, de Epicteto
12. Meditações, de Marco Aurélio
13. Ceticismo, de Plínio Junqueira Smith
14. Ceticismo, de Charles Landesman
15. Rumo ao ceticismo, de Oswaldo Porchat Pereira
16. Os Céticos Gregos, de Victor Brochard
17. Raízes da dúvida: Ceticismo e filosofia moderna, de Danilo Marcondes
18. Esboços pirronianos, de Sexto Empírico
19. Neoplatonismo: Tradição e contemporaneidade, de Cicero Cunha Bezerra
e Oscar Federico Bauchwitz
20. Compreender Plotino e Proclo, de Cícero Cunha Bezerra
21. Enéadas, de Plo�no

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