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Título original: O Juiz Bad Boy

 
Copyright © 2022 por Bianca Pohndorf.
Preparação de texto: Mari Vieira
Revisão: Mari Vieira
Capa: Designer Tenório
Diagramação: Grazi Fontes
 
Está é uma obra de ficção.
Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da
autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera
coincidência.
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida por qualquer forma e/ou quaisquer meios
existentes sem prévia autorização por escrito da autora.
Os direitos morais foram assegurados.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei nº. 9.610/98 e punido pelo
artigo 184 do Código Penal.
Versão Digital – 2022.
ESTA É UMA OBRA REGISTRADA, QUALQUER REPRODUÇÃO INDEVIDA SE
ENQUADRA COMO PLÁGIO.
Aviso Importante
 
O texto em questão usa linguagem regionalista e coloquial, ou
seja, muitos dialetos estão utilizando jargões e gírias do Rio Grande
do Sul.
As palavras menos conhecidas estão com notas de rodapé,
para, assim, facilitar a compreensão de todos.
O texto também apresenta gatilhos emocionais, portanto, se
você é sensível aos temas relacionados ao luto, este livro não é
recomendado.

 
Ele é a pólvora. Ela é o fogo.
Antonella Caregnato é uma jovem advogada criminalista. Sua
competência, determinação, audácia e sagacidade levaram a
ascensão de sua carreira. No entanto, a moça de sorriso leve
esconde de todos uma profunda tristeza e a total ausência de
sentimentos, ou o que restou deles, após o falecimento precoce da
mãe.
Henrique Zion é um juiz temido e respeitado durante o dia, mas,
à noite, é um bad boy cafajeste. Um homem quente, arrogante,
sarcástico e despudorado, que também esconde muitas coisas de
todos, inclusive a tristeza que aperta seu peito durante as
madrugadas.
Ambos foram moldados pela morte.
O primeiro encontro não poderia ser pior; eles se detestam,
trocam farpas, contudo, reconhecem nos olhos um do outro o que
somente quem já perdeu alguém muito importante sente: dor.
Será que a dor é capaz de unir as pessoas?
Um casal cão e gato com uma química explosiva. Um
romance para arrancar risadas, lágrimas e suspiros.
SUMÁRIO
Aviso Importante
Sinopse
Playlist
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Agradecimentos:
Ouça a playlist de “O Juiz Bad Boy” enquanto aprecia a leitura.
Basta abrir o leitor de QR Code do seu aparelho e apontar a câmera
para o código abaixo.
 
 
Dedico este livro a você que, assim
como eu, perdeu alguém importante
para o câncer...
Em especial para Mari Vieira: o Juiz é
todo seu.
 

“Essa vida será boa e bonita. Mas não sem um


coração partido. Com a morte, vem a paz. Mas
a dor é o custo de se viver. De maneira que o
amor é como sabemos que estamos vivos.”

– Elena Gilbert.
Três anos antes.

A chuva tórrida bate contra a janela em frente à minha cama; o


estalo dos respingos contra o vidro deveria me irritar, mas me atinge
como uma melodia, avisando que o tempo está passando e eu
estou aqui, perdendo essa parte preciosa, não por vontade própria.

Eu nunca havia percebido a imperfeição na parede do meu


quarto, até agora. O ponto preto, adquirido em algum momento por
algo que bateu com força o suficiente para danificar o gesso, parece
dançar em frente aos meus olhos.

Me perco encarando-o por segundos intermináveis,


descansando a minha mente, desviando o meu foco do que
realmente importa: estudar.

Contudo, até mesmo analisar a maldita parede é mais


interessante do que estudar direito administrativo.
Desde que eu me formei, venho estudando dia e noite para o
concurso público da magistratura. Também advogo nas horas vagas
para alcançar os três anos de experiência profissional, um dos
requisitos necessários para a vaga de juiz.

Oito anos focado nisso somente para agradar o meu pai.

A árvore genealógica da minha família é composta por juízes


criminais. Meu avô, meu pai, meu irmão, e, futuramente, eu. E assim
seguirá sucessivamente. Ao menos é isso que o patriarca da família
espera.

Se algum dia eu tivesse tido uma escolha, seria arqueólogo,


analisando objetos e materiais e assim estudando as culturas e os
modos de vida das diferentes sociedades humanas.

Não era bem um sonho cursar arqueologia, mas era um


assunto que me interessava quando prestei o vestibular, e que fui
obrigado a ignorar como opção, pois nunca esteve em pauta –
assim como qualquer outra além do direito, porque as coisas não
funcionam deste modo nesta família: opção nunca esteve em jogo.
Nascemos com um propósito e devemos cumpri-lo.

— Tu não estás concentrado. — A voz incisiva, baixa, soa à


esquerda.

Encaro a porta do quarto, onde meu irmão está apoiado na


maçaneta, um sorriso mordaz nos lábios.

Antônio Zion Filho é o orgulho da família. Quinze anos mais


velho que eu, meu irmão é, atualmente, juiz da 8ª Vara Criminal de
Porto Alegre – com pouquíssimos anos de carreira, Antônio
conseguiu ser remanejado para uma comarca final.

Ele é um prodígio.

— Estudo requer concentração, Henrique — continua,


sustentando meu olhar.
Meu irmão nasceu para isso. Acho que ele pegou todos os
genes jurídicos passados de pai para filho no útero, não deixando
nada para mim, posteriormente. Ele simplesmente ama a profissão
e, diferente do que eu sinto, para ele, ser juiz não é um fardo.

Já o nosso querido pai sente que o filho que carrega o mesmo


nome que o seu é o favorito, sua prole perfeita. Ele sempre deixou
sua predileção clara. Mas, apesar de tudo, não sinto inveja ou raiva
do meu irmão, pelo contrário, se não fosse por ele, não sei se teria
aguentado essa pressão por todo esse tempo.

Levanto o meu caderno para dar ênfase no motivo do meu


tédio.

— Direito administrativo nunca foi o meu forte. — Dou de


ombros.

Antônio se aproxima de mim em passos deliberados e precisos.

Com a genética materna saindo vencedora, Antônio é um


homem bonito e charmoso. Seus cabelos pretos sempre estão
penteados de forma perfeita para trás, sua barba está sempre
aparada. Seus olhos verdes são analíticos, não deixam nada passar
despercebido; e a boca fina combina perfeitamente com o seu nariz
aristocrático e maxilar quadrado.

Apesar de já estar com quarenta anos e arrancar suspiros por


onde passa, Antônio não é comprometido, pois ainda não encontrou
uma mulher nos padrões aceitáveis do nosso pai.

Charlotte Zion, nossa mãe, era Promotora de Justiça.


Conheceu o marido em uma audiência que acabaram por conduzir
juntos. Na época, ela estava dentro de todos os padrões exigidos
pelo meu avô, Henrique Zion: família nobre e rica, bonita, e,
principalmente, do meio jurídico.

Contudo, isso não significa que possamos nos relacionar com


qualquer pessoa desse meio: advogados e concursos inferiores
estão exclusos dessa aprovação.

— Tu consegue, Henrique. — Ele pousa uma mão em meu


ombro e aperta levemente, tentando passar algum conforto com o
toque.

Solto um profundo suspiro e jogo o caderno de volta na mesa.

— Preciso conseguir — corrijo.

Nem nos meus piores pesadelos posso sonhar em reprovar, só


Deus sabe o que o temido juiz – vulgo meu pai – faria. Bem, na
melhor das hipóteses eu seria deserdado e ele jamais admitiria para
qualquer amigo próximo a minha reprovação, por vergonha; na pior
delas, Antônio faria da minha vida um verdadeiro inferno, tentando
avidamente me menosprezar ainda mais do que já faz.

Meu irmão empurra alguns livros para o lado e se senta na


beira da minha cama. Seus olhos verdes e analíticos cruzam com os
meus, o semblante sério, especulativo.

— Tu já tá renegando a profissão sem ao menos tentar,


Henrique. Faz isso somente pela obrigação de agradar o pai. — Ele
retira um papel do bolso e o eleva em minha direção. — Olhe, essa
é a sentença de uma audiência que eu fiz hoje. É sigiloso,
entretanto, gostaria que pudesse ler e entender melhor o que o
trabalho de um juiz significa para a comunidade.

Reviro os olhos, um esgar nos lábios.

— Não é como se eu não soubesse o que significa o trabalho


de um juiz — retruco, a voz sem emoção.

Passei a maior parte da minha vida dividindo horas na


companhia de magistrados. Além de ter que lidar com os assuntos
cansativos da Charlotte e Antônio durante as refeições, os
progenitores da família possuem muitos amigos que dividem a
mesma profissão, portanto, sempre estive presente e à par de
assuntos relacionados aos juízes e seus feitos durante a carreira.

Antônio solta a respiração pelo nariz.

— Apenas leia, irmão.

Recolho o papel da sua mão, desdobro-o e começo a ler o seu


conteúdo. Narra um caso de estupro de vulnerável resultando em
morte; o padrasto violentava a própria enteada, a qual, na época,
possuía pouco mais de seis anos. Depois de tanto sofrimento, a
menina veio à óbito. Para abafar o caso, ele enterrou o corpo no
quintal de casa.

Pelos depoimentos, a mãe da criança ficou o tempo todo ao


lado do marido, até mesmo acobertando à ocultação do cadáver da
própria filha.

Devolvo o papel para o meu irmão, como se ele queimasse


minhas mãos. Meu estômago fica embrulhado ao ler tanta desgraça
em uma pequena folha.

Já ouvi através das conversas dos meus pais, bem como dos
amigos da família, casos absurdos, como: irmão que mata irmão por
causa de herança; filho que mata os pais por motivos triviais; pai
que estupra a filha... A carga traumática que vem junto com a
carreira é somente um dos pesos a ser carregado.

Encho minha cuia de chimarrão[1], tentando acalentar meu


interior revolto com o líquido quente e amargo.

— A progenitora da criança entrou em desespero após a


sentença. O réu ficou o tempo inteiro em silêncio, tentando parecer
o mais inocente possível...

Bufo.
— E porque isso me fará mudar de ideia, Antônio? Esse caso
só me causa repulsa.

— Por que, Henrique, hoje, em uma fatídica manhã de quinta-


feira, eu fiz justiça. O assassino e estuprador está preso, juntamente
com a mãe relapsa. A vida daquela inocente não foi em vão.

Suas palavras me atingem como um soco.

Desdenho dessa profissão não por achá-la desnecessária, mas


por causa da fissura do meu pai com isso. No entanto, meu irmão
tem razão: enquanto eu estudava, e muitas outras pessoas faziam
coisas banais e irrelevantes, ele fez justiça por uma criança inocente
que, em vida, só o que viu foi o quão horripilante os humanos
podem ser, até mesmo quem deveria amá-la de modo incondicional.

Antônio solta um suspiro cansado. Seu semblante denota o


quão esgotado está, e as olheiras marcadas abaixo dos olhos só
confirmam minhas suspeitas de que ele anda trabalhando mais do
que deveria.

— Me prometa algo, Henrique. — Ele aperta meu ombro com


mais força que o necessário. Com o meu silêncio, continua: — Por
favor.

Olho no fundo dos seus olhos verdes, como os de nossa mãe,


pensando na possibilidade de fazer essa promessa, seja ela qual
for.

Antônio sempre esteve presente para me amparar. E hoje não é


diferente – ele não mora conosco há anos, mas sabe que eu estou
estudando muito, então sempre que possível vem até aqui somente
para tentar me passar algum conforto.

Além de irmãos, somos melhores amigos.

— Tudo bem. — Acabo me dando por vencido.


— Me prometa que, independentemente de qualquer coisa, tu
não vais desistir de ser juiz, não sem antes tentar, pelo menos.

Abro a boca para contestar essa promessa absurda, mas ele


me cala.

— Me prometa, Henrique. E, em troca, mesmo que tu vires juiz


e não esteja feliz, estarei aqui para estender a minha mão e lhe dar
apoio para o que escolher posteriormente. Mesmo que isso coloque
nossa família em guerra.

Sinto minha testa franzir; meus lábios se dividem em uma


respiração ruidosa. Antônio irá contra o nosso pai somente para me
proteger? O filho que nunca ousou contestar absolutamente nada?
O prodígio da família?

A pergunta fica explícita em meu rosto, pois ele entende minha


linha de raciocínio e logo trata de se explicar:

— Sim, Henrique, eu faria isso. Acima de tudo, somos irmãos. E


como mais velho, meu papel é protegê-lo, mesmo que isso vá
contra as regras expressas do nosso pai.

Fico em silêncio por segundos intermináveis, absorto em uma


mente alvejada por contradições.

Apesar dos rodeios, Antônio está me oferecendo uma


redenção, a chave para a minha liberdade. Porém, o que mais me
emociona é que meu irmão nunca, absolutamente nunca, foi contra
alguma ordem do nosso pai, e fará isso por mim.

Antônio abdicou de muitas coisas para agradar ao nosso pai,


algumas irrelevantes, desejos momentâneos, mas outras eu sei que
doeu no fundo do seu âmago fazê-lo. E, mesmo assim, aqui está
ele, oferecendo a mim o que nunca lhe foi ofertado: liberdade.

Largo a cuia de chimarrão de volta na mesa, as mãos um tanto


trêmulas. Levanto-me da cadeira giratória com calma, testando
minhas pernas, para somente então ir até Antônio e lhe abraçar.

Meu peito está comprimido em uma emoção irregular; um calor


de admiração pelo meu irmão, pelo homem que ele é, por tudo o
que fez e faz por mim, queima as minhas veias.

— Eu prometo que tentarei, não por ele, nem pela família, mas
por ti — sussurro contra sua nuca.

Me afasto somente o suficiente para analisar seus olhos. O


sorriso acolhedor que ele emana fala por si só o que está sentindo.

— É isso que os irmãos fazem.

— Nem todos — revido.

Seria hipocrisia compará-lo a qualquer outro. Pode não parecer


significativo, mas o peso do que ele está prestes a fazer por mim é
muito relevante, ainda mais para alguém que foi moldado por pais
narcisistas.

Antônio bate as palmas das mãos nas pernas, levantando-se da


cama.

Seus olhos encontram os meus, emocionados.

— Agora eu preciso ir, estou cansado e necessitando de uma


longa noite de sono, depois de uma boa dose de uísque.

Minha boca se curva em um meio sorriso.

— Tenho certeza de que terá uma boa garrafa de Royal Salute


vinte e um anos te esperando.

Seus olhos faíscam em reconhecimento.

— Não posso desapontar o meu irmãozinho, não é mesmo? —


Pisca.
— Tu nunca me desapontas, irmão.

Em silêncio, ele caminha pelo piso de madeira até a porta. Seu


terno preto, de caimento perfeito e impecavelmente desamassado,
emoldura seus ombros largos e braços compridos e fortes.

— Henrique — Gira nos calcanhares, voltando os olhos para


mim. —, eu te amo.

— Eu também te amo, cara. Tenha uma boa noite.

— Obrigado, irmão, tu também.

É estranha essa demonstração de carinho, considerando a


família frívola da qual fazemos parte. Nunca ouvi nada parecido
proferido pelo meu pai ou minha mãe. As três palavras importantes
resumem-se a mim e Antônio.

Antônio já estava entrando no ensino médio quando eu nasci,


fruto de uma gravidez inesperada. Desde então, ele sempre esteve
presente em tudo na minha vida. Muitas vezes, era ele quem ia nas
reuniões de pais da escola, pois os nossos nunca estavam
disponíveis.

Sempre foi muito mais do que um simples irmão; minha família


e todo o meu amor resumem-se a ele, pois esteve presente na
maioria das minhas lembranças da infância. Ele foi pai, mãe e
irmão. Foi família. E mesmo agora que somos adultos, que ele tem
sua própria vida, seus próprios compromissos, aqui está ele, me
dando todo o seu apoio, me oferecendo sua rendição.

Sempre foi ele e sempre vai ser.

Observo a sua silhueta sumir pelo corredor antes de voltar a


focar nos estudos, agora com um grande propósito em mente: a
minha liberdade.
Estranhamente, consigo sentir que esta será uma manhã
diferente, enquanto desço as escadas para o primeiro andar com a
finalidade de fazer meu desjejum. A energia que paira no ar parece
pesada, triste, densa. Até mesmo a claridade das janelas que
sempre ilumina o ambiente, deixando-o com um aspecto
aconchegante, hoje parece
opaca.                                                                                                   
                                                                                                             
                                                                                                             
                                                                                                             
                                                                                                             
                                                                                                             
                                                                                                             
                                                                                                             
  

Logo hoje que, pela primeira vez em meses, eu me permiti ficar


dormindo um pouco mais, aproveitando o paliativo barulho da
chuva...

Ontem, após a conversa que tive com o meu irmão, eu me senti


feliz e, diferente dos últimos meses, eu quis estudar por vontade
própria, e não por obrigação.

Fiquei até tarde da noite concentrado nos livros, sentindo prazer


ao compreender e decorar cada artigo do Código Penal.

Sento-me à mesa oval de vidro, o delicioso aroma do café


recém-passado invadindo o meu olfato – minha fonte de energia
para as próximas horas de estudo.
— Querido, acordou tarde. — Irene planta um beijo no topo da
minha cabeça. — Eu já ia retirar a mesa do café.

Irene, nossa funcionária mais antiga e mais fiel, começa a


recolher a louça suja.

Ela sempre esteve na família, sempre esteve presente em


momentos importantes na minha vida e na do meu irmão – Charlotte
voltou ao trabalho assim que expeliu os filhos para fora do corpo,
deixando que a empregada cumprisse o papel materno.

— Resolvi descansar um pouco mais — murmuro, sorvendo


outro gole de café.

— Isso é bom, querido, tu andas com um aspecto muito


cansado. — Me lança um olhar enviesado, preocupação faiscando
nele.

Solto um pequeno suspiro. Não é como se eu tivesse escolha.


Sem estudo = sem concurso público.

— Logo isso passa... Espero que, em breve, as vagas para o


concurso abram.

Ela esfrega as mãos no uniforme preto; os cabelos grisalhos


estão domados em um coque rente ao couro cabeludo. Irene não
possui mais do que um metro e meio de altura e os olhos grandes,
castanho-escuros e expressivos lhe dão um ar de brandura.

Ela arfa, preocupação materna nublando a visão.

— Eu sei. Mesmo assim, me preocupo com a sua saúde.

Seguro sua mão, plantando um beijo em seu dorso.

— Obrigado por isso.

Ela puxa a mão da minha, dando um peteleco em meu braço.


— Deixa de ser bobo, menino, não tem o que agradecer.

A mulher recolhe a louça suja, segurando a pilha rente ao peito,


enquanto caminha em direção a cozinha em passos delicados.

— Matando os estudos, Henrique? — A voz que me causa


tanta tormenta soa perto o suficiente para fazer meus pelos
corporais se eriçarem.

Olho com desdém para Antônio Zion.

Meu pai já está com setenta e cinco anos; os cabelos brancos e


a rugas marcadas no rosto demonstram a sua idade avançada.
Seus olhos pretos deixam até mesmo o maior dos seus inimigos
temeroso. Além, é claro, de possuir como principais características
da sua personalidade a genialidade e o egocentrismo.

— Descobrirá a resposta após a prova, papai. — Mastigo um


pedaço de mamão, fingindo ignorar a sua presença.

Para a minha sorte e do meu irmão, nascemos com a beleza de


nossa mãe: olhos verdes e cabelos escuros, apesar das minhas
madeixas serem um pouco mais claras, característica
honradamente adquirida da minha família paterna.

— É bom tu me respeitar, guri, não irei tolerar este tipo de


resposta, não na minha casa.

Mostro indiferença para o seu habitual comportamento hostil.

Ele fixa as írises escuras em mim, os olhos atenuando a


ameaça que irradia em minha direção.

Quando eu era criança, abaixava a cabeça todas as vezes que


ele me encarava dessa forma; o medo da retaliação por emitir algum
comportamento que lhe era abominado me fez ser uma criança
submissa, mas isso mudou.
Hoje, é por respeito, mesmo que ele não mereça, que me
mantenho silente. E somente por isso.

Prestes a falar alguma coisa, é interrompido pelo barulho


estridente da campainha.

Irene passa por nós em silêncio, indo em direção a porta da


frente.

— Odeio receber visitas uma hora dessas; já avisei a Charlotte


para manter as amigas longe de casa durante o horário matutino —
reclama, recolhendo o jornal de cima da mesa, exagerando na força
e amassando o papel.

Deixo-me sucumbir a iminente vontade de revirar os olhos,


ignorando suas demandas quanto as amigas da esposa.

Irene aponta no corredor, a vejo limpar uma lágrima com o dedo


indicador; em seu encalço há dois policiais.

Suas expressões me deixam subitamente estarrecido.

Meu coração dispara com a cena atípica; lentamente levanto-


me da mesa. Deixo o guardanapo de colo cair ao chão, mas não
faço movimento algum para apanhá-lo, pois meus reflexos estão
calculados, em decorrência da onda de nervosismo que toma conta
do meu corpo.

— Senhor Zion... — Ela olha para mim, depois para o meu pai,
e vice-versa, a pele clara parece ainda mais iluminada que o normal.

— O que aconteceu? Falem logo! — brada o juiz, apertando o


jornal em sua mão.

Escoro meu corpo à mesa, ainda sem conseguir controlar a


minha respiração ou os meus batimentos cardíacos. Trêmulo, temo
dar um passo e despencar no chão.
— Nós sentimos muito, senhor Zion. — O policial alto, de
cabelos claros, barba comprida e olhos castanhos é o primeiro a se
manifestar. — Eu... bem... — As palavras morrem em sua garganta,
seja lá o que ele iria revelar, não se sentiu confortável o suficiente
para isso.

— Estou esperando, não tenho o dia inteiro, seus


incompetentes. — A voz do juiz reverbera por todo o cômodo com
seus gritos.

Fico um bocado irritado com o tom que Antônio usa para falar
com os agentes; os homens parecem se solidarizar com nossa
família, enquanto o patriarca só exala ódio e desdém para eles.

Irene solta um soluço profundo, suas bochecham brilham pelo


rastro das lágrimas derramadas.

Droga! Sinto meu coração ficar esmagado a cada segundo a


mais de silêncio que se sucede.

Soltando um suspiro profundo, o policial de baixa estatura,


cabelos pretos bagunçados e olhos da mesma cor, se prepara para
dar a notícia arrebatadora.

— Infelizmente, essa manhã, enquanto saía do Foro, o doutor


Antônio sofreu um acidente... — Ele faz uma pausa. — Ele foi
atropelado por um carro desgovernado.

Nos breves segundos enquanto o cenário é registrado pelo meu


cérebro, sinto, no mais fundo do meu âmago, a verdade, mas não
posso acreditar nela.

— Onde ele está? — pergunto, manifestando todo o desespero


que uma notícia dessas pode trazer.

O policial me lança um olhar complacente.

— Ele veio a óbito no local.


Sinto a agonia me engolfar, me impedindo de respirar.

Coloco a mão no peito, como se dessa forma fosse possível


amainar a dor que arrebata todo o meu ser.

Não!

Antônio não pode morrer.

Ele não pode me abandonar desse jeito.

Ele é a minha âncora, a minha válvula de escape, mas, acima


de tudo, a única pessoa que eu amo no mundo inteiro.

Eu já ouvi inúmeros relatos de experiências extracorpóreas,


mas nunca imaginei que eu viveria uma. É como se o mundo tivesse
parado de girar no exato momento em que ele deu a notícia, tirando-
me de órbita.

Não posso aceitar isso, não posso associar a imagem do meu


irmão forte, másculo, saudável, cheio de magnitude... à morte.

Não!

Como é possível o meu irmão, um juiz renomado, um homem


jovem e inteligente, ter tido a vida ceifada por um carro? Qual era o
seu propósito, então? Isso não faz nenhum sentido.

Não percebo o momento em que Irene me abraça, só sinto o


calor do seu corpo rente ao meu. Também não notei quando me
joguei ao chão, mas tê-la tão próximo me dá a sensação de
proteção.

Balanço a cabeça em negativa, abalado demais por essa


notícia, sem poder aceitar que nunca mais verei o meu irmão, sem
poder aceitar a morte.

— Por que, meu Deus? Por que logo esse filho? — Ouço meu
pai murmurar seu lamento.
Ouvi-lo se perguntar por qual motivo Antônio morreu ao invés
de mim e não por estar, de fato, sofrendo com a perda do seu
primogênito termina de romper uma ligação no meu interior, algo
que esteve aqui este tempo todo por ele, somente por ele. É como
se meus sentimentos fossem desligados; eu não consigo sentir
nada além de raiva, desprezo e rancor.

Levanto-me lentamente do chão, secando as lágrimas, as


últimas que derramarei em vida, mas jamais arrependido, pois elas
vieram pela única pessoa que poderia merecê-las.

Lanço um olhar de nojo, pura repulsa, para o homem que eu


deveria amar, mas não amo.

— Me pergunto a mesma coisa. — Minha voz sai fria. Antônio


percebe a mudança, pois, pela primeira vez em anos, deixa seu
semblante demonstrar o que sente: arrependimento. — Me pergunto
por qual motivo ele morreu, ao invés do velho estúpido, nojento e
desgraçado que é tu.

O juiz aposentado abre e fecha a boca consecutivamente; seu


cérebro parece ter dado pane, pois ele não sabe o que falar.

Não me arrependo das palavras proferidas, eu deveria ter feito


isso há muito tempo. Eu deveria ter tido coragem para mandar essa
família, esse sobrenome e essas regras para o inferno.

Mas de tudo o que Antônio Zion já falou, de uma coisa ele tem
razão: eu deveria ter morrido, não o meu irmão. Ele era melhor do
que eu, deveria ter uma longa e maravilhosa vida, não merecia nada
menos que isso.

Antônio deveria ter tido tempo o suficiente para aproveitar mais


a carreira de que tanto se orgulhava e amava; deveria ter tido tempo
para encontrar a mulher por quem viria a se apaixonar; deveria ter
tido tempo para ter filhos, porque ele era um ótimo irmão e imagino
que seria um pai melhor ainda.
Ele deveria ter tido tempo para viver.

Desvencilho-me de Irene. Meu corpo está frio; não há


sentimentos, não restou nada, somente a dor.

Saio da sala a passos largos. O pequeno ambiente me deixa


sem ar, tem muitas pessoas, muitos rostos, preciso respirar, preciso
me concentrar em algo, estou sufocando em agonia.

Oh, meu irmão!

Se Deus existe, ele é injusto.

A nossa conversa de ontem me vem à cabeça, alvejando-me.

Subo as escadas, agarrando o corrimão para não cair, as


pernas estão falhas, bambas, o peito sobe e desce acelerado. Pisco
e percebo que, de algum jeito, vim parar em meu quarto.

Me jogo no chão e abraço o corpo, tentando me acalmar.


Minhas mãos tremem e minha visão fica turva; rastejo até o
banheiro há tempo de despejar no vaso sanitário todo o café da
manhã.

Isso não pode estar acontecendo.

Tudo dói, cada músculo, cada osso, cada célula.

— Não... — Minha voz não passa de um sussurro fraco.

A cabeça pesa, estourando de dor, as imagens de ontem ainda


me alvejando.

Minha última promessa a ele foi a de que eu tentaria ser juiz,


por ele, sempre por ele.

Uma promessa... mas que sentido faz cumpri-la se ele não está
aqui para me ver realizá-la? Ainda assim é uma promessa, a última
dela – uma voz grita em minha mente.
Droga! Droga! Droga! Por quê, Antônio? Por quê?

Não posso quebrar a promessa, irei cumpri-la, assim como


disse que faria em nossa última conversa. Me tornarei juiz, não
como o nosso pai, mas como ele.

— Espero que sinta orgulho de mim no futuro irmão, por mais


que o dia de hoje tenha me quebrado, mesmo que eu nunca mais
seja o mesmo. — Limpo os olhos, desembaçando a visão.

Espero que sua morte não tenha sido em vão. Morte. Morto.
Antônio está morto. Nunca mais, nunca mais poderei vê-lo. Nunca
mais iremos compartilhar uma garrafa do nosso whisky favorito.
Nunca mais faremos nada juntos.

— Tu não deverias me abandonar! — grito. — Isso é injusto, tu


me prometeste! — Um soluço alto desprende-se da minha garganta.

Sinto minha alma se partir, e sei que nada nem ninguém


conseguirá restaurá-la a partir de agora.
Dias atuais.

23 de setembro.

Sentada em um banco na redenção, sob a réstia do sol alto que


recepciona os primeiros dias de primavera e o cheiro das flores que
desabrocham nos arbustos verdes e apolíneos sobrepujando os
demais, eu choro sem cessar.

Com o passar do tempo, as feridas cicatrizam, até mesmo a


mais profunda delas; eles dizem. Mas na prática, não é bem assim
que as coisas funcionam.

Vinte e três de setembro. Dois anos do dia em que eu lhe disse


adeus. Dois anos que nada mais faz sentido. Dois anos que a cor da
vida ficou mais opaca.

Dois anos sem ela.


Recebo alguns olhares curiosos lançados na minha direção
pelas pessoas que estão passeando, vivendo suas próprias vidas,
enquanto tiraram um tempo para caminhar e aproveitar o astro do
dia. Mas não me importo, nada importa hoje, somente a dor que eu
ainda sinto.

Eu não tenho um túmulo para visitar e ir me lamentar, não aqui,


pelo menos, portanto, só me resta me lamuriar em um banco de
parque cheio de gente comemorando a partida do frio.

Solto um suspiro, curvando os ombros para expelir o ar dos


pulmões.

Uma maldita dor nas costas. É coluna; eles disseram, toma um


analgésico que passa. Mas a dor nunca passou, somente foi
aumentando e, com o tempo, nem mesmo o remédio surtia mais o
efeito esperado.

O médico mandou fazer um raio-x, disse que deveríamos tratar


isso mais a fundo — mas não era exatamente o que ele imaginava,
muito menos nós.

Os exames vieram e o câncer já estava mostrando a sua


maldade; ele não podia mais ficar em silêncio, era hora de relatar a
sua presença.

“Você não morrerá disso, vamos tirar.” A primeira das muitas


mentiras que nos foram contadas. Depois dela, veio: “A radioterapia
vai diminuir o câncer para a remoção.” Mas ele estava muito bem
escondido entre a pleura do pulmão. “Se fosse necessário, ela
viveria bem somente com um dos dois órgãos, mas não morreria”;
eles disseram.

Eu lhe fiz companhia nas seções de radioterapia, sempre forte,


sempre querendo viver, mas sempre com o cigarro em mãos. O
maldito cigarro, causador de tudo isso.
Eu me lembro do dia em que ela foi para a remoção do câncer,
eu fiquei tão nervosa. Passei a manhã inteira rezando pelo sucesso,
mas Deus não estava disponível naquele momento.

Não havia mais cura, nem mesmo a remoção. O câncer, como


o maldito que era, estava enraizado em vários órgãos, além de ter
comprometido os dois pulmões – era questão de tempo até a morte
chegar.

E ela veio seis meses depois.

Seis meses foi o tempo que eu tive para me acostumar com a


morte. Seis meses para aceitar o fato de que a pessoa mais
importante da minha vida partiria para sempre.

Mas seis meses não foram o suficiente. Nem mesmo esses dois
últimos anos foram. E não sei se algum dia, um lapso de tempo, não
importa qual for, será.

Ouço meu celular tocar, tirando-me das lembranças dolorosas.


O número do meu pai pisca na tela, mas eu não atendo nem faço
movimentos para isso. Só quero ficar sozinha.

Depois da morte de mamãe, fomos embora de São Paulo; não


fazia mais sentido ficar em um lugar onde a sua presença não
existia mais. O Rio Grande do Sul, terra natal do meu pai, parecia
mais convidativo, na época, para seguir em frente. Acontece que eu
nunca consegui seguir; a sombra da sua perda vem me
acompanhando desde então.

Ela conseguiu passar o meu aniversário, mas não foi capaz de


ver a minha formatura em direito. Não foi capaz de ver minha
aprovação na tão temida OAB, nem mesmo ver o meu sucesso
profissional; hoje sou uma renomada advogada criminalista, mesmo
tendo pouco mais de um ano de carreira.

Dizem que os filhos nascem preparados para perder os pais,


pois essa é a lei da vida, mas isso não passa de mentiras e
baboseiras; nunca estaremos preparados para perder àqueles a
quem amamos, nunca.

— Está tudo bem? — Uma senhora de baixa estatura, meia-


idade, cabelos grisalhos e olhos bondosos se aproxima de mim.

Limpo as bochechas molhadas com o dorso da mão. Abro um


sorriso que não chega aos olhos em sua direção e gesticulo com a
cabeça um sinal positivo.

— Sim... é só o aniversário de morte da minha mãe — explico.

— Oh! Eu sinto muito, querida.

Eu odeio com todas as minhas forças essas palavras, porque


foram as que eu mais ouvi logo que mamãe morreu, e não
importava quantas vezes fossem proferidas, nada ajudaria a
amenizar o que eu estava sentindo. Nada.

— Obrigada — respondo em tom educado.

— Eu também já perdi a minha mãe... fazem alguns anos... —


Sua visão fica turva, presa em pensamentos antigos. — Sinto falta
dela até hoje. Era uma boa mulher, trabalhava na lavoura e ainda
cuidava da casa, marido e filhos. — Me encara. — Não posso dizer
que tudo vai ficar bem, mas posso afirmar que tu irás se acostumar
com a saudade. Com o tempo, vocês duas serão amigas íntimas,
uma acostumada com a presença da outra.

É, eu sei, já somos melhores amigas. Agora só falta a parte do


“tudo vai ficar bem”, porque embora a saudade tenha chegado, o
restante se perdeu em algum lugar; dois anos depois e nada está
bem.

— Bom, deixarei que fique sozinha, pois parece uma menina


que prefere o conforto da solidão ao conforto das palavras de uma
velha desconhecida.
Um fisgada de culpa me assola.

— Eu sinto muito... eu só... — As palavras morrem, não sei o


que dizer, porque tudo o que ela disse é a mais pura verdade.

— Não precisa se preocupar, meu bem, eu também era assim


quando mais jovem, mas hoje sei a verdadeira importância de ter
um ombro amigo... — Solta um suspiro doloroso. — Com os anos,
tu irá entender o que eu estou falando. Fique bem!

Ela se afasta, me dando privacidade para viver e sofrer meu


luto da forma como eu quiser. Fico grata por isso.

Me pergunto se faria alguma diferença se soubéssemos do dia


exato da morte de cada um, se faríamos algo diferente, se
deixaríamos para dar aquele abraço agora ao invés de postergar
para o amanhã. Se aproveitaríamos cada momento como se fosse o
último, porque, mesmo que eles sejam, muitas vezes deixamos de
aproveitá-los.

O luto é um processo lento, corrosivo e doloroso.

Sinto alguém ocupar o espaço vazio do banco ao meu lado, não


fico nada surpresa ao olhar e constatar que é papai.

— Você me achou — falo, sem virar o pescoço em sua direção.

— Não foi uma tarefa difícil.

— Preciso encontrar esconderijos melhores, então.

Papai solta um suspiro profundo. Ele retira da mateira a cuia e a


térmica, enchendo-a logo em seguida.

— Eu amava Maria. Ela foi a mulher da minha vida. Antonella,


podemos viver o luto juntos, tu não precisas sofrer isso sozinha.

Desde que descobri que papai teve alguns casos nesse último
ano, nossa relação tem andado delicada. Por mais que faça dois
anos desde que mamãe morreu, não aceito ainda o fato de ele estar
seguindo em frente, saindo com outras mulheres. Soa como se ele
não a tivesse amado realmente.

Com o meu silêncio, ele retira um pote com rapaduras de


dentro da mateira, depositando-o no banco, entre nós.

— O que é isso? — pergunto, já sentindo a visão embaçar.

— Pensei que seria uma forma de homenageá-la. — Faz um


movimento de dar de ombros.

Apesar de ser paulista, mamãe era viciada em chimarrão, até


mais que meu pai. Mas ela tinha uma forma favorita de desfrutar do
mate quente e amargo: comendo uma rapadura bem doce. Isso sim
era o seu vício e a sua perdição.

Pego um tablete de rapadura, retiro-o da embalagem e dou


uma mordida; o gosto doce do amendoim com açúcar abraça o meu
paladar.

Papai me alcança o chimarrão e, pelos próximos minutos,


ficamos assim, bebendo e comendo da combinação favorita de
mamãe.

— Às vezes parecia que a sua mãe era mais gaúcha do que eu,
e sempre que eu sentia isso, o sentimento de que eu havia
encontrado a mulher da minha vida me dava a sensação de
plenitude. — Gael limpa uma lágrima solitária. — Eu sofri muito com
a morte dela, Antonella, mas não podia demonstrar, tu já estavas
quebrada o suficiente. Precisei ser forte para te reerguer.

No passado, antes de mamãe morrer, éramos uma família


perfeita.

A história dos meus pais me encantava todas as vezes que eles


narravam, não importava quantas fossem. O gaúcho que foi tentar a
vida na grande São Paulo e acabou encontrando, no percurso, o
amor da sua vida.

Meu pai e eu éramos melhores amigos, mas com a morte da


mamãe, nós mudamos; eu mudei. As demonstrações de afeto
pararam de ser frequentes, a distância entre nós dois, mesmo
morando na mesma casa, começou a aumentar, até que eu descobri
suas amantes — eu posso denominá-las assim, pois elas querem
tomar o lugar da minha mãe —, depois disso, hoje parecemos mais
dois desconhecidos do que pai e filha.

— E apesar de tudo, ainda assim encontra amor o suficiente


para espalhar para outras mulheres — retruco, o rancor pinicando a
ponta da minha língua.

Gael funga, limpando mais lágrimas que insistem em descer.

— Eu segui em frente, Antonella, e tu deveria fazer o mesmo.


Sua mãe foi alguns capítulos na história da minha vida, os mais
importantes e mais intensos que eu tive. No entanto, eu ainda tenho
mais história para acrescentar, mais coisas para escrever. Ela
sempre foi e sempre será o amor da minha vida, mas não posso
morrer junto com ela, preciso aproveitar o tempo que ainda me
resta, seja qual for.

Suas palavras são duras, tão duras que tenho vontade de


rebatê-las, mas também são verdadeiras, e uma parte de mim grita
que eu merecia ouvir cada uma delas, por mais que machuquem.

Trinco o maxilar com força, tentando aplacar as fisgadas de


raiva e dor que me dominam.

Eu quero gritar, xingar, falar que não temos esse direito, mas
não posso fazer isso, porque no fundo eu sei que Gael tem razão.
Sei mais ainda que mamãe gostaria que seguíssemos em frente.
Mas como é possível fazer isso quando a morte dói tanto?
— Por favor, querida, estou tentando compreendê-la, ajudá-la,
mas não posso fazer isso sozinho — argumenta em tom baixo,
resoluto.

— Não há nada para ser compreendido aqui. — Minha


deglutição é audível, as pálpebras tremem. — Nunca mais serei a
mesma, pai, espero que entenda isso.

Será que ele não consegue ver o quanto estou quebrada? Por
mais que eu sinta falta de quem eu era antes, ela se perdeu,
sufocou até sucumbir ao luto, indo-se para sempre.

Gael passa uma mão nos cabelos, os olhos fixos na fluidez de


pessoas que percorrem a calçada à frente do banco.

— Sei que nunca mais será a mesma. Acredite, Antonella,


estou mais do que ciente disso. — Vira-se para mim, encarando-me.
— Eu só queria que reagisse, minha filha, nada mais do que isso.

Uma risada estrangulada separa os meus lábios.

Não existe reação para algo que foi perdido há muito tempo. Eu
me perdi em meu processo de luto e não vejo um caminho de volta,
e sinto muito que meu pai não possa ver isso.

— Sei que um dia isso vai mudar... — murmura profeticamente.

Mais lágrimas assolam a minha visão.

Entrego a cuia de chimarrão de volta para ele. Passo a língua


pela minha boca ressecada e as mãos nos cabelos, enquanto
levanto-me do banco, querendo sair daqui o mais rápido possível.

— Eu preciso ir, tenho algumas questões para resolver no


escritório. — Esfrego o indicador no canto do olho, limpando os
resquícios das lágrimas que sobraram.

Gael me observa estoicamente, em silêncio.


— Algum problema no trabalho?

Solto a respiração pelo nariz.

— O novo juiz da Vara Criminal de Guaíba vai assumir o cargo


esta semana, portanto, as coisas estão... Tensas com a nova figura.

Faço parte de um dos maiores escritórios de advocacia


criminalista da região, os Viturinos. Consegui o emprego depois de
ter saído vitoriosa em um júri que gerou repercussão no Estado; não
demorou mais do que alguns dias para que um dos sócios viesse ao
meu encontro oferecer a vaga.

Depois de um tempo no escritório, passei a ganhar respeito;


hoje tenho uma estagiária para chamar de minha e escolho os
casos que quero pegar.

Com os honorários mais o salário fixo, consegui mudar da casa


do meu pai, possuindo meu próprio apartamento no bairro Jardim
Europa, um dos melhores de Porto Alegre.

E assim, com apenas 26 anos de idade, eu consegui conquistar


profissionalmente tudo o que sempre almejei. Todavia, ainda sinto
que falta um pedaço da minha alma; jamais me sinto completa.

— Tudo bem, então. — Gael se levanta e planta um beijo


carinhoso em minha testa. — Até mais tarde, querida.

— Até mais. — Abro um sorriso que não chega aos olhos.

Todos os dias meu pai passa no meu apartamento. Antes da


aposentadoria, ele era professor de história e geografia, hoje, com
todo o tempo livre, é confeiteiro. Meu pai adora fazer bolos e doces
gourmet, levando-me todas as noites algo para experimentar.

O sol quente beija a minha pele conforme o pavimento sob os


meus saltos estala a cada passo dado. Suor brilha em minha testa,
fazendo-me esfregar o dorso da mão para limpar. Hoje é um dia
relativamente quente para o início da primavera.

Nunca me acostumarei com o clima do Sul do País, quente


como se as portas do próprio inferno fossem abertas no verão; frio
como se todas as temperaturas amenas da antártica se
concentrassem aqui no inverno; e totalmente heterogêneo durante o
outono e primavera, os quais são os que eu menos gosto, porque
nunca acerto a roupa adequada para enfrentar o dia.

Destranco o carro através da chave. Entrando no veículo,


aperto o volante com força, criando coragem para assumir mais um
longo dia de trabalho.

— Já é quase fim de semana, Antonella — argumento comigo


mesma, tentando desenfadar meu humor.

Olho meu reflexo no espelho retrovisor e me assusto. Pego a


minha bolsa de cima do banco e refaço novamente toda a
maquiagem, tentando, com insucesso, melhorar minha fisionomia
abalada.

— Ah, dane-se! Não é como se os meus réus se importassem


com uma advogada com a fisionomia surrada — murmuro, ligando o
som no último volume e pisando fundo no acelerador.

— Quem é vivo sempre aparece — brinca Victor, ao ouvir meus


saltos ecoando dentro do seu estabelecimento.

Jogo em cima do balcão os sonhos que meu pai me entregou


mais cedo, alguns de doce de leite e outros de chocolate.
— Trouxe a sobremesa. — Retiro minha bolsa do ombro,
colocando-a ao lado do pacote de comida.

Victor me observa em silêncio, escrutinando o meu rosto com


uma sobrancelha arqueada.

— Qual é o problema, Antonella?

Victor Leivas é meu melhor amigo. Nos conhecemos logo que


eu me mudei para Porto Alegre, há dois anos, e passei a frequentar
o seu bar, o Rock Club. Desde então, somos inseparáveis; ele
consegue ler os meus sentimentos somente com um olhar.

O bar é decorado com um estilo único, trazendo quadros com


imagens clássicas que marcaram época na história do rock,
iluminação intimista e cores marcantes e fortes.

Na parte do palco acontecem os shows. Já o pub é um espaço


diferenciado, com mesa de sinuca, pista de dardos, sofás e um telão
onde passa o show que está rolando no palco. O terceiro ambiente,
que é uma área aberta, proporciona mais conforto para os fumantes.

— Você não lembra que dia é hoje? — Abro o pacote e dou


uma mordida em um dos sonhos, o gosto adocicado do doce de
leite me faz suspirar de satisfação.

Victor escora o braço no balcão, deixando evidente seus


músculos.

Meu doce amigo é um homem atraente e charmoso. Com seus


30 anos, 1,90 de altura, cabelos loiros, olhos castanhos e braços
tatuados, ele é o legítimo bad boy dono de bar e molhador de
calcinhas. Mas, para a minha sorte, ou a do meu coração, estou
imune a ele.

— Faz dois anos que a sua mãe morreu — sussurra, se dando


conta da data.
Victor pega outro sonho da sacola, levando o pão doce inteiro
para a boca, a camiseta preta surrada de mangas curtas
modelando-se aos bíceps com o movimento.

— Sim. E, para melhorar, meu dia no trabalho foi exaustivo e


corriqueiro. Com a droga da chegada do novo juiz, todos estão em
polvorosa. — Reviro os olhos.

Um sorriso sacana repuxa os lábios do Victor, insinuando que


ele sabe de alguma coisa. Arqueio uma sobrancelha de forma
sugestiva.

— O que foi? O que você sabe? — Semicerro os olhos.

Victor pigarreia, limpando a garganta e franzindo o nariz.

— É... hã... nada não. — Corre os dedos pelas mechas loiras e


desgrenhadas, desviando o olhar. — Encontrei um sócio para o bar.
— Muda drasticamente de assunto.

Seguro a ponta do balcão com força, um vinco se criando em


minha testa.

— Como assim? — pergunto, sentindo um nó no estômago.

Victor havia comentado comigo há algumas semanas que,


desde a pandemia do Covid-19, o movimento no bar havia
diminuído radicalmente, mas quando eu inquiri se ele precisava de
alguma ajuda, foi enfático ao ressaltar que estava resolvendo as
coisas – eu só não pensei que o seu “resolver” seria encontrando
um sócio.

— Tu sabes, as coisas não estão fáceis aqui... tive que dar um


jeito, então consegui um sócio. Com o dinheiro da compra da parte
dele, consegui pagar algumas dívidas atrasadas e poderei
finalmente arrumar o encanamento do banheiro feminino.
Fico em silêncio por alguns segundos, absorvendo a notícia,
tentando descobrir o que exatamente eu sinto ao ouvi-la.

— Oh, Victor, se eu soubesse que estava precisando de


dinheiro, poderia ter lhe ajudado. Não é como se eu nadasse na
grana, mas estou prestes a receber uns bons honorários e...

— Ei, ei, Antonella. — Victor segura as minhas mãos por cima


do balcão, dando um leve aperto — Não precisa se preocupar. Eu
conheço o cara que será o meu sócio, estudamos juntos na infância
e adolescência, fomos grandes amigos até ele se mudar de Porto
Alegre, e agora que voltou não poderia pensar em ninguém melhor
do que ele para dividir a administração do meu bar.

Lanço-lhe um olhar enviesado, frustrada por não ter conseguido


ajudá-lo.

Meu melhor amigo me auxiliou quando eu mais precisei. Em um


dia qualquer, quando descobri o bar e comecei a frequentá-lo todas
as noites, a fim de passar o tempo e evitar a solidão do meu
apartamento, Victor me encontrou. Ele viu o luto que eu estava
enfrentando, a angústia e a dor, e então me estendeu a mão,
ajudando-me a sair do buraco. O mínimo que eu esperava era poder
lhe conferir o mesmo de alguma forma.

— Tem certeza?

Um dos cantos dos lábios de Victor se repuxa; seus olhos


desprovidos de preocupação me deixam mais relaxada.

— Sim, tenho certeza. — Ele faz um sinal com as mãos,


enfático. — Agora, preciso que me ajude a organizar esse balcão
antes que a noite comece.

— Tudo bem, senhor mandão.

Pulo do banco no qual eu estava sentada, dando a volta no


balcão, a fim de organizar as taças para agilizar o serviço da nova
bartender. Com a diminuição do público, Victor precisou despedir
alguns empregados, reduzindo a equipe. Dessa forma, comecei a vir
alguns dias da semana para ajudá-lo nas tarefas, em nome da
nossa amizade.

— Como anda a Fernanda? — A voz de Victor soa


despreocupada, mas sei que ele está totalmente interessado na
minha resposta.

— Cuidando daquele bando de crianças que ela adora, como


sempre. — Reviro os olhos.

Fernanda é a minha melhor amiga de infância. Nós crescemos


juntas; nossas famílias eram vizinhas. Todas as vezes que eu vinha
para o Rio Grande do Sul visitar meus avós, brincávamos, o que
culminou para que criássemos um vínculo forte. Mesmo quando eu
retornava à São Paulo, mantínhamos contato; ela até foi me visitar
algumas vezes, bem como esteve presente no velório de minha mãe
e passou suas férias me fazendo companhia e me ajudando com a
mudança.

Diferente de mim, minha amiga ama crianças, por isso optou


por ser professora de turmas iniciais – ela trabalha em uma escola
particular e vive para isso.

Não que eu não goste de crianças, eu só não levo o menor jeito


com elas. E depois de passar algumas horas com os meus primos,
descobri que também vivo melhor longe delas e elas de mim.

A risada de Victor me tira dos devaneios.

— Sempre tão amável.

Paro de organizar os copos e me viro para ele, mostrando a


língua em um gesto nada maduro.

— Se você quer saber tanto da Fernanda, por qual motivo não


liga para ela? — Abro um sorriso de escárnio.
Victor revira os olhos, fazendo um movimento de dar de
ombros.

— Sua amiga é muito complicada, e eu não gosto de mulheres


complicadas.

Rio com sarcasmo.

— Ah, claro. Esqueci que as mulheres que você deseja e sente


atração e não retribuem a isso são classificadas na sua lista como
“complicadas”. — Faço aspas com os dedos.

Victor e Fernanda tiveram um lance há algumas semanas;


depois de muito tempo, consegui arrastar a senhorita certinha até o
bar. Eles se conheceram, trocaram alguns beijos, Fernanda
percebeu que Victor era furada, pulou fora e o meu querido amigo
não aceitou muito bem o fato de ter sido rejeitado.

— Exato, querida! — Ele beija a minha cabeça ao passar por


mim.

Ignorando-o, e suas suposições sobre Fernanda, volto a


organizar os copos, tarefa mais do que necessária, pois em menos
de meia hora o bar abrirá ao público – e Victor não precisa
acrescentar um péssimo atendimento à sua lista de problemas.
Com as mãos na cintura, analiso todo o cartório, vislumbrando
o que eu mudarei a partir de agora. O local parece um labirinto
desorganizado.

As estantes surradas de madeira, abarrotadas com processos


de capa rosa, rangem conforme caminho próximo a elas. As mesas
dos funcionários não parecem mais organizadas, com pilhas e mais
pilhas de papéis espalhados, limitando-os à um pequeno espaço
para o labor.

Não vejo como é possível que eles possam encontrar um único


processo no meio desse caos. Mas isso não me surpreende – faz
pouco mais do que alguns meses que o juiz responsável pela vara
conseguiu ser remanejado para Porto Alegre, sendo assim, já era de
se esperar por isso.

— O que tu acha? — pergunto para Arthur, meu assessor e


braço direito.
— Acho que teremos muito, muito trabalho. — Passa uma mão
na cabeça despojada de cabelos, nervoso.

Eu compreendo a aflição de Arthur: antes de virmos para


Guaíba para assumir a comarca intermediária e a vara criminal,
trabalhávamos em uma comarca inicial, na cidade de Três Coroas,
em uma vara judicial. Agora, com a mudança, o trabalho triplicou.

Com o cenho franzido, Arthur faz a volta em uma das mesas,


curvando-se para ler a folha em cima da pilha de papeis, agarrando-
a e virando para mim em seguida.

— Isso é para fazer juntada, Henrique. — Os olhos castanhos


estão arregalados em preocupação. Girando o pescoço para avistar
ao redor, continua: — E tem essas pilhas em absolutamente todas
as mesas, o que só pode significar que a juntada está com meses
de atraso.

Colocando o papel no lugar, Arthur esfrega o rosto, soltando um


suspiro profundo.

— Era de se esperar, ficou mais de mês sem um juiz. — Dou de


ombros.

O juiz da Vara Cível assumiu alguns casos mais urgentes, mas


não foi o suficiente para manter tudo em ordem até a minha
chegada.

Arthur desfaz o nó da gravata, arrancando-a do pescoço em


seguida, nervoso.

— E agora? Tu vais fazer alguma reunião amanhã antes das


audiências ou vai deixar assim por enquanto?

Fico feliz por ter decidido vir analisar o cartório muito depois do
horário de expediente; imagino que se fizesse isso com todos os
funcionários dentro, Arthur teria um colapso nervoso, afinal, menos
espaço = mais caos.
Olho mais uma vez para o cartório, repuxando meus lábios até
torná-los uma linha fina, franzindo o nariz.

— Acho que precisamos de uma reunião o quanto antes. Quero


ir para Porto Alegre o mais rápido possível, e só conseguirei isso se
mantiver a corregedoria longe de mim.

Eu deveria ter vindo alguns dias atrás, ter me apresentado, ter


estudado melhor a situação para que assim pudesse ditar as novas
regras e tentar colocar o máximo de prazos em dia, mas não obtive
tempo. E agora é tarde, porque amanhã eu já começarei a presidir
audiências, assumindo de vez essa bagunça.

— Tu tens razão, mas sabe que assumimos uma bomba, não?


— Arthur me lança um olhar enviesado.

Abro um sorriso e coloco uma mão em seu ombro.

— Vamos conseguir — falo, com um otimismo em meu tom de


voz que não condiz com os meus pensamentos.

— Deveríamos ter vindo na semana passada... — declara.

Solto um suspiro.

Eu venho evitando Porto Alegre desde que Antônio morreu.


Depois da sua partida, foquei ainda mais em estudar para o
concurso, mantendo-me longe de quaisquer distrações, e quando a
aprovação veio e eu tive a oportunidade de escolher a Comarca, já
que fui um dos primeiros colocados, priorizei a minha saúde mental;
à vista disso, escolhi uma cidade pequena na serra gaúcha, longe o
suficiente da capital e, consequentemente, dos meus pais.

Há alguns meses recebi uma notificação de que, em breve, o


juiz da Vara Criminal de Guaíba estaria sendo remanejado para uma
comarca final, a fim de se aposentar. Era o que eu desejava quando
prestei o concurso, mas voltar depois de tanto tempo parecia
aterrorizador – ainda assim, eu fiz uma promessa a Antônio e
preciso cumpri-la.

Prometi que me tornaria juiz, ou tentaria, e fiz exatamente isso,


e ele tinha toda a razão quanto a profissão; hoje, eu simplesmente
amo o que eu faço. Embora eu ainda deva cumprir a outra
promessa, a que eu fiz em seu leito de morte, a de ser tão bom
quanto ele, de lhe dar orgulho, deste modo, minha meta é ir para
Porto Alegre e assumir uma Vara tão importante quanto a que ele
assumiu. E agora estou mais perto do que nunca de cumprir o meu
propósito.

Não contei a Charlotte que estava voltando, assim como vim


para Porto Alegre no último minuto, com o prazo esgotando, para
evitá-la. E, com sorte, logo que comecei a procurar apartamentos na
capital, um bom imóvel vagou no Bairro Jardim Europa; mesmo com
o meu temor, tudo culminou para essa mudança.

— Vamos? Amanhã precisaremos estar cedo aqui. — Arthur me


tira das divagações.

Encaro o meu assessor, a camisa azul contrasta com a sua


pele negra, os olhos cansados expõem sua preocupação com o
novo emprego, há um esgar em seus lábios cheios.

Arthur foi um colega de faculdade e um ombro amigo no


momento mais difícil da minha vida. Quando passei no concurso e
tive a oportunidade de nomear qualquer pessoa da minha confiança
para ser meu assessor, não poderia ter escolhido outro melhor, além
dele. Ele e sua namorada, Camila, também optaram por fixar
moradia em Porto Alegre.

— Camila já encontrou um lugar para abrir seu consultório? —


pergunto, apagando as luzes e trancando a porta do cartório.

— Ainda não, mas logo ela encontrará algo dentro do nosso


orçamento.
Camila é dentista. Ela e Arthur se conheceram logo que nos
mudamos para Três Coroas; os dois se apaixonaram imediatamente
e não demorou mais do que poucas semanas para assumirem um
compromisso.

Com a minha mudança de cidade e, consequentemente, a de


Arthur, ela decidiu vir junto, e agora está procurando um local para
abrir um novo consultório.

Eles poderiam ter optado por ficar em Guaíba, mas tanto Arthur
quanto Camila sabem que, assim que possível, irei pedir remoção
para Porto Alegre. Além do mais, as cidades ficam a cerca de trinta
minutos uma da outra, e Camila não quis arriscar abrir um novo
consultório e fixar pacientes para depois passar por toda uma
mudança novamente.

A lua alta no céu reflete através das janelas do corredor,


iluminando em alguns pontos específicos as paredes rugosas
tingidas em um amarelo desbotado. O local estaria em completo
silêncio se não fosse pelo barulho do rádio de um dos guardas
noturnos.

Durante o dia, pessoas correm por esses corredores em busca


de justiça, mas durante o período noturno, o Foro não passa de um
prédio antigo e esquecido.

— Imagino que ela esteja estranhando a mudança. — Empurro


a porta dos fundos, rumando para o estacionamento, sentindo o
vento gélido da primavera bater contra a pele fina do meu rosto.

— Ela já sente falta da mãe, mas Camila sempre quis vir


embora para Porto Alegre, tenho certeza de que mais cedo do que
espera, irá se acostumar.

Arthur, assim como eu, sempre morou em Porto Alegre,


mudando-se somente quando eu lhe ofereci o emprego. Somos
acostumados com toda a balburdia da cidade grande, mas Camila
passou a vida inteira vivendo no interior, em uma cidade com pouco
mais de vinte mil habitantes.

— De fato — respondo, esfregando as mãos contra os braços


para espantar o frio.

Eu odeio esse clima amalgamado de primavera, cálido durante


o dia e álgido durante a noite.

Destranco o carro e entro no veículo quente e aconchegante.

— E o teu amigo do bar? Tu realmente viraste sócio daquele


lugar? — Arthur se senta no banco do carona e coloca o cinto de
segurança.

— Sim, é um bom negócio. — Dou de ombros, ligando o carro.

Quando Antônio morreu, ele deixou um testamento me


declarando como o seu único herdeiro, me surpreendendo. Por
incrível que pareça, meu irmão conseguiu acumular uma pequena
fortuna com seu custo de vida padrão. Com o seu dinheiro, mais o
meu salário, consigo viver bem e isso inclui me tornar sócio do
negócio de um amigo que precisava de ajuda.

Victor Leivas e eu nos criamos juntos, dois herdeiros de famílias


complicadas. Ele, assim que alcançou a maioridade, mandou os
pais para o inferno e foi assumir a própria vida, abrindo o seu
negócio, o qual fez sucesso por muitos anos, até a pandemia do
Covid-19. Quando fui embora, perdemos o contato, mas assim que
retornei, há alguns dias, fui atrás de Victor e descobri que ele estava
quase fechando as portas, eu não poderia fazer nada diferente, a
não ser ajudá-lo.

O bar também será um refúgio, o qual me manterá ocupado,


longe dos meus pais, agora que eu voltei a residir tão perto de novo.
Nesses últimos três anos, eu tentei ao máximo evitá-los, nossa
convivência se resumiu a alguns natais e aniversários.
Já o renomado Juiz Antônio Zion jamais pediu desculpas por ter
dito em alto e bom tom que preferiria que eu tivesse morrido ao
invés do outro filho, embora tenha sido inteligente o suficiente para
não ter rebatido tudo o que cuspi sobre ele ao final da nossa
discussão. Desde então, eu e meu “querido” pai nos limitamos a
meros cumprimentos.

— Se forem fazer alguma reinauguração, me avisa. Convidarei


Camila.

Sinto minha testa franzir com a sugestão de Arthur, afinal, uma


reinauguração chamaria clientes, e agora que o meu dinheiro foi
investido no bar, o mínimo que espero é algum retorno.

O bar é um local incrível, Victor foi genial ao criar toda a


idealização do lugar. Além de ser um bar de rock, é também o ponto
de encontro de motoqueiros, ou seja, não há somente um único
público-alvo. Tenho certeza de que se não fosse a pandemia, o
lugar estaria bombando... Bem, nada nos impede de tentar chamar
as pessoas de volta e, consequentemente, atingir outras tantas,
tornando o bar uma opção para os amantes da algazarra.

— Pode deixar — aquiesço, perdido em pensamentos.

Arthur acabou de me oferecer uma ideia genial, talvez a chave


para o sucesso do meu novo negócio.

Assim que chegar em casa, enviarei uma mensagem para


Victor com a sugestão.

ANTONELLA CAREGNATO
Eu amo as sextas-feiras, são os meus dias favoritos da
semana, mas odeio quando elas são atulhadas em compromissos,
como a de hoje.

Para começar, meu pai estranhamente me intimou para o café


da manhã. Depois desse compromisso inadiável – segundo Gael –
tenho que passar no escritório e ir para Guaíba conduzir uma
audiência de tráfico de drogas.

E, para finalizar, Victor e seu sócio misterioso resolveram fazer


um evento de reinauguração do bar, em homenagem ao homem,
portanto, preciso auxiliá-lo.

Termino de contornar a minha boca com um batom vermelho


vívido; embora eu esteja parcialmente atrasada, é indispensável
exercer essa tarefa com calma.

Hoje eu irei conhecer o novo juiz e preciso passar uma boa


primeira impressão, afinal, manteremos contato quase que
semanalmente. Nosso escritório possui uma grande demanda de
processos em Guaíba; por pelo menos uma vez por semana eu vou
até a comarca retirar ou devolver processos em carga ou participar
de alguma audiência.

Fecho o batom, depositando-o de volta na bancada da pia. Olho


meu reflexo no espelho do banheiro: estou com os cabelos
castanhos soltos, as pontas chegam até a metade das costas. Meus
olhos, da mesma cor das madeixas, estão pintados e os cílios
repuxados em uma maquiagem que ocasionalmente faço. No corpo,
um vestido midi preto com decote coração e sapatos de salto alto.

— É hora de correr — murmuro, falando sozinha.

Com precisão, coloco as chaves do carro dentro da bolsa de


ombro, os saltos ecoando contra o piso laminado conforme eu
caminho.
Ao sair do apartamento, vejo dona Celene, a vizinha fofoqueira.
Ela é tão adepta a este estilo de vida que o sofá da sua sala fica ao
lado da porta, para que assim ela possa mantê-la aberta enquanto
finge estar descontraída assistindo televisão, quando na verdade só
está cuidando da vida de todo mundo.

— Bom dia, dona Celene. — Abro um sorriso educado.

A senhora de idade avançada, cabelos tingidos em castanho e


roupa floral me olha da cabeça aos pés, me examinando.

— Está bonita hoje, Antonella, aonde vai? — Embora tente


parecer despreocupada, a curiosidade palpável em sua voz a
delata.

Sinto vontade de rir com seu comportamento evasivo, mas me


contenho, pois, graças a Deus, dona Celene gosta de mim, o que
significa que não fica fazendo intriga ao meu respeito com os
vizinhos nas minhas costas.

— Ah, tenho algumas audiências — falo a verdade, terminando


de chavear a minha porta.

— Hum... tu viu que teremos um vizinho novo? — Lança um


olhar para a porta entreaberta ao lado da minha.

Vejo muitas caixas no corredor e alguns homens organizando


tudo para dentro do apartamento.

— Não havia percebido. A senhora sabe quem é? — Apesar de


não me importar nem um pouco, acrescento a pergunta com a
finalidade de lhe bajular, pois não há nada que dona Celene goste
mais nas pessoas do que fazer fofoca.

— Ainda não descobri, mas até amanhã eu consigo uma


resposta. — Pisca um olho e abre um sorriso cúmplice.
— Ficarei aguardando ansiosamente — respondo ao seu
sorriso, encaminhando-me para o elevador e apertando o botão com
força exagerada.

Olho a hora em meu relógio de pulso e começo a ficar nervosa.


Eu deveria cancelar o desjejum com o meu pai, contudo, ele
pareceu se importar tanto com a minha presença durante a ligação,
que eu não consegui dizer não.

O elevador chega, para o meu deleite.

— Até mais, dona Celene — despeço-me, mas a senhora está


concentrada demais na conversa do vizinho do apartamento ao lado
para me responder.

Entro no meu carro e acelero, extrapolando, vergonhosamente,


alguns sinais vermelhos. Mudo a rota no GPS, escolhendo evitar as
avenidas movimentadas nesse horário de pico. Em pouco menos de
vinte minutos chego ao meu destino.

Faço uma prece silenciosa ao encontrar uma vaga de


estacionamento em frente ao prédio. Desço do carro correndo, na
medida que os meus saltos permitem.

Seu Carlos, o porteiro educado e gentil, me aguarda com a


porta do elevador aberta. Ele acompanha toda a movimentação
pelas câmeras através da tela de seu computador; muito prestativo,
o homem sempre trata de solicitar a caixa metálica para agilizar as
coisas.

— Bom dia, Antonella! Como vai? — Seu sorriso é afetuoso.

— Bom dia, Seu Carlos! Estou ótima, e você?

— Estou muito bem, obrigado por perguntar. — Entro no


elevador e seu Carlos começa a fechar a porta. — Tenha um bom
dia!
— Igualmente.

Encaro novamente os ponteiros do relógio, questionando-me se


conseguirei engolir alguma coisa durante o café.

Não toco a campainha do apartamento de Gael; abro a porta


com as minhas chaves e entro, apressada.

— Pai, cheguei! — grito, jogando a bolsa em cima do sofá.

— Na cozinha, querida!

Sinto um cheiro delicioso de lavanda impregnado no ar,


examino o apartamento, prescrutando o local: a casa está limpa e
organizada, como sempre. Meu pai é um homem caprichoso,
prezando muito pela higienização do ambiente. No entanto, hoje
parece diferente; há um toque de algo que ainda não consigo
identificar, como se outra pessoa tivesse passado por aqui e dado
um tato único.

Entro na cozinho e encontro-o de costas, fritando bolinhos. Com


uma mão, ele segura a espátula, e com a outra, mexe na ponta do
guardanapo que está escorado em seu ombro.

— Nós precisamos ser rápidos, eu tenho audiência essa manhã


e... — Minhas palavras morrem ao notar que não estamos sozinhos.

Encaro a mulher com os olhos arregalados. Automaticamente,


minhas pernas param de funcionar, fracas demais para elaborar os
movimentos e até mesmo me sustentar de pé.

Meu pai se vira, percebendo o silêncio súbito.

— Bom dia, querida! Esta é Mikaela — apresenta a mulher,


encaminhando-se para a mesa para depositar uma vasilha com os
bolos recém-fritos.
Engulo em seco, forçando meu corpo a sair do estupor no qual
se encontra, mente e coração duelando. Razão e emoção.

Inspiro uma grande lufada de ar, acalmando-me. Não posso


surtar, afinal, ela pode ser somente uma amiga, nada além disso.

A mulher negra de cabelos crespos em um tom azeviche, olhos


castanhos, altura mediana, magra e bonita dá um passo à frente,
contida e um pouco receosa. Ela usa roupas de academia, as quais
se ajustam as curvas de seus quadris e peito. Há uma leveza em
sua face, sobre a inclinação de suas bochechas e o formato de suas
sobrancelhas, dando-lhe um ar de afabilidade.

— Olá, Antonella, é um prazer finalmente conhecê-la. — Sua


voz é suave, flutuando até mim. — Seu pai fala muito de ti. —
Mikaela estende uma mão em cumprimento, um sorriso solícito no
rosto.

Passo a língua nos lábios ressecados, umedecendo-os. Sinto


que estou prestes a ter um colapso nervoso; esfrego as palmas no
tecido do vestido, limpando o suor que as cobria.

— O prazer é meu. — Aperto sua mão com um sorriso que não


chega aos olhos.

Papai pigarreia, soltando a espátula na pia.

— Bem, vamos tomar o café da manhã. Não queremos te


atrapalhar. — Seca as mãos no guardanapo.

Queremos? Ele está falando dele e da mulher no plural? Para


com isso, Antonella! É só uma amiga, é só a droga de uma amiga.
Entoo mentalmente, acalmando os meus nervos aguçados.

Sento-me à mesa e travo a mandíbula, tentando não deixar


escapar nenhum sinal de desconforto ao perceber que Mikaela se
sentou no lugar que pertencia a mamãe, ao lado direito de Gael.
É só uma amiga... continuo o meu mantra, mantendo cada
mísero movimento calculado, retido, tenso.

Sem falar nada, me sirvo de uma pequena fatia de pão e um


pouco de café preto.

— Prove esse aqui, querida. É de canela, fiz especialmente


para você. — Gael me entrega uma cesta com bolinhos, os mesmos
que estava fritando há alguns minutos.

— Obrigada.

Mastigo o bolinho, sem experimentar de fato o seu gosto, ainda


sentindo meu estômago embrulhado por essa situação atípica na
qual estamos.

— Então, Antonella, tu advoga, não? — pergunta Mikaela,


claramente tentando puxar um assunto qualquer.

— Sim.

— Em qual área?

— Sou advogada criminalista.

— Oh, não é uma profissão arriscada? — Pelo vinco em sua


testa e a forma profunda como me encara, Mikaela parece
realmente interessada em descobrir mais sobre a minha vida.

— Todas as profissões são, em tese. A partir do momento em


que está sujeito a sair de casa para trabalhar, já é um risco que
corre. — Dou de ombros.

— Tem razão. — Sorri, segurando a xícara de café fumegante


com as mãos em frente a boca. — Mas sei também que é o orgulho
do Gael, ele me contou tudo o que já fez com pouco tempo de
profissão.

— Contou, é? — Lanço um olhar de esguelha para o meu pai.


— Sim. Ele é um pai babão e orgulhoso. — Amplia o sorriso, o
olhar intercalando entre Gael e eu.

— Ah, querida, Antonella sabe o quanto eu amo me vangloriar


pela filha maravilhosa que tenho.

Paro abruptamente de me mexer, estatelada com a xícara na


metade do caminho até a boca.

Querida? Querida?

O ambiente muda, o ar parece tenso, exíguo.

Gael limpa a garganta, parecendo cauteloso e meio retraído


com o silêncio mortal que se instalou. Ele pousa delicadamente a
xícara de café na mesa, cada movimento com uma lentidão
extrema, calculada.

— Antonella, tenho algo para lhe contar.

Balanço a cabeça com veemência, sentindo meu coração


acelerar, as batidas errando conforme eu espero para ouvir o que o
meu instinto grita desde o momento que cheguei aqui.

— Mikaela e eu nos conhecemos há algumas semanas, em


umas das suas aulas de Yoga. — Sinto a minha testa franzir, Gael
dá de ombros. — Sim, comecei a praticar Yoga para tentar aplacar
as minhas dores nas costas, mas isso não é sobre minhas aulas. —
Uma pausa, uma maldita pausa enquanto tenho uma síncope. —
Com o tempo, Mikaela e eu descobrimos que temos muitas coisas
em comum. Tudo começou com conversas amistosas, nada além de
um interesse mútuo em uma amizade sincera, mas com o passar do
tempo as coisas começaram a mudar, a fluir, andando para uma
zona perigosa e adormecida por muitos e muitos anos.

— É o quê? — Aos meus ouvidos, estou gritando, mas sei que


minha voz não passa de um suspiro bramindo passagem por cordas
vocais adormecidas.
— Depois de muita negação, tivemos que aceitar o óbvio. Em
algum momento da amizade, acabamos nos apaixonando, e não
havia mais nada para ser feito, se não aceitar o fato. — Gael
estende o braço por cima da mesa e segura a mão de Mikaela, com
o gesto, posso ver uma aliança prata reluzindo em seu dedo anelar
da mão direita. — Estamos namorando.

Ofego, aturdida, sem enxergar mais nada à minha frente.

— Querida, eu sei que ainda é difícil para você, mas como eu


havia dito, a vida continua — argumenta meu pai.

Eu o encaro, apática, a mente distante, abalada demais para


contra-argumentar.

Ele está querendo encontrar uma desculpa para essa sua


atitude miserável? Isso é imperdoável! Nem nos meus piores
pesadelos pensei que ele seria capaz de fazer algo assim comigo,
com mamãe.

Ontem estávamos chorando no banco da redenção os dois


anos da morte dela, lamentando-nos pela sua perda precoce. E hoje
aqui está ele, me apresentando uma nova namorada.

Quão egocêntrico ele está sendo? Além de uma péssima


pessoa, um pai pior ainda.

Empurro a mesa com força, fazendo a louça chacoalhar e a


cadeira oscilar. O ar no apartamento se tornando rarefeito,
dificultando a minha respiração. A notícia me afeta tanto, que sinto o
gosto da bile na boca, o estômago embrulhado ameaçando despejar
o café da manhã. Estou errática, as mãos frias e trêmulas.

Eu preciso sair daqui!

Sem falar nada, tento correr para fora da sala, mas meu pai
segura meu pulso com força, mantendo-me no lugar. Não vi o
momento em que ele também levantou da mesa, assim como não
percebi o barulho das suas pegadas.

— Antonella, por favor, tu precisas entender, precisa sair desse


luto.

Puxo meu braço, sentindo seu toque queimar a minha pele, o


gosto amargo da traição em minha língua aumentando a ânsia de
vomito a cada deglutição.

— Eu não vou aceitar isso, jamais! — Minha voz sai baixa,


falhando pela emoção.

A raiva e o rancor se infiltram na tristeza que estou sentindo, se


destacando, dominando a turbulência de sentimentos.

— Meu amor, eu estou feliz, será que tu não podes se sentir


assim também por mim?

Balanço a cabeça em negativa, abalada demais para articular


qualquer frase coerente.

— Por favor — suplica meu pai.

Sigo negando, sem poder aceitar que ele coloque outra mulher
no lugar da minha mãe.

Não! Isso não pode acontecer! Ele a traiu. Ele nos traiu.

Embora eu esteja dominada pelo ódio, sei que se eu parasse


para responder a sua súplica, para falar qualquer coisa, a mágoa
entre nós tomaria proporções inimagináveis, talvez jamais
absorvidas, e é justamente por isso que me mantenho silente.

Limpando uma lágrima solitária, corro para fora do apartamento


novamente e, dessa vez, ninguém me impede.
Mais calma, paro o carro em frente ao escritório, somente por
tempo suficiente para que Brenda, a minha estagiária, possa entrar
no veículo, arrancando-o com pressa, em seguida.

— Estamos atrasadas — fala com certo desespero enquanto


coloca o cinto de segurança.

— Eu sei. — Não olho em sua direção para responder, continuo


com minha atenção fixa nas ruas à nossa frente.

Ainda não posso acreditar que meu pai pôde me trair de tal
forma. Ele pensava o quê? Que me convidaria para um café da
manhã, faria meus bolinhos favoritos, assumiria o novo
relacionamento, eu sairia batendo palmas e seríamos, daquele
momento em diante, uma família feliz para sempre? A notícia doeria
de qualquer forma, mas eu preferiria muito mais que ele tivesse me
contado antes, me preparado e respeitado a minha decisão de não
querer conhecer a tal Mikaela.
— Quer que eu vá lendo os principais ritos processuais até
agora? — Brenda me tira das divagações.

Paro o carro no sinal vermelho, olhando pela primeira vez


nessa manhã para Brenda. A jovem de cabelos loiros e compridos,
olhos verdes e sorriso sincero, me encara com a testa franzida.

— Eu estudei um pouco ontem à noite, acredito que não será


preciso.

Brenda é uma boa estagiária. Ela é dedicada e solícita. Está no


terceiro semestre da faculdade de direito, mas já é considerada uma
menina prodígio, pois a avaliação para ingressar no estágio do
escritório é concorrida e ela conseguiu ultrapassar pessoas que
estavam em semestres bem mais avançados.

— Tudo bem.

Ligo a seta para à esquerda, tentando ignorar o turbilhão de


emoções que me assola. Respiro fundo, sentindo as primeiras
fisgadas na lateral da cabeça, ciente do que estou prestes a
enfrentar ao longo do dia.

— Tu parece cansada, um pouco abatida — fala, depois de um


tempo em silêncio.

Solto um suspiro audível, acelerando o carro para pegar o sinal


verde e não me atrasar ainda mais para audiência que, a essa hora,
já deveria ter começado.

— Não dormi bem — minto.

Brenda não insiste mais no assunto, dando-me o espaço


necessário.

Não consigo tirar da cabeça todo o abalo do que essa, que


deveria ser uma fatídica manhã comum, significou... droga! Eu
preciso me concentrar, terei uma audiência importante em alguns
minutos.

Ligo o som do carro, deixando uma música baixa ocupar a


minha mente perturbada.

— A audiência deveria ter começado há dois minutos. —


Brenda bate a caneta que carrega para as anotações na perna,
nervosa.

Dando um pequeno tapa na direção pela irritação de estar


sendo incompetente no trabalho pelo egoísta do meu pai, ligo,
através do carro, para o Foro, diretamente para o escrivão da Vara
Criminal.

A BR que liga Porto Alegre à Guaíba está pouco movimentada


nesse horário, o que me deixa levemente agradecida. Ignoro os
sons de buzinas externas ou a probabilidade de haver sensores de
velocidade enquanto empurro o acelerador com aspereza.

— Dansper — atende.

— Bom dia! Aqui é Antonella Caregnato, advogada do réu da


próxima audiência. Preciso de alguns minutos de carência, pois
fiquei presa no trânsito. O senhor poderia avisar? — Acelero ainda
mais o veículo, pouco me importando com as multas, sem tirar os
olhos da estrada.

— Hum... avisarei ao doutor Zion — responde em tom


indiferente, encerrando a chamada.

Eu nunca gostei desse homem. Diferente de outros servidores


do cartório, Dansper não faz questão nenhuma de ser prestativo
com os advogados, tratando-nos, na maioria das vezes, com
indiferença e até mesmo certa rispidez.

— Isso que é ser solícito — zombo, fazendo Brenda rir.


Entro em Guaíba cortando alguns sinais vermelhos e levando
xingamentos bem pouco graciosos de outros motoristas, mesmo
assim, mantenho o ritmo acelerado.

Dez minutos. Pela primeira vez na minha carreira, me atrasei


para uma audiência. E não para uma audiência qualquer, pois tinha
que ser justamente a do Marcos, um dos maiores traficantes da
região.

Estaciono o carro em frente ao Foro e desço desajeitadamente,


com pressa. Brenda corre ao meu lado, tentando acompanhar meus
passos acelerados, caminhando em sincronia comigo.

— Precisa de alguma coisa? Estou com muitos papeis aqui...

— Não, eu só preciso entrar de uma vez — respondo em tom


seco, embora polido.

Jogo a bolsa para o guarda revistar e passo pelo detector de


metais, agilizando a passagem. Mal espero que me entregue de
volta para começar a subir as escadas em direção à sala de
audiência; sei que Brenda vem logo atrás, pois posso ouvir o
barulho dos seus sapatos.

— Você entra comigo — aviso, sem olhar em sua direção.

— Certo — aquiesce, ofegante pela correria.

Pela visão periférica, noto o corredor cheio de pessoas,


algumas aguardando próximas das Varas Criminais e outras das
Varas Cíveis, mas me abstenho de observá-las, estou desesperada
demais para isso.

— Doutora Antonella. — Uma voz masculina ecoa no corredor


ao nosso lado.

Paro abruptamente de andar, reconhecendo a quem a voz


pertence, olho para o lado e vejo dois agentes penitenciários
conduzindo o meu cliente algemado.  

Com a testa franzida, me aproximo deles.

— Marcos? A Audiência ainda não aconteceu?

O homem jovem, de cabelos castanhos encaracolados, olhos


azuis, magro e alto, me encara com as sobrancelhas arqueadas.

— Já, doutora — responde em tom calmo, dando de ombros. —


O doutor nomeou a defensoria.

O misto de vozes ao fundo, dos demais presentes, cessa como


em um passe de mágica, a irritação zunindo em cada um dos meus
poros. Travo a mandíbula e cerro os punhos com força, sem
acreditar no que eu acabei de ouvir.

— Como é? — pergunto entredentes, com a esperança de ter


ouvido errado.

— O doutor nomeou a defensoria pública por causa da sua


ausência.

Inspira. Expira. Inspira. Expira.

Ausência é o caralho! Aqui estou eu. Dez minutos atrasada?


Sim. Mas eu avisei dessa porra!

Deus! Terei uma síncope nervosa antes que o dia termine.

Com uma calma que não faz parte de mim, abro um sorriso
educado para Marcos, ignorando os olhares curiosos dos demais,
bem como os sorrisos debochados dos agentes penitenciários.

— Marcos, irei até o presídio para conversarmos assim que eu


resolver a situação, mas não se preocupe, vou dirimir o problema.
— Dito isso, saio batendo meus saltos com força, marchando para a
sala de audiência.
Não posso acreditar que esse infeliz desse juiz não me deu a
carência solicitada, sabendo o trânsito caótico que enfrentamos
entre uma cidade e outra. O antigo juiz sempre foi solícito com este
tipo de situação, pois residia em Porto Alegre e precisava fazer o
mesmo percurso que eu, assim como muitos outros advogados,
para estar aqui no horário marcado.

Paro em frente a porta envernizada, posso ouvir através da


madeira as vozes de quem está dentro do cômodo. Não faço uma
pausa demorada para pensar no que estou prestes a fazer ou nas
consequências que este ato pode trazer; inspirando fundo uma
lufada de ar, como uma injeção de coragem e adrenalina, bato na
porta antes de abri-la bruscamente.

— Mas o que é isso? — A voz masculina grave e insípida


ressoa pela sala, flutuando até mim e acertando-me com presteza.

Por um segundo, um mísero que fosse, sinto meu passo


seguinte oscilar pela forma como o timbre da voz me atinge, mas
me mantenho firme, ignorando os efeitos colaterais.

Ao olhar para o homem sentado na mesa ao centro, minhas


pernas param abruptamente.

O novo juiz não parece ter muito mais do que trinta anos. Os
cabelos castanhos lisos e revoltos lhe dão um ar despojado, mesmo
que esteja vestindo um terno caro e impecável. Os olhos verdes são
frios, tão frívolos quanto o inverno do Sul do País, ainda que sejam
intensos. A mandíbula quadrada com barba por fazer, a boca
carnuda e rosada, os cílios longos e invejáveis e os músculos
evidentes na camisa branca, complementam o pacote.

O homem me encara com raiva e desprezo, mas não consigo


desviar o olhar, é magnetismo puro.

Ele é lindo, talvez um dos homens mais bonitos que eu já


contemplei. Há algo misterioso na forma como se porta, uma áurea
de abismo ao seu redor que deixa tudo mais... airoso.

Um pouco abalada com a sua presença e as sensações de tê-la


tão próxima, empino o nariz, me preparando para a briga.

— Vou perguntar só mais uma vez. O que está acontecendo


aqui? — pergunta, se levantando de modo gracioso, cada
movimento cheio de uma agilidade única.

Mordo a boca, sentindo minhas palmas empapadas de suor.

Ao apoiar as mãos sobre a mesa, os músculos do antebraço


ficam ainda mais em evidência, assim como as veias que sobem do
pulso ao cotovelo.

Engulo em seco, encarando-o com a respiração acelerada, à


essa altura, com a pulsação bem além da zona anaeróbica. Mas
permaneço firme, ignorando os efeitos da adrenalina que correm
pelas minhas veias.

HENRIQUE ZION

Primeiro dia que eu assumo a vara e uma advogada já resolveu


se atrasar. Não sei como o antigo juiz era com relação a isso, mas
eu sou extremamente pontual e intolerante, salvo algumas poucas
exceções.

— Pode mandar chamar os próximos — aviso Lucas, um dos


meus estagiários.

Encho minha cuia de chimarrão e bebo alguns goles, enquanto


risco a audiência anterior da minha lista.
A reunião que tive com os funcionários do cartório pouco antes
das audiências começarem foi esclarecedora e um pouco
aterradora. Como Arthur havia previsto, teremos um árduo trabalho
para colocar o cartório em dia, antes que a corregedoria comece a
sinalizar tudo o que está em atraso e me impeça de ser remanejado
o mais brevemente possível para Poro Alegre. Deixei Arthur
estudando uma solução para o nosso problema, antes de vir presidir
as audiências. Com sorte, meu assessor encontrará a fórmula para
isso com agilidade.

— Hoje o dia será longo — murmura Mariana, a Promotora de


Justiça, espreguiçando-se em sua cadeira.

— Sim, será. — Massageio as têmporas com o indicador e o


polegar, tentando diminuir a leve pressão na cabeça.

Lucas volta para a sala conduzindo as partes. A mulher, vítima


da Maria da Penha, e o homem, o acusado das agressões.

— Bom dia! — cumprimento, folheando o processo para me


inteirar mais no caso.

Estou prestes a começar a audiência quando alguém bate à


porta, abrindo-a com certa brusquidão em seguida.

Só o que me faltava!

— Mas o que é isso? — grito com firmeza, irritado demais para


conter o meu tom de voz.

Meus olhos vagam até o local, encontrando uma jovem tenaz, e


eu sinto meu coração errar algumas batidas com a visão.

A mulher de cabelos castanhos e olhos da mesma cor é


simplesmente linda. Seu rosto harmônico, lábios carnudos, tingidos
por um batom vermelho, nariz fino e delicado, é a combinação
perfeita para a perdição.
Desço um pouco mais o olhar e encontro seu decote singelo, os
peitos redondos e empinados, totalmente beijáveis. Baixando ainda
mais, reparo na barriga reta e a estreita cintura, que dão aos quadris
a harmonia com os ombros necessária para um corpo sublime com
a compleição atlética cheia de curvas.

E, para completar, pela forma como se porta, possui uma


personalidade esfuziante que combina com a aparência.

Ela entreabre os lábios, parecendo tão impactada com a minha


presença quanto eu estou com a dela.

Meu pau pulsa na calça, vangloriando-se com a visão


arrebatadora da mulher misteriosa e sordidamente gostosa, o que
só serve para me deixar mais irritado.

Levanto-me lentamente, escorando as mãos sobre a mesa.


Estou com raiva de mim mesmo. Ódio por desejar essa estranha.
Cólera por não conseguir controlar minha mente libidinosa e meu
corpo insidioso.

— Vou perguntar só mais uma vez. O que está acontecendo


aqui? — cicio entredentes, uma veia pulsando em meu pescoço.

A guria desvia o olhar para os meus braços, subindo-o até


trazer novamente de encontro ao meu. Por milésimos de segundos,
vejo-a oscilar e engolir em seco, até erguer o queixo e me lançar um
olhar depreciativo.

— Sou Antonella Caregnato. — Apresenta-se, levando as mãos


à cintura.

— Mas que prazer conhecê-la, Antonella — zombo. — Agora


me diga, por qual motivo a sua ilustre presença atrapalhou a minha
audiência? — Arqueio uma sobrancelha.

Antonella bufa, passando uma mão nos cabelos.


— Sou advogada do Marcos.

Franzo a testa fazendo uma repescagem mental de quem


diabos poderá ser Marcos, até me dar conta que o réu da audiência
anterior possui esse mesmo nome.

— A advogada atrasada e destituída?

Noto a contração na sua mandíbula, a forma como cerra os


punhos e parece se esforçar para manter o controle. Seu peito se
ergue com uma respiração profunda e trêmula enquanto seus
ombros se contraem com uma tensão.

— Como ousa? — Dá um passo à frente, um esgar nos lábios


carnudos.

O silêncio na sala de audiência é evidente, ninguém ousa


interferir nessa discussão atípica.

Devo admitir, ela é corajosa; atrevida, mas corajosa.

— Não tenho o dia todo, doutora.

— Eu liguei para o escrivão avisando que me atrasaria. — Faz


um sinal com as mãos, descontrolando-se, irritação emanando de
cada centímetro de pele.

Sinto meu cenho franzir, porque nenhum recado chegou até


mim. É claro que, apesar de ficar puto da cara, eu daria um tempo
de carência se tivesse sido avisado, afinal, todos estamos propícios
a sofrer algum imprevisto.

Percebendo a minha confusão, Antonella continua.

— Pelo visto, a incompetência do seu cartório não vem só


atrasando o andamento processual, como também vem
atrapalhando as audiências. — Uma voz enganosamente calma
desliza entre os seus lábios vermelhos, um sorriso de presunção
formando-se neles.

Filha da mãe, gostosa e traiçoeira!

Abaixo a cabeça e cerro os punhos, tentando controlar a onda


de cólera. Ao olhar para a advogada medíocre de volta, consigo
controlar a raiva, mantendo uma calma inexistente.

— Não se preocupe, doutora, além de tê-la destituído, o que


não parece ter sido o suficiente para colocá-la no seu lugar, agora
também aplicarei uma multa, considerando que o não
comparecimento em audiência, sem justificativa razoável, configura
abandono processual.

A mudança no rosto de Antonella e a intensidade que seus


olhos adquirem, por alguma razão, me causam uma inquietude de
arrepiar. Seu peito sobe e desce com rapidez e o súbito silêncio
parece se tornar opressor.

— Eu vou avisar a corregedoria e a OAB do que acabou de


acontecer aqui. — Sua voz sobe alguns tons e ela respira fundo em
busca de calma. Apontando um dedo em riste na minha direção,
Antonella continua. — Não responderei e nem deixarei meu cliente
ser prejudicado pela incompetência do seu escrivão.

Não posso acreditar em toda essa insolência.

— Continue falando assim do escrivão, doutora, que eu


acrescentarei outra infração penal à sua lista — falo, entredentes.

Antonella solta uma risada de escárnio, arqueando a


sobrancelha.

— Uma pena para você que eu estou em serviço, portanto,


tenho imunidade profissional, como bem deve saber. — Ela cruza os
braços em frente ao peito, realçando ainda mais seus mamilos
redondos no decote.
Inferno de tesão desgraçado!

Eu devo ser um desiquilibrado insano, pois essa discussão


atípica e a maneira como Antonella me afronta está me deixando
excitado.

— Some da minha sala, agora! — Aponto para a porta, gritando


mais do que o necessário.

Estou perdendo completamente o controle, essa mulher


consegue me irritar de um modo devastador. Além do mais, sua
ousadia em discutir comigo na frente dos meus funcionários e
colegas de trabalho é inadmissível; nem os indivíduos mais
intrépidos tiveram essa coragem.

Empinando ainda mais o nariz, os olhos ganhando contornos de


diversão e a boca um sorriso debochado, objeta:

— Ah, não se preocupe, faço questão absoluta de sair dessa


sala e ficar o mais longe possível da sua ilustre presença.

— Então por qual motivo ainda está aqui?

Um sorriso arrogante se abre em seus lábios.

— Só aproveitando o fato de que é a primeira vez que encontro


com um juiz tão ufano. — Analisa a hora em seu relógio de pulso. —
E o exato momento em que eu farei questão de levá-lo ao revés da
corregedoria.

Minha deglutição é audível.

— Está me ameaçando, doutora? — Meu timbre é lento,


arrastado, discrepante aos meus sentimentos.

Antonella leva uma mão ao peito, o cenho franzido


contrastando com o brilho puramente predatório que ilumina os seus
olhos.
— Longe de mim infringir o artigo 147 do Código Penal, já
cometi tantas infrações só nesses últimos minutos... — Me encara, o
maldito sorriso ainda destacando a boca vermelha.

Uma guria jovem e loira aparece na porta ao lado de Antonella.


Aproximando-se com cautela, ela encara a advogada com os olhos
arregalados, o rosto alguns tons mais branco do que o normal.

Ignorando o fato de que somos os emissores de um show que


está sendo assistido tanto pelos presentes dentro da sala como
pelos espectadores sentados no corredor, retruco:

— Continue, doutora, estou adorando a anotação mental que


estou fazendo de todas essas infrações e quais as penas
estabelecidas para elas.

Comprimindo os lábios, Antonella parece se dar conta da


plateia.

— Ah, infelizmente tenho um dia azafamado, pois ainda tenho


que ir à corregedoria fazer uma reclamação.

Dessa vez, um sorriso genuíno ilumina os meus lábios.

— Oh, não quero atrapalhá-la, sinta-se à vontade para se retirar


e efetuar suas tarefas tão importantes.

Um músculo estremece em sua mandíbula, enquanto os olhos


queimam no mais puro ódio.

— Até mais, excelentíssimo. — Posso notar, assim como


qualquer outro, a ameaça que não foi proferida flutuando no ar.

Virando-se de costas, de queixo erguido e nariz empinado,


Antonella sai batendo os saltos no chão com a altivez de uma
rainha.
Sinto as minhas costas rígidas, retesadas depois de tanto
tempo em pé. Volto a me sentar somente ao ouvir o som oco da
porta fechando com uma força exagerada e calculada, deslocando
com o vento o cheiro doce do seu perfume até o meu olfato.

— Vamos continuar — falo, limpando a garganta.

Recolho um saco de chá de camomila de dentro da minha


mateira e coloco quase todo o conteúdo dentro da cuia de
chimarrão, em uma frustrada tentativa de acalmar o meu corpo
enérgico após a discussão acalorada.

A vítima começa a falar, narrando que, diferente do que


imaginávamos, ela não sofreu agressão física, e que as fotos dos
roxos registrados na ocorrência não passaram de um acidente
doméstico. Deixo para que a Promotora de Justiça fale com ela, a
fim de lhe passar conforto e segurança e convencê-la a continuar
com a denúncia, caso contrário, ela estará desprotegida.

Graças a advogadinha medíocre, minha mente passa o restante


da manhã ocupada, oscilando entre os casos e a nossa discussão.
Contudo, não consigo tirar da cabeça a forma como seu maxilar se
contraiu quando estava com raiva, ou da carranca perfeita que fez
quando percebeu que eu não cairia nas suas ameaças banais, ou
dos lábios precisamente delineados formando um esgar de
irritação...

Deus! O que há comigo?

Isso só pode ser falta de sexo, aposto. Desde a mudança, não


obtive tempo para sair com ninguém, mas, graça aos céus, hoje é a
reinauguração do Rock Club, o que significa que eu encontrarei uma
companhia para acalentar os meus hormônios descontrolados.

Ao findar as audiências, entro no cartório quase vazio pelo


horário do meio-dia. Dansper, o escrivão, digita alguma coisa em
seu computador totalmente concentrado e alheio a minha presença.
— Dansper — chamo-o, lhe causando um pequeno susto.

— Sim?

— Alguma advogada ligou hoje falando que se atrasaria para


uma audiência? — Escoro meu corpo em sua mesa, escrutinando
seu rosto em busca de mentiras.

Dansper arregala os olhos, arqueando as costas em polvoroso.


Ele leva uma mão a testa e faz um bico com a boca.

— Droga! Esqueci completamente. — Fica em silêncio por


alguns segundos, pensando em alguma coisa. — Antonella, esse
era o nome.

Olho para cima, pedindo a Deus paciência para não esganar


esse homem aqui e agora.

Eu quero ser remanejado o quanto antes, e para isso, não


posso entrar na mira da corregedoria, muito menos arranjar briga
com a OAB, mas parece que o escrivão designado da minha vara
responsável não está de acordo com isso.

— Eu sinto muito mesmo. Eu estava ocupado criando o teor de


um mandando de citação com urgência e acabei esquecendo... —
continua.

Ignorando Dansper, saio do cartório, o deixando falar sozinho.


Entro na minha sala batendo a porta com raiva. Passo a mão nos
cabelos, andando de um lado para o outro. O sorriso debochado e o
olhar determinado da advogada me veem à mente, relembrando-me
que, se preciso for, a maldita irá até o inferno para alcançar a sua
vingança.
Estaciono o carro em frente à creche onde Fernanda trabalha
com lágrimas de ódio nos olhos. Depois que saí da sala de
audiência, ao conhecer aquele maldito juiz egocêntrico, fiz todo o
percurso Guaíba/Porto Alegre praguejando, deixando até mesmo
Brenda assustada.

Eu ainda não consigo acreditar que, pela primeira vez na vida,


eu fui destituída de um processo por abandono. Isso é inadmissível!
Passei as últimas semanas conversando com as testemunhas e
estudando o processo, e tudo isso para quê? Além do mais, que
Deus me ajude a enfrentar os sócios do meu escritório agora, pois
Marcos era um cliente importantíssimo.

Embora os corredores ainda estejam vazios e percorríveis, os


gritos das crianças ansiosas pelo intervalo me deixam zonza.
Esfrego as têmporas, enquanto faço o caminho até parar em frente
a sala da minha melhor amiga. O som da algazarra aumenta,
fazendo-me bater com força na porta para ser ouvida.
— Crianças, está na hora do intervalo. — Ouço a voz de
Fernanda do outro lado, seguida por passos.

Fernanda abre a porta, escancarando-a e me encara, seu


semblante risonho muda automaticamente para sério assim que
percebe que há algo errado. Ela se vira para a turma, ainda parada
no mesmo lugar.

— Podem sair.

Dito isso, um número excessivo de crianças começa a correr


para fora da sala, assustando-me. Com os olhos arregalados,
mantenho o corpo rente a parede, mantendo-me o mais longe
possível dos capetinhas, tentando não ser atropelada pela tropa de
ansiosos.

Ela solta uma gargalhada.

— Tu e todo esse amor por crianças.

Reviro os olhos, seguindo-a para dentro da sala, agora vazia,


graças a Deus.

— Eu não odeio crianças, só prefiro manter distância delas. —


Faço um gesto de desdém com as mãos.

Ela segue em direção a sua mesa, o vestido redondo floral


balançando conforme o seu andar. Os cabelos castanho-claros
presos em um coque apertado. Mexendo na bolsa, retira uma
pequena lancheira de dentro, abrindo-a para revelar dois
sanduíches.

— Quer? — Traz o pote em minha direção.

Faço um sinal negativo com a cabeça, meu estômago ficando


revolto somente com o cheiro da comida.
— Então, qual é o problema? — pergunta, entre uma mordida e
outra, os olhos em um tom de mel expressivos fixos em mim.

Caminho de um lado para o outro, passando as mãos nos


cabelos, nervosa. A carga emocional de tudo o que me aconteceu
nessa manhã prestes a me esmagar.

— Meu pai está namorando — Começo a enumerar nos dedos.


— e basicamente me obrigou a conhecer a maldita namorada. Eu
me atrasei para uma audiência importante, e o juiz cretino que
assumiu a vara criminal me destituiu do processo. — Viro-me para
Fernanda, que me encara boquiaberta, o sanduíche em suas mãos
parado no meio do caminho até a boca. — E agora, eu não tenho
coragem de voltar para o escritório e conversar com os meus
chefes, afinal, eu fiz merda. E sabe de quem é a culpa? Do meu pai!
Se ele não tivesse sido tão medíocre, eu jamais teria me atrasado.

Me jogo em uma das pequenas cadeiras das crianças, exausta.

— Bem... uau! — É a única coisa que consegue proferir.

— Eu sei, uma merda. — Passo a mão no rosto, frustrada com


o meu dia.

— Ok! Vamos começar pelo início. Seu pai está realmente


namorando?

— Sim! — Não consigo conter o tom de mágoa em minha voz.


— Uma professora de yoga. Deus! Eu nem sabia que ele fazia yoga!

Fernanda solta um suspiro profundo, guardando o sanduíche de


volta na lancheira.

— Antonella, tu sabe que um dia teu pai assumiria outro


relacionamento e...

— Eu sei — interrompo-a. — Eu estava me preparando


psicologicamente para isso. Mas... ele não poderia ter feito o que
fez, Fernanda! Ele me convidou para um café da manhã e quando
cheguei, a mulher já estava lá. Ele basicamente forçou a
convivência — falo, beirando à histeria.

A expressão de Fernanda suaviza, bem como o vinco em sua


testa.

— Eu sei que é difícil e teu pai pisou na bola, mas ele só queria
tentar fazer dessa notícia a menos frustrante possível. Eu conheço
Gael, sei que ele teve boa intenção.

Meus olhos e garganta ardem e meu peito comprime.

— Se ele realmente queria fazer isso, não poderia ter cometido


erro pior. — Inspiro fundo, soltando o ar pela boca devagar. — Eu
me magoaria de qualquer forma, pois, diferente do meu pai, não
estou apta a superar a morte da minha mãe, mas ao menos eu teria
escolha de quando e como conhecer a tal Mikaela.

— Eu sinto muito, Antonella. Mas um dia precisará perdoar


Gael; querendo ou não, ele é a única coisa que te resta.

— Eu sei. — Minha voz sai mais rouca e baixa do que o normal.

— Agora me diga sobre esse tal juiz e essa audiência. — Ela


pega novamente o sanduíche e volta a comê-lo, já que estamos
rumando para um assunto menos tenso.

Levo as mãos ao rosto tapando-o, enquanto solto um grunhido


ao lembrar daquele homem deliciosamente irritante.

Tentei não elevar meus pensamentos até ele por todo o


caminho, tentei menos ainda relembrar a forma como meu corpo
traidor ficou quente, ou como minha mente devassa viajou para
imagens dele me dominando em cima daquela mesa e...

Coço a garganta, sentindo minhas bochechas coradas.


— Eu... hã... — Minha cabeça gira, como se meu cérebro
tivesse dado pane. — Como eu disse, cheguei atrasada por culpa
do meu pai. O escrivão não avisou e o idiota me destituiu como
advogada por abandono processual. Enfim, agora preciso retornar
ao escritório e inventar alguma desculpa plausível para os meus
chefes, afinal, Marcos é um dos nossos maiores clientes, chefe da
quadrilha de drogas da região. — Dou de ombros, fingindo
despreocupação, quando, na verdade, estou quase morrendo de
desespero.

— Acha que vai dar muito problema? — indaga com a boca


cheia de comida.

— Não sei — falo a verdade.

— Tu é a melhor no que faz, Antonella, acho difícil eles te


demitirem.

— Eu poderia ser o próprio presidente da república, Nanda, e


mesmo assim nada me impediria de enfrentar a ira dos meus
chefes, não quando o cliente em questão é o Marcos.

— Ah, Antonella, eu sinto muito... Vamos pensar em algo


razoável para contar como mentira.

Suspiro.

— Se Gael não tivesse sido tão egoísta... eu falei para ele que
meu dia era atarefado, que eu tinha uma audiência logo cedo... —
As lágrimas ameaçam aparecer, pisco para afastá-las. — Ele
parecia tão resoluto quanto ao encontro, cheguei a pensar que era
algo de suma importância...

— E era — interrompe.

— Bem, eu não diria que conhecer a tal Mikaela tenha sido algo
importantíssimo.
— Pode não ter sido para você, mas foi para Gael, Antonella.

Cerro os meus punhos, desolada.

— Pouco me importa se foi importante para ele.

Fernanda franze os olhos, analisando-me.

— Não há culpados no que aconteceu. Imprevistos acontecem.


Além do mais, todos estão errados... Gael, por impor a presença da
namorada sem saber como tu reagiria. Tu, por não aceitar a
felicidade dele e o fato de que seguiu a vida. E o tal juiz por ser
soberbo.

Não quero discutir com Fernanda, então não contesto um dos


argumentos proferidos, mantendo-me calada por mais uma vez no
mesmo maldito dia.

Levanto-me bruscamente da pequena cadeira, alongando a


coluna pelos últimos minutos sentada em uma posição
desconfortável.

— Eu preciso ir. — Caminho até Fernanda, plantando um beijo


em sua testa. — Obrigada por me ouvir.

Ela revira os olhos.

— Como se eu nunca fizesse isso.

Rindo, me direciono para fora da sala, mas paro na porta ao


lembrar que preciso lhe perguntar sobre o bar.

— Você irá hoje na reinauguração do Rock Club?

Ela franze a testa em um gesto de desdém.

— Não. Estarei ocupada com a minha cama, filmes e doces.

Bufo, balançando a cabeça em negativa.


— Vai perder de conhecer o novo sócio misterioso do Victor.

— Ah, tu me contas depois quem é. E claro, se é gato. — Um


dos cantos dos seus lábios se repuxa em um sorriso sugestivo.

— Pode deixar. Até mais.

— Até. — Estou prestes a sair, quando ela me chama. — E,


Nella, fica bem... tente entender seu pai.

— Vou tentar, prometo.

Saio da creche me sentindo mais leve após desabafar sobre


todas as minhas frustrações. Deixei os sentimentos trancados por
toda a manhã, sem poder entrar nessa intimidade com Brenda, me
corroendo por dentro.

Destravo o carro, sentando-me no banco do motorista. Fecho


os olhos e inspiro o ar profundamente, me preparando para o que
está por vir.

Suspirando, ligo o veículo e dirijo até o escritório, tendo como


único consolo o fato de que hoje é sexta-feira.

Entro no Bar Rock Club empurrando algumas pessoas no


caminho, boquiaberta por toda a movimentação que eu não vejo
aqui há meses. A música, uma melodia animada digna de uma
sexta à noite, toca em volume máximo. O cheiro de nicotina mistura-
se com o de perfume barato. O local está quente pelo tanto de
corpos, apesar do ar-condicionado estar ligado.

Aproximo-me do balcão e encontro Victor servindo bebidas.


— Uau! Isso que eu chamo de reinauguração. — Curvo meu
corpo, gritando por cima do som alto.

Victor entrega um copo de cerveja para um homem, voltando-se


em minha direção.

— Mas olha quem chegou — brinca, plantando um beijo em


meu rosto. — Viu só? Nada como uma reinauguração para atrair o
público. No fim das contas, Henrique tinha razão.

— E onde ele está? — Esquadrinho as pessoas ao redor,


tentando localizar o possível sócio.

— Não chegou ainda.

Rio debochadamente.

— Já começou bem, então.

Victor revira os olhos.

Mais algumas pessoas se aproximam do balcão, um grupo de


mulheres e homens, ansiosos pelas bebidas da casa.

— Preciso voltar, não sabia que teríamos tanto movimento,


portanto, muita gente para poucos atendentes. — Dá de ombros.

Realmente, há meses, talvez anos, que eu não via o bar com


tanto movimento quanto o de hoje.

Victor está prestes a se afastar, quando eu seguro o seu braço.

— Espera! Eu vou ajudar.

— Não precisa. Aproveita a sua noite.

Faço um sinal negativo com a cabeça.

— Meu dia foi péssimo, preciso ocupar a mente.


Sim, preciso de uma boa distração, e nada melhor do que um
trabalho corrido para isso. Além disso, vai ajudar a passar o tempo;
estou completamente sozinha no bar – Victor parece muito ocupado
para me fazer companhia, Fernanda não virá; ou seja, sem trabalho
eu ficaria sentada depressiva enquanto beberia remoendo todos os
acontecimentos do dia.

— Se tu insistes...

Não espero Victor terminar a frase, faço a volta, entrando no


lado interno do balcão e misturando-me com os demais bartenders.

— O que manda, chefe? — brinco.

Pelo semblante, Victor parece preocupado, pois ignora o meu


joguete de palavras. Ele olha ao redor, analisando o trabalho da sua
equipe.

— Só sirva as bebidas que te pedirem. — Puxando o meu


braço, ele me conduz para uma área mais reservada, antes de
continuar explicando: — Perto do caixa há um livro de receitas, nele
tu encontrarás as doses certas e os formatos de copo para cada tipo
de bebida. Não se preocupe, drinks não é nosso forte, mas sempre
tem alguém para pedir.

Posso dizer que o Bar Rock Club é minha segunda casa, pois
eu frequento tanto o lugar quanto frequento o meu apartamento. E
sei que Victor tem razão, a cerveja artesanal que ele serve é
simplesmente divina, por consequência, é a bebida que mais vende.

— Certo.

— Estarei por perto caso precise de algo. — Planta um beijo em


minha cabeça. — E obrigado por isso, mesmo. Não quero que as
pessoas tenham uma visão ruim do bar em plena reinauguração.

Aperto o seu braço duro.


— Ei, o bar é ótimo, ninguém vai sair daqui falando mal, posso
garantir.

Vejo alguém chamando Victor em um canto mais remoto, ele se


afasta para ir encontrar a pessoa, enquanto eu faço o percurso
contrário, indo até o caixa mencionado. Recolho o caderno e
começo a ler as receitas, tentando decorar alguma coisa antes que
me peçam qualquer um desses inúmeros drinks.

Eu já bebi a grande maioria, mas nunca pesquisei sobre a


quantidade exata dos componentes ou até mesmo quais são eles.

Mantenho meus pensamentos longe do dia conturbado e da


conversa vexatória que tive com os meus chefes; ao menos não fui
demitida, só tomei um grande puxão de orelha e um motivo de
vergonha para a vida toda.

— Aqui! Um Sex On the Beach. — Um dos garçons deixa um


papel em minha frente.

Deus do céu, vamos lá.

Folheio o cardápio até encontrar o nome da bebida. Faço uma


anotação mental de todos os ingredientes e começo a procurar por
eles embaixo do balcão.

Vodca. Ok! Schnapps de pêssego. Ok! Suco de laranja. Ok! Só


falta o tal suco de oxicoco, seja lá o que é isso. Procuro pelo
ingrediente, mas não encontro. Faço o drink com o que tenho
disponível, ao terminar, viro um pouco da bebida em um copo limpo
e experimento. O gosto está bom, acredito que o tal oxicoco não vá
fazer falta. Procuro uma taça igual a que está desenhada no livro,
decoro-a e sirvo a bebida, levando-a até o balcão para a cliente.

A loira que recebe o drink não se dá nem mesmo ao trabalho de


me lançar um olhar, antes de sumir com a bebida no meio da
multidão.
— De nada — zombo.

Solto um suspiro profundo, a exaustão do dia ameaçando a me


desestabilizar.

— Já vai desistir? — pergunta o mesmo funcionário que me


entregou o pedido do Sex On The Beach.

Reviro os olhos.

— Tenho que admitir, esse trabalho é mais exaustivo do que eu


imaginei.

O jovem loiro de olhos verdes abre um sorriso iluminado.

— E o movimento pesado nem começou ainda. — Pisca um


olho, afastando-se para atender mais clientes.

Esfrego o dorso do braço na testa, limpando as gotículas de


suor que brotaram pelo nervosismo. Meus pés estão doendo pelo
tempo que estou em pé e agradeço mentalmente por ter ido em
casa antes de vir para o bar, trocando os saltos altos por um
confortável All Star branco.

Agora, com o tardar da noite, o bar parece ainda mais cheio,


talvez deflagrando sua capacidade máxima.

Alguém joga um copo em cima do balcão à minha frente, subo


o olhar e reconheço que é a mulher do drink. Ela é bonita, mas nada
simpática. Cabelos loiros e ondulados, olhos verdes, cílios longos,
lábios preenchidos, as maçãs do rosto marcadas, cada centímetro
de rosto com uma simetria invejável. Consigo ver ainda, mesmo
com o balcão atrapalhando, que ela usa um vestido verde curto e
decotado, evidenciando as suas curvas monumentais.

— Seja lá o que tu preparaste, isso daqui não é nem de longe


um Sex On the Beach. — Faz um sinal de desdém com as mãos. —
Mesmo assim, fica com o dinheiro, vocês precisam mais do que eu.
Sinto a raiva inflar cada célula do meu corpo, mas me abstenho
de arranjar mais confusão. Abro a boca para me desculpar, mas a
mulher bufa, ignorando-me. Com uma arrogância única, ela gira nos
calcanhares e vai embora do estabelecimento com seu ar de
presunção lhe acompanhando.

Ah, que ótimo! Estou ajudando muito a reinauguração do bar,


espantando os seus clientes.

Tentando não me abalar pela mulher descortês, continuo lendo


o cardápio e procurando os ingredientes no balcão – até mesmo
encontrei o tal suco de oxicoco –, familiarizando-me com a ordem
dos produtos.

Mais pedidos chegam, e eu, avidamente, trato logo de preparar,


tentando dessa vez seguir a ordem certa e não depreciar o nome do
bar em plena reinauguração.

— Antonella, alguns clientes estão reclamando dos seus drinks.


— Aproxima-se o mesmo funcionário que vem me ajudando desde o
início da noite.

Droga, isso é muito complicado!

Victor tinha dito que seria uma tarefa fácil, além do mais, eu já
havia auxiliado algumas outras vezes, só que ambos não
contávamos com toda essa movimentação.

Solto uma respiração ruidosa e arrumo uma mecha do meu


cabelo atrás da orelha.

— Isso é mais difícil do que eu pensava — bufo, entristecida


pela minha incompetência.

— Quer servir a cerveja?

Seco as mãos molhadas pelo gelo no guardanapo, abrindo um


sorriso sincero para o funcionário, agradecida.
— Sim, por favor.

Me afasto, aproximando-me dos freezers para encarar outra


tabela de preços a ser decorada está noite. E, apesar de ser uma
tarefa mais fácil e menos elaborada, o número de pedidos é ainda
maior e contínuo, o que me deixa apreensiva e confusa.

Passo um pedido na frente do outro, troco os nomes das


cervejas, recebo xingamentos pouco educados – o que só serve
para me deixar ainda mais nervosa e piorar a situação. Em minha
defesa, é muita gente pedindo ao mesmo tempo, não tenho um QI
tão elaborado assim.

— Deus, estou piorando as coisas para Victor ao invés de


ajudar... — murmuro, esfregando o rosto.

Seria muito mais vantagem para o meu amigo se eu tivesse


optado por ficar sentada no bar bebendo e gastando dinheiro, ao
invés de me empenhar em uma fracassada tentativa de ajuda.

— Agora eu consigo entender por qual motivo o bar está indo à


falência. — A voz rouca, grossa e intensa sussurra perigosamente
ao pé da minha orelha, a qual faz meu corpo se arrepiar e meu
coração quase parar. Viro-me subitamente, dando de cara com o
juiz que me destituiu do processo mais cedo. — Pela incompetência
dos funcionários, é claro — continua, arqueando uma sobrancelha e
sorrindo maliciosamente, o que culmina em uma combinação fatal.

Ele está totalmente diferente do homem que encontrei mais


cedo – tirando a arrogância e prepotência, que parecem ser sua
marca registrada. O juiz está sem terno ou roupas formais, vestindo
uma jaqueta de couro preta, camiseta simples da mesma cor
modelando seus bíceps definidos, calças jeans rasgadas e botas.

Nossa senhora! Ele parece mais um bad boy do que um


magistrado.
— Pelo visto, tu és tão boa garçonete quanto é como advogada.
— Passa uma mão nos cabelos úmidos e desgrenhados, puxando-
os para trás e, posteriormente, para frente.

Suas palavras ecoam através do leve torpor em que eu me


encontro e, com muito custo, consigo fazer minha garganta voltar a
funcionar.

Essa não foi nem de longe a ofensa mais significativa que eu já


ouvi, imbecil!

Cruzo os braços em frente ao peito, irritada com a sua


presunção.

— Ainda bem que nem eu, muito menos o dono do bar, pediu a
sua opinião — retruco, a voz mais áspera que o normal.

Um dos cantos dos seus lábios se repuxa em um sorriso


presunçoso; dando um passo à frente, ele curva o corpo para falar
mais perto, como se fosse contar um segredo.

— Pena que eu sou o dono do bar, docinho.

Abro e fecho a boca consecutivamente, enquanto encaro o


homem que está parado à minha frente com sua graciosidade
própria.

Não, isso não pode estar acontecendo. Victor não pode ter
vendido metade do bar que eu amo para um homem tão... tão...
gostoso babaca.

O idiota, com a minha inércia alusiva a notícia que me pegou de


surpresa, começa a retirar a jaqueta, sem desviar o olhar que está
firmemente no meu. Sem o tecido preto cobrindo sua pele, consigo
ver braços fortes e torneados, contornados por inúmeras tatuagens.

— Agora, saiba que está demitida! — Ele joga a jaqueta de


couro em um canto qualquer, como se estivesse se preparando para
trabalhar.

Mesmo sendo muito intimidador, não irei deixá-lo perceber que


estou trêmula. Respirando fundo, me preparo para exteriorizar cada
ímpeto de coragem que tenho no corpo.

— Oh, não, por favor! Eu preciso tanto desse emprego —


obsecro, cruzando as mãos em súplica.

Minha vontade é de rir, mas consigo manter uma expressão


neutra.

Ele ergue uma sobrancelha, balançando a cabeça lentamente.


Seus olhos estão fixos nos meus, estudando meus gestos,
escrutinando cada respiração que deixa o meu peito.

Ele abre a boca para falar alguma coisa, mas é impedido no


instante em que Victor para ao meu lado, colocando uma mão em
meu ombro, rompendo nosso contato visual. Encaro meu amigo,
seu sorriso de orelha a orelha motivado pelo grande movimento do
seu negócio é palpável. Ele olha de mim para o sócio e vice-versa,
um vinco profundo na testa.

— Henrique, vejo que conheceu Antonella — fala,


completamente alheio ao desprezo que eu e seu sócio sentimos um
pelo outro.

A boca de Henrique se curva em um sorriso que é tudo, menos


de felicidade, enquanto semicerra os olhos de modo debochado.
Quando Victor agendou a reinauguração do bar para uma
sexta-feira, eu não tinha planos de chegar atrasado, mas logo hoje,
as audiências demoraram mais do que deveriam, estendendo-se ao
longo da tarde e uma parte da noite.

Estaciono a moto perto da porta de entrada, na última vaga


disponível em um estacionamento lotado. Retiro o capacete e
esfrego os cabelos, arrumando as madeixas bagunçadas. O rock
alto e pesado que está tocando chega até os meus ouvidos,
misturando-se com burburinho de vozes.

Vejo algumas pessoas na calçada, fumando e conversando


enquanto bebem cerveja. O cheiro da nicotina ativa o meu vício;
desço da moto, retiro um cigarro do bolso e acendo antes de entrar
no bar.

Não tenho orgulho do vício pelo tabaco que adquiri após a


morte de Antônio, mas era isso ou o álcool. Todas as vezes que eu
sentia que iria explodir, acender um cigarro surtia o efeito de me
acalmar e colocar os pensamentos em ordem. Além do mais, o meu
querido pai odeia o cheiro da nicotina, portanto, era mais uma forma
de irritá-lo.

Apesar da noite fria, o dia está propício para uma boa


reinauguração, sem nuvens densas no céu ou sinal de chuva para
atrapalhar os planos.

As portas da entrada são bruscamente empurradas à minha


direta, a madeira velha e obsoleta range alto e forte.

— Isso é um absurdo! Esse bar não mudou porcaria nenhuma.


Nunca tomei um Sex On the Beach tão ruim. — Uma loira
estonteante sai do bar com o celular na orelha, enquanto reclama do
atendimento do Rock Clube com alguém.

Bufando, a guria para ao meu lado, alheia a minha presença;


retirando o aparelho do ouvido, ela segura o celular entre as mãos
para digitar algo com dedos ágeis e precisos, repletos de unhas
tingidas em um rosa neon – provavelmente solicitando um motorista
de aplicativo para levá-la embora.

Dou mais uma tragada no cigarro, começando a me sentir feliz


por ter adquirido metade do lugar, ainda mais se esse for o tipo de
pessoa que costuma frequentá-lo...

— Olá! — cumprimento-a com um meio-sorriso.

Apago o cigarro na parede, expelindo a fumaça de nicotina pelo


nariz, enquanto jogo o tabaco na lixeira ao lado.

A loira se vira para mim, o olhar de desdém se desfaz assim


que encontra o meu.

— Olá! Não sabia que esse lugar era tão bem frequentado... —
Enrolando uma mecha de cabelo no dedo indicador, ela se aproxima
sedutoramente.
Arqueio uma sobrancelha.

— Ah, e realmente não era.

— E quem é você?

— Sou o novo sócio. — Aponto com o queixo para o bar às


nossas costas. — Gostou do atendimento?

A mulher arregala os olhos; lenta e disfarçadamente, vejo-a


esconder a tela do celular, que está desbloqueada.

— Mas é claro, inclusive, eu já estava voltando. — Abre um


sorriso, revelando uma fileira de dentes brancos e alinhados.

Solto uma risada de escárnio, balançando a cabeça.

Péssima mentirosa!

Dou um passo à frente, chegando perigosamente próximo a ela,


sentindo o cheiro do seu perfume adocicado, misturando-se com o
cheiro do meu cigarro.

— Agora me diga a verdade, amor, qual foi o péssimo


atendimento? — Enrolo em meu dedo indicador a mecha de cabelo,
imitando seu movimento anterior.

Ela entreabre os lábios, ofegante.

— Eu até falo, mas só depois que eu receber uma recompensa


por ser uma menina má e delatar um funcionário — ronrona,
fazendo um beicinho perfeito.

Um vislumbre de um sorriso frio surge em meu rosto.

Coloco uma mão em sua cintura, colando seu corpo ao meu.


Levo meus lábios até seu pescoço macio e cheiroso, plantando um
beijo molhado no lugar.
— Sei muitas formas de recompensá-la — murmuro contra a
sua pele, sentindo seus pelos arrepiarem.

— Me sinto ansiosa para conhecer cada uma delas... —


Esfrega a unha rosa neon no meu peito.

Puxo a loira pelo braço, jogando-a bruscamente na parede, no


canto mais remoto e escuro da saída; levanto seu vestido verde,
chegando até a sua calcinha delicadamente rendada.

— Sabia que encontraria essa bocetinha molhada... — sussurro


contra o seu ouvido, chupando o lóbulo da orelha.

— Hum... — Ela prende o lábio inferior entre o dentes.

Empurro a calcinha para o lado, sentindo a pele lisa e sem


pelos da sua intimidade, sua lubrificação natural lambuzando as
pontas dos meus dedos.

— Tu vais gostar tanto, amor, que voltará mais e mais vezes ao


bar.

— Então pode começar. — Arregaça as pernas.

Ela geme e fecha os olhos assim que meu dedo encosta em


seu clitóris.

Antonella.

Esse é o nome da garçonete que vem correndo os clientes do


bar. Eu estava preparado para entrar, conversar com a mulher e
realocá-la para outro setor e, caso necessário, despedi-la, mas nada
havia me preparado para descobrir que ela e a advogada que
interrompeu uma das minhas audiências mais cedo são a mesma
pessoa.

Agora, aqui estou, atônito, parado à sua frente, enquanto


encaro a mão de Victor, que descansa em seu ombro de uma
maneira descontraída e até mesmo protetora.

Além do mais, para melhorar a minha situação, eu acabei de


foder uma estranha na rua e mesmo assim meu corpo está aceso só
de analisar Antonella vestindo uma calça preta justa que contorna
sua bunda deliciosa e uma camiseta branca lisa, ressaltando os
mamilos duros e apetitosos.

Victor me olha com animação, alheio aos olhares de desprezo


que eu e Antonella trocamos.

— Então, vocês se conheceram agora? — Meu sócio e amigo


faz um gesto de mãos, apontando para nós dois.

— Para o meu desprazer, conheci ele hoje mais cedo —


responde Antonella estoicamente, arqueando uma sobrancelha.

É uma delicinha, mas insolente.

— Tá legal, o que aconteceu? — Victor gargalha, finalmente


reparando no convívio nada afetuoso entre nós dois.

— Aconteceu que tu precisas demitir esta incompetente. —


Desvio o olhar de Antonella para encontrar o de Victor — Encontrei
uma cliente na rua reclamando do péssimo atendimento. Precisei
ser muito... prestativo para que ela prometesse retornar ao bar. —
Abro meu sorriso de canto, erguendo a sobrancelha.

Victor, como um velho amigo, entende subitamente o que eu


quis dizer, rindo e balançando a cabeça. Depois de todos os nossos
anos de amizade, conseguimos nos comunicar somente com o
olhar. Além do mais, eu já vi Victor fodendo com tantas mulheres
que eu nem sou mais capaz de enumerar. Assim como ele sabe os
detalhes mais sórdidos da minha vida, eu também sei os da dele.

Antonella se afasta de Victor abruptamente, irritada. Com um


dedo em riste apontado para mim, ela se aproxima, a unha
resvalando sobre a minha camiseta, arrepiando-me.

Ah, querida, como eu gostaria que estivesse afiando essas


garras em mim em outras condições mais privativas e... desnudos.

— Você é um babaca! Na verdade, é o senhor babaca! E eu


pensaria muito bem antes de falar assim comigo novamente —
grunhe, descontrolada.

O cheiro do seu perfume cítrico envolve o meu olfato, me


deixando ainda mais inebriado por essa guria linda e atrevida. Seu
rosto delicadamente esculpido forma uma careta pela sua irritação.

Aproximo meus lábios do seu ouvido.

— É mesmo? E o que exatamente tu vais fazer? Porque eu


tenho algumas ideias... nós dois... sem roupas... — murmuro, minha
voz enrouquecida de tesão.

Antonella arqueja, arregalando os olhos. Seus deliciosos lábios


se dividem em uma respiração irregular; as maçãs do seu rosto
ganham um tom ruborizado. Vejo-a engolir em seco, erguendo o
queixo levemente.

Abaixando um pouco o meu olhar, posso ver ainda as pontas


dos seus seios esticando o tecido fino da camiseta, excitados.

Nossos olhares se encontram, um músculo pulsa em meu


maxilar, assim como outra parte do meu corpo mais abaixo. Não há
mais sons exteriores; até mesmo o ar parece ter sido sugado do
ambiente. O calor do seu corpo abraça o meu, enviando arrepios,
acelerando minha pulsação.
O poder que a guria tem de me seduzir sem nem mesmo me
tocar me deixa estarrecido. Já desejei muitas mulheres por sentir
uma forte atração física, mas nenhuma das vezes se compara a isso
aqui.

— Ei, ei, ei — Victor puxa Antonella pelo braço, afastando-a de


mim, quebrando a tensão sexual. — O que está acontecendo aqui?

Antonella permanece plácida por milésimos de segundos,


totalmente imóvel, então pisca sucessivamente para quebrar o efeito
da tensão sexual.

Desvencilhando-se do aperto de Victor, a guria gira nos


calcanhares e pega uma bolsa embaixo do balcão, a raiva contida
em cada movimento brusco.

— Pergunte para o idiota aí. — Ela planta um beijo na


bochecha do meu sócio — Vou embora, não suporto mais ficar aqui.
— Sai a passos duros sem olhar novamente para mim.

— Até mais, não precisa voltar sempre! — Faço um sinal de


despedida com a mão.

Ela para de caminhar, virando-se em minha direção. Um dos


cantos dos seu lábios erguido.

— Excelentíssimo, eu prefiro caminhar de pés descalços no


inferno do que encontrá-lo novamente. — Levanta o dedo do meio,
direcionando-o a mim.

— Estou realmente magoado. — Levo uma mão ao coração. —


Pensei que minha companhia fosse ilustre.

Ela bufa, retomando o caminho até a saída do bar.

Incontido, observo a forma como seu quadril requebra e sua


bunda rebola enquanto caminha. É uma gatinha arisca.
— Tu tá babando, cara! — Victor dá um safanão em meu
ombro, sacolejando-me.

Reviro os olhos e passo a mão na barba, fingindo que nada


aconteceu e que eu não fiquei realmente cobiçando sua... seja lá o
que ela for dele.

— Então, sabe que eu a despedi, não?

Não importa o vínculo de amizade que eles tenham, ou até


mesmo se ela é amante de Victor, precisamos de pessoas
competentes trabalhando no bar.

Ele me encara em silêncio, os olhos iluminando-se em diversão,


então começa a gargalhar, o peito tremendo pelos risos incontidos.

Aguardo, irritado, ele me explicar o motivo dessa graça toda.

Acalmando-se, por fim, da crise de risos, ele pousa uma mão


na barriga.

— Henrique, tu mal chegou e já está arranjando briga. —


Chacoalha a cabeça.

— Eu não entendi o porquê das risadas.

— Cara, não posso acreditar que tu “despediu” a Antonella. —


Faz aspas com os dedos.

— Qual é a tua e dessa guria, afinal? — pergunto, fingindo


desinteresse.

— Antonella é minha melhor amiga. — Dá de ombros. — E


antes que diga mais alguma coisa, ela não trabalha aqui, gênio, só
estava me ajudando.

O quê? Sinto meu cenho franzir em completa confusão.

— E vocês se conhecem desde quando?


Que eu bem me lembre, Victor não possuía melhor amiga
nenhuma na nossa época de juventude, e isso considerando que ele
não conseguia ficar no mesmo recinto que uma mulher em um raio
de trinta metros quadrados sem entrar em suas calças.

Victor me puxa pelo braço, conduzindo-me até a sua sala


particular no fundo do estabelecimento. Ele fecha a porta, cessando
o som estridente da música.

— Eu sei o que está pensando, as coisas mudaram, cara.

Levanto as mãos em sinal de rendição.

— Longe de mim fazer uso de acusações descabidas contra a


sua honra. — Sorrio, colocando as mãos nos bolsos da calça jeans.

Victor bufa.

— Antonella era de São Paulo, ela se mudou para cá há dois


anos, logo após a morte da mãe. Mas, e vocês? — Ele pega uma
garrafa de água, bebendo o líquido de maneira sedenta antes de
continuar falando. — Cara, seja lá o que tu fez, Antonella parece te
odiar de verdade. E olha que eu nunca a vi desprezar ninguém
dessa forma antes.

Cruzo os braços em frente ao corpo e reviro os olhos.

— Eu não fiz nada. Foi ela quem chegou atrasada para uma
audiência; precisei destitui-la do processo e nomear a defensoria
pública.

Victor se engasga com a água, cuspindo o líquido longe.

— Tu o quê? — Arregala os olhos.

— Eu fiz o que foi preciso.

Ele solta uma pequena gargalhada, meneando a cabeça


incrédulo, enquanto coloca a garrafa vazia no lixo.
— Ela nunca vai te perdoar por isso, pode ter certeza.

— Se ela não fosse tão incompetente, isso não teria


acontecido.

Victor franze a testa, um olhar acusatório em seu rosto.

— Antonella, incompetente? Desculpe, mas não podemos estar


falando da mesma pessoa. Sério, a guria é foda!

— Explique-se. — Mantenho a face séria, curioso e ansioso por


ouvir mais.

— Ela se formou em direito em São Paulo, e meses depois da


morte da mãe, veio embora com o pai. Na época, ela estava
desempregada, fazia uns bicos aqui e ali, até um amigo policial do
seu pai entrar em um confronto direto com uns bandidos; o homem
acabou matando um deles, e pelo excesso de tiros, foi excluída a
legítima defesa, algo assim. Antonella assumiu o caso, a guria foi
até a vila em que o crime ocorreu procurar testemunhas, deixou
Gael de cabelos brancos, mas não desistiu. Quando chegou o dia
do júri, ela conseguiu excluir a ilicitude, e o homem acabou não
respondendo por nada, ficou por legítima defesa mesmo. Então ela
fez nome, ficou famosa como a jovem advogada promissora. Os
Viturinos vieram atrás dela e ofereceram um emprego; Antonella,
como não é boba nem nada, fez uma contraproposta, e eles
aceitaram. A guria tem salário e mais uma porcentagem dos
honorários dos processos em que trabalha. Ela é genial.

Impressionante, mesmo. Os Viturinos são nada mais, nada


menos, que uma família renomada de advogados criminalistas na
grande Porto Alegre. O escritório já pegou alguns dos casos mais
famosos e polêmicos do estado.

Victor assobia, tirando-me dos devaneios.

— Tu pisaste na bola com ela.


Encaro-o incrédulo. A guria me chamou de babaca e muitas
outras coisas e fui eu quem pegou pesado com ela?

— Ela só estava ajudando, Henrique. Antonella sempre vem ao


bar depois do expediente, ela já me deu uma baita[2] mão, não só
hoje, como sempre. Não deveria ter lhe tratado daquela forma, ela
estava sendo solícita.

Solto uma respiração ruidosa e descruzo os braços. Não é


possível que Victor conseguirá me fazer ficar com peso na
consciência.

— Quando eu cruzar com ela qualquer dia desses eu peço


desculpas. — Bato uma mão na outra. — Agora, vamos voltar ao
trabalho que o bar está lotado.

Victor me analisa por mais alguns segundos; dando-se como


rendido, ele assente.

Assim que a porta é aberta, a música alta toma conta do


ambiente novamente. Tentando não pensar em Antonella ou na
forma agressiva como eu lhe tratei mais cedo, começo a servir a
cerveja, ajudando a quantidade escassa de garçons.

Abro a porta do bar sentindo o vento gelado da primavera


balançar meus cabelos bagunçados. Acendo um cigarro, tragando a
fumaça com vontade depois das últimas horas sem fumar. Com o
tardar da noite, o movimento foi se tornando cada vez mais exíguo,
e agora, há pouco mais de meia dúzia de pessoas acertando a
conta.
Uma pequena chama de remorso queima o meu peito pela
forma como tratei Antonella, pois descobri ao longo das últimas
horas que o trabalho é mais difícil do que eu pensava.

Uma mulher muito atraente empurra as portas, abraçando-se,


tentando apartar o frio ao sair do estabelecimento aquecido.

— Oi, sabe se há algum táxi aqui por perto? — Aproxima-se


lentamente, um pouco contida.

Assopro a fumaça pela boca.

— Não sei dizer. Para onde está indo?

A mulher me observa, descendo os olhos pelas minhas roupas,


escrutinando cada detalhe, tentando decidir se sou uma pessoa
confiável para ela passar essa informação.

— Moro perto da redenção — fala, por fim.

Olho para a minha Harley-Davidson preta estacionada há


alguns metros.

— Tu andas de moto? — Apago o cigarro, jogando-o na lixeira.

Espero pela sua resposta, arqueando uma sobrancelha de


maneira sugestiva. A morena abre um sorriso, aquiescendo.

— A propósito, me chamo Hanna.

— Então vamos para casa, Hanna.

Descanso uma mão em suas costas, conduzindo-a para a


minha moto, e fazendo uma reconsideração mental de que eu
preciso vir mais vezes nesse bar.
Observo a parede da minha sala com uma xícara de café em
mãos, aguardando o próximo orgasmo da vizinha.

— AH! — grita, chegando ao ápice pela milésima vez nas


últimas horas.

Por algum motivo desconhecido, tudo tem dado tão banalmente


errado na minha vida que eu nem sei mais o que é sorrir com
sinceridade.

Meu celular toca, vejo o número do meu pai na tela como o


chamador. Aperto o botão de bloqueio e viro o aparelho para baixo,
ignorando sua chamada mais uma vez. Aliás, é isso que ele tem
feito, me ligando avidamente desde ontem, quando me empurrou
seu relacionamento sem meu consentimento.

— Tu é tão gostoso! — A voz da vizinha sai esganiçada,


querendo soar sedutora.
Bem que dona Celene me disse ontem, quando eu cheguei do
trabalho, que teve um pequeno vislumbre do novo ocupante do
apartamento 703; a senhorinha fofoqueira me disse que era um
homem jovem e muito bonito, parecia um executivo. Pena que ela
deixou de lado a namorada escandalosa.

— Vai, gostoso!

Deus do céu! Será que essa mulher acha que está arrasando?
Pensa que gritando aos quatro ventos o quanto o homem é bom de
cama, ampliará o seu ego, fazendo-o se apaixonar mais?

Olho a hora em meu relógio de parede, sentindo a exaustão da


última noite mal dormida por causa do sexo selvagem dos novos
vizinhos. E, nossa senhora, já são onze horas da manhã! Quem é
que fica tanto tempo transando assim?

O rangido da cama amplia. Consigo até mesmo contar


mentalmente quantas estocadas o homem está metendo na mulher.

Grunhindo com esse pornô gratuito, deixo a xícara na mesa de


centro, decidida a ir colocar essa gente em seu devido lugar.

— Ok! Vamos lá, Antonella, coragem! Ou você nunca mais vai


dormir. — Ando de um lado para o outro, entoando mentalmente os
motivos do porquê estou sendo uma empata-foda.

Com os cabelos presos em um coque bagunçado, as manchas


arroxeadas debaixo dos olhos e meu pijama de seda vermelha,
nada sensual, saio do meu apartamento. O corredor está vazio, pela
graça de nosso senhor. Paro em frente à porta do vizinho, os
gemidos podendo ser ouvidos daqui, sentindo ainda mais vergonha
alheia por eles.

— O que tu vai fazer? — Bem na hora que eu estava indo bater


na maldita porta, dona Celene surge do inferno, assustando-me.

Espalmo uma mão no coração, a respiração acelerada.


— Eu... hã... a senhora não está ouvindo isso? — Aponto com o
queixo para a porta.

Dona Celene olha para os lados, rindo.

— Ouvi a noite inteirinha. O homem é bom. — Pisca um olho.

Jesus! Agora eu vou ficar ainda mais traumatizada do que já


estou.

— E a senhora não se importa?

Ela dá de ombros.

— Sexo é bom. Prefiro deixar que se divirtam.

Bufando, finalmente crio coragem e dou três batidas na porta.

— E eu prefiro dormir.

Os gemidos finalmente cessam, cedendo lugar aos minutos de


silêncio mais aterrorizadores da minha vida.

Ouço passos vindo do outro lado e a porta é aberta, me


botando de frente a um peito largo, musculoso, tatuado e nu.

Deus do céu!

A primeira coisa que eu reparo é no abdômen esculpido pelo


próprio satanás depreciador de mocinhas desprevenidas. Perfeito.
Totalmente apalpável. Baixo um pouco o olhar e perco o fôlego. A
calça de moletom caí um pouco abaixo da cintura, revelando uma
linha fina de pelos claros que desaparecem dentro calça.

Hum... vizinho muito, muito... interessante.

Subindo o olhar de novo, encontro ninguém menos que


Henrique, também conhecido como o maldito juiz, babaca e sócio
do Victor.
Ah. Meu. Deus.

Não! Não! Não!

Ele está escorado no batente da porta, o jeito despojado e


totalmente a vontade eleva a minha raiva, pois parece feliz por ter
sido pego em plena atividade.

— Mas olha que coincidência... aprazível. — Seus olhos se


iluminam em pura malícia. E eu ficaria tranquila se fosse somente
isso, se ele não tivesse erguido os lábios em um sorriso de canto
cínico. — Apreciando a vista? Se quiser, pode nos fazer companhia!
— Abre um pouco mais a porta, revelando uma mulher morena
enrolada em um lençol.

Não! Isso não está acontecendo. Só pode ser um pesadelo


terrível e muito realista.

Puta que o pariu!

— Ficou muda, amor?

Henrique tem um jeito irritante e único, nunca me deparei com


um homem que consegue sorrir de canto e ser tão lindo e tão
enervante ao mesmo tempo. Além do mais, ele sempre tem uma
resposta molesta na ponta da língua.

Pisco, percebendo que ainda estou muda e que ele continua


me encarando, os olhos brilhando em zombaria enquanto a sua
companheira e a vizinha fofoqueira esperam uma ação minha,
qualquer que seja.

Pigarreio, sentindo o calor subir pelo meu pescoço.

Recupero a minha voz, querendo morrer.

— Eu... eu... — Inspiro e expiro o ar profundamente antes de


continuar: — Eu preciso dormir.
Ele levanta uma sobrancelha em desdém.

— E? — Ele cruza os braços tatuados em frente ao peito,


evidenciando ainda mais os seus músculos, me distraindo
momentaneamente.

Cerro o maxilar com força ao perceber que ele está caçoando


de mim, a raiva corroendo as minhas veias como lava.

Meu Deus, eu odeio tanto esse homem!

— E você está fazendo um pequeno escândalo! Peça para a


sua amiguinha parar de gritar. — Faço um sinal com as mãos,
frustrada.

Pendendo a cabeça para o lado, um dos cantos dos lábios do


juiz se curva em um sorriso astuto.

— Ah não, a culpa é toda minha. Não sei satisfazer uma mulher


pela metade, então...

Seu tom de voz envia arrepios por todo o meu corpo e faz o
meu interior se contorcer em curiosidade. Balanço a cabeça, me
desfazendo dos pensamentos relacionados a ‘sexo e Henrique’ na
mesma frase.

Juiz idiota, babaca, arrogante! Grito os xingamentos


mentalmente, enquanto imagino que eu estou socando a sua cara,
arrancando a unhadas essa expressão de petulância.

— Afinal de contas, o que diabos você está fazendo aqui? —


Me dou por conta da pergunta mais essencial a ser feita desde que
a porta fora aberta.

Henrique solta uma risada de escárnio.

— Eu moro aqui, amor.


O jeito como ele me chama de amor me irrita em patamares tão
elevados que eu sinto como se o fogo do próprio inferno estivesse
percorrendo as minhas veias.

— O quê? — Passo a mão nos cabelos, frustrada.

— Me mudei há dois dias.

Porra! Ele é o vizinho executivo que a dona Celene havia


comentado. Isso só pode significar que eu joguei pedra na cruz ou
que fui uma péssima pessoa na minha vida passada, porque não é
possível que, de toda a cidade, esse infeliz resolveu se mudar
justamente para o apartamento ao lado do meu.

— Mais alguma coisa? — Descruza os braços, segurando a


porta, ameaçando fechá-la.

— Sim. Se você continuar com essa perturbação da


tranquilidade, entrarei em contato com o síndico.

Henrique me encara profundamente, piscando os olhos em


silêncio, então solta uma gargalhada estrondosa, colocando uma
mão na barriga e dobrando o corpo ao meio.

Mas isso é ultrajante! Esse idiota não está me levando a sério.

Ele limpa algumas lágrimas do canto dos olhos, dando um


sorriso extremamente irônico e aproximando-se de mim.

— E vai falar o que exatamente para ele, doutora? — sussurra


tão próximo ao meu ouvido que seu hálito me causa leves tremores
e o cheiro do seu corpo me deixa molhada. — Vai dizer que o
vizinho está tendo uma bela manhã de sexo e que tu adoraria
participar, mas não tem coragem? — pergunta com a voz lânguida.

Ofegante, dou um passo para trás, com o coração acelerado


e... inferno! Esse filho de uma mãe me deixou excitada!
Não permitindo que ele veja que me abalou mais do que
deveria, levanto um dedo em riste em sua direção.

— Você é um babaca!

Henrique revira os olhos.

— Agora me conte uma novidade.

— Um idiota, arrogante.

— Uhum... — Ele começa a numerar nos dedos todas as suas


“qualidades” que estou cuspindo boca a fora.

Ah, dane-se! Não queria gastar meu réu primário com uma
droga de Termo Circunstanciado de lesão corporal, mas esta
situação requer medidas drásticas.

Meus lábios se dividem, preparados para proferir os próximos


xingamentos, mas antes que eu possa responder, a voz feminina
enrouquecida soa logo atrás de Henrique, interrompendo-nos.

— Hã... com licença, preciso ir para casa.

Com os sapatos em mãos, a mulher basicamente corre para


fora do apartamento e estupra o botão do elevador, fugindo o mais
rápido possível de toda essa confusão. Ela nem mesmo oscila
quando entra com sucinta rapidez na caixa metálica, indo embora.

Em silêncio, giro minha cabeça de volta para a frente,


encarando Henrique, o qual permanece olhando para o local onde
sua companheira acabou de sumir. Vejo a mudança das suas
feições ao perceber o que, de fato, acabou de acontecer.

Seus olhos vêm e encontro aos meus, uma expressão enfezada


no rosto.

— Viu o que tu fez?


Internamente, comemoro as próximas horas de silêncio,
soltando bombas e fogos de artifício. Externamente, sorrio de lábios
fechados, deixando-o ainda mais irritado.

Sem falar mais nada, Henrique gira sobre os calcanhares e


bate a porta na minha cara.

— Tenha um bom-dia! — grito, ouvindo um pequeno grunhido


do lado de dentro.

— Fazia tempo que eu não via um barraco tão bom quanto


esse. — Dona Celene bate palmas, assustando-me, pois eu havia
esquecido completamente da sua presença.

Coloco a mão no coração, entrando em meu apartamento.

— Obrigada! — agradeço, fazendo uma reverência exagerada.


— Agora poderemos descansar em paz.

— Espero que isso se repita mais vezes, porque isso sim é uma
fofoca das boas.

— Até mais! — Abano com a mão, fechando a porta o mais


rápido possível, tentando evitar a vizinha invasiva.

Solto um suspiro profundo, correndo para o meu quarto,


querendo me jogar em minha cama e dormir pelo resto do dia.

— Você não tem ideia do inferno que tudo se tornou — reclamo


para Fernanda enquanto faço o alongamento antes de começar os
exercícios.
Frequentamos a mesma academia para poder conversar,
contudo, isso só é possível aos domingos, quando nós duas
conseguimos ir no mesmo horário. Durante o restante da semana é
cada uma por si.

— Eu não acredito que ele virou seu vizinho. — Gargalha,


achando graça na minha falta de sorte.

— Acredite. E, para piorar, precisarei passar o restante dos


meus dias naquele apartamento ouvindo os gemidos das mulheres
que ele leva para casa. — Reviro os olhos, alongando a coluna.

Fernanda solta um suspiro audível, ainda sorrindo.

— Barbaridade[3]! Amiga, tu tá ralada.

— É, eu sei. Vamos para a esteira primeiro? — pergunto,


querendo mudar de assunto.

— Sim.

Ligo a esteira em um ritmo tranquilo para o início das próximas


horas de exercícios. Não coloco os fones de ouvido, não quando
estou acompanhada; volta e meia Fernanda e eu começamos a
conversar sobre coisas alheias.

Ontem, depois que eu basicamente corri a foda de Henrique,


pela graça de Deus ele ficou em silêncio, mantendo a paz no
condomínio por um dia inteiro. Portanto, resolvi não sair de casa,
apesar de ser sábado. Ignorei meu pai, encomendei um lanche,
assisti alguns filmes e dormi cedo.

— Meu Deus! Como eu pude esquecer de te contar quem eu vi!


— Fernanda dá um tapa na testa e para sua esteira, assustando-me
com a súbita mudança.

— O que foi? — Lanço-lhe um olhar de esguelha enquanto pulo


para o chão, abrindo a garrafa de água.
— Nossa senhora, eu sou uma esquecida! Antonella, tu teve
notícias do Gustavo?

Sinto minha testa franzir com a sua pergunta totalmente


aleatória. Levo a garrafa aos lábios, bebendo mais alguns goles de
água, molhando a minha garganta sedenta, antes de responder a
sua pergunta.

— Não.

Gustavo foi um ex-namorado meu; bom, acho que posso


denominá-lo assim, considerando que passamos alguns meses
juntos. Nunca colocamos status no que tínhamos, mas eu ficava só
com ele e ele só comigo.

Ele trabalhava no Hospital das Clínicas de Porto Alegre, mas


conseguiu uma vaga na oncologia em um hospital de São Paulo.
Com a mudança, nos afastamos e rompemos o que tínhamos.

— Eu o vi. — Fernanda dá um tapa em meu ombro, como se


tivesse acabado de contar a notícia do ano, pela animação
incontida. — Eu estava saindo da creche e ele indo buscar o carro
que tinha estacionado ali perto. Nós conversamos, ele perguntou de
ti... — Arqueia uma sobrancelha de maneira sugestiva. —... e me
contou que voltou para Porto Alegre. Voltou a trabalhar no Hospital
das Clínicas.

Isso realmente é uma novidade. Faz o quê? Cinco meses que


ele foi embora? Pensei que Gustavo fixaria residência permanente
em São Paulo.

— Interessante... — murmuro, abrindo um sorriso irônico.

Gustavo certamente não é o amor da minha vida, nem nunca


foi. Nosso relacionamento se baseava na amizade que construímos.
Eu não sei, nunca consegui sentir aquela química com ele, ou o
meu estômago se revirar porque teríamos um encontro, nada disso.
Mas também não significa que eu não esteja animada por
reencontrá-lo.

— Eu já sei como podemos articular esse encontro. —


Fernanda pisca um olho.

Reviro os olhos sabendo que lá vem bomba.

— Como, santa casamenteira?

Ela me lança um olhar enfezado.

— Ele está sempre lá perto da creche. Não sei exatamente o


que ele faz lá, mas está sempre. Enfim, posso falar que vamos ao
bar... deixar a sugestão no ar e ver se ele aparece.

Ah, claro! Ótima ideia! Por qual motivo eu não havia pensado
nisso mesmo?

Coloco as mãos na cintura, soltando um suspiro profundo.

— E se ele estiver namorando ou com alguém?

— Se ele estiver com alguém, ele não vai. Vamos, Antonella! —


Sacode o meu ombro. — Tu queria me levar ao bar, essa é uma
ótima chance.

Encolho os ombros, dando-me por rendida.

— Yeesss! — comemora, dando socos no ar.

— Agora, podemos malhar?

— Sim.

Esfrego a toalha na nuca, limpando o suor que escorre após a


meia hora de cardio na esteira.
— Perna ou braço? — pergunto, correndo os olhos pelo local
em busca dos equipamentos menos movimentados.

— Perna.

Estou prestes a ir até os equipamentos quando vejo Henrique


Zion entrando pela porta da frente. O desgraçado perambula pela
academia assombrosamente sexy com sua graciosidade própria e
arrogância infinita.

Começo a me questionar internamente o que raios eu fiz para


merecer encontrá-lo por todo lugar.

Viro de costas tão rapidamente que, sem querer, dou um


safanão em Fernanda.

— Meu Deus, o que foi? — Passa as mãos nos cabelos,


tentando se reequilibrar.

— O maldito! — Aponto com o queixo disfarçadamente, os


dentes cerrados pela mandíbula contraída.

— Que maldito? — Fernanda franze a testa e olha por trás do


meu ombro. — Nossa senhora! Os anjos foram expulsos do céu? —
Abre um sorriso malicioso.

Ah, meu Jesus Cristo!

Seguro seus braços com força, tentando fazê-la parar de


contemplar o idiota.

— Fernanda, é o juiz! — revelo, beirando a histeria.

Ouço-a resfolegar, trazendo seus olhos de encontro aos meus,


arregalados.

— Eu acho bom tu se preparar — cicia, quase inaudível.

— Por quê?
Pigarreia, limpando a garganta, os cantos dos olhos assumindo
contornos de diversão.

— Porque ele está bem atrás de ti. — Abre um sorriso sem-


graça.

Sinto o meu corpo rígido, enquanto o meu coração troveja no


peito.

Deus amado... Talvez ele não me reconheça.

Bem, nos encontramos somente três vezes, nem todas as


pessoas conseguem decorar a fisionomia da outra em tão pouco
tempo, além do mais, estou suada e descabelada, diferente das
outras ocasiões em que nos vimos.

Vou ficar quieta, tão parada a ponto de ser confundida com uma
estátua.

Meus ombros doem pela rigidez, minha respiração está


acelerada e isso não tem nada a ver com os esforços físicos
conduzidos momentos antes.

Eu espero, mas nada acontece.

Prestes a soltar a respiração que eu nem havia percebido que


estava sufocando, a voz firme de Henrique Zion enche os meus
ouvidos:

— Olá, doutora.

Ah, não, fui descoberta! Droga!

Tensa, mordo a boca, largando os braços de Fernanda e me


virando lentamente para ele, enquanto abro um sorriso falso.

Como é possível Henrique ficar a cada dia mais lindo e mais


cretino ao mesmo tempo?
O juiz veste uma regata verde, deixando os braços musculosos
e tatuados em evidência, assim com as veias que sobem dos pulsos
até os cotovelos. A bermuda preta é larga, mas sei que deve tornear
sua bunda dura e redonda, bem como deixa perceptível suas pernas
tão musculosas quanto o restante do corpo.

Ele segura uma garrafa de água na mão esquerda e o celular


na direita, enquanto abre um sorriso aniquilador em minha direção.

Minha respiração torna-se levemente ofegante, e embora seja


por causa da sua presença, forço para que cada farfalhar do meu
peito irradie autoconfiança.
O destino é um verdadeiro filho da mãe traiçoeiro, afinal, de
toda a grande Porto Alegre, eu vim parar justamente no
apartamento ao lado da gostosa e incrivelmente insuportável
Antonella. E ela, fazendo jus ao seu mau-humor, conseguiu correr a
morena que me fazia companhia, deixando-me o resto do fim de
semana sozinho.

Caminho até a academia que encontrei no Google com os


fones de ouvido a todo volume, tocando Goo Goo Dolls — Iris.
Graças a Antonella, precisarei ir malhar para queimar toda a energia
acumulada.

Não fui ao bar ontem; caí na cama pouco depois do dia


anoitecer e só acordei hoje, morrendo de fome e com o corpo
totalmente descansado – afinal, eu não dormi nada de sexta para
sábado. De uma coisa Antonella tinha razão: a guria que eu levei
para casa era bem escandalosa.
Meu celular começa a tocar, interrompendo a música.
Suspirando, atendo a ligação.

— Henrique Zion.

— Até que enfim, meu filho. — Ouço a voz de Charlotte do


outro lado da linha.

— Tudo bem, mãe?

— Estaria melhor se meu único filho fizesse questão de visitar


os pais vez ou outra. Ainda mais agora, que estamos novamente
morando na mesma cidade. Faz quanto tempo que se mudou,
Henrique? Duas semanas? Três?

Aproveito que o sinal para que os pedestres atravessem a rua


está verde a acelero o passo. Acendo um cigarro, tragando a
fumaça de nicotina para dentro dos meus pulmões, em uma
tentativa frustrada de acalmar os meus nervos por conta dessa
ligação.

— Eu estive ocupado com a mudança. — Pisco um olho para


uma loira estonteante que me seca com os olhos, deixando-a
corada.

— Entendo... mas isso não significa que precise ignorar seus


pais — insiste.

Passo uma mão nos cabelos, frustrado por toda essa pressão
absurda. Quando Antônio era vivo, nem minha mãe, e muito menos
o meu pai, se importavam com a minha companhia. Eu poderia
passar meses trancado dentro do quarto que eles nem notariam.
Agora, é como se fosse uma obrigação eu dar a eles a atenção que
nunca me deram.

— Eu vou arranjar tempo para ir visitá-los.


Eu sabia que isso aconteceria quando aceitei a vaga em
Guaíba, só pensei que teria mais tempo para arranjar desculpas
plausíveis.

Jogo as cinzas do cigarro no chão.

— Fico feliz em ouvir isso. — Charlotte suspira. — Seu pai anda


um pouco doente, sabe?

Trinco o maxilar com força, tentando fingir indiferença com o


que eu acabei de escutar.

— É mesmo?

As pequenas fisgadas de preocupação em meu coração não


significam nada para mim, pois eu não me importo com o juiz.

— Sim. Ele foi no médico. O homem disse que seu coração


está ficando cada dia mais fraco.

Massageio as têmporas com os dedos indicadores, sentindo


uma pequena pontada de dor de cabeça.

— Vai ficar tudo bem, mãe. — Não sei o que falar, então
concluo que o melhor a se fazer é dar-lhe apoio.

Sopro a fumaça, balançando a cabeça, querendo evitar que


essa preocupação me consuma.

— Espero que sim... já perdi um filho, não tenho condições


psicológicas de perder o marido também.

Deus! Sinto meus olhos e garganta ardendo, meu peito


comprimindo. Não quero entrar nesse assunto; não agora, talvez
nunca.

Vejo uma grande placa luminosa e chamativa à minha frente,


delatando se tratar da academia.
— Mãe, cheguei na academia. Eu te ligo mais tarde. — Levo a
mão até o fone, aguardando o seu adeus, ansioso para encerrar a
ligação.

— Tudo bem. Até mais, Henrique.

— Até mais. — Aperto o botão, sem esperar por mais palavras.

Jogo a bituca de cigarro em uma lixeira.

Esfrego o peito, tentando amenizar a angústia que comecei a


sentir após ouvir minha mãe falando que meu pai está doente. Eu
não deveria estar sentindo isso, eu o odeio. Sua saúde não deveria
me perturbar.

Chacoalho a cabeça, me desfazendo dos pensamentos assim


que entro no prédio. Passo pela recepção e já efetuo o pagamento
do mês, sem nem mesmo fazer a tal aula experimental.
Considerando que eu amo malhar e amo mais ainda Muay Thai, não
preciso experimentar nada.

Esquadrinho o local, familiarizando-me com tudo. Meus olhos


pausam em um canto mais afastado. Um sorriso involuntário brota
em meus lábios, pois, mesmo de costas, reconheço imediatamente
a pessoa que parece estar com os ombros rígidos.

Ou Antonella está gradativamente cansada pelos esforços


físicos ou sua austeridade está relacionada a minha presença.
Hum... acho que preciso descobrir.

Em passos deliberados, caminho em sua direção com o sorriso


estampado em meu rosto.

— Olá, doutora.

Antonella permanece mais alguns segundos de costas. Então,


vira-se lentamente, endireitando os ombros; ela esboça um sorriso
irônico nos lábios.
— Olá, Henrique.

Ao seu lado há uma guria que nos observa, os olhos vagando


de um para o outro, detalhadamente. Ela coça a garganta, dando
um leve cutucão em Antonella.

Antonella revira os olhos, incontida.

— Essa é Fernanda, minha amiga.

Fernanda possui cabelos castanho-claros que vão até o meio


das costas, os olhos cor de mel; a boca pequena com o rosto e o
nariz fino, fazem um contraste harmônico.

— Melhor amiga — exalta. Analisando-me com certa


curiosidade, estende a mão em cumprimento. — Prazer em
conhecê-lo.

Levo sua mão até os lábios, plantando um beijo em seu dorso


de forma cortês, fazendo-a suspirar.

— Encantado.

Antonella bufa, puxando a amiga para longe de mim. O bico


perfeito que faz com a boca denuncia o quanto está irritada com a
minha presença.

Passo meus olhos pelo seu corpo, cedendo ao desejo de


examinar cada mínimo detalhe, mesmo que não seja o certo.
Antonella usa uma calça legging de duas cores, rosa e cinza,
acompanhada por um cropped que faz conjunto e realça seus seios
firmes. Os cabelos castanhos estão presos em um rabo de cavalo,
com alguns fios soltos pelo esforço dos exercícios.

— Você vai começar a treinar aqui? — pergunta, indiferente; a


frieza em seu tom faz meu pulso martelar em frenesi.
— Sim. — Dou de ombros, abrindo minha garrafa de água,
levando o gargalo à boca. Propositalmente, deixo algumas gotas
escorrerem pelo meu queixo até a barba, tudo sendo
detalhadamente inspecionado por Antonella.

Ela pigarreia, desviando o olhar para o chão.

— Nós precisamos ir treinar, ainda temos compromisso. — Ela


aponta para o outro lado com a cabeça, semicerrando os olhos para
a amiga.

— Temos? — O cenho de Fernanda franze em total confusão.

Antonella arregala os olhos encarando fixamente a amiga, em


uma conversa silenciosa e mental que elas estão compartilhando.

— Ah... aquele compromisso... verdade... — Fernanda se vira


para mim, abrindo um sorriso amarelo. — Bom, precisamos ir...
temos um compromisso inadiável... Até mais.

— Até mais, Henrique Zion. — Sua animosidade em pronunciar


o meu nome é... admirável.

Antonella puxa a amiga, afastando-se, mas antes que possa ir


longe o suficiente, agarro o seu pulso, puxando-a de volta.

— Tu vê só... parece que estamos destinados a esbarrar em


todos os lugares... — Um dos cantos dos meus lábios se repuxa em
um sorriso bruto e sexy.

Antonella arqueja, olhando para a minha mão entrelaçada em


seu pulso e, posteriormente, para mim. Mesmo tentando fingir
indiferença, sei que a minha presença lhe deixa incomodada.

Por um segundo, um milésimo que fosse, pensei que ela


estivesse abalada demais para pensar com coerência, porém, como
uma víbora muito bem treinada, a advogada abre um sorriso – um
sorriso incrivelmente diabólico –, trazendo seu corpo junto ao meu,
encostando os mamilos rígidos e empinados em meu peitoral,
enquanto sua boca passeia pelo meu pescoço, seu hálito quente
roçando em minha pele, até chegar ao meu ouvido.

— Que sorte a minha, não? — A risada rouca me causa


arrepios na coluna e em outras partes que deveriam permanecer
adormecidas. — Pena que eu não tenho interesse nenhum em você.

Agarro suas costas, fundindo ainda mais os nossos corpos –


como se fosse possível, dado a nossa já então proximidade.

— Pena que eu não acredito em ti. — Minha voz parece um


sussurro rouco.

— Acredite, excelentíssimo, você não faz o meu tipo.

Meu coração acelera, arregalo os olhos.

— Que grande infâmia, eu faço o tipo de todo mundo!

Antonella solta uma risada afônica, esfregando com a maior


cara deslavada de todas a sua perna na minha virilha, o que me faz
cerrar o maxilar.

— Bem, sinto desapontá-lo.

Dito isso, ela se afasta, rebolando sua bunda redonda, me


deixando como um verdadeiro idiota parado no meio da academia,
sem palavras.

Porra, mas que cretina!

Passo a mão nos cabelos, saindo de meu estupor. Corro os


olhos pelo local em busca do banheiro, caso contrário, as mulheres
presentes irão me denunciar por ser um assediador tarado, afinal,
Antonella me deixou de pau duro.

Desgraçada! Ela não perde por esperar.


Sento em uma das cadeiras do balcão de bebidas do meu bar.
Mesmo após passar horas treinando, tentando ocupar a minha
mente, a conversa que tive com Charlotte, infelizmente, permanece
me atordoando.

Como eu gostaria de ter ao menos um pouco da frieza de


Antônio Zion e ignorar completamente seus problemas de saúde,
ainda mais depois de tudo o que ele me fez. Contudo, eu não
consigo ser assim, e mesmo o homem tendo sido um verdadeiro
filho da puta, eu ainda me preocupo com ele.

E é exatamente isso que me torna melhor do que o meu pai.

Uma caneca de chopp é posta em minha frente, dissipando


minhas divagações. Levanto os olhos e encontro Victor me
encarando com uma das sobrancelhas arqueadas.

— Pela tua cara, pensei que precisaria de um pouco de álcool.


— Encolhe os ombros.

Suspiro, recolhendo a bebida e dando um longo gole. O gosto


amargo e gelado desce pela minha garganta, me causando uma
sensação de prazer.

— Então, qual é o problema? — Seca as mãos em um


guardanapo, jogando-o por cima do ombro, posteriormente.

— Segundo a minha mãe, Antônio está doente.

Victor arregala os olhos, puxando um banco para se sentar.


Percebendo que a conversa será longa, ele deposita os cotovelos
em cima do balcão, segurando a cabeça com as mãos, atento.
Com o seu silêncio, continuo a explicação:

— Não sei ainda qual a proporção da doença, nem nada


relacionado a isso. — Me antecipo. — Ela só disse que o seu
coração está falhando. E o que me deixa ainda mais irritado com
tudo isso, é simplesmente a forma como eu me preocupo.

Esfrego o rosto, exausto.

— Cara, independente do que ele fez, ele ainda é o seu pai. Tu


não é um robô, é um ser humano, é claro que ficaria preocupado.

Inspiro fundo, soltando o ar pela boca devagar.

— Eu vou visitar o infeliz, ver como está sua verdadeira


situação. — Gesticulo com a mão, fingindo desdém.

— E está mais do que certo. Se alguma coisa acontecer com o


seu pai, conheço-o suficientemente bem para saber que jamais irá
se perdoar, portanto, somente vá.

Balanço a cabeça com veemência, concordando com seus


argumentos.

Victor é meu amigo há anos, me conhece melhor do que


ninguém. Além do mais, ele sabe que, apesar da relação
conturbada que eu tenho com os meus pais, no fundo, eu ainda os
amo, por mais que eu acredite que eles não merecem esse amor.

Bebo mais um gole do meu chopp, agora já pela metade.

— Agora, Victor Leivas, quando pensou em me contar que eu


estou morando no mesmo prédio que a sua amiga Antonella? —
Arqueio uma sobrancelha, de maneira sugestiva.

Victor engasga com a própria risada, chacoalhando a cabeça.

— Então vocês já se cruzaram por lá? Pensei que, pelo


tamanho do prédio, isso jamais aconteceria. — Seus olhos ganham
contornos de diversão.

— E não aconteceria mesmo, não fosse o fato do meu


apartamento ser ao lado do dela.

Ele bate palmas, soltando uma gargalhada estrondosa e


exagerada, chegando ao ponto de curvar o corpo para rir,
gorgolejando.

— Eu não acredito! Antonella deve estar possessa de raiva.

— Depois da seção de sexo, com certeza sim — murmuro,


fazendo Victor me encarar.

— O quê? — Ele cessa imediatamente a risada.

— Levei uma mulher para casa. A guria parecia que estava


contracenando um filme pornô, gritava e gemia como uma louca.
Antonella mora no apartamento ao lado e não conseguiu dormir;
bateu na minha porta e descobrimos a coincidência de que somos
vizinhos. — Encolho os ombros.

— Puta merda! Antonella deve te odiar ainda mais agora.

Termino meu chopp, colocando o copo vazio de volta no balcão.

— Na verdade, ela deveria me agradecer. Prometi multá-la pelo


abandono processual e acabei nem fazendo nada.

— Ah, claro, agora se tornou a pessoa favorita da vida dela.


Pode apostar. — Revira os olhos.

Descanso meus pés no banco ao lado, pouco me importando


com os bons modos.

— Então, me conte mais sobre Antonella... —Finjo indiferença.

Victor semicerra os olhos, franzindo o nariz.


— Não acha que tu está interessado demais na guria?

Solto uma gargalhada e recebo um olhar duro, com a


sobrancelha arqueada.

— Desculpe, mas isso até parece uma piada. — Gesticulo de


forma exagerada. — Meu interesse é meramente profissional —
acrescento.

Ele escrutina todo o meu rosto, tentando detectar alguma


mentira, mas é interrompido pela entrada de um homem no bar.

— Victor! — O homem loiro, pouco mais baixo que eu, se


aproxima, dando leves batidas nas costas do meu sócio.

— Geremias! Como vai? — Victor se levanta, demonstrando ser


bons centímetros mais alto que ele.

— Tudo ótimo e por aqui?

— Tudo bem, também. Então, por qual motivo você nos honra
com a sua presença? Sabe que ainda estamos fechados, não?

Geremias ri, puxando um banco para se sentar.

— Sei, sim. Na verdade, eu vim ver se já foi confirmada a


viagem para a Serra Gaúcha. — Ele encara Victor com os olhos
brilhando em interesse.

Pela primeira vez na vida vejo Victor sem jeito. Meu sócio passa
uma mão na nuca, abrindo um sorriso de boca fechada; seus olhos
correm até mim e, percebendo que eu o inspeciono, desvia-os para
o chão imediatamente.

— Claro. Tudo certo.

— Bom, era só isso mesmo que eu queria saber. Preciso pedir


férias. — Ele se levanta, colocando o banco de volta no lugar.
— Se era isso que estava lhe impedindo, saiba que está livre
para fazer a solicitação. A data já está acertada; sem mudanças, até
então.

— Perfeito! Estou ansioso para essa viagem. — Esfrega uma


mão contra a outra, animado. — Até mais. — Se despede de nós
dois.

— Até mais, Geremias! — Victor acena.

Meu sócio mantém o olhar longe do meu ao retornar para o


lugar em que estava antes da chegada de Geremias, o que me
causa estranheza.

— Que viagem é essa? — resolvo perguntar, quebrando o


silêncio.

Ele solta um suspiro.

— Vamos fazer um encontro de motos na Serra Gaúcha no mês


que vem — revela.

Abro e fecho a boca, sem saber ao certo o que falar.

— E por que eu não fui comunicado? — Encontro minha voz,


por fim.

— Porque Antonella vai junto, e vocês não se dão exatamente


bem.

Eu não acredito que Victor estava mesmo pensando em me


deixar de fora do primeiro encontro de motos que acontecerá desde
que eu voltei para Porto Alegre.

Quando era mais jovem e ainda vivia aqui, nós dois, por muitas
vezes, partilhávamos a moto. E agora ele simplesmente me colocou
de escanteio por causa da advogada?!
— Tu ia me deixar de fora só por causa disso? Um dia fomos
mais amigos, Victor! — Deixo a mágoa transparecer, enquanto me
levanto do banco prestes a ir embora.

— Espera, Zion! — Victor segura o meu braço, impedindo-me


de sair. — Eu pensei em falar, na verdade, eu ia fazer isso. Mas
depois da forma como eu vi que vocês agiram um com o outro,
desisti da ideia. Não me leva a mal, mas Antonella vai em todos os
encontros, ela é figura marcada.

— E eu não morava mais aqui, então a preferência é dela e blá


blá, blá. — Tento puxar meu braço de volta, mas ele mantém o
aperto firme.

— Não exatamente, eu só queria falar com ela primeiro. Saber


se ela ficaria à vontade. Poxa vida, sou o melhor amigo dela.

Solto um suspiro, correndo a mão livre pelos cabelos.

— Tudo bem, eu entendo.

Victor solta o meu braço ao perceber que eu não coloco mais


resistência e não vou sair correndo do bar.

— Não! Eu errei, deveria ter feito a oferta. Só quero que saiba


que Antonella não tem moto, ela sempre viaja comigo.

Levanto imediatamente a cabeça, prestando atenção nas


palavras de Victor, como se elas tivessem se tornado muito
significativas diante dessa revelação.

— Quando é e para onde?

— Vamos para Nova Petrópolis. Sairemos na quinta e


retornaremos no domingo. Se tu realmente for, precisa confirmar,
pois eu tenho que reservar as cabanas e preciso do número exato
de pessoas.
Viajar com Antonella... Meu cérebro fala, grita, que eu devo ficar
longe da advogada desbocada, no entanto, meu coração exaspera o
contrário.

Nada melhor do que uma viagem para trocar farpas, não é


mesmo?

Abro o meu sorriso de canto.

— Sou presença confirmada.

— Que Deus me ajude a aguentar tu e Antonella por um fim de


semana inteiro — murmura Victor, olhando para cima, como se
estivesse pedindo forças aos céus.
Observo, com as mãos nos bolsos, a rua movimentada alguns
metros abaixo dos meus pés. O edifício do escritório em que eu
trabalho é realmente deslumbrante, e é claro que a sala privilegiada
e a vista magnifica corroboraram para a minha aceitação na oferta
de emprego.

Vejo o exato momento em que o meu pai sai cabisbaixo do


edifício, acionando o alarme do seu carro e sumindo no mar de
veículos da avenida.

Desde que ele me apresentou forçadamente a sua namorada,


eu venho o evitando. Gael me ligou por dias seguidos, foi no meu
prédio, mesmo sem saber que eu dei ordens expressas ao porteiro
para omitir a minha presença. E hoje, cansado de bater com a cara
na porta, veio até o meu trabalho – e é claro que eu o despistei mais
uma vez.
Viro de costas para a janela de vidro, soltando um suspiro. Meu
peito comprimido é a prova do quanto estou sofrendo por isso,
porém, minha teimosia e rebeldia ainda gritam mais alto.

Jogo o corpo em minha cadeira giratória, fazendo-a oscilar.


Retumbo os dedos na madeira lisa da minha mesa, pensando em
como minha vida mudou drasticamente nos últimos anos. Não
posso falar que tudo foi ruim. Eu terminei a faculdade, passei na
OAB, consegui um emprego dos sonhos. E há dois meses estive
comemorando no Bar do meu melhor amigo a aprovação da minha
tese de doutorado em ciências criminais.

Contudo, jamais imaginei que, ao conseguir o sucesso


profissional, eu veria a minha vida familiar ruir.

Quando mamãe era viva, eu era a garotinha do papai, sua


eterna menininha. Hoje, não somos nada além de meros estranhos.

A rosa branca tatuada na parte interna do meu braço parece


queimar em minha pele. Sei que se mamãe estivesse viva, estaria
decepcionada comigo e com Gael, e com a forma como deixamos
nossa relação de pai e filha esfriar.

A tatuagem, o símbolo do meu amor e admiração...

Mamãe era viciada em novelas, mas uma delas foi a sua


preferida: Alma Gêmea, do diretor Jorge Fernando. Ela era
apaixonada pela Luna/Serena, dessa forma, acabou também se
apaixonando por rosas brancas, o símbolo da novela, então fiz essa
tatuagem em sua homenagem.

Fecho os olhos úmidos e respiro fundo, tentando acalmar as


batidas aceleradas do meu coração. É sempre assim, todas as
vezes que me lembro dela ou de algo que a represente.

Por isso eu faço o possível para não pensar.


Aprendi que evitar a realidade ajuda a mirrar a dor, tornando-a
nada mais do que um mero aborrecimento.

As batidas na porta ecoam pelo leve torpor em que me


encontro. Levanto os olhos e vejo Brenda entrar na sala com
algumas pranchetas nos braços.

— Doutora, os sócios pediram para que eu viesse lhe entregar


um novo caso. — Ela deposita os papéis em minha mesa.

Largo a caneta para averiguar do que o meu novo trabalho se


trata. Leio pouco mais do que algumas linhas antes de jogar os
papéis para longe, deixando algumas folhas voarem para o chão,
como se elas estivessem queimando meus dedos.

— Está tudo bem? — Brenda arregala os olhos, boquiaberta.

— Eu não vou assumir esse caso. — Passo uma mão no


cabelo, nervosa.

Minha garganta arde com as lembranças do que os meus olhos


acabaram de ler.

— Eu... eu não sei se os sócios vão ficar felizes com isso... —


murmura.

Roberto e Caetano Viturino, meus chefes e sócios do escritório,


são irmãos. Eles não são seletivos nos casos que selecionam, não
se o cliente tiver condições de pagar os honorários exorbitantes que
eles cobram. Porém, quando aceitei essa proposta de emprego falei
que era reticente quanto ao crime de estupro ou qualquer violência
de cunho sexual ou preconceituosa.

— Eu não me importo com a felicidade ou infelicidade deles.


Não vou assumir este caso.

Parece que não ando na lista das pessoas favoritas de Roberto


e Caetano desde que fui destituída do processo do Marcos. Embora
eles tenham me perdoado pessoalmente, essas folhas em minha
mesa dizem o contrário disso.

O caso em questão trata de um estupro de vulnerável. O avô


materno, um homem rico e muito bem-sucedido, estuprava a neta
de apenas quatro anos. A menina começou a demonstrar um
comportamento atípico na escola, fazendo desenhos de cunho
sexual. O crime foi denunciado, fizeram o exame e constaram a
verdade.

— Eu vou levar de volta. — Brenda se agacha, juntando os


papéis que caíram no chão.

— Você leu? — Apoio um cotovelo à mesa, segurando a


cabeça com a mão.

Ela morde o lábio inferior, nervosa.

— Li. — Desvia o olhar, recolhendo os papéis da mesa e


juntando com os que estavam no chão.

— E você defenderia se estivesse no meu lugar? — Mantenho


minha expressão neutra, impassível, enquanto inquiro a minha
estagiária.

Ela pigarreia, as maçãs do rosto recebendo um leve contorno


rosado.

— Não — responde, por fim.

Solto um suspiro, balançando a cabeça com veemência, feliz


por Brenda compartilhar da mesma opinião que a minha.

— Leve esses papéis de volta e diga a eles que não atuarei


nesse processo sob hipótese alguma. — Faço um gesto de mãos.

Ela agarra os papéis rente ao corpo, seus olhos me


inspecionam, temerosos.
— Mesmo que eles a despeçam?

Esfrego as mãos ao rosto, soltando um suspiro, exausta.

— Sim, mesmo que isso acarrete a minha despedida.

Brenda engole em seco, saindo da sala tão rápido quanto


entrou, abandonando somente um rastro doce de perfume.

Eu sei que dentro de alguns minutos receberei a inevitável


presença de algum dos nossos chefes, portanto, me acomodo na
cadeira, erguendo a coluna e aguardando.

Depois de passar bons minutos argumentando os motivos do


porquê eu não aceitarei pegar o processo e defender um estuprador
desgraçado, Caetano desistiu de tentar me convencer, mas com
uma condição: a de que eu fosse ao presídio conversar
pessoalmente com Marcos. Meus chefes têm medo do líder do
tráfico, por isso me colocam na linha de frente.

Aciono o alarme do meu carro, sentando-me no banco do


motorista. Retiro o celular da bolsa, jogando-a no banco do carona.
Assim que ligo o veículo, colocando-o em movimento, o telefone
toca.

— Alô. — Mantenho os olhos fixo nas ruas movimentadas.

— Antonella, tu nem sabe! — grita Fernanda, me fazendo


encolher o corpo pelo som estridente.

— O que foi? — Ligo o pisca para dobrar à direita, aguardando


a sinaleira abrir.
— Adivinha quem foi que eu encontrei hoje mesmo aqui perto
da creche? — Apesar de não a ver, pela animação em sua voz, sei
que a minha amiga está andando de uma lado para o outro,
saltitando.

— Quem?

O sinal abre, me fazendo acelerar.

— Gustavo! — exaspera, como se a resposta fosse óbvia.

Lembro imediatamente da conversa que Fernanda e eu tivemos


há alguns dias sobre o meu ex-namorado e seu retorno a Porto
Alegre.

— E? — Tamborilo os dedos na direção, nervosa.

Fernanda acabou de conseguir captar totalmente a minha


concentração.

— E eu fiz conforme o plano. Disse que iremos ao bar amanhã,


já que é sexta-feira... deixei um convite no ar...

— Droga, Fernanda! Fala logo! — Perco o controle, cedendo a


ansiedade.

Fernanda ri do outro lado da linha.

— Ele disse que não tem plantão amanhã, e que está louco
para rever você. Portanto, querida, acho bom tu caprichar no visual.

Abro um sorriso involuntário, ansiosa demais para que a sexta-


feira chegue de uma vez.

Não sou apaixonada por Gustavo, longe disso. Eu só sinto


saudade de um corpo quente para me aconchegar, de uma boa
companhia para ligar quando eu estiver me sentindo muito sozinha,
e claro, de sexo. Desde que ele foi embora, nunca mais encontrei
ninguém para me satisfazer.
— E é claro que você vai junto, não é mesmo?

Fernanda bufa.

— E eu lá tenho escolha? O cupido é a figura mais importante


dessa história toda.

Reviro os olhos, rindo.

— É claro que é.

— Bem, agora tenho algumas crianças para ensinar e educar.


Até amanhã.

— Boa sorte! Até amanhã.

Desligo o telefone sorrindo de orelha a orelha, uma nova


animação crescendo. Estive nos últimos dias perdida em um limbo
em decorrência de todos os fatores que vivi: a briga com o meu pai,
a constatação da existência da minha madrasta e os problemas no
serviço, também com o novo vizinho – vulgo Henrique – acabei
caindo em uma onda de melancolia; isso até agora, até atender a
ligação de Fernanda.

Estaciono o carro em frente ao presídio, descendo do veículo


ainda em êxtase.

Sempre que eu chego em casa após uma passadinha no


presídio, a primeira coisa que eu faço é ir direto para o banho e
colocar todas as minhas roupas para lavar. Nunca me senti bem
indo até lá, vou somente quando é estritamente necessário. Acredito
que cada local ou pessoa possui uma energia, sendo ela boa ou não
– e a energia que sinto todas as vezes que piso no presídio com
certeza não é uma das minhas favoritas.

Saio do banho com uma toalha enrolada ao corpo, enxugando


os cabelos com outra. Paro em frente ao espelho para fazer a minha
rotina de skin care e escovar as madeixas castanhas enquanto
ainda estão molhadas e fáceis de desembaraçar.

A conversa com Marcos foi melhor do que eu esperava.


Diferente do que eu pensava, ou do que os meus chefes
imaginavam, Marcos não está bravo, pelo contrário, ele até achou
engraçada a forma como eu entrei na audiência feito um animal
raivoso, xingando e gritando com o juiz. Tá legal, não pensei que ele
presenciaria meu surto de descontrole, muito menos me lembro
disso ter acontecido, embora eu nunca lembre de nada quando fico
possessa de raiva.

Enfim, Marcos odiou Henrique, adorou meu showzinho e quer


agora mais do que nunca continuar no escritório, pois, segundo ele,
seu caso necessita de advogados determinados como eu. E é claro
que meus chefes ficaram contentes com as respostas do nosso
cliente, então me deram o restante do dia de folga para comprovar
sua satisfação.

Largo a toalha que enxugava os cabelos em cima da pia e saio


do banheiro bem a tempo de ouvir a campainha tocar. Recolho o
meu celular de cima da cama para ver se há alguma mensagem do
porteiro do prédio informando alguma visita – uma visita conhecida,
considerando que ele só deixa passar sem ligar pelo interfone
pessoas do meu círculo íntimo.

Considerando que não há nada e que dos meus vizinhos eu só


conheço a dona Celene, vou atender a porta nas condições em que
me encontro mesmo.

Péssima, terrível, pífia ideia.


Henrique Zion está encostado no batente da minha porta,
sorrindo com seu jeito cafajeste, vestindo apenas uma calça de
moletom. Mergulho na visão dos músculos magros e curvados do
seu abdômen e nas linhas definidas de seu peito e ombro.

Deveria ser proibido, regras explícitas do condomínio, esse


homem perambular por aí despido!

Seguro a toalha com mais força ao meu corpo, me sentindo


exposta demais sob seu olhar analítico e sexual.

— Doutora, ótima forma de recepcionar as visitas — zomba,


correndo uma mão pelas mechas desgrenhadas.

Travo a mandíbula com força, irritada.

— O que você quer? Estou ocupada, se não está percebendo.

Henrique arqueia uma sobrancelha, um dos cantos dos seus


lábios repuxando-se em um sorriso depravado.

— Eu precisava de açúcar, mas se quiser disponibilizar mais do


que isso — Desce o olhar pelo meu corpo quase desnudo. —, estou
à disposição.

O quê? Açúcar? Até parece que um homem com esse corpo


ingere esse tipo de alimento.

Encaro Henrique com a testa franzida, deixando claro que não


acredito nem por um segundo no motivo para a sua visita
inesperada.

— Eu vou pegar o açúcar e somente isso — retruco.

Henrique joga a cabeça para cima, sorrindo.

— Uma pena, pois seria bem mais divertido para nós dois a
segunda opção.
Reviro os olhos, incontida.

Deixando o vizinho indesejado na porta, caminho até a cozinha


para pegar o maldito açúcar, tudo sob a supervisão do juiz. Sem
coragem para me abaixar ou colocar o ingrediente em um pote,
considerando minha falta de vestimentas, resolvo entregar o pacote
inteiro para Henrique de uma vez só.

Ao retornar até a porta, entrego em suas mãos o quilo de


açúcar, não sem antes dar uma boa olhada em seu peitoral
musculoso e analisar algumas das tatuagens. Os desenhos riscados
em sua pele são pretos, frases misturadas com ilustrações.

— Quer chegar mais perto para checar melhor? — Sua voz é


rouca, mas dura.

Levo meus olhos de encontro aos seus e percebo, quase tarde


demais, que estou parada feito uma idiota admirando o seu corpo
com o açúcar em uma mão pendente no ar e, pior ainda, no meio do
caminho.

Bufo, grudando o açúcar em seu peito, deixando minhas unhas


resvalarem levemente na pele quente. Henrique arqueja, colocando
sua mão sobre a minha, mantendo o pacote no mesmo lugar. Um
brilho diferente toma conta dos seus olhos, deixando o clima mais
denso, pesado, até mesmo profundo.

Meu coração soca minha caixa torácica com força, a adrenalina


pulsando rápido em meu organismo. Sua pele contra a minha envia
um arrepio indesejado pela minha coluna, me deixando molhada e
cheia de desejo.

Antes de fazer qualquer besteira, puxo minha mão com força,


sentindo imediatamente a falta do seu toque.

Limpo a garganta, empertigando a coluna.


— Era só isso? — minha voz soa levemente esganiçada,
infelizmente.

Henrique me olha, os lábios repuxados de maneira contrariada,


ainda segurando o pacote de açúcar rente ao peito.

— Se é só isso que está disposta a me dar...

Sinto meu corpo resfolegar com a cara de pau desse homem.

— Você precisaria de muito mais do que um corpo bonito para


ganhar outra coisa.

Henrique não fala nada, somente levanta uma sobrancelha em


desdém.

— Isso é um desafio, doutora?

Encolho os ombros, sorrindo.

— Não estimulo desafios que eu sei que sairei vitoriosa, isso


seria antiético da minha parte.

Henrique se aproxima, dando um passo em minha direção.


Assim, tão perto, consigo sentir o cheiro amadeirado da sua colônia
de barbear e o calor que seu corpo emana.

Descendo os lábios pelo meu pescoço, sua respiração quente


envolve minha pele em arrepios ardentes de luxúria. Ele corre a
boca até o meu ouvido, tão perigosamente perto, tão sensualmente
atraente.

Minha sanidade grita de um lado, enquanto o tesão acumulado


grita do outro.

— Está com medo de perder, doutora? Eu consigo sentir daqui


a sua excitação. — Se afasta, ampliando o sorriso despudorado.
Pisco, tentando fazer minha alma voltar para o corpo após ouvir
essa patifaria e quase me submeter a vontade de lamber seus
gominhos tatuados.

Saindo de meu estupor, jogo as mãos para o alto, frustrada.

— É muito convencido mesmo.

Henrique levanta um dedo em riste.

— Convencido e gostoso, não esqueça essa parte. — Pisca um


olho.

Deus do céu!

Perdendo totalmente a paciência, e quase a compostura,


empurro a porta com força, antes de sucumbir ao crescente desejo
de enfiar a mão em sua cara e responder por lesão corporal.

Ouço sua risada reverberar através da porta fechada. Levo uma


mão ao peito, tentando acalmar o coração que bate acelerado.
Minha vagina lateja em crescente desejo.

— Puta merda! — esbravejo, apertando uma perna contra a


outra.

Furiosa comigo mesma, e mais ainda com o maldito juiz, levo


uma mão até o meio das minhas pernas, sentindo minha
lubrificação. Massageio o nervo sensível, soltando um pequeno
gemido.

Imagens de Henrique tomam a minha mente, enquanto eu


aumento os movimentos, escorregando um dedo pelos lábios
internos. Meu clitóris incha, lubrificando-me ainda mais. Ergo meu
quadril, a sensação boa me envolvendo, enquanto aumento a
fricção. Meu corpo começa a convulsionar por inteiro em um
orgasmo delicioso.
Ainda atrelada a porta, curto meu estado de torpor pós-orgasmo
por alguns minutos.

Me dando conta de que eu acabei de gozar pensando em


Henrique Zion, passo uma mão nos cabelos, nervosa.

— Inferno de juiz gostoso!

Com as pernas ainda bambas, caminho de volta para o


banheiro. Preciso de outro banho, não somente para lavar o corpo,
como também a cabeça, a fim de tirar as imagens do maldito juiz da
minha mente.
Estaciono o meu carro em frente ao bar Rock Club sentindo as
palmas das minhas mãos suadas.

Inspiro e expiro o ar profundamente, com calma.

Segundo Fernanda, Gustavo estará presente hoje, o que


culmina em todo esse meu nervosismo. Bem, faz meses que não
nos vemos e, se tudo der certo, eu terminarei a noite em sua casa,
rolando pelos lençóis, me deliciando em seu corpo – e não
pensando mais em Henrique Zion.

Desço do carro de cabeça erguida, balançando o cabelo e


distribuindo charme, tudo isso para chamar a atenção, vá que
Gustavo já esteja aqui.

Optei hoje por usar um conjunto de shorts e blazer na cor


vermelha e um body rendado preto, o qual combina com os meus
sapatos de salto. Meus cabelos estão soltos como sempre, meus
olhos foram esfumados e delineados, sem contar a extensa
máscara que cobre os meus cílios. Para finalizar, um batom
vermelho nos lábios.

O bar já está lotado, o que vem se tornando comum


ultimamente, ao menos nos fins de semana. Percorro o caminho até
o balcão desviando das pessoas, sem olhar para ninguém em
específico. Como sempre, Fernanda ainda não está, o que não me
surpreender, considerando que a minha amiga sempre se atrasa
para tudo.

Deixo a bolsa em cima do balcão, puxando um dos bancos para


me sentar.

— Ora, ora, Antonella Caregnato. — Victor sorri, secando as


mãos em um guardanapo.

Reviro os olhos.

— Ah, sim, minha presença é totalmente incomum, até porque


eu nunca venho ao bar.

Ele solta uma gargalhada, chacoalhando a cabeça.

— O que vai beber?

Levo uma mão a boca, pensativa.

— Abre uma espumante brut rose.

Victor arqueia uma sobrancelha.

— Quem será a vítima?

Sorrio de boca fechada, impressionada pelo meu amigo me


conhecer tão bem.

— Gustavo está na cidade novamente.


— O médico?

— Ele mesmo.

Ele franze a testa, aproximando-se ainda mais do balcão.

— Não acha que é muita areia pro caminhãozinho daquele


mané?

Victor nunca gostou do Gustavo, não desde que viu o médico


ficando com outra mulher dentro do bar quando ainda tínhamos um
caso. É claro que eu tentei, por inúmeras vezes, explicar ao meu
amigo que nunca tivemos nada sério, mas ele jamais compreendeu.
Ele acha que Gustavo não me merece, e que é um completo idiota.

Solto um suspiro, cansada.

— Eu sei o que você acha, mas acredite, é só para matar o


tempo.

Franzindo o nariz, perscruta o meu rosto minuciosamente.

— Se tu dizes...

— É sério. Agora traga a minha bebida.

Fazendo uma continência, meu amigo se afasta, ainda não


totalmente convencido.

Para passar o tempo enquanto estou sozinha, mexo no


Instagram, olhando os stories dos meus amigos. Não demora para
que Victor deposite uma garrafa de espumante e dois copos na
minha frente.

— Espero que a noite seja divertida — fala em tom arrastado,


retirando a rolha da garrafa.

— Acredite, espero a mesma coisa.


O primeiro gole da bebida desce pela minha garganta como se
fosse um néctar produzido pelos próprios deuses: um bom presente
e algo muito bem-vindo depois da semana conturbada. Estou
depositando o copo de volta no balcão quando Fernanda para ao
meu lado, deslumbrante e linda, como sempre.

— Está atrasada — murmuro, ainda focada no celular.

— Ah, poucos minutos. — Ela ocupa o banco ao lado do meu,


esvaziando em poucos goles o outro copo de espumante.

Viro para ela imediatamente, franzindo a testa.

— Estava com sede, hein?

— Só o que eu preciso hoje é beber. Estou morta de cansada,


as crianças estavam inquietas essa semana.

Solto uma risada de escárnio, sem querer.

— Só essa semana?

Fernanda não responde, revirando os olhos e terminando de se


acomodar.

— Olá, querida! — Minha amiga fica automaticamente rígida ao


ouvir a voz de Victor.

Ela arruma a coluna, empinando o queixo.

— Olá.

Sinto vontade de sorrir com essa interação entre eles, ou


melhor, com a falta dela. Mas me contenho, enfiando o copo de
espumante no rosto, fingindo beber e apreciar o líquido amargo.

— Quanto tempo que não temos a honra da sua presença


aqui... Há algum motivo específico para nos agraciar com ela? — O
sorriso dele cresce.
A tensão nos ombros de Fernanda pode ser vista a quilômetros
de distância, mesmo seu rosto mantendo uma máscara de
expressão neutra.

— Uma mulher, às vezes, gosta de ir procurar o aconchego de


uma companhia. — Faz um movimento de dar de ombros.

Corro meus olhos de um para o outro, ainda com o copo


cobrindo a boca e evitando um sorriso constrangedor.

Victor contraí a mandíbula, semicerrando os olhos.

— É claro que sim — responde em tom frio.

Sinto minha testa franzir com a falta de resposta certeira que


meu amigo sempre tem na ponta da língua. Ele lança um olhar na
minha direção antes de girar nos calcanhares e nos deixar
novamente sozinhas.

Ok, essa foi a conversa mais esquisita e aleatória que eu já


presenciei.

— Então, já viu Gustavo por aí? — pergunta, mudando


drasticamente de assunto.

— Estou bem aqui — interrompe, a voz grossa soando atrás de


nós.

Sinto minha pele arrepiar com o fato de que acabamos de ser


pegas no pulo. Virando-me em câmera lenta, dou de cara com
Gustavo.

O médico veste uma camisa azul com as mangas dobradas até


os cotovelos, calça jeans e sapatos. Os cabelos loiros estão
repuxados para trás, brilhantes pelo gel.

Os olhos verdes me inspecionam com contornos de diversão,


enquanto os lábios carnudos estão franzidos em seu sorriso
malicioso. Gustavo parece maior do que da última vez que nos
vimos; parece que São Paulo fez um bem danado para ele.

— Oi, Gustavo! Que bom que você veio — intervém Fernanda,


após os longos, e constrangedores, segundos de silêncio.

Gustavo finalmente olha para ela, quebrando nosso contato


visual.

— É claro que eu viria, não perderia essa oportunidade por


nada. — A ambiguidade em suas palavras não me passa
despercebida.

Ele dá um passo à frente, colando o corpo ao meu.

— Olá, Antonella! — dito isso, seus lábios encontram os meus.

O beijo é doce e delicado no começo, mas logo se torna


selvagem e voraz. Minha boca abre passagem para a sua língua.
Ele segura a minha cintura com força, fundindo nossos corpos ainda
mais.

Estamos absortos no toque um do outro, mas ainda assim


conseguimos ouvir um limpar de garganta seguido por um:

— Olá, doutora.

Deus... não.

Automaticamente fico rígida, parando o beijo completamente.


Gustavo percebe que há algo errado, se afastando e desfazendo-se
dos nossos toques.

Henrique Zion está parado às costas do médico, os olhos


cravados nos meus, brilhando com alguma emoção que eu não
consigo descrever. Alguns centímetros mais alto, o juiz se destaca,
o que me deixa irritada.
Henrique não gostou do que acabou de presenciar, está claro
pela contração na mandíbula e na pulsação da veia em sua testa.

— Quem é você? — Gustavo quebra o silêncio, alheio aos


olhares desafiadores que o juiz e eu estamos trocando.

Enquanto Fernanda permanece incrivelmente calada,


observando tudo com os olhos arregalados.

HENRIQUE ZION

Meus instintos gritam para que eu me mantenha longe de


Antonella, contudo, nunca fui um homem de ouvir a voz da razão,
sempre acabando por agir na impulsão. E ontem não foi diferente;
eu simplesmente senti uma vontade gritante de bater à sua porta e
descobrir o que ela estava fazendo, desde o momento em que ouvi
seus saltos ecoando pelo corredor mais cedo.

Foi exatamente isso que eu fiz: parei na porta de Antonella com


a desculpa mais esfarrapada de todas, pedindo açúcar. É claro que
eu jamais imaginei o que se sucederia; nunca pensei que a
advogada me atenderia usando nada além de uma toalha.

E, porra! Que visão dos inferno, ou melhor, dos céus!

Passei as horas seguintes me masturbando no banho, jorrando


jatos de esperma na parede do box.

Agora, como um maldito filho da mãe, aqui estou eu, entrando


no meu bar em uma noite de sexta-feira somente pelo fato de
imaginar que Antonella esteja aqui e que eu possa vê-la.
Me disperso da multidão com um sentimento crescente de
felicidade pelo sucesso do local, afinal, eu investi um bom dinheiro
aqui.

Estou quase chegando ao balcão onde sei que a advogada


sempre está, quando a vejo enfiando a língua dentro da boca de
outro homem. Meus passos param abruptamente, como se minhas
pernas tivessem vida própria. Meu coração acelera dentro do peito,
enquanto cerro as mãos em punhos.

Quem é esse maldito desgraçado que está com as garras nela?

Sem pensar duas vezes, caminho mais decidido do que antes


até a advogada, colérico. Sua amiga, Fernanda, percebe minha
aproximação, pois ela não está ocupada como Antonella.

— Olá, doutora.

Levo as mãos aos bolsos da calça, aguardando o showzinho


terminar. Antonella fica rígida. O desgraçado se afasta dela, sem
entender o motivo da sua mudança abrupta. Ela crava os lindos
olhos castanhos em mim.

O homem, centímetros mais baixo do que eu, se vira,


finalmente dando-se por conta da minha presença. Ele franze a
testa, os lábios vermelhos e inchados pelo beijo.

— Quem é você? — pergunta, confuso.

Fernanda se mantém em silêncio com os olhos arregalados,


assim como a advogada.

— Henrique Zion, vizinho de Antonella. — Estendo a mão, à


guisa de cumprimento.

Assim que sua palma toca a minha, aperto seus dedos com
força, colocando mais intensidade do que seria necessário.
O desgraçado pigarreia.

— Gustavo... hã... amigo de Antonella — apresenta-se, mesmo


não tendo sido solicitado.

Arqueio uma sobrancelha, sugestiva.

— É mesmo? — Sorrio de boca fechada.

Que engraçado, amigos que trocam saliva. Penso,


sarcasticamente.

Antonella pula do banco, empurrando Gustavo para o lado e


desfazendo nosso toque de mãos. Ela agarra o meu braço, sorrindo
falsamente, puxando-me para o lado.

— O que você pensa que está fazendo aqui? — cicia.

Franzo minha testa, em desdém.

— Eu sou o dono. — Faço questão de lembrá-la.

Ela revira os olhos, bufando.

— Tudo bem. Só fique longe. — Me empurra, voltando para os


braços daquele maldito.

Fique longe? Fique longe? É sério?!

Faço a volta no bar, irritado demais para controlar o meu


temperamento. Abro a tampa de um uísque e encho um copo,
bebendo todo o líquido âmbar de uma só vez.

Não sei o que está acontecendo comigo, eu até pareço


fissurado em Antonella.

— Que cara é essa? — Victor dá um tapa em meu ombro,


retirando o copo das minhas mãos e tomando alguns goles.
— Nada — minha resposta é seca, embora polida.

Victor me devolve a bebida, erguendo uma sobrancelha.

— Sei...

— A casa tá lotada hoje. — Esquadrinho a multidão.

— Desde a reinauguração, ela tem ficado assim, ultimamente.

— Isso é ótimo. — Dou um leve aperto em seu ombro.

— É sim. Bom, preciso voltar a trabalhar.

Me escoro no canto mais escuro do bar, encostando as costas


na parede e observando Antonella conversando e rindo com o filho
da puta que tinha a língua enfiada em sua boca há poucos minutos.

Cheguei à conclusão, depois de muito pensar, que esse meu


comportamento só pode ter relação com a minha falta de companhia
nas últimas semanas, portanto, hoje é dia de procurar alguém para
dividir minha cama pelo fim de semana.

Saio do canto recluso, caminhando pelo bar, rondando as


figuras que chamam a minha atenção. Algumas mulheres jogam
olhares para mim, enquanto outras são mais específicas, roçando
uma mão ou um braço em meu corpo.

Retorno ao bar depois de um tempo, com a garganta seca.


Peço outro uísque para o garçom, prestes a retornar para uma ruiva
gostosa que me puxou pelo colarinho e plantou um beijo leve em
minha boca há alguns minutos.

Antonella para ao meu lado.

— Eu quero tequila. — Pede para o mesmo garçom que eu


solicitei o uísque.
Solto uma risada de escárnio, o que faz com que a desgraçada
se vire para mim.

— Algum problema, vizinho? — Levanta uma sobrancelha,


sugestiva.

Amplio meu sorriso, apreciando o fato de incomodá-la.

— Tu não parece ser do tipo que aguenta tequila.

Antonella pende a cabeça para o lado, rindo.

— E quem acha isso? Você? — Aponta um dedo para o meu


peito, a unha roçando a minha pele.

— É um desafio, doutora?

Seu sorriso cresce.

— Eu já disse que acho antiético participar de desafios que sei


que vou ganhar, mas já que você insiste...

Antonella recolhe de cima do balcão o pirex com o limão e a


tequila. Mas, diferente do que eu pensava, ela não se vira para ir
embora, pelo contrário, ela para em minha frente, retirando a minha
jaqueta de couro.

— Querida, acredito que devemos fazer isso no quarto... —


murmuro.

— Cala a boca e me ajuda!

Termino de retirar a jaqueta, deixando-a encostada em um


banco perto do bar.

Com uma sobrancelha arqueada, encaro a advogada, ansioso


pelo que ela vai fazer, seja lá o que for.
Antonella pega o limão e coloca em meus lábios, fazendo-me
mordê-lo. Posteriormente, vira um pouco de sal no meu pescoço.

Segurando meu queixo com uma mão, ela sussurra no meu


ouvido, antes de continuar:

— Agora, excelentíssimo, aprenda a tomar tequila da forma


certa.

A maldita desgraçada coloca a língua para fora da boca e


lambe o sal em meu pescoço de forma despudorada, enviando
arrepios até a minha alma. Com um sorriso sacana nos lábios, ela
pega o copo de cima do balcão e vira todo o líquido em um só gole,
chacoalhando a cabeça.

— Agora vem a melhor parte. — Os olhos brilham em pura


malícia.

Leva as mãos aos lábios, limpando uma gota de tequila de


maneira sedutora. Ampliando o sorriso, Antonella traz sua boca até
a minha, chupando o limão preso em meus lábios; tão próxima, tão
sexy.

Puta merda! Essa é a coisa mais sensual que eu já fiz em toda


a minha vida.

Mandando para a puta que pariu qualquer rastro de sanidade,


cuspo o limão para o chão e seguro sua nuca, enrolando seus
cabelos em minha mão, encarando Antonella antes de colar nossas
bocas em um beijo grave, intenso e profundo.

Tudo virou silêncio com o choque de nossos lábios e dentes.


Colo minha boca na de Henrique, chupando o limão
maliciosamente, da mesma forma como eu vi fazerem no TikTok e
tive vontade de repetir.

Sem esperar, Henrique me afasta somente o suficiente para


cuspir o limão. Ele agarra a minha nuca, enrolando os meus cabelos
em seus dedos; algo escurecendo em seu semblante, deixando-o
mais másculo.

Seu beijo ardente, profundo e sagaz me domina, desnorteando-


me. Agarro seu quadril, colando nossos corpos, sentindo seu cheiro
almiscarado misturado com cigarro. Tesão se acumula em mim,
licencioso e quente como o próprio inferno.

Engulo sua saliva, chupo a sua língua, beijando, lambendo,


gemendo. A mão livre de Henrique vaga pelo meu corpo, me
tocando, me queimando, me deixando ansiosa por mais.
Puxo sua camisa, passando minhas mãos pelo seu abdômen,
sentindo os gomos trincados da barriga. O rosnado bruto e sexy que
ele emite molha ainda mais a minha calcinha.

Esqueço onde estamos ou que somos, em tese, inimigos. Só o


que eu sinto é essa sensação inebriante de êxtase, a sensação de
renascer, de estar viva, algo que eu não sentia há dois anos.

Henrique desce os lábios, sugando meu queixo, a mão ainda


firma em meus cabelos. Arfo, arqueando o corpo em sua direção,
choramingando, querendo mais.

Levo minha mão ao seu pau, raspando as unhas pelo tecido,


sentindo seu membro quente e duro, pronto para me receber.

Henrique traz sua boca de volta para a minha, soltando um


gemido ao sentir minhas unhas em seu membro. Minha palma
apalpando, apertando, segurando seu pênis, mesmo sobre o tecido
firme.

O juiz desce a mão escondida pelo balcão até meu short largo,
arrastando meu corpo até o seu, escondendo suas carícias. O fato
de estarmos em público, podendo ser pegos a qualquer momento,
amplia ainda mais o meu tesão.

De alguma forma, ele encontra uma brecha na minha roupa,


colocando a calcinha para o lado e mergulhando os dedos na minha
parte úmida, a qual implorava por ele. Gritei quando um dedo
encontrou o caminho para dentro de mim.

Mais, mais, eu quero mais! Preciso dizer, mas não consigo, não
há espaço para palavras enquanto sua boca ainda devora a minha,
engolindo meus gritos e gemidos.

Com o polegar, Henrique massageia meu clitóris calmamente,


enquanto o dedo do meio ainda entra e sai do meu canal vaginal.
Ouço seu gemido rouco ao sentir minha lubrificação, ao perceber
que estou entrando em desespero, querendo o seu toque.
— Antonella...

Ouço alguém, mas a voz parece distante demais, longe da


minha bolha de prazer e descontrole.

Arranho o peitoral de Henrique propositalmente, querendo


deixar marcado em sua pele o quanto estou a poucos minutos de
entrar em combustão espontânea se não obtiver mais contato seu
no meio das minhas pernas.

— Antonella! — Dessa vez sou agarrada pelo braço e puxada


para longe do meu estupor.

Pisco, desfazendo-me da nuvem de luxúria que cobria os meus


sentidos. Solto um gemido ao sentir Henrique tirar o dedo de dentro
de mim, levando-o a boca em seguida.

Céus!

— Antonella! — Fernanda finca as unhas na minha pele do


braço, fazendo-me quebrar o contato visual com o juiz.

— Eu estou indo embora — avisa, mas eu não compreendo.

— O quê? — Encontro a minha voz em algum lugar.

— Gustavo já foi — Lança um olhar para Henrique e,


posteriormente, de volta para mim — depois do seu showzinho.

Engulo em seco, passando uma mão pelos cabelos


embaraçados, os mesmos que estavam há poucos segundos nos
dedos de Henrique.

Minhas bochechas esquentam ao constatar que eu quase


transei na frente de todos.

O que foi que acabou de acontecer?


Minha cabeça gira, ainda atormentada pelas sensações novas
e perturbadoras presentes em minha mente e entranhas.

— Eu... eu vou com você — falo, a voz soando mais baixa que
o normal, ainda assustada por tudo isso.

Fernanda dá um leve aceno com a cabeça, compreendendo,


como uma boa amiga, que eu preciso de espaço.

Antes que eu possa sair, Henrique segura o meu pulso,


mantendo-me no lugar.

— Venha comigo — pede, quase suplicando.

Meu corpo vibra, antecipando tudo o que acontecerá caso eu


ceda ao seu pedido. Minha respiração acelera, o peito subindo e
descendo rapidamente, o coração palpitando depressa, bombeando
sangue para todo o corpo.

De repente, me perco novamente no verde dos seus olhos,


enxergando até a sua alma que, estranhamente, parece tão
machucada quanto a minha. Vejo a dor da perda, a dor da
despedida, a dor da saudade, como se eu estivesse refletindo as
minhas dores através deles, mas eu sei que não é. Então eu
reconheço em Henrique a mesma essência que me moldou e
formou.

Desvio o olhar, mirando qualquer coisa, curiosa e afetada


demais pelo que acabei de presenciar.

— Eu... hã... eu preciso ir. — Puxo meu braço, meu corpo


automaticamente sentindo falta do seu toque.

Sem olhar para trás, deixo Henrique, fugindo como uma


covarde, correndo para o mais longe possível dele e das sensações
de vivacidade que, até então, só ele conseguiu causar.
Empurro a porta do bar com força, sentindo o ar gelado da rua.
Meus olhos cheios de lágrimas reprimidas, meu corpo dolorido pelo
tesão acumulado, minhas pernas bambas pelos toques
arrebatadores. Corro para o meu carro, acalmando-me somente ao
me sentar no banco, ligando o som em uma música qualquer.

Não vi a hora que Fernanda saiu do bar e bateu na minha


janela, perguntando se estava tudo bem. Também não percebi em
qual momento exatamente ela tomou conta do meu veículo,
colocando-me no banco do carona e dirigindo até o meu
apartamento. Só percebi quando já estava em casa, sendo colocada
no chuveiro, as lágrimas descendo pela minha face – lágrimas que
eu nem mesmo sabia o motivo.

Como uma boa e verdadeira amiga, Fernanda secou meus


cabelos, me vestiu e me colocou na cama, aninhando-me. Deitando
ao meu lado, murmurou palavras incompreensíveis para uma mente
perturbada, cantarolou e acariciou os meus cabelos. Mas nada
conseguiu suprir a dor que eu vi através dos olhos do juiz e nada
conseguiu preencher a ausência do seu toque quente.

Minhas pálpebras ficam pesadas pelo sono que se sucede, os


sentidos inebriados, a respiração ritmada. Contudo, a última coisa
que eu lembro e vejo antes de cair no mundo dos sonhos, é a
constatação de que, agora que eu senti o toque do juiz, estou
totalmente e incondicionalmente ferrada, pois acabei de ficar viciada
em Henrique Zion, em sua boca despudorada e seus dedos
profissionais.

Abro os olhos, sentindo a claridade iminente me cegar, as vistas


comprometidas após uma noite inteira de choro incessante.
Viro de barriga para cima na cama, repassando mentalmente os
acontecimentos das últimas horas, lembrando da minha falta de
controle em se tratando de Henrique Zion.

Para falar a verdade, eu nem sei bem o que aconteceu. Foi


estranho, intenso e profundo. Em um momento estávamos
conversando, no outro nos beijando, no seguinte trocando carícias,
e, no final, eu enxergava nele os machucados que eu mesma
possuo.

Quem Henrique perdeu de tão importante a ponto de manchar a


sua alma? Essa pergunta entoa em minha mente a cada segundo.

— Bom dia! — Viro a cabeça, vendo Fernanda escorada no


batente da minha porta usando um dos meus pijamas.

— Bom dia! — Olho novamente para o teto, cansada.

— Vá se lavar, eu fiz o café da manhã.

Soltando um suspiro, balanço a cabeça, ainda sem encontrar


forças para responder. Ouço os passos de Fernanda, ouvindo-a se
afastar, retornando para a cozinha. Só então percebo o cheiro
inconfundível de café fresquinho acordando o meu estômago para a
vida.

Criando ânimo e coragem de um lugar muito, muito distante,


faço como minha amiga instruiu. Vou ao banheiro e, ao me olhar no
espelho, constato a bagunça de cabelos, olhos inchados e olheiras
na qual me encontro. Lavo o rosto, escovo os dentes e finalmente
vou de encontro ao cheiro do maravilhoso café.

— Tudo bem? — pergunta Fernanda, escorada na mesa com


uma xícara fumegante em mãos, claramente me aguardando para
começar o desjejum.

Sento-me em meu lugar de costume à mesa, antes de


responder:
— Agora sim.

Fernanda se move, puxando a cadeira de frente à minha,


enquanto eu mastigo uma fatia de pão cacetinho[4] fresquinho.

— O que aconteceu, Antonella? Uma hora tu estava se


divertindo com Gustavo, foi pegar tequila e na outra estava quase
transando com o juiz que diz odiar, no bar, ainda por cima. — Seu
tom foi repreensivo, embora carinhoso.

Engulo o pão que estava mastigando, a cabeça zunindo em um


milhão de pensamentos.

— Eu não sei... — murmuro, dizendo nada além da verdade.

— Como assim não sabe? — exaspera, cética.

Largo o pão no prato, constatando que, enquanto não tivermos


essa conversa, não serei capaz de digerir absolutamente nada.

— Eu não sei! — repito, encarando Fernanda dessa vez. — Eu


fui pegar a droga da tequila, sim. Mas, quando cheguei ao bar,
Henrique estava lá. Nós começamos a conversar, até ele me
provocar e eu cair em sua provocação... — suspiro, passando a
mão nos cabelos — Enfim, foi isso o que aconteceu. Quando eu vi,
já estávamos naquela situação. E sabe o que é pior?

Fernanda franze a testa.

— Tem algo pior?

Balanço a cabeça com veemência.

— Eu me senti viva, Fernanda. Viva. Pela primeira vez desde


que mamãe morreu.

Ela abre e fecha a boca, sem saber o que dizer. Lentamente,


coloca a xícara de volta na mesa. sua expressão suavizando, bem
como o vinco na testa.
— Tudo bem. Deixa ver se entendi. Tu tá me dizendo que
Henrique te fez se sentir viva, e, mesmo assim, ainda chegou em
casa chorando naquelas proporções. Por que, então?

Tensa, mordo a boca, fitando-a outra vez, vendo o vinco se


tornar novamente visível em sua testa.

— Eu... eu vi nos olhos do Henrique a mesma coisa que


enxergo nos meus todos os dias, quando olho o meu reflexo no
espelho. E isso me assustou, muito.

Como eu posso explicar para a minha amiga que eu chorei


porque vi em Henrique a mesma dor que eu carrego, ao mesmo
tempo em que eu me senti mais viva do que nunca em seus braços.
Tão viva a ponto de esquecer onde estávamos, a ponto de sentir os
meus pés levitarem do chão.

Fernanda franze o nariz, claramente sem entender nada, ou


pensando que eu estou bêbada.

— Ok. E agora, o que tu vai fazer?

Essa é uma excelente pergunta.

Henrique e eu somos vizinhos, é óbvio que vez ou outra


acabaremos esbarrando por aí. Além do mais, ele é dono do bar, e
eu não vou deixar de frequentar um dos meus locais favoritos por
conta dessa eventualidade. Mas, como encarar o homem que
somente com alguns beijos e toques de dedos me fez... enfim.

— Eu vou agir naturalmente. Fingir que nada disso aconteceu,


ou mentir que eu estava bêbada demais para lembrar.

Fernanda solta uma risada de escárnio.

— Ah, claro. Parecia mesmo que tu estava muito bêbada.

Reviro os olhos, voltando a mastigar o meu pão.


— Hã... mas, como se sucedeu aquele momento? Porque,
sério, tu dizia odiar ele e blá, blá, blá... “Henrique é egocêntrico”,
“Henrique é narcisista”, “Henrique é um safado, idiota” — imita a
minha voz, fazendo aspas com os dedos.

Solto a primeira gargalhada sincera do dia ao lembrar que tudo


é culpa do TikTok.

— Teve um dia que eu estava muito feliz assistindo alguns


vídeos no TikTok, porque não tinha nada para fazer, então cheguei
em um em que a garota tomava tequila de forma... diferente.

Fernanda arrasta a cadeira, sua atenção totalmente focada em


mim.

— Uau, conta mais!

— Ela colocava o sal no pescoço dele, o limão na boca e a


tequila em mãos. Por fim, ela lambia o sal, tomava a tequila e
chupava o limão na boca do cara. Henrique me provocou, eu fiz o
ritual com ele, mas o homem se desesperou e simplesmente me
beijou — explico, dando de ombros.

Fernanda solta uma gargalhada espalhafatosa, encurvando o


corpo para conter a dor na barriga pela onda interminável de
risadas.

— Pobrezinha de ti, estou morrendo de pena por acabar


beijando aquele Deus grego disfarçado de juiz terrestre. —
Gesticula a mão.

— Hahaha, muito engraçadinha. — Sorvo um longo gole de


café, sentindo-me imediatamente renovada.

— Mas, adorei essa dica, pode apostar que eu executarei assim


que possível. — Pisca um olho maliciosamente.
Termino meu sanduíche; limpo os farelos que caíram em cima
da mesa, colocando-os no prato sujo.

Fernanda suspira, chamando a minha atenção.

— E o seu pai, Antonella? — pergunta um tanto retraída,


mudando de assunto.

Desvio o olhar, as lágrimas acumulando-se nos cantos dos


meus olhos.

Dói saber que eu tenho um pai que não se importa o suficiente


comigo para entender os meus sentimentos. Dói mais ainda
constatar que eu estou sozinha desde que mamãe morreu. Afinal, o
que Gael fez é quase imperdoável. Aquele circo todo para
apresentar a nova namorada sem nem antes me comunicar ou
avisar.

Eu amo meu pai, amava a relação que possuíamos antes da


morte assolar a nossa família e quebrar cada um de nós de alguma
forma, remodelando as nossas personalidades. Mas não me sinto
preparada para encará-lo e nem o fato de que seguiu em frente.
Sinto sua falta, saudades das nossas conversas, dos nossos
passeios, dos nossos momentos.

— Eu... eu não me sinto preparada, não agora. — Paro de falar,


minha voz falhando pela emoção.

Fernanda estende os braços por cima da mesa, apertando


levemente a minha mão.

— Eu entendo. Só quero que saiba que, quando estiver pronta


para falar sobre isso, estarei aqui.

Aperto de volta a mão da minha amiga, abrindo um sorriso que


não chega aos olhos.

— Eu sei. Obrigada por tudo.


Sem responder, ela recolhe as mãos, desviando o foco da
conversa pesada, tentando quebrar o clima tenso que se estendeu
entre nós.

— Vamos correr? — Cruzo os braços em cima da mesa.

— Eu preciso ir para casa, infelizmente, vou ter que pular essa.


Tenho alguns trabalhos da semana para programar.

— Tudo bem. Eu vou correr no Parque Germânia. Preciso


esfriar a cabeça.

Levanto-me da mesa, ajudando-a a recolher a louça suja.


Juntas, em poucos minutos conseguimos limpar tudo.

Fernanda muda de roupa e vai embora, chamando um Uber,


apesar dos meus protestos para levá-la em casa, pois era o mínimo
que eu poderia fazer depois da sua ajuda durante a noite.

Coloco um conjunto de legging e cropped, recolho o celular e os


fones de ouvido e saio de casa, não sem antes grudar o ouvido na
porta e ver se há algum barulho ou pista de que eu pudesse cruzar
com Henrique no corredor. Infantilidade ou não, estou evitando o
juiz.

Com o silêncio, saio de casa correndo, chamando o elevador


desesperada. Assim que a caixa metálica chega e as portas se
fecham, suspiro aliviada.

Coloco os fones de ouvido com o som alto e me perco dentro


da minha própria imaginação, evitando todo o drama familiar, e
agora amoroso, que cerca a minha vida.
Ando de um lado para o outro, massageando as têmporas com
o indicador e o polegar, a cabeça explodindo.

Não consigo parar de pensar no maldito beijo que troquei com


Antonella ontem à noite. Era para ser uma brincadeira, nada além
disso, mas não foi exatamente isso que aconteceu.

Paro em frente à janela da sala, colocando as mãos nos bolsos.


Está fazendo um dia bonito e quente, apesar de recém ser início de
primavera. Um profundo suspiro se desprende da minha garganta.
Estou cansado, exausto de uma noite mal dormida.

Depois que Antonella saiu da boate, me deixando de pau duro e


sem saber exatamente o que diabos tinha acabado de acontecer, eu
retornei para casa, atordoado demais para continuar no meio de
todo aquele barulho.
Eu queria bater em sua porta, terminar o que havíamos
começado, mas ela saiu tão assustada, afastando-se rapidamente,
que eu cheguei à conclusão de que seria melhor lhe dar um tempo.

Meu celular toca em cima do sofá, me tirando das divagações


sobre a advogada. Faço o percurso até o móvel, ainda com as mãos
nos bolsos. Olho por cima o nome do chamador na tela, cogitando
cancelar, dependendo de quem fosse.

— Alô! — Recolho o aparelho e atendo antes que a chamada


caia na caixa postal.

— Cara, que porra aconteceu ontem? — Victor parece


frustrado, até mesmo ansioso.

Passo uma mão no cabelo, puxando as mechas para trás,


dando ao meu cérebro segundos o suficiente para responder a essa
pergunta.

— Do que exatamente tu tá falando? — resolvo fingir inocência.

A risada de Victor reverbera através do autofalante.

— Até agora não acredito no que eu vi. — Mais risadas. — Mas


o melhor de tudo foi a cara com a qual Gustavo saiu do bar.

Sinto a minha testa franzir, procurando em minha mente quem


diabos seria Gustavo.

— Quem? — resolvo perguntar ao não encontrar uma resposta.

Victor solta um assobio.

— Gustavo é o ex-namoradinho da Antonella, ele estava no bar


ontem.

Ah, sim! O idiota engomadinho que tinha a língua enfiada


dentro da boca dela. Aperto o celular com força, sentindo
imediatamente uma onda de ciúmes.
— Me conte mais — peço, começando a gostar do rumo que
essa conversa está tomando.

— Bom, a única coisa que eu vi foi que Antonella estava com


Gustavo e a Fernanda, depois ela sumiu, e quando eu olhei
novamente, ela tava lambendo o teu pescoço e tomando tequila,
não sei se foi nessa ordem, sabe, eu me sentia chocado demais
com a cena para gravar os detalhes. Depois disso, eu olhei
novamente para o Gustavo e quando vi que ele ficou boquiaberto
constatei que algo errado estava acontecendo, até que percebi que
vocês estavam se pegando loucamente.

Sorrio, relembrando da cena.

— Aconteceu... só isso que eu tenho para dizer.

— Aconteceu? Eu quero mais detalhes do que isso, por favor.

Reviro os olhos.

— Não sei bem o que te dizer além disso.

— Mas tu gostou? Porque, até então, vocês dois se detestavam


com todas as forças.

Jogo o corpo no sofá, colocando uma mão na nuca.

O que responder a Victor? Que foi um dos melhores beijos que


eu já experimentei na vida? Que eu quero repetir a dose e
experimentar muito mais? Que não consigo esquecer da sensação
da sua boceta molhada engolindo os meus dedos? Ou que os sons
dos seus gemidos não saem da minha cabeça?

Porra! Eu tô completamente fodido! Constato o óbvio.

— Eu quero mais. — Sou o mais sincero possível com Victor.

— Nossa! Bem, isso é uma novidade, Henrique Zion obcecado


em uma mulher? — Gargalha com escárnio. — Só Antonella
Caregnato para conseguir essa proeza.

Suspiro, fechando os olhos com força.

— Eu vou correr. O dia está bonito demais para ficar dentro de


casa. Além do mais, preciso colocar a cabeça em ordem.

— Tudo bem. Se quiser umas dicas para conquistar Antonella,


é só pedir — zomba.

— É mesmo? Que tipo de dica? — Tento fingir a maior


indiferença possível.

Mais risadas.

— Sua flor favorita é rosa branca, tem algo a ver com a mãe
dela. Adora ler, portanto, livros são presentes que a deixam feliz. Ela
também ama séries, a sua favorita é Lúcifer. — Alguns segundos de
silêncio. — Hum... ela também ama doces, é uma chocólatra
assumida. E ama viajar.

Encaro a parede da minha sala com a testa franzida,


constatando o quão ridículo e absurdo é o assunto que engrenamos
nessa conversa. Eu quero Antonella, sim! Mas, por que mesmo eu
preciso saber tudo sobre ela para conquistar a guria?

— Eu já aprendi o suficiente. Obrigado! — interrompo Victor.

— Tudo bem. Até mais.

— Até mais. — Desligo o telefone, jogando-o longe.

Deus do céu! O que está acontecendo comigo?

Eu já sei, hoje é sábado, preciso de uma mulher para me


acompanhar pelo resto da noite. Preciso de alguém que me ajude a
tirar a advogada da cabeça e aliviar toda essa tensão sexual que se
encontra alojada em meu corpo. Mas antes, eu preciso sair para
correr, extrapolar, colocar para fora toda a energia acumulada que
se infiltrou através da adrenalina que aquele beijo causou.

Levanto-me abruptamente, retirando a camiseta. Vou até o meu


closet, recolho meu tênis de corrida, mudo a bermuda e procuro os
meus fones. Pronto, saio de casa.

Corro algumas quadras, recebendo alguns olhares maliciosos


femininos para o meu peito nu. Paro em frente ao Parque Germânia,
entrando no local abarrotado de pessoas.

O deque para o lago está lotado; crianças e adultos tentando


enxergar alguma tartaruga desavisada ou algum peixe nadando pela
água verde. Caminho lentamente, diminuindo o ritmo dos meus
passos ao passar por crianças andando de bicicleta, enquanto os
adultos responsáveis seguem logo atrás com o chimarrão em mãos.
Nas sombras das árvores, casais descansam sob uma toalha,
conversando e sorrindo.

Ao chegar ao final do parque, começam as quadras esportivas;


adultos de diversas idades fazem exercícios físicos.

Estou prestes a dar a volta e retornar quando enxergo uma


silhueta conhecida. A guria faz agachamento, alheia aos olhares
dissimulados que alguns homens lançam para a sua bunda
deliciosamente redonda.

Bufo, fulminando os caras que encaram Antonella.

Tudo bem que eu também estou fazendo a mesma coisa, no


entanto, eu tenho total razão para isso – ao menos desde ontem.
Retiro os fones com força, caminhando em passos precisos até ela.
Os homens que estavam próximos, ao constatarem a minha
presença e minha cara de poucos amigos, somem.

— Antonella! — chamo, mas é claro que ela não escuta, não


com os fones de ouvido trabalhando intensamente.
Virando-se de costas, ela pega uma garrafa de água do chão,
abrindo a tampa e tomando o líquido do gargalo, dando-me uma
visão ainda mais privilegiada da sua comissão de trás.

Seguro o seu braço delicadamente, virando-a para mim.


Antonella se assusta, dando um pulo, trazendo os olhos
esbugalhados de encontro aos meus.

— Oi — murmuro, contendo a vontade de continuar de onde


paramos ontem.

Ela fecha a garrafa, retirando os fones.

— É... oi. Não tinha visto você aqui.

Solto seu braço, me afastando.

— Nem teria como, parecia concentrada demais na música. —


Aponto com o queixo para os fones pendurados em seu pescoço.

Ela sorri, passando uma mão na testa, limpando algumas gotas


de suor que escorrem pela pele levemente bronzeada.

— Ah, sim! — Desvia os olhos, focando sua atenção no chão.

Coloco as mãos na cintura.

— Então, como tu tá?

Antonella para de mexer os pés. Seus olhos descem pelo meu


dorso nu, indo até onde as gotas do meu suor somem no cós da
bermuda. Quando me encara novamente, engole em seco.

— Bem — responde com a voz rouca. Pigarreia, limpando a


garganta, antes de acrescentar: — E você?

Arqueio uma sobrancelha, de maneira sugestiva, enquanto


meus lábios se repuxam em um sorriso de canto.
— Poderia estar melhor.

Pela primeira vez, vejo Antonella corar, as bochechas tomando


um lindo tom rosado, mas isso não passa de um piscar de olhos;
mudando totalmente as feições em poucos segundos, ela dá um
passo à frente, trazendo seu corpo quase de encontro ao meu.

Mas que porra é essa?

Abrindo um sorriso demoníaco, ela fala:

— É uma pena, não é mesmo?

O quê?

Antonella deveria ser estudada em laboratório. Como é possível


que uma hora a guria esteja envergonhada e, como em um passe
de mágica, assume essa versão fatal?

Arqueio ainda mais a sobrancelha.

— Mas nós podemos resolver isso, não acha? —


Propositalmente, deixo a minha voz alguns tons mais baixo que o
normal.

Antonella se afasta, sua risada ecoando através do vento.

— Espere sentado, excelentíssimo. — Chacoalha a cabeça,


rindo.

Me encontro em um leve torpor, descrente demais por ter


acabado de ser cruelmente enganado e seduzido por Antonella
Caregnato, mais uma vez.
ANTONELLA CAREGNATO

Eu sei que eu não deveria entrar novamente nesse jogo de


sedução com Henrique, que eu deveria permanecer impassível e
fingir indiferença. Mas é impossível. Quando nos encontramos, é
como se meu corpo estabelecesse vida própria, assumindo minhas
atitudes e falas.

Henrique cruza os braços em frente ao peito, e a maneira como


seus músculos são evidenciados pelo movimento me distraem
momentaneamente.

— Sabe, ontem eu estava sentado e não precisei esperar por


muito tempo. — Sorri maliciosamente.

Engulo em seco, arquejando.

Cretino, idiota!

— Então continue sentado, pois àquilo não se repetirá —


retruco, um esgar nos meus lábios.

Deus! Henrique tem o dom de tirar meu autocontrole. Passei as


últimas horas correndo e me exercitando, repassando mentalmente
como eu reagiria quando nos reencontrássemos, estudando, e tudo
isso para nada, considerando que cá estamos nós.

Ele amplia o sorriso, arqueando a sobrancelha de forma


despudorada.

— É mesmo, doutora? Esse é outro desafio?

Rio, desviando o olhar do dele.

— Qual é o seu problema com desafios, hein? — mudo de


assunto, aceitando o alerta em letras vermelhas e garrafais que meu
cérebro grita.
— Problema algum. — Faz um movimento de dar de ombros.
— Eu gosto de desafiá-la, porque quando perde, fica incrivelmente
sexy emburrada.

Minha nossa senhora das calcinhas encharcadas!

Aliás, por que esse homem está andando por aí seminu? Isso
deveria ser proibido. A minha sanidade, assim como a de todas as
outras mulheres presentes, deveria ser preservada.

Henrique, com apenas um passo, cola seu corpo másculo,


quente e suado ao meu.

— Quer saber mais um segredo, Antonella? — Seu tom de voz


envia calafrios ao meu corpo.

Sem condições de dar uma resposta verbal, limito-me a acenar,


cruzando os braços em frente ao corpo, escondendo meus mamilos
rígidos.

— Eu não consigo esquecer da sensação de como a sua


boceta engoliu os meus dedos com vontade, enquanto sua boca
soltava gemidos de prazer — sussurra para que somente eu possa
ouvir.

Jesus cristo! Seguro os ombros de Henrique para me manter


em pé. Trêmula, temo dar um passo e despencar no chão.

Meu corpo traidor se contrai em desejo, enquanto meu centro


queima em antecipação pelas promessas não ditas.

Henrique solta uma risada rouca, a qual ecoa pela languidez


em que eu me encontro. Ele planta um beijo em meu pescoço,
soprando propositalmente a respiração quente no local, deixando
minha pele ainda mais arrepiada.

Trazendo minha alma de volta para o corpo, com muito esforço,


pulo para trás, colocando a maior distância possível entre nós.
— Você não presta! — Encontro minha voz, querendo morrer
por ter levado tanto tempo para responder e ter deixado
escancarado a Henrique o quanto ele me afetou.

— Nunca disse o contrário. — Faz um movimento com os


ombros.

Trinco o maxilar com força, irritada com ele por ter tanto
controle sobre mim e irritada comigo por não conseguir ser
indiferente a sua áurea sexual.

— Eu tenho coisas muito mais importantes para fazer do que


ficar aqui conversando contigo.

Henrique ri.

— Na verdade, gostaria de estar fazendo coisas muito mais


importantes, e incrivelmente mais prazerosas, comigo — reorganiza
toda a minha frase.

Solto um pequeno grunhido, incontida.

— Foda-se você! — Passo por Henrique, dando um safanão em


seu ombro.

— Na verdade, nós vamos foder... — zomba, rindo com o meu


rosnado — Nos vemos por aí! — acrescenta.

Corro de volta para casa; concentro-me na respiração


acelerada pelo esforço, tentando ignorar completamente Henrique e
sua existência pecaminosa.

A forma como esse homem mexe comigo é completamente


distorcida, ainda mais agora, que eu sei como é estar em suas
mãos.

Eu já estive com alguns homens, perdi a virgindade no auge


dos meus dezesseis anos com um colega de classe e primeiro
namorado, desde então, venho aproveitando sempre que posso.
Contudo, não consigo me lembrar de nada parecido com o que
Henrique me causa. Nem mesmo Gustavo, embora tenha passado
meses desde a nossa última noite juntos.

Chacoalho a cabeça, parando de comparar o juiz com os meus


antigos contatos, afinal, ele é ótimo com as mãos, mas eu nem vi a
parte principal da anatomia do corpo masculino; vai que nesse
aspecto ele seja menos... intenso.

Vai nessa! Zomba minha mente.

Merda de tesão acumulado! Merda de Henrique Zion!

Paro em frente ao meu prédio alguns minutos depois,


colocando as mãos nos joelhos, o peito subindo e descendo em
rápidas sucessões; o corpo encharcado de suor, os músculos
doendo pelo esforço.

Fecho os olhos, esforçando-me para controlar a respiração e


desejando, não pela primeira vez e certamente nem pela última, que
Henrique não surtisse todo esse efeito sobre mim.
Tudo bem! Eu preciso encontrar um homem aleatório, ver se
bate uma química legal e trazer ele para casa, ou ir para a sua,
tanto faz. Só sei que eu preciso transar com alguém diferente e tirar
Henrique Zion da minha cabeça.

É isso, essa é a solução!

Ando de um lado para o outro roendo a unha do polegar, meus


saltos ecoando pelo meu apartamento vazio.

— É só ir à droga do bar e encontrar alguém. — Jogo os braços


para cima, frustrada.

Minha situação só piora a cada momento, considerando que


agora eu estou até mesmo falando sozinha.

Paro de andar, checando meu look uma última vez no espelho


antes de recolher a bolsa de cima do sofá e sair correndo de casa,
não deixando brecha para uma possível desistência.
É hora de encontrar alguém, transar, ser feliz e esquecer o
maldito juiz.

Como sempre, o bar está lotado. Aliás, ultimamente isso vem


se tornando rotineiro, o que me deixa feliz, pois Victor merece isso
mais do que ninguém.

Olho para o mesmo lugar onde eu e Henrique quase transamos


ontem, sentindo um pequeno arrepio pela minha coluna. Jogo a
bolsa no balcão, optando por escolher a bebida mais forte da casa.

— Antonella, não sabia que viria. — Victor se aproxima com a


testa franzida.

— Nem eu. Hã... quero algo forte e doce, faça algum drink para
mim.

O vinco na testa do meu amigo aumenta.

— Qual é o problema?

Merda! Não queria contar para ninguém que eu me sinto


descontrolada pelo fato de arder com o fogo do próprio inferno por
Henrique Zion.

— Nada — minto, para logo em seguida desviar o olhar.

Victor solta um suspiro.

— Se não quiser falar nada, tudo bem. — Faz um gesto com as


mãos. — Mas saiba que eu tô aqui para o que precisar.

Uma pequena fisgada de culpa atinge o meu peito. Eu sei o que


Victor pensa que eu estou fazendo, ele acha que a antiga Antonella,
àquela que ele conheceu logo após a morte da mãe, está
retornando, e eu estou escondendo os meus sentimentos atrás de
uma grossa camada de autoproteção.

Só que essa não é a verdade, eu só não quero, sei lá, me sentir


acanhada por desejar o homem que eu tanto disse odiar. Portanto,
apenas sorrio amarelo para ele e faço um manear de cabeça.

Victor se afasta para preparar a minha bebida.

Olho ao redor, checando os presentes nessa fatídica noite de


sábado.

Para a minha sorte, as pessoas que costumam frequentar esse


bar são... diversificadas, o que abrange ainda mais a minha lista de
opções.

— Aqui está! — Victor deposita em minha frente uma taça com


um líquido viscoso e alaranjado.

Arqueio uma sobrancelha, sugestiva.

— Algo forte e doce. — Dá de ombros.

Recolho o copo da mesa e bebo um pequeno gole, o gosto


adocicado agradando o meu paladar imediatamente.

— Hummm... é bom.

— Tudo o que eu faço é bom — retruca.

Reviro os olhos, o fazendo gargalhar.

— Vou deixar a senhorita se divertindo aí... ou seja lá o que


esteja fazendo, porque eu preciso trabalhar.

Jogo um beijo no ar em sua direção, fazendo-o rir.


Tudo bem, agora que fiquei sozinha e com álcool em mãos,
está na hora de colocar em prática o que eu vim fazer essa noite.
Levanto-me da bancada, mas antes que eu possa sair do lugar,
mãos firmes e fortes seguram a minha cintura.

— Hoje só pode ser o meu dia de sorte! — Eu reconheceria


essa voz em qualquer lugar: Gustavo.

Fico de frente para o meu antigo contato amoroso. Me sinto um


pouco envergonhada pela noite passada, por ter induzido Gustavo a
vir me encontrar, para que, no final, eu caísse nos braços de outro, e
em sua frente, ainda por cima.

— É... oi. — Viro mais alguns goles do meu drink, nervosa.

— Se eu soubesse que te encontraria aqui, teria vindo antes,


pode apostar.

Como perguntar para ele, sem parecer indelicada, sobre ontem


à noite? Porque parece que Gustavo está simplesmente ignorando
os detalhes mais sórdidos. E... bem, se ele quer agir assim, então
eu também posso, afinal, vim até aqui com o propósito de encontrar
uma companhia, e meu ex serve muito bem para isso – e ainda me
poupa o trabalho do flerte.

Abro um sorriso malicioso, esfregando meus dedos em seu


braço tonificado.

— Eu acabei de chegar, não perdeu mais do que poucos


minutos.

— Mas isso é ótimo. — Aperta ainda mais a minha cintura.

— Você quer beber alguma coisa?

Gustavo me lança um olhar desafiador, franzindo levemente o


nariz. Consigo ler nas entrelinhas o que isso significa, o que ele quer
dizer: “Sim, mas não exatamente o que está oferecendo nesse
momento”.

Coço a garganta, desviando o olhar imediatamente.

— Venha, vamos dar uma volta! — Puxo-o pela mão, mudando


o rumo dos seus pensamentos, e dos meus.

Eu sou uma idiota, ele acabou de oferecer exatamente o que eu


estou procurando, e mesmo assim, eu agi feito uma jovem ingênua,
coisa que eu certamente não sou.

Caminho com Gustavo por entre a multidão, me autocriticando


por não ter cedido à sua sugestão velada. Mas acontece que nós
passamos alguns meses distantes, e apesar de termos tido um
vínculo legal no passado, ele esfriou, e eu quero restabelecê-lo
antes de qualquer coisa.

— Então, o que exatamente estamos fazendo? — indaga,


movimentando levemente o corpo conforme as batidas da música.

Olho para os lados, procurando alguma resposta plausível para


algo que nem eu mesma sei, então meus olhos encontram os dele.

Trinco o maxilar com força, irritada e hipnotizada ao mesmo


tempo.

Henrique conversa, sussurrando algo no pé do ouvido de uma


loira estonteante, suas mãos vagando pelas costas e cintura da
mulher enquanto seus olhos verdes encaram os meus, risonhos e
traiçoeiros.

— Ei, Antonella, tudo bem? — Gustavo me chacoalha


levemente, quebrando a hipnose que os olhos do juiz bad boy
causaram.

Aperto a ponta do nariz com força e fecho os olhos, irritada por


ver Henrique aqui, afinal, eu vim até o bar justamente para tirar esse
cretino da minha cabeça.

Encaro Gustavo, sorrindo sem mostrar os dentes.

— Ah, mas está tudo maravilhosamente bem. — Coloco o copo


em uma mesa ao lado e enrosco os braços em seu pescoço,
tentando a todo custo ignorar o juiz.

— Nossa, o que tinha na sua bebida? — brinca, esfregando a


ponta do nariz no meu pescoço, me causando leves arrepios.

Solto uma gargalhada estrondosa, como se ele tivesse acabado


de contar a piada mais engraçada da face da terra.

Não sei bem o que está acontecendo comigo, mas posso


nomear minhas atitudes como espasmos involuntários do meu corpo
– ou um lapso temporário de insanidade. Tanto faz.

Pela visão periférica, vejo Henrique ainda com os olhos em


nossa direção; a mulher conversa animadamente com ele, mas o
juiz não parece prestar atenção.

Ótimo.

— Está tudo bem mesmo, Antonella? — Gustavo me encara


com a testa levemente franzida.

— Hã... sim, eu só preciso ir ao banheiro. Já volto. — Na ponta


dos pés, planto um beijo em sua têmpora.

Caminho pela multidão, dando leves empurrões em algumas


pessoas, tentando atravessar o mais rápido que minhas pernas
conseguem. Não que eu esteja necessitando usar o vaso sanitário,
eu só preciso... respirar.

Abro a porta e agradeço por encontrar o ambiente vazio,


quando, normalmente, é tão conturbado como lá fora. A música é
abafada pela porta, deixando-me sozinha com a mente em um
turbilhão.

Pouso as mãos na pia e encaro o meu reflexo no espelho.


Merda! O que Henrique está fazendo aqui? Ele é o dono do bar!
Uma voz irritante responde minha pergunta imaginária.

Nossa senhora, meu troféu de idiota do ano acabou de ganhar


patamares muito maiores, afinal, a voz irritante tem razão, Henrique
é dono do bar, é claro que ele viria para cá.

Bufo, prestes a sair do banheiro e ir até Gustavo, arrastá-lo


para o meu apartamento e transar até esquecer o meu nome,
quando a porta é aberta.

— Está se escondendo de mim? — Meu corpo fica arrepiado da


cabeça aos pés ao perceber que eu estou sozinha no banheiro com
ninguém menos que Henrique Zion.

Deus do céu!

Viro imediatamente, colando o quadril na pia e cruzando os


braços em frente ao corpo.

O desgraçado está tão... incrivelmente gostoso.

Ele usa uma camiseta verde lisa, a cor contrastando com os


seus olhos. Os braços fortes e tatuados estão desnudos.

— Quem dera isso fosse possível. — Reviro os olhos.

Henrique solta uma risadinha e coloca as mãos nos bolsos do


jeans preto.

— Pensei que estivesse me evitando, pois era o que parecia.


Afinal, somos vizinhos e é falta de educação não cumprimentar os
colegas de apartamento. — Aproxima-se, chegando tão
perigosamente perto que eu consigo sentir o cheiro inebriante do
seu perfume.

Arrumo os ombros, empinando a coluna.

— Eu estava, sabe... ocupada. — Estalo a língua nos lábios.

O pomo-de-adão de Henrique sobe e desce e sua mandíbula se


contrai levemente, delatando o quanto minha resposta afiada lhe
deixou irritado.

Em poucos passos, o juiz cola o seu corpo ao meu, e mesmo


não querendo sentir o indesejado arrepio na coluna, é inevitável.

— Fale mais... — murmura, o hálito quente com cheiro de


cigarro e menta invadindo minhas narinas.

Ele retira as mãos do bolso, pousando uma na bancada ao lado


da minha cintura, me encurralando, enquanto a outra enrola
distraidamente uma mecha do meu cabelo no dedo.

— Não tenho nada a dizer. — Minha voz sai um pouco


esganiçada, para o meu desespero.

O sorriso demoníaco do juiz se amplia, pois ele, como um


predador, sabe exatamente o que causa em sua presa.

— Eu... eu preciso voltar.

Meu erro foi encará-lo; mergulhar no fundo dos olhos e me


perder na profundeza daquele verde que mais parece um diamante.

Como da primeira vez, ele cola os seus lábios nos meus,


tirando-me de órbita imediatamente.
HENRIQUE ZION

Agarro Antonella com firmeza, nossas bocas se chocando em


um beijo ardente, línguas e lábios virando um só.

Sento Antonella no balcão da pia, descendo minhas mãos pelo


seu corpo, estudando cada detalhe, cada pedaço de pele da mulher
que tem o poder de me levar à loucura.

Desço minha boca para o seu pescoço, mordiscando,


lambendo, beijando, fazendo um rastro.

— Henrique... — arqueja, sussurrando.

Agarro sua saia, subindo o tecido, embolando-o na cintura.


Seguro seu queixo com uma mão, aproximando minha boca do seu
ouvido para sussurrar:

— Eu vou te chupar de uma forma que ninguém nunca fez.

Resvalo a lateral da sua calcinha para baixo, devagar. Antonella


me olha, arquejando, mordendo o lábio inferior.

Me agacho em sua frente, tendo uma total visão da pele macia


da sua boceta gostosa. Puxo suas coxas firmes, deixando sua
bunda na ponta da pia, enquanto acomodo suas pernas em meus
ombros. Sem mais delongas, faço o que estava com vontade,
tornando-se quase uma necessidade.

Lambo a boceta exposta para mim, sendo imediatamente


invadido pelo seu gosto picante e seu cheiro de excitação.

— Céus... Henrique! — Antonella agarra meus cabelos com


força, fazendo o couro cabeludo doer pela intensidade do puxão.

Passo a língua pela carne macia e úmida, chupando, lambendo,


brincando com o clitóris. A advogada joga o corpo para trás,
trôpega, trêmula, abrindo as pernas ainda mais.
Sua umidade aumenta quando meus lábios sugam seu nervo
sensível. Levo um dedo ao seu canal vaginal, penetrando-o com
facilidade por toda a sua lubrificação.

— Aaaaah... — Antonella joga a cabeça para o alto de olhos


fechados.

Aumento a pressão em seu clitóris e acelero a penetração do


dedo. Sua excitação aumenta, o nervo incha, a boceta lateja e ela
se remexe toda, alucinada.

Sugo tudo, cada gota de lubrificação, cada gosto picante e


intenso, umedecendo-a com a minha saliva. Ela goza, o corpo
ondulando em espasmos pelo pico de intenso prazer que sente;
trêmula, trôpega, arrepiada, gritando o meu nome.

— Eu preciso te comer. Agora — declaro, desesperado para


enterrar meu pau em sua boceta gostosa.

Levanto-me rapidamente, segurando seu corpo enfraquecido


com a mão. Meu pau roça na calça, dolorido, ansioso por ser liberto
e satisfeito.

Enrosco os cabelos de Antonella no meu punho, preparado


para foder forte e ardente com ela, mas socos na porta explodem a
nuvem de luxúria na qual nos inserimos.

— Abram a porta! Agora! — É a voz de Victor do outro lado,


seguida por mais socos.

Inferno!

Solto os cabelos de Antonella, pego alguns papéis para secar


as mãos e limpo o meio das suas pernas, pois a guria ainda parece
apática. Coloco a calcinha no lugar, arrumo sua saia e desço-a do
balcão, plantando um beijo em sua testa.
— Eu vou arrombar essa merda e colocar na conta do filho da
puta que se trancou aí dentro! — vocifera.

Reviro os olhos e, antes de ir até a porta, dou uma espiada no


meu reflexo no espelho para garantir que não há nenhuma
lubrificação vaginal em meu rosto.

Destranco a porta, dando um passo para trás por tempo o


suficiente para Victor entrar, transtornado. Seus olhos correm de
mim para Antonella.

— Eu não posso acreditar nisso! — Coloca as mãos na cintura,


irritado.

— Feliz agora?

— Vocês só podem estar de brincadeira. — Chacoalha a


cabeça em negativa, incrédulo.

— Eu... eu... com licença. — Antonella sai de seu estupor,


passando por nós dois correndo, sem nem se dar ao trabalho de
nos lançar um único olhar.

Cerro a mandíbula, levando as mãos aos bolsos para não socar


a cara do meu amigo.

— Obrigado por estragar a minha noite.

— E como eu ia saber que eram vocês dois aqui dentro? Aliás,


vocês não se odeiam, não?

Droga de interrupção, agora eu vou passar o resto da semana


com as bolas roxas de tanto tesão e me masturbando no banho,
pensando na advogada.

Não respondo ao meu amigo; passo por ele dando um


encontrão em seu ombro, fazendo o desgraçado rir da situação que
me deixou.
Procuro Antonella no restante do bar, mas não a encontro. Vejo
o babaca com o qual ela sai conversando com outra mulher,
finalizando a noite acompanhado.

De pau duro, enlouquecido de tesão e ansioso, vou terminar


meu sábado no box do meu banheiro, gozando na parede e
relembrando o gosto de uma certa advogada criminalista.
Alongo a coluna, cansado após tantas horas sentado
conduzindo inúmeras audiências. Mesmo que, excentricamente, os
dias assim sejam os meus favoritos no trabalho.

Tamborilo a caneta na mesa, perdido em pensamentos.

Fiquei o dia inteirinho de domingo me questionando se eu


deveria ir até o apartamento de Antonella e terminar o serviço, mas
não cedi a vontade insana, mesmo subindo pelas paredes por isso.

Sábado eu ouvi quando ela saiu, escutei o barulho dos seus


saltos ecoando pelo corredor, e sabia perfeitamente aonde ela iria.
Resolvi ir até o bar somente para checar se eu estava certo, mas
nunca imaginei que a encontraria novamente nos braços daquele
engomadinho de merda.

Depois disso, comecei a questionar a minha sanidade mental,


pois, de certa forma, me sinto obcecado pela guria. E isso parece
insano.

— Ei, Henrique. — Lauro, o defensor público, me tira dos


devaneios.

— Sim?

— Está perdido. — Ri. — Eu estava falando da vida amorosa...


diferente da Mariana.

Automaticamente viro a cabeça para a promotora de justiça,


que faz um singelo de dar de ombros.

— Não sei se eu entendi.

— Mariana namora cinco homens — explica Lauro.

Arregalo os olhos, pego de surpresa por essa declaração


atípica.

— O quê?

Dessa vez quem solta uma gargalhada é Mariana.

— As pessoas sempre têm a mesma reação todas as vezes


que eu, ou alguém, conto esse detalhe da minha vida. — Revira os
olhos. — Mas, como somos colegas de trabalho, vou me explicar
para você.

— Por favor. — Faço um gesto de mãos, chocado.

— Eu tenho, sim, cinco namorados, mas eles têm somente a


mim. E antes que venham as mesmas perguntas inconvenientes de
sempre... sim, eles sabem uns dos outros. E não, eu não fico com
todos ao mesmo tempo. E sim, eles ficam somente comigo. Da
parte deles, uma relação bilateral, já da minha... — Abre um sorriso
malicioso.
Encaro Mariana sem saber o que falar, embasbacado demais
para formular alguma frase coerente. Afinal, não é todos os dias que
eu descubro que alguém namora não um, ou dois, mais cinco
homens diferentes.

A mulher jovem, bonita e bem resolvida é, além de tudo isso,


moderna.

— Bom... isso é... diferente — murmuro.

— Ah, com certeza é — debocha.

— E eles não sentem ciúmes uns dos outros? — Deixo a


curiosidade vencer.

— Às vezes surge uma discussão ou outra sobre isso. Mas eu


amo os cinco de maneiras iguais e não me sinto disposta a
renunciar a qualquer um deles, portanto, só resta que aceitem ou
abram mão da relação.

Eu já ouvi falar de relacionamento a três, mas nunca de


relacionamento a seis. E se Mariana não explicasse como funciona,
mesmo que eu jamais tivesse coragem de perguntar, ficaria
tentando imaginar como os cinco homens conseguem se relacionar
com a mesma mulher.

Enfim, não consigo ser tão moderno assim, eu sentiria ciúmes e


jamais permitiria que a minha mulher andasse com outro, não sem
pensar em traição, ao menos.

Só de lembrar de Antonella – a guria com a qual eu nem tenho


nada – nos braços de outro homem, eu já me sinto levemente
irritado, imagina dividi-la com mais alguém consensualmente.

Não, com certeza não!

O réu, indiciado por furto, entra na sala acompanhado pelos


agentes da SUSEPE, terminando de vez a pauta incomum da
conversa que estávamos tendo.

Afastando meus pensamentos de Mariana e seus cinco


namorados ou de Antonella e sua boceta gostosa, foco na
audiência.

Paro o carro no sinal vermelho, cansado de um dia inteiro de


trabalho.

O tempo feio converge com o abalo emocional que sinto após


conduzir a última audiência do dia. Sempre fico assim quando se
trata de estupro de vulnerável. Apesar de ser um assunto pungente
para qualquer um que tenha sã consciência, para mim vai além
disso, deixando-me nostálgico pelas marcas de uma conversa de
um passado tão distante com o meu irmão.

“O nosso último contato”. Suspiro.

A chuva tórrida bate nos vidros do veículo, enquanto a noite caí


ainda mais pelo céu escuro. Para a minha sorte, eu percebi logo que
levantei de manhã que uma tempestade nos recepcionaria, portanto,
optei por ir de carro ao invés de moto.

Olho para o lado e vejo a academia que passei a frequentar, a


qual eu não irei hoje, pois só quero chegar em casa, tomar um
banho e me jogar na cama, caindo em um sono profundo.

Tamborilo os dedos na direção, cantarolando uma música de


Goo Goo Dolls.

Uma figura conhecida, com os braços envoltos ao corpo, passa


na calçada ao lado do carro. Tremendo mais que vara verde,
Antonella usa uma roupa de ginástica, os cabelos presos em um
rabo de cavalo empapaçados no rosto, encharcados pela chuva.

Aproximo o veículo do acostamento e desço o vidro, molhando


a parte interna por conta disso.

— Ei, entra no carro que eu te dou uma carona — grito,


elevando minha voz por cima do som alto da chuva e das buzinas
dos veículos que passam ao lado.

Antonella para de caminhar, virando-se para mim. Mesmo de


longe, consigo ver os pelos do seu corpo arrepiados pelo frio. Ela
fica em silêncio por alguns segundos, ponderando.

— Não, obrigada. — A voz sai rouca pelos lábios arroxeados.

Que maldita guria teimosa!

Eu não quero que ela tenha uma hipotermia e morra de frio,


mas isso não significa que eu me preocupe com ela, é diferente...
bem, como um ser humano, uma boa pessoa, não quero vê-la
adoecer e morrer. É isso.

—Tchê[5], entra agora na porra do carro, Antonella. Eu estou


indo para casa, moramos no mesmo condomínio.

Noto a contração na sua mandíbula e a forma como semicerra


os olhos, irritada com a minha atitude autoritária.

— Eu já disse que não! — Tenta parecer firme, mas o queixo


treme.

Bufo, cogitando a hipótese de descer do carro, colocá-la sobre


o ombro e jogá-la dentro do veículo, onde está seco e quente. Mas
não farei isso, se Antonella quer se fazer de difícil, então que assim
seja.
Por pura arrogância e prepotência, ela prefere pegar um
resfriado a dividir uma carona comigo. E como o bom cretino que eu
sou, como ela gosta tanto de exaltar aos quatro cantos, respondo:

— Tudo bem, então. Até mais. — Dou de ombros.

Subo o vidro, acelerando o carro.

Pelo espelho retrovisor, consigo observar a cara incrédula que a


advogada ficou, ainda parada no mesmo lugar, fria e encharcada.

ANTONELLA CAREGNATO

Henrique é um maldito cretino!

Eu sabia que iria começar a chover e, mesmo assim, resolvi ir


para a academia sem carro, sem guarda-chuva, sem nada.

Devo admitir que a proposta da carona do juiz foi mais do que


tentadora, pois eu já nem sei mais o que é sentir os dedos dos pés e
das mãos, considerando que eu estou congelada e quase tendo
uma hipotermia. Mas a forma autoritária como ele falou comigo fez
meu cérebro dar cambalhotas e eu decidi que, mesmo que eu morra
congelada, não pegaria a carona quente e cômoda.

Porém, jamais imaginei que ele deixaria de insistir, afinal, como


um bom cavalheiro, Henrique deveria continuar persistindo, até me
fazer ceder. Mas não, nada com o juiz é convencional; foi só eu
contrapor que ele acelerou aquele maldito carro e me deixou na
calçada congelando.

— Idiota! — Minha voz sai em um sussurro.


Caminho até o condomínio, indignada demais para lembrar que
eu estou quase perdendo os dedos.

— Boa tarde, senhorita, Antonella. Está tudo bem? — Senhor


Olavo, o porteiro do período noturno, indaga, lançando-me um olhar
apreensivo.

Não quero nem imaginar como eu devo estar parecendo aos


olhos dos outros. Bem, além de estar pingando água como uma
verdadeira poça ambulante, minha expressão depois da desfeita de
Henrique não deve ser das melhores.

— Está tudo bem, só um imprevisto. Obrigada por perguntar —


respondo ao senhor de idade avançada, cabelos brancos e sorriso
generoso, com educação.

Não estendo nosso diálogo por mais que isso, visto que eu
preciso de um chuveiro ou qualquer coisa quente o suficiente para
elevar a minha temperatura corporal.

Subo os andares de escada, com o intuito de aquecer meu


corpo pelo esforço físico. Entro em meu apartamento retirando a
roupa encharcada com muita dificuldade, deixando tudo jogado no
chão. Tomo um banho escaldante, quente o suficiente a ponto de
deixar as palmas das minhas mãos avermelhadas.

Aquecida e mais calma, vou até a cozinha preparar algo para


comer, quando a campainha toca.

Questiono mentalmente quem possa ser: Fernanda tem a


chave, papai está temporariamente impedido de subir. Bom, se não
for Victor... Céus! Que não seja Henrique, pois sou capaz de matá-lo
com as próprias mãos.

Em passos duros, caminho até o rol de entrada, escancarando


a porta de maneira brusca, a fim de informar ao visitante, seja ele
quem for, que hoje não é um bom dia.
Henrique, com a cara mais deslavada do mundo, está escorado
no batente da porta, o sorriso sacana e sexy delineando os lábios.
E, como sempre, vestindo nada além de uma calça de moletom,
expondo o dorso musculoso e tatuado.

— O que você quer? — Cruzo os braços em frente ao peito ao


lembrar que eu não visto nada além de um roupão de banho.

Ele ri, uma risada rouca que envia calafrios ao meu corpo
traidor.

— Vim ver se chegou viva em casa. — Corre os olhos por cada


centímetro exposto e não exposto da minha pele. — E inteira.

— Ah, muito obrigada pela sua preocupação. Passar bem. —


Não consigo controlar o sarcasmo na voz.

Fecho a porta com força, mas ele impede, colocando o pé.

— O que você quer? — Repito a pergunta, irritada.

— Tu sabe que a culpa de ter chegado em casa assim foi


completa e inteiramente sua, não? Eu ofereci carona, queria o que
mais? Que eu insistisse por horas e horas com afinco?

Solto um grunhido.

Abro a porta novamente, encarando Henrique com ódio mortal.

— Eu estava muito confortável na chuva.

Ele arqueia uma sobrancelha.

— É mesmo? Então fez um percurso agradável na chuva


gelada?

— Sim. — Eu jamais, nem morta, darei o braço a torcer. — É


bom, sabe, depois de malhar tanto...
Ele leva uma mão ao peito, teatralmente.

— Sendo assim, me sinto mais confortável.

Deus! Eu vou matar esse homem! Como é possível existir


alguém tão irritante? É claro que seria um desperdício, afinal, ele é
muito bom com a boca e os dedos...

— Humm... pensando em algo impróprio, Antonella? — Amplia


o sorriso.

— O quê? — Engulo em seco.

Henrique solta uma risada de escárnio.

— Todas as vezes que está excitada, querida, tu fica com as


bochechas rosadas. — A voz sussurrada arrepia até a minha alma.

Coço a garganta, sentindo vontade de morrer.

— Somos melhores amigos, agora? — Volto a cruzar os braços,


desconfortável com essa intromissão.

— Bom, eu já conheço o seu gosto, então...

Jesus Cristo!

— Tá, tá! Chega! Eu preciso jantar, será que você faria o favor
de se retirar da minha casa? — Descruzo os braços e faço um gesto
de mãos.

— Humm... não quer me convidar para comer? — Somente a


ambiguidade em suas palavras me deixa ainda mais excitada.

— Não, estou bem assim. — Sorrio de boca fechada.

— É uma pena... seria tão... divertido.

Reviro os olhos.
— É claro que seria.

Henrique semicerra os olhos, colocando uma expressão


taciturna no rosto.

— Falando assim, penso que não fiz meu trabalho direito. —


Encara o teto, pensativo.

Agarro a ponta do meu nariz, fechando os olhos, inspirando o ar


com calma e pensando em todas as probabilidades do que ocorreria
se eu cometesse, mesmo que sem querer, um homicídio. Mas
lembro que ele é muito soberbo e ferir o seu ego é, com toda a
certeza, o melhor caminho.

— Já estive com melhores, devo confessar — murmuro,


fingindo polir as unhas.

Henrique fica silente, o que é um milagre, considerando que ele


nunca sabe o horário de calar a boca. Encaro-o, vendo os olhos
escurecidos, um esgar nos lábios bem desenhados.

— Então devo repetir a dose. — Avança, mas eu coloco uma


palma em seu peito duro, mantendo-o no lugar. — Ou está com
medo de gostar muito e acabar se apaixonando por mim
irreversivelmente? — O sorriso irônico retorna ao seu rosto. — Ou,
pior ainda, que eu te estrague para qualquer outro homem. Ou, meu
Deus, só esteja mentindo para si mesma porque não consegue
parar de pensar na minha língua tencionando lá. — Abaixa os olhos,
direcionando-os para o meio das minhas pernas.

Engulo em seco.

É irrelevante falar qualquer coisa para ele, pois Henrique tem


um ego muito maior que qualquer ofensa proferida.

Solto um suspiro resignado, cansada dessa discussão


infundada. Recolho a minha mão, não sem antes empurrá-lo até o
corredor.
— Boa noite, Henrique!

Sem dar chance para que ele fale qualquer outra coisa, fecho a
porta, ouvindo sua risada rouca contra a madeira fina.

— Boa noite, Antonella! — grita.

Encosto minhas costas na madeira gelada, sentindo meu


coração bater descompensado, o peito subindo e descendo
sucessivamente em uma respiração pesada e acelerada.

Fecho os olhos, inspirando o ar com força.

As lembranças da noite de sábado – as malditas lembranças


que vêm me atormentando pelos últimos dias – voltam à minha
mente com força total. O jeito despretensioso como Henrique se
porta, a forma como ele me chupou dentro de um banheiro, como se
nada mais importasse além do meu prazer... Deus!

Mesmo que eu não queira, é inevitável, Henrique consegue


mexer comigo de forma arrebatadora. Além do mais, eu sinto tanto
desejo por ele, que às vezes chega a parecer doentio. Se não
fôssemos vizinhos de porta, ou “colegas de trabalho”, eu já estaria
jogada em seus braços em total deleite.

O problema todo é resistir as suas investidas, quando só o que


eu quero fazer é ceder. Se ele ao menos ajudasse e não deixasse
tão evidente que o desejo é mútuo, facilitaria e muito a minha vida.

Henrique Zion será a minha perdição.

Voltando a programação normal, antes de Henrique bater na


minha porta oferecendo propostas indecentes, termino de fazer o
meu miojo de brócolis com molho branco, acrescentando requeijão
para ficar um prato gourmet, e me sento em frente à televisão para
continuar assistindo, pela centésima vez, Diários de um Vampiro.
Nada melhor do que finalizar esse dia horroroso na companhia
de Stefan e Damon Salvatore.
Estaciono o carro em frente ao prédio do meu pai com as mãos
trêmulas e suadas.

Posterguei esse encontro o máximo possível, no entanto,


apesar de ele ter me magoado de forma profunda, ele ainda é o
meu pai, e eu ainda tenho as lembranças da nossa convivência
amigável e amorosa de toda a minha infância.

Desço do carro segurando a porta, testando minhas pernas,


que estão bambas e incertas. É como se minha mente e corpo
estivessem duelando: enquanto meu cérebro manda eu seguir em
frente e colocar logo a conversa em dia, meu corpo teima, insistindo
que eu continue o evitando, pois não me sinto forte o suficiente para
isso.

Desde que mamãe morreu, eu descobri que a vida não passa


de um sopro, e que eu preciso aproveitar o agora com aqueles que
eu amo. Hoje papai está aqui, mas amanhã ele poderá não estar, e
eu não quero me arrepender da conversa que nunca tive com ele.

Suspirando, caminho até o seu apartamento, cumprimentando o


porteiro no meio do caminho. Controlo a respiração com a intenção
de conter as lágrimas que embaçam a minha visão.

Paro em frente à sua porta, indecisa se devo bater ou usar a


minha chave. Opto pela primeira opção, tocando a campainha e
aguardando.

Eu sei que deveria ter marcado esse encontro em outro lugar,


ou ter ligado antes para garantir de que Mikaela não esteja
presente, todavia, eu me conheço suficientemente bem para saber
que eu jamais faria isso e continuaria postergando o momento.

Ouço passos do outro lado da porta, seguido por murmúrios e


risadas que deixam os meus ombros tensos imediatamente, então a
porta é aberta pela mulher que vem tomando o lugar da minha mãe.

Seu sorriso some.

— Oi, Antonella. Tudo bem?

Fico tão impactada com a presença de Mikaela que não


respondo imediatamente. Olho por trás do seu ombro – meu pai se
aproxima da porta cautelosamente, com um jornal em mãos.

— Oi, filha! Que bom que veio.

Desvio o olhar dele para Mikaela com desdém, zombando de


suas palavras saudosas.

Mikaela, percebendo a tensão no ar, coça a garganta.

— Eu... hã... eu preciso dar uma passadinha no mercado.


Deixarei vocês a sós.

Ah, que gentileza. Debocho mentalmente.


Ela junta uma pequena bolsa do sofá e passa por mim, indo
chamar o elevador. Para a minha sorte – ou a da minha sanidade –
ela não beija o meu pai na despedida, sequer chega perto dele.

— Vem, entre! Eu acabei de preparar alguns biscoitos.

Sigo Gael para a cozinha, fechando e chaveando a porta, em


um teste para descobrir se Mikaela já possui a chave do
apartamento.

A cozinha exala um aroma adocicado de chocolate misturado


com café fresquinho. Sento-me na mesa, enquanto Gael dispõe
alguns biscoitos em um prato e prepara uma xícara de café para
mim.

— Como andam as coisas? — pergunta, sentando-se na


cadeira da frente.

Adoço o meu café em silêncio.

— Tranquilas. — Recolho um biscoito do prato, pois, devo


confessar, eu estava morrendo de saudades dessas gordices. — E,
pelo visto, por aqui também. — Arqueio uma sobrancelha em
desdém, inclinando-me na cadeira com um esgar nos lábios.

Gael solta um suspiro profundo e toma um gole do seu café


fumegante.

— Nós já tivemos essa conversa, Antonella. Pensei que tivesse


superado, ainda mais depois de ter me ignorado por dias
consecutivos.

Trinco o maxilar com força, reprimindo, a cada respiração, a


raiva cega.

— Ignorar você não significa que Mikaela tenha se tornado


minha pessoa favorita no mundo, ou que eu a aceite.
Começo a me questionar o que exatamente eu vim fazer aqui.
Gael está claramente apaixonado pela mulher; ela não se importa
com a minha opinião ou com os meus sentimentos. Nada do que eu
disser ou fizer vai fazê-lo mudar de ideia quanto a esse
relacionamento precoce.

— Querida, já faz dois anos que a sua mãe morreu. Por favor,
tu precisa superar o luto. — Coloca a mão sobre a minha.

Desvio o olhar, impactada demais para continuar essa


conversa, então resolvo mudar o assunto.

— Eu vou viajar na semana que vem com Victor. Ficarei o fim


de semana inteiro fora, só para avisar.

Rapidamente ele recolhe a mão, encarando-me com o nariz


franzido, desgostoso.

— Sabe que eu não gosto desses encontros de moto, é muito


perigoso.

— Victor pilota bem, não precisa se preocupar. — Dou uma


mordida no biscoito, soltando um pequeno gemido de prazer.

— Para onde vocês vão?

— Serra gaúcha — respondo com a boca cheia de farelo,


engolindo em seguida. — Vamos ficar em umas cabanas em Nova
Petrópolis.

Ele solta a caneca na mesa um tanto reticente.

— Sei que já é adulta e capaz de cuidar de si mesma, mas


espero que saiba e aceite que, para mim, sempre será o meu bebê.
Por favor, cuide-se, mantenha-se segura... — As palavras morrem
por alguns segundos, os olhos perdidos em um ponto qualquer atrás
da minha cabeça. — Não sou capaz de passar por tudo novamente.
Por mais que a frase soe enigmática, eu consigo identificar
imediatamente o seu significado.

O luto é algo muito difícil e deixa marcas permanentes, não na


pele, mas na alma.

Coço a garganta, depositando a xícara na mesa.

— Eu sei me cuidar, pai. Não se preocupe.

Seus olhos vêm de encontro aos meus; as rugas pela idade que
vem avançando ao longo dos anos contornando as vistas do homem
que, um dia, na cabeça de uma criança jovem e ingênua, fora o
herói de toda uma infância.

— Eu te amo, Antonella! Não há ninguém no mundo mais


importante para mim, minha filha. — Um suspiro, carregado pelo
silêncio em uma pausa necessária. — Me dói o seu afastamento. Eu
sofri tanto nesses dias pela sua ausência — continua.

Quero gritar, extravasar toda a raiva que eu senti ao ver Mikaela


me recepcionar minutos mais cedo. Quero denegar sua declaração,
afirmando que se fosse verídica, ele escolheria a mim e não a ela,
escolheria a nossa relação. E a verdade é que por dentro eu estou
fazendo exatamente isso, mas, por fora, mantenho o rosto sereno,
um sorriso irônico nos lábios iguais ao do homem que está à minha
frente.

Entoando os motivos para estar aqui, ergo o pulso para olhar a


hora em meu relógio.

— Eu tenho que ir. — Levanto-me abruptamente, controlando


cada lufada de ar que passa pelos meus pulmões para manter a
calma. — Tenho uma reunião com um cliente.

Gael me encara em silêncio, aquiescendo depois de instantes.


— Vai vir me ver antes da viagem? — murmura, cada palavra
soando mais trincada do que a anterior em desgosto.

— Não terei tempo, como vou passar o fim de semana fora e


não poderei ficar à disposição dos meus clientes em caso de
eventuais... problemas, tenho muita coisa para preparar —
respondo, a voz inexpressiva, fria.

Ele assente, aprumando-se, os olhos brilhando em decepção.

— Um dia, Antonella, espero que voltemos a ter uma relação de


verdade. Um dia, espero que eu ainda esteja aqui para ver a minha
menina despertar, não a mulher que é hoje, mas a jovem cheia de
sonhos. — Levanta-se, tateando as mãos na calça surrada. — Mas,
principalmente, espero poder ver e conhecer a pessoa que a fará
ressurgir das cinzas.

Sinto minhas costas retesarem, enquanto o fito sem contra-


argumentar, sem palavras.

Entro no bar com a mente atordoada pela conversa com o meu


pai. Ainda que eu tenha passado o dia me distraindo com processos
e ligações de clientes, as palavras dele não me abandonaram,
infiltradas em mim como um método de tortura.

O local, como sempre, está abarrotado de gente, mas hoje não


me valho em identificar o rosto de ninguém, tendo como único e
exclusivo objetivo o de beber até cair na cama e descansar sem
pensamentos nebulosos.

Puxo a banqueta do bar, colocando os cotovelos no balcão e


descansado o rosto entre as mãos.
— Antonella, parece cansada. — Saimon, um dos funcionários
mais antigos de Victor, se aproxima, servindo uma pequena dose de
Amarula e empurrando o copo na minha direção.

Recolho a bebida e viro todo o líquido em um único gole, antes


de depositá-lo de volta no balcão, empurrando-o para Saimon.

— Qual o evento especial de hoje? — pergunto, fazendo um


gesto com a cabeça para os lados.

Saimon serve mais uma dose do licor, antes de responder:

— Vamos receber uma banda do interior chamada Doctor Dog


— explica. — Os caras são bons, dão um baita show.

Comprimo os lábios, silenciando um suspiro desgostoso. É


como se justamente hoje o mundo estivesse rodando no sentido
contrário a mim.

Vim para o bar com o intuito de me entreter bebendo até chegar


em casa e desmaiar, mas em dias de show a casa lota, a equipe
mal consegue dar conta de tudo, o que significa que ficarei alguns
minutos esperando entre uma dose e outra e, consequentemente,
nada de embriaguez.

Puxo o copo da mão de Saimon e viro novamente o líquido.

— Quer saber, me entrega a garrafa toda, depois eu me acerto


com Victor.

Pensando bem, se a banda é realmente boa, nada melhor do


que uma boa música para os ouvidos e inúmeras doses de licor no
sangue.

O rapaz de cabelos ruivos murmura algo ininteligível antes de


balançar a cabeça em descrença e me entregar a garrafa inteira de
Amarula.
— Boa sorte com a ressaca de amanhã — zomba.

Não me digno a responder, entretida demais observando o


público, que não para de aumentar. Assim que me dou conta de que
até o momento não vi Victor – o que é incomum em dias de lotação
–, viro-me para Saimon, mas o rapaz já se afastou, indo atender
outras pessoas que acabaram de chegar.

— Pelo visto, será uma longa noite entre nós dois — cicio para
a garrafa, conversando com o objeto como uma verdadeira louca.

Sirvo mais uma dose; o líquido desce pela minha garganta


deixando um rastro quente pela leve ardência do álcool.

— Dia ruim?

Não preciso fazer nenhum movimento com os olhos para saber


a quem essa voz pertence. O perfume cítrico fez questão de aguçar
o meu olfato antes mesmo que Henrique Zion se aproximasse.

Jesus Cristo, eu só quero paz!

— O que você quer? — Viro a cabeça em sua direção, um


esgar nos lábios.

O juiz me analisa com o olhar franco e a testa franzida, mas sua


expressão muda irritantemente em segundos, os cantos da boca
levantando-se em um sorriso irônico.

— Precisa de companhia, doutora?

O modo como ele me chama de doutora – com uma arrogância


depreciativa – me faz cerrar o punho em volta do pequeno copo de
bebida.

Henrique está escorado no balcão ao meu lado, os músculos


tatuados do braço direito em evidência pelo esforço. Apesar de ser
uma cópia humana perfeita do que deveria ser um Deus Grego, ele
é insuportável, tornando a sua presença incômoda.

Com um sorriso malicioso, levo o copo à boca, degustando


mais um pouco da Amarula, antes de responder a Zion:

— Prefiro passar o resto da minha vida na total solidão do que


dividir alguns minutos do meu tempo com você. — Viro a garrafa,
enchendo o copo novamente.

Antes que eu possa beber, Henrique coloca a mão sobre a


minha.

— O que você está fazendo? — sibilo, crispando os dedos da


mão esquerda para agarrar o seu braço e puxar o copo de volta.

Henrique me lança um sorriso incisivo, desafiando-me a


continuar. E, para o total orgulho do meu ego destemido, cravo as
unhas em seu antebraço, ignorando os alertas mentais.

O bad boy estala a língua na boca, meneando a cabeça como


se estivesse me repreendendo. Então, mais rápido do que um piscar
de olhos, ele segura minha mão. Girando-me no banco, ele abre as
pernas, acomodando-me entre elas, pressionando firme.

Henrique agarra os meus cabelos em um toque possessivo e


muito, muito sexy, elevando o meu rosto em sua direção.

— Sabe o que eu faço com garotinhas teimosas, Antonella? —


murmura em meu ouvido, a intensidade da sua voz acariciando
cada célula do meu corpo.

— N-não — consigo falar, rouca.

Ele passa os lábios pela minha bochecha, a respiração quente


aliciando a minha pele, arrepiando-me por inteiro, molhando a minha
calcinha.
— Eu faço coisas muito pecaminosas — continua.

Henrique agarra a minha coxa com a mão livre, puxando a


minha bunda para a beira da banqueta, colando meu quadril ao seu
propositalmente para que eu possa sentir sua intimidade dura por
debaixo da calça.

Mordo o lábio inferior, um gemido desprendendo-se da minha


garganta.

— Preciso de mais detalhes... — induzo-o.

Ignorando a tudo e a todos, agarro a gola da sua camiseta,


ensandecida para experimentar a sua boca mais uma vez.

— Hummm... — finge pensar na hipótese. — Desse jeito é


melhor mostrar.

Afasto Henrique para encarar os seus olhos em uma falha


tentativa de colocar algum discernimento na minha cabeça, mas é
claro que não dá certo, pois só serve para aumentar ainda mais a
minha libido.

Ah, dane-se! Eu preciso de uma distração! Preciso... viver.

Deus!

Constatar o óbvio do que o meu pai vem falando me assusta,


assolando-me como brasa fumegante.

— Então me mostre, excelentíssimo!

Os olhos do juiz brilham em pura malícia, estreitando-se em


uma expressão letal, antes de me agarrar pela cintura, arrastando-
me em direção ao banheiro.
Henrique cola os seus lábios aos meus em um beijo urgente.
Sinto as minhas costas na parede do corredor, enquanto enfio
minha língua em sua boca, entrando em uma sincronia gostosa e
alucinante.

— Só um momento, amor! — Se afasta somente o suficiente


para abrir a porta do banheiro feminino e espiar dentro do local,
sorrindo em seguida. — Acesso liberado.

Sua boca entra em contato com a pele do meu pescoço em


beijos apaixonados e mordidas despudoradas. Fecho os olhos,
jogando a cabeça para cima a fim de libertar mais pele para a sua
degustação. Ouço a porta ser fechada e, em seguida, chaveada,
tudo isso sem perdermos o contato.

Agarro os ombros musculosos de Henrique, cravando as unhas,


desejando arrastar as mãos pelas suas costas, pelo seu peitoral,
dedilhar suas tatuagens.
— Tire a camiseta — peço em um baixo ronronar.

— À sua disposição, doutora!

Com uma única mão ele puxa a camiseta preta pela cabeça,
liberando todos os centímetros de pele que eu desejo tanto tocar.

— Melhor assim? — Arqueia uma sobrancelha escura.

Meu coração bate descompensadamente; a adrenalina corre


em meu sangue, como uma combustão injetando doses de afoiteza.
E eu percebo, não tarde demais, que isso é viver. Que ele consegue
despertar o melhor e o pior de mim. E que somente ele conseguiu
fazer isso depois que ela se foi.

Com a garganta apertada, mas anestesiada em emoção, toco


no peitoral nu de Henrique, sentindo a pele quente sob os meus
dedos, circulando cada gominho da musculatura.

— Muito melhor — murmuro.

Levo meus lábios até seu pescoço, deixando beijos molhados,


descendo e descendo, lambendo as tatuagens, babando em seu
peitoral, mas, agora, no sentido literal.

— Se eu soubesse que queria tanto me lamber, teria tirado a


camiseta antes, amor! — Agarra meus cabelos, puxando levemente
o couro cabeludo até arder.

— Quem disse que você merecia antes?

A risada rouca de Henrique chega aos meus ouvidos, a barriga


se retesa em minha boca.

— E agora eu mereço?

Abrindo um sorriso que ele não consegue ver, chego ao cós da


calça, ajoelhando-me em sua frente. Passo a língua na extensão da
pele, sentindo-o ficar rígido, o volume no meio das pernas
aumentando.

— Não brinca comigo, Antonella! — A voz soa rigorosa, embora


falhada pelo tesão.

Abro o botão da calça, abaixando o zíper, a cueca boxer ficando


em evidência, mas me limito a somente essa pequena
contemplação do tecido fino, resvalando-o pelas coxas brancas e
torneadas junto com a outra peça de roupa. Seu pênis salta,
batendo em meu rosto pelo comprimento avantajado.

Uau! Se algum dia eu tiver a oportunidade de medir, farei isso


com total deleite, pois esse é o maior pênis que eu já vi na minha
vida! Ele tem o quê? Uns 20 centímetros?!

— E eu que pensei que cabia a mim demonstrar... — A voz


morre assim que coloco minha boca em seu pau. — Ohhhh!! —
Agarra a borda da pedra de mármore da pia.

Passo a língua pela pele macia da ponta da glande, lambendo a


gota do líquido pré-ejaculatório, antes de engolir o máximo que
consigo em uma vigorosa sucção, estocando-o em minha boca.

Os dedos de Henrique se enroscam nas minhas madeixas; os


músculos das suas pernas retesam pelo esforço físico de manter-se
de pé, enquanto eu seguro o ritmo acelerado do sexo oral.

Através da porta do banheiro, ouço a banda iniciar sua


apresentação, fazendo-se escutar por entre os gritos do público que
veio somente para assisti-los em uma calorosa euforia.

Henrique me puxa pelos cabelos, levantando-me, forçando a


retirada do seu pau da minha boca.

— Eu vou gozar em outro lugar, amor!


Me beija, ignorando a música e o burburinho fora do banheiro,
sentindo o seu gosto na minha língua. Ele puxa meu vestido para
cima, prendendo-o no quadril, enquanto me senta na ponta do
mármore gelado.

Os dedos impacientes abaixam o meu decote juntamente com o


sutiã, deixando meus seios à mostra, levando a boca até o local,
chupando, sugando, babando com gosto.

Ele é bom, muito bom com a boca, devo confessar.

— Oh, Henrique! — Agarro as mexas finas, acariciando seus


cabelos sedosos.

— Ainda não — avisa, alertando-me que isso é só o começo


das sensações. — Eu vou te comer na porcaria de um banheiro,
Antonella, porque estou em desespero para experimentar essa
boceta deliciosa, mas quero que saiba que isso é só o começo. Que
ainda vou te foder em todas as posições existentes. — Passa o
polegar em meus lábios, o indicador erguendo o meu queixo,
forçando-me a olhar em seus olhos.

Um dia a minha vagina pingou, porque nesse momento,


ouvindo suas palavras devassas, ela chora em desespero querendo
o pau do Henrique Zion.

— Então faça logo e pare de promessas, senhor juiz!

O canto direito da boca de Henrique se curva em um sorriso


malicioso, os olhos ganham contornos de diversão. Seu dedo
indicador continua no mesmo lugar, fazendo carícias em uma
silenciosa ameaça.

— Aproveite essa boquinha deliciosa, traiçoeira e talentosa


para falar enquanto ainda consegue proferir palavras — dito isso,
ele arranca a minha calcinha com brutalidade, fazendo o tecido fino
da renda vermelha ser partir em vários pedaços. — Infelizmente,
doutora, teremos que permanecer parcialmente vestidos.
Henrique cospe na mão, levando-a, em seguida, até meu
centro, abrindo minha carne de maneira deliciosa e alucinante.

— Hummmm, tão, tão molhadinha — sibila.

Ele passa um dedo entre o clitóris e a uretra, brincando comigo,


instigando-me mais. Cravo as unhas em seus ombros, rebolando
meu quadril na sua mão.

— Por favor... — minha voz morre quando o dedo aperta meu


nervo sensível, estimulando-o.

— Não vejo a hora de colocar a minha boca aqui novamente...


— Pressiona mais.

Henrique retira os dedos, e eu protesto em palavras


desconexas e ininteligíveis, calando-me ao vê-lo levar a mão até
seu pênis, trazendo o quadril de encontro ao meu, pincelando a
entrada e encontrando total facilidade para deslizar para dentro de
mim.

— Perfeita! — murmura contra o meu pescoço.

Ele sai e entra novamente; meus músculos internos se retraem,


acostumando-se com o seu tamanho, com a intrusão deliciosa.
Esfrego as unhas em suas costas, amando cada segundo desse
momento errado, proibido, mas inefável.

Henrique estoca mais, acelerando o ritmo, indo mais fundo,


mais brusco, com mais urgência. Dentro do banheiro só
conseguimos escutar o barulho de pele contra pele, duelando com
nossos gemidos.

— Empina mais o quadril — pede, trincando o maxilar.

Sem forças, mas querendo tudo o que ele tem para me dar,
faço conforme instruído, chocando a cabeça contra o espelho. A
posição não é agradável para os músculos e possivelmente me dará
uma dor nas costas mais tarde, contudo, Henrique me penetra
novamente, indo, dessa vez, mais fundo, acertando um ponto, até
então, nunca alcançado.

— Ohhhhh!!! — grito, ignorando que estamos em local público,


me debatendo em deleite.

Agarro a torneira, tateando qualquer lugar fixo para me segurar


e continuar mantendo a posição. Henrique levanta as minhas coxas,
deleitando-se em minha vagina. As mãos grandes apertam minhas
pernas, as veias do antebraço saltadas pelo esforço, o suor
pingando, misturando-se com o meu.

— Goze para mim, Antonella, goze — induz, entre um gemido e


outro.

— Mais forte! — falo entredentes.

E assim ele faz, quase fundindo os nossos corpos. Minha


cabeça bate no espelho, meu cotovelo na pedra, mas eu não me
importo, concentrada demais no sexo louco e selvagem que
estamos desfrutando.

Meu corpo começa a convulsionar, friccionando em um


orgasmo arrebatador. Fecho os olhos e enxergo estrelas, soluçando
pelo ápice do total deleite. E Henrique urra, dividindo comigo o
momento, alcançando o seu próprio prazer.

Não sei quanto tempo se passa até que eu consiga abrir os


olhos. Percebo que o juiz ainda permanece dentro de mim, o pau
amolecido e inerte depois de se desfazer em um orgasmo. Meu
cérebro pisca, me alertando de que há alguma coisa acontecendo,
mas a mente permanece entorpecida, levando mais algum tempo
para detectar o que é.

— Se não abrir essa porta, eu irei arrombar. — A voz de Victor


soa através da madeira fina, seguida por socos.
— Merda! — reclama Henrique. — Deixa eu te vestir, não quero
dividir essa visão com ninguém.

Rapidamente, Henrique sai de dentro de mim, arrumando o pau


dentro da calça, sem se preocupar em se limpar. Em seguida,
organiza meu vestido, tapando os meus seios desnudos. Ele abre a
torneira e passa água na mão, limpando-me com ela, retirando
nossos resquícios, para então me puxar do balcão e terminar de me
arrumar.

Vejo pela visão periférica o momento em que ele recolhe a


minha calcinha, guardando no bolso da calça a pequena peça de
roupa.

A porta é aberta em um estrondo; Victor quase cai pelo


impacto. Assim que olha para mim e, posteriormente, para Henrique
– ainda sem camiseta e com o peitoral todo arranhado –, arregala
os olhos.

— Cara, não sei qual é a porra do fetiche de vocês com


banheiros, mas isso está prejudicando o meu público. — Passa as
mãos nos cabelos.

Sinto as minhas bochechas pegando fogo, o que só intensifica


quando reparo nos olhares curiosos tanto femininos quanto
masculinos no corredor.

— Eu vou pagar a fechadura — declara Henrique, recolhendo a


camiseta do chão e vestindo-a.

— Com certeza vai pagar, é a segunda vez que fico no prejuízo


por causa dos dois. — Aponta um dedo em riste para nós. — Aliás,
vocês não moram um do lado do outro? Por que diabos se
invocaram com o meu banheiro?

Ah, não! Isso é demais para mim. Se Victor continuar com


essas perguntas indecentes eu vou queimar, mas não como eu
estava antes dele interromper, e sim de vergonha.
— Eu preciso ir beber alguma coisa — aviso, querendo fugir o
mais rápido possível.

A expressão de Victor se contrai conforme ele tenta esconder o


sorriso zombeteiro e malicioso.

— Com certeza precisa.

Estou prestes a sair do banheiro correndo, mas Henrique


segura o meu braço, encarando Victor com uma expressão
enfezada.

— Eu vou contigo, também preciso beber algo.

Olho para a sua mão, erguendo a cabeça até chegar em seu


rosto, mas não me incomodo em pensar no que tudo isso significa
ou em como será de agora em diante; sendo assim, concordo com
um leve assentir.

Passo por Victor cabisbaixa pela vergonha, não conseguindo


impedir a oscilação no passo seguinte. Henrique coloca o braço
sobre os meus ombros, desfilando comigo com um enorme sorriso
nos lábios, ignorando os olhares curiosos.

Minha garrafa de licor permanece intacta no balcão; viro o


líquido direto do gargalo, molhando a garganta seca por tantos
gemidos. Entrego-a para Henrique, o qual aceita de bom-grado,
fazendo o mesmo que eu.

— Como tu veio? — indaga, depositando a garrafa de volta no


balcão.

— Uber. — Dou de ombros.

Eu sabia o motivo do porquê queria tanto vir ao bar, portanto,


optei pelo método mais seguro.

— Eu vou te levar para casa.


Cruzo os braços em frente ao peito, arqueando uma
sobrancelha.

— Vai dirigir depois de ter bebido, excelentíssimo?

Ele revira os olhos.

— Não estou nem perto de me sentir levemente embriagado,


não tem com o que se preocupar, está totalmente segura.

Permaneço em silêncio por alguns segundos, fingindo ponderar,


mas meu sorriso me delata.

— Tudo bem. Eu realmente quero ir embora.

Henrique bate no balcão, chamando Saimon. Retirando a


carteira do bolso da calça, ele recolhe algumas notas de dinheiro,
entregando-as ao rapaz.

— Pela bebida e pela fechadura do banheiro.

Deus! Não sei onde me esconder pela vergonha! Henrique


claramente não tem escrúpulos.

Saimon franze a testa, mas não fala absolutamente nada,


afastando-se para entregar o dinheiro a Victor. Antes que meu
amigo, ou qualquer outra pessoa, possa aparecer, acelero os
passos para fora do bar, acalmando a minha respiração quando piso
na rua.

Henrique segura a minha mão, entrelaçando os nossos dedos,


enquanto caminhamos em sincronia pelo estacionamento do bar.
Ele retira as chaves do bolso, parando em frente a sua moto.

— Dois capacetes? — pergunto, curiosa.

Ele faz um movimento com os ombros, abrindo um sorriso


sacana.
— Um homem anda sempre precavido.

Ignoro o fato de que ele veio hoje no bar em busca de


companhia feminina. Pisco para a afastar a raiva, recolhendo o
capacete com mais brusquidão do que o necessário.

Henrique se senta na moto; ocupo o lugar às suas costas,


agarrando seu tronco com força. Inspiro seu cheiro cítrico,
venerando sua pele quente e aconchegante.

— Vamos para casa, doutora.

Ele não espera uma resposta, segurando com firmeza o


acelerador e tirando-nos no bar.

E, mesmo que Henrique corra pelas ruas de Porto Alegre, eu


me sinto protegida estando com ele.
Antonella não me procurou mais e não deu nenhum sinal de
vida ou de interesse.

Depois que retornamos para casa, a guria me entregou o


capacete, agradeceu a carona e simplesmente entrou em seu
apartamento batendo a porta sem maiores delongas.

Para não parecer um desesperado, rumei para a cama, mas


sem tirar ela ou o nosso sexo dos pensamentos até pegar no sono.

Ontem ela sumiu o dia todo e como estive muito ocupado com
afazeres do trabalho fiquei sem notícias suas. Mas hoje é diferente,
eu sei que ela está em casa, posso ouvir o barulho alto da televisão.

Ando de um lado para o outro estalando os dedos, pensando


em como posso entrar em contato sem parecer um lunático atrevido.
Faço uma repescagem mental da nossa breve conversa antes de
cedermos aos desejos carnais.
— Deus, isso é insano! — Passo as mãos no rosto.

Bem, eu prometi que a foderia em todas as posições


existentes... e um homem de palavra sempre honra as suas
promessas. Sendo assim, estou devendo mais sexo para
Antonella...

Ah, dane-se, estou indo atrás da guria.

O primeiro passo oscila, mas os outros arrastam minhas pernas


com graciosidade, decididos a resolver de uma vez essa questão.
Para a minha sorte, a vizinha fofoqueira está com a porta fechada,
mas tenho absoluta certeza de que ela vai ouvir as batidas e
imediatamente espiar, cedendo, como sempre, a sua aguçada
curiosidade.

Ouço através da porta os narradores da partida de futebol que


eu assistiria se não estivesse tão tentado a vê-la. Com o punho
fechado, dou uma leve batida, aguardando.

E então, passos, sucedidos pela porta sendo aberta, mas não


por Antonella e sim um homem.

— Pois não? — fala em tom calmo, polido, à guisa de


cumprimento.

Um arrepio de raiva atravessa a minha espinha.

Inacreditável! É o meu primeiro pensamento, seguido por: sou


um completo idiota!

Controlo a respiração, piscando algumas vezes para sufocar a


raiva, amainando-a ao reparar melhor nos traços do homem à minha
frente. Ele é mais velho; os cabelos grisalhos são ralos, o que
destaca os traços angulosos, bem como as rugas marcadas na pele
ao lado dos olhos pelos anos vividos. E, para o meu espanto e
vergonha, é uma cópia quase fiel da guria, pois os traços genéticos
são análogos.
Pigarreio.

— É... olá, eu gostaria de falar com Antonella. — Levo a mão à


nuca, constrangido pelo ciúme descabido.

O senhor franze a testa, a mão ainda segurando a porta


semiaberta.

— E quem é você?

— Ah, desculpe. Sou Henrique, o vizinho do apartamento ao


lado. — Aponto com o queixo.

O vinco profundo em sua testa se desfaz aos poucos.

— Ah, claro, rapaz! Sou Gael, pai de Antonella. Tu és amigo da


minha filha? — indaga, curiosidade fervilhando em seu tom de voz.

Abro e fecho a boca sem saber exatamente o que responder.

Bem, Antonella e eu trocamos alguns fluidos corporais há


alguns dias; acho que posso responder a sua pergunta de maneira
menos danosa a honra de um pai.

— Claro! Somos muito, muito amigos.

Gael semicerra os olhos, analisando-me, a boca franzindo de


leve. Posso ouvir as engrenagens em seu cérebro a cada piscar de
olhos em minha direção.

— Sendo assim, quer entrar? — Ele me olha acintosamente.

Relembro que eu vim até aqui com o intuito de foder com a filha
dele, o que pareceria muito indecoroso em sua presença.

Infelizmente, terei que deixar meus planos para outra hora.

Começo a menear a cabeça em negativa, dando alguns passos


para trás, mas Gael escancara a porta, expondo a roupa que veste.
— Como está o jogo? — indago, ao ver a camiseta do tricolor
gaúcho, inclusive, a mesma que estou vestindo.

Seu olhar desce para a minha roupa, abrindo um sorriso.

— Não começou ainda... — para de falar, ponderando alguma


coisa. — Se tu quiser entrar para assistir a partida comigo, Antonella
foi ao mercado e já volta.

Isso seria meio íntimo. Assistir ao jogo com o pai da guria que
eu estou tendo algo ainda inominado.

Reflito, pendendo os motivos para fazer e deixar de fazê-lo.

— Vamos, rapaz! — insiste Gael, percebendo que estou


discorrendo mentalmente sobre a proposta, indeciso.

Íntimo. Muito íntimo.

Dou de ombros.

Eu gosto dessa intimidade.

— Tudo bem! Melhor do que assistir ao jogo sozinho, é assistir


acompanhado... de um gremista, é claro.

Passo por Gael, entrando pela primeira vez no apartamento de


Antonella. Seguindo o mesmo modelo que o meu, a sala é grande e
ampla. Contudo, Antonella optou por móveis claros, trilhando um
padrão de tons pastéis. Mesa de jantar, sala e cozinha separadas,
banheiro para as visitas, um quarto e uma suíte, e, por fim, uma
pequena lavanderia mais afastada.

— Eu iria ao mercado com ela, mas como o jogo já estava para


começar... — explica Gael, instruindo-me até o sofá.

— Sei.
Há uma pequena estante com livros ao fundo da sala. No
primeiro andar, passo os olhos pelos títulos e reconheço algumas
doutrinas, as mesmas que eu possuo na minha sala no Foro. Já nos
demais andares é uma mistura de cores e livros de cunho
desconhecido para mim, embora os títulos pareçam ser bem...
interessantes.

— Antonella foi pegar cerveja no mercado... sinto muito por não


ter no momento para oferecer — fala Gael, afastando a minha
atenção dos livros esquisitos da advogada.

Ele retira as almofadas do sofá para ampliar o espaço, indo até


algum dos quartos para guardá-las, então retorna, acomodando-se
ao meu lado.

— Ah, mas se esse é o problema, tenho um frigobar cheio em


casa.

Os olhos de Gael brilham em animação.

— De qual marca?

— Heineken.

Ele faz silêncio, franzindo o cenho por alguns instantes.

— E está esperando o que para ir buscar? — murmura, por fim.

Rindo, percebo o quanto gostei desse homem e como vamos


nos divertir. No passado, eu assistia aos jogos com o meu irmão, já
que nosso amável e adorável pai acha futebol uma baboseira
desnecessária, mas depois que Antônio morreu fiquei um tempo
desligado disso tudo, afastado de tudo o que me lembrasse ele e a
dor da sua falta.

Com os anos, voltei para a programação normal, mas sempre


sozinho... até hoje.
— Tudo bem.

— Vou com você — avisa, levantando-se.

Acompanho Gael para fora, instruindo-o para seguir a direita no


corredor. Em menos de dez passos, estamos em frente à minha
porta.

— Como pode ver, minha residência fica muito distante.

Gael solta uma risada, balançando a cabeça em descrença.

— Faz pouco tempo que se mudou para cá?

Entro no meu apartamento sem me preocupar em apresentar o


imóvel ao homem; sigo direto para a cozinha. Faço um sinal de
mãos para que se sinta à vontade. Abro o frigobar e começo a
retirar algumas garrafas, depositando-as em cima do balcão,
enquanto respondo:

— Algumas semanas.

Ele solta um suspiro, o que chama imediatamente a minha


atenção, pausando a tarefa para prestar atenção.

— Eu fiquei um tempo sem vir aqui... Antonella proibiu a minha


entrada. — Faz um gesto com as mãos.

Sinto as minhas sobrancelhas franzir.

— Não que seja da minha conta, mas por qual motivo ela faria
isso?

Com o silêncio de Gael, aproveito para me afastar e pegar uma


sacola; quando retorno, o homem continua escorado no balcão, um
brilho de tristeza em seus olhos.

— A minha esposa, mãe da Antonella, morreu há dois anos, e


desde então minha filha nunca mais foi a mesma. — A voz soa
amargurada, embargada pela saudade.

Ouço-me resfolegar.

Falar sobre a morte nunca é fácil para mim. Suporto menos


ainda que alguém fique se lamuriando; eu ainda não aceitei, e nem
sei se um dia o farei, o óbito precoce do meu irmão. Mas isso é
diferente, é sobre Antonella e o fato de que ela divide o mesmo
sentimento que eu.

— Mas isso é motivo para que ela te afastasse? — Cruzo os


braços em frente ao corpo.

Eu sei a resposta. Eu mesmo afastei muita gente depois que


Antônio morreu, no entanto, ainda não faz sentido algum que
Antonella tenha agido dessa maneira, principalmente com o pai, um
homem que deixa evidente o quanto ama a filha.

— Eu fiquei sozinho por muito tempo, mas há alguns meses


conheci uma pessoa. No início éramos amigos, mas depois algo
mais profundo começou a brotar. — Gael fixa os olhos em um ponto
qualquer, perdido em pensamentos. — Por um tempo eu não
aceitei, sentia como se estivesse traindo Maria. Até que em algum
momento eu compreendi que a vida estava fluindo mesmo após a
sua morte, que eu precisava reagir e parar de somente existir, então
me permiti amar novamente. Mas embora eu tenha visto isso,
Antonella não divide da mesma opinião, ela não aceitou e não aceita
Mikaela, por isso o nosso afastamento. — Pisca, voltando os olhos
para os meus.

Coço a nuca, sem saber o que falar.

— Eu sinto muito pela morte da sua esposa — murmuro o que


já ouvi por muitas e muitas vezes.

O silêncio que se estende é denso. Sinto minhas costas


retesarem conforme sustento o olhar de Gael.
— Tu é um bom rapaz, Henrique. Espero que seja mais forte do
que eu — fala, enigmático. E antes que eu possa contestar ou
perguntar o que diabos está acontecendo, Gael continua: —
Vamos? O jogo já deve ter começado.

Pego a alça da sacola e saio do apartamento, acompanhando o


progenitor de Antonella. Continuo absorto em reflexões sobre o que
nossa conversa significou ou que Gael tentou me dizer.

ANTONELLA CAREGNATO

Eu odeio ir ao mercado em dia de jogo, ainda mais quando se


trata do tal Grenal[6]. No entanto, essa foi uma demanda obrigatória,
pois não estava esperando visita, muito menos a companhia do meu
pai.

Amanhã eu irei viajar com Victor e como havia dito a Gael que
não teria tempo de vê-lo antes da viagem, ele mesmo resolveu
solucionar o meu “problema” me fazendo uma visita inesperada. E
eu, sabendo da sua fissura pelo tricolor gaúcho e tendo ouvido
algumas notícias sobre o jogo, rapidamente me disponibilizei a ir ao
mercado comprar algumas coisas para preparar o jantar, e, é claro,
sua tão preciosa cerveja.

Quando eu era criança, assistíamos ao jogo juntos; mamãe


também era gremista, talvez até mais do que o meu pai. Mas desde
que ela morreu, tenho evitado o futebol.

Largo as sacolas no chão para abrir a porta do apartamento.


Antes mesmo de entrar, eu posso ouvir o barulho alto do jogo
misturado aos burburinhos de revolta de Gael.
— Está com visita, querida?

Dou um pulo pelo susto de ter sido pega desprevenida.


Suspirando, viro o corpo em direção ao apartamento da vizinha
fofoqueira, abrindo um sorriso falso.

— Olá, dona Celene! Como a senhora está? E, sim, meu pai


veio me visitar.

— Estou bem, menina. Mas agora me conte, já conversou com


o vizinho bonitão depois daquela fatídica discussão? — Arqueia as
sobrancelhas brancas, apontando com o queixo para a porta do
Henrique.

É claro, inclusive, eu o chupei dentro de um banheiro público há


dois dias. O pensamento intruso me deixa encabulada.

Mantendo minha máscara falsa, respondo:

— Infelizmente ainda não tive tempo. — Faço um bico com a


boca. A mentira pinica a minha língua.

Dona Celene espia o corredor, olhando para os dois lados antes


de sussurrar em alguns tons mais baixos que o normal:

— Ele vai para a academia todos os dias, às sete horas da


noite. Se quiser conhecê-lo melhor e ainda degustar de todo àquele
porte físico, já sabe o horário. — Pisca um olho. — Mas não seja tão
inconveniente quanto da primeira vez, ou não vai agradá-lo —
acrescenta, deixando-me boquiaberta. — Agora preciso voltar, o
grenal já começou. Até mais. — Fecha a porta, mas sei que
continua ouvindo por detrás.

Oh, Deus! A mulher além de fofoqueira é absurdamente doida.


Inconveniente? Eu? Bem, eu só queria dormir!

— Até mais, dona Celene!


Rindo, volto para o meu próprio apartamento, imaginando se
ficarei uma boa senhora fofoqueira quando for mais velha.

— Pai, cheguei com as cervejas! — grito, fechando a porta com


o quadril.

Deposito as sacolas na pia, espalmando as mãos no mármore


branco para descansar por um momento. Ter ido a pé foi, com toda
a certeza, um grande erro. Mas entre caminhar uma quadra ou
pegar o trânsito caótico, optei pela primeira opção.

— Estamos com visita, querida! — Ouço-o gritar de volta.

Entro em alerta em segundos. O primeiro sentimento a surgir é


a raiva, pura e latente, irradiando por todos os meus poros.

Pisco, afastando-a.

Meu pai não traria Mikaela para o meu apartamento, ele não
faria isso contra a minha vontade, desrespeitando-me desse jeito.

Certo. Preciso ir conferir.

Em passos indecisos, inspirando e expirando profundamente,


caminho até a sala. Minhas mãos estão suadas e trêmulas, o
coração parece sair pela boca.

Mas nada, absolutamente nada, havia me preparado para a


visão que se sucederia ao meu colapso imaginário.

Henrique Zion está sentado em meu sofá, um braço escorado


no encosto e o outro segurando uma garrafa de cerveja; a camiseta
do time tricolor modelando os músculos e deixando as tatuagens à
mostra. O juiz está concentradíssimo no jogo, alheio a minha
presença.

Do outro lado está o meu pai, em uma posição muito parecida.


Os dois parecem dividir um momento de cumplicidade masculina.
Pigarreio, sem saber como reagir a cena.

— Eu trouxe a cerveja. — Aponto para a cozinha, nervosa.

As imagens da última vez que eu encontrei com Henrique me


alvejam; algo inadequado e impróprio para a ocasião, mas
incontrolável.

Dando-se por conta da minha presença, os olhos do bad boy


correm de encontro aos meus e eu sinto todo o meu corpo arrepiar –
e pelo brilho puramente predatório que ilumina a sua expressão, ele
sabe bem no que estou pensando.

— Oi, Antonella, estava esperando por ti — sibila, a voz


carregada de promessas libidinosas.

Pressiono levemente uma perna contra a outra.

— Filha, estamos assistindo ao jogo, se não se importa.


Henrique trouxe algumas cervejas — comenta, alheio a toda essa
tensão, concentrado demais no jogo.

Encaro o juiz, o canto de sua boca curvando-se em um meio-


sorriso esculpido pelo próprio diabo.

Não nos vimos desde o incidente do banheiro e tê-lo aqui na


minha casa, ao lado do meu pai, é... icônico. Deus, eu preciso beber
alguma coisa!

— Eu... eu vou preparar algo para comer — aviso, a voz


falhando pelo choque.

— Não se preocupe, querida, já vou ajudá-la. — Apesar da


oferta, meu pai não retira os olhos da televisão, entretido demais
com o jogo do time favorito.

— Aham...
Ignorando o olhar ávido de Henrique, corro para a cozinha.
Passo uma mão na testa suada, o coração apressurado pela cena e
pelas lembranças no banheiro me alvejando a cada instante.
Espalmo as mãos no balcão, acalmando a minha respiração
acelerada.

Não sei o que pensar de Henrique na minha casa assistindo ao


jogo com o meu pai. Dois sentimentos duelando lado a lado. Um
deles grita em meu ouvido, esbravejando o quanto isso é indecente
e absurdo. Enquanto o outro comemora, extasiando-se por tê-lo
aqui.

Braços torneados e tatuados envolvem a minha cintura; o calor


corporal que emana de Henrique fundindo-se ao meu, me causa
pequenos arrepios na nuca e uma deliciosa sensação de
combustão.

— Quer ajuda, doutora? — sussurra próximo ao meu ouvido.

Henrique empurra os quadris contra a minha bunda, forçando-


me a sentir sua masculinidade.

— Eu vim cumprir minha promessa. — A voz grossa e


autoritária falha pela tensão sexual que está infiltrada no ar que
respiramos.

— Q-que promessa? — Limpo a garganta.

— A de te foder em todas as posições existentes.

Oh. Meu. Deus!

Inclino a cabeça, meus cabelos castanhos oscilando com o


movimento, roçando contra o peito esculpido. Ouço-me resfolegar,
constatando que meu corpo ganha vida própria quando se trata
desse homem e de suas promessas pecaminosas.
Ele roça os dentes e a língua na pele do meu pescoço. As
mãos deslizam por baixo da minha blusa subindo a cada raspar de
dedos, conforme eu arqueio a cada toque.

Solto o ar pelo nariz.

A única e chocante verdade é a de que eu torço, vibro para que


ele cumpra essa maldita promessa, porque eu também quero mais.

Henrique desce os dedos lentamente, dedilhando-os através da


pele lisa da minha barriga, um raspar leve, sensual e sexy. Um
carinho indecoroso, mas excitante.

Mordo meu lábio, interrompendo um gemido disfarçado de


suspiro.

— Antonella, tu precisa de ajuda? — A pergunta de meu pai


ecoa pelo leve torpor em que me encontro.

Em segundos, Henrique se afasta, pulando alguns centímetros


para longe de mim, mas permanece de costas, impedindo que meu
pai veja a protuberância em sua calça.

Com um sorriso amarelo, a mente perturbada e a cara mais


deslavada, encaro Gael.

— Eu vou preparar algo rápido e fácil, vocês dois não precisam


se preocupar, podem retornar ao jogo de vocês. — Faço um sinal
com as mãos.

Gael não contesta, contentando-se com um simples sinal de


cabeça.

— É, certo. Estou retornando para a sala. — Dá alguns passos


para trás, um tanto cambaleante.

Seja lá o que esteja estampado no meu rosto pela reação do


meu pai, ele entendeu perfeitamente, para o meu desespero.
Encaro Henrique com os olhos semicerrados, fingindo uma fúria
inexistente.

— O que foi? — Sorri de forma galanteadora.

— Some da minha cozinha!

Seus lábios se retesam, exibindo os dentes, enquanto se


mantém no local, sem movimentar um único músculo, a respiração
ainda ofegante.

— Eu vou, mas eu volto — murmura, retomando o caminho


para a sala.

E eu só volto a respirar quando não vejo mais Henrique,


reprimindo os efeitos colaterais que seu toque me causou.
De longe posso ver as motos aguardando o horário de partida
para dar início ao nosso fim de semana. Fernanda estaciona seu
carro no acostamento do estacionamento do bar.

Suspirando, ela desliga o motor e gira a cabeça em minha


direção.

— Por favor, me garanta que vai voltar para casa inteira.

Com a mesma linha de pensamento do meu pai, Fernanda


teme essas minhas viagens com o clube de moto, ainda mais
quando o destino é a Serra Gaúcha, onde quase todas as estradas
são íngremes.

— Não se preocupe, em três dias estarei de volta para


continuar com os meus dilemas pessoais. — Lanço-lhe um sorriso
que parece mais um tremular.

— Eu falo sério, Antonella.


Arfo, estampando a expressão mais calorosa que consigo fazer.

— Eu também. — Seguro sua mão, apertando-a levemente. —


Obrigada pela carona.

Revira os olhos.

— Sempre que precisar, estarei à disposição.

— Eu sei que sim.

Fernanda é a minha melhor amiga, a pessoa que eu posso


recorrer sempre que for necessário, com quem eu posso contar em
absolutamente todas as horas. E sou grata ao Universo por tê-la em
minha vida.

Recolho minha mochila de ombros do banco de trás. Apesar do


clima seco e gélido da Serra Gaúcha, viajar de moto requer alguns
sacrifícios, como conseguir amontoar o número necessário de
roupas dentro de uma pequena mala. Bato a porta do carro,
afastando-me com um pequeno aceno de mãos.

Os mesmos rostos que eu conheço desde que retornei para o


Rio Grande do Sul e passei a viajar com Victor e seu clube estão
presentes. E, para meu desprazer, sempre fui e continuo sendo a
única mulher do bando.

Alguns dos homens nunca nem se dignaram a me


cumprimentar, sendo os mais reclusos. Esses normalmente viajam
para espairecer, vivenciando tudo em seu próprio mundinho. Mas há
os mais extrovertidos; esses normalmente conversam comigo,
incluindo-me nas piadas mais sem graça de todas, bem como me
auxiliando em algumas ocasiões, como foi o caso de quando fomos
acampar e eu não conseguia montar a maldita barraca.

— Antonella, que felicidade ter a sua presença em mais uma


viagem.
Seguro a alça da mochila com uma mão, sorrindo para Lucas.
O homem de cabelos castanhos, olhos da mesma cor, pele
bronzeada, dentes alinhados e brancos, alto, corpulento e muito
agradável, me cumprimenta. De forma galanteadora, Lucas sempre
faz questão de ficar perto de mim em todas as viagens,
esgueirando-se por qualquer brecha da minha parte para que possa
ficar comigo.

— Como vai, Lucas?

Apesar de seus esforços, sempre fiz questão de manter as


coisas apenas na amizade. O medo de estragar a única coisa que
faz com que eu me sinta viva – até antes de Henrique aparecer –
me impede de dar prosseguimento às suas investidas.

— Melhor agora. — Pisca um olho.

Antes que eu possa revidar, ouço uma moto se aproximando.


Eu ignoraria, se não reconhecesse o barulho, assim como
reconheço o perfume que, com o vento da freada brusca nas
minhas costas, chega até as minhas narinas dilatadas. Não preciso
me virar para ter certeza, pois a voz de Henrique ressoa em
instantes.

— Estou atrapalhando alguma coisa?

Rígida como um cadáver, é assim que pareço aos olhos de


qualquer um que me analisar por mais do que poucos segundos.

Faço uma repescagem mental das últimas conversas que eu


tive com Victor para tentar lembrar se ele comentou, em algum
momento, sobre a presença do ilustre juiz, mas não encontro nada.
E é claro que ele não falaria, não depois de me ver por duas vezes
seguidas presa ao banheiro com ele, sendo que na segunda foi com
as feições de quem havia acabado de ser fodida.

— Zion, não sabia que nos faria companhia nessa viagem. —


Lucas passa por mim, indo cumprimentar Henrique. Nos lábios, o
mesmo sorriso sacana com o qual trata todo mundo, alheio a toda a
raiva contida que o juiz lhe lança. — Como vai, cara?

— Estou bem. — Sua boa-educação limita-se a isso. — Vejo


que conhece Antonella. — Pela visão periférica, vejo-o inclinar o
queixo em minha direção.

Lucas olha de mim para Henrique franzindo a testa.

— É claro, Nella é nossa parceira de muita estrada — salienta o


sorriso galanteador.

Henrique arqueia uma sobrancelha escura, os lábios curvados


em um sorriso zombeteiro, sua marca de ironia registrada.

— Nella? — Ele direciona o olhar insondável e enervante em


minha direção.

Bufo, ignorando Henrique e seu humor nada tendencioso e


molesto.

Nosso convívio é como uma montanha-russa, ora estamos


bem, ora eu não suporto nem ouvir a sua voz. Acredito que seja a
forma depreciativa como Henrique se porta ou o jeito como faz
piada de tudo e brinca com todos ao redor.

“Ou só seja simplesmente o jeito como ele te faz sentir viva.”,


tange a vozinha da razão na minha consciência.

— Lucas, você viu Victor por aí? — Percorro o estacionamento


com os olhos, não encontrando sua moto.

— Acho que não chegou ainda. — Dá de ombros.

Não sei o que sentir sabendo que Henrique nos fará


companhia. Pensei em tirar o fim de semana para descansar e
espairecer, contudo, com a presença dele, isso será gradativamente
impossível.
Depois do jogo de futebol que ele, inesperadamente, assistiu
com Gael, eu fiz uma tábua de frios, o que acabou por estender a
presença do Juiz por mais algumas horas em meu apartamento.

No final da noite, ele foi embora com o meu pai, fingindo uma
ingenuidade inexistente. Minutos depois, o ouvi batendo em minha
porta, mas, como uma boa garota, ignorei. E agora cá estamos nós.

— Olha o cara!

Victor estaciona a moto há alguns metros de distância e retira o


capacete, esfregando as mãos nos cabelos revoltos.

— Chegou o atrasado. — Caminho em sua direção para


acomodar minha mochila na moto.

— Nella. — Com o seu tom de voz e a expressão


envergonhada, travo, mantendo-me na metade do caminho. — Eu...
é... tu vai ter que ir com outra pessoa, minha moto está muito
pesada. — Leva a mão à nuca, coçando a garganta.

Victor só pode estar brincando, não é possível! Sempre viajei


com ele, absolutamente em todas as vezes em que fomos para
qualquer lugar. Como assim ele quer agora que eu simplesmente
encontre uma carona? Não que seja algo absurdo, mas é que são
tantas horas de viagem abraçada com o condutor que se torna um
tanto pessoal.

— Como? — Entoo em voz alta, incrédula.

Victor encarada Henrique de esguelha, os olhos brilhando em


irritação. Quando os traz de volta a mim, o maxilar está trincado.

— Eu precisei pegar... hã... algumas coisas a mais do que das


últimas vezes, então seria melhor se tu pudesse ir com... com algum
dos caras.
Cruzo os braços em frente ao peito e fecho os olhos em uma
falha tentativa de acalmar o meu temperamento explosivo. Estou
prestes a desistir dessa droga de viagem e ligar para Fernanda vir
me buscar quando Lucas quebra o silêncio denso:

— Pode ir comigo, Nella.

Viro-me para Lucas, sorrindo em agradecimento.

— Obrigada, Lucas.

Faço o percurso de volta à sua moto batendo os pés com mais


força que o necessário no calçamento, para deixar bem claro à
Victor que seremos inimigos durante esse fim de semana.

— Ela vai comigo! — A voz autoritária arrepia até a minha alma.

Henrique estende o braço, impedindo a minha passagem, então


me entrega um capacete. Os olhos verdes estreitando-se fixos em
mim, sem piscar, sem deixar uma opção, resolutos.

— Sobe na moto, Antonella.

Elevo o queixo, cerrando a mandíbula; cada célula do meu


sistema nervoso em colapso com a sua determinação. Ao mesmo
tempo em que me sinto excitada, me sinto irremediavelmente
irritada pela forma autoritária que usa para falar comigo. Sem
quebrar o olhar, mantemo-nos em uma disputa acirrada:
determinação contra teimosia duelando sem ceder.

— Ei, Henrique, Nella pode ir comigo, eu já disse — fala Lucas,


mas a voz soa como um murmúrio, reverberando longe da bolha em
que nos encontramos.

O juiz ignora o motoqueiro, mantendo toda a sua atenção fixa


em mim. Abro um sorriso irônico, o mesmo que ele adora distribuir,
tendo a total noção do quão irritante é.
— Nem pense nisso, amor.

Solto um grunhido, irritada com a forma depreciativa que ele


profere os apelidos que me dá.

— Nella, é melhor ir com Henrique. — Victor se manifesta pela


primeira vez, e só de ouvir sua voz minha cólera aumenta em níveis
drásticos, já que nada disso estaria acontecendo se ele não fosse
tão desgraçado e traidor.

Sem aviso prévio, Henrique me puxa pelo braço. Como uma


droga viciante, meu corpo reconhece o seu de imediato, agindo por
conta própria. Os pelos arrepiados, o coração acelerado e a
respiração densa são somente alguns dos sinais que a presença do
juiz me causa, sempre.

Ele abre a fivela do capacete e acomoda o objeto na minha


cabeça com uma delicadeza estrema. O cheiro do couro da sua
jaqueta misturado com a nicotina impregna as minhas narinas. Seus
dedos resvalam propositalmente em meu queixo. Ao terminar,
Henrique puxa a alça da mochila do meu ombro.

— Pode subir.

Pela visão periférica, vejo Lucas dar de ombros e montar em


sua moto, alheio a toda a tensão que nos envolve.

Dando-me por derrotada, subo na moto de Henrique e abraço o


seu corpo, pousando a cabeça em suas costas.

— Agora podemos ir. — Victor assobia, chamando a atenção do


restante do grupo.

— Essa viagem vai ser melhor do que eu esperava — cicia


Henrique, o peito chacoalhando pela risada.

— Se continuar fazendo gracinha, eu vou subir na moto de


qualquer outro — provoco.
— Experimente, doutora.

Ainda rindo como o cretino que é, Henrique fecha o capacete e


acelera a moto, avançando pelas ruas de Porto Alegre em direção à
Serra Gaúcha.

HENRIQUE ZION

O vento gélido do inverno do Sul do País bate em meu rosto


com força total; apesar disso, eu não consigo sentir frio, não com os
braços de Antonella circulando todo o meu abdômen, apertando-o
com força. Ter a presença da advogada me causa uma verdadeira
explosão de sensações e sentimentos, das mais quentes possíveis.

A rodovia está calma nesse entardecer. O céu, uma mistura de


azul com laranja, é uma das vistas mais bonitas, na minha opinião.

Victor permanece afastado, irritado comigo e com a minha


insistência de hoje mais cedo.

Antes de ir encontrá-los no estacionamento, liguei para o meu


sócio e pedi encarecidamente que deixasse Antonella viajar comigo.
Como um bom amigo da guria, ele foi resoluto no início, mas acabou
cedendo depois de exatos dez minutos de ligação. E, embora ele vá
passar o fim de semana inteiro irritadiço comigo, sei que valeu a
pena a cada vez que sinto seu suspiro em minhas costas.

Antonella é como uma estrada íngreme e perigosa; depois que


se percorre o caminho, não há mais volta, e se houver, é
avassalador, pois o estrago já foi feito. Mesmo assim, meu coração
e meu corpo insistem em percorrer, apesar de todos os alertas e
gatilhos do que isso pode me causar. É um problema sem solução.
Há algo na guria que me fascinou desde o momento em que a
conheci naquela sala da audiência – e que mexeu comigo muito
antes de eu decidir que ela seria um problema.

Antonella é uma maldita desgraçada tentadora. De maneira


despudorada, ela enfrenta a todos; assim como é teimosa quando
coloca alguma coisa na cabeça. E os lábios carnudos são os mais
traiçoeiros que eu já conheci.

Agora, só me falta retirar o restante das pétalas e chegar ao


seu coração, para que assim eu possa descobrir os seus segredos
mais obscuros e desvendar o enigma proferido pelo seu pai.
Mesmo essa tendo sido a melhor viagem que eu já fiz desde
que comecei a viajar com Victor e seu bando, eu jamais vou revelar
isso para ninguém; será um segredo que levarei para o túmulo, pois
Deus tenha piedade de mim caso Henrique e seu ego desmedido
descubra.

A fazenda que vamos ficar é extensa e muito bonita; as


cabanas ficam na ponta de uma montanha rochosa, com uma vista
que nos faz suspirar. Mesmo estando escuro por conta do horário,
ver o céu ímpio coberto por estrelas faz valer a pena cada mísero
minuto das últimas horas abraçada ao juiz irritante.

— Vamos comer alguma coisa? — Victor retira as luvas de


couro e desce da moto para desfazer o nó que prende as mochilas.

Henrique retira o capacete, aprumando os cabelos


emaranhados. Seu maxilar quadrado está rígido e o olhar ferino me
diz que ele percebeu todos os momentos em que, sem querer, é
claro, acabei apalpando o peito esculpido.

— Eu com certeza quero comer algo, estou muito, muito


faminto — murmura em tom de voz grave, ruidoso, encarando-me.

Deus do céu!

Victor pigarreia, percebendo a ambiguidade nas palavras de


Henrique.

— Dizem que a comida daqui é muito boa, ao menos era o que


constava nas avaliações positivas do site — insiste, fingindo
ignorância à ambivalência do sócio.

Henrique quebra o olhar, levando sua atenção até o nosso


amigo em comum.

— Pode ser, mas eu vou descer de moto. Nem fodendo que eu


vou fazer esse percurso a pé.

O restaurante fica na parte menos elevada do local; apesar de


não ser muito distante das cabanas, a subida íngreme parece
cansativa, mais cansativa ainda depois de algumas horas de viagem
e uma noite fria como a que está fazendo.

— Tanto faz, eu só quero comer alguma coisa. — Victor esfrega


os braços com as mãos. — E fugir desse frio de renguear cusco[7].

Para o meu atual desprazer, fiquei de dividir a cabana com


Victor, pois o lugar não tem o número suficiente de quartos para
comportar todo mundo em espaços individuais.

— Qual é a nossa? — pergunto em tom incisivo.

Victor leva o indicador aos cílios, coçando o local, retraído.

— Hã... é claro que tu tem a opção de escolher... que tipo de


amigo eu seria se não...
Henrique bufa, calando Victor e chamando minha atenção.

— Vai ficar comigo, Antonella.

Cruzo os braços, irritada.

— É mesmo? E quem disse isso?

— Não preciso que ninguém diga nada. Victor sabe que


estamos transando, então é mais do que sensato dormirmos juntos,
para que assim possamos aproveitar todos os prazeres dessa
viagem maravilhosa. — Abre os braços, indicando o nosso redor.

Dou um pulo pela indiscrição de Henrique, olhando para os


lados, temendo que alguém além de nós tenha o escutado. Não é
segredo para ninguém as nossas desavenças, assim como o fato de
termos transado no banheiro do bar, mas ao menos a última parte
eu posso ser reticente e mentir até a morte.

Irritada pela cumplicidade dos dois e por estar em um plano


diabólico de me colocarem na cama de Henrique, reviro os olhos.
Eu é que não vou ser boba e me fazer de difícil, não quando eu sei
todas as vantagens que esse homem estilo bad boy pode me
ofertar.

— Tudo bem.

Henrique e Victor trocam um olhar; as testas franzidas e a


expressão de surpresa me faz morder o lábio para conter um
sorriso.

— Eu quero comer alguma coisa e ir dormir, será que podemos


nos mexer? — exaspero.

Victor e Henrique estacionam as motos em frente as cabanas.


O lugar é pequeno, embora seja extremamente aconchegante. A
cama de casal fica ao centro, seguida por um pequeno cômodo
onde há uma banheira para duas pessoas com vista privilegiada –
enormes janelas estão direcionadas para o morro. Do lado direito,
vejo uma lareira pronta para ser acesa, bem como ar-condicionado,
oferecendo a melhor estadia para nós.

Henrique larga nossas mochilas na cama, em silêncio; os


coturnos pretos e pesados fazendo a madeira ranger a cada passo
dado. Retirando um maço de cigarros do bolso da jaqueta de couro
e um isqueiro de metal do outro, se prepara para acender a nicotina
e sanar o seu vício.

— Nem pense nisso! — brado, fazendo-o parar


automaticamente e arquear uma sobrancelha. — Não suporto cheiro
de cigarro e não vou dormir em um ambiente infectado; se for fumar
aqui dentro, prefiro dormir com Victor e o quarto cheiroso dele.

Ele estala a língua no céu da boca, os olhos verdes presos aos


meus, então abre um meio-sorriso.

— Não sabia de toda essa sua aversão ao fumo, doutora.

Não respondo e nem faço questão, Henrique não precisa saber


os meus motivos para ser tão reservada com essa questão.

— Eu vou descer para comer alguma coisa — aviso, saindo do


quarto e deixando-o sozinho.

Percorro o caminho iluminado por alguns postes de luz até o


restaurante abraçando o meu próprio corpo. O vento calmo balança
meus cabelos enredados pela viagem de moto. Em passos
acelerados, sendo impulsionada pela descida, não levo mais do que
poucos minutos para chegar ao local.

O restaurante segue o mesmo estilo das cabanas. O lugar


rústico faz questão de que os clientes se sintam acomodados. A
mesa de centro está abarrotada de gordices coloniais, marca
registrada da Serra Gaúcha.
Pelas vestimentas, consigo identificar imediatamente nosso
grupo de motoqueiros. Victor está sentado em uma mesa mais
afastada, fazendo o desjejum enquanto ri e brinca sobre algo. Eles
bebem chopp artesanal, batendo os copos com força na mesa e
elevando a voz enquanto contam casos de viagens passadas.

— Nella! Sente-se conosco. — Lucas estende o braço, gritando


o meu nome, fazendo-se ouvir por cima das conversas paralelas.

Faminta, me sirvo da maior variedade de produtos antes de ir


lhe fazer companhia.

— Como foi a viagem com Zion? Ele se comportou?

Um homem de cabelos ralos, pele branca, dentes amarelados e


meia-idade solta uma risada, cuspindo chopp em nós.

— Deixa de ser inocente, Lucas! Zion quer é se enfiar no meio


das pernas dela. — Ri alto, enquanto Lucas e eu permanecemos
silentes, constrangidos.

Quando eu comecei a viajar com o grupo, Victor me alertou de


que haveria alguns membros desnecessários, mas me garantiu que
eu estaria imune às suas piadas machistas e comportamentos
retrógrados. E por um bom tempo eu me mantive preservada, até
agora.

Pouso os cotovelos na mesa e pendo a cabeça para o lado.

— E quem disse que não sou eu que quero me enfiar no meio


das pernas dele?

Lucas se engasga com a própria saliva, obrigando-me a dar


tapas em suas costas e parar de encarar o homem.

— Tu mereceu isso, Tadeu, não fode falando mais merda! —


pontua Lucas, fazendo-o fechar a boca que estava prestes a
despejar mais frivolidades.
Tadeu não fala mais nada; ele termina de se alimentar, se
levanta em silêncio e se senta em outra mesa, mais afastada,
ignorando-nos completamente.

— Ele é um velho ranzinza, releve o que fala. — Lucas pede


desculpas pelo comportamento malpropício do companheiro.

Sorrio de boca fechada.

— Não se preocupe, sei lidar com esse tipo de gente. — Mexo


os ombros em desdém. — Vou ao toalete, já volto — aviso,
limpando a boca com um guardanapo, jogando-o, posteriormente,
na mesa.

Me sinto apreensiva, um tanto angustiada, mas não consegui


ainda desvendar o verdadeiro motivo da minha aflição, embora no
fundo eu acredite que tenha algo a ver com Henrique Zion, um
quarto, uma única cama e nós dois juntos.

O juiz mexe com sentimentos que deveriam permanecer


quietos no fundo da minha alma, adormecidos até a minha morte, e
isso me assusta mais do que o próprio inferno, porque eu sei o que
vem depois que esses sentimentos se rompem: dor.

Como se tivesse sido avocado pelos meus pensamentos


conflitantes, vejo Henrique escorado na parede do corredor dos
banheiros, área exclusiva para fumantes, pelo cheiro de nicotina que
impregna o ar.

Mexo uma mão contra a outra, analisando a distância e qual a


possibilidade de passar por ele sem ser impactada pela sua
presença. Mas é claro que ele não permitiria isso – se o fizesse, não
seria o Henrique Zion que eu conheço.

Segurando o meu braço, Henrique puxa o meu corpo de


encontro ao seu.

— Sua maldita diabinha — sussurra em meu ouvido.


Ouço-me resfolegar.

— Não sei do que você está falando. — Meu tom não passa de
um murmúrio.

— Estou falando, doutora, de como ficou me tentando por toda


a viagem. Esfregando essas mãozinhas inquietas em mim. —
Agarra a minha cintura, afundando os dedos na carne macia. — Não
sabe a força que precisei fazer para não parar a moto em qualquer
acostamento e te foder ali mesmo.

— Eu estava somente me segurando, lamento que seja tão


depravado a ponto de pensar algo diferente. — Meu rosto nem
treme enquanto eu minto descaradamente.

Eu queria me vingar de Henrique e da forma como me tratou no


estacionamento do bar, como se pertencêssemos um ao outro. E
pelo visto, deu mais do que certo a minha pequena vingança nada
premeditada.

Ele beija o meu pescoço, arrepiando-me. Virando-me de costas,


Henrique cola minha bunda em sua cintura, impulsionando-me a
sentir sua masculinidade dura e palpável. A mão boba dedilha o
meu braço, fazendo todo o caminho até chegar ao cós da minha
calça, infiltrando-se por baixo do tecido apertado, chegando ao seu
ponto de desejo.

— Henrique... — suspiro.

Seu indicador toca em meu clitóris, pressionando-o com força,


fazendo-me arquejar. A boca permanece em meu pescoço,
mordendo e lambendo.

O maldito sabe masturbar uma mulher como ninguém, tocando


nos locais certos, mantendo o ritmo satisfatório para os melhores
orgasmos.
— Era isso que eu queria fazer contigo, Antonella — enuncia, a
voz rouca pelo tesão.

Agarro a jaqueta de Henrique, sentindo que estou quase


chegando, que estou prestes a gozar na droga de um corredor como
uma libertina indecente. Minha lubrificação aumenta, meu corpo
começa a tremer. Mordo meu lábio com força para conter o grito...

Mas então Henrique puxa a mão, cortando o toque e


suspendendo o meu orgasmo.

— O quê? — interpelo, abalroada.

Ouço sua risada rouca, enquanto me vira de frente para si,


obrigando-me a vê-lo lamber os dedos melados pela minha
excitação.

— Sempre deliciosa... — zomba.

Me sinto quente, confusa, tensa e agoniada. A pior sensação do


mundo é quase chegar ao orgasmo, mas ele ser interceptado.

— Amor, isso é o que eu chamo de tesão mal resolvido... — Ele


acaricia a minha bochecha, os olhos brilhando pela vingança bem-
sucedida. — Não se preocupe, não mata! Eu fiquei algumas horas
assim hoje, sabe?!

Solto um grunhido raivoso.

Eu vou matar Henrique Zion!

Quero tirar esse sorrisinho desgraçado da sua boca com as


minhas unhas.

Cerro meu maxilar esguio, a respiração ofegante pela raiva


incontida.

Se o juiz quer jogar, ótimo! Mas ele precisa aprender que eu


não sou um simples peão no seu tabuleiro, eu sou a porra da rainha!
Sorrio, os olhos iluminando-se em exaltação.

— Você precisa aprender, Henrique Zion, que não é o único


homem do mundo e que eu nunca, jamais, fico desejosa — sussurro
contra a sua orelha, a voz calma, apesar do coração trovejante.

— É mesmo, e o que pretende fazer?

Amplio o sorriso, dando um passo para trás, afastando-me aos


poucos. Em silêncio, giro nos calcanhares, rebolando o quadril a
cada movimento suave, como passos de dança, deixando Henrique
para trás.

HENRIQUE ZION

Antonella caminha rebolando a bunda arrebitada a cada passo


que dá. Permaneço colado à parede, duro feito uma pedra enquanto
escrutino todo o seu corpo esculpido pelo próprio satanás.

Sorrindo, a diaba se vira para mim antes de se debruçar sobre


a mesa de Lucas e sussurrar algo em seu ouvido, algo que o faz
arquejar e arregar os olhos, animado.

Desgraçada!

Levo as mãos aos cabelos contendo um grunhido, enquanto


mantenho os olhos fixos na advogada demoníaca. A expressão “o
tiro saiu pela culatra” nunca fez tanto sentido quanto agora.

Vejo Lucas se levantar com uma animação que me deixa ainda


mais irritado.

Filho da puta!
Colérico, faço o mesmo caminho que Antonella fez há poucos
minutos, parando ao seu lado e de Lucas.

— Precisamos conversar! — Puxo o seu braço, fazendo-a


gargalhar alto.

— Cara, a gente ia dar uma volta! — comenta Lucas, às minhas


costas.

Não me digno a responder esse filho da puta, continuo puxando


Antonella pelo braço, fazendo todo o percurso até nossa cabana.

Começo a me arrepender de não ter sucumbido a ideia inicial


de descer até o restaurante de moto, esses poucos metros até a
cabana nunca me pareceram tão distantes.

Chego ao local, mas não faço movimentos para entrar; seria um


desperdício, já que o céu estrelado é um bom aliado para o que eu
quero fazer.

— O que foi, Henrique? — zomba, fazendo-me fechar a mão


em punho.

— Já que não aprende por bem a não me provocar, aprenderá


por mal. — Empurro-a contra a minha moto. — Ou nem tanto —
complemento.

Sento Antonella no banco de frente para mim, puxo sua nuca


com força, beijando sua boca com intensidade, com uma fome
devastadora.

— Nós podemos entrar... — Ela joga a cabeça para o alto,


dando passagem aos meus lábios.

— Não!

Afasto as pernas de Antonella e abro sua calça, puxando-a com


pouca dificuldade pelas pernas, revelando a renda branca da
pequena calcinha.

— Nunca mais vai me provocar assim, ouviu, Antonella?

Ela arqueia uma sobrancelha e franze o nariz, ponderando.

— Preciso de motivos muito plausíveis para nunca mais fazer


isso. — Um brilho puramente predatório surge em seus olhos.

— Ah, querida, eu com certeza vou dar.

Sentando-me sobre os calcanhares, puxo a sua calcinha,


deixando a pele lisa em exposição.

— Espero que mantenha o controle, e se segure firme na moto,


pois isso vai ser intenso.

Mesmo apertando as pernas uma contra a outra e agarrando o


banco até os vincos das mãos ficarem esbranquiçados, revelando
que está adorando a situação, ainda assim, ela não dá o braço a
torcer.

— Se é o que você diz...

Passo a língua em sua boceta melada, sentindo sua


lubrificação pinicar. Antonella solta um gemido quando mordo o
clitóris, segurando o nervo entre os meus dentes. Levo um dedo até
o seu canal, penetrando-o com facilidade; procuro na parte superior
a textura rugosa, mais conhecida como ‘ponto G’. Ao encontrá-lo,
alinho as masturbações, fazendo Antonella gritar meu nome,
enlouquecendo pelas sensações.

— O q-que você está fazendo? — Suspira de olhos fechados.

Respondo sugando o clitóris com força, passando a língua em


movimentos circulares, sentindo-o inchar cada vez mais, enquanto o
dedo acaricia a textura em movimentos acelerados de vaivém.

— Oh, céusssss!
Antonella agarra os meus cabelos com força, instigando-me a
intensificar a masturbação. A mão que a mantinha no banco se
movimenta até o meu pescoço, fincando as unhas na minha pele,
alucinada.

Embora eu tenha transado com várias mulheres, sinto como se


Antonella fosse especial, como se propiciar sensações prazerosas a
ela seja um dever e não meramente um divertimento.

Giro os dedos dentro dela, roçando a palma da minha mão em


toda a sua extensão, modificando os movimentos a fim de lhe dar
mais saciedade.

— Henrique... céus... — Finca ainda mais as unhas em meu


pescoço.

Aumento os estímulos e, em segundos, sinto seu corpo


convulsionar e sua boceta esguichar o líquido transparente
enquanto ela grita, jogando a cabeça para cima, insciente do que
está fazendo.

Seguro-a com força, impedindo que caia da moto, deixando-a


apreciar o entorpecimento.

Beijo sua testa suada, aguardando o retorno da sua


consciência.

— Meu. Deus. — murmura pausadamente, passando uma mão


para ajeitar os cabelos. — Acho que eu acabei de fazer xixi na sua
moto, me desculpe. — Um tom rosado colore suas feições.

Solto uma gargalhada, sentindo-me orgulhoso, pois somente


uma mulher que nunca teve um squirting[8] falaria algo assim,
portanto, sou o primeiro homem a lhe proporcionar isso.

— Não foi xixi, amor, foi um squirting, mais conhecido como


ejaculação feminina. — Ela me encara, perplexa. — Mas não te
culpo por não saber o que é isso, a maioria dos homens não são
bons o suficiente para propiciar isso a uma mulher. — Dou de
ombros.

— E nem arrogantes, suponho — rebate em tom trocista.

— Pode ser... — finjo ponderar. — Mas nenhum deles te


proporcionou um squirting.

Aprendi sobre a ejaculação feminina quando era um jovem


cheio de hormônios. E com a ajuda da nossa tão maravilhosa
internet, descobri como unir uma bela chupada com uma boa
masturbação de dedos no ponto G. Algumas mulheres alcançam o
squirting com mais facilidade do que outras, mas nada que tempo e
determinação suficiente não resolvam o problema.

Ajudo uma Antonella trôpega a colocar as calças de volta,


descendo-a da moto em seguida.

— Vamos entrar, está frio aqui fora e eu ainda tenho planos


para essa noite.

— Até agora não entendi por que quis fazer isso na rua.

Ignoro a sua pergunta. Sempre tive vontade de transar em uma


moto, mas acho isso muito íntimo e pessoal, pois tenho um amor
gigante pelo meu veículo. Com Antonella eu senti esse desejo e o
fiz, mas a guria jamais saberá disso.

Fui o primeiro homem a propiciar um squirting a Antonella,


assim como ela foi a primeira mulher a gozar na minha moto.
Virgindades foram tiradas essa noite.
— Tu o quê? — Fernanda grita do outro lado da tela, tão
atormentada quanto eu mesma fiquei ontem à noite.

— Pelo amor de Deus, fale mais baixo! — Espio pela fresta da


porta, suspirando em alívio por Henrique não ter retornado ainda. —
Sabe como Henrique é presunçoso? Se ele descobrir que o sexo de
ontem foi tão memorável para mim, nunca mais vai me deixar em
paz.

— Antonella, eu nem sabia que isso existia até hoje, como quer
que eu reaja normalmente? Jesus, ejaculação feminina, sexo na
moto... isso é demais para a minha cabeça.

— Eu sei! Também me sinto exatamente assim.

O que Henrique fez comigo ontem foi inexplicável; ainda bem


que meu coração é blindado, caso contrário eu já estaria
apaixonada por ele. Ele é insaciável, mas não gosta de se satisfazer
sozinho. O homem não parou enquanto não me fez gozar como ele,
e ouso dizer, até mais.

— Acertou na sorte grande, heim? Quem diria que o juiz que


tanto falou mal e odiava está esquentando a sua cama, e muito
bem, por sinal.

Reviro os olhos.

— É só sexo casual, Fernanda. Além do mais, uma relação


entre uma advogada e um juiz não é nada profissional.

— Como se alguém se importasse com isso.

— Bem, eu me importo.

Fernanda solta um suspiro, a expressão dura.

— Por favor, não se sabote novamente. Todo mundo merece


ser feliz, principalmente tu.

Desvio o olhar da tela do celular, encarando a paisagem verde


através da janela, observando as gotículas de chuva correrem pelo
vidro. Fernanda e eu já tivemos inúmeras discussões sobre esse
assunto; mesmo que no fundo eu saiba que ela está certa, ainda é
inevitável não me culpar.

— Eu não quero falar sobre isso — retruco.

— Eu sei que não, mas é necessário, pois não quero ver esse
brilho se apagar.

— Não existe mais brilho há muito tempo. — Minha voz falha,


não passando de um murmúrio.

Ela permanece silente por alguns segundos, analisando-me


através da tela, farejando cada rastro de sentimento que me habita,
então abre um meio-sorrio.
— Não existia — fala, enigmática.

Solto o ar pelo nariz.

— Só, por favor, não vamos entrar nessa discussão novamente.

Fernanda estala a língua no céu da boca, os lábios curvados,


os olhos brilhando em satisfação.

— Não precisamos falar sobre isso porque eu sei como tudo


acabará dessa vez, assim como tu. Henrique mexe contigo... e eu,
minha amiga, estou muito feliz por vocês terem se encontrado. —
Franze o cenho. — Independente de como tenha sido o primeiro
encontro.

Ah, sim, quando ele me destituiu de um processo muito


importante e ainda discutiu comigo dentro da sala de audiência onde
estavam presentes o defensor público, a promotora de justiça, o
estagiário, um réu e uma vítima. Foi um primeiro encontro e tanto.

Fiquei muito furiosa no dia, mais furiosa ainda comigo mesma


por tê-lo desejado ardentemente.

Abro um sorriso, lembrando daquele fatídico dia.

— Doutora, eu tive uma excelente ideia para passar as horas.


— A voz de Henrique ecoa pele cabana vazia, assustando-me.

— Eu preciso ir — aviso a Fernanda antes de encerrar a


chamada.

Saio do banheiro com o celular na mão, encontrando Henrique


depositando algumas coisas na mesa, dentre elas, uma garrafa de
vodca.

— Não tinham muitas opções, mas como tu adora joguinhos,


acho que vai se divertir com esse. — O sorriso que abre é ferino.
Quando marcamos essa viagem não esperávamos termos
nossos planos de passear pela serra interrompidos por um belo dia
de chuva.

Durante a madrugada, ouvimos o trovejar, mas mantemos a


expectativa de que seria passageiro, contudo, tivemos a
confirmação de que a programação tinha ido por água abaixo ao
acordar.

Por sorte, conseguimos reservar mais um dia nas cabanas. E


como não há nada para fazer, nem mesmo uma televisão para olhar,
Henrique prometeu sair e procurar algo para matar o nosso tédio...
bem, essa era a sua segunda opção, pois a primeira era transar o
dia inteiro.

— E o que exatamente nós vamos fazer? Um piquenique no


quarto? — Coloco as mãos na cintura.

Ele leva um dedo aos lábios delineados, fingindo pensar.

— Seria uma ótima ideia, mas felizmente eu tenho planos


melhores.

— E quais são?

— Vamos jogar ‘eu nunca’.

Mordo as bochechas para não rir da patetice que é isso.


Henrique acha que somos colegiais? Se me lembro bem, brincava
desse joguinho quando estava no ensino fundamenta:, a cada
pergunta, um gole de água, que fingíamos ser vodca. Bons tempos.

— Se tem uma ideia melhor, estou à disposição! — Faz um


gesto com a mão, claramente irritado.

Sim, estou entediada! E, para o meu desespero, recém passa


do meio-dia. Nem mesmo a droga da internet está pegando direito;
aliás, foi um feito e tanto conseguir efetuar a chamada com
Fernanda.

O jogo é ridículo, mas é mais ridículo ainda eu passar o resto


do dia contando quantas tábuas foram necessárias para construir a
cabana.

Suspirando em derrota, caminho até o pequeno armário da pia


e recolho dois copos.

— O que estará em jogo? — Retorno, entregando-os para


Henrique encher com a vodca que comprou sabe-se lá onde.

— Uma peça de roupa, é claro.

Dissimulado do jeito que é, Henrique encontrou um jeito de


fazer com que terminássemos o dia transando feito dois cachorros
no cio – não que eu vá me opor a isso –, mas posso ao menos fingir
decência.

Semicerro os olhos e Henrique dá de ombros, ignorando-me


enquanto abre a garrafa.

— Tudo bem — aquiesço, a voz carregada em desinteresse


fingido.

Sento-me na cama cruzando as pernas, enquanto ele me


entrega o copo com o líquido forte e transparente, acomodando-se à
minha frente.

— Certo. Eu começo — aviso, pensando no primeiro desafio. —


Eu nunca fui arrogante no tribunal.

Sempre que possível, irei lembrá-lo do nosso primeiro encontro


e do que me fez passar perante o cliente e os meus chefes.

O rosto escultural de Henrique assume uma carranca


imediatamente. Isso vai ser bom, muito bom. Sorrio internamente.
Irritado, ele estala a língua no céu da boca antes de beber um
gole da vodca e puxar a camiseta sobre a cabeça, revelando o
peitoral tatuado e musculoso.

Meu olhar vaga sobre seu peito e para os músculos esculpidos


de seu estômago, perdendo-se nas reentrâncias de cada lado de
seus quadris.

Ouço-o pigarrear, os lábios repuxados em pura ironia por eu ter


sido pega no flagra.

— Eu nunca disse que não transaria com alguém e no final


acabei transando. — Arqueia uma sobrancelha escura.

Filho da mãe traiçoeiro.

Dane-se!

Tomo um gole da vodca e retiro a minha camiseta, ficando


somente com o sutiã preto rendado. O olhar de Henrique me
arrepia, mas finjo não prestar atenção.

— Eu nunca transei com uma advogada. — Sorrio.

Henrique solta uma risadinha e faz o mesmo ritual de antes,


dessa vez retirando as botas.

— Eu nunca transei com um juiz.

— Isso não vale! — contesto.

— É claro que vale, eu faço a pergunta que bem entender.

Bebo a maldita vodca e retiro minha calça, ficando somente de


lingerie. Diferente de Henrique que saiu para buscar as coisas, eu
não pus sapatos, infelizmente.

— Eu nunca passei em um concurso público.


Balançando a cabeça em sinal negativo, Henrique retira a calça
depois de beber a vodca, ficando somente de cueca boxer preta.

Que homem mais gostoso, meu Deus! Penso, admirando cada


pedaço de pele esculpido em um metro e noventa de puro pecado.

— Eu nunca fiz tatuagens em homenagem a ninguém.

Engulo em seco, sentindo minha respiração alterar. Com o


maxilar travado, bebo a vodca e retiro o sutiã, liberando os meus
seios sem pudor algum. E, para a minha surpresa, Henrique faz o
mesmo que eu, contudo, retirando as meias.

Começo a analisar as suas tatuagens com outros olhos,


procurando algum significado oculto no meio dos símbolos e riscos,
mas não encontro absolutamente nada fora do comum. A
curiosidade por saber a quem ele homenageou grita interiormente,
enquanto permaneço silente.

— Agora nós dois temos uma única peça de roupa, como vai
ser? — pergunto, sentindo a vodca correr pelas minhas veias,
aumentando a minha libido pela visão do homem à minha frente.

— É a sua vez de perguntar. A última pergunta, portanto, faça


bom-proveito da sua chance — instiga-me.

A lembrança da dor que vi nos olhos de Henrique no dia do


nosso primeiro beijo me alveja como um sinal, como se eu devesse
perguntar justamente isso para compreender melhor o juiz, para
entender o que àquilo significa.

Com a angústia esmagando o meu peito, me forço a dizer em


voz alta:

— Eu nunca perdi ninguém que eu amei muito. — É inevitável


não sentir o efeito do que isso me causa, e os olhos embaçados são
somente um deles.
Henrique solta uma respiração ruidosa, dolorosa. Com calma,
ele termina todo o líquido do copo. Os olhos perdidos em um ponto
qualquer, sem me encarar pela primeira vez desde que começamos
o jogo. Então retira a cueca boxer, ficando totalmente nu. E
confirmando, por fim, minhas suspeitas.

Assim como eu, Henrique perdeu alguém que amava muito, por
isso sua alma é marcada como a minha, por isso eu identifiquei a
dor. Só não sei ainda quem foi ou qual era o grau da sua
importância.

Engolindo a tensão, faço os mesmos movimentos que ele.

— Boa jogada, mas tu também perdeu. — Embora ele soe com


o deboche de sempre, há uma fisgada de dor resplandecendo em
seu tom, mesmo que ele tente apagar.

— Eu fiz de propósito — confesso.

— Eu sei. — Ele traz os olhos de encontro aos meus. — Para


quem é a rosa, Antonella? — A pergunta direta retira-me o ar,
pegando-me desprevenida.

— Uma pergunta por outra — pontuo.

— Um jogo?

— Entenda como quiser, mas só responderei perguntas se fizer


o mesmo.

Henrique se reclina, retraindo-se, parecendo escolher as


palavras com cuidado.

— Para quem é a rosa, Antonella?

Reprimo a onda de dor, o tremor, o silêncio da perda.


Reprimindo o mais fundo possível, até que não passe de outra onda
bramindo no meu abismo.
Criando coragem, abro a boca para despejar ao homem que eu
pensei odiar, meus maiores tormentos.

— Minha mãe. — Luto para controlar a respiração, para manter


a expressão neutra. — Quem você perdeu?

Vejo que Henrique faz o mesmo que eu, batalhando


internamente, embora por fora pareça uma máscara dúbia.

— Meu irmão — responde, a voz inexpressiva, fria. — Quando


a sua mãe morreu?

Ter a confirmação de que Henrique também perdeu alguém


deixa as coisas mais simbólicas. Nunca saberei como é a dor de
perder um, mas sei como é a dor de perder alguém tão importante a
ponto de fazer os ossos doerem de saudade.

— Há dois anos — suspiro, uma pontada de melancolia


ameaçando a minha paz. — E o seu irmão?

A pergunta faz com que Henrique se aprume, as costas eretas.

— Três. Tua mãe morreu de quê?

Estamos entrando em terreno perigoso, movediço. Sempre que


Gael ou Fernanda tentam entrar nesse assunto comigo, eu me
resigno, forçando-os a parar, pois assim é mais fácil não lembrar a
tormenta que me causa. No entanto, sinto vontade de confessar
essas coisas para Henrique, de conversar com alguém que vai me
entender, com alguém que compreende o verdadeiro significado do
que a morte deixa para trás.

— Câncer.

Henrique franze a testa.

— Então é por isso que odeia cigarro?


Sem condições de lhe dar uma resposta verbal, limito-me a
acenar.

— E o seu irmão?

— Atropelado. — A rouquidão em sua voz soa como uma tácita


resignação, um alerta para não insistir nesse assunto.

— C-como? — Ouço-me perguntar, a curiosidade vencendo a


sensatez.

Sua deglutição é audível, uma mão voa aos cabelos,


chacoalhando-os, preparando-se para narrar uma história que lhe
causa sofrimento.

— Ele era juiz, assim como eu, assim como o nosso pai. — Ao
falar do progenitor, sua mandíbula trabalha tanto que me surpreendo
por não a ouvir estalar. — Em um dia qualquer, Antônio estava
saindo do Foro quando foi atropelado e morreu na hora. Fim.

Abro e fecha a boca sem saber ao certo como reagir. Pela


forma como Henrique falou, ele não aceita até hoje a morte precoce
do irmão ou a maneira intransigente como foi retirado da sua vida.

— Eu sinto muito, Henrique, por você e sua família.

O juiz solta uma risada amarga, sem emoção.

— Não se preocupe com a minha família, não é como se eles


de fato se importassem com algo além de status. Ninguém merecia
ter conhecido meu pai, nem mesmo Antônio. — Há bastante
amargura em sua voz para sugerir uma história pregressa com a
família.

— Qual é a tatuagem? — Apesar da pergunta esfíngica,


Henrique compreende.
Apontando para o peito, onde há uma balança e uma Themis,
Deusa da Justiça, a qual representa a nossa profissão, Henrique
fala:

— Essa aqui é uma homenagem a Antônio e ao exímio


profissional que foi.

Aproximo-me para analisar melhor; a Deusa da justiça segura a


balança onde há números romanos pendendo para o lado mais
pesado. Ao redor, muitos símbolos, frases em inglês e desenhos em
tinta preta.

— O que são esses números?

— A data da morte dele.

Dedilho a pele, circulando o desenho e absorvendo a


informação recém-adquirida. Henrique segura a minha mão, os
olhos brilhando em excitação.

— Estamos nus, amor, se quiser continuar esse jogo, não pode


tocar em mim dessa maneira.

Afasto-me, sentindo as bochechas coradas pelo calor em meu


interior. Pigarreio:

— E as outras?

— Antônio era um bom homem, mas como primogênito


assumiu a responsabilidade de trazer orgulho ao nosso pai, sendo
assim, renunciou a muitas coisas que adoraria fazer. — Suga uma
lufada profunda de ar, encarando o próprio peito. — Algumas das
tatuagens possuem significados importantes para mim, mas outras
são somente às que eu sei que ele gostaria de ter feito, mas lhe
faltou coragem e, posteriormente, oportunidade.

Afetada pelo seu desabado, aproximo-me novamente de


Henrique, pousado a mão em sua bochecha direita.
— Ele estaria muito orgulhoso de você — falo convicta.

Não conheci Antônio e não sabia de sua existência até hoje,


mas pela forma como Henrique se refere ao irmão, ele era alguém
bom demais para viver em um mundo tão sujo e cruel, por isso foi
retirado tão cedo da terra. E Henrique fazer tudo o que o irmão tinha
desejo, mas não coragem, me mostra o homem honrado que ele é
por debaixo de toda essa casca grossa de ironia.

Ele segura a minha mão, plantando um beijo em seu dorso.

— Agora, se for se sentir confortável, gostaria de saber por qual


motivo tu não se dá bem com o seu pai, considerando que ele
parece fazer tudo que está ao seu alcance para satisfazê-la. —
Muda de assunto em um piscar de olhos.

Me afasto como se ele tivesse me atingido com algo invisível.

Eu poderia ignorar, falar que não me sinto confortável em dividir


algo tão íntimo com ele, mas eu estaria mentindo. Henrique e eu
estamos em um momento de conexão, nos conhecendo; ele já
revelou muito e agora é a minha vez.

— Meu pai é um egoísta — falo, um esgar nos lábios. — Ele


arranjou uma... namorada e quer que eu aceite isso de qualquer
maneira.

— E por qual motivo tu não aceitaria a namorada do seu pai,


Antonella?

Meu peito sobe e desce em rápidas sucessões. Tensa, passo a


língua pela boca ressecada. Fitando-o outra vez, vejo o vinco em
sua testa se tornar mais visível.

— Ele não tem esse direito. Ela nunca ocupará o lugar da


minha mãe.
— E ela está tentando tomar o lugar da sua mãe, Antonella? Tu
deu chances a ela para te conhecer ou só está supondo?

— Eu... eu...

— É mesmo Gael o egoísta dessa relação?

Nego com a cabeça e sigo assim, sem poder aceitar que


Henrique me coloque como a vilã de toda essa situação, não
quando o verdadeiro culpado é o meu pai.

Não irei ceder e muito menor irei me culpar. Estou somente


fazendo algo que Gael, como um marido apaixonado que se dizia
ser, deveria fazer, qual seja, preservando a imagem de mamãe,
mantendo sua presença, mesmo que imaginável.

Puxo os cabelos, fazendo um coque alto, e desvio o olhar para


o lado, ignorando Henrique.

— O jogo acabou.

— Imaginei que sim — suspira. — Vamos nos vestir e fazer


outra coisa qualquer.

Talvez a conversa que tivemos, as confissões que trocamos,


tenha uma carga emocional para ele muito maior do que deixa
transparecer.

Mas eu preciso dele, preciso sentir... o que só ele consegue


fazer.

Seguro o seu braço, impedindo que se afaste. Nossos olhares


se encontram e eu não preciso expressar em palavras o que eu
estou sentindo, Henrique entende imediatamente. Com uma mão,
ele joga tudo o que estava em cima da cama para o chão.

— Eu também preciso de ti — murmura.


Henrique agarra meus cabelos pela nuca, colando nossas
bocas em um beijo ardente. Não há calmaria, não há carinho. Há
somente duas pessoas que precisam se conectar de alguma forma,
que precisam sentir.

Passo as mãos pelos seus ombros, sentindo os músculos se


retesarem sobre os meus dedos. Libertando os meus lábios,
Henrique planta beijos castos pelo meu pescoço, descendo até os
meus seios.

— Oh, Henrique! — cicio, espremendo o olhos.

Ele passa a língua pela auréola do meu seio, sugando,


enquanto acaricia o outro com a mão, invertendo-os vez ou outra.
Dedilho o seu abdômen até chegar à sua masculinidade pulsante,
massageando-a, instigando-o assim como ele faz comigo.

Henrique solta um gemido profundo, ruidoso. Retirando a mão


dos meus mamilos, ele desce, direcionando-a até o meu centro,
encontrando-me molhada, latejando por ele.

— Tão, tão fodidamente perfeita para mim. — Seu hálito quente


roça em meu ouvido, fazendo-me arquejar.

Henrique abre os meus lábios vaginais com os dedos,


massageando-os, encontrando passagem até o meu clitóris, onde
se deleita em movimentos circulares. Finco as unhas em suas
costas, contornando a sua cintura com as minhas pernas.

Mais. Eu quero mais.

Jogo a cabeça para cima, soltando um gemido que se


desprende do fundo da minha garganta.

— Henrique, eu preciso de você...

Retirando a mão do meu nervo sensível, Henrique se levanta


somente o suficiente para se posicionar entre minhas pernas,
penetrando-me sem aviso prévio.

— Puta merda... — Sua voz morre em um gorgolejo quando


remexe os quadris.

Inspiro fundo, inebriada pelas sensações que ele me causa,


fincando as unhas em sua pele, marcando suas costas tatuadas,
levando a minha mente para o mais profundo torpor.

Henrique estoca fundo, penetrando cada vez mais rápido, mais


forte, mais bruto. Arqueio, elevando as minhas costas somente para
que ele passe um braço por debaixo delas, unindo nossos corpos
ainda mais.

Um sorriso malicioso surge em seus lábios sob a réstia de luz


que incide pela janela com vista para as árvores semeadas nas
terras sinuosas das montanhas. Ele acaricia minha bochecha com o
polegar e o indicador, os olhos do verde mais profundo que eu já
tive o prazer de contemplar na vida me desnudam, brilhando em
excitação e... paixão?

— Vem comigo, doutora, vem.

Agarro o seu pescoço, resvalando os dedos por entre os fios


macios e sedosos dos seus cabelos. Ele estoca, uma, duas, três e
mais vezes. Regozijo, o corpo estremecendo comunicando que
estou prestes a chegar ao ápice. E assim acontece momentos
depois, quando fecho os olhos e sinto o meu corpo flutuar, me
dimensionar para longe de tudo e de todos, menos dele, menos de
Henrique.

— Ah, Antonella... — cicia, os dentes trincados, um músculo


pulsando em seu maxilar.

O juiz solta um grunhido e eu sinto seu membro inchar dentro


de mim, levando-o ao seu próprio júbilo.
Suados, com o peito subindo e descendo em frenéticas
sucessões, continuamos emaranhados, trocando carícias,
aproveitando cada momento.
Fazer o jogo com Antonella foi milimetricamente planejado. Eu
queria compreender como funciona àquela cabeça maquiavélica,
assim como gostaria de conhecê-la melhor. Mas, como um reflexo
do meu próprio espelho, sabia que se eu tentasse de forma direta,
Antonella se fecharia em copas e nunca me daria respostas. Então
eu joguei, sem saber se teria êxito. E o que eu descobri mexeu mais
comigo do que eu gostaria.

Assim como eu ainda não aceito e, para falar a verdade, nunca


aceitarei a morte do meu irmão, Antonella faz o mesmo com a mãe,
contudo, eu aprendi a conviver com a ausência, coisa que a guria
parece reticente em fazer.

Se Antonella soubesse ou pudesse ver como Gael é um pai


maravilhoso e preocupado, jamais trataria o homem de forma tão
frívola. Mas eu entendo sua mente negacionista; ela precisa
encontrar culpados, então sai à procura de situações para isso,
quando, na verdade, não existem. A morte chega para qualquer um
em algum momento da vida, e ela precisa entender este fato.

Encaro o teto do meu quarto perdido em pensamentos. A


viagem que deveria me ajudar a descansar, me deixou mais
atormentado e avoado do que nunca. Eu mal consegui presidir as
audiências de hoje por conta disso.

Depois da conversa e da melhor foda que eu já tive na minha


vida, cada um ficou em seu canto, pensativo, vivenciando a sua
própria dor. Como a chuva não passava e os donos das cabanas
não poderiam mais estender nossa permanência no local, tivemos
que retornar, parando de hora em hora, conforme a intensidade da
chuva diminuía ou aumentava. Quando chegamos, Antonella
agradeceu a carona e foi para o seu apartamento, permanecendo
por lá, evitando-me.

Meu celular apita, relatando o recebimento de uma mensagem.


Recolho o aparelho do meu lado da cama para ler a notificação e
me arrependo imediatamente.

“Querido, amanhã farei um jantar para comemorar o aniversário de


casamento entre seu pai e eu. Gostaria de ter a presença do meu
único filho, por favor, não me decepcione.

Com amor, mamãe.”

Eu preciso enfrentar essa merda de uma vez! Suspiro.

Desde que voltei, venho evitando as ligações da minha mãe e


os convites para comparecer em jantares organizados para
comemorar absolutamente nada, os quais possuem o único intuito
de dispor da minha presença. Mas esse é diferente, é para
comemorar uma data real.
A última vez que participei de algo assim foi quando Antônio
ainda estava vivo. Lembro-me que tínhamos que fazer sala para os
familiares e amigos inconvenientes do nosso pai, mas sempre que
possível, fugíamos para o bar e roubávamos uma pequena dose de
whisky que, segundo Antônio, era o gás necessário para continuar
aturando tanta trivialidade. Depois dele, nunca mais encontrei
coragem para enfrentar esses eventos sozinho.

Me levanto de súbito e recolho o celular, colocando-o no bolso.


Abro a porta e dou três passos, parando em frente ao apartamento
de Antonella e tocando a campainha.

Posso ouvi-la se aproximar, mas pela expressão que faz ao


abrir a porta e perceber quem é, ela estava esperando outro
alguém.

Vestindo roupas confortáveis de ficar em casa, os cabelos


presos em um rabo de cavalo e uma xícara fumegante de chá em
mãos, Antonella parece surpresa.

— Henrique, o que quer?

— Preciso falar contigo.

Ela franze o nariz, curiosa, dando um passo para o lado para


liberar a passagem.

— O que precisa? — pergunta após fechar a porta.

Solto uma respiração profunda.

— Gostaria que me acompanhasse em um jantar.

Antonella dá um passo para trás, letárgica, como se tivesse


sido agredida.

— Eu... é... isso me parece muito pessoal... eu... me desculpe


— murmura palavras desconexas.
Reviro os olhos.

— Eu não estou te pedindo em namoro, se é isso que está


imaginando. Preciso enfrentar um belíssimo jantar em família e
gostaria que fosse junto, apesar de que é um pecado apresentá-la
ao meu excelentíssimo pai.

Antonella aprofunda mais o vinco da testa e eu reconheço sua


expressão pensativa, ponderando a resposta antes de verbalizá-la.

Pensei em convidar Victor para o evento, mas sabendo sua


total aversão ao meu pai, ele jamais aceitaria, nem que eu
implorasse de joelhos.

Em uma das vezes que fui para casa, arrastei o meu amigo a
fim de dar celeridade a minha visita, mas como um homem bom,
muito bem-quisto e educado, meu pai destratou Victor, amplificando
seu desafeto pelo meu progenitor.

— Quando será o jantar? — pergunta, por fim.

— Amanhã.

Ela suspira e toma um longo gole da sua bebida, antes de


confirmar sua presença.

— Eu vou.

— Obrigado!

Me direciono até a porta, deixando-a sozinha novamente, já que


parece ser da sua vontade.

— Henrique, espere! — chama, me fazendo parar no meio do


caminho. — Quer assistir a algum filme comigo?

Giro nos calcanhares, arqueando uma sobrancelha, um meio-


sorriso nos lábios.
— Assistir à um filme?

— Sim. — Dá de ombros, ignorando a malícia no meu tom de


voz.

— Tudo bem, vamos assistir à um filme. — Faço um gesto com


a mão.

Eu sei bem como esse filme vai terminar, mas estou muito
contente e animado por isso. Apesar das desavenças no início, eu
gosto de passar um tempo com Antonella; no final das contas, ela é
mais agradável do que eu imaginava.

Sigo-a até a sala.

— Quer uma xícara de chá?

Sinto vontade de rir com a oferta; o mais próximo de chá que eu


chego é o chimarrão, mas não quero fazer desfeita quando ela
oferece com tanto carinho.

— Claro.

Antonella deixa o seu chá na mesinha de centro, afastando-se


para ir preparar o meu. Vejo um livro no sofá e recolho-o para me
acomodar, mas como o bom curioso que sou, leio o título e começo
a rir, folheando-o, vagando os olhos pelas linhas escritas.

Mas que história mais interessante... Paro em uma parte bem...


explícita.

— Aqui está o seu chá... — A voz de Antonella morre. — O que


você está fazendo?

Encaro-a, uma sobrancelha arqueada, os lábios franzidos.

— Aprendendo algumas coisas, é claro.


Antonella fica vermelha, a cor assumindo a pele do pescoço e
rosto. Ela larga a xícara na mesa, jogando-se em minha direção na
falha tentativa de retirar o livro das minhas mãos.

— Eu não te dei permissão para mexer nas minhas coisas.

— Ah, mas isso seria tão inconveniente da sua parte, tratar as


visitas assim... ainda mais com um livro tão interessante quanto
esse.

Ela solta um grunhido, agarrando o meu braço.

— Me devolve!

Levanto-me, segurando o livro por cima da minha cabeça para


ler a página na qual eu parei.

— “Esfrego, pressiono e círculo o clítoris inchado, fodendo sua


boceta com a língua...” — leio em voz alta a cena. Antonella
arregala os olhos, as bochechas coradas. — E tem mais... —
Franzo a testa, embasbacado.

— Henrique, pare com isso agora! — brada, beirando à histeria.

Solto uma gargalhada.

— Não sei qual o problema de vocês mulheres com esses


árabes. — Viro a capa para ler o título do livro. — “Um bebê para o
Sheik”. — Dou de ombros. — Não imaginei como seria possível não
ter uma bebê depois de todo esse sexo explícito e ardente.

Antonella agarra o livro; arrancando-o da minha mão, ela


caminha em passos duros até o livreiro para colocá-lo no lugar.

— Dane-se o que você pensa.

— Ah, querida doutora, eu só penso que a senhorita é uma


desavergonhada — zombo.
Ela se vira para mim, as mãos na cintura, um esgar nos lábios
carnudos.

— É mesmo? Não fui eu quem acordou a vizinhança inteira no


meu primeiro dia aqui. — Arqueia uma sobrancelha.

Levo uma mão ao coração, ofendido.

— Ao menos eu não finjo um pudor inexistente.

O músculo da sua mandíbula salta. Se os seus olhos tivessem


superpoderes, eu certamente não passaria de uma pilha de cinzas
nesse momento. Apesar do ódio que emana em minha direção, a
guria fica gata para caralho quando está braba.

— Nunca mais vai esquecer o livro, não é mesmo?

Meu sorrio se amplia.

— Pode apostar que não.

Ela solta um suspiro em derrota, revirando os olhos.

— Tanto faz! Só senta essa maldita bunda no sofá e mantenha


os dedos fuxiqueiros longe das minhas coisas.

Antonella recolhe sua xícara, segurando-a em uma mão,


enquanto a outra aperta o controle da televisão; acomodando-se no
sofá, ela levanta os olhos até os meus.

— Não vem?

— Sempre, doutora.

Ela pisca em rápidas sucessões; apesar das palavras


enigmáticas, Antonella reconhece o significado, como a mulher
inteligente que é.

Meu coração falha uma batida.


Antonella Caregnato e seu poder de se infiltrar nas minhas
entranhas e no meu coração.

ANTONELLA CAREGNATO

Voltei mais cedo para casa depois do trabalho, pois queria ter
tempo suficiente para me acalmar para o jantar nos pais de
Henrique. Embora o convite tenha me assustado inicialmente e o
‘não’ estivesse na ponta da língua, ver os olhos do juiz e a forma
como ele parecia implorar silenciosamente me fez verbalizar o
temido ‘sim’.

Na cabana, Henrique falou pouco dos pais, mas foi o suficiente


para que eu pudesse compreender que não são pessoas
agradáveis, principalmente o progenitor.

Optei por vestir algo simples e formal; o escolhido acabou


sendo um vestido preto em tubinho, comportado e requintado, saltos
e bolsa da mesma cor, os cabelos eu mantive soltos,
acompanhados de uma maquiagem leve, nada exagerado para não
causar uma má primeira impressão. E pelo que percebi, o herdeiro
Zion resolveu fazer o mesmo; embora tenha o peitoral e os braços
cobertos por tatuagens, Henrique está vestindo calça jeans justas,
botas e uma camisa preta, cobrindo a tinta que lhe mancha a pele.

A mansão Zion é exuberante. Dentro de um condomínio


luxuoso, a casa de dois andares segue o estilo modernizado,
surpreendendo-me. As luzes do jardim estão acesas em locais
específicos, deixando o ambiente acolhedor.

— Chegamos ao covil do diabo — caçoa Henrique,


estacionando o carro em frente à casa dos pais.
Desço do veículo com as pernas trêmulas e as mãos suadas, é
inevitável a oscilação em meus passos. Henrique para ao meu lado,
entrelaçando nossas mãos, dando-me um pouco de conforto e
aconchego.

— Está nervosa? — cicia, os olhos vidrados na porta da frente.

— Se não tivesse “elogiado” tanto o seu pai, certamente não


estaria. — Faço aspas com os dedos da mão livre.

Ele solta uma risada rouca, sem humor.

— Não se preocupe, ele parecerá ainda mais agradável


pessoalmente.

Estou prestes a sucumbir à minha vontade e mandá-lo para um


local nada educado quando a porta é aberta e uma mulher muito
elegante surge com um sorriso nos lábios. A similaridade entre ela e
Henrique é irrefutável, ambos possuem os mesmos olhos.

— Henrique, eu estava com tanta saudade! — Se joga em seus


braços.

Ele solta a minha mão para abraçar a mãe, parecendo um tanto


retesado e sem-jeito com o gesto carinhoso, como se isso fosse
algo extremamente absurdo e incomum.

— Como vai, mãe?

— Estava morrendo de saudades, fico feliz que finalmente


tenha vindo me visitar, pensei que teria que mandar uma intimação
à sua casa. — Ela se afasta para analisar o filho. — Está bonito,
querido.

Henrique fica sem jeito. coçando a garganta, traz os olhos de


encontro aos meus.
— Mãe, essa é Antonella. — Pousa uma mão nas minhas
costas. — Antonella, essa é minha mãe, Charlotte Zion.

Charlotte está usando um vestido verde na altura dos


tornozelos, os cabelos brancos estão presos em um coque apertado
e comportado. Os olhos verdes iguais aos do filho estão levemente
tingidos, escondidos por detrás de um óculos de grau marrom estilo
gatinho. Seu sorriso é muito bonito e educado.

— Que prazer conhecê-la, querida, como vai? — cumprimenta-


me com suavidade.

— O prazer é meu, senhora Zion.

Charlotte segura a minha mão, ampliando ainda mais o sorriso.

— Oh, não! Sem cumprimentos formais, por favor, pode me


chamar de Charlotte. — Pisca um olho. — Venham, em breve o
jantar será servido, os convidados estão chegando, mas não se
preocupem, somente algumas poucas pessoas mais próximas.

Ela começa a explicar a dinâmica do jantar para comemorar o


aniversário de casamento, enquanto nos conduz para dentro da
residência em direção à sala onde o marido aguarda.

A parte interna da casa segue o mesmo estilo, clara, ampla e


modernizada. Não observo demais, com medo de parecer grosseiro
da minha parte. Henrique permanece ao meu lado, e, apesar da
máscara imperturbável no rosto, posso sentir sua tensão de longe.

— Querido, Henrique chegou! — exaspera Charlotte.

Mesmo nunca tendo visto o pai de Henrique antes, pelos


impropérios mencionados pelo juiz, reconheço o homem
imediatamente. O senhor de cabelos totalmente brancos e quase
ralos, terno com caimento perfeito, maxilar quadrado e olhos
escuros mais frios que o inverno rigoroso, encara o filho com
desgosto. Levantando-se com uma calma invejável, ele mantém o
olhar em Henrique, me ignorando completamente, o que me faz
grata.

Os segundos de silêncio que se instala na sala são tão densos


que ninguém respira, nem mesmo Charlotte, a qual parecia animada
até este momento.

— Olá, papai! — O tom de Henrique, apesar da clara zombaria,


é duro.

O senhor Zion trinca a mandíbula com força e cerra os punhos,


irritado com o tom de voz do filho.

— Tua mãe fica feliz por ter vindo, Henrique — fala, cada
palavra saindo mais trincada que a anterior, em tom incisivo.

Lanço um olhar enviesado em sua direção, estarrecida pelo


jeito abúlico com que trata o único filho após anos sem vê-lo, como
se ele não fosse importante. De imediato, já sinto desapreço por
esse homem e consigo compreender melhor a forma como o
herdeiro falou dele.

Henrique abre um sorriso de canto e arqueia uma sobrancelha.

— O desprazer é todo meu. — Faz um gesto de mãos,


revirando os olhos e lançando um falso suspiro. — Enfim, essa é
minha companheira, Antonella — Aponta para mim. — Antonella,
este é o meu pai, o renomado, magnífico, deslumbrante,
assombroso, excelentíssimo juiz Antônio Zion. — Se curva em uma
reverência.

Mordo as bochechas para não rir do jeito com que Antônio


encara Henrique com furor, averso ao comportamento do filho.

Pigarreio.

— Prazer em conhecê-lo, senhor Zion. — Estendo minha mão à


guisa de cumprimento.
Antônio traz os olhos escuros de encontro aos meus, mas não
responde ao cumprimento; fica simplesmente me analisando,
escrutinando cada pedaço do meu rosto, estudando a minha alma.
Sinto minhas costas retesarem pelo desconforto.

— O que tu faz da vida? — pergunta depois de intermináveis


segundos de um silêncio aterrorizador.

Sinto minha testa franzir, exprobrando seu comportamento.

Henrique bufa.

— Sou advogada criminalista.

Antônio se inclina, um esgar nos lábios, como se eu tivesse


proferido a pior das ofensas.

— Que tu é uma decepção e sempre foi não é segredo para


ninguém — sibila, rangendo os dentes. — Mas trazer uma mulher
dessa laia para dentro da minha casa é demasiado, até mesmo para
você. — Encara o filho.

Sinto meus pelos se eriçarem pela raiva crescente. Meus dedos


se crispam em punhos cerrados, os nós embranquecendo conforme
tento me controlar para não ofender o desgraçado do Antônio Zion.

Pisco, fazendo a raiva recuar, desvanecendo-se até não passar


de um mero sentimento de repulsa.

Percebendo a tensão que se instalou, Charlotte corre em nossa


direção, agarrando o braço do marido.

— Por favor, não faça isso, por favor... — implora em um


lamurio.

Henrique está tenso, posso sentir pela mão em minhas costas,


e, pela primeira vez desde que pusemos os pés nesta casa, seu
rosto transparece algum sentimento: cólera.
Antônio puxa o braço, desfazendo-se do toque da esposa. Com
um último olhar de repulsa em minha direção e na do filho, ele se
vira e sai caminhando, mantendo distância de nós dois.

— Me desculpem — choraminga Charlotte, limpando o canto do


olho direito com a ponta do indicador. — Antônio anda nervoso com
o diagnóstico dos exames, por isso todo esse mau-humor. Não
levem para o lado pessoal. — Ela levanta a mão e estala os dedos,
solicitando a presença de um garçom que, até então, eu nem havia
percebido. — Peçam algo para beber, por favor. — Se afasta.

Recolho uma taça de espumante, esvaziando em poucos goles,


irritada demais para falar. Henrique opta por um whisky, também
mantendo silêncio. Mas pela forma como o seu peito se movimenta,
sei que está tão furioso quanto eu.

— A interação com essa família é sempre tão... calorosa —


zomba.

— Bem que você falou que o seu pai era uma pessoa...
agradável, mas poderia ter me preparado melhor — sussurro.

Ele solta uma risada desprovida de humor.

— Eu disse que entramos no covil do diabo, queria mais aviso


do que esse?

Pendo a cabeça para o lado, pensativa, comprimindo os lábios.

— Tem razão. — Viro-me para Henrique, batendo a minha taça


na sua, brindando, enquanto abro um sorriso. — Estamos juntos no
inferno, amor.

Henrique solta uma gargalhada, com a mão livre me puxa pela


cintura, entrelaçando os nossos corpos, não parecendo se importar
com o pai ou com qualquer outro.
Aproximando a boca da minha orelha, ele murmura, a
intensidade da voz acariciando cada osso do meu corpo:

— Irei recompensá-la mais tarde com outro squirting.

Aperto uma perna contra a outra, o calor inebriante tomando


conta de todo o meu corpo; resfolego, cogitando a hipótese de
implorar para ir embora, de suplicar para que me leve a qualquer
lugar mais reservado dessa casa e me foda como prometido.

— Henrique, há quanto tempo que eu não te vejo.

Pisco, desvanecendo minha mente, afastando-me de Henrique


até estar em uma posição segura.

— Marcos, quanto tempo. — Henrique cumprimento o homem.

O senhor que aparenta ter a mesma idade que Antônio Zion é


tão elegante quanto. A pele branca do rosto e pescoço está meio
rosada pela quantidade de bebida e os olhos claros parecem
vidrados, confirmando minhas suspeitas.

Marcos abraça Henrique, depositando alguns tapas em suas


costas, sorrindo.

— Marcos, está é Antonella. — Henrique me puxa. —


Antonella, este é Marcos, amigo do meu pai e juiz aposentado.

O homem me abraça com cordialidade, dando-me um


tratamento totalmente diferente do que eu recebi mais cedo.

— É muita beleza para os meus olhos — brinca. — Então,


Henrique, soube que pegou Guaíba como comarca.

Eles entram em uma conversa sobre trabalho e eu me abstenho


do assunto, perdendo-me em pensamentos enquanto observo ao
redor, mas acabo encontrando os olhos de Antônio Zion e sua ira
incontida direcionada a mim. Posso identificar a promessa nas írises
escuras, o empenho de quem jamais permitirá um relacionamento
entre Henrique e eu. Mas, como uma boa advogada, não sou de
fugir de um desafio, sendo assim, levanto a minha taça em um
brinde, sorrindo em provocação.
— Esse é um problema que todo juiz encontra logo que assume
uma vara — suspira Marcos. — Difícil conseguir remoção logo que
um juiz sai, sendo assim, acaba se tornando uma bagunça no final
das contas.

Até hoje não consigo compreender como Marcos consegue ser


um amigo tão fiel de Antônio Zion. Diferente do meu progenitor, ele
não é arrogante, é um homem do bem.

Procuro Antonella com os olhos, encontrando-a sentada


conversando com a minha mãe. Depois do show de hipocrisia que
deu, Antônio se manteve distante, conversando com os amigos,
evitando problemas para agradar a mulher.

Não trouxe Antonella para enfrentar Antônio, eu jamais faria a


guria passar por essa situação desnecessária por simples capricho.
Eu a trouxe porque, depois que meu irmão morreu, não gostaria de
enfrentar essa situação sozinho. E de maneira surpreendente,
Antonella soube domar Antônio muito bem, ignorando as suas
ofensas e, às vezes, até mesmo lhe lançando olhares desafiadores,
mostrando que não o teme.

— Ela é uma moça muito bonita, Henrique, teve sorte em


encontrá-la — cicia Marcos, as palavras ecoando pelo meu torpor.

— Sim, ela é — confirmo, mesmo que seja desnecessário,


afinal, qualquer um que tenha o dom da visão pode afirmar isso. —
E Lisi, como está?

A expressão de Marcos muda drasticamente, os olhos chegam


a se iluminar ao ouvir o nome da única filha.

— Ah, ela é médica, se formou há dois anos — anuncia,


orgulhoso.

Lisi era como uma prima para nós. Um pouco mais jovem, a
garotinha envergonhada, mas muito inteligente e sagaz, cresceu
fazendo parte de todas as comemorações em família. Embora
tenhamos perdido o contato depois da morte de Antônio, pois acabei
evitando meus pais e, consequentemente, Lisi, o carinho ainda
permanece e eu ainda lhe considero uma prima.

Eu soube, em uma das conversas com Charlotte, que Lisi


estava cursando medicina, mas não sabia que já havia se formado.

— Parabéns, Marcos! Lisi é ótima!

— A minha menina só me traz orgulho.

O jantar é anunciado, interrompendo a nossa conversa.

Acompanho Antonella até a sala de jantar e percebo que houve


mudanças drásticas no ambiente.

Depois que Antônio morreu, Charlotte começou a reformar a


casa, um cômodo aqui e outro ali. Mas com o passar dos anos e a
força para não sucumbir à depressão pela falta do filho, ela foi
tomando o seu tempo com coisas banais.

Não sei quantas vezes cada cômodo foi reformado, pois evitei
vir a esta casa por muito tempo, mas devo confessar que as
mudanças de ares deram um pouco de aconchego ao local tão
álgido.

No final das contas, as únicas que permaneceram aqui foram


Charlotte e Irene. Inclusive, é uma pena Irene estar de férias, pois
eu adoraria apresentar Antonella a ela.

O jantar transcorre bem, vulgar como qualquer outro produzido


pela minha família. Algumas conversas triviais, mas nenhum
assunto pesado demais para estragar o momento.

Antônio se levanta com um sorriso de lábios apertados; ele


ergue a taça para um brinde, sendo acompanhado pelo restante dos
convidados, menos por um.

Sinto o peso penetrante do seu olhar se mover para mim.

— Antônio, estamos brindando. — A voz do meu pai ecoa pela


sala, fazendo todas as cabeças virarem para a outra ponta da mesa,
ou seja, em minha direção.

Tamborilo o indicador e o polegar na madeira lisa, imóvel.


Arqueio uma sobrancelha e crispo meus lábios.

— Eu percebi. — Dou de ombros.

Charlotte sorri sem jeito para o convidados, então me encara.

— Querido, levante-se para brindar conosco.

Ignoro minha mãe, mantendo o olhar estoico do meu pai.

— Não.
Em um ato de fúria, Antônio soca a mesa, assustando a todos.
Seu pescoço fica vermelho, assim como as bochechas, por conta de
toda a cólera.

— Levante-se agora e faça como ordenado.

Recolho meu copo da mesa, brincando com o líquido âmbar,


girando-o em minha mão.

— Vamos brindar à lástima que é este casamento? Oh, mas


que maravilha! Parabéns, mamãe, por ter dedicado quarenta anos
da sua vida ao lado de um homem sem escrúpulos algum. Só não é
melhor pai do que é melhor marido.

— Já chega! — Antônio joga o copo na parede, irado. Ouço um


misto de suspiros de convidados chocados com a atitude. —
Sempre me perguntei por qual motivo fui tão castigado por tirarem o
meu filho tão abençoado e ficar justamente tu — cospe as palavras
com asco.

Um soluço se desprende dos lábios da minha mãe, enquanto os


demais convidados sussurram em surpresa pelas palavras frias e
insensíveis proferidas pelo tão exímio juiz Antônio Zion.

Sorrio, vendo sua máscara falsa decair aos poucos.

Antônio sempre foi assim: para os amigos íntimos, somente um


pai rigoroso tentando educar os filhos; para os desconhecidos, um
homem de caráter ímpio, um juiz respeitado; dentro de casa, um
crápula sem coração, sem limites e sem renitência.

Bato palmas, adorando nossa interação.

— Diga mais, papai, ainda não é o suficiente. Deixe-me ver —


Começo a enumerar nos dedos. —: deveria ter sido eu no lugar de
Antônio, sou uma aberração para esta família tão exemplar, também
sou o seu maior desgosto. — Franzo a testa, contando. — O que
mais? Eu e seus amigos próximos estamos esperando. Ou vai
negar?

Antônio continua me encarando, o rosto tomando um tom cada


vez mais forte em vermelho-vivo. O peito sobe e desce em rápidas
sucessões, a respiração densa, pesada.

— Não preciso mentir para os meus amigos próximos. Não


negarei — declara com a voz baixa, calma.

Apesar de ter a certeza de tudo isso, ouvir a confirmação torna


as coisas mais claras. Não dói mais como doía antigamente; eu não
tenho mais em mim o sentimento de rejeição, mas tenho o de nojo
por ser filho de um homem como esse.

Meu sentimento de repulsa não se direciona mais somente ao


juiz, direciono-o também a minha mãe e aos convidados. Eu jamais
permaneceria silente se ouvisse um pai falando isso para um filho; o
sentimento de justiça dentro de mim iria me impedir de ficar com a
boca fechada. Mas nem sei por que me sinto surpreso, quando
todas essas pessoas são, de fato, amigas de Antônio.

Além do mais, Charlotte absolutamente nunca abriu a boca


para defender os filhos, não sei por que faria isso agora.

— Ótimo. — Viro todo o líquido do meu copo e limpo minha


boca com o guardanapo, levantando-me. — Estou de saída.

Estendo a mão para Antonella; sem pestanejar, ela enlaça


nossos dedos, mas antes de sairmos olha com nojo para o meu pai.

— Deveria ter sido você — profere tão baixo que mal se faz
ouvir.

— O quê? — Antônio pisca, a testa franzida.

— Eu não gosto de você, só para deixar claro. — Vira todo o


líquido da taça antes de continuar. — Odeio gente arrogante e você
é claramente o rei deles. Sem contar que um homem que deseja a
morte do próprio filho, e ainda assim consegue dormir à noite, não
merece nem mesmo piedade. Portanto, concedo a minha piedade à
senhora Zion por aguentar alguém tão biltre e imoral. E lamento
profundamente que seja tão infame ao ponto de não ver o homem
maravilhoso que Henrique é. Enfim, espero que — Faz um gesto de
desdém com a mão. — aproveite o restante da sua vida medíocre
repensando seus erros. — Ela olha para os demais. — Com licença
e boa noite.

Puxo Antonella pelo braço, pondo-nos em movimento para fora


da casa onde cresci, mas que odeio tanto. Meu coração inflado,
cheio de orgulho dessa mulher maravilhosa que eu conheci e
revirou minha mente em pouco tempo.

Nunca inspirei com tanto prazer o ar gélido de uma noite de


inverno como hoje, aliviado por me ver livre da presença do meu
progenitor.

— Henrique! Espere! — Ouço a voz de Charlotte em nossas


costas; virando-me, espero que se aproxime. Ela chora
copiosamente. — Eu sinto muito por hoje, sabe como o seu pai é,
por favor, não nos abandone!

— Depois de hoje não precisamos mais fingir costume, mãe.

A verdade é que, por mais que eu sinta certa afeição por ela,
minha saúde mental vale mais do que isso, mais do que a mulher
que deixou os filhos sendo criados por empregados pela falta de
tempo, ou, pior ainda, pela mulher que viu tudo o que o marido fazia
com os filhos e mesmo assim ficou ao seu lado.

— Por favor, Antônio está muito doente, o coração está fraco, o


médico não sabe quanto tempo mais ele pode durar. — Soluça.

— Lamento por ele. — Ignoro a fisgada no peito, ele não


merece.
Charlotte assoa o nariz em um lenço, antes de continuar seus
lamentos:

— Por favor, Henrique. — Direciona os olhos chorosos para a


advogada. — Antonella... farei uma festa de aniversário para ele,
por favor, compareçam, talvez seja o último. — A voz é interrompida
pelo choro. — Esqueçam essa noite, vamos começar do zero.

Quero revirar os olhos com todo esse lamento falso e insidioso.

Estou prestes a negar o convite quando Antonella aperta a


minha mão, tomando a frente.

— Vamos comparecer, Charlotte, não se preocupe.

Encaro Antonella com o cenho franzido, uma pergunta explícita


no olhar de “que diabos ela está fazendo”, mas a guria só dá de
ombros.

— Oh, Deus, obrigada, querida, obrigada! — Charlotte beija as


mãos de Antonella, agradecida. — Preciso voltar para os
convidados e tentar remendar a... bagunça do jantar.

Plantando um beijo em minha têmpora e repetindo o movimento


em Antonella, Charlotte limpa os olhos e retorna para dentro de
casa em passos precisos, com uma altivez própria.

— Então, pode me explicar por qual motivo fez isso? — Puxo a


mão de Antonella em direção ao carro.

Ela aguarda em silêncio, enquanto eu coloco o veículo em


movimento, soltando a respiração que estava presa e aliviando a
angústia em meu peito somente quando atravessamos os portões
da mansão, estando finalmente livres da presença execrável de
Antônio.

Desgraçado hipócrita! Berro internamente. Vim para essa droga


de jantar a pedido de Charlotte, somente isso. Ainda fui um idiota
por seguir suas instruções a fim de tentar fazer a paz reinar, ao
menos um dia na vida, “nada de mostrar as tatuagens, sabe que seu
pai não gosta”, “venha de carro, ele não tolera motos”, “por favor,
vista-se adequadamente”.

Antônio Zion não suporta absolutamente nada que lhe saia do


controle, em outras palavras, ele gosta de ter marionetes e não me
atura, pois sempre soube que eu jamais seria mais uma em suas
mãos.

Antonella solta um suspiro, arrancando-me dos meus


pensamentos.

— Fiquei com pena da sua mãe, Henrique, ela parecia


desesperada.

Aperto a direção com força, os olhos fixos na estrada à nossa


frente.

— Charlotte é tão maravilhosa quanto Antônio. Ela nunca foi


mãe, apenas esposa — rebato em tom polido.

Sem tempo para os filhos, mas com tempo para cuidar do


casamento; fomos criados por Irene, ponto. Se há alguém no mundo
que mereça a denominação “mãe” está é a governanta daquele
antro.

Antonella pousa a mão na minha coxa, movimentando a palma


em leves carícias.

— Eu imaginei que sim.

— Então voltamos a pergunta inicial, por qual motivo confirmou


a nossa presença?

— Você confia em mim? — rebate a minha pergunta com outra.


Viro a cabeça em sua direção, os olhos semicerrados em
questionamento.

— Tem certeza de que não tinha veneno no que tomou?

Ela revira os olhos.

— Eu estou falando sério, Henrique.

— Porra! Sim, Antonella, eu confio, mas não estou entendendo


por que raios estamos tendo essa conversa, caralho! — Passo uma
mão nos cabelos, ainda mais confuso do que antes.

— Então saiba que eu irei preparar uma ótima surpresa de


aniversário para o seu pai. Além disso, gostaria que estabelecesse
um relacionamento melhor com a sua mãe. — Para de falar,
inspirando e expirando o ar profundamente, antes de continuar: —
Eu sei que Charlotte pode não ter sido a melhor mãe do mundo,
mas ela ainda é a sua mãe, e está viva, Henrique, e é isso que
importa. — A voz soa trêmula.

Antonella sente falta da mãe e, apesar de tentar demonstrar


força, às vezes deixa transparecer o quanto a morte precoce da
mulher que lhe deu à vida acabou por lhe abalar por inteiro,
mudando completamente sua personalidade.

Entendo o seu ponto de vista, mas a guria precisa compreender


que a mãe dela deve ter sido incrível, enquanto a minha não passou
de uma simples progenitora, cuspindo herdeiros para agradar ao
marido.

Diferente da minha criação, Antonella pôde vivenciar a


presença dos pais e o quanto estes podem amar os filhos,
independentemente de qualquer coisa. É uma lástima que ela não
possa ver isso em Gael, que tenha se abstido em seu próprio luto.

Encaro os faróis dos carros que passam por nós; as ruas pouco
movimentadas pelo fato de estarmos em véspera de rodeio,
portanto, quase toda a população gaúcha se concentra em CTG’s[9]
para comemorar.

Bato com o dedo indicador na direção, as narinas dilatadas, o


maxilar travado enquanto uma ideia passa em minha cabeça. O
medo de fadar meu relacionamento com Antonella ao fracasso por
conta disso arrepia a minha pele, mas o fato de a guria estar
tentando me ajudar a compreender melhor minha mãe e resolver
meus conflitos familiares, me faz reaver tudo e decidir que eu
também preciso fazer o mesmo.

— Vamos para casa trocar de roupa e depois vamos sair —


aviso, quebrando o silêncio.

— E vamos aonde?

— Só saiba que precisa colocar uma roupa confortável, calça,


botas e camisa já estão bons o suficiente.

Pela visão periférica, vejo Antonella me encarar com a testa


franzida.

— Aonde vamos, Henrique?

Paro o carro em um sinal vermelho, aproveito a deixa para


encará-la.

— Confia em mim, Antonella? — A analiso, o olhar franco.

Antonella comprime os lábios, parecendo escolher as palavras


com cuidado antes de responder:

— Sim, Henrique, eu confio em você.

— Então só faça o que eu peço — arfo, nervoso pelo que estou


prestes a fazer.

O sinal abre, fazendo-me voltar a atenção para a estrada, meu


coração soca minha caixa torácica com força. No fundo, sei que
estou arriscando muito, mas também sei que é um risco necessário.
Pensei que o jantar na casa dos pais do Henrique seria mais
sútil, mesmo sabendo que o pai dele é uma pessoa difícil de lidar.
Contudo, nada havia me preparado para a discussão final, ou para
ouvir da boca do próprio pai que Henrique deveria ter morrido
naquele incidente. Mesmo que não tenha sido comigo, senti meu
coração quebrar naquele instante pensando em tudo o que o juiz
não teve que passar com àquela família.

Embora, atualmente, eu não esteja tendo uma relação amigável


com o meu pai, sei que ele jamais falaria qualquer uma das
truculências que foram proferidas por Antônio Zion. Meu peito
comprime, triste por Henrique, um homem tão maravilhoso, ter tido
que ouvir àquilo.  

Assim que chegamos em casa, Henrique foi correndo para o


seu próprio apartamento, enquanto eu vim para o meu trocar de
roupa. Como ele instruiu, coloquei uma camisa branca, calça jeans
e botas marrom de cano alto.
Recolho meu celular de cima da mesa da cozinha para
visualizar as notificações. Fernanda me enviou algumas fotos
bêbada no CTG, um dos seus eventos favoritos da vida.

Henrique bate na porta e entra em seguida, sem aguardar uma


resposta. Com a visão do juiz, arquejo, aturdida.

Henrique está pilchado[10]. A camisa branca delineia os seus


músculos, transparecendo levemente as tatuagens. No pescoço, há
um lenço vermelho, o nó milimetricamente calculado para beirar à
perfeição. Por fim, uma bombacha preta de algodão, botas de couro
liso da mesma cor e um cinto modelando sua cintura com uma faca
presa a ele, complementam as vestimentas gaúchas.

Fico embasbacada com Henrique e suas diversas formas. Já vi


o homem em estilo bad boy, estilo juiz e agora estilo gaúcho. E,
embora eu não tenha ainda minha versão favorita, devo confessar
que ele fica estritamente perfeito em todas.

— Vamos? — pergunta, colocando as mãos nos bolsos da


bombacha.

Estou boquiaberta, parada no meio da sala como uma tonta


alucinada, mas não posso ser julgada, Henrique me pegou
desprevenida.

— Nós vamos para o CTG? — Encontro a minha voz em algum


lugar no meu interior.

Ele dá de ombros.

— Tem algo melhor para fazermos em uma noite de sábado?


Além do mais, estou faminto, quero comer um xis salada[11].

Sim, há muitas coisas melhores para se fazer. Apesar de ser


metade gaúcha, não sou muito adepta à CTG e suas festividades,
não tenho nada contra também, só não me sinto muito confortável
no lugar, pois não gosto de dançar e não gosto das músicas. Já o
meu pai é apaixonado, e aposto que iremos encontrá-lo por lá, além
de Fernanda, é claro, que não vai embora enquanto não acaba o
evento. E, pelo visto, preciso acrescentar mais Henrique nessa lista
de adeptos.

Suspiro, esfregando minha camisa com a mão.

— Não vamos demorar, certo?

Henrique dá um passo preciso em minha direção, arqueando


uma sobrancelha.

— Qual é o seu problema com o rodeio?

Faço um movimento com os ombros.

— Eu não gosto muito.

Retirando uma mão do bolso, ele enlace a minha cintura,


aproximando nossos corpos. Seu perfume delicioso e inconfundível
me alcança tão rápido quanto o seu toque. Seu indicador se move
em um círculo ocioso ao longo da minha bochecha.

— Vai ser divertido, doutora.

É difícil pensar com ele tão próximo a mim. O hálito, uma


mistura de nicotina com menta, atinge minha pele, causando-me
leves arrepios em antecipação pela promessa feita mais cedo. Eu
adoraria ficar em casa e colocar em prática, porém, assim como
Henrique, eu também me sinto faminta. O jantar foi péssimo e eu
mal consegui tocar na comida antes de toda a confusão acontecer.

— Tudo bem, mas não quero demorar, tenho mais planos para
essa noite. — Pouso uma mão em seu peito, sentido a pele dura
dos músculos.

Os olhos de Henrique brilham em animação, mas consigo ver,


mesmo que por um momento, angústia resplandecer neles.
— Vamos! — Puxa a minha mão, arrastando-me em direção a
um lugar que eu jamais imaginei ir.

O barulho da música nos recebe na entrada do CTG, bem como


a voz do locutor que narra o campeonato de laço. Embora a lua
esteja cheia, sua estrutura fica levemente embaçada pela fumaça
das churrasqueiras dos piquetes que comemoram as festividades
com alegria e entusiasmo que impregna o céu noturno. O cheiro de
churrasco vem de todos os lados, não importa em qual sentido o
vento esteja soprando. Agarro o braço de Henrique quando ouço um
cavalo relinchar, levando um pequeno susto.

— Não gosta do bichano? — Henrique me lança um olhar de


esguelha.

Reteso a coluna, soltando o seu braço e fingindo que


absolutamente nada aconteceu.

— Não tenho nada contra, mas também jamais montaria em


um.

— É uma pena.

Viro a cabeça em sua direção.

— E por qual motivo isso seria uma pena?

Os cantos dos seus lábios se retesam no sorriso debochado


que eu tanto adoro como odeio; quando fala, seu tom de voz soa
baixo, mas alto o suficiente para que eu possa ouvir com
perspicuidade.
— Porque eu adoraria ter essa bunda balançando na minha
frente enquanto o cavalo trota.

Deus do céu!

Olho para os lados soltando uma respiração ruidosa pelo alívio


ao reparar que não há ninguém perto o suficiente ou prestando a
atenção em nós para notar nossa conversa de cunho sexual.

Ignorando Henrique, mantenho o ritmo dos meus passos na


intensidade dos seus. A terra seca arranha a sola das minhas botas,
fazendo barulho a cada andar. A claridade indica que estamos
chegando perto do coração do evento, onde encontraremos as
barracas de comidas, motivo pelo qual Henrique fez questão de vir
até aqui. O número de pessoas em volta aumenta gradativamente.
Alguns usam vestimentas normais, mas a grande maioria usa a
pilcha gaúcha.

— Àquela li, sempre peço o xis dela. — Henrique aponta para


uma barraca específica.

Com o cheiro de fritura, meu estômago protesta pela fome,


animando-se por comer besteira. Ainda que eu tente ser saudável,
amo um lanche bem gorduroso, principalmente o xis gaúcho. E isso
era algo que eu sentia falta em São Paulo; apesar de servirem em
alguns lugares, nada se compara com os do Rio Grande do Sul.

— Qual tu vai querer? — Henrique retira a carteira do bolso,


analisando o cardápio escrito à giz em um quadro posto em frente
ao caixa.

— Xis salada.

Mantenho-me um pouco distante, deixando Henrique fazer os


pedidos enquanto observo o movimento das pessoas. Cruzo os
braços em frente ao peito, procurando Fernanda, mas não a
encontrando em lugar algum. Conhecendo a minha amiga, muito
provavelmente está dentro do salão de baile, dançando até as
pernas clamarem para parar.

— Antonella? — Me chamam e, automaticamente, fico tensa.

Giro a cabeça em direção à voz demoradamente, vasculhando


a minha mente em busca de alguma desculpa muito, muito
plausível.

Caetano, um colega do escritório, está parado ao meu lado. Ele


segura uma garrafinha de cerveja em uma mão, enquanto a outra
repousa tranquilamente no bolso da bombacha. Os olhos castanhos
estão vincados em surpresa por me ver aqui, considerando que eu
sempre fui enfática no escritório ao negar os convites de um happy
hour com os colegas para vir em rodeios. Os cabelos castanhos
estão escondidos por debaixo de um chapéu campeiro tradicional.
Caetano não é um homem feio, mas apesar de ser jovem e solteiro,
nunca chamou a minha atenção.

— É... oi. — Tento sorrir, mas sei que mais parece uma careta
do que um sorriso, de fato.

— Não acredito que te encontrei aqui — exaspera, visivelmente


embriagado. — Sempre disse que não gostava desse tipo de
evento.

Coço a nuca, pensando e pensando, mas não encontrando


mentira alguma para proferir.

Sinto o cheiro do perfume de Henrique, o que me deixa ainda


mais nervosa, a ponto de as palmas das minhas mãos começarem a
suar. Caetano encara o juiz, um vinco profundo aparecendo em sua
testa. Começo a fazer uma prece silenciosa, implorando para que a
falta de lucidez causada pelo álcool embace sua visão
salientemente, impedindo-o de reconhecer Henrique.

— Henrique Zion? — pergunta, o corpo parecendo solto e


relaxado pela bebida.
Uma exalação irregular me deixa.

— Em carne e osso — responde Henrique, em tom seco.

É claro que Caetano reconheceria Henrique, ele já fez mais


audiências com o juiz do que eu. Contudo, a fama que lhe procede
no escritório não é nada boa. E eu não sei o que faria se eles
descobrissem que eu não estou só andando com o juiz, como
também estou transando com ele, ainda mais depois de ter passado
mais de um mês enunciando elogios nada agradáveis ao seu
respeito.

Caetano olha de mim para Henrique, semicerrando os olhos.

— Vocês estão juntos? — Aponta com a garrafa de cerveja


para nós.

Uma risada estrangulada separa os meus lábios.

— O quê? Claro que não! É... Henrique é meu vizinho —


confesso.

Pela visão periférica, noto a dureza na linha da mandíbula de


Henrique, enquanto ele olha para mim.

— É mesmo? — Caetano parece surpreso, o que não me


abisma, já que eu não contei para ninguém do escritório essa mera
minúcia.

— O vizinho altamente gostoso e o mais atraente do


condomínio inteiro, não podemos esquecer este detalhe — fala em
seu tom de voz enganosamente agradável, abrindo uma lata de
cerveja que estava em sua mão, erguendo-a em um brinde antes de
beber um pequeno gole.

Caetano solta uma risada, voltando a sua atenção a mim.

— Estou realmente surpreso por te ver aqui.


— Ela veio em boa companhia. — Henrique se intromete. — A
mais agradável delas.

Deus!

Viro a cabeça em sua direção, um esgar nos lábios. Um olhar


de presunção surge em seu rosto e eu tenho vontade de socar a
cara dele, mas me contenho em ignorá-lo, por ora.

— Eu vim atrás da Fernanda, mas não consigo encontrá-la em


lugar algum. — Mexo a cabeça, olhando para os lados.

Henrique começa a rir, uma sobrancelha franzida, assistindo de


camarote até onde eu conseguirei ir com a minha mentira.

— É claro que veio... passou os últimos minutos muito


concentrada procurando por ela. — Os olhos verdes do juiz faíscam
em zombaria.

Um calor insidioso se infiltra nos meus músculos, minha pele. A


vontade de socar a cara de Henrique aumenta, mas me contenho
em somente ignorá-lo.  

— Acho que eu vi a tua amiga... — Caetano coça a nuca,


pensativo. — Se não me engano, ela estava dentro do salão de
baile.

— Ah, é claro! — Dou um passo, afastando-me. — Eu já estava


indo para lá mesmo...

— Não está esquecendo de nada, Antonella?

Eu vou matar Henrique com as minhas próprias mãos!

Continuo ignorando o juiz, fingindo que sua voz não passa de


um mero aborrecimento aos meus ouvidos.

— Foi bom ver você, Caetano.


Giro nos calcanhares e começo a correr para longe deles,
sentindo todos os músculos do meu corpo retesados pelo
nervosismo de quase ter sido pega. Droga! Em nenhum momento
pensei que poderia encontrar algum conhecido aqui, mas fui uma
tonta também, pois quase todo mundo que eu conheço chega a
contar os dias para as semanas de rodeio. Subo os degraus para o
salão de baile, mas sou barrada pelo segurança antes que eu possa
entrar.

— Desculpe, senhora, mas não posso permitir a sua entrada —


avisa, sem tirar o braço da minha frente.

— E por que não?

— A vestimenta típica é um fator obrigatório para a entrada de


hoje.

Olho para as minhas roupas, sentindo meu cenho franzir por


alguns segundos, até cair em mim que eles estão falando da maldita
pilcha! Merda! Merda! Merda!

— Ah, desculpe.

Me afasto, retornando em passos muito, muito lentos para a


barraca onde eu deixei Henrique e Caetano para trás. Espiando de
longe, solto um suspiro de alívio por não visualizar mais o meu
colega de trabalho.

Henrique está sentado em uma mesa de plástico ainda com a


lata de cerveja na mão. Empinando o nariz, sento-me na cadeira à
sua frente, lançando-lhe um olhar displicente.

— Ao menos poderia me avisar que eu não podia entrar


naquela droga de baile, assim eu não teria feito papel de boba para
o segurança.

Ele dá de ombros.
Apesar do semblante sério, o vinco ao lado dos olhos lhe
condena, demonstrando que está segurando o riso.

— Eu perguntei se não estava esquecendo de nada —


murmura como se fosse óbvio.

Bufo, passando a mão nos cabelos.

Henrique empurra uma lata de cerveja que estava fechada ao


seu lado em minha direção.

— Por mais que tu não seja nada agradecida, aqui está.

Suspiro, recolhendo a lata e sugando quase todo o líquido,


acalentando minha garganta seca depois do choque do nervosismo
iminente.

— Me desculpe, mas ele não podia saber que viemos juntos...

— E por qual motivo?

— Porque você é o juiz de uma das varas onde nós mais temos
processos — falo parcialmente a verdade, pois nem que me
paguem eu confesso que passei mais de mês falando mal dele no
escritório.

— E daí? — Henrique retira um cigarro do bolso, acendendo-o


para, posteriormente, tragar a fumaça da nicotina, enquanto espera
a minha resposta.

Sou uma hipócrita mentirosa que não quer dar o braço a torcer,
essa é a verdade. Embora esses sejam defeitos meus, eu ainda
tenho um maior, o orgulho, e jamais admitiria isso. A verdade é que,
enquanto observo Henrique encher os pulmões com o maior veneno
de todos, o mesmo que levou a minha mãe, sinto uma dor enorme
no coração, temendo perdê-lo, assim como ela se foi. E é
justamente por isso que eu não posso aparecer com ele na frente de
todos, porque isso que estamos tendo se tornaria mais sólido, até
mais do que o sentimento que, aos poucos, sopra dentro do meu
peito, crescendo a cada dia mais, tornando-se um enorme problema
para mim.

Pigarreio, desviando os olhos para o lado, ignorando a visão


dele fumando.

— E daí que eu simplesmente não quero. — Engulo em seco,


sorvendo a angústia da mentira do que estou prestes a pronunciar.
— Isso é só diversão, não há motivos para sair por aí contando a
todos.

Henrique pisca os olhos lentamente, parecendo insondáveis e


vazios, deixando-me tensa. Vejo-o retesar o maxilar, e posso notar
que não está nada feliz com as minhas palavras, mas assente, em
silêncio.

Uma dor intensa e arrebatadora no meu coração me faz


arquear levemente na cadeira. Expulso as lágrimas dos olhos,
afastando-as, enquanto as palavras de Fernanda me vêm à mente:
“pare de burlar a sua própria felicidade por medo”. Se ela estivesse
aqui, teria socado a minha cara pela minha burrice, mas apesar de
toda a agonia que estou sentindo, não consigo me arrepender, não
quando o cheiro da nicotina satura meu olfato, lembrando-me, a
cada lufada de ar, da doença que levou a minha mãe.

Mal suportei uma perda, não sobreviveria a duas.


Ainda impactada demais por perceber que eu gosto mais de
Henrique do que imaginava e por mentir tentando proteger o meu
coração, fico pensativa, absorta em total mudez.

Os lanches chegam, fazendo-nos comê-los em silêncio, sem


trocar uma única palavra. E como Henrique disse, nunca havia
comido um xis salada melhor na vida. Se não fosse pela conversa
que tivemos ou pelo que foi dito, com toda a certeza a comida teria
caído melhor em meu estômago, e não como uma pedra.

Ao terminarmos, Henrique retira o celular do bolso e digita


alguma coisa, trocando mensagens com alguém. A voz insânia
zomba na minha cabeça, falando que o ciúmes que insiste em
persuadir a minha mente é muito bem-feito, pois eu mereço tudo
isso e muito mais por ser covarde. Cerro a mandíbula com força,
desunindo as lágrimas insistentes e sentindo uma dor atrás dos
olhos pelo esforço.
Henrique se levanta de supetão, ainda com o celular em mãos.
Imagino que ele vá me abandonar aqui para ir encontrar alguma
mulher que esteja disposta a oferecer a ele mais do que eu posso. E
por mais que doa, sei que mereço isso. Mas prefiro me afastar
agora e manter intacto o resquício que sobra do meu coração, do
que sepultá-lo para sempre no futuro.

— Venha, temos que ir em um lugar — murmura,


surpreendendo-me.

Chacoalho a cabeça em concordância, seguindo-o em completo


silêncio. Apesar do horário tardio da noite, o lugar ainda está lotado
de pessoas; enquanto umas bebem, rindo e conversando, outras
tomam chimarrão, divertindo-se tanto quanto os demais. Crianças
pilchadas correm, desviando de nós enquanto passamos por elas.

Henrique mantém uma distância respeitosa de mim, induzindo-


me até as arquibancadas onde há pessoas assistindo ao
campeonato de laço. Parando de caminhar, ele se vira em minha
direção, suspirando.

— Talvez tu nunca mais vai querer falar comigo depois disso. —


Vejo-o hesitar, os olhos verdes cautelosos encarando-me. — Mas
assim como me ajudou hoje com a minha família e viu como meus
pais são péssimos, pensei que deveria ajudá-la também, e que não
poderia deixá-la perder algo que eu invejo muito.

— O quê? — pergunto, tentando manter a voz indistinta.

— O amor que o teu pai nutre por ti — explica, pegando-me de


surpresa.

Virando-se para a plateia, Henrique aponta discretamente em


uma direção específica.

Então eu vejo.
Dou um passo para trás, atingida pela cena que se sucede a
minha frente.

Solto o ar que estava preso, ignorando o súbito nó que arranha


a minha garganta.

Dor! Dor! Dor!

É como receber uma injeção de adrenalina, porém, totalmente


ao contrário do êxtase que ela causa.

Meu pai parece alheio a minha presença, ao seu lado, Mikaela.


Os dois estão assistindo ao torneiro, dividido uma cuia de
chimarrão, felizes, exultantes... completos.

Oh, Deus!

Ele parece tão realizado ao lado da namorada, mais radiante do


que eu tinha visto nos últimos anos desde que... desde que mamãe
morreu.

Ele seguiu em frente... sem mim, sem ela.

As lágrimas embaçam a minha visão, meu peito comprime em


tanta dor que eu sinto vontade de gritar, mas engulo o desespero,
afundando-o o máximo que consigo no mar revolto dentro da minha
mente.

— Antonella... — A voz de Henrique soa em algum lugar, pelo


toque eu meu braço, sei que ele está ao meu lado, mas estou zonza
o suficiente para duvidar da minha sanidade.

Pisco lentamente, afastando as lágrimas, sentindo minhas


bochechas molhadas.

— Antonella... — Giro a cabeça em sua direção, atordoada


demais. — Eu sei que não esperava ver isso, mas é necessário.
Olhe bem, veja como o teu pai está feliz com Mikaela... — Henrique
passa uma mãos nos cabelos, nervoso, angustiado. — A morte é
difícil, às vezes inaceitável, e eu sinto muito que a tua mãe tenha
partido tão cedo, mas, por favor, não culpe Gael por seguir em
frente, por viver.

— Não! — Balanço a cabeça com veemência.

— Entenda que Maria foi alguns capítulos do livro da vida dele,


e agora ele precisa continuar escrevendo a própria história,
Antonella. Gael está feliz com Mikaela, veja. Não seja egoísta, não
afaste o seu pai, aproveite o amor que ele sorve por ti, um amor que
nem todos os pais são capazes de transmitir. — Lança-me um olhar
condescendente.

Não posso! Quero gritar. Isso é traição! Mas nenhum som sai
da minha garganta, nada além de um grunhido de dor.

As lembranças da minha mãe, dos meus pais juntos, alvejam a


minha mente, apunhalando-me como a sensação de ter mil facas no
coração. Aceitar Mikaela, aceitar esse relacionamento, é como
manchar a memória da minha mãe... é como deixá-la partir...

Puxo meu braço, desfazendo-me do toque de Henrique,


limpando as lágrimas que sujam o meu rosto.

— Você não tinha esse direito! Não tinha! — brado.

— Por favor... não faça isso. — Levanta o braço em minha


direção, mas eu dou um passo para trás.

— Por quê? — Minha voz sai rouca. — Por que você se


importa?

Não sei o que dói mais, se é a traição de Henrique ou a do meu


pai. Os dois únicos homens que eu já... amei? Não!

Um soluço separa os meus lábios.


Henrique não faz nada além de me encarar por alguns
segundos; os olhos brilham com algum sentimento que não consigo
identificar. Ele parece enfrentar um duelo interno, mas quando dou
mais um passo, aumentando a distância, vejo-o oscilar e desistir.

— Porque eu estou apaixonado por ti.

Seu peito se ergue em uma respiração profunda e trêmula


enquanto seus ombros se contraem com a tensão.

O quê? Quero verbalizar, mas não consigo.

Ah, como eu me sentiria feliz e plenamente realizada se, em


outra situação, Henrique tivesse dito isso. Como poderíamos ser
felizes em uma outra realidade, uma em que não tivéssemos sidos
beijados pela morte. Como eu amaria tê-lo conhecido antes. Como
tudo poderia ter sido diferente.

Mas, infelizmente, as coisas não são como queremos. E eu não


consigo perdoar o que Henrique fez, pelo menos não agora.

— Nunca mais fale comigo, Henrique! Nunca mais! — Uma


lágrima quente rola pela minha bochecha direita, mas essa não
pertence a mamãe ou Gael, essa pertence a ele, a nós.

Giro nos calcanhares, fugindo dele, fugindo da cena, fugindo do


meu pai, fugindo de mim.

Deus, isso dói tanto!

Minha mãe está morta, e a constatação se torna mais realista,


mais doída. É um fato. E eu não posso e não consigo aceitar.

Corro para longe chorando, clamando para que a dor no meu


peito diminua, vá embora, mas nada acontece enquanto eu me
afundo em sofrimento pela perda, pela ausência, pela traição.

Por ele. Por ela. Por nós.


Henrique não podia, não tinha o direito de fazer isso comigo.
Ele não tinha o direito de me trair. De me abandonar.

Céus!

Sufoca, dói, sangra por dentro, estilhaça-me.

HENRIQUE ZION

Com as mãos nos bolsos, assisto Antonella correr para longe,


sumindo por entre o mar de pessoas. Fecho os olhos sorvendo uma
grande lufada de ar, assimilando a dor que eu acabei de assistir e o
fato de que ela não vai me perdoar, não tão cedo ou talvez nunca.

Minha garganta está embargada, dificultando a deglutição. Meu


peito arde, esmagado pela angústia de ver a mulher que eu... acabei
por me apaixonar, correr para longe, correr de mim.

Embora uma vozinha sussurre no meu ouvido que eu deveria


me arrepender de ter feito isso, não consigo sentir nada em relação
a arrependimento. Antonella precisava de um choque de realidade
para compreender que, infelizmente, sua mãe partiu, mas ela
continua viva e precisa reagir. E, por mais que eu consiga
compreender a sua negação, pois eu mesmo já passei por isso,
chegou a hora de entrar na segunda fase do luto, a aceitação.

Olho para onde Gael se encontra com a namorada, alheio ao


que acabou de acontecer. O homem, aos olhos de qualquer outro,
parece alguém feliz, risonho ao lado da amada, mas eu posso sentir
que, apesar de tudo, ainda lhe falta algo, que é a aprovação da filha.
E Gael não merece isso, nem Antonella.
Com as mãos ainda nos bolsos, me ponho a caminhar em
direção ao estacionamento; não há mais nada para mim aqui.

É estranho o sentimento de coração partido. O estômago


embrulhado, a dor dilacerante no peito, a angústia em cada lufada
de ar. Tudo isso é novo, pois nunca encontrei alguém antes ou
deixei que alguém cavasse o suficiente até chegar ao meu órgão
fundamental, não até ela, até conhecer a advogada desbocada,
orgulhosa, teimosa e... linda.

Depois do jogo que assisti com Gael na casa de Antonella,


trocamos o número de celular e, desde então, Gael vem me
enviando mensagens diariamente, a maioria são piadas sobre o
nosso time e o seu maior rival, contudo, com o passar dos dias,
acabamos por nos tornar amigos, trocando mais palavras do que
somente sobre o futebol.

Eu sabia o que estava em risco quando recebi uma mensagem


de Gael hoje mais cedo avisando que iria aproveitar o rodeio com a
namorada e resolvi trazer Antonella para o mesmo lugar, a fim de
lhe mostrar que o pai está feliz, que ela precisa aceitar isso e que
precisa seguir em frente, pois, diferente do meu progenitor, Gael
ama a filha e faria qualquer coisa por ela, inclusive largar a
namorada que lhe faz tão feliz, o que, a meu ver, é altamente
injusto.

Destranco o meu carro e entro, ficando parado por longos


minutos no banco do motorista, olhando para a frente, perdido em
pensamentos. Incontrolado, soco o volante com força, querendo
extravasar a dor que eu sinto, mas nada pode mudar o que
aconteceu.

Retiro uma fotografia do porta-luvas, encarando a imagem de


Antônio. A foto foi tirada algumas semanas antes da sua morte, em
um churrasco em família que participamos na casa dos nossos pais.
Ele sorri para a câmera, um sorriso contido, como sempre
expressava quando tinham mais pessoas em nossa volta.
— Eu sinto a sua falta, cara. Todos os dias, a todo o momento.
E não importa o que eu faça, nunca conseguirei superar o que tu foi,
nunca conseguirei suprir a falta que tu faz. — Aperto a ponta do
nariz com força, sentindo fisgadas na cabeça. — Eu ferrei com
tudo... Antonella nunca mais vai me perdoar.

Bato a cabeça no encosto do banco, segurando as lágrimas


que insistem em aparecer depois de anos na seca, sem chorar.

— Depois de ti, ela foi a única pessoa que conseguiu cavar um


buraco tão fundo a ponto de chegar no meu coração — murmuro,
encarando os olhos do meu irmão curvados pelo sorriso. — E eu
estraguei tudo tentando fazer o que achei que fosse certo.

A verdade é que somos dois fodidos, duas almas partidas,


quebradas pela dor da morte, estilhaçadas. Com o tempo, consegui
juntar os cacos da minha, mesmo que eu nunca mais volte a ser o
Henrique que eu era. Contudo, Antonella não parece ter feito o
mesmo, e eu sinto muito por isso, sinto que ela não consiga mais
compreender o que é o amor.

Eu estou irrevogavelmente apaixonado por Antonella


Caregnato, e é justamente por isso que eu a deixarei partir, porque
somente ela pode se reerguer sozinha, e isso, nem eu nem ninguém
poderemos fazer por ela.

Ligo o veículo e acelero, mas não em direção ao meu


apartamento. Dirijo o carro pelas ruas da grande Porto Alegre até o
lugar que eu venho evitando desde que retornei, para o lugar que
um dia foi a moradia do Antônio.

Não presto atenção nas ruas, nos cruzamentos ou nos sinais.


Chego ao meu destino e entro pela garagem, deixando o carro
estacionado na vaga que pertencia a ele quando era vivo. Trêmulo,
aperto o botão do andar no elevador, ainda alheio ao meu redor. Mal
consigo colocar as chaves na porta para destrancá-la e, depois do
que pareceu uma eternidade, finalmente entro no apartamento,
ligando as luzes.

O lugar aconchegante e familiar me recebe absolutamente do


mesmo jeito que eu me lembrava da última vez em que vim até aqui.
Cada mísero detalhe escolhido a dedo por Antônio, tudo calculado
para o seu lazer.

Passo pela sala, vendo as pastas das cópias dos casos para
julgamento que estava estudando na época, antes do acidente. Até
mesmo o copo de uísque vazio permanece intacto na mesinha de
centro, no mesmo lugar onde a mão de Antônio o repousou pela
última vez.

Onde um dia teve calor corporal. Onde um dia teve risadas.


Onde um dia teve amor. Onde um dia teve alguém.

Não sobrou nada, somente o silêncio, o vazio, a saudade.

Sento-me no sofá, no lugar onde eu imaginei que ele se sentou


em suas últimas horas de vida. E então eu choro, deixando as
lágrimas que eu segurei por tantos anos jorrarem pelos meus olhos,
até não sobrar nada, até secar, até o peito calcar em busca de um
consolo que não vem e nunca virá.
Alguns dias depois.

Nunca pensei que voltaria a andar feito uma morta-viva, não


depois de viver assim por tantos meses após a morte de mamãe.
Porque é exatamente assim que me sinto de novo. Uma pessoa
sem alma, desnutrida de felicidade.

Não falei mais com Gael, ignorando todas as suas mensagens


e ligações, bem como proibi a sua entrada no meu condomínio e
solicitei a minha estagiária que omitisse a minha presença todas as
vezes que ele foi até o meu trabalho me procurar.

Fiz o mesmo com Henrique; calculei todas as vezes em que ele


estava para sair ou chegar em casa, mudando os meus horários, a
fim de lhe evitar.

Eu não estava tão preocupada com a minha aparência, não até


dona Celene, educadamente, perguntar se eu estava doente, pois,
segundo ela, havia dias que eu estava com olheiras arroxeadas
debaixo dos olhos e as maçãs do rosto em evidência por causa da
perda de peso. Somente depois desse comentário que eu comecei a
controlar melhor a minha alimentação e consegui alguns remédios
para dormir através de Gustavo.

No entanto, vivendo no verdadeiro inferno interior nesses


últimos dias, pude colocar os pensamentos em ordem e repensar
tudo o que aconteceu nos últimos meses, e isso foi bom para clarear
algumas coisas que eu precisava enxergar, mas negava.

Estaciono o carro em frente à creche que Fernanda trabalha,


soltando uma lufada profunda de ar. Nesses dias, evitei até mesmo
ela e Victor, pois eu sabia a opinião dos dois a respeito do que
aconteceu e não estava a fim de ouvi-las. Mas agora chegou o
momento de me acolher através de um ombro amigo.

Desço do veículo, calculando os meus passos enquanto


caminho até a sua sala. As crianças estão em silêncio porque ainda
não deu o sinal do recreio, mas sei que em breve isso aqui irá virar
uma zona atordoante de gritos e euforia.

Me escoro na parede ao lado da sua porta, sentindo meu


coração esmagar dentro do peito ao ouvir a sua voz enquanto
explica alguma coisa para os alunos. Senti tanta falta de Fernanda
nesses dias... falta dela, de Victor... dele.

Engulo o choro, encarando um ponto qualquer na porta da sala


de aula da frente, observando os trabalhos das crianças para me
distrair.

O sinal finalmente toca e, como eu havia previsto, o corredor


silencioso e vazio é rapidamente preenchido por crianças correndo,
rindo e conversando.

Espero até o último aluno sair da sala para então parar em sua
porta e bater. Fernanda se vira para mim, os olhos ganhando
contornos de surpresa e tristeza ao reparar quem é.

— Entre! — Faz um sinal com as mãos.

Não sei bem como agir com ela, não depois de tê-la afastado
da minha vida sem lhe dar desculpa alguma.

— E comece a se explicar — avisa, encarando-me da cabeça


aos pés. — Porque, pelo visto, está na merda total.

— Obrigada — zombo.

Ela revira os olhos, então pousa as mãos na mesa, curvando o


corpo, o cenho franzido em irritação.

— Eu falo sério, Antonella. Eu fui até atrás de Victor perguntar o


que havia acontecido e nem mesmo ele soube me explicar. Fiquei
muito magoada por ter me evitado por todos esses dias, por ter me
afastado mais uma vez, mesmo quando prometeu que nunca mais
faria isso.

Meu peito sobe e desce em rápidas sucessões. Sento-me em


uma das cadeiras das crianças, de frente para Fernanda. Fecho os
olhos, um músculo saltando na minha mandíbula pelo esforço que
faço para não chorar.

— Eu vou explicar tudo.

— Tem alguma coisa relacionada com Henrique? — indaga, a


voz falhando pela empatia da minha situação.

Só de ouvir o seu nome meu coração salta, dando cambalhotas


angustiantes de saudade.

— Sim e não.

— Então comece a explicar, porque eu realmente tentei


entender o que aconteceu para que tomasse novamente esse
comportamento cáustico, e não cheguei à conclusão alguma. —
Fernanda se joga em sua cadeira, fazendo-a emitir um som ruidoso
pelo impacto.

Meus lábios se separam em uma inspiração aguda, enquanto


me preparo para contar tudo a ela. Para reviver o turbilhão de
emoções que senti nos últimos dias. E, embora me doa falar sobre
Gael e como ele seguiu a vida sem... nós, falar sobre Henrique é
uma ferida ainda mais profunda e completamente difícil de cicatrizar.

Rangendo os dentes para conter as lágrimas, começo a


discorrer e assim fico pelos próximos minutos, que mais pareceram
horas, de tão atordoantes que foram.

Silêncio, é isso que eu recebo após contar tudo, no entanto, a


intensidade no olhar de Fernanda me mantém cativa. Seus lábios
franzem e ela emite um assobio baixo, recostando-se na cadeira.

— Eu sabia que tu acabaria com tudo uma hora ou outra —


fala, a voz tão afiada quanto a ponta de uma faca.

Passo uma mão nos cabelos, desviando minha atenção para a


janela, onde vejo as crianças correndo e brincando no pátio.

— Eu não tenho culpa de nada — defendo-me.

Fernanda solta uma risada sem humor.

— Não? Olha a merda que fez, Antonella! — Lanço-lhe um


olhar de esguelha, mas Fernanda levanta a mão, interrompendo-me.
Com um suspiro, continua: — Maria morreu, Antonella, e eu sinto
muito por isso.

Trinco o maxilar com força, as lágrimas embaçando a minha


visão.

— Eu sei que a minha mãe morreu, Fernanda, obrigada por me


lembrar disso mesmo assim.
Sua deglutição é audível.

— Sabe mesmo? Porque as vezes eu sinto como se não


soubesse, ao menos age como se não.

Abro e fecho a boca, irritada demais com ela, mas nada sai,
absolutamente nem uma única palavra.

— Eu sinto muito, Antonella, de verdade — continua. — Mas


chega! Pelo amor de Deus! Já se olhou no espelho? Tá parecendo
uma morta-viva, e tudo isso por quê? Porque é idiota o suficiente e
egoísta demais para aceitar que, mesmo com a morte de Maria, a
vida continuou!

Levanto-me de supetão, passando a mão na nuca suada,


andando de um lado para o outro. Não quero mais ouvir o que ela
tem a dizer, não quero.

— Já chega! — minha voz falha, tornando-se quase um


sussurro.

Massageio o peito a fim de apaziguar a dor, mas eu sei que isso


é impossível, pois não se trata de uma ferida aberta, não se trata de
dor física. É pior.

— Chega? Pois saiba que concordo! Já a vi se martirizar


demais quando veio embora depois da morte dela. Fiquei contigo
por todos àqueles meses, fiz o que pude, o que estava ao meu
alcance. E quando te vi reagir, fiquei feliz, mas agora... agora é
diferente.

— Diferente por quê? — Arrasto um dedo pela bochecha,


limpando as lágrimas acumuladas.

Os olhos de Fernanda brilham em tristeza.

— Porque já está na hora de aceitar.


— Aceitar o quê?

Ela fecha a boca, uma lágrima escorre do seu olho esquerdo.

— Aceitar que Maria nunca mais vai voltar.

Resfolego, mantendo-me de pé somente pelo fato de que estou


segurando o peso corporal em uma cadeira infantil. Balanço a
cabeça negativamente; não consigo aceitar, não posso.

— Oh, Antonella, ela era adorável, uma pessoa maravilhosa,


mas não estaria orgulhosa de ti. — Encaro-a, mais lágrimas
descendo. — Ela odiaria saber que a filha fez justamente o contrário
do que lhe prometeu.

Não! Isso é mentira! Eu reagi, eu me formei! Estou trabalhando,


estou fazendo tudo o que prometi a ela que faria.

— Eu cumpri minha promessa, eu cumpri.

— Não, acha que sim, mas não. Acha mesmo que Maria estaria
feliz sabendo que, desde que morreu, eu nunca havia visto a filha
tão... leve, e tudo isso por causa... dele, e mesmo assim foi idiota o
suficiente para afastá-lo, para deturpar a tua felicidade.

— Henrique não tem nada a ver com essa conversa, Gael sim.

Fernanda coloca as mãos na cintura, incrédula.

— Ah, é mesmo? Pois Henrique conseguiu enxergar o que todo


mundo, absolutamente todo mundo consegue, menos tu. Ele viu o
quanto Gael te ama, o quanto sofreu pela perda da esposa, mas
que conseguiu seguir em frente porque é um homem forte, diferente
da filha, pelo visto.

— Ele não tinha esse direito.

— Ele quem?
Solto um grunhido, puxando os cabelos com força.

— Nenhum dos dois.

— Entendi... Henrique não tinha o direito de te mostrar a


verdade, jogando na tua cara, por mais que doa, enquanto Gael não
tem o direito de quê? — Franze a testa, confusa. — Ser feliz?

Se Fernanda estive me batendo com as mãos, a dor seria


menor. As palavras dela me atingem com intensidade, deixando-me
totalmente atordoada. A dor emocional é mais corrosiva que a dor
física.

Ela suspira, limpando o rosto com o dorso da mão.

— Eu sinto muito, não queria ter que falar tudo isso pra ti dessa
forma, mas já estou cansada de ficar de mãos atadas enquanto a
vejo colocar fora tudo o que te faz feliz. — Estreita os lábios,
tornando-os uma linha fina, antes de continuar: — Falo sério quando
digo que nunca te vi mais leve, não desde que Maria morreu. E
nunca havia visto Gael assim antes, não tão feliz como está.

Volto a me sentar, fungando.

— Ele traiu mamãe.

Fernanda me lança um olhar piedoso, complacente.

— Não se pode trair quem morreu, Nella.

Sorvo uma lufada de ar, abafando um grito de desespero,


abraçando o meu próprio corpo, chorando, sofrendo.

— Queria que Gael tivesse morrido também? — Aceno


negativamente, sem condições de lhe dar uma resposta verbal. —
Porque é exatamente isso que está parecendo. Teu pai está aí, vivo,
ele quer viver, quer seguir em frente, mas como ele pode encontrar
a felicidade novamente se precisa decidir entre a filha ou o novo
amor que surgiu?

— Ele já escolheu.

Fernanda cruza os braços em frente ao peito, uma veia


pulsando em seu pescoço pela irritação.

— Já mesmo? Se acredita nisso é mais idiota e egoísta do que


eu imaginava. Poxa, Gael faz questão de te mimar, está sempre
atrás de ti, procurando sempre te agradar, mesmo quando tu tenta
afastar o homem de todas as formas possíveis.

A verdade não só dói como também sufoca.

Finco as unhas nas palmas das mãos, tentando deslocar a dor


de um lugar para o outro, mas é irrelevante. As palavras de
Fernanda entoam pela minha mente, cuspindo a realidade,
queimando, dilacerando tudo.

Ela tem razão, eu sei que sim, mas como aceitar? Porque
quando eu fizer, eu terei que renunciar a muitas coisas e uma delas
é a minha mãe.

Não posso, não posso.

— Por favor, Antonella, seja sensata. — Faz um gesto com as


mãos. — Está afastando Gael. O homem é velho, é um bom pai e
um dia morrerá, assim como todos nós. Mesmo assim, olhe bem o
que está fazendo, desperdiçando o tempo que ainda tem com ele.

— Ele escolheu a namorada! — rebato em tom esganiçado pelo


abalo emocional.

— Não, ele escolheu tentar ser feliz. — Ela abre sua garrafa de
água, bebendo alguns goles para molhar a garganta antes de
prosseguir. — Mas ele vai acabar abandonando a namorada,
mesmo que isso lhe faça sofrer, porque ele te ama acima de tudo ou
qualquer coisa.

As imagens dos últimos dias alvejam a minha mente. Gael me


procurou várias e várias vezes, tentou todos os tipos de contato,
todos que eu, de alguma maneira, consegui repelir, mantendo-o
longe de mim.

Mas, por quê?

Eu sei a resposta, mas não tenho coragem de proferir.


Fernanda tem razão, eu não suportei ver o meu pai feliz, não
suportei vê-lo seguir em frente com outra porque eu mesma não
consegui fazer isso.

Eu sou uma idiota. Um péssima filha. Uma pessoa horrível.

Mamãe morreu. Maria Caregnato nos deixou há dois anos, e eu


não pude e não posso fazer nada para mudar isso, mas posso fazer
para salvar a relação de convívio com o meu pai.

A morte dói, corrompe, deteriora, danifica, mas eu preciso


reedificar tudo o que ela causou, começando pela tão temida
aceitação.

— Eu sei que a verdade dói, mas ela é um fato. E quanto a


Henrique, sinto que tenha colocado até mesmo isso fora.

Meu coração se comprime até ficar do tamanho de um grão de


ervilha ao ouvir seu nome.

— Ele... ele vai morrer.

Fernanda franze o cenho, espantada.

— Bem, todos nós vamos. — Dá de ombros.

Encaro minhas mãos, enroscando um dedo no outro, as palmas


suadas, as mangas manchadas pelas lágrimas derramadas.
— Ele fuma — sussurro e não preciso falar mais do que isso
para que Fernanda possa compreender.

Eu não só odeio o cigarro, como também tenho medo dele. Não


importa o quanto digam que o câncer é uma doença genética e que
pode acontecer com qualquer um, tenho certeza de que se minha
mãe não fosse fumante, as coisas seriam diferentes, ela até mesmo
poderia estar aqui.

— Ah, Antonella... — Sem palavras pela primeira vez desde


que começamos nossa conversa, é assim que Fernanda fica.

Ela sabe de toda a história, reconhece todo o meu sofrimento,


esteve presente em grande parte da minha trajetória de sair do
buraco, encontrando uma brecha até a superfície.

Eu não suportaria passar por tudo de novo, não suportaria ver


Henrique sofrer o que ela sofreu.

— Venha aqui, minha amiga. — Ergue os braços em minha


direção.

Agarro-a, escondendo o rosto em seu peito, deixando o choro


fluir, berrando como uma criança.

— Eu sinto muito, muito, muito. — Beija o topo da minha


cabeça, acariciando os meus cabelos.

Choro até as lágrimas secarem, até reprimir o tremor e contê-lo,


fazendo com que não passe de outra onda de agonia bramindo no
abismo negro dentro de mim.

— E agora? — pergunto, limpando o nariz em um lenço que


Fernanda me ofereceu.

Ela solta uma respiração ruidosa, franzindo os lábios.


— Agora quero que vá se acertar com Gael, depois, quero que
faça o mesmo com Henrique. — Estou prestes a falar, mas ela me
cala. — Eu sei, o teu medo e tudo mais. — Segura as minhas mãos,
apertando-as levemente. — Mas precisa entender que a história não
vai se repetir, Henrique ainda é jovem e com a tua ajuda pode sair
dessa. Se tu gosta dele, precisa fazer isso por ti, por ele, por vocês.

Ah, e eu gosto, não posso mais esconder. Dentre esses meses


de convívio em um jogo de amor e ódio, o amor saiu vencedor.

Desde o início, a atração sempre falou mais alto do que a


pirraça. Henrique e eu não nos conhecemos de forma convencional,
mas devo admitir, nos conhecemos da maneira certa, na hora
adequada.

Eu jamais teria me apaixonado se ele tivesse oferecido o


tradicional, mas ele não fez. Com suas piadas irritantes, o sorriso
calculista, humor ácido e o jeito despojado, Henrique foi
descascando cada camada grossa que protege o meu coração dia
após dia, chegando finalmente em seu trunfo.

— Eu sei que é difícil, Nella. Um trauma não é algo que possa


ser esquecido da noite para o dia, mas tu precisa entender que a
morte de Maria não está somente associada ao cigarro, há vários
outros fatores também... — Seu olhar encontra o meu, cauteloso. —
Se somente o cigarro fosse o causador de todo o câncer, como
explicaria as crianças que lutam contra essa doença diariamente
sem nunca sequer terem chegado perto da nicotina? — Um suspiro
resoluto desprende-se de seus lábios. — Se Henrique quiser
mesmo que essa relação tenha um futuro, ele entenderá os seus
motivos e fará uma escolha.

Apenas a mera menção do nome dele faz o meu peito apertar.

— Não sei se ele vai me perdoar, não depois do que eu disse


da última vez que nos vimos.
Os cantos dos olhos de Fernanda vincam em um sorriso
contido.

— Ah, ele com certeza vai. E eu também sei que tu fará o que
estiver ao teu alcance para conseguir o perdão dele.

Como um interruptor sendo ligado, minha mente pisca em uma


ideia: eu ainda tenho um aniversário para ir.

— Obrigada por tudo, por me ouvir, por falar a verdade e por


estar sempre aqui.

— Não precisa agradecer, melhores amigas estão nesse mundo


para isso.

Abraço-a, inspirando fundo o cheiro doce do seu perfume.

— Eu te amo — murmuro, me afastando para recolher minha


bolsa.

— Ei, o que vai fazer?

A torção de um sorriso cheio de promessas ainda não


cumpridas aparece em minha boca.

— Eu vou fazer uma coisa que alguém já deveria ter feito há


muito tempo.

— Que é o quê?

— Colocar Antônio Zion no lugar dele.

Os olhos de Fernanda piscam em desentendimento, um vinco


profundo surgindo na testa.

Jogando um beijo no ar e deixando uma amiga totalmente


confusa para trás, saio da sala de aula batendo os saltos no piso
laminado da escola, fazendo o barulho ecoar pelo corredor ainda
vazio.
Eu vou me redimir como filha. E vou me redimir com o único
homem que foi capaz de me arrancar muito mais do que suspiros e
orgasmos.

Mas antes, eu vou me vingar por ele.


Sento-me na cadeira do escritório do bar descansando os pés
em cima da mesa de Victor, suspirando. Recolho o celular do bolso
e começo a ler as notificações, entrando em sites de notícias que
pouco me interessam em uma falha tentativa de passar o tempo.

Embora o dia tenha sido exaustivo, sei que não conseguiria


pegar no sono e ficaria mais atordoado no apartamento silencioso
do que no bar agitado. É assim todos os dias desde que Antonella
me cortou de sua vida.

Através das paredes, às vezes posso ouvir seus ruídos ou o


barulho da televisão, também sei que sai de casa em horários
apropriados para me ignorar. E, através da vizinha fofoqueira, soube
que ela recebeu a visita de um homem há alguns dias que, pelas
características, só pode ser o médico engomadinho que andava
com ela.
Enfim, a guria me deu um belo pontapé na bunda e eu, como
um otário, continuo aqui sozinho, solitário e sofrendo por ela. Só
espero que àquele ditado fajuta “os humilhados serão exaltados”
seja verídico.

A porta é aberta e Victor entra, lançando-me um olhar


enviesado.

— Cara, isso já tá parecendo doença — debocha.

Reviro os olhos.

— Vai lá fazer o teu trabalho e me deixe quieto no meu canto.


— Faço um aceno com a mão.

Victor cruza os braços em frente ao peito, arqueando uma


sobrancelha.

— Porra, eu estou tentando te ajudar.

— Mas eu não preciso de ajuda. — Sorrio de boca fechada.

Ele aperta os lábios, contendo um sorriso.

— Não mesmo? Quem te conhece diria o contrário... — Coloca


a mão no queixo, pensativo. — Sempre me questionei o que seria
capaz de mexer contigo, só não imaginei que seria Antonella a foder
com você.

Recolho um lápis de cima da mesa e jogo em sua direção, o


qual desvia avidamente do objeto.

— Não quero falar da Antonella — rebato em tom frio.

Victor sabe pouco da história, somente o que eu contei por cima


depois de estranhar que Antonella passou a lhe evitar, assim como
fez com a amiga ou qualquer outra pessoa, enclausurando-se em
seu próprio mundinho atordoado.
Jogo uma borracha para cima, pegando-a no ar, repetindo os
movimentos a cada segundo.

— Tá certo. São dois fodidos se evitando. — Faz um


movimento de dar de ombros. — Mas espero que saibam que uma
hora tudo isso precisa acabar, antes que acabe com os dois.

Não respondo, continuo brincando com a borracha. Embora


Victor tenha razão, não há mais nada que eu possa fazer; foi
justamente por isso que Antonella passou a me odiar, porque eu
tentei fazer algo, mesmo sabendo que não dá para ajudar quem não
quer ser socorrido.

Victor solta um suspiro audível, dando um passo em minha


direção, aproximando-se mais.

— Tchê, eu gosto dos dois! E, para falar a verdade, desde que


conheci Antonella, nunca tinha visto a guria tão... amena. — Faz
uma pausa. — E nem tu — continua, fazendo-me arrastar os olhos
em sua direção, deixando a maldita borracha cair no processo.

Levo uma mão aos cabelos, puxando-os para trás e,


posteriormente, para frente, a mandíbula contraída.

— Nós dois somos fodidos, mas Antonella é mais fodida do que


eu — cicio, dando de ombros.

A guria é muito, muito teimosa, e não aceita que lhe digam a


verdade, muito menos que exprimam a realidade em sua frente, sob
os seus olhos.

— Barbaridade! Sim, dois fodidos! Mas tu é cancheiro[12],


Henrique, pensei que conseguiria entender Antonella melhor do que
ninguém.

Solto uma risada oca, sem humor.


— Até parece que alguém tem o dom para fazer isso, nem
mesmo o pai dela consegue.

Antes que eu diga mais alguma coisa, a porta atrás de Victor é


aberta e uma guria entra. Reconheço-a de algum lugar, mas não
consigo lembrar com afinco de onde.

— Olha o que temos aqui... — Os lábios de Victor se separam


em um sorriso cheio de dentes, enquanto os olhos brilham em pura
malícia.

A guria revira os olhos, ignorando o meu amigo e sócio,


focando sua atenção em mim.

— Eu vim falar contigo! — pontua, decidida.

— Não estou disponível. — retruco como um louvável idiota.

Ela ri, balançando a cabeça.

— Bom saber que não está disponível, o grande problema seria


se fosse o contrário. — Sinto a minha testa franzir em confusão com
essa merda toda. — Sou Fernanda, a melhor amiga da Antonella.

Lentamente, retiro os pés de cima da mesa. Acomodando-me


na cadeira com a coluna ereta, faço um gesto com a mão para que
ela prossiga. Victor nem respira, ainda parado no mesmo lugar, de
pé.

Fernanda solta um suspiro.

— Se quer mesmo ficar com Antonella, precisa parar de fumar.

Hum... não era bem isso que eu estava esperando ouvir, o que
me deixa ainda mais confuso.

— Hein? — Meus olhos se estreitam, surpresa cintilando neles.

Ela repuxa o canto da boca.


— Antonella tem pavor de cigarro porque a mãe dela morreu de
câncer, e um dos motivos causadores da doença, talvez o maior
deles, foi justamente o uso recorrente do cigarro, Henrique. —
Estremeço, estarrecido. — Ela nunca vai ficar contigo se continuar
fumando, não enquanto sentir medo de que possa acontecer a
mesma coisa que aconteceu com Maria. — Fernanda comprime os
lábios, ponderando as próximas palavras a deixar sua boca. —
Antonella é traumatizada... ela ficou assim depois que a mãe morreu
e, embora ela ainda seja maravilhosa, sinto muito que vocês não
tiveram a oportunidade de conhecê-la antes do que aconteceu —
continua, após segundos de silêncio absoluto.

Respiro fundo.

— Ela... — Minha voz embarga, me fazendo engolir em seco.


— Ela me deixou por causa do maldito cigarro?

Fernanda mexe as mãos.

— Bem, esse e mais alguns outros problemas que já estão


resolvidos. — Ela dá um passo em minha direção, contida. — Eu
amo Antonella, ela é minha melhor amiga e eu estive presente para
vê-la se arrastar pelo próprio inferno e sair dele de cabeça erguida,
mesmo tendo ficado com sequelas. Mas nunca, não depois da
morte da mãe, eu a havia visto tão... feliz, com os olhos brilhando
novamente e não por lágrimas. — O carinho que sente por Antonella
reflete em cada palavra que profere. — Eu só quero que ela seja
feliz e sei que tu é o cara certo para fazer isso.

Me remexo na cadeira, incomodado com a profundidade dessa


conversa, contudo, ainda mais com o fato de que Antonella esteve
no inferno, no mesmo que eu um dia estive.

— Então, Henrique, se realmente sente algo por ela... — Outro


passo, aproximando-se cada vez mais, o olhar sério, resoluto. —
Espero que o amor seja mais forte que o vício na nicotina.
Minha mente fica repentinamente vazia por vários segundos
atordoantes, falo a primeira coisa que vem vêm à cabeça.

— É uma escolha?

Algo surge em seu rosto, desaparecendo rápido demais para


que eu possa decifrar, falando, por fim:

— Sim, é uma escolha. Antonella ou a nicotina, qual importa


mais?

Sinto a tristeza ameaçar se firmar em meu peito, suprimindo o


calor da emoção de ouvir notícias de Antonella depois de dias na
escuridão total.

Uma escolha.

ANTONELLA CAREGNATO

Deus, isso é tão difícil.

Parada em frente à porta do meu pai, fico em silêncio, ouvindo


minha respiração pesada entrecortar através dos meus lábios
separados. Meu coração soca minha caixa torácica com força,
batendo descompensadamente, atordoando os meus ouvidos.

Estou em estado letárgico, entrando em um quase desespero.


Fernanda disse ao telefone que isso aconteceria, que seria mais
difícil quando eu chegasse, quando eu estivesse perto o suficiente
para enfrentar esse dilema que venho carregando ao longo dos
anos.
Mas nada, nem suas palavras, nem meus pensamentos, nem
mesmo a minha culpa havia me preparado para isso.

Eu posso ouvir a voz dele através da madeira, conversando


com Mikaela, também ouço os passos pesados enquanto caminham
de um cômodo a outro, mas não consigo me mexer.

Fecho os olhos, inspirando uma longa lufada de ar para,


posteriormente, expirá-la. Eu preciso fazer isso, por mim, por ele,
por nós.

Com os músculos rígidos, levanto o braço e toco a campainha,


o maxilar trincado fazendo uma pressão dolorosa.

— Deixa que eu atendo! — Reconheço a voz da mulher e tenho


vontade de sair correndo, mas mantenho os pés firmes no chão.

É inevitável não ser alvejada por lembranças de mamãe, de


como seria se fosse ela ao invés de Mikaela me recebendo agora...
Mas isso nunca vai acontecer, não é mesmo?

A porta é aberta e a mulher se assusta quando me reconhece,


arregalando os olhos e soltando um suspiro. Ela parece sem jeito,
nervosa, pesarosa. Não lhe culpo por agir assim na minha presença,
considerando que eu lhe destratei desde o momento que descobri a
sua existência.

— Olá, Mikaela, meu pai está? — Tento manter um tom forte,


mas a voz sai rouca, falha.

Mikaela passa uma mão no pescoço, trêmula.

— Olá, Antonella, está sim... — Olha para os lados, procurando


algo ou uma saída. — Eu, é... preciso dar uma saidinha...

— Não! — interrompo-a, fazendo-a arquejar. — Não será


necessário, quero falar com os dois — insisto.
Mikaela franze a testa, apertando os lábios.

— Tudo bem.

O apartamento continua o mesmo, embora eu deva admitir que


está mais organizado, limpo e arejado, toques que somente uma
mulher consegue promover.

— Eu vou chamar o seu pai. — Mikaela olha para mim,


posteriormente para o sofá, sem saber o que fazer ou como agir. —
Sinta-se à vontade, a casa é sua. — Some em direção à cozinha.

Me acomodo na única poltrona disponível, a fim de lhes dar


mais privacidade; pouso as mãos suadas no meu colo e aguardo.

Pela visão periférica reconheço a silhueta de Gael. Quando


nossos olhos se encontram, o vinco em sua testa se aprofunda e as
marcas da idade impressas nos cantos dos olhos ficam mais
visíveis.

— Antonella... filha, o que aconteceu? — Ele limpa as mãos


molhadas na calça jeans surrada, curvando o corpo para me dar um
abraço apertado. — Estou ficando nervoso — murmura contra os
meus cabelos.

Suspiro.

— Não é nada com que precise se preocupar, eu só quero falar


com vocês dois.

Afastando-se, semicerra os olhos.

— Primeiro some por dias, sem me dar notícias, e agora


aparece aqui querendo conversar comigo e com Mikaela? Estou
realmente próximo de ter um colapso.

Aponto os dedos crispados em direção ao sofá da frente.

— Por favor, sente-se para que possamos ter “a conversa”.


Mesmo contrário, Gael se apossa do sofá; Mikaela faz o mesmo
ao seu lado, ainda em completo silêncio.

Brinco com as pontas dos meus cabelos, criando coragem para


proferir verbalmente o que tanto me incomoda.

— Antonella... — A voz dele soa trêmula, quase um lamurio.

— Não, eu preciso falar, só me dê um pouco de tempo, por


favor. — Minha deglutição é audível. — Eu estou sendo uma
péssima filha, sinto muito por isso.

— Querida, o que está acontecendo?

Mikaela pousa a mão sobre a do meu pai, o gesto desproposital


capta a minha atenção imediatamente. Vejo que, mesmo sem
perceber, eles trocam carinho, proteção e afeto.

Meus olhos se enchem de lágrimas acumuladas, tanto pela


culpa quanto pela emoção de saber que Gael está feliz, que
encontrou alguém para dividir a vida até a velhice, embora no fundo,
no mais profundo do meu ímpeto, ainda me doa por não ser mamãe.

Pigarreio.

— Eu não aceitava a morte dela porque aceitar significava


renunciar a tudo o que ela foi. — Fungo, limpando as lágrimas com
a manga da minha blusa. — Eu queria achar um culpado, pai.
Queria ter alguém para odiar tanto a ponto de não conseguir sentir a
dor do luto. — Olho para o lado, focando minha atenção em um
objeto inanimado qualquer. — Mas eu não encontrei porque, por
mais terrível que seja, ela foi a única culpada, ela e o maldito
cigarro. Então eu preferi me abster de sentimentos, de pessoas, de
emoções... porque não sentir significa não sofrer.

— Ah, Antonella! — Gael agarra o meu joelho, apertando de


leve.
— Eu preciso falar, só espera. — Ele concorda em silêncio,
então eu prossigo. — E eu consegui viver assim por muito, muito
tempo. E estava feliz, sem dor, sem sofrimento, sem aceitação. Até
Henrique chegar e acordar tudo o que eu reprimi ao longo dos anos.

— Eu sinto tanto, meu amor. Sempre soube que a morte da sua


mãe lhe causou traumas proeminentes, mas nunca soube a
magnitude deles porque tu nunca me mostrou, sempre se
dispersava quando eu chegava perto.

— Fui uma covarde, pai. Sentir e aceitar significava renunciar


mamãe, renunciar a sua presença e tudo o que ela significou, por
isso não aceitei quando me falou sobre Mikaela, por isso fui uma
filha egoísta e mesquinha.

O rosto de Mikaela brilha pelas lágrimas derramadas, um


sentimento de reconhecimento me assola. A mulher não precisava
se compadecer comigo, pois só conheceu até agora o pior de mim.

Gael balança a cabeça, negando a minha afirmação.

— Não, querida. Maria estará sempre presente, ela faz parte de


ti e, para ser sincero, de mim. Maria foi o meu primeiro amor e eu a
amarei para sempre, nunca esquecerei dela. — Coça a garganta. —
Mas a vida continua. Eu conheci Mikaela, me apaixonei, reneguei
esse sentimento, me senti culpado, mas no fim eu compreendi que
precisamos continuar vivendo, acostumando-nos com a sua
ausência e com a saudade que ela deixou.

Um soluço escapa por entre os meus lábios ao ouvir que ele


ainda a ama e que sempre vai amar. No fundo, era isso que eu
precisava escutar para enfim compreender que a presença de
mamãe na terra não foi em vão, que ela não marcou somente a
minha vida como também marcou a do meu pai, seu companheiro,
seu eterno amor.
— Me desculpe, pai. — Olho para Mikaela. — Peço desculpas a
você também, sinto muito por tudo. Agradeço por cuidar dele e por
ter sido presente todas as vezes em que eu o abandonei.

E é esse o meu sentimento de culpa. Sou a única filha dele, a


única que jamais poderia lhe dar as costas, renegar sua presença, e
foi exatamente o que fiz.

— Não precisa pedir desculpas, eu sei como é... — Mikaela


esfrega o indicador no canto dos olhos para secar as lágrimas. — Já
perdi a minha mãe... Não tão jovem quanto tu, mas sei como é essa
dor.

Balanço a cabeça, agradecida. Por ora, isso é o máximo que eu


consigo oferecer a Mikaela, respeito, agradecimento e
compreensão, mas espero que, com o passar do tempo, possamos
aprofundar mais a nossa relação, enquanto isso, vou me
acostumando com a ideia e parando de me sentir uma traidora.

— Eu sinto muito, pai — reforço e coloco minha mão sobre a


sua, que continua em meu joelho. — Não posso prometer que serei
a mesma Antonella de antigamente, porque, sinceramente, ela não
existe mais, um pedaço dela se partiu para sempre no dia vinte e
três de setembro, mas prometo que serei melhor do que estava
sendo.

Lágrimas descem pelos olhos de Gael, manchando suas


bochechas e pescoço; seus lábios tremem.

— Isso já é o suficiente, meu amor. Só de poder te ter por perto


já é o suficiente. Eu te amo, querida!

Me jogo em seus braços, deixando o soluço escapar dos meus


lábios. A angústia e a dor continuam presentes, mas, desde que me
permiti sentir, está amena, embora não ausente.

— Eu também te amo, pai — murmuro contra o seu peito.


E ele chora ainda mais. Não lembro quando foi a última vez que
proferi essas três palavrinhas tão importantes para ele, e eu nem
havia percebido o quanto elas estavam me fazendo falta.

Gael se afasta, um leve sorriso brotando em seus lábios,


contrastando com os olhos inchados pelo choro.

— Eu fiz os bolinhos de que tanto gosta, que tal nos fazer


companhia para o café?

Encaro Mikaela – ela ainda está contida na minha presença,


fala pouco; até mesmo os gestos parecem ser calculados.

— Sim, eu adoraria.

Gael amplia o sorriso, e, pela primeira vez em anos, eu consigo


enxergar um brilho da mais pura felicidade resplandecer neles.

— Então vamos, antes que os bolinhos esfriem. — Bate as


mãos nas pernas, levantando-se. — Querida, tu poderia preparar o
café? Sei que Antonella vai amar àquele cafezinho que somente tu
sabe fazer. — Pisca um olho para a mulher.

As bochechas de Mikaela assumem um tom rosado.

— Claro, com prazer.

Vejo a sincronia dos dois na cozinha, o companheirismo, a


magnitude de ambos. Meu pai precisava de alguém para ele;
Mikaela chegou no tempo certo. Infelizmente, não posso dizer o
mesmo de mim, mas espero que ela possa me perdoar, que eu
consiga evoluir, que eu consiga cumprir minha promessa de ser uma
pessoa melhor, uma filha melhor.

Observo a vista da cidade através da janela da cozinha


enquanto eles arrumam a mesa do café. Sinto falta de Henrique, de
absolutamente tudo dele, até mesmo dos sorrisos irritantes e das
piadas molestas. Ele me intoxicou, me deixando viciada em sua
presença.

Eu percebi desde o início que com apenas uma dose dele eu


nunca mais fui a mesma.

Henrique Zion é tudo o que eu preciso.


Não importa quantas vezes eu venha nessa mansão, ela
sempre parecerá imponente sob os meus olhos.

— Obrigada! — agradeço ao Uber e desço do veículo.

Eu não viria de carro, não quando tenho planos de voltar para


casa na companhia de Henrique.

Solto um suspiro, agarrando o envelope pardo com a mão


direita, enquanto uso a esquerda para alisar o meu vestido. Meus
saltos ecoam pelo piso acimentado do jardim, conforme caminho
com uma arrogância própria. A bolsa transversal colada ao meu
corpo se remexe acompanhando a sintonia do meu andar.

A casa parece como da primeira vez que eu estive aqui na


parte de fora, mas ao me aproximar do rol de entrada, consigo ouvir
o barulho de conversas simultâneas misturando-se com o tilintar de
copos e talheres, bem como uma melodia clássica tocando ao
fundo.

Sei que Henrique está aqui, pois tive uma aliada muito
importante para descobrir seu paradeiro. Dona Celene, a vizinha
fofoqueira, foi de muita utilidade. Conforme eu solicitei, assim que
Henrique saiu do apartamento a senhorinha prontamente se pôs a
perguntar para onde ele estava indo, sendo assim, aqui estou eu,
seguindo o homem por quem estou apaixonada sem saber se ele
ainda me quer, mas viver é isso, não é mesmo? Correr riscos,
dentre eles, o de um coração partido.

Subo os degraus com calma, sendo interrompida por uma


conversa que, infelizmente, reconheço uma das vozes.

— Sente-se ao lado dele, faça perguntas, demonstre interesse


— sussurra Antônio Zion, o aniversariante miserável.

— Não tenho tanta certeza se Henrique vai corresponder as


minhas investidas... — a voz feminina retruca, me fazendo ficar
rígida ao ouvir o nome de Henrique no meio da conversa mais
atípica que eu já ouvi.

— Bobagem! Henrique sempre soube do teu interesse por ele,


apesar de não ser o meu filho favorito, preciso admitir que ele não é
bobo, é até mesmo um rapaz inteligente.

Nossa senhora, eu odeio esse homem infausto! Se eu pudesse,


entraria agora e daria uns bons tapas naquele rosto distorcido, mas
não sou uma agressora de idosos.

— Acho que ele me vê como uma prima... — continua a mulher.

— Tu estás linda, Lisi, não é mais a garotinha que brincava com


eles, se tornou uma mulher e tanto. Henrique é um homem e não é
cego, vai se interessar por ti imediatamente.
Alguém suspira, possivelmente a víbora que quer Henrique, o
MEU Henrique.

— Espero que tenha razão, senhor Zion, sabe que eu sempre


amei Henrique, mesmo quando não passávamos de meras crianças
correndo por esta casa.

— E ele vai te corresponder, posso garantir. — Silêncio, então o


patife continua: — Aproveita que àquela advogadinha medíocre não
veio com ele... pode ser um presente divino de aniversário...
independentemente, vá se sentar ao lado dele.

— Obrigada, senhor Zion, por me dar essa oportunidade.

— Ah, meu bem, não há mulher melhor para o meu filho:


médica, inteligente, linda e renomada. Saiba que eu já lhe considero
minha nora.

Risadinhas.

Meu “sogro” é um homem tão, tão adorável. Reviro os olhos.

— Vamos, antes que deem por nossa falta — avisa o


desgraçado do juiz aposentado.

Ouço os passos deles se afastando e permaneço no lugar até


não ouvir mais nada. Escoro as minhas costas na parede da casa,
soltando, finalmente, a respiração que eu nem havia percebido que
estava presa na garganta.

Esse desgraçado mal perde por esperar. Sempre soube que


Antônio era um homem baixo, medíocre, tive certeza assim que lhe
conheci, mas nunca imaginei que chegaria a tanto, a ponto de
arrumar outra mulher para o filho somente porque eu sou advogada.
O que o juiz não sabe é que os advogados são os piores,
principalmente os vingativos.
Afastando-me da parede, seguro o ‘presente’ dele com força,
sentindo os meus dedos queimarem de raiva e de anseio pela
minha vingança.

HENRIQUE ZION

Jogo um canapé de camarão na boca, entediado com todo esse


falatório idiota de pessoas medíocres. Mas, embora eu esteja
morrendo de ódio da Antonella por ter me forçado a vir nessa
merda, me sinto satisfeito somente por ter visto a expressão que o
meu doce e amável pai fez ao me ver entrar pela porta da frente
dirigindo a minha moto, com a camisa com as mangas dobradas e
dois botões no pescoço abertos mostrando as minhas tatuagens.

Foi meu presente de aniversário.

Falando no diabo... Antônio se senta ao meu lado direito em


uma mesa reservada para a família de frente para o pequeno palco
montado para a apresentação das homenagens.

Tudo tão meticulosamente exagerado, desde ao buffet


escolhido até a decoração. Vamos comemorar e condecorar o
aniversário de um homem que não vale nem metade do que foi
gasto com a festa.

Olho para a plaquinha disposta na frente da cadeira ao meu


lado esquerdo, o nome de Antonella escrito em negrito em uma letra
cursiva me inflige uma pequena dor no coração.

— Eu tenho um presente — fala Antônio, abrindo um sorriso


cheio de dentes.
Sinto a minha testa franzir no exato momento em que uma mão
delicada com unhas tingidas de vermelho-vivo toca em meu ombro.

— Lisi? — pergunto, encantado pela loira exuberante sorrindo


para mim.

A última vez que a encontrei foi no velório do meu irmão, mas


estava tão alienado em minha própria dor que me lembro de poucas
coisas daquele dia, isso inclui ela. Lisi era uma pirralha magricela de
dentes tortos e fico boquiaberto ao perceber como o tempo lhe fez
bem.

Os cabelos loiros descem em cascatas pelas costas finas, os


olhos azuis continuam os mesmos expressivos de sempre, os
dentes bem-alinhados e brancos formam um sorriso encantador. Ela
continua magra e alta, embora esteja com o corpo de uma mulher
muito atraente.

— Saudades? — sua voz é doce, feminina.

Me levanto para lhe dar um abraço, sentindo o cheiro doce do


seu perfume.

— Quanto tempo que eu não te vejo. — Me afasto para


examiná-la da cabeça aos pés. — O tempo te fez bem.

Os olhos de Lisi se iluminam.

— Devo dizer o mesmo.

— Querida, sente-se ao lado de Henrique, assim vocês poderão


conversar melhor — se intromete Antônio, gesticulando para a
cadeira que seria de Antonella.

Um músculo pulsa no meu maxilar, mas não posso fazer nada,


Antonella não virá, não vejo problema em Lisi ocupar o lugar que
era destinado a ela.
Volto para o meu lugar, tomando um pequeno gole da minha
cerveja e colocando na boca outro canapé de camarão em uma
tentativa de esquecer a vontade de fumar.

— Então, me conte tudo... sei que agora é médica. — Escoro o


braço no encosto da cadeira, o corpo voltado para a guria que eu vi
crescer.

Lisi dá de ombros, levando uma mão aos cabelos.

— Sim, sou médica, mas atendo somente em uma clínica


particular, nada daquela loucura toda do hospital que enfrentei na
minha residência. — Ela olha para um ponto adiante, desviando os
olhos rapidamente, as bochechas coradas. — Quero saber de ti,
Henrique, me conte tudo. — Lisi retira a mão que estava
descansando na mesa para depositá-la na minha perna.

Encaro-a franzindo uma sobrancelha.

Pigarreio.

— Eu estou atuando na comarca de Guaíba. — Lisi começa a


esfregar a minha perna. Mas que porra é essa? — Nada demais,
nada que já não esteja acostumada.

Ela arrasta a mão até chegar em um ponto próximo da minha


virilha. Porra! A guria perdeu a cabeça? Somos praticamente
primos!

— Voltou quando? — indaga, o rosto inabalável.

Semicerro os meus olhos encarando a sua mão, que está


praticamente esfregando o meu pau por cima da calça no meio de
uma festa familiar.

— O que diabos tu usou? — retruco, a voz esganiçada, alguns


tons mais baixa para que somente ela possa ouvir.
Lisi fica vermelha feito um pimentão, recolhendo a mão
imediatamente.

— Me desculpe.

Ouço meu pai limpar a garganta de maneira forçada e audível


ao meu lado. Lisi leva a mão ao meu ombro, esfregando o meu
peitoral distraidamente.

— Então, onde paramos?

Esfrego minha nuca, confuso. Já andei com um número


razoável de mulheres para saber que ela está me aliciando, pior
ainda, descaradamente. Porra, ela é minha prima emprestada!

— Paramos na parte do porquê diabos está me esfregando


desde a hora que chegou aqui? — Arqueio uma sobrancelha.

Lisi fica ainda mais nervosa e, se fosse possível, diria que


vermelha.

— Ah, Henrique...

— Lisi, o que está acontecendo? — Seguro a mão que estava


prestes a me agarrar, mantendo-a no lugar.

Ela pisca algumas vezes, trazendo os olhos de encontro aos


meus.

— Eu te quero! — pontua, por fim.

— Tu o quê? — Encontro a minha voz em algum lugar muito,


muito longe, perdida no meu torpor.

— Sempre fui apaixonada por ti, não é segredo para ninguém...

— Lisi, pelos céus! — Passo as mãos em meus cabelos,


desordenando-os.
Minha mãe escolhe justamente esse horário para aparecer e
nos interromper, e eu nunca na vida fui tão grato por isso. Charlotte
se senta ao lado do marido, batendo palminhas e comemorando que
as homenagens já irão começar.

— Por favor, Henrique, pense no assunto... poderemos nos


divertir muito. Esqueça essa bobagem de família, não somos
parentes, mas podemos ser através de outro vínculo, se quiser, é
claro. — Pisca um olho.

Sinto meu cenho franzir; recolho meu copo de cerveja para


cheirar, começando a duvidar de que colocaram drogas em nossas
bebidas.

— Boa tarde, senhores! — A voz, à guisa de cumprimento,


ecoa pelo salão, fazendo-me retesar todo o corpo, parando com o
copo no meio do caminho.

— O que essa garota está fazendo aqui? — vocifera Antônio.

— Querido, deixe de ser mal-educado, Antonella preparou uma


homenagem para ti.

— Ela o quê? — Quase cuspo a cerveja na mesa, esquecendo


completamente de Lisi e sua proposta descabida.

Charlotte dá de ombros.

Olho para o palco onde Antonella sorri, mas não é um sorriso


normal, ela parece uma maldita diaba gostosa e traiçoeira. O vestido
vermelho moldado ao corpo fodidamente lindo e os saltos da
mesma cor ecoam conforme ela bate o pé. E a boca... tingida no
vermelho mais vívido que eu já vi.

A saudade de todos esses dias sem vê-la faz meu coração


retumbar com força total.

Nossos olhos se encontram, ouço-me resfolegar.


— Gostaria de fazer uma homenagem ao meu querido,
honrável, adorado, estimado, prezado... sogro. — Aponta a mão
para Antônio. — Por favor, pode colocar os slides, por gentileza —
solicita ao assistente.

Sogro? Eu gosto disso.

Antônio começa a ficar vermelho ao meu lado, enquanto


Charlotte sorri, achando linda a homenagem que Antonella irá fazer.

Deus amado! Eles não conhecem Antonella, isso não é bom,


nada bom.

A tela atrás dela é ligada onde podemos ver uma... sentença?

— Louvável doutor Zion, está vendo está sentença? Deve


reconhecer, o senhor que proferiu. Enfim, foi reformada. — Passa
mais um slide. — E essa? Lembra dessa? — Leva um dedo ao
queixo, pensativa. — Ah, essa parece ter sido difícil, processo
complexo e tudo mais. — Revira os olhos, gesticulando a mão que
contém o controle dos slides. — Então, ela também foi reformada,
assim como essa. — Muda a tela. — E essa. — Muda novamente.
— E essa.

— O que significa isso? — Meu pai se levanta da cadeira


abruptamente.

— Calma, excelentíssimo, estou somente começando. — Meu


lábios se contraem com a ironia do que ela está fazendo, mas
consigo reprimir o sorriso. — Eu pedi encarecidamente ajuda ao
pessoal organizador do evento que, prontamente, aceitaram me
auxiliar, portanto, esses papeis que estão sendo colocados na mesa
de vocês são dados. — Um homem coloca uma folha à minha
frente, recolho-a para ler o que está escrito. — Nesses números,
podemos ver o tanto de sentenças proferidas por Antônio Zion ao
longo da sua carreira, bem como todas que foram reformadas por
advogadinhos medíocres, nas palavras dele próprio.
Deus, Antonella é genial; maligna e genial!

Até hoje, nunca havia conhecido um indivíduo intrépido com


coragem o suficiente para enfrentar Antônio Zion.

— Em que ponto tu quer chegar, guria? Que diferença isso faz?


— Antônio soca a mesa, amassando o papel.

Os olhos de Antonella se iluminam na mais pura malícia, um


sorriso calculista e frio modela seus lábios.

— Eu quero dizer que a tua opinião é passível de objeção!


Então, quando fala as asneiras sobre os filhos, adivinha? Sua
opinião possui nulidade absoluta, assim como todas essas
sentenças que eu imagino que devam ter sido trabalhosas para
proferir. — Ela aperta o controle com tanta força que o objeto chega
a estralar em sua mão. — E esse aqui, esse júri tão difícil, tão
demorado, tão abstruso... foi anulado.

Antônio coloca as mãos na cintura, uma veia pulsa em seu


pescoço e outra em sua testa, a vermelhidão começa a subir,
alcançando as maçãs do rosto. Com o maxilar trincado, retruca.

— Do que tu estás falando? — Apesar do tom parecer calmo,


ele está prestes a ter um colapso nervoso.

Eu lembro desse júri, foi o último que ele fez antes de encerrar
a carreira, aposentando-se, por fim. Na época, ele ficou quase
quatro dias fora de casa e quando retornou estava exausto,
fadigado e aliviado pela aposentadoria. No entanto, mesmo tendo
que ser imparcial, acabou levando esse julgamento para o lado
pessoal.

— Então, como uma advogadinha medíocre, eu descobri que


um ato processual foi inobservado, ou seja, passível de decretação
de ineficácia, sendo assim, foi reconhecida a nulidade absoluta do
júri. — Ela dá de ombros. — Feliz aniversário, doutor Zion. — Joga
o controle para o funcionário, descendo do palco com uma
elegância e prepotência única.

— Tirem ela daqui, AGORA! — E não é que Antonella


conseguiu fazer o homem perder completamente a compostura.

— Ah, mas eu ainda não terminei. — Ela aponta para o juiz. —


Esse homem que vocês vieram comemorar o aniversário é o maior
de todos os hipócritas que eu já conheci. Em poucas horas de
convívio ele não só desprezou a minha profissão, como agiu da
forma mais desonrosa que já vi em toda a minha vida com relação
ao próprio filho. Antônio Zion é um patife, no melhor dos elogios. —
Ela lança um olhar frio, cheio de ódio, para ele. — Ainda tem a sorte
de ter um filho maravilhoso como Henrique, um homem louvável
diferente de você. E não, eu não vou desejar muitos anos de vida e
blá, blá, blá, eu desejo que queime no inferno na sua pós-morte. —
Vários suspiros de espanto ecoam pelo salão silencioso. — Porque,
diferente disso, encontraria Antônio e você também não merece
esse outro filho.

Antônio range os dentes.

Antonella joga o microfone no chão, o qual faz um ruído que


machuca nossos ouvidos, fazendo-nos encolher os ombros.

Ela marcha até a nossa mesa, curvando o corpo por cima da


madeira, espalmando as mãos sobre o local, encarando Lisi com a
mesma raiva que destinou a Antônio momentos antes.

Caralho de mulher gostosa!

— Antonella? — interpela.

Ainda estou errático no lugar depois de todo esse showzinho


dela, só sei que preciso louvar essa mulher de pé. Que mulher!

Lisi sacode a cabeça, confusa.


— Não entendi... — A voz morre quando Antonella chega mais
perto, uma ameaça letal nos olhos.

A advogada lhe lança um sorriso depreciativo.

— Seu nome é Antonella? — repete a pergunta.

— Não — refuta Lisi, assustada com o comportamento da


doutora.

— Então levanta essa bunda agora do meu lugar!

Porra! Não dá mais, estou perdidamente apaixonado por essa


mulher.

— Ah, eu... eu... — Antonella continua encarando Lisi, sem


piscar. — Estou indo. — Lisi se levanta correndo, batendo na mesa
e fazendo os talheres tilintarem.

Antonella encara o meu pai mais uma vez, abrindo um


sorrisinho, arrancando um grunhido do homem que está sendo
acudido pela esposa, então ela faz a volta na mesa e se senta ao
meu lado, por fim.

Permaneço em silêncio, encarando-a, como um idiota


apaixonado.

— Oi — murmura.

— Porra, mulher! Agora não tem volta, me sinto


irrefutavelmente apaixonado. — exaspero.

Ela sorri; pela primeira vez desde que eu a vi, um sorriso


sincero.

— Não espero menos que isso, pois também estou apaixonada


por você, Henrique Zion.
Eu quero agarrar Antonella aqui e agora, matar a saudade,
contar que eu parei de fumar por causa dela, que estou limpo, que
não há mais nada para temer.

— Querida, àquilo não foi nada educado. — Charlotte se


aproxima, encarando a advogada.

Antonella solta uma risada de escárnio.

— E não era para ser mesmo. — Dá de ombros. — Aliás, àquilo


de não merecer os filhos também serve para a senhora. — Charlotte
arfa, atônita. — Nunca vi uma mãe tão mais incompetente para
defender as proles... se meu pai fosse como o crápula aí, minha
mãe já teria voado no pescoço dele.

Charlotte coloca a mão no peito, os olhos com lágrimas


acumuladas, mas que ela não vai derramar, não considerando que
pode muito bem borrar a sua maquiagem.
— Eu não... eu não... — Ela não termina a frase, gira nos
calcanhares correndo para dentro de casa.

Encrespo meus lábios e bebo a minha cerveja, os braços


relaxados sob o encosto da cadeira.

— Ótima maneira de conseguir o apreço do sogro e da sogra —


zombo.

Antonella puxa o copo da minha mão, bebendo o líquido.

— Tem razão, acho que devo pedir desculpas...

Arqueio uma sobrancelha.

— Acho que não há necessidade.

Encaramo-nos em silêncio por alguns segundos, nossos


olhares dizendo mais do que palavras são capazes de significar.

— Eu parei de fumar — aviso, por fim.

Antonella fica surpresa por um momento, então sorri.

— Me sinto orgulhosa de você.

— E todo aquela papo sobre ser só diversão e de que não


podemos ser vistos juntos porque sou o juiz e blá, blá, blá?

Ela suspira.

— Só esquece toda essa merda. Sinto muito por ter sido uma
cretina. — Infelicidade turva os seus olhos — Eu te quero, Henrique,
estou apaixonada por você... — solta um grunhido. — Deus, nem
sei como é possível viver agora sem esse seu jeito irritante!

— Hum... continue, por favor.

Antonella revira os olhos.


— Eu só precisava de tempo, Henrique. E agora que eu o tive,
sei que podemos fazer isso... — Gesticula apontando para nós dois.
— Incendiar.

— Eu já disse que tu nasceu para mim, não? — Me levanto da


mesa, puxando Antonella comigo.

— Para onde vamos?

— Eu preciso te foder.

— Ah, eu com certeza não irei me opor a isso.

Solto uma pequena gargalhada, conduzindo-a para o único


lugar mais próximo e discreto que eu conheço. Enquanto passamos,
algumas pessoas lhe lançam um olhar enviesado, cochichando
sobre a sua ‘homenagem’ ao aniversariante do dia. Percebi também
que o local está um tanto vazio – ao menos desde que Antonella fez
a pequena apresentação.

Abro a porta da dispensa onde ficam os produtos de limpeza,


antes de nos trancar, vejo Lisi vindo em nosso direção, os olhos
ansiosos.

— Só para deixar avisado, peguei essa cretina que estava


sentada no meu lugar conversando com o seu pai, eles estavam
planejando o casamento dos dois e essas coisas.

Agarro a cintura de Antonella sentindo a minha testa franzir.

— Como assim?

— Bem, eu cheguei no exato momento em que eles estavam


fazendo planos. — Arrasta o indicador pela pequena abertura nos
primeiros botões da minha camisa branca. — Para o relacionamento
dos dois, a fim de impedir que ficássemos juntos.
Pisco para afastar a raiva que sinto ao ouvir o relato de
Antonella. O desgraçado do homem que consta na minha certidão
de nascimento como meu pai não possui nenhum escrúpulo quando
se trata de alienar a vida dos outros.

— Então, deixe-a ouvir que é tu que eu desejo, que é tu que eu


quero. — Aperto sua bunda, fincando os dedos na pele dura.

— É para já, excelentíssimo.

Grudo minha boca na de Antonella, unindo nossos lábios em


um beijo arrebatador. Nossas línguas brincam, unindo-se,
aumentando o tesão. Meus dedos tocam o cós do seu vestido,
puxando-o para cima, desnudando-a.

— Estava com uma porra de uma saudade dessas calcinhas —


murmuro contra o seu pescoço.

Passo um dedo sentindo a renda lisa do tecido fino, fazendo-a


resfolegar. A umidade no centro da calcinha não me surpreende.

— Eu vou foder essa bocetinha gostosa muitas e muitas vezes


hoje, doutora, mas, por ora, quero só matar a saudade.

Empurro a calcinha para o lado, tocando nos lábios vaginais,


passando um dedo por entre eles, espalhando sua lubrificação.

— Pare de brincar, Henrique! — clama.

Antonella leva as mãos até a minha calça, abrindo-a com


urgência, enfiando-se por debaixo do tecido apertado da minha
cueca boxer até segurar o meu pau com força.

— Eu também sei brincar, se quer jogar assim. — Um sorriso


atrevido delineia seus lábios.

— Desgraçada! — minha voz falha quando ela começa a me


masturbar.
Enfio meu dedo indicador em seu canal apertado e molhadinho,
circulando o clitóris com o polegar. Ela geme alto, batendo a cabeça
na porta enquanto rebola o quadril na minha mão.

Alguém bate na porta nesse exato momento.

— Henrique? — Reconheço a voz de Lisi.

Como uma verdadeira pervertida, Antonella amplia o sorriso,


agarrando o meu pau com mais força. Tento reprimir o gemido, mas
não consigo.

Mais batidas.

Antonella termina de baixar a minha calça, meu pau salta para


fora erguido, molhado, pronto para recebê-la.

— Me come. Agora. — ordena, sem pudor algum.

Retiro minhas mãos do meio das suas pernas, ela salta em meu
colo, prendendo as pernas na minha cintura, afastando-se somente
o suficiente para centralizar o meu pênis e então empurra toda a
extensão para dentro de si.

— Oh... — trinco o maxilar, jogando a cabeça para o alto.

Empurro Antonella até espaldar seu corpo contra a porta


novamente, penetrando-a em movimentos acelerados de vaivém.
Sua cabeça bate na madeira, causando um barulho oco. O ruído
provocado pelos nossos corpos se conectando aumenta conforme o
deslocamento do meu quadril para penetrá-la mais fundo.

Ela procura minha boca, colando os nossos lábios com a


mesma brutalidade com que os nossos corpos aglutinam.

Viramos uma massa unida de corpos, gemidos, suor, saliva e


paixão, uma avassaladora paixão.
Os estampidos causados por Lisi do outro lado se tornam
irrelevantes perto disso, perto do que Antonella me causa. O
sentimento é devastador, assola todos os meus sentidos.

Sinto seu interior me apertar e sei que ela está gozando, assim
como sei que está gritando, fincando as unhas nos meus ombros,
marcando a minha pele. Sem esperar, lhe faço companhia,
chegando ao ápice com ela.

Nossos corpos friccionam, unidos.

Mantemos a posição por alguns segundos, aguardando o


estado letárgico passar. Abro os olhos para encontrá-la me
encarando, os olhos com um brilho ímpar.

— Porra, eu te amo, mulher! — Beijo seu maxilar, sua


bochecha, sua boca.

— E eu amo você, Henrique Zion.

Se um dia estive no inferno, hoje estou no céu.

Encaro o longo processo de tráfico de drogas, composto por


oito volumes, que ocupa grande parte da minha mesa, assim como
da minha mente.

Solto um suspiro profundo, retornando os olhos para as linhas


intermináveis de denúncia, citações, intimações e demais ritos
processuais.

Meu celular vibra, piscando o nome de Charlotte na tela.


Eu venho lhe evitando, assim como venho evitando Lisi, desde
o aniversário. Talvez um dia eu me permita ter um relacionamento
agradável com a minha mãe, mas por enquanto, só quero distância
para manter a minha saúde mental intacta. Quanto a Lisi, Antonella
é bem reticente com a guria, e depois do que ela fez, confabulando
pelas minhas costas, sou adepto a sua versão. E quanto a Antônio,
ele nunca nutriu um sentimento fraterno por mim, portanto, não se
importa com a minha ausência, assim como eu não me importo com
a sua; não passamos de meros conhecidos dividindo o mesmo
sobrenome.

Jogo a caneta na mesa, desistindo de tentar me concentrar na


tarefa. Encaro a cadeira escorada na parede da frente que carrega
uma pilha de processos rosas. Com um sorriso bobo recolho a pilha
e me direciono até a sala do juiz da vara cível. Bato na porta e
espero, entrando somente quando escuto a sua voz.

— Henrique? — Vinicius retira os óculos de leitura, pousando-


os sobre a mesa, um vinco aparecendo em sua testa quando olha
para os processos em meus braços. — O que houve?

Coloco os processos na cadeira da frente, batendo as mãos na


calça para limpar a poeira.

— Preciso de um favor.

— Estou ouvindo. — Faz um gesto com a mão.

— Preciso que presida esses processos, pois estou impedido.

O vinco na testa de Vinicius se aprofunda mais.

— Por qual motivo?

— Minha namorada é advogada das partes, portanto, seguindo


o artigo 252 do Código de Processo Penal, estou impedido de atuar
nesses processos. — Encaro o amontoado rosa. — E espero que
tenha paciência porque ela é uma advogada bem... ativa. — Coço a
nuca.

Vinicius solta uma extensa gargalhada.

— Henrique Zion já foi fisgado?

Dou de ombros, fingindo irrelevância, acompanhando sua


risada.

— Espero que esteja feliz, rapaz! E não se preocupe, posso


presidir todos os processos da sua guria.

— Muito obrigado, Vinicius.

Esse era o único impedimento entre o meu relacionamento com


Antonella, mas agora que já foi tudo resolvido, podemos seguir
nossa vida em paz. E, enquanto isso, continuarei trabalhando
arduamente para conseguir o remanejo para Porto Alegre, uma
Comarca final, a Vara Criminal que meu irmão trabalhou.

ANTONELLA CAREGNATO

— Pai, pelo amor de Deus, isso tudo é um completo exagero!


— exaspero, analisando a mesa da minha sala de jantar abarrotada
das mais deliciosas guloseimas que ele sabe fazer. — Mas eu
agradeço mesmo assim.

Gael limpa as mãos em um guardanapo, observando Mikaela


terminar de arrumar o último bolinho que estava fora do lugar.

— Não é todo dia que a minha filha faz aniversário.

Reviro os olhos.
— Sabe que os convidados se limitam a nós, Henrique,
Fernanda e Victor, não é?

— Sei, e sei como Victor come feito um ogro faminto.

Solto uma gargalhada, colocando a mão na barriga por conta


do seu comentário hostil relacionado a Victor e seu buraco negro
vulgo estômago.

— Prontinho, agora está tudo perfeito. — Mikaela bate palmas,


animada pela decoração que passou os últimos minutos
organizando.

Sorrio para a mulher.

— Obrigada por isso, Mikaela, nem sei como agradecer.

Ela caminha em minha direção, dando um peteleco em meu


nariz.

— Não precisa agradecer, querida, tudo para vê-la feliz. —


Pisca.

Posso dizer que hoje somos amigas, ainda não tão íntimas,
mas estamos rumando para isso. Depois que eu parei para entender
o quanto ela faz o meu pai feliz, que não quer roubar o lugar da
minha mãe e, principalmente, que é uma pessoa exemplar, passei a
adorá-la.

Também estipulamos que uma vez por semana Henrique e eu


precisamos ir jantar com eles, assim como eles precisam vir jantar
conosco, dessa forma, apesar dos dias cotidianos corridos,
arranjamos um tempo para passar juntos.

A porta é aberta e vejo Henrique entrar; ao encarar a mesa farta


das guloseimas produzidas pelo sogro, abre um sorriso jovial. Ele,
até mesmo mais do que Victor, ama absolutamente tudo o que o
meu pai cozinha.
Henrique planta um casto beijo nos meus lábios.

— Em qual momento exatamente poderemos atacar a mesa?


— pergunta para Gael, abraçando a minha cintura.

— A hora que os outros chegarem, é claro. — Gael bufa.

Ele e Mikaela voltam para a cozinha, pois estão organizando o


restante das coisas que faltaram. Sozinhos, Henrique encara os
meus olhos, o sorrisinho cretino brotando nos lábios.

— Feliz aniversário, doutora. — Ergue a mão, estendendo uma


caixinha aveludada na altura dos meus olhos.

— Sem gracinhas, Henrique! — Pego o objeto, enquanto ele


levanta os braços fingindo rendição.

Desfaço o laço do embrulho, abrindo-a.

Ofego, aturdida.

A pulseira dourada é extremamente delicada, possuindo um


único pingente, uma rosa. Passo o dedo pela joia, a visão
embaçada pelas lágrimas que eu forço em manter nos olhos.

— É linda... — Minha voz soa embargada pela emoção.

— Não preciso falar o significado... espero que tenha gostado e


que sinta que ela estará sempre por perto, principalmente quando a
saudade bater.

Uma rosa, assim como a que tenho tatuada em meu corpo,


assim como as que ela amava.

— Ah, Henrique! — Me jogo em seus braços, inspirando


profundamente o seu cheiro. — Eu amei, obrigada.

Henrique aperta a minha cintura, colando sua boca na minha


em um beijo terno, apaixonado, afastando-se ao ouvir passos vindo
da cozinha.

— Tudo pela sua felicidade, doutora.

Ah, se ele pudesse compreender o quanto já me faz terna. Em


anos, esse é o primeiro aniversário que sinto vontade de
comemorar, que me sinto realmente feliz. Meu peito ainda comprime
uma dor absurda pela saudade da minha mãe, uma dor que jamais
irá embora, somente diminuir com o passar do tempo.

Henrique retira a pulseira de dentro da caixinha, colocando-a


em meu pulso direito.

— Pronto.

A pulseira é realmente linda e agora é a joia mais significativa e


importante que eu tenho. Embora eu saiba que mamãe estará
sempre comigo independente de ter objetos ou não, é bom ter algo
que me lembre dela, algo que faça eu me sentir assistida.

Acaricio a bochecha de Henrique, expressando sem palavras


tudo o que eu sinto, pois é assim que nos comunicamos, que nos
entendemos. Ele cola a testa na minha, beijando-a um piscar de
olhos depois.

A porta é aberta novamente e Fernanda entra com Victor em


seu encalço – e pela expressão enfezada no rosto da minha amiga,
ela não está nada contente com a companhia do homem.

— Feliz aniversário. — Me abraça, murmurando contra os meus


cabelos. — E sabe que eu te amo, mas se trouxer Victor no
aniversário do ano que vem eu estarei ocupada fazendo qualquer
outra coisa.

Solto uma extensa gargalhada.

— Obrigada.
— Nella, Feliz aniversário! Estou feliz por ti. — Victor olha para
Henrique parado ao meu lado. — Por vocês, na verdade.

Agradeço, retribuindo a eles todo gesto de amor e carinho que


estou recebendo. Me sentindo feliz e realizada. Completa.

Fernanda esteve comigo em todos os momentos, desde a


minha queda até mesmo a minha “falsa” subida. Victor fez parte do
processo, sendo uma figura crucial. Enquanto Henrique entrou para
me puxar, de fato, e amortecer o que a realidade causaria. Todos
eles são importantes, pois todos eles fazem parte de quem sou hoje,
da minha evolução.

Mas somente ele, o meu juiz bad boy, foi capaz de me acordar.

Henrique Zion é como uma tempestade, não a calmaria, pois é


contrário a ela. E era, sem perceber, justamente isso que eu estava
precisando. Uma tempestade para abalar as minhas estruturas e
mexer com os meus sentimentos.

Amando, lutando, negando e julgando nós incendiamos tudo,


restando somente a razão, compreensão e, acima de tudo, o amor.
Não sei nem por onde iniciar... mas acredito que eu deva
começar agradecendo aos nossos personagens por terem sido os
meus primeiros a me arrancar suspiros, risadas e lágrimas, muitas
lágrimas.

Finalizar um livro é um misto de sentimentos, a saudade, pois


eu acabo me apegando à história; e um misto de emoção, pois eu
finalmente consegui mais uma vez e finalizei outra obra. No entanto,
essa foi diferente de qualquer outra, foi mais profunda, mais íntima.

É sobre mim, é sobre você, é sobre nós que perdemos alguém


muito importante.

Enfim, acredito que moldamos a nossa personalidade através


de um conjunto de fatores ou pessoas. Dessa forma, tenho muitas
para agradecer por ser quem sou hoje:
Agradeço às mulheres que passaram pela minha vida e que
tornaram a minha infância uma experiência incrível.

Às que se foram:

Vó Sônia, obrigada por todo o amor. Obrigada por ser


inesquecível. Não há um único momento em que eu não sinta a sua
falta.

Vó Ana, obrigada por ter sido incrível e por me ensinar que, de


todos os sentimentos, o perdão é o mais lindo deles. Saudades
eternas.

Tia Sandra, obrigada por ter estado sempre presente e por ter
sido uma grande conselheira nos momentos mais sombrios. Você
faz tanta falta.

Aos que ficaram:

Meus pais, minhas irmãs e meu sobrinho/afilhado, é por vocês


e sempre para vocês.

Minha família materna, grande e escandalosa (risos), não tenho


palavras para descrever cada um de vocês, obrigada por todos os
natais memoráveis, obrigada por serem um bom pilar. E, apesar de
tudo, eu não trocaria nenhum (exceto alguns, é claro).

Minha família paterna, tia Ia e dinda Deborah, as mulheres mais


inteligentes que eu conheço. Sinto orgulho de ser sobrinha das
duas, vocês são incríveis!

Kevinn, sempre presente, sempre aturando os meus surtos,


desde picos de muita criatividade assim como bloqueios desta
mesma. Obrigada por tudo.

Às minhas assessoras, Mari Vieira @marivieira­_editoriais e


Andréia Idalgo @andreia_books, mulheres exemplares. Nunca me
cansarei de agradecer as duas, pois, sem vocês, minhas histórias
não seriam as mesmas.

Às minhas parceiras literárias: Aline @alinearjs; Ana

@amorlivrosesurtos; Ane @anebookstan; Ariana


@entre.romance; Camila @ja.me.li.em.tantoslivros; Carol
@caentrelivros; Dária @entreletrasefofocas; Elisângela
@arainhavermelhadaliteratura; Francielle @leiturasesonhos; Keyth
@amorlivrosesurtos; Luana @amigavel_livro; Luciana
@luresenhando; Marcela @infinito_ceu_de_livros; Nirvana
@viciolivroshot; Rayenne @amorcafelivros; Roberta
@divasdabetaa; Rafa @raffa_books.

E, por fim, a vocês, meus leitores, parte crucial de tudo isso.


Obrigada por me lerem, por me apoiarem e por estarem comigo em
cada obra. Obrigada pelas mensagens de carinho que me enviam,
pelas avaliações que depositam, pelos comentários nas minhas
publicações. Vocês são incríveis.

Gratidão!

[1] O chimarrão, ou mate é uma bebida característica da cultura do Cone Sul legada da

cultura indígena, produzido pela infusão da planta erva-mate moída em água fervente a
aproximadamente 70 graus Celsius, em uma cuia com uma bomba.
[2] grande
[3] algo muito chocante, que cause muito impacto
[4] Conhecido popularmente como pão francês, no Rio Grande do Sul é comum chamar de

“cacetinho”.
[5] Tchê é interjeição muito utilizada no Rio Grande do Sul, sendo usado no início ou final

de frases, para chamar a atenção. Tchê = pessoa, “cara”;


[6] Grenal é o duelo entre os clubes brasileiros de futebol Grêmio e Internacional.
[7] Rengo é o mesmo que algo torto ou empenado, enquanto cusco é um modo como os

gaúchos chamam os cachorros. Então um frio de renguear cusco seria o mesmo que muito
frio, tão frio que entortaria os cachorros.
[8] O squirt é o nome que se dá à ejaculação feminina e que ocorre num momento de

prazer.
[9] Os Centros de Tradições Gaúchas são sociedades civis sem fins lucrativos, que buscam

divulgar as tradições e o folclore da cultura gaúcha;


[10] Pilcha é a indumentária tradicional da cultura gaúcha, utilizada por homens e mulheres

de todas as idades. Portanto, pilchado é estar vestido a caráter com a vestimenta gaúcha.
[11] No Rio Grande do Sul é muito costumeiro comer ‘xis’, o qual corresponde a um

sanduíche enorme, prensado antes de ir à mesa, no qual entram queijo, presunto,


maionese, ovo, tomate, alface, milho e ervilha, além de um bife de carne moída.
[12] pessoa que tem experiência

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