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Esses Bad Boys do Barroco1 podiam tocar instrumentos como anjos, mas eles
estão determinados a fazer da minha vida um inferno.
Quando minha mãe ficou doente, os meus sonhos de uma carreira na música
implodiram. Isto é, até Madame Usher entrar na minha vida como um fantasma do
passado e me oferecer a chance de estudar na exclusiva Manderley Academy, uma
escola de música para os mais talentosos e ricos.
Eu deveria limpar os quartos, polir as teclas do piano e servir a ela e aos três
caras pretensiosos que governam está escola.
Eles sabem que sou uma séria candidata ao prestigioso Prêmio Manderley.
1Bad Boys do Barroco – Bad Boys of Baroque é um termo real que faz referência à pintores que
romperam o padrão de sua época e incluíram em suas obras temas sombrios, que despertavam no
espectador uma sensação de horror e fascínio.
Esses Musos Quebrados não estão acostumados a perder, principalmente para
uma inferior.
Aviso: Este romance de três garotos ricos mimados com segredos inquietantes e
a garota que se recusa a aturar suas merdas contém temas sombrios, uma casa
assustadora, um romance de segunda chance latente, angústia na academia, valentões
cruéis e sexo digno de desmaio.
Para Niccolò, Johann, Wolfgang e Franz –
Lugar Material.”
– Emily Dickinson, não é preciso ser uma câmara para ser assombrada
Bip Bip. Bip Bip.
O compositor suíço escreveu esta peça em memória de sua mãe, e era baseada
em cantos improvisados judaicos. A idéia era que, ao se perder na música, você se
aproximaria de Deus. Agora, eu sentia vontade de estrangular o grande bastardo no
céu pelo que ele estava fazendo com a minha mãe. Eu não estava tocando para ele.
Agora, eu tocava ao lado de sua cama de hospital, para uma plateia de uma
única pessoa.
Os médicos dizem que ela podia ouvir a música dentro do coma. E esta poderia
ser minha única chance de falar com ela, de atraí-la de volta para o meu lado.
Notas tristes ecoaram enquanto meu arco dançava sobre as cordas. O quarto
cinza de hospital ganhou vida naquele momento, as bordas estéreis lavadas sob uma
onda de lamento. Imaginei ver as sombras de outros que se sentaram nesta mesma
cadeira para chorar por seus entes queridos. Conjurei a dor deles e a tornei minha.
Alguém aplaudiu.
Meus olhos voaram para minha mãe, mas ela estava deitada na cama, imóvel.
A máquina apitava atrás dela. Então eu me virei.
“Bravo.” Uma mulher estava no canto da sala. Eu não tinha notado ela entrar.
Seu sotaque do Leste Europeu parecia tão fora de lugar neste hospital comum na
parte mais merda de Nova York. Essa não era a única coisa nela que era estranha,
um antiquado vestido até o chão em renda preta e linho se agarrava a sua figura
ampla, e ela segurava uma grande bolsa de tapete com fechos de ouro. O cheiro de
floral falso saía dela em ondas. “Você ainda é talentosa.”
Larguei o violino, zangada por ela ter se intrometido. “Esta é uma sala privada.”
A única indulgência que eu me permiti ter em todo esse show de merda, para que
pudesse lamentar, ter esperança e raiva, tudo em particular. E logo até isso
desapareceria, a menos que eu conseguisse mais dinheiro.
“Eu estou ciente. Mas desejo falar com você, Faye De Winter.”
Como essa mulher estranha sabe meu nome? Sua presença me puxou, o Déjà
vu ficando mais forte. Aquele cheiro e sua voz eram muitos familiares. Mesmo aquele
vestido preto despertava alguma lembrança, mas eu não conseguia imaginar onde eu
teria oportunidade de falar com uma mulher assim. Ela parecia ter se perdido no
caminho para uma convenção de fãs de Crepúsculo.
Eu não tinha visto Madame Usher da Manderley Academy desde que minha mãe
me tirou de suas aulas quando eu tinha nove anos. Ao lado de seu marido no piano,
ela havia sido uma violinista talentosa em sua época, mas agora dirigia um
conservatório de elite nas montanhas, oferecendo tutela especializada apenas para os
músicos mais excepcionais. Ela costumava vir à cidade para ensinar um punhado de
alunos super-ricos, crianças e adultos, inclusive eu e meu pai. Mas desde o
desaparecimento de papai, o nome dela era venenoso em nossa casa, nunca
pronunciado.
“Você era apenas um pedacinho de gente naquela época, mas você dominava
seu instrumento. A única pessoa que ouvi tocar melhor a Chaconne da Partita No. 2
foi Donovan.”
“Com licença?”
“Você não pode entrar no quarto de hospital da minha mãe e a acusar de ser
amarga. Eu também ficaria chateada se descobrisse que o marido que eu apoiei
através de uma educação musical cara estava transando com sua professora.”
“Uma linguagem tão suja.” Em vez de recuar, Madame Usher entrou na sala e
fechou a porta atrás dela. “Você deveria saber que eu o amava com uma paixão que
só reservava para a música. Meu marido era uma conveniência, pelo bem de nossa
carreira internacional, fazia sentido casar com Victor. Mas quando Donovan e eu
tocávamos, era como se fizéssemos amor por meio de nossos instrumentos.”
O sorriso nos lábios de Madame Usher fez meu sangue ferver. “Ele planejava
deixar sua mãe, e eu deixaria Victor. Devíamos fugir juntos. Mas então ele
desapareceu, e eu jamais senti tamanha dor, antes ou depois.”
Cadela.
Madame Usher continuou como se eu nunca tivesse falado nada. “Depois que
sua mãe tirou você das minhas aulas, fiquei de olho em você, Faye. Você pode pensar
em mim como um anjo da guarda, pairando no fundo, esperando o talento de Donovan
florescer dentro de você. Seu pai sempre acreditou que você um dia o superaria, mas
admito que tinha minhas dúvidas. Não aceito qualquer um sob minha tutela, e você
nunca foi séria sobre seus estudos, sempre correndo por aí com Dorien.”
Dorien Valencourt. Fechei os olhos, lembrando do garotinho que tinha sido meu
único amigo enquanto crescia. Dorien tinha aulas de piano com Victor Usher, mas
sempre formávamos duplas para conjuntos e recitais. Dorien era rico de uma forma
que minha família nunca poderia esperar ser, praticamente vivíamos na pobreza para
financiar a carreira de papai e minhas mensalidades, mas eu era muito jovem para
entender o abismo entre nós ou por que os outros garotos ricos me evitavam tão
abertamente. Eu só sabia que os olhos cinza-ardósia de Dorien brilhavam de alegria
sempre que eu aparecia na aula. Tínhamos sido os terrores da escola de música de
Madame Usher. O dia em que Dorien colocou sua iguana de estimação no piano e ela
saltou assim que Victor Usher se sentou no banco...
Não. Eu não conseguia pensar em Dorien agora, não depois de tudo. Essa dor
ainda cortava muito fundo.
“Dorien nunca levou nada a sério também, e ele se saiu bem,” eu retruquei.
Bip Bip.
“Faye, uma oferta como essa não pode ser levada em conta de forma leviana e
não será oferecida novamente.”
Não use o meu primeiro nome. Não somos, nem nunca seremos próximas. Faço
um gesto para a figura deitada na cama. “Ela precisa de mim.”
“Você não entende.” Madame Usher moveu-se para o final da cama, de pé sobre
minha mãe e olhando para ela com os lábios franzidos. “Não estou apenas oferecendo
a você um lugar em Manderley, mas a chance de um futuro. Espera-se que todos os
músicos que se formem sigam para uma carreira internacional impressionante. Você
não pode fazer isso amarrada a uma cama de hospital. Temos os meios para ajudá-
la.”
“Ajudar-me como?”
“Sua mensalidade será paga pelo fundo de doação do meu falecido marido.
Providenciarei seu quarto, alimentação, uma mesada para roupas e demais
necessidades. E mais importante, pagarei as dívidas médicas de sua mãe e a mudarei
para uma instalação mais avançada, mais próxima da escola, para que você possa
visitá-la nos fins de semana. Em troca, você estenderá seus serviços à escola.”
“Meus serviços?”
“Você vai cozinhar as refeições, manter a casa e os quartos limpos, garantir que
os instrumentos sejam guardados corretamente, esse tipo de coisa.”
Madame Usher acenou para o meu telefone na mesa de cabeceira. “Não vou
desenterrar esse infeliz incidente falando sobre isso em voz alta. Procure se você ainda
tem sua propensão para a morbidez.”
Ela se referiu ao fato de eu ter sido uma criança estranha. Eu era obcecada por
livros de terror e histórias de fantasmas. Ainda sou. Minha coisa favorita a fazer em
uma noite de sexta-feira era me enroscar na cama com mamãe e uma pilha de comida
gordurosa para assistir a um filme assustador. Eu sabia todos os filmes de cor, mas
nunca me cansava de me esconder debaixo das cobertas de fantasmas e monstros.
Madame Usher franziu a testa para o meu telefone. “Como você pode adivinhar,
fica difícil encontrar ajuda nova quando a imprensa aproveitou todas as
oportunidades de sugerir que a empregada foi assassinada. Por isso, fui inspirada a
procurá-la. Podemos ajudar uma à outra.”
Um caso de caridade.
Afundei na cadeira. O plástico rangeu quando cedeu sob o meu peso. Eu nunca
deveria ser um caso de caridade. Depois que papai desapareceu, levando todas as
nossas esperanças de viver de sua carreira musical com ele, mamãe jurou que nós,
as mulheres Winter, abriríamos nosso próprio caminho no mundo. Ela estava cansada
de trabalhar em turnos de sessenta horas como motorista de táxi para sustentar o
sonho de um homem. Ela voltou para a escola de negócios e construiu uma empresa
de relações públicas de sucesso desde o início. Depois de anos vivendo tendo que
regrar todos os gastos possíveis, finalmente tínhamos dinheiro. Nós nos mudamos
para uma linda casa em East Village. Mamãe pagou pelo melhor professor de violino
que o dinheiro podia comprar que não fosse Madame Usher. Eu fui para uma escola
preparatória chique onde era ignorada porque eu não era 'dinheiro velho', mas os
alunos eram todos uns merdinhas, então eu não dava a mínima. Tiramos férias em
lugares exóticos como Vietnã e Istambul. Não éramos mega ricas, mas vivíamos
confortavelmente. Não precisávamos de ninguém nem de nada além de nós mesmas.
Minha mãe era minha vida inteira. Eu não seria capaz de dizer adeus. Ainda
não.
E se isso significa me curvar e esfregar o chão para esta bruxa, apenas me chame
de Cinder-fodida-rella.
O sorriso que cruzou o rosto de Madame Usher era mais frio do que o inverno
ao que eu tinha acabado de sobreviver no meu apartamento de merda e sem
aquecimento. “Seu pai ficaria tão orgulhoso. Faye De Winter, bem-vinda à Manderley
Academy.”
Uma semana se passou desde que aceitei a oferta de Madame Usher. Durante
esse tempo, deixei o emprego de recepcionista em um hotel e trabalhei no meu último
turno no bar. Arrumei as coisas da mamãe e preenchi a papelada para que ela fosse
transferida para uma suíte de luxo em um hospital particular a uma hora de carro de
Manderley.
Equilibrei meu laptop nos joelhos enquanto me inclinava contra a parede nua
do meu apartamento, atualizando o site da escola um milhão de vezes, analisando as
imagens dos opulentos quartos vitorianos, grandes espaços de ensaio e jardins
extensos.
Mas nada me preparou para ver a Manderley Academy de perto pela primeira
vez.
Mas eu não deveria começar por aí. Eu deveria começar com a limusine.
Toquei a faca no meu bolso enquanto olhava para os dois lados da rua. Por
favor, cheguem aqui logo.
Um dos caras pulou do meio-fio e veio em minha direção, sua arrogância toda
profissional, seu sorriso inconfundível. Malditos. Era só o que me faltava.
Minha mente passou pelas minhas opções e estava apenas escolhendo uma rota
de fuga ideal quando uma limusine preta apareceu na esquina. O cara saltou para
trás quando os pneus bateram no meio-fio. O espelho lateral raspou ao longo da
lateral de um carro estacionado, e o veículo insano parou em frente ao meu prédio.
“Que porra é essa?” O cara do outro lado da rua gritou quando caiu de bunda
na vala. Seus amigos gargalharam, todos os quatro olhando para as janelas escuras
como se tivessem certeza de que algum rapper famoso estava prestes a surgir de
dentro.
Abracei meu estojo de violino no peito e balancei a cabeça antes de perceber que
ele estava aqui por mim.
“Uhm, sim. Certo.” Entreguei-lhe minha bolsa e ele a levou embora. Acomodei-
me em um assento de couro macio, descansei meu estojo de violino contra minhas
pernas e examinei o frigobar. Garrafas minúsculas de bebida lotavam as prateleiras
sob a tela sensível ao toque. Tinha até petiscos. Meu estômago roncou de desespero,
uma vez que me alimentar não tinha sido uma prioridade ultimamente. Enquanto a
maioria das crianças da minha idade estava lidando com o Freshman Fifteen (o peso
ganhado nos primeiros anos da faculdade) eu tinha perdido pelo menos dezesseis
quilos desde que mamãe ficou doente, não que isso tivesse feito muito estrago em meu
amplo traseiro. Eu geralmente comia um prato de batatas fritas ou nachos no bar,
mas essa seria minha única refeição do dia. Peguei uma barra de chocolate e a mordi,
deixando o caramelo pegajoso adocicar a minha língua.
“Você gostaria de dizer adeus aos seus amigos?” O motorista perguntou quando
ele deslizou em seu assento, indicando os caras na esquina.
Abaixei a janela e mostrei meu dedo médio para aquele que se aproximou de
mim. “Eles sabem que vou sentir falta deles.”
Não mesmo.
“É uma longa viagem, e eu não quero ter uma conversa pelo interfone como se
eu fosse a Duquesa de York. Nós somos a ajuda contratada, Harrison, temos que ficar
unidos.”
“Há quarenta e três anos eu trabalho para a família Usher.” Harrison estufou o
peito com orgulho. “Assim como meu pai antes de mim. Eu cresci na casa, correndo
pela floresta com Victor Usher. Nós éramos amigos de infância antes dele se tornar o
dono da casa, mas ele sempre foi bom para mim. Ele disse que eu teria um emprego
com a família pelo tempo que quisesse.”
Eu não posso imaginar como seria viver e trabalhar na mesma casa, ano após
ano, por toda a vida. Eu era como minha mãe, cujo sangue mexicano ganhava vida
quando ela viajava. A música deveria ser minha maneira de ver o mundo. Agora, seria
o laço em volta do meu pescoço. E Madame Usher era meu carrasco. “E quanto a
Madame Usher?”
“Perdoe-me, senhorita. Eu não deveria falar mal da Madame. Ela permitiu que
eu ficasse depois que Victor morreu no ano passado. Essas casas antigas não são
mais muito comuns, e eu teria dificuldade em encontrar um novo emprego de
jardineiro. Eu provavelmente limparia grama em um grande campo de golfe.” O olhar
horrorizado no rosto de Harrison me disse exatamente o que ele pensava de tal
mudança de carreira.
“Sim, sim, eu conhecia. Clare... uma menina tão doce.” Os dedos de Harrison
apertaram o volante. “Fui eu que… na escada… estava consertando uma vidraça
quebrada na biblioteca quando ouvi o grito. Nunca vi nada tão horrível em todos os
meus anos de vida. Seu pescoço todo torcido, seus olhos arregalados e sua boca aberta
como se ela ainda estivesse gritando.”
Ele parecia tão certo disso que um calafrio percorreu minha espinha. Que as
trombetas soem, no que eu me meti? “Diga-me o que aconteceu.”
“Posso dizer que você é um cavalheiro da mais alta ordem.” Eu sorri, e Harrison
sorriu e estufou o peito. Notei uma aliança de casamento em seu dedo, sujeira
manchada entre a delicada filigrana. O sorriso desapareceu de seu rosto enquanto ele
continuava sua história.
“Uma noite, encontrei Clare na despensa, soluçando. Ela não quis me dizer o
que estava errado, só que ela brigou com seu namorado. Dois dias depois, ela estava
morta. E ele estava lá, bajulando o corpo dela, chorando por ela ter caído.”
“Você acha que ele a empurrou?”
Harrison assentiu. “Eu sei que ele a empurrou. Aquele bastardo ainda está lá,
desfilando como se fosse um presente de Deus para a música. Guarde minhas
palavras, Srta. Faye, mantenha-se alerta perto desses alunos, especialmente os
rapazes. Todos eles têm paus enfiados tão fundo em suas bundas que poderiam
acená-los como pirulitos.”
Não seja ridícula. Esta é a vida real, não um filme de terror. A polícia teria
interrogado esse cara. Se eles o liberaram, devia haver uma boa razão.
Então, o peso da doença da minha mãe e meu acordo com Madame Usher
caíram sobre meus ombros. Eu deslizei de volta para a limusine e fechei o teto solar.
Passamos por algumas cidades pequenas e uma cidade maior, onde Harrison
apontou para o reluzente prédio do hospital na colina. “Sua mãe já está instalada em
seu novo quarto. Ela tem uma bela vista para o rio. Cuidei de todos os detalhes.”
Justamente quando eu pensei que a estrada não poderia ficar mais estreita, ela
se alargou em um caminho circular, cercando uma fonte seca, o Cupido olhando para
mim por trás de sua lira em cima de um pedestal coberto de ervas daninhas. Além
dele, tive meu primeiro vislumbre da Manderley Academy.
Ele parece bom o suficiente. Um pouco estranho, mas ele vive no meio do nada
atendendo músicos ricos e esnobes que estacionam seus carros esportivos chiques
debaixo das árvores. Aposto que não são eles quem os mantêm tão limpos.
Mudei o estojo do violino para a outra mão para poder segurar a balaustrada de
ferro enquanto subia os degraus. De perto, pude ver que a casa era tão pobre quanto
o terreno. Faltavam telhas no telhado e ervas daninhas entupiam os canos de
drenagem e serpenteavam pelas paredes de pedra em ruínas. Era estranho o fato de
a Manderley ser tão prestigiada, aceitando apenas um punhado de alunos todos os
anos, e ainda assim o lugar estava se deteriorando assim. Estava muito longe do
polimento que mostrava na propaganda. Inspecionei a madeira podre dos degraus
enquanto subia. Não parecia estruturalmente sólida...
PORRA.
A prancha rachou sob minha bota. Meu estojo de violino voou quando eu caí
direto pela varanda. Eu me joguei para frente, estendendo minha mão para me
segurar antes de cair de cara na porta.
Eu estremeci quando olhei para a minha perna enterrada na varanda quase até
minha coxa. Meu pé ficou solto na escuridão abaixo e, por um momento, imaginei
todos os ratos e bichos que poderiam estar lá embaixo, e um arrepio me percorreu.
Uma mordida pungente ao longo da minha panturrilha me disse que eu tinha raspado
uma tonelada de pele nas bordas irregulares de madeira podre.
Puta merda. Tanto esforço para uma boa primeira impressão e agora isso.
Eu lutei para libertar minha perna, mas eu não tinha a força na parte superior
do corpo para me empurrar para cima. Olhei para trás, esperando que Harrison ainda
estivesse por perto, mas ele já tinha levado a limusine para algum lugar. Joguei minha
cabeça para trás, pronta para gritar por ajuda.
Uma longa corda de veludo pendia do lado da porta, estendendo-se até os céus.
Eu me contorci e bati e raspei e finalmente consegui enrolar meus dedos ao redor do
nó na ponta. Dei-lhe um puxão forte, meio que esperando que o teto desabasse em
cima de mim. Em vez disso, um gongo profundo soou de dentro da casa.
A porta se abriu. No limiar estava a garota mais bonita que eu já tinha visto.
Sua voz escorria como mel de uma colher, doce e estival. Ela parecia cantar
enquanto falava. Mas por baixo de toda aquela doçura açucarada havia um ferrão que
causaria sérios danos se eu a antagonizasse. Aparentemente, apenas minha
existência era o suficiente para trazer à vista as garras dessa garota.
Dei de ombros, como se não fosse grande coisa, como se eu ficasse presa em
varandas todos os dias. “Eu te disse, eu sou uma estudante aqui, então...”
“Está vendo isso?” Ela deu um passo para trás, apontando para o grande arco
de pedra, painéis de madeira polida e aparador antigo no corredor atrás dela. “Tudo
isso é para os alunos que realmente podem pagar as mensalidades. Você pode estar
assistindo as nossas aulas, mas você não é uma de nós. Você é uma serva. Use a
entrada dos servos.”
“Mas...”
Babaca.
Idiota.
Acho que estou sozinha. Bem, foda-se, então. Que seja. Eu estava sozinha há
muito tempo. As mulheres De Winter cuidavam de si mesmas. Trabalhei em dois
empregos, me formei no ensino médio com um GPA de 3,8 e aperfeiçoei minha peça
no Sibelius (o programa de edição musical) para os exames de violino, tudo isso
enquanto administrava o dinheiro da minha mãe e lidava com seu inútil conselho de
administração e estava ao lado de sua cama em todas as oportunidades que tinha. Eu
tinha feito tudo isso, então é claro que eu poderia sair dessa porra de varanda.
Agarrei a corda de veludo novamente. O dong soou dentro da casa, mas imaginei
que ninguém mais viria. Eu me inclinei contra a corda, sentando o máximo que pude
na varanda e apoiando minha outra perna contra a porta enquanto me levantava.
Doooong.
Peguei meu estojo de violino e manquei pela lateral da casa, minha perna
ardendo. O sangue fervia sob minha pele. Aquela loira nem me deu um segundo para
me explicar. Ela podia ver que eu precisava de ajuda, e bateu à porta na minha cara
mesmo assim. Agora eu tinha que entrar e servir sua comida e limpar sua bagunça.
Mas acho que tenho que me acostumar a ser tratada assim, afinal.
A vibração mais leve nas teclas fazia a peça soar sem esforço, mas eu a reconheci
imediatamente como Liszt, La Campanella. Liszt é um dos compositores mais difíceis
de tocar, já que o bastardo podre adorava criar composições complicadas que
pareciam desafiar as leis da física. Se você cometesse alguns erros, a coisa toda soava
uma merda completa, então era corajoso adicionar uma peça como essa ao seu
repertório.
Este músico não estava apenas tocando Liszt, ele estava criando magia com
Liszt. Os saltos na composição carregavam consigo uma paixão selvagem que evocava
o estilo pouco convencional do músico, mas com uma ludicidade completamente
única.
Eu não pude evitar. Larguei meu violino e pisei no canteiro elevado do jardim,
esticando o pescoço para espiar pela janela. A música me parou, agarrando meu
coração no meu peito. Eu precisava ver quem poderia tocar assim.
A pianista era uma pequena coisinha, tudo sobre ela era leve e sem esforço,
seus olhos fechados, suas feições serenas. Essa garota apenas canalizou o tipo de
emoção crua que fazia lágrimas brotarem dos cantos dos meus olhos...
“Srta. De Winter,” uma voz afiada interrompeu meu devaneio. “O que você pensa
que está fazendo?”
Eu pulei com a voz, batendo minha cabeça no lintel de pedra. Vergões vermelhos
dançaram na frente dos meus olhos.
Pelo menos agora não estou mais pensando na dor na minha perna.
Esfregando minha cabeça, me virei para encarar Madame Usher. Ela estava no
caminho atrás de mim em outro de seus amplos vestidos de renda, este preto e roxo,
com as mãos nos quadris e uma expressão de desgosto absoluto em seu rosto pintado.
“Um simples ‘sim, Madame Usher’ seria suficiente.” Ela me acertou com aquele
sorriso de novo, aquele que prometia dor se eu não obedecesse.
As palavras tinham gosto de lixa na minha língua. Eu odiava ter que me curvar
e atender a essa mulher, a cadela que seduziu papai com todas as suas promessas
bonitas, deixando mamãe quebrada e eu sem um pai.
“Seguimos um código de vestimenta rigoroso aqui. Eu sei que você tem vivido
‘na periferia’, mas seu estilo ‘moradora de rua’ não será tolerado aqui.”
Do que ela está falando... Ah, certo. Olhei para o meu jeans rasgado e imundo,
que agora ostentava algumas folhas mortas e manchas de orvalho do jardim coberto
de vegetação. “Eu caí em uma tábua podre na varanda. Eu esperava me trocar antes
de ver você...”
Seu comportamento não fazia sentido para mim. No hospital, ela alegou que
ainda amava meu pai. Ela ficou impressionada com o meu jeito de tocar. Ela até usou
a palavra ‘talentosa’. Mas agora ela parecia quase irritada por eu estar aqui.
Para uma mulher magra, Madame Usher andava rápido, com propósito. Eu tive
que correr para acompanhá-la, o que só fez minha perna e minha cabeça doerem
mais. Ela me conduziu por um caminho largo e por um pequeno portão de ferro até
uma horta cheia de ervas daninhas. Uma porta estreita de madeira quebrava a
monotonia da parede de tijolos. Madame removeu um molho de chaves de uma argola
de metal e selecionou uma, girando a velha fechadura até ouvir um clique.
A última porta levava a uma cozinha de teto baixo. Uma parede inteira estava
ocupada por um fogão de madeira antiquado com panelas e frigideiras de ferro
fundido, suspensas em um equipamento que não ficaria deslocado em uma masmorra
sexual. Armários de mogno escuro forrados ficavam dos dois lados, com tampos de
madeira desgastados e marcados pelo tempo. Uma janela estreita acima da pia dava
para o jardim dos fundos, para as dependências, e para um riacho borbulhante e o
vale da montanha além.
No centro da sala, uma mesa de fazenda com bancos gemia sob o peso de, pelo
menos, dez caixas. Moscas zumbiam preguiçosamente ao redor da pilha, e notei
algumas manchas vermelhas estranhas no canto do papelão, vazando na mesa.
Ela fungou. “Estive um pouco ocupada com os preparativos para o ano letivo, e
com a polícia bisbilhotando a casa, fazendo perguntas desagradáveis sobre o acidente
de Clare. Além disso, os outros alunos não sabem cozinhar um ovo. Eles têm
preocupações mais relevantes. Aqui estão as suas chaves.”
O pavor tomou conta do meu estômago quando Madame Usher me levou para
fora da cozinha e por um corredor estreito para emergir de uma pequena porta sob
uma grande escadaria. A escada onde Clare caiu para a morte.
Eu estava no hall de entrada que tinha visto antes. Cortinas grossas de veludo
pendiam das janelas da frente, permitindo apenas uma lasca de luz opaca através das
aberturas. Padrões saltaram para mim do tapete floral e das molduras douradas para
as decorações pintadas nos móveis de madeira pesada e o papel de parede vitoriano
desbotado. Desse ângulo, dei uma boa olhada nos retratos que se amontoavam nas
paredes. Professores anteriores, alunos e patronos da escola, a julgar pelo número de
perucas e instrumentos extravagantes.
“O que aconteceu aqui?” Apontei para o quadrado vazio. “Alguém começou uma
carreira no jazz maligno e teve que ser excomungado?”
“O retrato foi enviado para reparos.” Madame Usher começou a atravessar o
saguão de entrada, suas saias varrendo atrás dela. “Não se preocupe com isso. Me
siga.”
“Temos três salas de prática no piso térreo. Estas devem ser compartilhadas
entre todos os alunos.” Madame abriu uma porta larga para revelar um salão azul-
celeste. Cadeiras de veludo cobriam as paredes, voltadas para dentro para estantes
de música espalhadas e um segundo piano de cauda, um Bösendorfer 3 , pelo que
parecia. Uau, eles só fazem algumas centenas desses por ano. Madame Usher devia
estar muito cheia de dinheiro. “Esta é a Sala Azul. As outras, na torre, são as Salas
Amarela e Vermelha, e estão atualmente ocupadas. Você pode reservar vagas nas
folhas de inscrição localizadas no quadro de avisos do corredor.”
“Uau.” Eu tinha visto as fotos no site, mas estando aqui pessoalmente, cercada
por todos os móveis pesados e adornos dourados... Tudo que eu conseguia pensar era
em quanto tempo levaria para virar pó.
“Caramba, valeu.” Porque a única coisa que vale a pena em mim é o fato de eu
ser filha do meu pai.
Ela me deu um olhar fulminante, mas continuou sem reconhecer minha reação.
“Essas salas devem ser mantidas imaculadas. Se o trabalho doméstico não estiver de
acordo com os nossos padrões, você não poderá continuar aqui como uma estudante.
Vou lhe mostrar os demais quartos.”
Assim que o pensamento me ocorreu, eu sabia que era verdade. Eu não tinha
ideia do porquê, mas Madame Usher queria que eu falhasse. Por que eu estava aqui,
então? Ela não tinha que me convidar para sua escola rica ou pagar pelos cuidados
da mamãe. Ela poderia simplesmente ter ignorado a recomendação da minha
professora, fingindo que nunca soube que eu ainda tocava violino. Então, qual é o
intuito dela?
Subimos para emergir no final de outro corredor longo e largo. Em cada porta
havia uma placa dourada exibindo o nome e o instrumento de cada aluno.
A voz de Madame Usher recuou para o fundo da minha mente. A porta do outro
lado do corredor estava entreaberta. Eu pisei na frente dela, e a curiosidade atraiu
meu olhar para dentro.
Esparramado em uma enorme cama de dossel com cortinas azuis estava o cara
mais bonito que eu já tinha visto. Ele tinha a minha idade, mas o olhar em seus olhos
cinza-ardósia era mais velho e pingava pecado, como se ele tivesse visto alguma coisa
ruim e fosse responsável pela maior parte dela. Lábios macios em um corte cruel
adornavam seu rosto enquanto olhos assombrados piscavam sobre meu corpo.
Eu quis me virar, mas meu olhar desceu por seu peito nu, pela tinta que se
curvava em torno de seus peitorais, pelos braços impossivelmente esculpidos até suas
mãos, onde tatuagens de clave de sol dançavam nos dedos longos.
Meu amigo de infância, o menino que arrancou meu coração e pisou nele com
tanta força que eu nunca o abri para mais ninguém, me lançou um sorriso astuto
enquanto seus dedos acariciavam o pau mais enorme que eu já tinha visto.
Dorien Valencourt.
Isso é impossível. De todos os lugares do mundo inteiro, como ele poderia estar
justo aqui? Sem chance.
Minha garganta secou. Tento desviar os olhos, mas eles se fixaram naquele pau
como se eu fosse um radar e ele um submarino alemão, um navio rígido saqueando
os oceanos…
Eu pigarreio.
Dorien deslizou seu corpo perfeito para fora da cama. Ele não se preocupou em
jogar uma toalha sobre si mesmo ou vestir uma camisa ou qualquer coisa assim,
porque o universo nunca era assim tão gentil comigo. Enquanto ele caminhava em
direção à porta, minha mente vacilou entre o passado e o presente.
Eu com os meus olhos injetados de vermelho por causa das noites sem dormir,
sentada naquela cadeira de plástico desconfortável no quarto de hospital da mamãe,
olhando com atenção extasiada para a tela do meu computador enquanto passava uma
montagem do show de Dorien em sua última turnê com o Broken Muse. Meu corpo
respondendo com fogo e chamas enquanto aqueles mesmos dedos tatuados dançavam
sobre as teclas.
Os outros dois músicos que tocavam com Dorien também eram quentes como o
pecado, mas isso só piorava as coisas. Um violoncelista afro-americano desfiava seu
arco nas cordas, suas trancinhas de contas balançando em torno de sua cabeça
enquanto ele contorcia a música à sua vontade. Ele virou a cabeça para a câmera, e no
instante em que meus olhos encontraram seus orbes cor de meia-noite, senti um chiado
percorrer minha espinha, um ímã me puxando para a tela, para um mundo distorcido
onde um cara como aquele notaria uma garota como eu. Então a câmera se voltou para
o violinista, uma beleza de cabelos brancos com olhos de puro gelo, cujos dedos longos
se enrolavam nas cordas com uma graça tão requintada que uma lágrima não
derramada espremeu os meus olhos. E eu pensando que já tinha chorado todas as
lágrimas que tinha em mim...
“Fique fora do meu quarto privado, lixo.” A voz de Dorien era como música em
meu corpo, tocando-me em todos os lugares certos, mesmo quando ele me insultava.
A porta bateu na minha cara, e o som ricocheteou pela casa como um tiro. Do
lado de fora do quarto, ouvi um arco guinchar nas cordas e alguém xingar.
O velho Dorien, meu melhor amigo de infância, era um palhaço total. Ele estava
sempre pregando peças e tentando me fazer rir quando eu ficava muito séria. Ele
adorava fazer as pessoas rirem, fazê-las adorarem ele.
O que o mudou?
Dorien não precisava da Manderley. Ele já tinha uma carreira internacional. Ter
o programa de prestígio em seu currículo podia parecer bom, mas também ou seria
uma turnê internacional como solista ou uma turnê com os outros dois gatos do
Broken Muse, e ele não podia fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Aquele olhar
morto e assombrado em seus olhos dizia muito: Ele não queria estar aqui. Então, por
que estava?
Aposto que são os pais dele. Mesmo quando Dorien agia como um merdinha
completo, ele amava a música, e ele queria muito se sair bem. Seu pai o empurrava
com força, e sua mãe sempre se sentava no fundo da sala, seus olhos queimando em
suas costas enquanto ela memorizava cada movimento seu para criticar mais tarde.
Os dois eram super estranhos, eu fui à casa deles uma vez para o aniversário de
Dorien, e o pai dele nos fez brincar nesta sala que não tinha móveis e apenas uma
caixa de blocos de madeira, mas mamãe disse que era assim que as pessoas vindas
do dinheiro velho agiam. Eles pareciam gostar de mim, embora fosse principalmente
a fama de meu pai que os interessava. Eu sempre me perguntei se eles eram a razão
pela qual Dorien terminou nossa amizade, mas eu não queria inventar desculpas para
seu comportamento idiota...
Com um sobressalto, percebi que Madame Usher havia parado em seu caminho.
Eu derrapei no tapete pesado em uma tentativa de parar meu impulso antes de bater
nela. Consegui, mas isso me desequilibrou um pouco. Minha mão agitada resvalou
em um vaso, derrubando-o da beirada do suporte. Eu o alcancei e o peguei antes que
ele batesse no chão.
“Tenha cuidado.” Madame Usher apontou para uma pesada porta de madeira
no final do corredor com uma placa de PROIBIDO ALUNOS gravada nela. “Eu moro
na ala leste da casa. Nenhum aluno deve entrar em minhas salas privadas a menos
que seja convidado. Desobedecer a esta regra resultará em expulsão imediata. Não
encare essa ordem levianamente, pois já dispensei alunos por isso antes.”
Eu balancei a cabeça.
Um milhão delas, mas nenhuma que eu quisesse perguntar a ela. “Onde é meu
quarto?”
Subimos outro lance de escadas, tão íngremes e estreitas que tive que abraçar
o estojo do violino no peito para caber. Saímos em um pequeno patamar, as paredes
de madeira inclinadas para dentro em um ângulo tão íngreme que tive que me abaixar
enquanto subia. Madame Usher puxou uma corda e uma única lâmpada nua
iluminou o espaço.
Estávamos obviamente no sótão da casa. Diante de mim havia três portas.
Presumi que, quando o prédio era usado como casa senhorial, os criados moravam
nesses quartos. Parecia apropriado então que me fosse dado um. Madame Usher
encontrou outra chave em seu molho e a enfiou na fechadura da porta do meio.
Enfiar-me no sótão era obviamente outra parte do plano de Madame Usher para
me humilhar, mas ela teria que fazer melhor. O quarto era realmente muito legal, e
tinha mais personalidade do que as suítes luxuosas do andar de baixo. Coloquei meu
estojo de violino ao lado da cadeira embaixo da janela. “Obrigada.”
Fiquei ali, esperando que ela fosse embora. Quando ela não o fez, eu virei minha
mochila em cima da cama e peguei as roupas que eu enfiei apressadamente dentro,
tirando meus dois vestidos de show para pendurar na prateleira ao lado da janela, e
um conjunto extra de jeans para me trocar.
“Me instalando.”
“Não há tempo para isso.” Ela olhou para o relógio. “Já passa das dez.
Almoçamos pontualmente às onze. Você precisa voltar para a cozinha.”
Depois de uma hora de picar e refogar freneticamente, preparei um almoço
razoável com o que ainda podia ser usado na geladeira e na despensa, medalhões de
cordeiro incrustados de ervas, uma salada quente de chouriço e batata-doce e um
pouco de pão amanhecido que cortei em fatias, em croutons e grelhados com um
pouco de alho, e servidos com uma cebola caramelizada em conserva que encontrei
nas prateleiras. Mamãe pode não ter sido uma idiota virtuosa como meu pai, mas eu
aprendi muito com ela, ou seja, como arrasar em uma cozinha vazia.
Levar os pesados pratos de comida para a sala de jantar era outra questão. Era
mais uma chance para a minha coordenação natural desequilibrada brilhar. Quando
contornei o canto da escada, um dos croutons escorregou do prato e caiu com o lado
da conserva para baixo no tapete do corredor.
Excelente. Isso vai deixar uma mancha. Preciso lembrar de limpar mais tarde.
Conversas e risadas ecoavam nos tetos altos quando entrei na sala e dei uma
primeira olhada em meus colegas.
Era o violinista dos vídeos de Dorien, eu tinha certeza. Ele e a garota pareciam
praticamente idênticos, o mesmo cabelo prateado perfeitamente liso, olhos cativantes
e maçãs do rosto salientes. Enquanto ela tinha a aparência de um duende, ele era um
elfo escuro, do tipo que atrai você para fora do caminho em um círculo mágico onde
faria amor selvagem com você e depois cortaria sua cabeça e sugaria seu sangue. Ele
colocou a mão sobre a de sua irmã, seu olhar gelado me varrendo com uma ameaça
que deixava claro que ele era tão perigoso quanto bonito.
Do outro lado da mesa, em frente aos gêmeos, estava uma garota com curvas
como as minhas (talvez pudéssemos ser amigas...), sua pele de um marrom profundo
e rico, e seus olhos brilhando com malícia. Ela não era afro-americana, mas não
consegui identificar suas feições. Ela usava uma saia de couro apertada e uma regata
preta que exibia tatuagens pretas giratórias em seus ombros e mal cobria seus seios,
com uma atitude que dizia ao mundo para ir se foder imediatamente. Ela abaixou a
cabeça para falar com um cara que eu imediatamente reconheci como o terceiro Muso
do vídeo de Dorien. Ele só poderia ser Titus Thibodeaux. À fraca luz das velas, ele era
a cara de seu pai Amos, exceto que os olhos esfumaçados de Titus, as bordas tingidas
de meia-noite, não compartilhavam nada do calor do maestro. Ele parecia ter passado
o dia em funerais consecutivos com uma rápida parada para um tratamento
desagradável de canal.
Eu endureci, minhas mãos tremendo. Ele vai falar comigo? Ele vai me levar para
o meu lugar como um cavalheiro e...
Sem armário para mim, então. Contando isso como uma vitória, puxei a única
cadeira vazia, ao lado da que Dorien havia desocupado. Seis cabeças se viraram para
mim. Seis pares de olhos me encararam.
“Só devia haver seis alunos,” Titus interrompeu, sua voz profunda retumbando
sobre meus ossos. Tranças caíram sobre seus ombros enquanto ele agarrava a carne,
por pouco não conseguindo arrastar o cabelo na comida. “Mestre Radcliffe nunca
ensina mais de seis alunos, e Victor não está mais aqui para ensinar piano, então...”
“O Mestre aceitou Faye como um favor para mim, pois precisamos de ajuda
doméstica. Seu pai é Donovan De Winter, meu maior amor.” Os olhos de Madame
ficaram vidrados e, por um momento, ela se perdeu em alguma lembrança de meu
pai. Engraçado, eu também, embora duvide que tenhamos visto as memórias da
mesma maneira.
“Ele era meu pai,” eu a corrigi. “Agora ele está meio que indisponível.”
Do outro lado da mesa, a garota de pele morena bufou. Madame Usher
continuou, não deu nenhuma indicação de que me ouviu. “Se Faye tiver um pingo do
talento dele, ela será uma séria candidata ao Prêmio Manderley.”
Isso era o oposto do que ela me disse, mas era óbvio pelos seis olhares hostis
ao redor da mesa que Madame queria que eu fosse odiada aqui.
Dorien distribuiu as taças para todos, exceto para o gêmeo, aquele de olhos cor
de safira. Era estranho beber álcool na hora do almoço, no que era tecnicamente um
dia de escola, quando aposto que a maioria de nós ainda tinha menos de 21 anos,
mas eu estava na escola preparatória há tempo suficiente para saber que havia regras
diferentes para os ricos e esnobes. Quando Dorien se dirigiu ao meu copo, ele tinha
terminado a garrafa, então teve que abrir outra. Ele mexeu em algum aerador na
tampa, então encheu meu copo até a borda, o dobro da quantidade de álcool que ele
deu aos outros.
“Por que você não economizou o esforço e me entregou a garrafa inteira de uma
vez?” Minha voz escorria com sarcasmo enquanto eu tentava não derramar o vinho
sobre a toalha de mesa branca imaculada.
“Aposto que é assim que vocês bebem vinho no Bronx.” Dorien deixou a palavra
escorrer de sua língua, a atitude explosiva me dando um tapa no rosto. Interessante.
Como ele sabia onde eu estava morando? Quando o conheci, morávamos no East
Village.
Sem mencionar o fato de que estragar um rosto tão perfeito era um pecado
capital.
Lembre-se, você não está aqui por si mesma.
Foi preciso muito autocontrole para abrir meu punho e segurar meu copo como
se estivesse grata por ele ter me servido. Contanto que eu continuasse na linha,
mamãe teria o melhor tratamento médico que o dinheiro poderia comprar. Talvez
esses novos especialistas sofisticados pudessem descobrir o que os doutores
Frankenstein do último hospital não conseguiram, e finalmente trazê-la de volta para
mim.
Agora que eu sabia que Madame Usher me preparou para falhar, eu estava mais
determinada a ficar, vencer e descobrir exatamente qual era a intenção dela. Por que
ela estava tão determinada a me ter aqui se ela também queria que eu falhasse? Por
que se oferecer para ajudar minha mãe quando ela tentou roubar seu marido? E por
que agora?
Minha perna arranhada doía, e eu sabia que tinha arrastado teias de aranha
pelo tapete que ficaram presas na minha calça. Sob o escrutínio de todos, eu me senti
desmoronando. Todos usavam roupas de grife e sorrisos de vidro lapidado. Ivan
passou as mãos por um corte de cabelo emplumado que provavelmente custou mais
do que um mês de aluguel do nosso apartamento no Bronx. A garota de pele morena,
que eu imaginei ser Aroha (isso era havaiano? Eu não acho que poderia perguntar)
usava vários anéis grandes em seus dedos, os diamantes brilhando sob as velas
bruxuleantes.
Os olhos de Dorien passaram por mim, tirando minha roupa com sua mente,
da mesma forma como sua música costumava desnudar minha alma. Arrastei-me no
meu lugar ao lado dele, completamente nua. Ele sorriu, uma expressão maldosa. Ele
parece não ter gostado do que viu.
Um silêncio constrangedor caiu sobre a mesa enquanto todos bebiam seu vinho
e olhavam para a comida como se dela pudesse brotar tentáculos e devorá-los todos.
Madame Usher franziu a testa para minha taça de vinho até que eu peguei a dica e
bebi. Tinha um gosto ruim, como maçãs podres encharcadas. Rezei para que ela não
esperasse que eu bebesse a coisa toda.
Finalmente, Mestre Radcliffe se inclinou para frente e pegou o prato de cordeiro.
“Isso parece delicioso.” Sua voz tinha um tenor melodioso, como se ainda estivesse
dentro de uma música. Ele raspou três medalhões em seu prato, junto com uma
generosa porção de salada. Isso pareceu ser uma deixa tácita para todos os outros
avançarem. Esperei até que todos os alunos tivessem comida em seus pratos antes de
me inclinar para me servir. Eles não tinham me deixado nenhum cordeiro (bastardos
gananciosos), então eu enchi meu prato de salada e pão. Precisaria para absorver o
vinho, que já estava me fazendo sentir mal e, a julgar pelos olhares furiosos de
Madame Usher, ela realmente esperava que eu terminasse.
“Então, Faye, por favor, conte-nos sobre você,” disse o Mestre em seu tom
agradável. “Com quem você tem estudado?”
“Emma Garrison? Não posso dizer que já ouvi falar dela. Ela veio da escola de
Berlim?”
“O que Faye quer dizer é que ela esteve sob a tutela de amadores,” Madame
Usher ofereceu. “Esta Sra. Garrison foi sua professora de música do ensino médio, e
seu programa de música está longe de ser distinto. Um desperdício de talento raro e
requintado. Você terá trabalho para lapidá-la, Maestro.”
Do outro lado da mesa, Aroha sufocou uma bufada. Ela tentou encobrir o som
mastigando um pouco de pão, mas minha pele se arrepiou.
O que eu esperava? Esses idiotas ricos estudavam com mestres talentosos desde
que ainda usavam fraldas, enquanto eu tive que desistir de minhas aulas caras duas
vezes, tudo para que pudéssemos sobreviver. As lacunas no meu conhecimento me
colocam atrás deles antes mesmo de começarmos.
“Eu me lembro bem de seu pai,” Mestre Radcliffe continuou. “Nos encontramos
várias vezes em eventos sinfônicos na cidade. Eu o vi tocar Sibelius com a Filarmônica
de Londres, e foi uma das performances mais sublimes que já vi. O mundo não estava
pronto para perdê-lo.”
Eu aceno com a cabeça. O que mais havia para dizer? Eu também não estava
pronta para perdê-lo. Pena que eu não tinha nada a dizer sobre o assunto. Em um
minuto, papai estava gritando com mamãe que ela não apreciava sua necessidade de
espaço artístico depois de ela ter trabalhado 22 horas seguidas para cobrir seus voos
para Veneza e não conseguia entender por que ele estava em casa o dia todo e não
cozinhou o jantar. No próximo instante, ele tinha desaparecido sem deixar rastro.
Uma memória que eu não tinha pensado em muito tempo veio à tona agora,
uma que eu enfiei naquela pequena caixa preta na minha cabeça de coisas dolorosas
demais para pensar. Uma Madame Usher muito mais jovem e muito mais magra
parada na nossa porta, seus lábios molhados com batom carmesim e seu falso
perfume floral percorrendo nossa casa como um furacão com cara de vadia. Minha
mãe a encarava com as costas rígidas e olhos endurecidos. As duas sentadas frente a
frente na mesa da cozinha, xícaras de café intocadas e um envelope branco fechado
entre elas. Eu, de nove anos, sentada na escada e me esforçando para ouvir, mas elas
falavam tão baixo e com vozes tão duras... Quando Madame Usher foi embora, ela
carregava o envelope e ostentava um sorriso satisfeito que não alcançou seus olhos, e
mamãe tinha parado de chorar. Ela não derramou uma única lágrima pelo papai
depois disso.
Eu chorei por nós duas, e meus ductos lacrimais hiperativos fizeram isso muito
bem, soluçando por um homem que agora eu sabia que não era nada além de um
trapaceiro podre.
Eu ainda não sabia o que elas tinham dito naquele dia, ou o que havia naquele
envelope.
Eu desejei que o Mestre mudasse de assunto antes que minha faca de bife
fizesse uma viagem para a cidade do esfaqueamento. Em vez disso, ele pegou uma
segunda porção de salada. “Você aspira a uma carreira na música?”
“Se você não sabe, então por que está aqui?” Madame Usher estalou.
Ao meu lado, Dorien dominava a conversa. Enquanto ele brincava com Ivan
sobre sua técnica de dedilhado, eu peguei uma dica do garoto travesso com quem eu
cresci. Estar tão perto de todos os três Musos fez meu corpo se iluminar e meu
estômago revirar de maneiras que eu não entendia. Desviei meu olhar sobre a mesa,
mas os olhos escuros de Titus se fixaram nos meus com uma intensidade inquietante,
como se ele não visse nada de errado em me abrir para estudar minhas entranhas.
Eu decidi que olhar para a minha comida era a melhor opção. Entre olhares para cima
da minha salada, notei a loira mel (Heather?) pendurada em cada palavra de Dorien,
concordando com o que quer que ele dissesse.
Sim, Dorien. Claro, Dorien. Vou polir seu pau para você, Dorien...
“Opa.” Dorien derrubou meu garfo sobre a beirada da mesa. “Deixe-me pegar
isso para você.”
Está tudo bem. Eu queria dizer, não querendo ele mais perto de mim. Mas minha
boca não funcionou. Esta sala estava muito quente.
Dorien hesitou, seu corpo enrijecendo. Uma mecha de cabelo escuro caiu para
frente, roçando minha coxa. Ele virou a cabeça para olhar para mim, seus lábios
perigosamente perto de... de... lugares onde um cara tão gostoso como ele nunca
esteve perto antes. Meu corpo reagiu instantaneamente, todo o fogo dentro de mim
convergindo entre minhas pernas. Eu apertei minhas coxas juntas, mas era tarde
demais. Um leve suspiro escapou dos meus lábios... Um suspiro que Dorien
Valencourt ouviu.
“Você gosta disso?” Ele arqueou uma sobrancelha perfeita. Minha blusa tinha
subido, e seus lábios sopraram ar quente contra minha pele já queimada. Eu quase
podia imaginá-lo como o Dorien que eu costumava conhecer. Quase. Se não fosse por
aquela frieza em seus olhos.
“Você não pertence a este lugar, Duende,” ele sussurrou. “E nós vamos ter
certeza de que você saiba disso.”
Porra.
Faye De Winter.
Porra fodida.
Minha mente girou, e lutei para expulsar qualquer pensamento coerente que
não fosse a montanha de problemas que eu trouxe para a minha própria cabeça.
Quando Madame Usher me informou que o Mestre desejava oferecer um lugar para
Faye De Winter, eu disse a mim mesmo que não importava. Eu parei de me importar
com Faye há muito tempo. Eu seria capaz de fazer o que tinha que fazer para manter
meu lugar em Manderley.
Ao meu lado, Faye se debruçou sobre seu prato, sua pele deliciosamente
próxima. Ela olhava para sua salada como se a comida guardasse todos os mistérios
do universo. O vinho manchava seus lábios com um toque de vermelho, como o rubor
de um beijo intenso.
Eu me preparei para ver Faye novamente, mas no minuto em que ela apareceu
na minha porta, tudo foi para o inferno. Eu fiz aquele truque no quarto para despistá-
la, para mostrar a ela desde o nosso primeiro encontro que ela não era nada para
mim, mas isso também era mentira. Eu soube assim que bati a porta e meu pau
ganhou vida em minhas mãos.
Então ela entrou na sala de jantar com aquele desafio brilhando em seus olhos,
suas roupas todas rasgadas e sujas e exalando uma atitude de 'não foda comigo' por
todos os poros. Ela usava sua herança meio mexicana com orgulho, aquela queda de
cachos pretos nas costas e aquele nariz ligeiramente largo virado para cima, como se
ela fosse boa demais para nós, e não o contrário.
Heather deixou seu olhar cair para o copo de Faye, então se virou para me
encarar, a pergunta óbvia em seu rosto. Eu chutei o pé dela por baixo da mesa.
Heather poderia se foder se ela esperava que eu me explicasse para ela. Meu pequeno
truque do garfo não fazia parte do plano, mas funcionou. Bem demais. Cerrei os
dentes quando me lembrei do pequeno suspiro de Faye, uma fenda na armadura que
ela usava, uma dica de que o fogo escaldando minha pele também a estava queimando
por dentro.
Eu pretendia desarmar Faye, tirar esse desafio de seu rosto, mas o cheiro dela...
Fez minha cabeça girar, de um jeito bom, o que era ruim. Meu pau estava duro
novamente.
Mestre Radcliffe voltou sua atenção para Elena e a peça para o próximo recital.
Enquanto Elena discutia os méritos das diferentes escolhas de músicas em sua voz
ofegante, eu peguei o olhar de seu irmão. Ivan estava sentado ereto, e a toxidade em
seus olhos poderia ter envenenado a todos nós.
De todos os alunos, Ivan tinha mais a perder para Faye, e isso significava
alguma coisa. Eu tinha visto aquele olhar em seus olhos antes. Uma vez, em nossa
última turnê, estávamos atrasados em um aeroporto na França por dezesseis horas,
e a companhia aérea só poderia nos levar ao Canadá a tempo para o nosso show se
Elena pegasse um voo mais tarde. Ivan deixou que certos fatos fossem conhecidos com
sua típica personalidade romena bruta, e dez minutos depois nós quatro tínhamos
assentos na primeira classe.
Espetei o cordeiro no meu prato, mastigando com força. Parecia incrível, mas
tudo que eu podia provar era papelão. Papelão aromatizado com lavanda e flor de
laranjeira. Incapaz de me conter, estendi a mão sobre a mesa para pegar a pimenta e
dei uma olhada em Faye. Ela tomou um gole de vinho novamente, seu cabelo cobrindo
seu rosto, uma parede de proteção contra o mundo e contra mim.
Eu me odiava pelo que estava prestes a fazer, mas a odiava ainda mais.
Dez anos atrás, eu disse a Faye De Winter que nunca mais queria vê-la. Agora,
ela rasgava minha vida como um maldito furacão. Se eu não atacasse primeiro, ela
destruiria tudo. Esse cheiro já estava me arrastando para baixo. Aqueles olhos com
aro de fogo queimariam tudo pelo que trabalhei. Ela me arruinaria.
Mestre Radcliffe estendeu sua mão e enrolei meu braço no dele, entregando-me
ao modo antiquado e cavalheiresco com o qual ele me acompanhou pela escadaria
principal. Manderley já parecia mesmo uma casa parada no tempo.
“Está sala tem quase o dobro da altura convencional.” Mestre Radcliffe abriu as
cortinas de veludo, lançando um quadrado de luz cinzenta sobre o piano. Do lado de
fora das janelas altas, a floresta invadia, árvores estendendo dedos vigorosos em
direção às janelas. “Muitas vezes imagino as festas e bailes alegres realizados nesta
sala, as damas em seus vestidos de musselina dançando, as dinastias forjadas e os
escândalos sussurrados entre fofocas. Esse é o meu cômodo favorito da casa. Como
você logo descobrirá, a acústica é excelente.”
Eu preciso que você pare de me comparar com aquele bastardo. Mas, em vez
disso, eu sorri. “Está tudo bem. É agradável ouvir essas coisas de alguém que
conheceu meu pai.”
“Ele veio para a minha escola de verão em seu ano inaugural,” disse Mestre
Radcliffe. “Ele teria ganhado uma bolsa integral se não estivesse tão distraído por...
Atividades sociais. Ele permitiu que outros alunos ultrapassassem a frente dele.
Espero que não cometa o mesmo erro.”
Talvez não fossem os nervos revirando meu estômago. Talvez eu fosse vomitar.
Quando abaixei os braços, minhas mãos tremiam. Eu sabia que tinha tocado
mal. Se eu quisesse provar para Dorien e sua legião que eu merecia meu lugar aqui,
então eu tinha fodido tudo.
Atrás de mim, Titus bufou. Mestre Radcliffe olhou por cima do ombro, pela
primeira vez notando nossa audiência. “Você não deveria estar ensaiando seu Elgar,
Titus?” Ele comentou.
Mas não tão útil quanto um banheiro. Agarrei meu estômago protestando
quando a bile atingiu o fundo da minha garganta.
Por sorte, o banheiro do térreo ficava do outro lado do corredor. Bati a porta
atrás de mim e me joguei em um lavabo antiquado.
O vinho.
Achei o gosto nojento, mas atribuí isso a não saber nada sobre vinhos caros.
Lembrei-me de outra coisa, os olhos de Dorien brilhando enquanto ele abria uma nova
garrafa. Só para mim.
Maldito idiota.
E eu esvaziei o copo inteiro como uma tola, pensando que eles estavam me
testando. Eu inclinei minha bochecha contra o espelho frio, não me importando que
eu tivesse deixado uma mancha que eu teria que limpar mais tarde.
Quando saí do banheiro, Heather e Titus esperavam no corredor. Heather sorriu
enquanto eu passava. “Eu também ficaria doente se tocasse tão mal. Um desperdício
de lugar na academia. O triturador de lixo toca melhor do que você, e é por isso que a
chamamos de lixo.”
Passei por ela sem responder. O corpo imóvel de Titus se elevou sobre mim
enquanto eu ia direto para o quadro de avisos para ver se alguma das salas de prática
estava livre. Nenhuma estava. Na verdade, os quartos estavam todos reservados para
o resto da semana. Apressadamente, rabisquei meu nome nas duas lacunas restantes
na lista da próxima semana. Eu sabia que precisava de toda a prática que pudesse
obter.
Peguei meu violino no salão de baile e voltei para o sótão, escalando. E por
escalando, quero dizer que rastejei em minhas mãos e joelhos enquanto me dobrava
em agonia. Meu telefone ainda estava na cama entre meus pertences espalhados.
Havia uma mensagem do hospital dizendo que mamãe havia chegado em segurança.
Eu estava muito ligada para terminar de desempacotar, então arrastei uma cadeira
para debaixo da janela, virando-a para poder encarar o jardim inclinado e coberto de
mato e o riacho cercado pela natureza, os topos das montanhas escondidos na
neblina.
Eu coloquei o violino contra o meu queixo e puxei o arco pelas cordas, desejando
poder usá-lo para cortar o lindo pescoço estúpido de Dorien.
Ornamento que consiste na rápida repetição de um ou mais sons, ger. sem divisão rítmica,
4
É assim que eu deveria ter tocado para Mestre Radcliffe, se Dorien Valencourt
não tivesse me sabotado.
Eu ansiava por ir atrás dela, mesmo que não fosse por outro motivo além de
fumar um cigarro. Atrás de mim, meu alarme tocou.
Porra. Já se passaram duas horas? Pego minhas coisas e vou para a cozinha.
Não havia tempo para cigarros quando você tinha poodles ricos para servir.
“O que você acha da nova garota?” Entrei no quarto de Dorien e bati na porta
com o pé. Titus já estava lá, chutando a parede para poder girar a cadeira em círculos
rápidos. Ele é uma pessoa grande demais para ser tão enérgico o tempo todo.
“A lição de Elena acabou há poucos minutos.” Dorien não perguntou por que
eu estava na aula particular da minha irmã, ou por que eu não podia deixá-la lá
sozinha. Ele não precisava, e eu apreciei isso. Dorien podia ser um babaca, mas ele
guardava meus segredos como se fossem dele. Eu me joguei na ponta da cama,
pegando um fio solto na colcha bordada. “Qual é o veredicto sobre a Srta. De Winter?”
Eu balancei minha cabeça. Eu precisava daquela erva para tirar Faye De Winter
da minha cabeça, mas Elena odiava e ela sentiria o cheiro em mim. “Eu concordo.”
“Eu não colocaria meu pau nela. Vocês não sabem por onde ela andou.” Dorien
se arrastou para o canto da cama e se inclinou em direção à janela, pegando o baseado
de Titus e dando uma tragada profunda.
Eu não gostei do olhar nos olhos de Dorien. Ele estava com a mesma aparência
da noite em que me entregou aquelas passagens de avião em Praga, a noite em que
ele fodeu nossas vidas para sempre. Era a mesma raiva assassina que ardeu quando
a polícia o levou para interrogatório após a queda de Clare.
Observar o rosto de Faye enquanto ela lutava através da peça de Vivaldi deveria
ter me dado satisfação. Seria muito fácil quebrá-la e continuar com as nossas vidas.
Mas tudo o que senti foi uma dor surda no meu estômago. Era uma dor nascida do
fracasso. Em seus olhos brilhava o desafio que corria em minhas veias desde Praga,
um eco do homem que eu poderia ter sido. Agora eu vendi minha alma ao diabo para
salvar minha irmã, e fiz de nós dois seus escravos. Nem mesmo a música estava
fazendo alguma coisa por mim nos últimos tempos. Fiquei entorpecido porque o
entorpecimento era a única maneira de conseguir passar por isso, de conciliar as
coisas que eu tinha que fazer.
Nada me afetava, exceto o sorriso de Elena. Eu faria qualquer coisa para sempre
ver aquele sorriso.
“Quando meus pais eram grosseiros o suficiente para me deixar ficar com a
plebe, sim.” Dorien se recostou na cama e cruzou os braços atrás da cabeça. “Ela
também era medíocre na época.”
Mas apesar do que ele disse, todos nós sabíamos a verdade. Faye De Winter era
tudo, menos medíocre. Era por isso que ela tinha que ir embora.
“Nós vamos ter que tocar com ela nos conjuntos.” Titus estava se convencendo
a agir. Ele precisava acreditar na mentira, e ele contaria a si mesmo esse conto de
fadas até que se tornasse um fato em sua mente. “Ela vai derrubar a reputação de
toda a escola, se Madame Usher trazê-la aqui ainda não conseguiu fazer isso.”
“Não irá chegar a esse ponto.” Os olhos de Dorien se fixaram no teto. Ele fez um
bom show fingindo que não se importava, mas aquele olhar assombrado em seus olhos
o denunciou, era o mesmo olhar que ele tinha quando se sentava ao piano, quando a
música o dominava, e era a razão pela qual as mulheres afluíam mais a ele do que a
nós. Faye De Winter estava mexendo com Dorien, e isso por si só era interessante.
“Precisamos nos livrar dela.”
Eu balancei minha cabeça. “Porque se importar? Ela mesma vai se eliminar a
julgar pelo seu domínio magistral de Vivaldi.”
“É o primeiro dia dela. Provavelmente foram os nervos.” Dorien acenou com uma
garrafa de vidro empoeirada na frente do meu rosto. “E o xarope de ipeca que eu
coloquei no vinho dela.”
“O quê?”
Titus deu um tapinha nas costas de Dorien enquanto ele passava o baseado de
volta. “Você é um merda. Não é à toa que ela correu tão rápido.”
“Isso foi fodidamente hilário.” Mas Dorien é perigoso. Agora ele está do meu lado,
mas nunca posso esquecer que ele poderia fazer isso com Elena se eu o contrariar.
“Foi ideia de Heather, e temos muito mais de onde isso veio. Garantiremos que
Faye deixe Manderley até o final do semestre. Nada vai se voltar contra nós.” Dorien
sentou-se novamente, pegando o baseado de Titus e pendurando-o em seus lábios.
“Este é o nosso território. Somos invencíveis.”
“Aqui está o que Heather e eu decidimos: Ninguém deve falar com ela. Não a
reconheçam. Não a insultem. Apenas ajam como se ela não estivesse lá.”
A ira de Dorien era uma coisa. Dorien fazendo planos com Heather e não
compartilhando conosco? Um arrepio percorreu minha espinha.
Era melhor que Faye De Winter tome cuidado, Dorien a tinha em sua mira, e
ele planejava brincar com ela. O Príncipe das Trevas gostava de quebrar seus
brinquedos.
Depois de outra refeição excruciante com os alunos, durante a qual todos
agiram como se eu não existisse, voltei para o meu quarto. Meu estômago e garganta
ainda queimavam com o que Dorien colocou no meu vinho, e eu mal belisquei minha
comida. Assim que pude pedir licença, carreguei a máquina de lavar louça e escapei
para o meu quarto.
O ar abafado do sótão grudava nas minhas roupas. Abri a janela para deixar
uma brisa fresca circular. Vozes e risos correram para me cumprimentar. Olhei para
baixo para ver os alunos reunidos em torno de uma mesa na beira do jardim. Heather
olhou para cima e me viu. Seu nariz se ergueu como se eu exalasse um cheiro ruim.
Suspirando, me afastei da janela, joguei minhas roupas em uma cadeira e desabei na
cama de calcinha, deixando a brisa escovar minha pele úmida.
As cólicas estomacais haviam diminuído, substituídas por uma dor surda. Seja
lá o que quer que Dorien tivesse colocado no vinho, parecia que o efeito passaria pela
manhã. Mas se eles estavam adulterando meu vinho logo no primeiro dia, que novo
horror me esperaria amanhã?
Peguei meu telefone da minha bolsa e estava escrevendo uma mensagem para
mamãe quando me lembrei que ela não poderia responder porque estava em coma.
Minha linda e vibrante mãe, que deixava homens adultos de joelhos em salas de
reuniões e em pistas de dança, foi acometida por uma doença misteriosa, e eu não
tinha mais ninguém com quem conversar. Não achava que ia fazer amigos nesta escola
também.
Foda-se. Joguei meu telefone na cama com nojo. Eu era filha de Marguerite De
Winter. Eu poderia lidar com algumas doninhas ricas.
Eu rolei e peguei o livro surrado que eu enfiei na minha bolsa para a viagem de
carro. Era um romance de harém reverso ambientado em uma escola gótica
assustadora chamada Miskatonic Prep. A personagem principal, Hazel, era intimidada
pelos três Reis da escola, mas ela se mantém firme e há algo nela que não era 100%
normal...
Creak.
Parecem passos.
Joguei uma camiseta sobre meus seios nus e fui até a porta. Abri com cuidado,
esperando ver alguém no patamar. O quadrado de luz da minha porta aberta iluminou
o espaço estreito. Ninguém estava lá.
Fechei a porta e voltei para a cama. Mas assim que afundei nos lençóis, o
rangido recomeçou. Fiz uma pausa, ouvindo. É apenas o barulho normal de uma casa
antiga, nada para se preocupar...
Definitivamente passos.
Neste andar.
Creak, crea...
O rangido parou.
De volta ao meu quarto, apaguei o abajur e coloquei minha cabeça para fora da
janela. Lá embaixo, os alunos estavam reunidos em torno de uma mesa de ferro
forjado, passando uma garrafa de alguma coisa ao redor. Eu reconheci todos eles, os
gêmeos, Heather, Aroha, Titus... e Dorien.
Como se sentisse minha acusação silenciosa, Dorien olhou para cima. Quando
seus olhos encontraram os meus, ele me lançou um sorriso que era todo dentes e
ameaça. Ele passou a mão pelo cabelo; o luar pintava suas mechas escuras com tons
de ruivo e carmesim. Uma onda de calor percorreu meu corpo, e eu me odiei por isso.
Eu não podia ser atraída por Dorien Valencourt, ou qualquer um dos Musos,
especialmente quando eles estavam voltando sua ira contra mim.
Mas mesmo que meu corpo doesse de cansaço, eu não conseguia dormir. Minha
pele se arrepiou com a sensação de estar sendo observada. Acendi a luz, vasculhando
a sala vazia e depois a apaguei. Mas a sensação não foi embora.
Agora, à luz quente da manhã, eu não estava com medo. Eu estava chateada
como o inferno.
Coloquei o vestido preto liso que Madame Usher me deu como uniforme de
empregada. A lã arranhava minha pele. Ela está investida nessa coisa de servidão um
pouco grosseiramente demais. O vestido era apenas mais uma de suas críticas sutis
ao meu status, me marcando como diferente dos outros alunos, que usavam roupas
de grife e possuíam aqueles carros caros estacionados do lado de fora.
O zíper ficou preso. Agarrei-o e pulei para cima e para baixo, puxando até que
ele se soltou. O vestido estava um pouco apertado em meus seios, mas fora isso, não
era um ajuste ruim. Era muito pouco lisonjeiro, me fazendo parecer ampla e quadrada
em vez de acentuar a forma de ampulheta dos meus quadris, mas eu não estava em
Manderley para ser admirada. Eu estava aqui para tocar música e dar à minha mãe
os cuidados que ela precisava.
Falando nisso... Peguei meu telefone pela centésima vez e verifiquei se não havia
perdido uma mensagem do hospital dizendo que ela havia acordado. Mas não, o
universo não era assim tão gentil comigo.
E gritei.
Meu pau se mexeu, e eu envolvi meus dedos ao redor dele. Fechei meus olhos.
E imaginei que ela estivesse gritando meu nome.
Faye De Winter.
Não que eu quisesse que ele visse. Eu queria Faye só para mim.
Minha mão se moveu mais rápido, e meu pau estremeceu. No andar de cima,
alguém pisava no piso do sótão. Imaginei Faye como eu a tinha visto na noite passada
enquanto eu pairava em sua porta, a chave enfiada na minha mão, esperando Heather
terminar no banheiro dela. O luar riscava a cama pela janela aberta, dançando
sombras em suas feições serenas. O cabelo de corvo se espalhou pelo travesseiro,
caindo como ondas de um rio de seda sobre o edredom. Olhar para ela despertou algo
dentro de mim, uma mistura de fascínio, desejo e repulsa por mim mesmo. Meus pais
sempre me avisaram que Dorien era uma má influência, e agora aqui estava eu,
entrando sorrateiramente no quarto de uma garota e vendo-a dormir como um
perseguidor esquisito.
Pensei em sacudir o tornozelo que espreitava por baixo dos lençóis. Eu queria
que Faye acordasse, nos visse em seu quarto, gritasse e se enfurecesse, acordando a
casa inteira. Pelo menos iria sacudir as teias de aranha deste lugar.
Eu queria que ela se jogasse em mim, queria sentir sua pele quente contra a
minha enquanto seus punhos me esmurravam ou seus lábios me devoravam.
Qualquer opção funcionaria para mim, embora meu pau preferisse a última.
Em vez disso, eu me virei e segui Heather para fora. Trancamos a porta de Faye
atrás de nós e voltamos para nossos quartos.
Eu estava proibido de falar com ela. Por ordens de Dorien. Aquele cara esteve lá
para mim mais vezes do que eu poderia contar. Eu não gostava de jogar dentro das
regras, mas essa era uma que eu tinha que obedecer.
Meu corpo voltou à realidade. Meu pau amoleceu na minha mão quando a visão
de Faye desapareceu da minha mente, substituída por algo igualmente sedutor, mas
ainda mais perigoso.
O segredo escondido debaixo da minha cama. A razão pela qual eu não poderia
chegar perto de Faye De Winter. A vergonha que me comeria vivo mesmo enquanto
minha alma petrificava nesta casa.
Passei o dedo pelas letras molhadas e levei-o ao nariz. Meu estômago revirou
novamente. Minha mente se voltou para o rosto tenso de Harrison quando ele me
disse que a última empregada em Manderley havia sido assassinada.
Eu enruguei meu rosto. Realmente não queria ter que fazer isso.
Cheirei.
Mas o que mais me preocupou não foi a mensagem estúpida, mas o fato de que
um dos alunos entrou sorrateiramente no meu quarto enquanto eu dormia. Não
podiam ter subido pela janela, então só restava a porta.
Atravessei a sala em três passos e verifiquei, ainda estava trancada. Abri a porta
e inspecionei o mecanismo. Nada quebrado.
Dorien.
Mas não, percebi com um sobressalto, Dorien não poderia ter feito isso se era
ele quem estivesse escondido no depósito. Eu o vi com os outros alunos ao redor
daquela mesa, e não havia como ele ter subido as escadas até o depósito sem que eu
o ouvisse, as escadas rangiam mais do que um poema de Edgar Allan Poe.
Meu coração saltou no meu peito enquanto eu cruzava o quarto até a janela e
afastava a cortina. Com certeza, lá estava a mesa, com um cinzeiro e uma garrafa
vazia de uísque. Eles podiam ter escapado enquanto eu dormia para fazer a arte no
espelho, mas isso não explicava os passos. Eu não conseguia ver como alguém ao
redor daquela mesa poderia ter feito os rangidos no depósito.
A menos que…
Aroha. Ela não estava com o grupo na mesa, eu me lembrei. Poderia ter sido
ela.
Excelente. Então todos eles estavam envolvidos com os Musos. O ódio de Dorien
por mim era pessoal, e eu não entendia. Foi ele quem partiu meu coração. Mas de
qualquer forma, nós pelo menos tínhamos uma história. Os outros... Eles nem me
conheciam. Aroha não parecia a vadia rica que Heather era. Algo sobre suas roupas e
as tatuagens e o jeito que ela se portava me dizia que ela não dava a mínima para o
que alguém pensava dela ou do problema mesquinho de Dorien comigo. Então, por
que ela se esgueiraria no armário ao lado e escreveria mensagens no meu espelho?
Peguei meu estojo de violino e desci as escadas, sem me importar em soar como
uma manada de elefantes avançando pela casa silenciosa. Fiquei na frente da porta
dos aposentos privados de Madame Usher.
Eles têm uma chave para o meu quarto. Eu não me sinto segura aqui. Mesmo
como o caso de caridade residente nesse lugar, isso é inaceitável.
“Madame Usher?” Eu bati. “Eu preciso relatar algo. Alguns dos alunos
invadiram meu quarto ontem à noite e escreveram coisas nas minhas paredes.”
Uma briga soou dentro da sala. Eu pressionei meu ouvido na madeira quando
uma voz fraca assobiou alguma coisa. Houve um par de baques surdos, então passos
vieram em minha direção.
“Mas, Madame...”
“Eu não me importo se a casa está pegando fogo ao nosso redor ou se um disco
voador pousar no telhado, você não me perturba, nunca. Isso seria motivo para
expulsão, mas devido ao nosso acordo, eu lhe darei uma segunda chance.” Ela olhou
para mim. “Não faça isso de novo.”
“Espere. Eu...”
Sim, mas acontece que não tenho autocontrole. Meus olhos varreram as linhas
duras de seu torso. Dorien era o próprio pecado, sua beleza angelical sobrenatural
escondia o orgulho amargo e o estado desolado de sua alma. Fiz uma pausa nas letras
góticas soletrando uma frase em latim em seu peito. In Cauda Venenum.
Mas por que os bad boys tinham que parecer tão bons?
“Foda-se.” Eu passei por ele. Seu cheiro me atingiu, o coração escuro de canela
e incenso, salpicado de violetas doces. Pura luxúria disparada com inocência. Eu
ansiava por me afogar naquele cheiro, permitir que ele me puxasse para baixo mesmo
quando me avisava que eu poderia me perder em suas profundezas. “E fique fora do
meu quarto.”
“Após suas aulas particulares, reúnam-se no salão de baile esta tarde. Cada um
de vocês fará seu melhor concerto para o Mestre Radcliffe, que escolherá um aluno
para tocar para o Mestre Solokov.”
Eu não dignifiquei Titus com uma resposta, mas eu lancei a ele um olhar que
eu esperava que articulasse o quão pouco eu me importava com o que ele pensava.
Suas palavras só me deixaram mais determinada a ter sucesso.
Titus esteve no meu quarto. Ele me observou enquanto eu dormia. Agora ele está
sorrindo para mim como se isso não fosse nada assustador.
Ele poderia ter feito qualquer coisa. O medo ondulava através de mim, um medo
nascido da incerteza, de saber que eu estava muito abaixo na cadeia alimentar e esses
caras poderiam fazer o que quisessem comigo sem consequências. Claramente, eles
planejavam fazer exatamente isso.
Uma imagem passou pela minha mente, uma empregada com o mesmo vestido
de lã áspero que eu usava agora, amassada no pé da escada, o pescoço dobrado em
um ângulo impossível. Titus abriu a boca para dizer mais alguma coisa, mas eu passei
por ele e fugi para a cozinha.
Quando virei a esquina, meu peito arfando, olhei para trás por cima do ombro
e notei Dorien olhando para Titus, que deu de ombros e passou por seu amigo a
caminho das salas de prática. Esquisito. Sobre o que eles estavam falando?
Pelas próximas três horas, eu esqueci tudo sobre os alunos de merda e a nota
no meu espelho, o vestido arranhando e até mesmo a doença da mamãe. A música
poderia fazer isso comigo, era minha fuga da realidade. Composição não era minha
área mais forte, mas a maneira como o Mestre Radcliffe explicava e demonstrava os
conceitos me deixava extasiada. Quando ele tocou uma pequena peça que ele compôs
no momento, lágrimas brotaram em meus olhos. Se eu pudesse ser tão boa quanto ele,
eu seria uma Maestra de renome mundial.
Tive que sair mais cedo da aula para preparar o almoço. Foi uma merda arrastar
minha bunda da cadeira e deixar os outros absorverem os minutos finais da sabedoria
do Mestre Radcliffe.
“Esses alunos estão lhe dando problemas.” Não era uma pergunta.
Eu balancei a cabeça. “Não é nada que eu não possa lidar. Eles têm a chave do
meu quarto. Você tem uma fechadura sobressalente para substituí-la?”
O rosto de Harrison ficou nublado. “Você precisa dizer isso a Madame Usher.”
“Eu tentei. Mas ela não queria ouvir, então acho que estou sozinha.”
“Eu vou fazer uma viagem para a cidade amanhã.” Harrison deixou cair uma
pilha de filés de salmão no freezer. “Vou trazer de volta um novo cadeado. Victor nunca
tolerou o mau comportamento deles, mas a Madame os deixa escapar até de...”
Dorien fingiu que não me ouviu, movendo seu corpo, então acabei fazendo uma
dança desajeitada para contorná-lo. Quando me aproximei do mestre, Dorien esticou
o pé. Eu tropecei, espirrando bifes suculentos e salada na toalha de mesa imaculada.
“Ai, credo.” Heather saltou para trás, sua cabeça balançando. “Ela jogou um
tomate no meu cabelo.”
“Mas...”
“Nem mais uma palavra.” Madame Usher se levantou e estendeu seu prato.
“Salve o que puder. Vamos almoçar na sala de visitas enquanto você lida com a
bagunça que fez.”
Minhas tarefas feitas, voltei para o meu quarto e pratiquei por duas horas. Eu
escolhi o Concerto para Violino No.2 de Bartok para minha peça de audição, eu estive
enrolando minha cabeça em torno da música ardente e conflitante ao longo do ano
passado. Quando Bartok compôs o concerto no período que antecedeu a Primeira
Guerra Mundial, ele estava sendo atacado em sua Hungria natal por suas visões
antifascistas, e o concerto reflete seu estado de espírito frenético. Combinava
perfeitamente com meu humor depois de saber sobre a invasão de minha privacidade
por Titus, e o fato de que sua confissão não explicava todos os barulhos que eu ouvi.
No final da minha prática, as notas zumbiam em minhas veias. Eu sabia que tocava
a peça com o coração, com fogo, e daria aos três Musos uma bela competição.
De volta à cozinha, assei alguns legumes e fiz rotkohl; repolho roxo, cravo, bacon
e maçãs. Uma receita herdada da minha avó alemã por parte de pai. Nós nunca a
vimos depois que meu pai desapareceu, e eu não sabia se era muito doloroso para
mamãe ou se ela suspeitava que vovó sabia de algo que ela não tinha revelado. Não
foi uma grande perda, a melhor coisa sobre vovó era seu repolho. A mulher amarga
morreu há alguns anos. Não fomos ao enterro.
Ele saiu da sala, deixando-me sozinha com meus seis inimigos. Heather não se
preocupou em esconder sua risada atrás de sua mão. Aroha soltou um rugido
estrondoso que fez Titus se empertigar, e logo Dorien estava gargalhando também.
Elena e Ivan olharam para o chão, aparentemente indiferentes a tudo.
Dorien apontou para a mancha de vinho do porto no chão. “Limpe isso,” ele
ordenou.
“Você é a serva. Faça o seu dever. Se isso não estiver limpo quando Madame
Usher retornar, você pagará.”
“Você que deveria limpar isso,” eu atirei de volta. “Você é quem me fez tropeçar.
Você acha divertido atrapalhar as pessoas, Dorien? Você é como um filho único
mimado jogando seus brinquedos para fora da caixa de areia porque não quer
compartilhar.”
Os olhos de Dorien brilharam para mim. “Você não sabe do que está falando.”
Eu bufei. “Eu sei exatamente do que estou falando. Você está mesmo com tanto
medo de eu ser melhor do que você? Por que você está aqui, afinal? A carreira
internacional não estava indo tão bem?”
Algo dentro de Dorien estalou. Eu sabia que tinha chegado até ele; eu só não
sabia como ou por quê. Cerrei os punhos, pronta para enfiar a faca mais fundo,
desesperada para machucar Dorien do jeito que seus insultos me machucaram,
quando Madame Usher entrou na sala. Seus olhos imediatamente caíram sobre a
mancha no chão. “Srta. De Winter, você não pode executar uma tarefa sem estragar
absolutamente tudo?”
“Mas a audição...”
Suas palavras me atingiram como um soco no estômago. Uma coisa era receber
ordens como uma serva. Eu poderia lidar com isso se isso significasse que mamãe
estava segura. Mas ser privada dessa oportunidade por causa da babaquice de
Dorien? Engoli o veneno que dançava na minha língua.
“Sim, senhora.”
“Pena que não se pode mais chicotear escravos insolentes,” Dorien meditou, e
havia um tom perverso em sua voz que fez algo quente e lascivo deslizar pela minha
espinha e se acumular entre as minhas pernas. Eu o odiei tanto naquele momento,
mas não tanto quanto eu me odiava por desejá-lo.
“Lixo como ela provavelmente está salivando por um gostinho do vinho no chão,”
Heather deu uma risadinha. Meus ouvidos zuniam de raiva. “Que desperdício de um
porto perfeitamente decente.”
“Saia,” ela raspou. “Por sua insolência, você ficará confinada ao terreno da
escola neste fim de semana. Permitir que Harrison dirija é um privilégio, não um
direito.”
“Você deveria ter pensado nisso antes de fazer uma bagunça na minha casa.
Não faça eu me arrepender de tê-la trazido aqui, Srta. De Winter.”
Seria suportável se Dorien fosse um músico de merda, mas quando seus dedos
tocavam as teclas ele criava magia. Ele não apenas interpretava Beethoven, ele fazia
amor com Beethoven. Ele fodia Beethoven devagar e com firmeza por trás. Dorien fez
o desempenho de Elena do outro dia parecer o de uma novata.
Ela estava certa, Dorien já havia feito um nome para si mesmo no mundo
clássico. Ele tinha fama e fortuna e groupies em abundância. Ele não precisava da
Manderley ou do prêmio. E, no entanto, ele estava fazendo um grande esforço para
me afastar.
E Ivan... Ele era um violinista magistral, mas estava claro para mim que ele
ficava em segundo plano, permitindo que sua irmã brilhasse. Estranho, porque eu o
vi tocar com Dorien e Titus nos vídeos, e ele era tão rápido e furioso quanto qualquer
um deles. Ivan podia se defender e comandar um palco. No entanto, quando ele tocava
com Elena, ele se tornava um ruído de fundo.
Depois de um tempo, larguei meu violino e peguei meu espanador para limpar
a estante ao lado da janela, observando as nuvens cinzentas se moverem pelas
montanhas e as árvores se curvarem na ventania que se aproximava enquanto eu
ouvia através da parede. Eu não conseguia imaginar Ivan sendo o ruído de fundo de
ninguém, não com aqueles olhos azuis intensos e aquelas maçãs do rosto que
poderiam cortar vidro. E ainda assim... Ele parecia feliz em deixar sua irmã ser o
centro das atenções. Outro mistério de Manderley, que eu dificilmente resolveria
enquanto todos continuassem me ignorando.
O gongo ecoou pela casa, sinalizando que alguém havia chegado. Quando saí
da sala de ensaio, Madame Usher estava cumprimentando o produtor no corredor,
pendurando seu casaco encharcado sobre o suporte de antiguidades. Ela estalou os
dedos para mim e apontou para a Sala Azul. Eu sabia o que ela queria, bebidas deviam
ser servidas.
“Infelizmente, ela não compartilha de seu talento. Em um bom dia, ela pode
estrangular Vivaldi com seu violino, mas eu não esperaria mais do que isso dela.”
Eu mordi de volta uma réplica. Não importa como ela me trata e o que ela diz
sobre mim. Ainda estou aqui na escola dela, aprendendo com o Mestre Radcliffe. Ela
ainda está pagando pelos cuidados médicos de uma mulher cujo marido ela tentou
roubar. Ainda tenho tanta chance quanto qualquer outra pessoa de ganhar o Prêmio
Manderley.
Deixei-os conversar enquanto voltava para a cozinha, onde havia feito uma
variedade de hors d'oeuvres para a visita de Solokov. Hoje à noite, eu tinha me
dedicado à herança mexicana de minha mãe, servindo esquites, chimichangas fritas
crocantes com salsa roxa e churros de canela com molho de chocolate amargo.
Comida saudável e quente para evitar o frio. Abaixei-me para pegar as bandejas e
notei algo.
Alguém havia tirado três chimichangas da bandeja.
Eu meio que esperava que Madame Usher me banisse da sala, mas ela parecia
ter se esquecido de mim assim que Mestre Solokov chegou. Harrison acendeu o fogo,
que ardia com calor acolhedor. Eu me acomodei no assento perto do fogo, deixando o
calor penetrar em meus membros.
Eles usavam as camisas pretas com babados e calças apertadas de sua turnê
europeia. Em qualquer outra pessoa, essas roupas seriam fantasias ridículas, mas os
três eram deuses profanos. O cabelo escuro de Dorien caía sobre seus olhos e em
torno de seu colarinho, cada centímetro do príncipe escuro que ele era à vista. Titus
teve que se abaixar sob os antebraços do candelabro para evitar bater com a cabeça.
Ao fazê-lo, as trancinhas descendo pelas costas se abriram e as contas nas pontas se
juntaram. Aquele cara era tão grande que era difícil imaginá-lo tocando um belo
instrumento com precisão, e ainda assim ele poderia destruir aquele violoncelo como
ninguém. Ivan era um contraste para os dois, com seu cabelo prateado combinando
com os fios de bordados brilhantes em seus punhos e gola, e suas feições do Leste
Europeu duras e focadas.
Dorien e Ivan ocuparam lugares do outro lado da sala, perto de Madame Usher,
mas Titus caiu ao meu lado no sofá baixo. Sua perna roçou a minha, e faíscas subiram
pela minha perna. Minha mente podia ter ficado enojada com a ideia dele se infiltrando
no meu quarto e me vendo dormir, mas meu corpo não tinha tais escrúpulos.
Quando estávamos todos reunidos, Elena e Ivan tomaram seus lugares e
apresentaram sua peça. Enquanto a música fluía através de mim, o calor da perna de
Titus penetrou em minha pele até que eu pudesse senti-lo em meus ossos, e seu
perfume dançou em minhas narinas, almíscar vermelho e mirra, cortado com rosas
perfumadas, sua intensidade conjurada pela música e pela atração elétrica que sentia
por ele.
Algo está seriamente errado comigo. Passei muitas horas enfiada no quarto de
hospital da mamãe com apenas médicos idosos como companhia. Uma semana em
Manderley com os Bad Boys do Barroco e me transformei em uma bagunça de
hormônios.
Tentei me concentrar nos dedos de Elena e nas notas solenes de Ivan, mas a
presença de Titus parecia grande ao meu lado. Cada respiração que ele dava e cada
movimento sutil de seu corpo se traduzia naquele quadrado de pele onde nos
tocávamos, até que eu estava uma bagunça de desejo e frustração.
“Você vai longe. Na verdade, você já deveria estar na Europa, não definhando
nesta escola abafada.”
Em seu assento, Madame Usher se eriçou e olhou para Ivan como se exigisse
seu apoio. Ivan se esgueirou de volta para as sombras perto da porta. Foi Mestre
Radcliffe quem se adiantou para ficar ao lado de Elena. Ele jogou o braço em volta dos
ombros dela.
“Elena é minha aluna estrela,” ele disse, e havia uma pitada de desafio em sua
voz. “Como uma flor delicada, ela deve florescer no momento certo. Muito cedo e ela
vai murchar, sua beleza, desaparecer.”
Madame Usher se levantou de sua cadeira e todos começaram a falar ao mesmo
tempo, cercando Solokov e oferecendo-lhe bebidas, comida, um lugar para sentar.
Titus virou seu corpo para mim. Ele não disse nada, mas havia uma confiança em
seus ombros largos que me dizia que eu não queria estar perto dele. Eu me levantei e
corri ao redor do grupo até a porta. Para onde Ivan espreitava como um vampiro na
noite.
Ivan olhou para mim. Tão perto, seus olhos se tornaram fragmentos de safira,
facetas de beleza cintilante refletindo a luz. Tão claros que eles me atraíram até que
eu me perdi em suas profundezas, caindo em um lago de emoções congeladas.
Eu escorreguei para fora do quarto. Eu sabia que não era desejada. Madame
Usher não me deixou falar com Solokov, e os outros queriam me ignorar, então qual
era o ponto? Eu fechei a porta atrás de mim.
Eu me virei, meu coração pulando no meu peito. “Quem está aí? Harrison?”
Ninguém respondeu.
Desejando que meu coração voltasse ao normal, abri a porta e entrei. As janelas
estavam todas fechadas e não havia brisa no quarto. Claro, a tempestade poderia ter
sacudido tanto a moldura que a janela deslizou para baixo. Engoli o nó na garganta
enquanto atravessava a sala. A pele ao longo dos meus braços formigou, me
sobrecarregando com a sensação de que eu não estava sozinha na sala. Olhei ao redor,
mas não consegui ver ninguém, e não havia lugar para alguém se esconder, a menos
que rastejasse para dentro do piano.
Então, como a porta bateu daquele jeito? Todos estão dentro da Sala Azul. Não
pode ter sido nenhum deles.
Exceto por Harrison... Eu coloquei minhas mãos contra o vidro, mas eu mal
podia ver as luzes da portaria através da chuva. Peguei o telefone da casa ao lado do
assento da janela, minha mão tremendo, e disquei seu ramal.
As palavras saíram correndo. “Oi, Harrison, sou eu. Você não estava na casa,
estava? Especificamente, na Sala Amarela?”
“Não. Eu não queria ser um incômodo enquanto a Madame entretinha seu
convidado, então parei de trabalhar mais cedo.” Eu podia ouvir uma TV tocando ao
fundo. “Por que a pergunta?”
“A porta bateu, mas não há ninguém aqui, e nenhuma janela aberta. E...” Fiz
uma pausa. Eu não poderia explicar a sensação estranha no meu estômago sem soar
insana.
Harrison mastigou seu jantar por um momento. “Mas tudo pode ser explicado,
não é? Ratos roubando a comida, correntes de ar entre as paredes, casas velhas
rangendo e se acomodando, crianças ricas podres pregando peças.”
“Sim. Você está certo. Obrigada, Harrison.” Desliguei o telefone e me virei para
a porta.
Eu queria tanto acreditar que ele estava certo, havia uma explicação lógica para
tudo o que aconteceu. Claro, se isso fosse um filme de terror, Harrison seria o
assassino com certeza, o inofensivo jardineiro velho com um passado sórdido e sede
de sangue.
Mas eu sabia que Harrison não podia estar aqui. Ele atendeu o telefone da
guarita apenas alguns minutos depois que a porta bateu. Mesmo uma pessoa em
forma não poderia ter voltado a tempo, e não nesta tempestade. Além disso, as janelas
estavam todas trancadas por dentro. Não havia como sair da sala a menos que alguém
subisse pela chaminé como o Papai Noel.
E eu congelo.
Porque eu sabia que quando limpei aquela prateleira hoje cedo, estava em
perfeita ordem. Agora, vários livros haviam sido retirados e espalhados pelo chão.
Juntei os livros e os empurrei de volta para a prateleira. Uma lasca de gelo subiu
pela minha coluna quando meus dedos se enrolaram em torno de um volume de couro
surrado.
Estranho, parecia exatamente com um livro que eu tinha quando criança. Meu
pai me deu de presente quando voltou de uma turnê pela Alemanha. Ele costumava
ler um capítulo para mim todas as noites antes de eu ir dormir. Quando ele estava em
turnê, ele me ligava sempre que podia do outro lado do mundo, e líamos as histórias
juntos pelo telefone. Ele fazia as melhores vozes, e eu sempre ria com seus monstros
estrondosos e bruxas cacarejantes. Quando ele desapareceu, joguei o livro no lixo.
Abri o livro.
AMOR, PAI
Depois da apresentação de Elena, Madame Usher nos dispensou para que ela e
Radcliffe pudessem conversar com Solokov. No corredor, Heather jogou seu braço no
meu. “Você deveria ter sido o único a tocar para ele,” disse ela. “Você sabe que é o
pianista mais talentoso aqui, especialmente quando eu te acompanho. Madame só
escolheu Elena porque ela é exatamente o tipo dele.”
“Mmmm.” Meu olhar caiu para as escadas, onde Ivan e Elena andavam de mãos
dadas, suas cabeças inclinadas em uma conversa silenciosa. Heather tinha muitas
razões para ter ciúmes de Elena, que era cem vezes a musicista que Heather poderia
esperar ser, mas a atenção de Radcliffe não era uma delas. A mão de Ivan no ombro
de Elena tremeu de raiva enquanto ele a levava para o quarto deles, a porta batendo
atrás dela. Pensei em seguir Ivan, tentando acalmar a raiva que ameaçava se soltar
esta noite, mas não estava em condições de ser um bom amigo hoje. Além disso, ele
tinha Elena, e isso era tudo que importava. Por enquanto.
Mas eu não podia simplesmente avisar Faye, não sem arriscar tudo. Eu não
podia falar com ela, e ela me desprezava, o que era exatamente o que Madame Usher
queria. Eu precisava pensar. Eu precisava saber por que ele não tinha me mandado
mensagens em duas semanas. Eu precisava que o silêncio parasse para que eu
pudesse descobrir meu próximo movimento neste tabuleiro de xadrez fodido com
inimigos por todos os lados.
“Dorien,” a voz estridente de Heather perfurou meus pensamentos. “Você não
está me ouvindo.”
Ela se inclinou contra mim, esfregando sua bochecha contra meu ombro e
olhando para mim com os olhos de pálpebras pesadas. Eu tinha visto esse olhar em
centenas de garotas, na primeira fila das salas de concerto em Milão, nas filas dos
bordéis de Amsterdã, nas íris marrom-escuras de Clare. “Venha para o meu quarto, e
eu encontrarei maneiras de tirar Elena de sua mente. Eu roubei uma garrafa de porto
do estoque de Madame. Poderíamos beber juntos e...”
“Não.” Abri a porta da cozinha com um chute, corri para a porta dos fundos e
saí para a noite.
Gotas de chuva respingaram no meu rosto e roupas, mas eu não dava a mínima.
Eu precisava de ar. Dentro da casa, eu sentia como se estivesse engasgando com as
mentiras e o maldito cheiro inebriante de Faye.
Não entre em pânico. Ele disse que mandaria uma mensagem quando pudesse.
Só porque você não ouviu falar dele não significa que ele está em apuros.
Rolei de volta para seu último texto, meus olhos passando rapidamente pelas
palavras, embora eu as soubesse de cor.
Seis palavras. Seis malditas palavras. Eu arrastei o chão, minha meia ecoando
um som molhado onde a água a tinha encharcado. O vento chicoteava meu cabelo em
meu rosto, açoitando os fios contra minha pele, uma autoflagelação que não parecia
perversa o suficiente. Mesmo que ainda fosse tecnicamente verão, as montanhas
podiam ser implacáveis.
Segui as notas tristes pelo caminho até o mirante. Eu não reconheci a melodia,
mas não precisei para que ela enchesse meu peito e envolvesse meu coração. A
melodia tinha uma qualidade etérea, como se a música viesse de outro lugar, cada
nota um convite para cair por um buraco e acabar em algum reino feérico estranho e
esquecido.
Uma figura sombria estava sob a estrutura em ruínas, e eu sabia antes mesmo
que ela entrasse em foco quem seria. Nenhum outro músico poderia me fazer sair de
mim mesmo do jeito que ela podia.
“Vá embora.”
Eu deixei um sorriso lento brincar em meus lábios. Mesmo com aquela chama
desafiadora em seus olhos, ela ainda não conseguia resistir ao meu desafio. “Você está
tocando na chuva quando há uma cama perfeitamente boa e quente lá dentro.
Considere-me intrigado.”
“Eu não tenho que me explicar para você, Dorien.” Faye balançou a cabeça, e
uma tristeza cintilou em seus olhos que me lembrou tanto de seu desespero que eu
tive que desviar o olhar para recuperar o fôlego. Quando me virei para ela, aquela
tristeza havia desaparecido. “Por que você está fazendo isso? Não nos vemos há dez
anos. Eu fiquei longe de você, assim como você queria. Não é minha culpa termos
acabado na mesma escola. Então, por que você está tão determinado a me fazer sair
daqui? Você, de todas as pessoas, deveria saber que eu não me curvo à vontade de
ninguém.”
Essa decisão deveria ter doído por apenas um momento. Eu deveria ter trancado
meu coração para que eu pudesse esquecer Faye, para que eu nunca mais sentisse a
dor de quando vi seu coração se partir na minha frente, enquanto as lágrimas
afogavam o fogo em seus olhos. Eu disse a mim mesmo que tinha funcionado por dez
anos, enquanto eu vagava pela terra sendo um fantasma de uma pessoa, uma caixa
vazia sem chave. Mas agora a decisão que me custou minha única amiga verdadeira
ameaçava destruir alguém que eu amava, e Faye voltou à minha vida e explodiu a
caixa em pedacinhos.
Quatorze dias e nenhuma mensagem. Ele devia saber que eu ficaria louco de
preocupação, porra.
Fechei o espaço entre nós em três passos. Faye gritou de surpresa quando meus
dedos circularam seu pulso, puxando-a para perto de modo que nossos corpos se
apertassem, peito contra peito. Seu coração dançou em um ritmo selvagem através do
tecido fino de seu vestido encharcado, combinando com a violência do meu. Lábios
vermelhos se separaram, e o desejo... o desejo... de deslizar minha língua entre eles
me dominou, de provocar a feitiçaria dentro, de beber e beber dela até explodir com
sua magia.
Machucá-la deveria ser natural para você. Afinal, você já fez isso uma vez antes.
“Uma pequena dica para você.” Meus dedos apertaram o braço de Faye. Ela
choramingou, mas não era um som de medo. Eu me esforcei através do meu desejo,
procurando pelo tom de ameaça em mim. “Se você quiser sobreviver ao próximo ano,
você deve sair pelos portões agora e nunca mais voltar. Se ficar, eu vou te destruir. E
isso é uma promessa.”
Meu corpo zumbiu com o desejo de virá-la, levantar aquela saia sexy dela,
dobrá-la sobre o corrimão e penetrá-la. Quantas vezes ao longo dos anos eu me
perguntei como ela seria, a garota que eu deixei ir, quão quente, escorregadia e
convidativa seria, como ela empurraria de volta contra meu pau e jogaria a cabeça
para trás e uivaria para a lua como a selvagem mulher que era. Eu grunhi baixo em
minha garganta, e o som foi feito para assustá-la, mas enviou um tremor de desejo
através de seu corpo que ecoou no meu. Ela podia sentir meu pau duro contra sua
coxa?
“Por que você está tentando me assustar?” Faye sussurrou, olhando para mim
com desafio, com triunfo. “Eu nunca terei medo de você. Já vi horrores reais, Dorien.
Eu vivi uma dor que você só poderia imaginar, e tentar me manter longe da minha
mãe não vai me quebrar. Para mim, você não passa de um garotinho assustado.”
“Você acha que me conhece?” Eu rosnei. “Você acha que sabe o que é dor? Você
está prestes a descobrir o quão pouco você sabe. Aquele garoto que você se lembra
morreu há muito tempo, e o homem que ele se tornou é insensível e perigoso. Não vou
parar por nada para conseguir o que quero, e o que quero é que você vá embora.”
Faye sorriu. “Engraçado. Eu poderia jurar que você estava atrás de outra coisa
quando me agarrou.”
Eu a soltei para longe de mim, enviando-a cambaleando pelo gazebo. Ela gritou
de surpresa, mas eu não consegui ouvir. Eu tive que me fechar para tudo o que ela
era, tudo o que ela poderia ser. Eu lutei para controlar minha respiração enquanto
murmurava minhas palavras de despedida. “Este é o seu último aviso. Pobre Duende.
Você está presa em uma teia de aranha e nem sabe disso. Deixe Manderley para
sempre, ou você será a próxima fantasma a assombrar essas paredes.”
Ainda tremendo do meu encontro com Dorien, além de perder minha visita com
mamãe e encontrar o livro do meu pai, bati a porta do sótão e me joguei na cama,
tirando meus sapatos. Sair foi um erro, isso era óbvio. Passei uma boa hora sendo
golpeada pela chuva enquanto andava no canteiro do jardim sob a janela, procurando
sinais de que alguém tinha estado lá. Mas as únicas pegadas eram as minhas.
Eu deveria ter ido para a cama então, mas enquanto eu andava na ponta dos
pés pelo corredor com minhas roupas úmidas com o livro de contos de fadas debaixo
do braço, eu ainda podia ouvir os outros na Sala Azul, a risada tilintante de Elena e
a voz retumbante de Titus regalando o grupo com histórias da última turnê do Broken
Muse. E eu não pensei depois disso. Eu nem parei para trocar de roupa. Larguei o
livro ao lado da cama, peguei meu violino e corri para o vento cortante.
Quando Dorien me segurou, seus lábios perigosamente perto, seu pau duro
pressionando contra minha coxa, quão perto eu cheguei de me inclinar para beijá-lo,
de saborear as palavras cruéis fluindo de seus lábios como mel?
“Porra,” eu murmurei em meu travesseiro. Esta noite inteira foi uma merda
completa.
“Esta será uma oportunidade solo, Elena,” Mestre Radcliffe respondeu em sua
voz amigável. “Não se preocupe. Vou acompanhá-la a Moscou para garantir que você
esteja acomodada e ver suas primeiras apresentações.”
O sorriso escapou de seus lábios. Ivan estendeu a mão e apertou a mão dela.
Elena balançou a cabeça. “Eu não posso ir sem Ivan. Eu não vou.”
“Você vai, e essa é a palavra final sobre o assunto.” Madame Usher olhou para
os gêmeos. “Você precisa crescer algum dia. Vocês dois, aliás.”
Nada mais foi dito sobre Moscou, ou sobre qualquer outra coisa. O almoço
terminou em um silêncio de pedra, Ivan perfurando cada pessoa na mesa com um
olhar gélido. Enquanto eu empilhava a máquina de lavar louça e embrulhava o resto
do rosbife para fazer sanduíches, Harrison entrou na cozinha carregando uma
braçada de madeira.
“Eu trouxe mais lenha. A previsão é de mais uma tempestade nesta semana.
Vamos visitar sua mãe esta tarde?”
“Claro que sim.” Bati a porta da geladeira e limpei as mãos no avental. “Eu posso
sair agora. Só preciso correr para cima e pegar meu violino.”
“Bom. Encontro você na frente da limusine. Se você encontrar com Dorien, diga
a ele que estou esperando.”
O rosto de Harrison escureceu. “Eu também não gosto disso, mas a família dele
mora perto do hospital e faz sentido todos nós irmos juntos.”
Suspirei. Claro, para salvar o meio ambiente e tudo isso. “Eu sei por que não
gosto dele, mas e você?”
Minha mão voou para minha boca. Dorien? Eu sabia o que Harrison suspeitava,
podia ouvir a acusação escorrendo de suas palavras. Eu tinha visto a crueldade nos
olhos de Dorien dirigidos a mim, mas eu não podia acreditar que o Dorien que eu
conhecia poderia matar uma garota.
Mas eu ainda o conhecia de verdade? Dorien tinha mais segredos do que uma
caixa-forte. Além disso, ele tinha me atormentado desde o momento em que cheguei,
e uma vez ele se importou comigo. Se essa Clare o tivesse contrariado, o que ele
poderia fazer com ela?
Saí da cozinha e fui para as escadas. Enquanto subia, meu olhar caiu para
aquele quadrado vazio na parede onde o retrato costumava estar. Ainda não tinha
voltado da limpeza. Eu me perguntei por que Madame Usher, geralmente tão exigente
para tudo estar em seu devido lugar, ainda não tinha falado com a empresa sobre seu
retorno tardio. Talvez ela reserve toda a sua ira para sua própria equipe, então.
“Harrison vai estacionar o carro aqui na frente, então encontre-o lá.” Eu apontei
um dedo para a escada.
Peguei minha bolsa e estojo de violino e desci as escadas de dois em dois, muito
nervosa para me importar em escorregar e quebrar o pescoço. Eu sentia tanta falta
da mamãe. Se ela estivesse acordada e coerente, ela teria conselhos sobre como lidar
com a Manderley e os garotos Broken Muse. Eu podia apenas imaginá-la com um
cappuccino nas mãos, espalhando café quente em todos os lugares enquanto
gesticulava loucamente, me contando uma história de como ela conquistou alguns
executivos difíceis com sua inteligência e perspicácia.
Harrison ligou o botão do rádio e uma forte explosão de estática explodiu pelos
alto-falantes. “Sem recepção até chegarmos mais perto da cidade.”
Dez minutos na estrada e três músicas pop depois, uma veia latejava na cabeça
de Dorien. Folheei minha lista de músicas, escolhendo música após música que eu
sabia que o deixaria louco. Eu coloquei 'Achy Breaky Heart' e Harrison cantou as
palavras, sua voz um maravilhoso tenor retumbante.
Mantive um fluxo de sucessos dos anos 80, a época favorita da minha mãe, e
estava me divertindo tanto que mal percebi o caminho passar. Harrison virou por uma
estrada estreita. Uma cerca alta de pedra corria ao longo da vala, com arame farpado
enrolando no topo. Dorien olhou pela janela, imóvel como uma estátua. O clima no
carro ficou gelado, e nem mesmo os maiores sucessos de Prince conseguiram derretê-
lo.
Dorien já havia aberto a porta traseira e saído. “Obrigado.” Ele acenou para
Harrison. “Vejo você de volta aqui às 16h.”
“O que é que foi isso?” Deslizei de volta pelo assento de couro e peguei uma
garrafa de suco de maçã do bar.
“Essa é a propriedade Valencourt.” Harrison agarrou o volante com tanta força
que os nós dos dedos ficaram brancos. “Eu não gosto de passar por aqui. Me dá
arrepios.”
“Uhmmmm. Os pais de Dorien não são vistos em público há dez anos. Há todos
os tipos de rumores estranhos sobre o lugar.”
Esperei que Harrison elaborasse, mas ele não o fez. Entramos na cidade e
Harrison me deixou do lado de fora do hospital. Demorei um pouco para me orientar
e encontrar a ala correta, mas, finalmente, parei do lado de fora de uma sala com uma
placa escrita DE WINTER na porta.
“Ei, mãe. Como estão as coisas?” Eu deslizei na cadeira ao lado de sua cama.
Nenhum plástico duro aqui. O quarto era um pouco como um quarto de hotel de 4
estrelas, se você apertasse os olhos e ignorasse a cama de hospital e as máquinas de
bipe que mantinham minha mãe viva. “Lamento não poder vir na semana passada.
Senti a sua falta.”
Toquei sua mão, me fortalecendo com o calor em seus dedos. Sempre esperei
encontrar sua pele fria e sem vida, por causa de sua aparência. Mas esse calor me
dava esperança, e essa esperança me mantinha ligada a ela, pagando os custos
crescentes do hospital semana após semana.
Ela estava em coma há sete semanas. Seu prognóstico era ruim porque seus
rins estavam falhando, e eles nem sabiam o que havia de errado com ela. Mas eu não
podia suportar o pensamento de minha mãe vibrante, ruidosa e esquecida fora deste
mundo. E assim aguentei, por muito mais tempo do que deveria, mas não consegui
apagar a chama da esperança que queimava dentro de mim.
“Você é a Sra. Usher?”
Eu me virei com a voz. Uma médica jovem estava parada na porta, sua boca em
uma linha nascida de noites tardias e resultados sombrios. Eu desatei a rir.
“Eu não fui expulsa de uma história de terror gótico, então não, não sou eu.”
“Desculpe.” Ela olhou para o tablet em sua mão, uma mecha de cabelo loiro-
avermelhado solto caindo de seu coque e balançando sobre seu rosto. “Eu tenho uma
Usher nos arquivos, junto com um homem chamado Harrison. Ninguém mais a visitou
desde que ela chegou. Eu sou a doutora Henrietta Nelson, e estou assumindo que
você é a sua filha, Faye?”
“Eu ia ligar para a Sra. Usher no final do meu turno, mas já que você está aqui
agora, posso lhe dizer. Recebemos alguns resultados de testes que lançaram luz sobre
o que aconteceu com a Sra. De Winter. Parece que sua mãe foi envenenada.”
“Envenenada?”
Dra. Nelson assentiu. “Neste momento, não podemos assumir que foi
deliberado; isso é para a polícia decidir.”
“A polícia? Você está dizendo que foi...” Eu não conseguia forçar a palavra
‘assassinato’ a sair dos meus lábios. Essa palavra não poderia pertencer a nenhuma
frase associada à minha mãe.
“Existem duas maneiras pelas quais um veneno pode causar danos ao corpo.
Uma delas é tomar uma grande dose de uma só vez. A outra é quando um paciente
ingere uma pequena quantidade de veneno por um longo período, cada dose individual
não o suficiente para causar um dano visível e, em alguns casos, nem é detectável em
testes, mas com o tempo ele se acumula no corpo até que um dia...” ela olha para a
minha mãe com preocupação.
Ela assentiu. “Nós chamamos isso de envenenamento crônico, era uma maneira
comum de envenenadores administrarem arsênico durante o século 19, mas não o
vemos com frequência em um hospital moderno, pois as pessoas geralmente vão ao
médico com mais sintomas antes de atingir esse estágio. Não foi arsênico, no entanto,
não é algo que já vimos antes, e é por isso que os médicos de sua mãe não puderam
ajudá-la até agora. Saberei mais quando nosso laboratório identificar o veneno, no
qual estão trabalhando agora como sua principal prioridade. O culpado mais provável
é algum tipo de suplemento não regulamentado ou medicina não tradicional. Sua mãe
estava comendo ou bebendo algo fora de sua dieta habitual, algo que aqueles ao seu
redor não ingeriam?”
Fechei os olhos com força, tentando me lembrar. “Ela costumava tomar esses
chás de ervas especiais. Sua assistente os encomendava a granel e fazia um para ela
todas as manhãs. Mamãe disse que eles ajudavam sua memória e habilidades
cognitivas, mas eles tinham um gosto tão amargo e nojento que eu nunca quis beber.”
“Você teria acesso a alguns desses chás? Se eles são a fonte, isso nos ajudaria
a identificar o veneno.”
Envenenada.
A Dra. Nelson deve ter visto o horror em meu rosto, pois ela entrou na sala e
colocou a mão sobre a minha. Suas feições estoicas se transformaram em algo como
um sorriso. “Eu sei que isso é difícil de ouvir, mas pode ser uma boa notícia. Se
pudermos encontrar a fonte do veneno, pode haver uma maneira de criar um antídoto.
Alguns dos sistemas internos de sua mãe foram danificados, mas o coma interrompeu
o colapso de seus órgãos. Não quero aumentar suas esperanças até sabermos com o
que estamos lidando, mas ainda há esperança para se agarrar aqui, mais esperança
do que a maioria possui.”
“Não me agradeça ainda.” Ela deu um passo para trás, reorganizando seu rosto
de volta em sua máscara prática. “Farei tudo o que puder por ela. Mas Faye, você
precisa falar com a polícia e descobrir tudo o que puder sobre este chá. Se essa for a
fonte do veneno, ele precisa ser retirado do mercado imediatamente. Lidamos com
vários casos de complicações de saúde de pessoas que tomam remédios de ervas feitos
com ingredientes perigosos. O bem-estar é uma coisa muito importante, mas muitos
desses produtos não foram testados. Se pudéssemos salvar outras vidas…”
Minha outra mão se fechou em um punho. “Não se preocupe, eu não vou deixar
ninguém sair impune disso.”
Dra. Nelson saiu e eu peguei meu violino. Eu geralmente tocava Nigun para
minha mãe, mas hoje, eu estava muito nervosa com as notícias para fazer justiça a
essa peça. Em vez disso, lancei-me no Caprice No. 5 de Paganini, enchendo a sala com
ousadia, luz e fúria enquanto meus pensamentos giravam ao meu redor.
Envenenada.
Minha cabeça girou. Não fazia sentido. Era algo saído de um filme ruim de
mistério e assassinato. Dra. Nelson parecia acreditar que poderia ser culpa de uma
empresa de chá de ervas sem escrúpulos, mas havia outra opção. Uma que eu não
gostaria de considerar, mas tinha que fazer.
Alguém poderia ter misturado o chá da minha mãe com outro veneno. Meu
primeiro pensamento foi sua assistente, Natalie, que fazia o chá e que há muito
desejava um papel maior na empresa, mas poderia ter sido qualquer pessoa com
acesso ao depósito onde o chá era guardado.
A polícia veio mais tarde naquele dia, e eu dei a eles meu depoimento e uma
lista de nomes de pessoas que eu me lembrava de trabalhar na empresa de mamãe,
bem como uma descrição do chá e sua embalagem. Eles pegaram outra declaração da
Dra. Nelson, então me deixaram sozinha para tocar para mamãe novamente.
A próxima coisa que percebi foi que Harrison ligou para dizer que estava lá
embaixo. Guardei meu violino e beijei sua bochecha quente. No corredor, Dra. Nelson
passou, prancheta na mão. “Obrigada,” eu disse a ela. “Esta é a primeira vez em dois
anos que temos algo parecido com uma resposta.”
“Eu te ligo se descobrirmos mais alguma coisa.” Ela deu um tapinha no meu
ombro. “Você toca lindamente, a propósito. Da próxima vez que você visitar, você acha
que estaria interessada em tocar para alguns de nossos outros pacientes? Não há
muito para animá-los por aqui, então acho que eles adorariam ouvir músicas bonitas.”
“Eu adoraria.”
“Terminei minhas tarefas mais cedo,” explicou Harrison. “Até mesmo peguei
uma nova fechadura para o seu quarto, que instalarei assim que voltarmos. Decidi
sair e pegar Dorien primeiro, para dar a você um pouco mais de tempo com sua mãe.”
Eu o ignorei.
“Você está chateada.” Suas palavras queimaram minha pele como fogo. Não era
um questionamento. “É a sua mãe?”
“Faye...” A forma como sua boca se ergueu nas bordas enquanto ele falava meu
nome, e como seus olhos revelavam os pensamentos desviantes que ele mantinha
para sua própria diversão... Foda-se. Eu contaria a ele todos os meus segredos mais
sombrios se aquele olhar fosse realmente para mim.
“Eu vou te contar sobre minha mãe se você me disser por que sua casa está
cercada de arame farpado,” eu atirei de volta.
Mas não era para ser. Nós dirigimos todo o caminho de volta para Manderley
em um silêncio de pedra, olhando um para o outro com cautela de lados opostos da
limusine enquanto o aviso de Harrison soava na minha cabeça.
Isso não me incomodou tanto. Ou pelo menos, eu disse a mim mesma que não
incomodava.
Minha nova humilhação era o trabalho em conjunto, onde todos tinham que
estar em grupos para trabalhar em concertos. Os gêmeos eram inseparáveis, e os
cacos de safira de Ivan deixavam claro que ele me apunhalaria se eu chegasse perto
de sua irmã. Aroha e Titus tinham definitivamente um flerte acontecendo, uma fervura
de ciúmes doía na minha barriga com a ideia de ficar presa naquele sanduíche, e
Heather parecia permanentemente presa ao quadril de Dorien. Eu saía da sala sempre
que eles tocavam juntos. Eu dizia a mim mesma que era porque era uma pena ver o
talento de Dorien sendo derrubado por Heather, a súcubo que sugava a vida de cada
músico com quem ela tocava. Mas a verdade, era o meu ciúme falando mais alto de
novo.
O que era ridículo para caralho, porque não era como se algum dos Musos
quisesse tocar minhas cordas. Tinha mais a ver com o fato de que eu queria que eles
me vissem como uma igual, como alguém digna de compartilhar seus holofotes. Era
como ser escolhida por último para as equipes das aulas de ginástica, mas apenas
cem vezes pior porque, ao contrário da ginástica, eu era realmente boa para caralho.
No violino talvez, não no sexo. Eu só tinha feito isso uma vez antes. Mas não
que eu quisesse ficar na horizontal com qualquer um dos caras. Eu não tinha vontade
de ter os olhos frios de Ivan fixos nos meus, ou sentir as mãos enormes de Titus nas
minhas costas, ou o pau de Dorien...
Era um ponto discutível, já que nenhum deles falava comigo. As únicas pessoas
que proferiam palavras em minha direção eram Mestre Radcliffe, durante nossas
aulas, e Madame Usher, para me atacar por alguma infração percebida.
Uma noite, depois de voltar de outra visita à minha mãe, sem alterações, sem
resultados do laboratório ainda, eu estava na cozinha, planejando os cardápios para
a semana seguinte e cortando e assando um monte de legumes que eu poderia usar
nos próximos dias. Percebi que se eu tomasse cada segunda-feira como uma noite de
preparação, eu seria capaz de cozinhar a maior parte da comida, me dando mais
tempo durante a semana para praticar.
“Cai fora, lixo,” ela murmurou quando me viu, mas as palavras não tinham
veneno algum.
Mudei meu peso de pé para pé. Aroha estava falando comigo, por vontade
própria. Claro, pode ter sido um insulto, mas mostrava uma coisa, Aroha não estava
de acordo com as regras que Dorien havia colocado em prática. Uma esperança tola
surgiu em meu peito, o tipo de esperança nascida da solidão e do desespero.
Aroha deu de ombros. Tomei isso como um convite. Peguei outro vaso e o virei,
caindo na superfície úmida ao lado dela. Peguei o maço de cigarros com cuidado,
esperando que ela o arrancasse das minhas mãos. Ela olhou para a caixa como se
estivesse debatendo, então deu de ombros novamente. Tirei um cigarro do maço e
levei-o aos lábios. Eu realmente não fumava, mas tentei algumas vezes na minha
escola de merda na tentativa de me encaixar. Acontece que fumar não torna os nerds
idiotas da música mais legais, a menos que você se pareça com Dorien Valencourt.
Quem teria adivinhado, não é mesmo? Às vezes eu compartilhava um cigarro com os
outros funcionários depois de um turno tardio no bar, Cory, O esquisito, não podia
estar perto de fumaça de cigarro por causa de sua asma, então isso me deu uma
pausa em seus comentários lascivos sobre meu corpo.
Dei uma longa tragada no cigarro, deixando a fumaça encher meus pulmões.
Uma calma tomou conta do meu corpo. Isso quase parecia normal.
“Eu venho aqui porque às vezes não aguento naquela casa,” Aroha disse,
batendo seu anel de diamante contra a terracota. “Todos aqueles móveis
extravagantes. Todos aqueles olhos mortos olhando para você das paredes. Parece
uma cápsula do tempo ou a casa de uma pessoa depois que ela faleceu. Gosto de estar
aqui onde as coisas estão vivas, recuperando os limites da propriedade. Faz eu
lembrar da minha casa.”
“Nova Zelândia. Meus pais dirigem uma igreja. Costumávamos viver à beira de
uma cordilheira chamada Waitakeres. Passei minha infância subindo em árvores,
caçando coelhos, pegando enguias no riacho. Então papai decidiu se tornar um
pregador e nos mudamos para a cidade, e então eles me mandaram para cá.” Ela
parecia amarga sobre isso, mas podia ser apenas sua relutância em falar comigo.
Ah, o sotaque dela fazia todo o sentido agora. “Você sente falta da Nova
Zelândia? Deve ter sido interessante crescer lá.”
Ela deu de ombros. “Foi normal, eu acho. Não há exatamente hobbits selvagens
correndo por toda parte como a maioria dos americanos supõe. Minha família é Maori,
o povo indígena de Aotearoa, Nova Zelândia. Nós vivíamos em nosso marae, é como
uma casa de reunião para nossa comunidade. Fui praticamente criada por minhas
tias e primos. Sempre havia música, risadas e jogos. Meus pais desistiram de muita
coisa quando se mudaram para a cidade, e a cidade nem sempre os aceitava em troca.
É o mundo de Pakeha.”
“Pakeha?”
“Mas você ama a música.” Aroha adorava peças atonais, que tocava com uma
agressividade solta.
"Claro. Mas mais do que isso, eu amo ser uma garota não-branca em um mundo
de músicos brancos.” Ela sorriu. “Apenas espere, lixo. Assim que eu sair daqui, vou
usar essa educação clássica para trazer minha herança musical para o centro das
atenções. Eu tenho planos, então não os estrague para mim deixando transparecer
que eu tolero sua presença.”
“Nós não devemos falar com você. Ordens de Dorien. Normalmente, eu não dou
a mínima para o que alguém diz, e você parece inofensiva, mas os garotos do Broken
Muse parecem particularmente ansiosos para tirá-la daqui, e eles têm uma conexão
direta com Madame Usher. Preciso que ela goste de mim ou não vou me formar.” Uma
escuridão passou pelos olhos de Aroha, mas desapareceu em um momento.
Inclinei-me para frente, balançando meu cigarro entre os dedos, meu coração
batendo forte. Ela sabia de alguma coisa. “Você acha que se você não fizer o que Dorien
pede, ele poderá influenciar Madame Usher?” Ele realmente mexeria com toda a
carreira de alguém assim?
Aroha deu de ombros. “Você conhece Dorien? O cara é gostoso como o pecado,
mas ele tem os olhos loucos de um assassino em série.”
“Você estava aqui quando Clare... Caiu da escada?” Lembrei-me bem a tempo
de não revelar as suspeitas de Harrison a ninguém, muito menos a uma colega
estudante.
“Sim.” Ela estremeceu com a lembrança. Estendi a mão atrás de mim, curiosa
sobre a estranha planta saindo de uma rachadura no vidro. “Todos nós estávamos na
casa, exceto os gêmeos, que estavam em um recital. Clare estava meio louca, muuuito
obcecada por Dorien, mas ele... Não toque nisso!”
Aroha deu um tapa na minha mão. Forte. A picada de dor deixou uma marca
em minha palma. Eu esfreguei o local. “Porque você fez isso?”
“Isso é planta monk. É altamente venenoso. Se você deixar a seiva tocar na sua
pele, é um grande problema.”
Aroha apontou para a estufa. “Olhe em volta. Este lugar inteiro é um jardim de
veneno.”
“Um... o quê?”
Ela apontou para um painel de madeira podre acima da porta fechada. Olhei
para ele, sem saber ao que ela estava se referindo, quando letras esculpidas
apareceram. Uma frase em latim: In cauda venenum.
Porra. Porra.
Não, é impossível.
Aroha deve ter visto algo no meu rosto porque sua expressão suavizou. “Olha,
Dorien não é realmente um serial killer. Ele é apenas um merda arrogante. Um
fodidamente lindo, mas um merda mesmo assim.”
Aroha jogou a cabeça para trás e riu. “Você é legal, lixo. Venha fumar um cigarro
comigo a qualquer momento.”
“De jeito nenhum. Não vou correr o risco de estar sob a ira deles. Não é apenas
com Dorien que você deve tomar cuidado, Titus e Ivan também não são anjos. Um
pequeno conselho, lixo. Todos em Manderley estão fugindo de alguma coisa. Os Musos
fazem questão de descobrir o que é esse algo, e então eles o usam para dobrar você à
vontade deles. Mantenha seus segredos bem guardados. Não os deixe entrar na sua
cabeça, ou eles vão arrancar seu coração enquanto ele ainda está batendo. Foi o que
fizeram com Clare.” Ela se levantou, esmagando a ponta do cigarro na terra com o
salto da bota. “Devemos voltar.”
Eu suspirei.
Lá, na janela, olhando para nós através do vidro, estava o contorno de um rosto.
“Merda.” Eu avancei, colidindo com Aroha. Ela cambaleou em suas botas altas,
jogando o braço contra um tronco de árvore para não cair.
“Vendo o quê?”
“Aquele rosto no meu quarto. Estava olhando diretamente para nós...” O rosto
havia sumido.
Saí correndo em direção à casa, meu coração batendo no meu peito. Ah, não,
de novo, não.
Muito silêncio.
Meu coração despencou no meu peito quando percebi que não havia luz
brilhando pela fresta debaixo da minha porta. Enfiei minha chave na fechadura nova
e lentamente, com cautela, abri.
Meus olhos varreram meus móveis. Eu tinha deixado os livros assim? Minha
gaveta de roupas íntimas deveria estar entreaberta? E aquele amassado na cama?
Tudo parecia manchado, sujo, porque eu sabia que alguém tinha estado aqui.
Como eles entraram? Como eles conseguiram uma chave para a minha nova
fechadura?
Olhei para cada canto escuro e em cada esconderijo concebível, meus ouvidos
atentos ao som de alguém fugindo escada abaixo. Mas não havia nada. A sala estava
vazia.
“Eu sei que você está aí.” Eu bati na porta com os meus punhos. “Mostre-se.”
Dei meia-volta e desci as escadas. Corri em direção à porta de Dorien, mas sua
voz flutuou da Sala Azul abaixo. Não podia ser ele, então. Mas eu sei quem podia ser.
“Não me venha com 'que porra é essa'.” Fiquei de pé com o máximo de dignidade
que pude reunir e me inclinei sobre a cama, mãos nos quadris, pernas afastadas, me
tornando maior do jeito que um gato eriçava o pelo antes de entrar em uma batalha
com um pitbull. “Você estava no meu quarto. E se esgueira para o depósito toda noite.
Eu ouvi você.”
Eu pretendia ameaçar Titus com a polícia, com qualquer coisa que eu pudesse
para fazê-lo parar de invadir meu quarto e perturbar meu sono com os passos no
depósito. Mas agora que eu estava aqui, e ele olhou para mim com cílios emaranhados
e um vinco de travesseiro em sua bochecha, seu lençol escorregando sobre seu torso
gloriosamente tatuado, as palavras secaram em minha garganta.
Titus esfregou os olhos. Ele certamente parecia estar dormindo. Mas eu não
tinha imaginado o rosto ou a luz se apagando no meu quarto. E ele admitiu ter estado
lá uma vez.
Titus se inclinou tão perto que sua respiração beijou meus lábios. O ar entre
nós chiava com a tensão. Eu não sabia o que aconteceria a seguir, apenas o que eu
queria que acontecesse.
“Eu não estive nem perto do seu quarto.” Uhmmmm, seu sotaque de Nova
Orleans ficava mais aparente quando ele estava cansado.
“Sim, você estava,” eu consegui sufocar. “Eu estava do lado de fora com Aroha
e vi um rosto na janela. Eu estava do lado de fora e vi a luz do meu quarto acesa e,
quando voltei, estava apagada.”
“Onde você conseguiu isso?” Eu pulei para pegar a chave, mas Titus a segurou
além do meu alcance.
“Clare deu uma cópia para Dorien para que ele pudesse se esgueirar durante a
noite. Eu podia ouvir a cama ranger daqui. Um aviso amigável para você, lixo, Dorien
tem uma coisa real sobre transar com as ajudantes. Deve ser algo sobre este vestido
preto apertado.” Titus esfregou o dedo dentro do meu braço, e mesmo através do tecido
grosso de lã, seu toque enviou um fogo pelo meu corpo.
“Você deveria ficar longe de mim,” Titus assobiou. Sua voz profunda reverberou
por todo o meu corpo, me trazendo de volta para mim mesma, para o momento
presente, para a escassa polegada de ar que era tudo o que me protegia do erro mais
delicioso da minha vida.
“Ou o que?” Tentei lançar isso como um desafio, mas as palavras saíram roucas,
cheias de desejo.
“Ou...” Ele escolheu terminar o pensamento com seus olhos, o fogo dentro deles
prometendo escuridão, depravação e bela obsessão. A tensão estalou entre nós, uma
tempestade de raios piscando entre nossos olhos. Por que, por que deixei Titus fazer
isso comigo?
Os dedos de Titus caminharam sobre meu pulso, trilhando ao longo das veias
pulsando contra minha pele. O toque foi leve, mas deixou um rastro de fogo contra
minha pele que derreteu minhas entranhas em uma bagunça vacilante. Minha
respiração engatou, e eu me atrevi a me inclinar um pouco mais perto, um pouco...
Apenas para sentir o ar mudar quando seus lábios roçaram os meus...
Dorien. Sua voz quebrou o feitiço. Eu soltei meu braço do aperto de Titus e me
virei para a porta. Dorien estava no corredor, uma tempestade em seus olhos
cinzentos, a tensão apertando seus ombros que não paravam de tremer. Titus olhou
com olhos esbugalhados para seu amigo, sua boca se movendo, mas nenhum som
emergindo, enquanto eu cambaleava em direção à porta, empurrando Dorien da
minha frente.
“Ela acha que eu estava no quarto dela.” Eu levantei meus joelhos para que
Dorien não tivesse que ver a barraca nos lençóis. Minhas veias latejavam com o fogo
da presença de Faye. “Não foi você? Aparentemente, ela estava do lado de fora com
Aroha e alguém apagou a luz do quarto dela.”
“O que ela estava fazendo lá fora com Aroha? Nossa regra de não falar com o
lixo ainda se aplica.” Dorien olhou para mim.
Dei de ombros. “Você sabe que Aroha gosta de ignorar as nossas regras.”
Dorien balançou a cabeça. “Não há como entrar com a nova fechadura que
Harrison instalou.”
Afundei na minha cama, o cheiro de Faye girando ao redor. Quando ela entrou,
seu cabelo selvagem ao redor de seu rosto e aquele olhar desafiador em seus olhos,
eu estive tão perto de...
A única coisa que me parou foi Dorien. Ele pairava na sala, um fantasma entre
nós, antes mesmo de aparecer na porta.
“E o depósito? Ela parecia pensar que alguém esteve lá em cima à noite, batendo
nas paredes e coisas do tipo.”
“Usher nunca entregaria a chave daquele lugar, nem mesmo se isso significasse
tirar Faye daqui para sempre. Duende provavelmente ouviu ratos ou algo assim.
Porque você se importa, afinal?”
Duende. Ouvir aquele apelido de infância voar de seus lábios fez meu estômago
revirar de inveja. Poderia facilmente ter sido eu a ter uma história com Faye, se meus
pais tivessem me mandado para uma escola diferente em Nova York. Desviei o olhar
para não desmoronar sob o olhar de Dorien. “Eu não me importo. Só acho que é um
desperdício de energia aterrorizá-la. Ela é uma musicista de merda e não consegue
atender à todas as demandas de Madame. Ela vai acabar se expulsando daqui.”
“Que energia? A única coisa que você precisa fazer é não falar com ela, mas,
aparentemente, até isso é muito difícil. Heather e eu estamos cuidando do resto.” O
tom petulante na voz de Dorien me lembrou da primeira vez que nos encontramos em
um acampamento de música no Colorado na nossa adolescência, e ele reclamou com
a equipe porque não queria dividir um quarto comigo. Era difícil decidir se
acabaríamos amigos ou inimigos amargos, mas Dorien tinha um magnetismo que
atraía qualquer um, e eu era uma criança desesperada pela aprovação de qualquer
pessoa. Quando o acampamento terminou, éramos como um velho casal. O tipo de
casal em que Dorien era o alfa e eu concordava com tudo o que ele dizia.
“Você me fez entrar no quarto dela junto com Heather. Enquanto ela dormia.”
Um calafrio percorreu meu corpo. Eu não gostei do jeito que isso me fez sentir, como
um perseguidor assustador. Foi por isso que contei a Faye, mesmo disfarçando a
história como outra parte de sua tortura. Ela merecia saber a verdade.
“Está bem. Eu não vou pedir para você fazer isso de novo. A partir de agora,
considere-se fora do plano.”
Eu balancei minha cabeça. “Não é assim também. Eu não quero ficar de fora.
Eu só…”
“O quê?” Dorien latiu. Ele parecia chateado para caralho, mas eu sabia que o
que se escondia por baixo desse aborrecimento era o medo. Eu nunca tinha visto
Dorien com medo antes, não do jeito que ele estava desde que voltamos para
Manderley.
Dorien endureceu quando viu o que eu estava segurando. “Você não deveria
guardar isso aqui. Se ela descobrir...”
Dorien sorriu para isso. Ele pegou uma camiseta preta da minha cômoda e jogou
no meu peito. “Verdade. Mas tenha cuidado, você não é o único que ela segura pelas
bolas. Não tenho certeza se posso protegê-lo.”
Aquele cheiro fazia coisas com a minha cabeça. Eu não conseguia pensar, porra.
Eu destravei a mala. Ela se abriu. Meu segredo olhou para mim, bonito e mortal.
“Dorien.” Faye se virou. O sorriso em seu rosto vacilou quando ela viu meu
rosto. “Qual é o problema?”
“Vim me despedir.”
“O que você quer dizer?” Seu cabelo saltou em seus ombros. “Você acabou de
chegar aqui. A aula começa em quinze minutos...”
“Quero dizer que esta é a última vez que nós veremos. Mamãe me transferiu
para outra escola de música.”
“Oh, isso é chato.” Mas seu rosto se iluminou. “Já sei! Vou pedir à mamãe que
me transfira também. Eu não suporto Madame Usher, de qualquer maneira. Ela não
parece gostar muito de mim. Acho que ela só me atura por causa do papai...”
O rosto de Faye congelou em choque. “O quê? O que você quer dizer? Íamos
tocar Beethoven juntos e...”
Lágrimas brotaram nos cantos de seus olhos. “Não use esse nome quando
estiver sendo horrível. É porque eu fui à sua casa na semana passada? Desculpe por
ter forçado você a me convidar, mas nos divertimos, não foi? Dorien, por favor,
explique isso para mim.”
Por favor, por favor, não torne isso ainda mais difícil.
“Não há nada para explicar. Eu não gosto de você, Faye. Fingi gostar de você
porque meus pais queriam que eu me aproximasse do seu pai. Mas não vale mais a
pena.” Eu estreitei meus olhos e conjurei os desejos sombrios e o ódio fervente que
queimava dentro de mim, e os joguei entre nós como um guerreiro grego erguendo seu
escudo.
“Dorien, eu...” Suas palavras foram sumindo quando as lágrimas caíram sobre
seus olhos e rolaram por suas bochechas. Faye nunca chorava, nem mesmo quando
Madame Usher gritava com ela ou quando seu pai saiu em turnê e se esquecia de
ligar. Ordenei aos meus pés que se movessem, que fossem até ela para que eu pudesse
abraçá-la e tirar sua dor. Mas eu não podia. Porque eu era a raiz daquela dor, a causa
daquelas lágrimas.
“Não entendo.” Faye deslizou em uma otomana estofada, seu violino caindo em
seu colo. “Pensei que seus pais gostassem de mim. Na sua casa eles disseram...”
“Eles estavam sendo educados. E eu também.” Eu me virei. Se eu tivesse que
olhar para ela por muito mais tempo, eu estragaria tudo.
Fora da sala.
No elevador.
Longe dela.
Não era tão difícil fingir ser um idiota. E talvez eu não estivesse fingindo. Afinal,
aprendi com os melhores.
Minha mãe esperava na parte de trás do carro, seu casaco marrom puxado em
volta do pescoço. Assim que eu deslizei no banco, ela indicou para o motorista nos
levar para casa.
Mamãe deu um tapinha na minha perna. “Não é tarde demais para mudar de
ideia, Dorien. Ela é uma boa combinação; Mesmo o padre Aaron diz isso.”
“Não se preocupe.” Ela tinha aquele brilho falso em sua voz, o tom que ela
sempre usava quando o padre Aaron queria que fizéssemos algo com o qual ela não
concordava. O tom não carregava poder algum, mas ela jamais o contradizia. “Já
encontramos para você alguém ainda melhor, de uma família menos volátil. Você a
conhecerá em sua nova escola. O nome dela é Heather Danvers.”
Meu telefone apitou, me assustando para fora do meu sonho. Esfreguei os olhos,
tentando apagar a imagem do rosto esperançoso de minha mãe e as bochechas de
Faye manchadas de lágrimas. Corri para o telefone, meu coração batendo forte quando
vi que era uma mensagem dele.
Ei, espero não acordar você, mas as coisas estão ruins aqui. Aaron bate na mãe,
ele está com raiva o tempo todo e continua falando sobre essa coisa chamada ascensão.
Eu queria que você voltasse.
Essa foi a mensagem mais longa que ele já enviou. Deve ter levado muito tempo
para ele escrever todas as palavras. Meus pais nunca permitiram que ele estudasse
adequadamente, então ele era lento na escrita e na leitura.
Meu peito torceu com ódio frio e feio. Como eles não podiam ver o que estavam
fazendo com ele? Como eles podiam acreditar que está vida era melhor? Minha mãe
costumava me culpar por isso. “Você acabou desse jeito porque nós lhe demos tudo
em uma bandeja de prata. Você não tem disciplina. Está corrompido pelo mundo da
riqueza material. Não cometerei os mesmos erros duas vezes.”
Não, acabei desse jeito porque você nunca me amou a menos que eu cumprisse
com suas condições. Porque eu nunca fui bom o suficiente, então parei de tentar. Porque
você continua me chamando de 'erro'.
Mais do que tudo, eu queria escapar dessa jaula que fiz para mim mesmo no
dia em que deixei de ter Faye como minha amiga, mas estava preso. As palavras de
Madame Usher ecoavam em meus ouvidos. Uma nova aluna chegará em breve. Eu
preciso que você a destrua. Faça o que eu digo, ou eu vou cortar você do programa.
Quanto tempo você acha que vai durar quando o mundo descobrir a verdade sobre sua
família?
Ela pensou que isso era tudo com o que eu me importava. Mas ela não sabia
nem a metade.
Claro, Madame se lembrava de que Faye e eu éramos amigos. Foi por isso que
ela me escolheu; se alguém pudesse se enterrar no coração de Faye e apodrecê-la por
dentro, seria eu. E era isso que eu estava fazendo, transformando tudo o que tocava
em cinzas e pó.
Fiquei acordado, imaginando Faye em sua cama acima de mim, vestindo aquele
pijama sexy para caralho do Snoopy que se agarrava às suas curvas, fumegando
porque eu havia interrompido o que quer que estivesse acontecendo entre ela e Titus.
E mesmo que o pensamento deles se tocando fizesse meu corpo queimar de ciúmes,
eu não me importei, porque Titus era um cara bom, quase bom o suficiente para ela.
Ele não iria bagunçar as coisas com ela... Não a menos que eu mandasse.
Mas eu permaneci quieto, paralisado mesmo quando meu pau estremeceu com
antecipação, revirando a situação em minha mente, procurando por uma brecha, uma
solução.
Não posso imaginar Titus nu debaixo dos lençóis. Não posso considerar que ele
não poderia ter sido a pessoa no meu quarto. Ele não teria se arriscado a descer as
escadas nu, o que significava que, no momento em que cheguei ao segundo andar, ele
precisaria ter descido as escadas correndo e subido na cama sem ficar ofegante ou
cheirando a suor...
Então, quem mais poderia ser? Harrison tinha ido até a guarita, e as luzes de
Maestro Radcliffe estavam acesas no estábulo quando voltei para a casa, ou seja,
nenhum deles estava lá dentro. Madame Usher mal conseguia subir aquela escada,
de jeito nenhum ela teria sido hábil o suficiente para descer tão rapidamente, então
não foi ela também. Aroha estava comigo, e Elena, Dorien e Heather estavam na Sala
Azul.
O único fora dessa equação era Ivan. E eu assumi que ele estava na Sala Azul
também porque ele nunca saía do lado de Elena, mas alguém tinha que ter estado no
meu quarto... Porque a única outra possibilidade era que um fantasma tinha feito
tudo aquilo, e isso era ridículo.
Ivan era a única pessoa que eu poderia ter visto na minha janela. E eu estava
farta de engolir a merda dos Musos. Era hora de revidar.
Levei alguns dias para descobrir como me vingar de Ivan. Ele e Elena iam a
todos os lugares juntos, e apesar do fato de que ela nunca disse uma palavra para
mim e parecia uma cadela insensível, eu não queria envolvê-la. Esta não era sua
batalha.
Então, uma noite, durante o jantar, Madame Usher anunciou a próxima visita,
o maestro da Filarmônica de Berlim. Ele estava na América recrutando estudantes
para uma residência intensiva de uma semana e solicitou uma apresentação de cada
um dos alunos, então nós o receberíamos para um recital completo de nosso trabalho
mais polido. Algo que minha mãe disse passou pela minha mente então.
Ela estava tentando conseguir um contrato com um ator famoso que estava
lançando uma linha de mercadorias, mas outra empresa de relações públicas estava
querendo o mesmo acordo. O cara que dirigia essa empresa era famoso por não
divulgar conteúdo patrocinado nas mídias sociais; ele construiu algumas marcas de
celebridades de sucesso com base em seu marketing de influenciadores ‘autêntico’,
enquanto minha mãe sinalizava todas as propagandas, o que significava que suas
campanhas tinham menos alcance. Ele falou mal dela por toda a cidade, e continuei
perguntando por que ela não revidava. Ela apenas sorria para mim. “Não se preocupe
comigo. Estou mantendo minhas mãos limpas enquanto ele cava sua própria cova.”
As coisas de Ivan eram muito mais arrumadas, sua cama feita com precisão
militar, uma pequena pilha de roupas sujas colocadas no cesto, uma pilha de livros
de música arrumados em sua mesa. Todo o seu cuidado tornou óbvio onde eu
precisava procurar. Eu puxei gaveta após gaveta em seu armário, procurando os
esqueletos que eu sabia que existiam. Não encontrei nada além de camisas
perfeitamente dobradas e meias enroladas. A especialista em organização Marie
Kondo ficaria tão orgulhosa...
Quem diria...
Eu sabia o suficiente sobre drogas para saber que estava olhando para uma
grande quantidade de cocaína.
Além do baseado ocasional, eu nunca tinha visto outras drogas de perto antes.
Mas eu tinha visto seus efeitos nos eventos de negócios da mamãe. Caras
completamente malucos, perseguindo mulheres que não queriam ser perseguidas.
Mulheres acreditando que eram invencíveis porque tinham dinheiro e um escudo de
névoa induzido pelas drogas. Em nosso último apartamento, pude ver o outro lado;
viciados nas esquinas, vitrines saqueadas. Uma vez, um cara me perseguiu quatro
quarteirões enquanto declarava em voz alta seu desejo de me abrir e comer meus
intestinos.
Este saquinho de ouro branco era exatamente o que eu estava procurando, era
a pá que Ivan usaria para cavar sua cova. Eu só não esperava uma pá tão grande.
Este não era um estoque pessoal, era o suficiente para um retiro de ioga de
Robert Downey Jr. ou uma festa de estudo em uma faculdade de ricos. E as pessoas
que traficavam drogas tendiam a ser perigosas, ou tinham amigos perigosos.
Mas então eu pensei em como eu lutava para dormir, em como eu olhava por
cima do ombro toda vez que entrava em um quarto e tinha que checar debaixo da
minha cama, caso um dos caras estivesse escondido lá. Pensei na minha sensação
desgastada de segurança, de paz, e endireitei o maxilar. Esta é a coisa certa...
Eu pulei com a voz, batendo meu cotovelo na gaveta aberta. Minha mão voou
para trás, empurrando a coca no cós da minha saia. Olhei para Ivan, que se encostou
no batente da porta e me olhou com olhos de gelo e safira. Aquele olhar impenetrável
que faria qualquer garota desejar ser a única a abrir seu coração congelado.
Essa era a questão, na verdade. Eu não conseguia ver Ivan como um viciado ou
um traficante, mas então... A Manderley era uma casa cheia de segredos. Eu não
podia recuar agora que tinha descoberto o dele.
“Olho por olho. Você esteve no meu quarto, afinal.” Eu me endireitei, tentando
mover meu corpo sem deixar o pacote escorregar da minha saia.
Ele não negou. Em vez disso, ele deu um passo em minha direção, suas longas
pernas esticadas sobre uma pilha de lixo de sua irmã. Meu coração disparou. “Então
você acredita que isso nos deixa quites?”
Até sua voz soava glacial, lenta e primitiva, aquele sotaque romeno afiado como
gelo. O som vibrava pelo meu corpo mesmo quando eu dei um passo para longe dele.
Enquanto Ivan se aproximava, notei a maneira como ele se movia, um aperto em seus
membros, uma tensão em seus passos. Ele estava lutando para manter o controle.
Nós circulamos um ao outro como dois animais prontos para atacar, mas o que
aconteceria se um de nós fizesse o primeiro movimento; banho de sangue ou uma
foda? Ambos eram resultados igualmente prováveis, mas apenas um fazia meu corpo
formigar de antecipação.
Ivan deu um passo em direção à cama, e eu circulei ao redor da parede até ter
um caminho livre para a porta. Enquanto eu voltava para o corredor, Ivan falou
novamente. “Faye?”
Meu nome em seus lábios era uma fodida poesia. Eu levantei uma sobrancelha.
As feições de Ivan não vacilaram, mas algo cintilou em seus olhos, uma pitada
de emoção, uma pista de que ele não era inteiramente feito de gelo. “Tome cuidado.”
Abri a boca para perguntar o que ele queria dizer, mas ele bateu à porta na
minha cara em seguida.
O dia da visita do maestro chegou. Eu tinha ficado acordada até depois da meia-
noite na noite anterior, preparando a refeição da noite para que eu só precisasse
esquentar as coisas no dia seguinte. Eu poli a prataria de prata até que ela brilhasse.
Quando finalmente me arrastei para a cama, ansiava por dormir, mas os Musos
decidiram intensificar sua tortura. Em vez dos passos e rangidos soando no meu
quarto, o som mais fraco de música de violino arranhava o ar.
Tinha que ser uma gravação, estava quieto demais para ser alguém tocando no
depósito, e ninguém ousaria tocar lá embaixo tão tarde da noite por medo da ira de
Madame Usher. Aquele era o ataque deles a mim porque eles sabiam que eu estava
bisbilhotando no quarto de Ivan. Eles provavelmente sabem que eu estou com a cocaína.
Eles estão tentando me manter acordada, para então eu tocar mal amanhã. Bem,
aposto que eles não sabiam que depois que meu pai foi embora, a única maneira de
mamãe me fazer dormir era com o som dos shows dele. Adoro dormir com música
tocando. Então...
Só que, ao que parece, eu não era mais criança, e música de violino podia ser
irritante para caralho quando você a adiciona a um sótão abafado, nervos de
performance e a trama para destruir um Muso. Eu me mexi e me virei a noite toda,
lutando por cada pedaço de sono que eu lutava para ter contra a escuridão
perturbada. Quando o alarme disparou às 5h30, eu o joguei do outro lado da sala.
Arrastei-me escada abaixo, fiz queijo grelhado para mim, preparei granola e
iogurte para as doninhas reais e voltei para o sótão.
De volta ao meu quarto, comecei minha inspeção diária dos armários e cantos
em busca de um intruso. Empurrei a cama para o lado, a cômoda e o baú para pisar
no assoalho. Então, apertei cada painel de madeira e arranhei cada rachadura da
sala, procurando uma passagem secreta. Eu odiava estar deixando os alunos
chegarem até mim mesmo depois de eu ter trocado a fechadura, mas saber que eles
poderiam entrar no meu quarto a qualquer hora que quisessem e tocar minhas coisas
me deixou permanentemente no limite. Cada rangido e gemido da velha casa me fazia
sentar na cama, com o coração na garganta.
Enrolei uma toalha em volta de mim e voltei para o meu quarto. Os nervos
rastejavam entre os meus ombros. Eu odiava isso. Então inclinei meu queixo
desafiadoramente. Se um dos caras estava assistindo, então que eles tivessem a porra
de um show.
Mas ao pensar em seus olhos em mim, o calor queimou entre minhas pernas.
Meu corpo me traiu, ansiando por algo que não existia. Eles estão tentando me
destruir, e tudo que eu posso pensar é no quanto eu os quero. Qualquer um deles. Todos
eles. Eu estou doente. Eu preciso de ajuda.
São apenas os canos retinindo. Eles sempre fazem isso depois que você toma
banho. Acalme-se. Não há ninguém aqui.
Meus dedos tremiam quando soltei os fechos e puxei o material colante sobre
minha cabeça. O cetim cobriu minhas pernas, agarrando-se aos meus quadris e se
espalhando em uma saia de rabo de peixe que acentuava minha forma de ampulheta.
Um painel de renda vermelha entre o decote em forma de coração, amarrado em um
cabresto em volta do meu pescoço, deixava meus ombros nus. Eu fiz um pequeno giro
e sorri para o meu reflexo.
Eu posso não ser libertinamente magra como Heather, mas ainda posso parecer
muito bem.
Enfiei a cocaína no bolso secreto, peguei meu estojo de violino e desci a escada
enquanto os outros alunos se reuniam no saguão de entrada. Mesmo sendo apenas
10 da manhã, Heather e Elena seguravam taças de champanhe, a beleza de duende
de Elena apenas realçada por seu vestido azul-celeste, enquanto Heather parecia estar
fazendo um teste para a primeira temporada de My Big Fat Baroque Wedding com um
enorme e bufante, uma monstruosidade de vestido. Os garotos do Broken Muse
podiam usar enfeites barrocos falsos por causa de sua boa aparência quase sobre-
humana, mas Heather não tinha as mesmas bênçãos.
Enquanto descia a escada, minha perna roçando na cocaína a cada passo, três
pares de olhos seguiam cada movimento meu. A tempestade cinzenta, a chama
escura, o pedaço de safira; seu olhar coletivo me atiçou e fez coisas estranhas em
minhas entranhas. Eu não entendia como essa tensão sexual havia surgido entre nós
no meio da luta pelo poder que estávamos travando. Mas por hoje eu estava
determinada a não deixar os Musos verem como eles me afetavam. Esta noite era a
minha vez de revidar.
Madame Usher entrou, suas saias pretas arrastando atrás dela. “Vocês todos
parecem fantásticos. E se ainda não o fizeram, por favor, vão para a sala de música e
afinem seus instrumentos.”
“Eu sintonizei mais cedo, assim como Titus e Ivan,” Heather disse naquele
trinado irritante dela. “É sempre bom estar preparado e tratar bem o seu
instrumento.”
Morda-me.
Segui Aroha até a sala de música, colocando meu estojo de violino ao lado do
de Ivan. Enquanto ela fechava a porta atrás de nós e puxava a fechadura, abri as
travas da maleta de Ivan e enfiei o saco de cocaína dentro. Levantei-me assim que ela
se virou para mim, um sorriso vicioso brincando em seus lábios.
Foi por causa do bullying dos Musos que minha mente imediatamente saltou
para a ideia de que ela ia fazer algo comigo.
“Por que você trancou a porta?” Tentei manter a voz calma enquanto enxugava
as palmas das mãos suadas no vestido.
Cocaína.
O sangue correu para os meus ouvidos. Depois de ter passado as últimas vinte
e quatro horas com o estoque de Ivan em minha posse, me ofereceram mais drogas?
Isso é algum tipo de teste?
Aroha sorriu. “Você é quem perde.” Ela se ajoelhou ao lado da mesa de café e
desenhou uma linha. Meus dedos tremiam quando destranquei meu estojo e removi
meu instrumento. Não pense no que ela está fazendo. Não é da sua conta. Não importa.
Mas importava. Importava tanto que minhas mãos tremiam enquanto eu
tentava afinar o violino. E eu não conseguia saber o porquê. Aroha não era realmente
minha amiga. Por que eu me importava com o que ela fazia?
É porque eu sei que ela não vem do tipo de riqueza que os outros desfrutam? Que
Ivan era um traficante de drogas aproveitando-se de seus nervos para deixá-la viciada
em um hábito que poderia custar sua carreira?
Meu estômago embrulhou. Será que eu cometi um grande erro? Mas não, a coca
estava na gaveta de Ivan. Tinha que ser dele. Além disso, era tarde demais para tirá-
la agora.
Boris fez um tsk. “Da última vez que o hospedamos, você jogou uma TV em uma
piscina e fez com que a polícia fosse chamada ao seu hotel.”
“Três vezes,” Titus saltou, um sorriso malicioso se espalhando por seu rosto.
Hans assentiu. “Já, três vezes. Minha orquestra não pode arcar com outro
escândalo, ou perderemos o financiamento.”
Dorien fez o sinal da cruz. “Juro pelo Todo-Poderoso que nós três estamos em
nosso melhor comportamento.”
“Vou acreditar quando ver. E Elena Nicolescu.” Hans apertou a mão dela, seus
olhos a absorvendo. “Você continua tão encantadora como sempre.”
Madame empurrou Aroha para frente. “Esta é Aroha Rawhiri, da Nova Zelândia.
E esta é Heather Danvers, do New Jersey Danvers.”
Sete pares de olhos voaram para mim, a maioria deles brilhando com
aborrecimento.
“Esta é... Faye.” Madame Usher respondeu rigidamente. “Ela era aluna da
minha escola de Nova York antes de se mudar para o sistema de ensino público. Temo
que a técnica dela nunca se recupere.”
Eu amo o jeito que ela diz 'escola pública', como se fosse uma doença.
“Faye De Winter,” Aroha saltou da parte de trás. Eu olhei para ela, e ela me deu
um aceno astuto.
“Surpreendente. Aquele homem tinha uma técnica de spiccato que nunca foi
replicada. Todo o mundo clássico ficou devastado quando ele desapareceu. Eu não
tinha ideia de que ele tinha uma filha. Você deve compartilhar comigo tudo o que sabe
sobre o paradeiro dele.”
“Guarde seus elogios para depois do recital.” Ela levou Hans para a Sala Azul,
o resto de nós arrastando os pés atrás.
“Shhh.” Heather olhou para mim, obviamente esquecendo a regra de não falar
com Faye. “Não nos faça parecer mal.”
Os olhos de Madame brilharam. “Você está acusando outro aluno de pegar seu
violino?”
“Não.” Minhas bochechas queimaram com o calor. Isso não pode estar
acontecendo. “Só estou dizendo que não está lá...”
“Eu certamente não movi seu violino. E nenhum dos meus outros alunos teria
feito isso. A única conclusão a que chego é que você esqueceu seu instrumento depois
que eu disse especificamente para preparar tudo para a visita do Sr. Brandt.”
“Vá” Madame Usher retrucou, acenando com a mão para a porta. “Traga seu
instrumento. Conversaremos amanhã.”
Saí do quarto, meu coração em pânico. Eu sabia que não tinha deixado meu
violino no meu quarto; nem quinze minutos atrás, eu o afinava enquanto Aroha
cheirava cocaína. A única maneira de ter mudado de lugar era se alguém o tivesse
pegado.
Aroha? Possível. Ela saiu da sala atrás de mim, mas eu olhei para ela e eu teria
visto ela carregando o violino. Dorien? Ele estava indo para o banheiro...
Como o último ato de One for Violin Solo de Paik, a performance onde o violino
é inteiramente destruído.
Meu pior pesadelo.
Não.
Lágrimas picaram nos cantos dos meus olhos. Aquele violino foi um presente
da minha mãe no meu aniversário de dezesseis anos. Ele veio de um Artisan Luthier
do norte de Nova York e era uma obra de arte por si só.
E era meu.
Pânico passou por mim. Eles estavam todos me esperando, Hans ansioso para
ouvir a filha de Donovan De Winter se pavonear. E eu ainda tinha que testemunhar a
queda de Ivan. Eu tinha que voltar para aquela sala agora e lidar com isso mais tarde.
Se eu não pudesse usar meu instrumento, qualquer outro violino serviria.
Corri pelo saguão, subindo as escadas de dois em dois. Quando cheguei ao meu
quarto, peguei o molho grosso de chaves da minha cama e corri de volta para o
primeiro andar. No final do corredor, pouco antes dos aposentos particulares de
Madame Usher, havia um pequeno depósito que abrigava uma variedade de
instrumentos oferecidos à escola ao longo dos anos.
Assim que meus dedos o tocaram, eu sabia que este era o instrumento que eu
tinha que tocar. Um formigamento de fogo desceu pela minha mão, a mesma sensação
que eu tinha quando tocava em Titus ou olhava nos olhos de Ivan ou trocava farpas
com Dorien: vertigem tingida de excitação. Peguei o instrumento e o arco e apaguei as
luzes.
Quando enfiei a chave na fechadura e voltei para a escada, notei que a porta
dos aposentos privados de Madame Usher estava entreaberta. Eu empurrei.
A porta dava para uma sala de recepção, vazia de móveis, com cortinas pesadas
bloqueando a luz das janelas. O fogo parecia não ser aceso há alguns anos, e o chão
estava coberto de poeira, exceto por um caminho de passos que conduzia a uma porta
interna. Além disso, eu podia apenas distinguir as formas dos móveis em uma sala de
estar além.
Meus ouvidos captaram outra coisa. Os mais fracos fragmentos de uma melodia
familiar. A mesma música triste que eu ouvia tarde da noite, a música misteriosa que
parecia fluir das paredes do meu quarto, que era familiar para mim, embora eu não
pudesse dizer exatamente onde eu a tinha ouvido.
Eu sabia que não era o barulho vindo do salão de baile lá embaixo porque eu
também podia ouvir o bater das teclas enquanto Dorien e Heather executavam seu
concerto.
Dei um passo à frente, atraída por aquela música, por minha necessidade
desesperada de descobrir quem estava me assombrando e como. Eu sabia agora que
tinha que ser Madame Usher, mas por que ela deixaria a gravação rodando aqui
quando ela sabia que eu estaria lá embaixo?
Assim que meu pé caiu dentro da sala, percebi meu erro. Meu calcanhar fez um
estalo alto no mármore. O violino parou. Olhei para baixo e percebi que minha
impressão se destacava entre a confusão de pegadas no limiar. Madame Usher não
usava saltos.
Merda. Merda.
Abaixei-me e manchei a impressão com a mão, mas isso só tornou mais óbvio.
Era tarde demais para fazer qualquer coisa. Saí e fechei a porta atrás de mim.
“Lindo e encantador. Dorien, você foi adequado, como sempre.” Mas ele disse
isso com um brilho nos olhos, porque obviamente Dorien era o superior da dupla. “Eu
gostaria de ouvir os gêmeos Nicolescu em seguida.”
Dorien saiu de trás do piano e inclinou a cabeça para Elena. Ivan pegou o estojo
do violino e abriu o trinco. Quando ele pegou seu violino, o pacote deslizou para o
tapete aos pés de Hans.
Os olhos de Ivan se arregalaram quando ele viu o que era. Levou tudo que eu
tinha para não cair na gargalhada ao ver Ivan Nicolescu estoico e gelado parecer tão
completamente chocado.
“Bem, Ivan,” ele disse suavemente. Uma veia latejava em sua têmpora. “O que
você tem a dizer sobre isso?”
Ivan não disse nada. Ele mascarou seu rosto com gelo, mesmo quando seus
ombros caíram. Dorien e Titus se levantaram para ficar atrás dele, silenciosamente
apoiando-o, apesar dos crimes de seu amigo.
Hans jogou o pacote nas garras de Madame Usher. “Esta é a sua bagunça para
lidar. Não direi uma palavra sobre o que vi aqui hoje, mas você deve saber que não
posso hospedar mais nenhum dos Broken Muses em nossa residência.”
“O quê?” A voz profunda de Titus subiu pelo menos duas oitavas. Dorien parecia
estar pronto para cortar alguém. Ivan olhava para um ponto na parede atrás da cabeça
de Hans. Reconheci o vazio em seus olhos, foi o mesmo que senti quando os médicos
falaram sobre as chances de recuperação da minha mãe. Naquele instante eu deixei
meu corpo e flutuei para algum lugar atrás de meus ombros, observando a cena se
desenrolar diante de mim com distanciamento frio. Era um mecanismo de
sobrevivência; se eu não ficasse completamente apática e não me tornasse Faye, a
garota fantasma flutuante, eu perderia o controle, e os hospitais tendiam a desaprovar
exibições de destruição no estilo Keith Moon, um baterista completamente destrutivo
e excêntrico.
Foi isso o que Ivan fez, ele flutuou para longe para poder suportar as
consequências mais facilmente. Saber que eu tinha algo em comum com ele fez meu
estômago revirar com uma sensação que eu não gostava; simpatia.
Não. Você não vai sentir essa merda. Esta é a minha vingança, e vou apreciá-la.
Eu mereço esse momento.
Madame Usher olhou para os três meninos. “Ivan, vá embora. Agora. O resto de
vocês, ou vão com Ivan ou se sentem. Não quero ouvir mais uma palavra sobre isso.”
“Eu disse, nem mais uma palavra.” Os dois olharam um para o outro, uma
batalha de vontades se desenrolando em um tabuleiro de xadrez invisível esticado
entre eles. Dorien podia ser uma tempestade furiosa presa no corpo de um Príncipe
das Trevas, mas Madame Usher era como uma antiga deusa demoníaca. Ela tinha
domínio sobre tempestades. Inferno, ela poderia castrar o próprio Diabo com aquele
olhar.
Dorien recuou, baixando os olhos. Ivan girou nos calcanhares e saiu da sala, a
porta se fechando atrás dele. Elena não moveu um músculo, mas uma única lágrima
rolou por sua bochecha.
Foi essa lágrima mais do que qualquer coisa que quebrou meu triunfo. Ao me
vingar de Ivan, eu custei a todos os três Musos a chance de residência e arruinei o
desempenho de Elena e Ivan.
“Brava, Elena, você foi fantástica.” Hans se levantou para beijar suas bochechas
úmidas quando ela terminou. “Quem é o próximo?”
“Vejo que a Srta. De Winter voltou, então talvez... O que você está fazendo?”
Quando Madame Usher se virou para mim, ela gritou. “Esse não é o seu violino.”
Pela segunda vez naquela noite, a sala caiu em um silêncio mortal. Madame
Usher avançou e arrancou o instrumento das minhas mãos. Sob sua maquiagem
endurecida, seu rosto estava branco como um lençol.
“Você fica,” ela sussurrou. “Por sua insolência, você sofrerá com a perfeição
dele.”
Cadela.
Eu congelei, meu corpo preso no local por Dorien. Ele tocou A Graveside Story,
sua composição mais famosa, a peça que fez sua carreira com o Broken Muse. Era
tudo o que ele era, a peça sombria e sedutora, arrastando você sob um oceano feroz e
agitado e segurando você até que a água fechasse sua garganta e você não pudesse
respirar sob toda a sua beleza. Pois ele era a perfeição. Cada nota era uma lâmina
cortando minha pele, expondo minha alma para ele devorar com aqueles olhos de
ardósia.
Por que ele não poderia ter sido meu amigo? Eu não tinha um amigo de verdade
desde que ele me deixou. Exceto por minha mãe. Ela compareceu a todos os meus
recitais, até mesmo pulando reuniões importantes para estar no centro da primeira
fila. Ela saía de seu trabalho para comprar lanches quando eu estava no meio da
minha preparação para a audição da Juilliard. Ela enrolava meu cabelo e fofocava
sobre garotos e celebridades como se fôssemos melhores amigas em vez de mãe e filha.
E acima de tudo, ela me mostrou pelo exemplo o que uma mulher tinha que fazer para
ter sucesso, pois tanto nos negócios quanto na vida ela era feroz, sem remorso e
incrivelmente gentil.
Dorien terminou e se levantou para receber sua reverência. Ele voltou ao piano
para acompanhar Heather em um Vivaldi. Ele era impecável, é claro, mas as notas
dela eram monótonas e sem vida, ou talvez fosse porque eu as ouvia através das lentes
dos meus próprios gritos silenciosos. Depois de Heather, Aroha impressionou com
uma performance da sensual Cleópatra do compositor turco Fazil Say. Suas
bochechas brilhavam de prazer enquanto Hans elogiava seu tratamento da peça
única. Olhando para ela, era difícil acreditar que ela precisava de drogas para entrar
em sua performance.
Madame Usher bateu palmas e fez sinal para que saíssemos. Entorpecida, eu a
segui para fora do quarto, entrando no banheiro masculino para pegar os pedaços
quebrados do meu violino. Quando emergi segurando os restos do meu instrumento
em minhas mãos trêmulas, Dorien e Heather estavam saindo do salão de baile.
Heather enrolou o braço no dele e se inclinou em seu ombro quando passaram por
mim.
Os olhos de Dorien caíram sobre as peças em minhas mãos. Ele parou em seu
caminho, puxando o braço de Heather. Ela gritou de surpresa, então tentou fingir que
foi intencional.
“Dorien, você é cruel,” ela ronronou, olhando para ele com adoração. “Achei que
você ia apenas esconder o instrumento dela. Isso foi muito melhor.”
“Eu não o destruí,” a voz de Dorien percorreu meu corpo. “Eu escondi no
banheiro. Foi tudo o que fiz.”
“Eu não fiz isso.” Dorien olhou para mim. Um tipo diferente de tempestade
brilhava em seus olhos, me arrastando de volta para o mar, para um recital quando
tínhamos oito anos, quando ele perdeu uma nota e sua mãe gritou com ele na frente
de todos. “Faye, eu juro. Eu sabia o quanto este violino significava para você.”
Sim. Ele sabia. Ele estava lá, nós três tendo um jantar de aniversário chique no
Denny's (tudo o que podíamos pagar por causa da minha mensalidade e da carreira
do papai) quando mamãe me presenteou com a caixa.
Ele sabia exatamente como me cortar para me fazer sangrar.
Eu tinha sido chamada de gorda e feia por toda a minha vida. As palavras
rolaram na minha pele, incapazes de penetrar porque eu não me importava com o que
as pessoas pensavam de mim. Mas esta noite eu segurava os restos do meu violino
em minhas mãos, e estava na frente de um garoto que uma vez foi meu amigo, e eu
apenas... Quebrei.
Uma nova cascata de lágrimas caiu dos meus olhos, rolando pelo meu rosto.
Dorien deu um passo à frente, mas eu me afastei, girando nos calcanhares e fugindo
para a não-segurança do meu quarto no sótão, a risada de Heather me perseguindo o
tempo todo.
Bati a porta com tanta força que a parede inteira chacoalhou. Uma cascata de
batons de Elena caiu da prateleira abarrotada e deslizou pelo chão. Meu corpo inteiro
tremia. Porra. Porra.
Eu sabia que deveria ter me livrado daquela cocaína. Eu sabia. Mas guardei por
que... Porque eu era um idiota de primeira classe.
Do outro lado do quarto, Elena se enrolava em sua cama, como uma rainha-
dragão guardando seus tesouros vistosos. Meus próprios olhos olharam para mim por
trás de seus cílios longos e emaranhados, largos e assustados.
Eu balancei minha cabeça. Eu não fazia ideia. Nenhum de nós ficou depois do
recital para descobrir o que Madame Usher tinha reservado para nós. A desgraça
iminente pairaria sobre nós por mais algum tempo.
Ela lavaria as mãos nesse caso? Iria nos mandar de volta para a Roménia? Um
pavor frio tomou conta de mim enquanto as opções se alinhavam na minha frente,
cada uma mais sombria que a anterior. Ela se calaria e acrescentaria mais tempo à
nossa estada aqui?
O lábio de Elena tremeu. Eu sabia que ela estava pensando as mesmas coisas,
o que esse erro nos custaria, pois ambos sabíamos que tudo que o fazíamos tinha um
preço. Atravessei a sala em três passos e caí ao lado dela, varrendo-a em meus braços.
Tubos de cosméticos e bolsas espetadas em minhas costas enquanto eu estava deitado
ao lado dela. Elena descansou a cabeça no meu peito, seus dedos traçando os padrões
de filigrana da minha camisa. Ela esperou que eu falasse, anunciasse meu grande
plano. Eu era o mais velho por dois minutos, e durante toda a nossa vida Elena tinha
olhado para mim como o responsável, como aquele que encontraria uma saída para
qualquer confusão.
Mas eu não conseguia ver saída alguma, apenas escuridão, apenas as barras
douradas de nossa jaula se fechando sobre nós. Estávamos em um grande problema.
“Dorien, que porra...” Eu me levantei assim que ele bateu na porta com o ombro,
arrancando a fechadura de seus parafusos. A porta se abriu e Dorien passou,
movendo-se para a janela para fechar as cortinas. Ele se virou para Elena, sua voz
um turbilhão de raiva mal contida.
“Saia.”
“Não fale com ela assim.” Eu me joguei na frente da minha irmã, mãos fechadas
em punhos. “Esta é a vida dela também.”
Elena enxugou os olhos e rolou para fora da cama. Ela se inclinou e beijou
minha bochecha. “Nós ficaremos bem. Vamos encontrar uma maneira.”
Titus saiu do caminho para permitir que ela passasse pela porta. “Não cheire
nada que eu não cheiraria, irmãzinha.” Todos a chamavam assim, e isso geralmente
me aquecia, mas não hoje. Elena deu um tapa no braço dele, e então ela se foi, o
cabelo voando atrás dela.
Meus amigos cuidavam dela como se ela fosse deles e eu adorava isso. Eles eram
a única família real que já tivemos.
Titus teve que virar de lado para passar os ombros pela porta. Ele a trancou e
se encostou no batente, enquanto Dorien andava de um lado para o outro. Enfiei as
mãos nos bolsos para não fazer nada estúpido.
Dorien se virou para mim. “Eu preciso saber, você quebrou o violino de Faye?”
Titus riu. “Isso é o mais importante aqui? Não aquele tijolo enorme de coca no
estojo do violino de Ivan? Que porra foi aquela, cara?”
Dorien olhou para Titus. “Aquilo era apenas um pacote, mas vamos chegar a
esse ponto. Primeiro, o violino de Faye.”
“Não. Eu o peguei depois que ela saiu da sala com Aroha, claro. Mas eu o escondi
no banheiro masculino. Não quebrei nada. Isso seria demais até para mim.”
De acordo. Lembrei-me do rosto de Faye quando ela voltou para a sala, seu
queixo erguido, mas trêmulo, sua voz rouca quando ela disse a Madame que seu
violino havia sido destruído. Ela não entrou em pânico, ela foi buscar outro
instrumento. Faye foi mais forte do que qualquer um de nós teria sido nessas
circunstâncias. Uma onda de admiração subiu em meu peito. Passei toda a minha
vida sendo forte por outras pessoas; por nossa mãe, por Elena, por Dorien e Titus. Eu
via algo de mim nela. E talvez seja por isso que eu sentia...
Mas eu sabia o que Faye tinha feito, roubando aquela cocaína e colocando-a no
estojo do meu violino, apesar de não ser minha e nem de usá-la. Sua ira era
puramente como a de Dorien. Isso explicava por que os dois se enfureciam um contra
o outro o tempo todo. Quando eles finalmente quebrassem e fodessem, a força disso
abriria um buraco no universo. Eu sabia que ela o escolheria ao invés de mim, afinal
as mulheres sempre o faziam. Eu só desejava que fosse diferente…
Mas desejar não colocaria a cocaína de volta no estojo do violino. Faye tinha me
fodido regiamente, e eu não podia nem a culpar.
Desde que Faye veio para a Manderley, Dorien foi puxado para mais
profundamente em sua loucura. Mas eu não tinha certeza de até onde sua falta de
controle se estendia.
Titus balançou a cabeça. “Por que você está nos questionando, cara? Estávamos
todos no salão de baile. Ninguém saiu até que Madame Usher disse a Faye para ir
buscar o violino.”
“Se mais alguém nesta casa está atrás de Faye, então eu preciso saber sobre
isso. Há muitos segredos do caralho por aqui.”
“Você poderia dizer isso.” Titus murmurou enquanto olhava para baixo.
“Heather, talvez? Eu não acho que estaria acima dela fazer isso, mas ela teria
se gabado para todos nós. Aroha estava alta como uma pipa de novo, mas...” Dorien
quase sorriu. “Faye pode ter destruído seu próprio instrumento na esperança de me
incriminar de alguma forma? Ela poderia ter feito isso quando o encontrou no
banheiro. Eu não tinha considerado isso antes, mas seria intrigante.”
“Dorien.” Titus não gritou. Mas com aquela voz profunda dele, ele não precisava.
Apenas abrindo a boca, ele poderia cortar as besteiras de Dorien.
“Eu sei, eu sei. Porra.” Dorien passou os dedos pelo cabelo. Ele girou para me
encarar, se recompondo, empurrando para baixo o que quer que estivesse agitando-o
tanto. “Você. Cocaína? Eu não posso acreditar nessa merda. Você não costuma tomar
nem um gole de vinho.”
“É de Aroha. Eu estava guardando para que ela não... Para que ela ficasse
sóbria. Eu escondi a coca na minha gaveta, mas tenho certeza de que Faye a
encontrou e a colocou no estojo do meu violino.”
“Faye não faria isso,” Dorien rosnou, seus dedos apertando meu colarinho.
“Talvez ela pense que Ivan estava no quarto dela na outra noite,” Titus disse da
porta. “Ela parecia muito certa quando pensou que era eu, mas não fazia sentido
porque eu não teria sido capaz de entrar lá. Dorien, solte-o. Você não está ajudando.”
“Vocês dois precisam relaxar.” Ele estendeu um baseado para mim. Eu balancei
minha cabeça.
Titus deu de ombros. “Por que você se importa, afinal? Você queria machucá-
la. Parece uma missão cumprida para mim. Então por que não estamos comemorando
ainda?”
Faye e Dorien foram escritos nas estrelas. E isso me deixava sozinho lá embaixo,
com as ervas daninhas e os monstros.
Dorien bufou. “Não estamos comemorando porque Ivan está prestes a ir para a
cadeia. Ou ser chutado de volta para a Romênia, o que é pior.”
Ninguém lhe respondeu. Todos nós sabíamos o que tinha que acontecer a
seguir. Havia uma pessoa em Manderley que tinha o poder de fazer tudo isso
desaparecer, mas ela exigiria um preço. Sempre havia um preço. Ela já tinha tirado
muito de cada um de nós. O que mais restou em mim para dar, afinal?
Titus e eu esperamos com Ivan a noite toda. Eu deitei na cama de Elena
enquanto Titus torcia seu corpo para caber na cama de Ivan, do jeito que
costumávamos dormir nos primeiros dias de Broken Muse, quando só podíamos pagar
por quartos duplos baratos.
Madame Usher não veio atrás de Ivan, no entanto. A polícia não bateu na porta.
Mas isso não significava que ele estava seguro.
Essas palavras deveriam ter me dado alguma emoção. Berlim era uma das
minhas cidades favoritas, voltar lá para tocar e aprender com uma orquestra de classe
mundial seria um grande feito para a minha carreira. Sem mencionar que me levaria
para um passo mais perto do que eu vim fazer em Manderley. Mas o triunfo parecia
vazio, sem sentido.
Porque mesmo que eu não tivesse arruinado o violino dela, todos acreditavam
que eu tinha. Eu sabia a verdade que se escondia nas palavras de Madame. Esta é a
sua recompensa por arruiná-la.
Mas quem tinha feito isso? E por que a pessoa não se apresentou para
reivindicar sua recompensa?
Faye empurrou a porta da sala de jantar, mas Madame Usher entrou em seu
caminho. “Você não será bem-vinda hoje. O Maestro não a perdoou por pegar o violino
dele.”
Isso era uma mentira. Maestro Radcliffe não foi a pessoa a reagir com
impetuosidade quando Faye apareceu com aquele Becker, mas Madame Usher sim.
Ela gritou com Faye, e em todos os anos que eu a conhecia, eu nunca, nunca a vi
perder o controle assim.
O que havia com aquele violino? Eu tinha que saber. Precisávamos de algo,
qualquer coisa que pudéssemos usar contra Madame Usher.
Os olhos de Faye saltaram com fogo enquanto ela olhava para sua inimiga. Ela
parecia prestes a discutir. Mas em vez disso, ela empurrou uma bandeja de ovos
mexidos e bacon nas mãos de Madame, virou-se e saiu correndo.
Após o café da manhã era a aula de composição. Madame Usher sorriu para
Ivan quando ele se esgueirou para dentro da sala, um sorriso que dizia que ela
guardaria seu segredo junto com todos os outros que ela acumulava como um rato
estocando queijo, mas seu silêncio teria um preço a ser pago no futuro. Estremeci ao
pensar em qual seria esse preço.
“Tudo bem, então.” Eu deslizei meus dedos para fora das teclas. “Fique à
vontade.”
“Não seja bobo. Você sabe que somos perfeitos juntos.” Heather ergueu o arco.
“Toque novamente.”
Isso é estúpido. Eu não deveria me sentir mal por Faye. Eu estava conseguindo
exatamente o que queria, e ela teria que sair em breve. Ela não estaria mais em perigo,
ou seria uma ameaça ao meu plano. Eu ganharia o Prêmio Manderley, e tudo ficaria
bem.
Quando saímos da aula, a mesa da sala de jantar já estava posta com travessas
de sanduíches frios. Faye não estava à vista. Heather torceu o nariz enquanto pegava
o pão. “Atum enlatado? Que merda é essa?”
Empurrei meu prato de lado e me levantei. “Eu não estou com fome.”
Nada. Nenhum som. Nem mesmo a sequência de palavrões que eu merecia. Bati
novamente e estava prestes a gritar quando a porta se abriu.
Minha respiração ficou presa na minha garganta. Faye abriu a boca para falar,
mas nenhum som saiu. Ela parecia... bem, ela era fodidamente linda. Mas hoje era
uma beleza nascida da fragilidade, de olhos avermelhados e cabelos desgrenhados e
um vinco de travesseiro ao longo de sua bochecha, nada da força que ela carregava
estava à vista agora. Ela segurava um velho livro surrado em suas mãos. O fogo em
seus olhos tinha se apagado, e seu queixo tremia quando ela levantou o rosto para
me encarar.
Seus olhos, seu rosto... Tudo isso me quebrou.
“Você está feliz?” Ela sibilou, agarrando a porta e fechando-a na minha cara
logo em seguida.
Porra. Porra.
Era meu trabalho. Eu não podia desafiar Madame Usher. Não sem colocar todo
o meu futuro, e o futuro dele, em risco.
A menos que…
Eu caio no degrau mais alto, minha cabeça em minhas mãos, minha mente
zumbindo com possibilidades. Essa coisa de chantagem podia funcionar em duas vias.
Havia alguma razão para Madame Usher querer que Faye deixasse a Manderley. Não
fazia sentido, porque ela não tinha que oferecer a Faye um lugar aqui em primeiro
lugar. Mas Faye estava aqui, e a Madame queria que ela fosse embora, mas ela se
recusava a sujar as mãos. Era aí que o Broken Muse entrava. Madame tinha uma
corda amarrada em nossos pescoços, e adorava isso.
Você é o próximo.
“Quer tocar um pouco de Bach?” Titus se inclinou sobre minha mesa, suas
trancinhas caindo sobre suas orelhas. Sua voz profunda ecoou pela biblioteca.
Fechei a tela do meu laptop e olhei para o meu amigo. “Não posso. Tenho que
terminar aquele ensaio sobre estruturas composicionais barrocas. Vá incomodar Ivan.
Ele parece estar precisando de uma pausa.”
Titus me deu um soco no ombro e deslizou do canto da minha mesa para ir até
os gêmeos, que estavam sentados juntos no assento da janela. Um conjunto de velhos
livros de composição estava aberto entre eles, sendo ignorado. Elena aparentemente
teve uma ideia nova e brilhante, pois seu rosto estava iluminado de alegria enquanto
ela falava a mil por hora com Ivan. Eu sabia por aquele olhar tenso em seu rosto que
até o paciente Ivan estava atingindo seu pico com uma overdose de Elena. Ele pareceu
aliviado quando Titus se colocou entre eles.
Satisfeito por estar sozinho de novo, abri a tela do meu laptop, onde abri um
novo arquivo intitulado “Sobre a queda da Casa de Usher.” Se alguém o encontrasse,
eu poderia afirmar que era inspiração para uma música. Abaixo eu tinha escrito tudo
o que sabia, o que não era muito; Madame Usher convidou Faye para a escola, mas
ela me disse que tinha sido decisão do Maestro Radcliffe. Ele nunca a contradisse. Ela
me chantageou para fazer bullying com Faye e puxou Titus e Ivan para isso também.
Mas uma coisa estava clara; Faye era o centro disso tudo. Percebi o quão pouco
eu sabia sobre sua vida desde que deixamos de ser amigos. Curioso, mudei para o
navegador e pesquisei o nome dela no Google. Eu esperava ver as notícias usuais
sobre o desaparecimento de seu pai, aquelas que eu vasculhei por meses depois que
deixei a escola de música, desesperado para ver um vislumbre dela nas imagens, para
saber se ela estava bem.
Em vez disso, o que surgiu foram histórias dos últimos dezoito meses. LENDA
RP DESTRUÍDA POR DOENÇA MISTERIOSA, dizia uma manchete. Eu cliquei nela e
abri o artigo.
“A De Winter RP anunciou sua falência esta semana depois que a filha da CEO,
Faye De Winter, esgotou seus cofres para pagar as contas médicas de sua mãe. A
empresa encerrará as operações no final da semana e desocupará seu moderno
escritório em East Village.”
Faye se recusou a comentar, mas fontes dentro da empresa explicam como essa
tragédia aconteceu. “Nós entendemos a posição de Faye, é claro. A saúde de Marguerite
deve ser prioridade. Mas estamos chocados e entristecidos que tudo o que Marguerite
construiu agora está destruído.”
De acordo com Baker, a trágica história de De Winter deveria ser um alerta para
todos os empresários. “É uma mensagem poderosa saber que mesmo aqueles que são
bem-sucedidos devem cuidar das pequenas coisas. Se Marguerite tivesse todas as suas
contas em dia, seu seguro não teria expirado e seu legado não teria sido desmantelado.”
Interessante que essa Natalie já tinha sido assistente e foi promovida a COO,
ou seja, diretora de operações. Meu coração batendo forte, eu continuei clicando. Um
pequeno artigo em um blog do setor de uma semana antes de Faye chegar a Manderley
notou que Marguerite De Winter havia entrado em coma.
Merda.
Eu sabia que Faye sempre visitava alguém no hospital porque Harrison foi
buscá-la lá, mas eu não tinha ideia... A mãe de Faye estava no suporte de vida, sem
seguro. Ela não tinha dinheiro em seu nome.
Merda.
Madame Usher sabia disso. Ela balançava o Prêmio Manderley sobre a cabeça
de Faye, fazendo Faye dançar como uma marionete para sua própria diversão.
Certamente Faye podia ver que Madame nunca a recompensaria com o prêmio,
embora queimasse minha garganta admitir, ela provavelmente merecia apenas por
seu talento na composição.
Suas palavras, gritadas para mim segundos antes de ela cair para a morte.
Dorien, me escute! Tenho que lhe contar algo sobre Madame Usher. Sobre os
ruídos nas paredes.
Eu apertei meus olhos bem fechados. Eu disse a mim mesmo que aquilo foi um
acidente. Clare estava correndo atrás de mim, tentando chamar minha atenção, e
tropeçou na escada e caiu. Era nisso que eu tinha que acreditar. Pelo bem dele.
Mas meus olhos se abriram. Não posso ignorar a verdade. A morte de Clare. A
doença da mãe de Faye. O estranho comportamento de Madame Usher. Tudo voltava
a uma pergunta: Por quê?
Madame Usher geralmente lidava com seu próprio trabalho sujo, mas desta vez
ela confiou nos Broken Muses para fazer isso. E eu a faria se arrepender dessa
decisão.
Depois do desastroso recital para Hans e meu confronto com Dorien, ninguém
na casa falou comigo por uma semana. Bom. Eu também não queria falar com eles.
Os olhos dos Musos me seguiam aonde quer que eu fosse, espreitando sobre os
meus ombros, perfurando minha alma. Talvez suspeitassem que eu fosse a
responsável por colocar a coca de Ivan no estojo do violino. Não que ele tivesse sofrido
algum tipo de punição por isso. Eu me recusei a reconhecê-los de qualquer forma,
uma vez que se eles quisessem me tratar como um fantasma, então eu me tornaria
um.
Eu não queria aceitar o presente sem saber de quem era, ou por que deram a
mim. Mas eu não iria longe em Manderley sem um instrumento, e Madame deixou
claro que as peças da coleção da escola estavam fora dos meus limites. Então eu
segurei o instrumento no meu queixo e toquei até meus dedos sangrarem, até que a
música tivesse cauterizado a determinação por vingança em minha alma.
Segurei aquele violino novo no meu queixo e toquei cada nota com perfeição.
Mas não foi o suficiente para consertar o que havia feito quando peguei aquele
violino Becker. Nem mesmo o Maestro Radcliffe me daria atenção na aula particular
que tinha com ele. Ele apenas apontou o dedo para a partitura que ele queria que eu
tocasse e eu fui deixada para interpretar suas carrancas. Era uma forma ineficaz de
aprendizado. E após a aula de segunda-feira, decidi poupar a nós dois da agonia e
matar aula para praticar meu Sibelius e Paganini sozinha no meu quarto.
Alguém deve ter falado algo para Harrison, porque em vez de sua habitual
saudação jovial quando ele trouxe a madeira, tudo o que consegui foi silêncio e um
olhar de pena. Eu não percebi o quanto eu precisava desesperadamente de sua
bondade até que ela foi tirada de mim.
A merda deles estava ficando insana. Meus sentidos trabalhavam horas extras.
Imaginei ouvir passos me seguindo enquanto me movia pela casa. Gemidos e rangidos
ecoavam dentro das paredes. No entanto, toda vez que eu me virava, o corredor estava
vazio.
Hmmmm.
Ele não tinha voltado para casa quando terminei de lavar a louça. Curiosa
agora, olhei para o relógio acima da geladeira. Quase 20h. Eu podia ouvir os outros
rindo e tocando música na Sala Azul. Por que Titus não estava com eles?
Pensando bem, eu não tinha certeza se já tinha visto Titus vagando pela casa à
noite. Ele se esgueirava para o depósito de lenha todas as noites? Se sim, o que ele
devia estar fazendo lá fora?
Uma raiva crescente fervia dentro de mim. Graças a esses caras, eu tive uma
semana infernal. Eles tinham prazer em fazer parecer que eu zombava da autoridade
de Madame Usher a cada instante, quando na verdade eram eles que andavam em
círculos ao redor dela.
Talvez fosse hora de eu voltar sua crueldade contra eles. Aposto que Madame
Usher estaria interessada em saber onde Titus vai toda noite.
Peguei meu casaco do gancho na porta da cozinha e a empurrei o mais
silenciosamente que pude. O vento estava forte esta noite, uivando pelo vale e
raspando os galhos nas paredes.
Fechei a porta o mais silenciosamente que pude e corri pela horta, parando no
portão para verificar se alguém viria da casa principal. Ninguém à vista. Eu
destranquei o portão, estremecendo quando as dobradiças rangentes perfuraram o ar
da noite. Mas o vento chicoteou o som contra a casa. Se Titus percebesse que eu
estava atrás dele, não seria por causa daquele som.
Peguei você.
Titus estava sob a luz da lanterna, pernas abertas, jogando a cabeça em círculos
frenéticos para que suas trancinhas voassem ao seu redor. Fones de ouvido cobriam
seus ouvidos, e um fio serpenteava pelo chão até um pequeno amplificador e uma
unidade principal conectada ao gerador.
Pendurada abaixo, em seus quadris, seus dedos voando sobre as cordas tão
rápido que eram apenas um borrão, estava uma guitarra elétrica Gibson Flying-V
surrada.
Fiquei parada, congelada pela visão à minha frente, minha mente voltando para
as horas de vídeos de Titus tocando no palco que eu tinha assistido, a ferocidade com
a qual ele apunhalava o violoncelo, aquela massa pesada de instrumento em suas
mãos.
Seus olhos se abriram. Ele me viu ali de pé e saltou tão alto no ar que bateu a
cabeça no teto baixo do barraco.
“Que porra é essa?” Titus arrancou seus fones de ouvido e marchou em minha
direção, a guitarra batendo contra seu peito nu. Seu amplificador emitiu um zumbido
alto.
Eu engoli em seco. Ele parecia bravo para caralho, bravo o suficiente para fazer
alguma coisa…
Mas, bem, foda-se ele. Eu tinha algumas coisas para ficar com raiva também.
“O que é isso, Titus?” Inclinei meu telefone em direção a ele, tirando algumas
fotos que eu poderia usar como segurança. Porque ele claramente queria que isso
fosse um segredo, caso contrário ele não estaria tocando escondido em um barraco
no vento gelado. Eu esperava que a lanterna brilhante o retardasse se ele se lançasse
em mim.
“Você está errado.” Com mais bravura do que sentia, deslizei meu telefone no
bolso e o acariciei com satisfação. Uma pilha de ferramentas velhas estava encostada
na parede. Peguei uma pá e a segurei na minha frente. “Vocês estão tentando arruinar
minha vida desde que cheguei a Manderley. E depois que Dorien destruiu meu violino,
pensei que tinham ganhado. Mas com essas fotos, eu posso ter conseguido alguma
coisa.”
“O que você vai fazer?” Ele estreitou aqueles olhos pecaminosos para mim.
“Nada. Por enquanto.” Eu deixei um sorriso lento arrebatar meu rosto. “Mas se
você ou seus amigos fizerem mais alguma coisa comigo, essas fotos vão direto para
Madame Usher. E talvez alguns dos meus amigos da mídia musical também.”
Eu me virei e me afastei antes que ele pudesse pensar em vir atrás de mim.
Do lado de fora, minha bravura quebrou, e minhas pernas tremiam tanto que
tive que me inclinar contra o galpão de madeira para recuperar o fôlego. Larguei a pá
na terra e peguei meu telefone, folheando as fotos novamente.
E por que eu me importava? Não podia ser por causa daquela vez em seu quarto,
quando eu jurei que seus lábios roçaram os meus, quando eu queria tanto cair nele e
me perder.
Quão fodida eu tinha que ser para desejar meu valentão quando finalmente
tinha poder sobre ele?
“Estou fodido.” Enterrei minha cabeça em minhas mãos.
“Você não está fodido.” Dorien se inclinou para fora da janela, sugando o último
prazer de seu baseado. Ele me ofereceu um trago, mas eu estava muito agitado para
isso. Eu não precisava me acalmar. Eu precisava…
Mas enquanto ela estivesse com aquelas fotos, ela poderia muito bem ter uma
corda em volta do meu pau.
“Duende não vai falar nada.” Dorien fechou a janela e atravessou a sala para
me encarar. Ele parecia muito calmo considerando a situação.
“Ela não tem motivos para ficar quieta,” eu atirei de volta. “Ela ainda está
chateada por eu ter estado no quarto dela. Você viu o que ela fez com Ivan. Eu sou o
próximo. Ela tem toda a munição de que precisa para me tirar de cena.”
“Eu vou falar com ela,” Dorien rosnou. “Eu vou fazê-la ver a razão.”
Eu não gostei daquele tom na voz dele, do jeito que ele disse isso, adicionando
uma inflexão perigosa em seu timbre. Eu sabia tudo sobre os poderes de persuasão
de Dorien. Eu o vi usar em centenas de garotas quando estávamos em turnê. E a ideia
de Faye ser outro entalhe em sua cabeceira quando ela significava tanto... “Não, eu é
quem deveria fazer isso. Eu cavei o buraco, eu deveria ser o único a preenchê-lo
novamente.”
“Para ela, você é apenas um perseguidor pervertido. Faye e eu temos história.
Ela confia em mim, embora não admita. Eu vou falar com ela.”
Havia um brilho em seus olhos cinzas que eu achava que nem ele entendia.
Dorien queria Faye, e também queria me manter longe dela.
Medo real escureceu seus olhos. Medo de que eu a machucasse. E por que ela
não deveria ter medo? Eu não tinha feito nada além de machucá-la nas últimas
semanas, e agora eu aparecia de um esconderijo no canto. Eu odiava ver minha
crueldade refletida de volta para mim.
Eu levantei minhas mãos. “Isso não é sobre você e eu. É sobre Titus. Você não
pode contar a ninguém o que viu ontem à noite.”
Faye estreitou os olhos. Para alguém que estava com tanto medo, ela se manteve
firme, afastando os pés em uma posição de poder, tornando-se maior. Faye De Winter
nunca recuava. “E por que não?”
“Titus não fez nada para te machucar. Exceto por aquela vez que ele entrou em
seu quarto com Heather, e ele odiou fazer aquilo. Ele me disse que não faria mais nada
com você, Duende. Então apenas finja que você nunca o viu lá fora.”
“Não use esse apelido. Você perdeu esse direito há muito tempo. Não posso fingir
que nunca vi Titus, porque não faz sentido. Por que ele estava lá fora, no frio, com
uma guitarra? Por que isso precisa ser um segredo?”
Suspirei. Não era meu segredo para contar, mas Faye não ia deixar isso de lado.
Eu tinha que fazê-la entender. “Os pais de Titus... Você sabe, eles são bem famosos...”
“Certo. Bem, eles querem que ele siga na música, que continue o legado deles.
Esse tem sido o seu destino desde o momento em que Titus foi concebido. Mas não é
o que ele quer.”
Faye bufou. “Titus quer desistir de sua carreira clássica para se juntar ao Iron
Maiden?”
“Para falar a verdade, sim. Titus tocou guitarra secretamente durante a maior
parte de sua vida. Ele escondia uma na minha casa. Ele costumava ficar comigo
sempre que seus pais estavam em turnê e tocava em nosso salão de baile. Até que
isso... Não era mais uma opção. Ele é bom. E ele poderia ser fantástico, mas seus pais
se recusam a ouvir isso. Se ele se apresentasse como um guitarrista de heavy metal,
eles o deserdariam, o cortariam da família para sempre.”
“Eu já disse isso a ele uma centena de vezes, mas você não conhece Titus como
eu. Ele não suporta a ideia de seus pais o odiarem. Sua aprovação e amor são tudo
para ele. É por isso que você tem que guardar o segredo dele. Ninguém mais sabe,
nem Madame Usher, nem Heather ou Aroha, ninguém. Se alguém descobrir e a mídia
se apossar da história, ou se os outros descobrirem, eles vão contar aos pais dele, e
então estará tudo acabado para ele.”
“Por que você nunca usou isso contra ele? E não o tirou do caminho para o
Prêmio Manderley?” Seus olhos brilharam. “Ou é só a mim que você está determinado
a destruir?”
“Titus me apoiou mais vezes do que posso contar. Vou chutar o traseiro dele na
competição, mas não vou sabotá-lo. Você pode não acreditar, mas eu levo minhas
amizades a sério.”
“Você está certo.” Ela agarrou seu arco e segurou-o sobre o peito como uma
espada medieval. Uma memória passou pela minha mente: Faye e eu caindo na
gargalhada enquanto travávamos uma luta de espadas com nossos arcos. “Eu não
acredito. Agora saia, eu reservei está sala.”
“Saia.”
Eu não posso acreditar nele.
Eu arrastei o ferrolho pela porta da sala e empurrei uma cadeira sob a fechadura
para garantir. Minhas mãos voaram para o meu violino, a agitação e o medo em meu
corpo desesperados por liberação. Deslizei o arco pelas cordas, lançando-me primeiro
nos caprichos de Paganini e depois direcionando-me por um caminho desconhecido,
seguindo a música em qualquer lugar onde ela me levasse.
Três Musos quebrados. Tudo que eu cheirava, tudo que eu podia sentir, eram
Dorien, Titus e Ivan. Eles corriam em minhas veias, inseparáveis de sua música, a
magia que mexia com minha alma e me fazia sentir coisas que eu não entendia.
Liguei para uma empresa de táxi para ver se conseguia alguém para me buscar.
Custaria cada centavo da mesada que Madame me dava e que eu tinha economizado,
mas valeria a pena. De repente, eu não queria nada mais no mundo do que estar na
presença de mamãe, mesmo que ela estivesse dormindo. Mas quando liguei para pedir
um táxi para Manderley, o cara do outro lado do telefone riu de mim.
“Você nunca vai conseguir alguém que faça a viagem até aí. Mesmo que
estivessem dispostos a viajar tão longe, não o fariam porque esse lugar é assombrado.”
E nenhum dos caras admitiu ser aquele rosto na minha janela, ou ter invadido
meu quarto para apagar a luz. Lembrei-me de como verifiquei todos os cantos do meu
quarto, como nunca ouvi ninguém descer as escadas, como minha fechadura nova e
elegante não havia sido perturbada e não encontrei nenhum vestígio de um painel
escondido. Parecia impossível que alguém pudesse ter estado lá e, no entanto, eu
tinha certeza do que vi.
Pare com isso. Eu balancei minha cabeça. Você está sendo ridícula. Não deixe a
Manderley chegar até você. Fantasmas não existem.
Todas as salas de prática estavam ocupadas, mas eu ainda tinha uma redação
para terminar. Não era para ser entregue em meses, mas não faria mal ter uma
vantagem. Talvez se eu entregasse cedo eu pudesse recuperar um pouco do respeito
do Maestro Radcliffe. Eu ainda não estava pronta para desistir do Prêmio Manderley.
Então fui em direção à biblioteca.
Dorien olhou para cima de uma mesa perto da janela enquanto eu abria a porta.
Excelente. Lancei a ele um olhar de 'não brinque comigo' e propositalmente sentei-me
o mais longe possível dele, puxando livros das prateleiras com certa raiva em meus
movimentos. TUM, TUM, TUM, TUM. Bati volume após volume na mesa, saboreando
o barulho alto que ecoava por toda a sala de teto alto.
Por cima de seu laptop, os olhos cinzas de Dorien olhavam para mim.
Porra.
Eu olhei para ele e voltei meus olhos para os meus livros, mas a sensação de
ser observada não me deixou. Ao contrário do rastejar na minha pele que geralmente
me assediava à noite, isso parecia diferente, e eu acolhi bem o sentimento. Eu ansiava
por isso. E eu não conseguia entender o porquê. De todos os Musos, Dorien era quem
eu mais odiava.
E o que eu tinha feito com Ivan não era nada como o inferno que eu ia fazer
chover em Dorien... Assim que eu reunisse coragem.
Eu ousei dar outro olhar para o Bad Boy do Barroco. Ele nem tentou esconder
que estava me observando. Dorien se inclinou para trás em sua cadeira, um sorriso
brincando em seus lábios.
Filho da puta.
BANG.
Eu pulei para fora da minha pele. Meus livros bateram no chão quando a porta
bateu contra a parede. Heather atravessou a sala e plantou ambas as mãos em cada
lado da mesa de Dorien. “Aí está você. Eu estive procurando por você em todos os
lugares. Deveríamos estar praticando juntos.”
“Eu não vou mais praticar com você.” O sorriso nunca deixou o rosto de Dorien,
mas quando ele o virou para Heather, sua risada assumiu aquela qualidade cruel que
ele até então reservava apenas para mim.
“Dorien, não seja bobo. Temos um mês inteiro de recitais chegando. Você sabe
que combinamos perfeitamente juntos, dentro de uma sala de concertos e... Em outros
lugares...” Ela arrastou os dedos pelo braço dele.
Ele empurrou a mão dela. “Heather, eu tentei ser legal, mas você parece não
estar entendendo a mensagem. Não vou mais tocar com você. Acabamos.”
“Não seja estúpido.” Sua voz assumiu um tom estridente, toda a musicalidade
desaparecida. “Você sabe que eu sou seu destino, Dorien. E você não pode brincar
com o destino.”
“Eu posso fazer o que eu quiser, com quem eu quiser, e esse alguém não é você.”
“Eu nunca precisei de ninguém, e isso não mudou. Se eu decidisse levar outra
pessoa para o topo comigo, não seria uma cadela mimada e musicista ruim de um
metro e meio envolta em peles de animais mortos. Você não é mais interessante o
suficiente para continuar me acompanhando.”
“Você vai se arrepender disso. E então vai me chamar quando cair em si,”
Heather assobiou com os dentes cerrados. A porta bateu atrás dela.
Interessante.
Não. Peguei um livro que tinha deslizado para o fundo da prateleira. Não é
interessante. Aconteceu que duas pessoas horríveis decidiram ser horríveis
separadamente. Isso não é da minha conta. Eu tenho um ensaio para escrever.
Dorien deslizou sua cadeira para fora da mesa, as pernas rangendo contra o
piso de parquet. Voltei a pegar meus livros espalhados, rastejando debaixo da minha
mesa em minhas mãos para alcançar um volume que havia deslizado sob uma
prateleira.
“Faye.”
Eu pulei com o meu nome em seus lábios, a palavra agitando uma tempestade
em minhas entranhas. Minha cabeça bateu na parte de baixo da minha mesa, fazendo
cintilar estrelas em minha visão. Malditos trompetes. Ai.
Eu ousei dar uma olhada por cima do ombro. Lá estava Dorien, em toda a sua
glória sombria e taciturna, encostado nas estantes com aquele sorriso no rosto
enquanto olhava para a visão mais desfavorável da minha bunda que eu poderia ter
apresentado a ele.
“Vá embora.” Eu deslizei para fora da mesa, minha saia subindo nas minhas
coxas. A cor brilhou em minhas bochechas, e eu me odiei por isso. Eu não tinha
motivos para me sentir envergonhada na frente de Dorien, especialmente depois do
que ele fez.
“Faye...” Dorien lançou um olhar por cima do ombro, seus olhos correndo ao
redor da sala. Ele estava nervoso, mas por que estaria? Dorien Valencourt nunca ficou
nervoso um dia sequer em sua vida. “Eu não sei se você sabe disso, mas nós tínhamos
uma empregada antes de você. O nome dela era Clare. Ela caiu da escada e quebrou
o pescoço.”
Dorien suspirou. “Claro que sim. A polícia também tinha suas suspeitas. Fui
um idiota com Clare, e isso não pode ser discutido. Ela gostava de mim, e eu estava
envolvido com ela. Mas eu não poderia tê-la empurrado. Eu estava na escada à frente
dela. Tinha acabado de chegar ao patamar inferior quando ela caiu. Clare estava
correndo atrás de mim. Ela queria me contar algo sobre Madame Usher.”
“Você deveria se importar. Porque eu acho que você está em perigo. Madame
Usher...” Dorien desviou o olhar. “Ela não quer você aqui.”
“Você não me quer aqui. E até agora, você, Titus e Ivan foram os únicos me
atormentando, chegando até a destruir meu...” Engasguei com a palavra. Eu não
podia nem falar sobre meu violino perto dele; ainda doía muito profundamente.
Desta vez, Dorien não desviou o olhar. Uma tempestade feita de tormento
cresceu em seus olhos. “Eu fiz essas coisas por ordem dela. Não tive escolha. E juro
pela vida do meu irmão que não quebrei seu violino e que nenhum de nós era o rosto
na sua janela. Você tem que acreditar em mim”
“Por que eu deveria acreditar em você? Você fez tudo ao seu alcance para me
deixar infeliz, e o que eu fiz para você, além de ser sua amiga? Agora você quer que
eu fale sobre minha mãe, a experiência mais horrível que já aconteceu comigo? Por
que você acha que eu devo isso a você?”
“Você não me deve nada.” Dorien deu um passo em minha direção, seus olhos
endurecendo como pedra. “Eu devo a você, Duende. Devo tudo a você.”
Eu abri minha boca para perguntar o que diabos ele queria dizer com isso, mas
então Dorien esmagou seus lábios nos meus.
O beijo afastou todos os pensamentos racionais da minha cabeça. Os lábios
quentes e exigentes de Dorien me arrastaram para baixo, varrendo-me na tempestade
de sua necessidade. Todas aquelas noites em que eu me aconcheguei no meu
computador assistindo vídeos de Dorien no palco, aqueles lábios cruéis fazendo
beicinho enquanto ele acariciava as teclas do piano como um amante, me tocando
enquanto eu imaginava como seria ter a atenção de um cara assim. Agora eu sabia,
eu sabia, porra, e era tudo.
A música dançou sobre minha pele enquanto Dorien envolvia seus dedos em
volta do meu pescoço, me puxando para mais perto, seus lábios devorando os meus.
A música de nossas vidas tocou em um emaranhado de língua, lábios e toques
pecaminosos. Um gemido escapou da minha garganta que fez o corpo de Dorien
estremecer. Ele engoliu meu suspiro enquanto seus dedos apertavam meu pescoço, e
um rosnado profundo retumbou em sua garganta, cru e primitivo e tão fodidamente
quente.
Não posso acreditar que eu o beijei. Que as trombetas soem, porque isso é tão
confuso?
“Eu nunca...” A tempestade nos olhos de Dorien rugiu contra o meu fogo. Ele
passou os dedos pelos cabelos e seu queixo tremeu. Eu queria desviar o olhar, mas a
magia que seus olhos conjuravam me prendeu. “Faye, eu não estava tentando... Foda-
se, eu nem sei o que estava fazendo. Mas você tem que acreditar que eu não...”
Faye estava certa sobre uma coisa, ela não era como as outras garotas. Os
músicos clássicos não tinham groupies como os rockstars, mas quando os tabloides
chamavam alguém de 'Bad Boy do Barroco', isso carregava consigo uma certa mística.
Eu tinha tantas garotas caindo aos meus pés em todas as cidades que minha cama
nunca esfriava. Aprendi truques com as prostitutas de Amsterdã que eram
sussurrados em tons reverentes entre Maestras residentes em salas verdes do outro
lado do continente. Mas não importava quem eu conquistasse, quão ricas, bonitas ou
talentosas essas pessoas fossem, todas elas se misturaram no final. Vasos dispostos
nos quais despejei minhas tristezas, vícios nos quais me entorpeci, um desfile de
prazeres sem nome para me distrair do buraco escancarado de miséria que era minha
vida.
Apenas um rosto se destacou para mim. Apenas um. Faye, a única pessoa que
se importava comigo o suficiente para me deixar uma cicatriz.
Faye me queria. A maneira desesperada como ela chupou meu lábio, aquele
rosnado lindo que ela fez quando eu escovei minha mão sobre seu mamilo, a forma
como seu corpo se inclinou para mim, cada curva derretendo. Ela me queria, e ela se
odiava por isso. Eu conhecia bem aquele sentimento fodido.
No entanto, ela seria capaz de morder esse desejo e ignorar as faíscas entre nós
por pura força de vontade. Se eu a queria, então teria que conquistá-la.
Felizmente, eu a conhecia bem o suficiente para entender exatamente como
tocar seu coração. Havia duas coisas que Faye amava mais do que tudo no mundo:
Sua mãe e sua música.
Maestro Radcliffe ergueu uma sobrancelha em surpresa, mas ele sabia que não
deveria me questionar. “Certamente, Dorien. Acho uma ideia maravilhosa. Faye se
beneficiaria de trabalhar ao lado de um músico que teve um treinamento mais….
tradicional.”
Nesse momento, Faye entrou, com as bochechas coradas por ter se apressado
em suas tarefas, o vestido preto grudado em suas curvas de uma maneira deliciosa.
Seus olhos se estreitaram enquanto eu caminhava até ela, bloqueando seu caminho
para seu lugar habitual no canto sombreado da sala.
“Saia da minha frente.” Ela segurou o estojo do violino como um escudo romano
e me atacou. Ela atingiu um canto das minhas costelas, mas em vez de lutar contra
ela, eu saí do caminho, pegando seu braço enquanto ela tropeçava para frente.
“Claro.” Fiz um gesto para o piano. “Você quer trabalhar aqui, ou no salão de
baile?”
Ela puxou o braço para longe. “Do que você está falando?”
“Ele fez.” Dei a ela o sorriso que transformava a maioria das garotas em
manteiga. A maioria das garotas, mas não Faye. “Que sorte a minha.”
O rosto de Faye se contorceu enquanto ela lutava contra seus impulsos, entre
agradar o Mestre Radcliffe e me estrangular até que eu ficasse azul. Eu sabia um
pouco sobre como ela se sentia, naquele momento eu queria cair na gargalhada e jogá-
la contra a parede e beijá-la ao mesmo tempo. Eu optei por nenhum dos dois, e em
vez disso, ofereci meu braço. “Salão de baile, então. Devemos?”
Faye me lançou um olhar sujo, ergueu seu violino, passou por mim e saiu pela
porta. Eu sorri enquanto a seguia, observando aquela bunda linda balançar pelo
corredor, enquanto Heather enfiava adagas nas minhas costas com os olhos.
BANG. Faye abriu a porta do salão de baile com tanta força que bateu contra a
parede, sacudindo uma cômoda cheia de pratos de porcelana. Ela atravessou a sala e
jogou o estojo do violino sobre uma otomana de veludo. Um raio de luz difusa saiu da
janela e caiu em seu rosto.
“Eu não sei qual é a sua intenção aqui,” ela retrucou. “Mas você pode parar
agora. Aquele beijo foi um erro. Você se aproveitou de mim, me pegou desprevenida
e...”
“Eu, me aproveitar de você, Faye De Winter? Acho que não. Ainda me lembro de
como você costumava gritar e chutar e esbravejar quando Madame Usher te colocava
com outros alunos até ela ceder e deixar você trabalhar comigo. Você nunca fez nada
que não fosse exatamente o que você queria. A forma como seu corpo se enrolou ao
redor do meu, você me queria.” Deslizei para o banquinho do piano, levantando a
tampa. “Você ainda me quer, Duende.”
Usar o antigo apelido que dei para ela era uma aposta, uma que valia a pena.
Ela bufou, mas notei seu peito arfante quando se posicionou no meio do chão, de
frente para mim. O feixe de luz cortou seu peito, destacando a curva de seus seios,
mesmo através daquele vestido preto severo. Eu umedeci meu lábio inferior.
“Que jogo você está jogando agora?” Ela exigiu. “Isso é uma distração enquanto
Titus e Ivan destroem meu quarto? Você está planejando despejar um balde de sangue
de porco na minha cabeça?”
“Nada de sangue de porco. Nós vamos apenas fazer uma bela música juntos.”
Minha boca virou para cima quando estendi a mão para passar meus dedos em seu
pulso, para sentir a pulsação de seu sangue em suas veias. “E talvez eu também te
dobre sobre este piano e faça você gritar meu nome quando gozar.”
Faye puxou o braço para longe, e uma parede de vergonha me atingiu. Depois
de tudo que fiz para machucá-la, não a culpo por suspeitar de mim.
Mas aquele beijo me deu esperança. Faye derreteu em meu corpo como se ela
se encaixasse em mim. Ela queria isso tanto quanto eu. E ela só tinha que me perdoar
primeiro. Esse perdão não viria facilmente, mas eu sabia o que tinha que fazer para
conquistá-lo.
“Se você fizer um movimento errado, Dorien Valencourt, eu vou matar você. Eu
só quero passar por essa composição sem ter que fazer isso. A última coisa que preciso
é ser presa por homicídio.”
Ela dedilhou a primeira nota. Era a peça que ela estava tocando no jardim
naquela noite, só que ela a refinou, desenhando o tema, girando-o sobre si mesmo
para criar uma melodia tão dolorosamente assombrosa que me roubou o fôlego.
Eu estava de volta à sala de aula da velha escola de Madame Usher, nós dois
rindo enquanto fazíamos um arranjo clássico para a música Muppets Mahna Mahna,
que tocamos em um recital sob aplausos arrebatadores, embora Madame Usher
franzisse a testa para nós o tempo todo.
Eu fui muito egoísta, e estava muito atolado em minhas próprias merdas para
pensar em como isso deveria ter machucado ela, mesmo que eu continuasse vendo
seu rosto caído em meus sonhos. E ainda passei as últimas semanas esfregando sal
em suas feridas.
Ela terminou a peça, inclinando a cabeça. Bater palmas agora seria quebrar o
momento.
Eu não tinha preparado nada, mas era como se a composição dela fosse
perfeitamente desenhada para mim, para o meu estilo. Eu peguei o tema de sua peça,
expandindo e aprofundando, dando um toque mais emocional nos momentos certos.
Eu queria olhar, ver a reação dela, mas eu sabia que se eu quebrasse meu foco, eu
perderia a magia que envolvia meus dedos.
Eu dei a ela essa música, esse pedaço de mim. A cada nota, eu tentava dizer
palavras que nunca haviam saído da minha boca antes.
Eu sinto muito. Eu sinto sua falta.
Eu preciso de você.
Terminei com um floreio, meus dedos varrendo o ar. Eu me atrevi a olhar para
cima. Faye permanecia no lugar, seus dedos agarrando o pescoço de seu violino como
se estivesse prestes a quebrá-lo em dois.
Ela assentiu.
Onde nossos joelhos se tocaram, o calor atravessou minha pele, saltando entre
nós. Eu debati minhas opções.
Ela ficaria incrível curvada sobre o piano, seu cabelo escuro espalhado pelas
teclas enquanto se contorcia em êxtase...
Não. Tentei ignorar o latejar no meu pau. Na biblioteca, quebrei suas defesas.
Eu a tinha visto despida de barreiras, praticamente vulnerável. E ela me odiava por
isso porque acreditava que tinha demonstrado fraqueza, dado um terreno para mim
que ela não podia reivindicar novamente. Eu tinha que mostrar a ela que sua chegada
a Manderley me abalou.
Eu respirei fundo. Meus dedos tocaram as teclas. Com apenas uma mão, eu
tocava uma cantiga, o tipo de coisa que costumávamos inventar juntos o tempo todo
quando éramos crianças.
“Você se lembra daquele dia em que foi à minha casa?” Ela assentiu. “Eu nunca
disse isso a você, mas aquela foi a última vez que comemorei meu aniversário. Aquele
cara que a interrogou, Padre Aaron, ele não era meu tio de verdade. Ele é um... Bom,
ele costumava ser um padre, mas ele foi expulso da igreja por suas opiniões
extremistas, então ele fundou sua própria religião. Minha mãe foi sua primeira e mais
leal convertida.”
Faye pareceu surpresa. Eu penso em todas as coisas que ela esperava que eu
dissesse, e essa com certeza não era uma delas. “Ela usava aquele manto longo…” ela
se lembrou.
“Sim. Todos os discípulos de Arão usam essas vestes, a menos que estejam em
público. Eles mesmos tecem e costuram o tecido. Aaron acredita que os humanos se
desconectaram da natureza e do batimento cardíaco da Mãe Terra, então seu culto é
sobre retornar a esse ‘estado de espírito’. No começo, ele passava muito tempo em
nossa casa, depois parecia ter uma opinião sobre tudo que meus pais faziam, e
quando voltei de uma residência em Londres, ele tinha se mudado para lá
permanentemente.”
“Aaron só tem como alvo os super ricos. Quando ele descobriu meus talentos
musicais, tornei-me parte fundamental de seu plano. Ele viu uma maneira de passar
sua mensagem para muitas pessoas ricas através da minha música. Assumiu as
decisões sobre minha carreira. E agora usa meus pais para me controlar, e a mim
para controlar eles. E é aí que você entra.”
“No começo, meus pais ficaram felizes por sermos amigos. Eles admiravam a
carreira em ascensão de seu pai. Eles viram você como parte do plano. Na verdade,
eles foram até sua mãe e ofereceram dinheiro a ela se ela prometesse que você se
casaria comigo.”
“Parece algo que ela diria.” Um sorriso puxou o canto da boca de Faye, mas foi
rapidamente arrancado por aquela melancolia. “Eu não posso acreditar que seus pais
tentaram armar um casamento arranjado para você. Isso é bárbaro.”
“Essa é a influência do padre Aaron. Foi por isso que te disse que não
poderíamos mais ser amigos. Eu tinha que fazer isso, ou...” Eu me segurei bem a
tempo.
Abri a boca e a fechei novamente. Eu não podia. Todos esses anos de silêncio e
doutrinação. Eu não conseguia quebrar as amarras da minha jaula, nem mesmo por
Faye, nem mesmo quando eu queria desesperadamente.
Em vez disso, coloquei minha mão sobre a dela, meus dedos pressionando as
teclas, tocando as notas da música Mahna Mahna. Os lábios de Faye se abriram em
um silencioso O de surpresa e deleite. Ela deixou sua mão esquerda vagar pelas teclas,
tocando os acordes que devem ter vindo a ela como uma memória muscular.
“Eu não posso acreditar que você se lembra disso,” ela sussurrou.
Desta vez, quando a beijei, fui devagar. Meus lábios permaneceram nos dela por
um momento, dando-lhe a chance de se afastar. Eu precisava que ela se sentisse no
controle, para ser capaz de aproveitar este momento.
Os olhos de Faye se arregalaram, mas ela não se afastou. Pude ver sua decisão
antes mesmo do momento decisivo e inevitável em que ela cederia ao seu lado sombrio
e desabaria em meus braços.
Sim. Sim…
Mas então seu bolso vibrou, quebrando o feitiço de luxúria e fúria que nos
prendia.
“É o meu telefone.”
“Faye? Estou tão feliz por ter conseguido falar com você.” A voz da Dr. Nelson
soava distante, algo que não pertencia ao nosso momento. “Venha rápido. Houve um
incidente.”
“Faye, você pode falar comigo.” Os dedos de Dorien tamborilaram no volante de
seu Porsche enquanto esperava que as luzes do semáforo ficassem verdes.
Eu não disse nada. Eu não podia. Se eu abrisse minha boca agora, eu gritaria.
Mas não que eu estivesse reclamando. Por mais que eu o odiasse, Dorien era o
meu salvador hoje. Quando me lembrei em pânico que Harrison estava ausente,
Dorien se ofereceu para me levar ao hospital. E eu não estava em condições de
recusar.
Dorien nem tinha parado do lado de fora do hospital quando eu voei para fora
do carro e corri para as portas, meu coração apertado, meus olhos ardendo com
lágrimas não derramadas.
A médica parecia cética. “Eu acho que isso pode ser apenas um ataque aleatório.
Eles acontecem de vez em quando. As pessoas estão chateadas com o sistema de
saúde deste país, e constantemente direcionam suas agressões pessoais para
estranhos.”
Assim que coloquei os olhos nela, as lágrimas se derramaram dos meus olhos.
Corri para a cama de mamãe e me inclinei sobre ela, esmagando seu corpo com
a força do meu abraço unilateral. As enfermeiras fizeram um bom trabalho esfregando
sua testa, mas a palavra rabiscada em sua pele ainda permanecia visível.
SAIA
Fazer isso com uma pessoa que não podia revidar, que estava lutando por sua
vida em uma cama de hospital... Meu estômago revirou. Eu apertei minha mão sobre
minha boca, lutando para não vomitar.
Doutora Nelson empurrou uma caixa de lenços na minha direção. “Eu posso
sair se você quiser ficar sozinha...”
Ela ainda está viva. É isso que importa. Pelo menos os bastardos não mexeram
nas máquinas.
“Vocês chamaram a polícia?”
Doutora Nelson assentiu. “Eles estão com a equipe de segurança agora. Eu disse
a eles que você está aqui. Se estiver disposta, eles gostariam de falar com você
também.”
“Era comumente usada pelos antigos egípcios e no mundo clássico para aliviar
a dor durante o parto. Havia essa crença generalizada de que, se uma planta se
parecesse com uma certa parte da anatomia, ajudaria com doenças dessa área. As
flores têm a forma de um útero, por isso a relação. Na era vitoriana, era um veneno
conhecido, mas as plantas às vezes ainda eram cultivadas em jardins senhoriais por
sua beleza. Não é uma planta comum agora, e seus médicos não a identificaram em
exames toxicológicos anteriores porque ninguém nunca cogitou isso. Eu também
nunca teria pensado nisso, se você não tivesse me contado sobre os chás de ervas de
sua mãe. Isso me deu a ideia de investigar ingredientes venenosos na medicina
natural. A erva ainda é usada em alguns medicamentos fitoterápicos, apesar dos
avisos das agências de saúde.”
Nomear o inimigo era uma coisa, mas ele poderia ser combatido?
Doutora Nelson antecipou minhas perguntas. “A boa notícia é que, agora que
entendemos o que aconteceu com sua mãe, acreditamos que podemos ajudá-la.”
“E se ela...” Engoli o nó subindo pela minha garganta. “Na melhor das hipóteses,
o que acontecerá quando ela acordar?”
“Ela ainda terá danos nos órgãos e provavelmente precisará de diálise pelo resto
da vida. Mas muitas pessoas vivem vidas plenas e felizes com danos maiores do que
os que ela sofreu. O coringa é o cérebro dela. Simplesmente não há como saber que
dano foi causado pelo coma prolongado.”
“A comida da lanchonete do hospital era uma merda, então eu saí para comprar
algo melhor.” Ele empurrou uma xícara de café e um saco de papel cheio de
rosquinhas em minhas mãos. “Lembrei que você gostava disso.”
Olhei para dentro da sacola, hesitando antes de espiar dentro, meio que
esperando que uma aranha enorme rastejasse para fora e pulasse em meu rosto. Em
vez disso, um cheiro celestial me cumprimentou. Quatro donuts empilhados com
migalhas de biscoito Oreo. Eles pareciam e cheiravam como…
Uma memória me assaltou. Eu tinha oito anos de idade. Naquele dia, na escola,
Rebecca Marshell e seu grupo de garotas malvadas roubaram minhas roupas dos
vestiários da academia e as prenderam no quadro de avisos sob uma placa que dizia
REDES DE BALEIA. Fui direto da escola para o treino de música, debulhada em
lágrimas. Dorien foi embora assim que me viu, e pensei que minha vida não poderia
ficar pior. Mas ele voltou dez minutos depois com um saco cheio de rosquinhas Oreo
de manteiga de amendoim de uma lojinha na esquina chamada Nothing But the
Dough. Nós nos escondemos em um depósito e comemos todas elas, e em apenas
minutos ele me fez rir. Esqueci daquelas garotas estúpidas. Desde então, sempre que
algo ruim acontecia, sempre que precisávamos nos animar, os donuts Oreo com
manteiga de amendoim cumpriam com esse papel. Até que Dorien se tornou uma
decepção em minha vida, e eu não toquei neles desde então.
A loja Nothing But the Dough ficava no East Village, se é que ainda existia.
Dorien não poderia ter...
Meu peito apertou. Porra, eu não queria mais ter que passar por tudo isso
sozinha.
Dorien me deu seu sorriso de assinatura, aquele que prometia travessuras. “Eu
sou rico pra caralho, lembra? Custou uma fortuna conseguir que um entregador os
trouxesse até aqui em uma motocicleta, e eu nem tinha certeza de que chegaria a
tempo. Mas valeu a pena só para ver o seu rosto.”
Dorien se aproximou. O saco de donuts era a única coisa que estava entre nós,
e de repente eu achei muito difícil respirar. “Valeu a pena ver você sorrir, Duende.
Você não sabe o quanto eu senti falta do seu sorriso.”
Mas a dúvida arranhava minha nuca. É exatamente isso que ele quer que você
faça.
Fazer com que eu confiasse nele novamente era parte de seu plano. Foi por isso
que ele foi atrás desses donuts e me contou aquela história sobre seus pais estarem
em um culto. Dorien sabia como articular uma situação em seu próprio benefício, e
ele estava me tocando como uma sonata agora. Era manipulação envolta em glacê.
Ele adivinhou na biblioteca que eu não acreditava que ele tivesse matado Clare.
Agora ele também sabia sobre minha mãe, então também podia adivinhar o quanto
eu precisava do Prêmio Manderley. Ele sabia que eu não desistiria sem lutar. Agora
ele estava tentando me convencer de que Madame Usher estava por trás de tudo isso,
que ele não tinha escolha, que o bullying acabou porque ele me beijou e me trouxe
rosquinhas.
Mas eu não conseguia acreditar. Eu não poderia ser tão crédula. Até onde ele
iria para conseguir o que quer?
“Ai, que porra é essa?” Dorien cambaleou para trás, glacê de amendoim
escorrendo por sua bochecha. Flocos de Oreo salpicavam a frente de sua camisa. Eu
queria cair na gargalhada, mas a raiva queimava muito forte dentro de mim.
“Duende, espere!”
Eu sinto muito. Nunca imaginei que ouviria essas palavras saindo dos lábios de
Dorien Valencourt. Pena que elas eram a porra de uma piada. Limpei com raiva as
lágrimas que escorriam pelo meu rosto, recusando-me a me virar até que ouvi as rodas
do Porsche girarem enquanto Dorien se afastava.
Minha boca ainda tinha gosto de glacê de manteiga de amendoim, uma das
muitas lembranças felizes que eu tinha com ele que ele mesmo destruiu. Minha
mandíbula se apertou em uma linha dura.
Está na hora.
Eu estava segurando a minha retaliação, sem saber se estava pronta para o que
planejava fazer. Eu não deixaria Dorien cavar sua própria cova, esse plano significava
quebrar algumas regras. Significava fazer algo que eu nunca poderia voltar atrás. Mas
era o único jeito.
Dorien tinha apontado direto para o meu coração, para a música da minha
alma, e ele sufocou as notas com sua crueldade. Se eu quisesse que Dorien Valencourt
pagasse, teria que bater nele onde mais doía.
Sua carteira.
“Obrigada, Harrison.” Minhas pernas vacilaram quando subi na parte de trás
da limusine. “Sinto muito que você teve que vir até aqui...”
“A qualquer momento, minha querida. Só lamento não ter trazido você aqui em
primeiro lugar.” Seu rosto mudou desconfortavelmente. “Ela fica com essas ideias na
cabeça, a Madame...”
“Eu sei. Não se preocupe com isso.” Eu sabia agora quanto poder Dorien
realmente tinha naquela casa, Madame Usher tinha dado a Harrison uma ordem para
me ignorar, mas uma ligação de Dorien e aqui estava minha limusine. Tudo o que ele
me disse na biblioteca era mentira. Seus lábios devorando os meus, seus dedos na
minha nuca, aquele rosnado que ele fez enquanto chupava meu lábio...
Tudo mentira.
“Espero que sua mãe esteja bem. E espero que peguem o bastardo que fez isso.
Dorien disse que algo aconteceu.”
Harrison amaldiçoou, algo que eu nunca tinha ouvido ele fazer. “Ele não vai se
safar dessa, querida.” Ele empurrou o carro para fora do estacionamento do hospital.
“Você o fará pagar.”
Sim, eu planejava fazer isso. Que as trombetas soem, Dorien Valencourt cairia.
“Ei, Cory,” eu sussurrei, colocando minha mão ao redor do telefone.
“Faye?” Creepy Cory, o idiota que trabalhava do outro lado do bar em que eu
costumava fazer turnos, parecia surpreso e fodidamente encantado ao ouvir minha
voz. Imbecil. “Eles me disseram que você não iria mais trabalhar aqui. Eu estava tão
preocupado. Fui até sua casa para ver você, mas o lugar está vazio.”
Obviamente, seu perseguidor assustador. Cory era metade da razão pela qual eu
estava tão feliz em deixar aquele lugar. Ele estava sempre tentando se aproximar
demais, sempre me convidando para sair e tentando me levar para casa, sempre me
encarando como se estivesse se perguntando como seriam meus órgãos espalhados
em sua cama. “Sim. Eu me matriculei em uma escola de música chique. Ganhei uma
bolsa de estudos,”
“Não é realmente esse tipo de escola. O problema é que tem um cara que está
sendo horrível comigo.” Eu deixei minha voz macia, dando a Cory algo para se agarrar,
a chance de ser meu herói. “Eu estou assustada. Ele é um valentão e colocou todos
os outros alunos contra mim. Normalmente seria o tipo de coisa que um soco rápido
na garganta resolveria, mas…”
“Mas?” A voz de Cory soou meio embargada. Aposto que ele estava se lembrando
daquela vez comigo depois de fechar o bar, quando eu dei a ele um soco na garganta.
Ele não conseguiu falar por uma semana.
“Mas... esse cara tem recursos. Ele é um idiota rico, e eu preciso que ele não
seja capaz de me destruir. Eu esperava que você pudesse me ajudar.”
“Algo parecido. Eu quero que ele saiba que a gatinha aqui tem garras.”
“Eu posso ajudar. Me dê dez minutos. Você terá que me colocar como amigo no
Facebook novamente se quiser ver acontecer. Qual é o nome dele?”
Eu cliquei. Uma janela apareceu, mostrando um login para uma conta de fundo
gerenciada. Um cursor se moveu pela tela por conta própria e uma linha de asteriscos
apareceu enquanto Cory digitava uma senha.
“Seu idiota não é muito inteligente. Eu quebrei a senha dele em segundos,” Cory
mandou uma mensagem. Um momento depois, uma lista de contas e transações
apareceu na tela. A faixa na parte superior da tela dizia: “Bem-vindo, Dorien.”
Cory passou o controle para mim, e eu cliquei na primeira conta. Dorien usava
seu dinheiro para exercer controle não apenas sobre mim, mas sobre todos em
Manderley. A única maneira de mostrar que ele não podia me controlar era tirar todo
esse dinheiro dele.
Meu dedo pairou sobre o mouse. O que eu estava prestes a fazer era muito
ilegal. Eu estava roubando dinheiro. Muito dinheiro. Não para mim, é claro, eu escolhi
a instituição de caridade perfeita para receber a generosa doação de Dorien. Eles
ofereciam aulas de música para crianças carentes do centro da cidade, enviando os
melhores e mais brilhantes alunos para conservatórios de todo o mundo com bolsas
de estudo. Exatamente o tipo de coisa que Dorien estaria por trás.
Huh?
Liguei para Cory novamente. “Dorien tem outros fundos? Devemos ter cometido
um erro. Não há dinheiro nesta conta.”
“Não que eu possa ver. Ele tem uma conta corrente no banco dele, mas eu já
hackeei e contém apenas $23. Mais três cartões de crédito, todos praticamente
estourados. A última transação foi ontem, por pouco mais de US$ 400 para Nothing
But the Dough no East Village. $ 400 em donuts, consegue acreditar? Ele deve
acumular dezenas de milhares de dólares por mês e depois fazer com que mamãe e
papai paguem a conta. Bastardos ricos, certo?”
“Claro. Mas você vai ter que continuar minha amiga no Facebook.” Cory parecia
um cachorrinho esperançoso. Eu sentiria pena dele se não fosse pelo fato de eu me
lembrar da sensação de sua mão indesejada segurando meus seios.
Mas 225 dólares? Cartões de crédito estourados? O que estava acontecendo com
Dorien? Eu poderia realmente pegar até ó seu último centavo?
Dorien não tinha falado comigo desde que voltei do hospital, porém seus olhos
tempestuosos seguiam cada movimento meu. Ao contrário de Cory, no entanto, ele
não fazia minha pele arrepiar, mas enviava faíscas de eletricidade pelas minhas veias.
Eu me odiava toda vez que sentia seu olhar varrendo meu corpo, caindo na memória
de seus lábios nos meus.
E ele nem é o único que eu quero. Pois lá está Titus com olhos de fogo e mãos
enormes. Aposto que ele saberia exatamente como usá-las. E Ivan, que nem se abalou
quando foi pego com aquelas drogas. Como seria vê-lo perder o controle...?
Mãe. Porra, eu gostaria de poder falar com ela. Ela saberia exatamente o que
fazer. Com seu negócio de sucesso e personalidade selvagem, mamãe tinha uma série
constante de homens poderosos competindo por suas afeições. Uma vez, ela até
namorou um rapper semi famoso por alguns meses, e os paparazzi nos seguiam até
na lavanderia. Ela saberia exatamente como lidar com Dorien, Titus e Ivan.
Mas ela não estava aqui. Eu tinha que lidar com tudo isso sozinha.
E apesar do olhar constante de Dorien, e até de Titus e Ivan, ninguém mais
falou comigo. Heather me olhava como se tivesse crescido uma terceira cabeça em
mim. A tensão estalava sempre que eu entrava em uma sala, e eu tinha essa sensação
assustadora de mau presságio de que em breve tudo se transformaria em uma grande
bagunça.
Optei por não enfrentar a aula de redação junto com os outros, e fui para a
biblioteca, para trabalhar na minha redação final. Eu tinha escolhido escrever sobre
Paganini, esse incrível virtuoso do violino do século XIX. Paganini tinha todos esses
truques de palco que gostava de fazer, ele mexia nas cordas do violino antes de uma
apresentação para que elas quebrassem durante a música. Ao final de sua
performance, ele estaria tocando uma peça inteira em uma única corda. Algumas de
suas composições perdidas eram tão impossíveis de tocar que corria a lenda de que
Paganini fez um pacto com o diabo em troca de seu talento. Ele é o bad boy original
da música clássica, então obviamente eu o adorava.
Enfiei meus fones de ouvido e coloquei minha playlist de indie rock, afinal uma
garota não pode viver só de Paganini. Meu telefone apitou com uma mensagem da
Dra. Nelson. Ela tinha sido incrível, me atualizando todos os dias sobre o progresso
da doença da mamãe, oferecendo-se para me enviar mensagens em vez de ligar caso
eu não conseguisse lidar com uma conversa telefônica.
“Oi, Faye. Suspeito que em breve você receberá uma ligação da polícia, pois
acabei de falar com eles. Eles têm boas e más notícias, receio. A boa notícia é que
pegaram o cara que agrediu sua mãe. A má notícia é que ele é um sem-teto que fez
isso por dinheiro. Ele não tem um nome ou descrição da pessoa que o contratou.”
Eu suspeitava disso, mas ver a confirmação escrita em preto e branco fez meu
sangue ferver. No começo, eu assumi que alguém do mundo das relações públicas
tinha feito isso, afinal mamãe fez um monte de inimigos quando ela conseguiu chegar
ao topo, e eu já tinha dado uma longa lista à polícia. Mas quando eu fiz a conexão
entre a palavra SAIA e a mensagem no meu espelho, percebi quem realmente fez
aquilo. Eu também disse isso à polícia, mas eles disseram que seria difícil provar. Eles
não queriam ir atrás de uma família poderosa como os Valencourt. Covardes.
Quando andei pelo mezanino para pegar um volume sobre a vida de Paganini,
notei Dorien curvado sobre um cubículo no canto, franzindo a testa para seu laptop.
Ele o fechou quando eu passei, e ele olhou para mim, mas o corte de seu sorriso não
tinha o veneno usual.
Eu levantei a mão para tocar meu rosto. Ele estava certo, eu estava sorrindo.
Fazia tanto tempo desde que eu tinha uma razão para sorrir que eu esqueci como era
a sensação.
Como ela fez não era tão importante, e o porquê era óbvio. Vingança pela merda
que eu a fiz passar desde que ela chegou em Manderley. Ela nos pegou um por um,
primeiro Ivan, depois Titus, e agora eu. Ela pensava que eu tinha algo a ver com a
agressão de sua mãe.
O que sacudiu meus ossos mais do que qualquer coisa foi o que isso significava.
Peguei meu telefone da cama, meus dedos voando sobre as teclas para enviar
uma mensagem para ele, mas apaguei todas as palavras antes de clicar em enviar. O
que eu poderia dizer que faria diferença?
Acalme-se. Não perca o controle. Ela não sabe de tudo. Ela sabe sobre o dinheiro...
ou a falta dele. Mas ela não tem como saber para onde foi, ou por quê.
Mas ela vai descobrir. E você só tem a si mesmo para culpar. Você mencionou seu
irmão. Você cutucou o urso, e agora o urso não vai descansar enquanto não arrancar
suas entranhas.
E esse segredo... Poderia custar a vida da única pessoa no mundo com quem
eu me importava mais do que Faye.
“Porra. Porra. Porra.” Peguei um travesseiro da minha cama. Essa era a coisa
chata de ficar preso nessa escola no meio do nada. Não havia ninguém para socar. Eu
poderia bater em Titus, eu suponho, mas como ele estava me emprestando dinheiro e
ele era do tamanho de um trem de carga, tudo o que eu conseguiria seriam dedos
quebrados.
Eu ficaria feliz em socar Mestre Radcliffe até que seu rosto fosse uma polpa
sangrenta, mas isso tornaria as coisas piores para Ivan e Elena, e eu não poderia fazer
isso.
Sem ter para onde dirigir minha raiva, bati meu punho no travesseiro. Penas
voaram por toda parte, cobrindo meu quarto em uma tempestade de neve suave e
amarela.
Joguei o travesseiro longe com nojo. Ele atingiu o porta-retratos na minha mesa
de cabeceira, fazendo-o voar. Vidro se estilhaçou no chão.
Faye. Aposto que ela estava adorando isso. Aqueles lábios vermelhos dela
tinham formado um sorriso genuíno porque ela conseguiu me superar. Imaginei
aqueles lábios deslizando ao redor do meu pau, sua língua passando rapidamente
sobre a ponta enquanto ela me levava profundamente. Eu gemi com o pensamento de
me render a ela.
Como se não tivéssemos o suficiente para nos preocupar. Eu abri minha boca
para perguntar a ela sobre isso, mas então meu telefone tocou novamente.
Do outro lado da sala, no sofá que dividia com a irmã, Ivan franzia a testa para
a tela do próprio celular. Isso só podia significar uma coisa.
Dorien.
“Eu tenho que ir.” Eu me levantei, desembaraçando o braço de Aroha dos meus
ombros e entregando seu computador de volta. Ela me deu um sorriso artificialmente
brilhante.
“Quando o Príncipe das Trevas chama, seus pequenos lacaios saem correndo.”
Ela revirou os olhos.
“Eu vou assistir com você, Aroha.” Elena deslizou ao lado dela, colocando a
garrafa de vinho em seu colo. Aroha pegou o laptop e começou a percorrer a seleção
de programas. Encontrei os olhos de Elena e ela assentiu. Ela tinha visto a névoa nos
olhos de Aroha também. Ela não deixaria Aroha sozinha.
Faye De Winter.
Mas nunca poderia haver mais, porque Dorien já havia carimbado sua
reivindicação. E o que Dorien queria, ele conseguia.
Faye estava provando ser uma oponente formidável. Ela foi atrás de Ivan e quase
o expulsou de Manderley. Se mais alguém tivesse feito isso, Dorien o teria feito em
pedaços, mas ele nunca considerou fazer isso. Ao contrário, ele foi até Madame Usher
e alisou as coisas. Ivan permaneceu na escola e nunca mais falamos sobre o incidente.
Não tive coragem de perguntar o que Dorien negociou para conseguir isso, mas sei
que deve tê-lo machucado. Muito.
E embora ainda estivéssemos ignorando Faye, ele parecia ter desistido da trama
para destruí-la. Ele a levou para o hospital outro dia, e então ligou para Harrison ir
buscá-la. Ele se exaltou comigo quando perguntei o que aconteceu, e Faye estava
evitando-o e observando-o com cautela sempre do outro lado da sala desde então. Eu
nunca tinha visto ele se entregar a uma garota antes, e era estranho. Um pouco
assustador.
E era uma merda, porque eu a queria também. Mas Dorien tinha a prioridade,
como sempre teve. O Broken Muse deveria ser uma democracia, mas todos nós
sabíamos que isso era besteira. Dorien dava as ordens, e Faye era dele desde o
momento em que ela entrou pelas portas de Manderley.
Ele vai despedaçá-la como faz com tudo em sua vida, assim como fez com a nossa
banda. Se Faye acha que ser odiada por Dorien era o inferno na terra, então ela deveria
tentar ter o amor dele.
Enquanto subíamos as escadas, Ivan pigarreou. Eu me virei para ele, mas ele
se encolheu sob meu olhar, engolindo o que quer que estivesse prestes a dizer.
Chegamos ao quarto de Dorien em silêncio. Eu empurrei a porta.
“O que aconteceu aqui? Faye finalmente lhe deu as travesseiradas que você
merece?”
“Você é fodidamente hilário.” Dorien olhou para mim. Uma pena amarela
grudada em sua sobrancelha. “Faye sabe sobre o meu dinheiro.”
“Ela invadiu minha conta e limpou tudo o que restava, mas não que houvesse
muito. Ela doou tudo para uma instituição de caridade para músicos carentes.”
Eu não pude evitar. O riso explodiu de mim como fogos de artifício no 4 de julho.
Dorien olhou para mim. “Pare com isso. Ela virá atrás de você em seguida,
guitarrista.”
Dei de ombros. “Deixe-a. Talvez eu queira que ela venha atrás de mim.”
Dorien jogou a cabeça para trás. A risada começou no fundo de seu estômago e
borbulhou como um vulcão começando a entrar em erupção. Ele chutou as pernas no
ar e pegou uma pena flutuante em sua mão, esmagando-a entre os dedos.
“Eu não posso acreditar nessa merda. Boa sorte então, cara. Passamos o
semestre inteiro intimidando-a. Ela acha que você entrou no quarto dela enquanto ela
dormia. Se você acha que pode convencê-la a ignorar isso e lhe dar uma chance, fique
à vontade para tentar. Você não precisa da minha permissão; mas eu recomendo usar
alguma proteção na virilha enquanto isso.”
Dorien deu de ombros. “Eu não disse isso. Eu apenas disse que é inútil.”
Dorien sentou-se, seus pés batendo no chão. Quando seus olhos encontraram
os meus, as tempestades ameaçaram me derrubar. “Ela me beijou na biblioteca, você
sabe. E porra, ela fez um gemido delicioso... Você deveria ter ouvido, teria deixado seu
pau duro como pedra.”
Dorien abriu os braços. “Vá em frente, Titus. Faça. Você sabe que quer.”
“Foda-se.” Virei-me para sua cômoda e joguei uma pilha de livros de música no
chão. Tum, tum, tum. Eles quicaram no tapete. Isso não me fez sentir melhor, mas
quebrou o domínio hipnótico que ele tinha sobre mim.
Ivan engoliu. “Eu disse que nós três gostamos da mesma garota antes. E
queremos a mesma garota agora também.”
Ivan assentiu enquanto dava um passo à frente. “Não quero que briguemos por
ela.”
Dorien caiu para trás na cama, enviando uma rajada de penas pelo quarto.
“Quem está brigando? Aqui está a questão; no que diz respeito a nós três e nossos
paus, a escolha é única e exclusivamente de Faye. Um de nós, dois de nós, todos os
três, podemos dar essas opções a ela, mas a decisão é dela, certo?”
“Certo...” eu disse lentamente, sem saber onde ele queria chegar com isso.
Mas não estávamos lidando com uma groupie do Broken Muse. Esta era Faye.
A Faye de Dorien. E só porque ele concordou com isso não significava que ele pretendia
lutar de forma justa.
Dorien empurrou seu punho em cima dos nossos, as tatuagens de clave de sol
dançando sobre seus dedos. “Bom. Porque temos algo maior para lidar do que seus
paus ansiosos. Alguém que não é a gente está atrás de Faye. Alguém está tentando
chegar até ela através de sua mãe. E precisamos concentrar todos os nossos recursos
na derrocada dessa pessoa, mesmo que isso signifique a queda de Manderley
também.”
Os três meninos saíram da academia e foram para a cidade para um recital, e
Madame Usher me ordenou que limpasse seus quartos enquanto eles estivessem fora.
Assim que abri a porta de Dorien, fui recebida com uma bagunça fofa e felpuda.
Penas. Quê?
Eu assumi que esta era uma nova maneira de me torturar até encontrar a fonte
da penugem, um travesseiro rasgado ao meio. Meu sapato amassou alguma coisa, um
porta-retratos quebrado entre livros espalhados e outras coisas. A sala parecia uma
zona de guerra, com patos sendo as vítimas e o cheiro inebriante de Dorien disposto
como arame farpado pronto para me fazer tropeçar.
Ao lado da fotografia, alguém havia usado renda e diamantes para criar uma
colagem, com uma nota manuscrita no centro. “Dorien. Obrigada pela melhor noite
da minha vida. Com Amor, Clare.”
Clare.
Meu dedo traçou as linhas de seu rosto. Esta era a empregada morta. Ver seu
rosto jovem, agradável e feliz, com um nariz levemente arrebitado e olhos verdes
amigáveis e cabelos castanhos presos em um coque alto, fez ela ser real para mim
pela primeira vez. Ela morou nesta casa, dormiu no meu quarto, morreu no tapete do
corredor. A caligrafia torta no bilhete combinava com a que eu tinha apagado do velho
quadro branco na despensa. E ela estivera com Dorien. Ele a levou para um encontro.
A melhor noite da minha vida. Analisei melhor as luzes no fundo da foto. Eles estavam
na cidade de Nova York...
Creeeak. Rangidos.
Estar perto do cheiro de Dorien assim... Tocando suas coisas, acariciando meus
dedos ao longo da seda crua de seu edredom... Fazia coisas comigo. Isso me fez
duvidar da minha convicção anterior de que ele estava por trás do ataque de mamãe.
Isso me fez desejar coisas que nunca poderiam acontecer de verdade.
Eu precisava deixar essa tensão sair do meu corpo. E se eu não podia foder,
então eu precisava tocar.
Felizmente, com três alunos ainda ausentes por causa do recital, as salas de
prática estavam vazias. Eu rabisquei meu nome no quadro branco da Sala Amarela e
entrei. Lembrei-me da última vez que estive aqui, quando encontrei o livro do meu
pai, e meus ombros se apertaram com uma tensão diferente. Meus dedos zumbiam
com energia reprimida enquanto eu removia meu violino de seu estojo e o descansava
contra meu queixo.
Eu não parei de tocar, mas fiquei atenta à Elena enquanto ela atravessava a
sala e se empoleirava na ponta da espreguiçadeira de veludo sob a janela. A luz do sol
espreitava através das cortinas de renda, salpicando seu cabelo dourado. Ela me
observou, sua expressão serena. Esperei que Elena falasse, ou que algo acontecesse.
Mas ela não disse nada, então continuei tocando.
Não ousei fechar os olhos, como costumava fazer quando tocava para mim
mesma. Em vez disso, concentrei-me nas novas técnicas que o Mestre Radcliffe me
ensinou, descansando minha mão contra o corpo do violino para que eu pudesse usar
meu polegar como pivô para realizar os alongamentos. Uma cãibra percorreu o lado
do meu dedo indicador, mas eu a ignorei.
O gongo soou pela casa quando os Musos chegaram. Uma comoção no corredor
chamou minha atenção. Fechei o estojo e me arrastei até a porta, abrindo uma fresta
para espiar lá fora. Ivan e Elena estavam ao pé da escada. Os dedos de Elena se
curvavam ao redor do corrimão esculpido, enquanto Ivan apertava seu pulso livre,
tentando puxá-la de volta para encará-lo.
“Onde você estava?” Ivan conseguiu girá-la, envolvendo seus braços ao redor de
sua cintura, segurando-a no lugar contra seu corpo. Apertei a porta com mais força,
debatendo interferir, mas não parecia que ele estava tentando dominá-la. Era mais
como se ele estivesse... desesperado. Com medo. “Não consegui te encontrar quando
saímos. Eu estava preocupado. Eu pensei que...”
Ela balançou a cabeça, pressionando as mãos nas costas dele, deixando sua
bochecha cair contra seu ombro. “Eu não estava com ele. Eu queria ver Faye. Eu tinha
que ter certeza que ela é digna de você, e eu acredito que ela seja.”
Espere, o quê?
“Eu não posso esquecer isso. O que ele está fazendo com você... é errado. É tudo
tão errado.” A voz de Ivan tremia de raiva. Ele soltou uma série de palavras em sua
língua romena nativa.
Elena respondeu a ele no mesmo idioma, seus ombros caídos com a derrota. Eu
estava prestes a fechar a porta novamente quando ela voltou para o inglês. “Não há
nada que possamos fazer. Somos prisioneiros aqui. Mas ele nos ajudará a conquistar
a liberdade. Essa é a única razão pela qual eu o deixo perto de mim, e esse é o meu
sacrifício, Ivan. Tudo vai valer a pena, eu juro.”
Ivan cuspiu uma resposta, suas mãos fechadas em punhos contra as costas
dela. Eu não precisava entender romeno para saber que ele ameaçou alguém com
violência. Mas quem era o ‘ele’ a quem ela se referia? Dorien?
Eu recuei e bati na porta com o pé, inclinando minha bunda contra ela. Por que
Elena veio me ouvir tocar? Por que ela não queria que Ivan soubesse onde ela estava?
E o que ela quis dizer quando disse que eles eram prisioneiros?
Ir sem ela seria... tão ruim quanto tudo o que eu tinha que fazer sem ela, mas
seria maravilhoso estar imersa na música e me lembrar daquilo pelo que eu estava
lutando.
“Como punição por certos crimes, Ivan e Dorien ficarão para trás.” Madame
ergueu o nariz no ar. “E, claro, Faye estará muito ocupada com suas tarefas para
participar.”
Ivan lançou um olhar para Elena, seu garfo caindo de sua mão. Elena colocou
os dedos sobre os dele. “Eu não posso ir sem Ivan,” ela disse, os olhos encontrando
os de Madame em um confronto de vontades. Mas o poder de seu olhar de safira não
foi refletido em sua voz fina, e Elena rapidamente cedeu, baixando os olhos para o
prato.
“Não seja idiota. Você é uma mulher adulta que pode ficar sem seu irmão por
uma noite. O que vai acontecer quando você estiver em turnê solo, por exemplo?” Ivan
estava tremendo. Madame olhou ao redor da mesa, desafiando alguém a ir contra ela.
“O resto de vocês, estejam prontos para partir às 10h em ponto da manhã de sábado.
Já reservei quartos de hotel na cidade.”
Não ir à festa de gala não me incomodou tanto quanto um fim de semana inteiro
sozinha com Dorien e Ivan. Levei uma braçada de pratos para a cozinha e, quando
voltei para terminar de limpar a mesa, notei Dorien e Heather sussurrando juntos do
outro lado do corredor. Heather apontou o polegar na minha direção, sua voz pingando
veneno. Eu parei em meu caminho.
Dorien girou nos calcanhares e se afastou. Heather gritou atrás dele: “Se você
não tiver estômago para terminar o que começamos, eu mesma faço isso.”
“Faça, e eu vou arruinar você.” Dorien não gritou, mas a ameaça era clara em
sua voz.
Heather bateu à porta da Sala Vermelha na cara dele. Dorien olhou para ela por
alguns momentos, seu peito subindo e descendo, suas mãos fechadas em punhos. Ele
caminhou pelo corredor em minha direção; e a tempestade em seus olhos poderia
afundar um navio de guerra.
Os passos de Dorien vacilaram quando ele me viu, então ele estreitou aqueles
orbes de ardósia para mim e acelerou o passo. Suas botas batiam no tapete grosso.
Ele deixou clara sua intenção. Se eu não saísse do seu caminho, ele passaria por cima
de mim e não sentiria nenhum remorso por isso.
Uma distensão muscular. Uma batida. Mesmo uma contusão poderia afetar
minha música. Eu não podia me dar ao luxo de me machucar.
Mas também sabia que não podia deixar Dorien vencer. Se eu desse a esse idiota
um centímetro de abertura, ele me destruiria.
Dei um passo em direção a Dorien, endireitando meus ombros, deixando claro
que não sairia do lugar.
No último segundo possível, bati meu corpo contra a parede e estiquei o pé. A
bota pesada de Dorien deslizou por baixo dela, e ele caiu como um tronco no chão.
“Que porra é essa?” Ele gemeu quando rolou para se ajoelhar no tapete. Ele
agarrou sua mão, que ficou arranhada por causa do piso.
“Ah, então você fala.” Eu estava sobre ele com os braços cruzados. Um sorriso
apareceu no meu rosto, e eu o deixei brilhar. Gostei da visão que tinha dele agora,
rastejando embaixo de mim com uma expressão confusa no rosto.
“Não soe tão surpreso.” Uma pontada de culpa se contorceu em meu estômago,
mas eu a empurrei para baixo. “Você pretendia me machucar há 1 minuto atrás, e me
fez tropeçar duas vezes. Sem falar que machucou a minha mãe. Vale tudo pela guerra
e pelos prêmios em dinheiro.”
Dorien se levantou, usando o braço que não estava sangrando para tirar cachos
escuros de cabelo de seus olhos. “Eu nunca toquei em sua mãe. Se você pensasse
sobre isso por um momento, saberia. E mesmo se você fosse a melhor musicista desta
escola, o que você não é, Madame Usher nunca lhe daria o Prêmio Manderley.”
“Talvez não, mas isso não significa que eu não possa impedir que o prêmio vá
para um membro do Broken Muse.” Dei de ombros. “Eu já entendi. Você me odeia.
Mas eu não vou a lugar nenhum, então você está desperdiçando sua energia me
atormentando.”
Ele poderia ter contratado alguém, ou um dos outros foi pego pela câmera,
mas... Eu simplesmente não acreditava nisso. E então havia todas aquelas coisas que
Dorien tentou dizer na biblioteca, sobre Madame Usher e... a entrega de rosquinhas
de $400 não mentia. Assim como eu não acreditava que Dorien fosse capaz de matar
Clare à sangue frio, eu não conseguia ver os garotos Broken Muse orquestrando isso.
Sentindo-me uma vilã, cozinhei o chili mais quente e apimentado que eu sabia
fazer, com o clássico molho da minha mãe, e empilhei colheradas em cima de dois
montes de arroz. Servi uma porção muito mais razoável para mim e levei as três tigelas
para a mesa, onde os caras tinham se envolvido em uma conversa profunda e
significativa sobre hard house (Um estilo de música eletrônica que surgiu no início
dos anos 1990) com Ivan sendo a favor e Dorien contra.
“O que é isso?” Dorien olhou para sua montanha com desgosto claro em seu
tom.
“Você está falando comigo agora?” Eu pisquei para ele da ponta da mesa.
“Só para dizer que essa comida parece merda de cachorro. Não é comestível.
Traga-me outra coisa.”
Ivan já estava comendo, seus olhos passando rapidamente entre Dorien e eu.
Ele não reagiu quando o chili atingiu sua boca. Esse cara é feito de pedra ou algo
assim?
“Foi o que eu cozinhei,” eu disse. “Agora, se você não quer comer, pode ir até a
cozinha e fazer alguma coisa. Caso contrário, coma.”
“Você não reconheceria comida mexicana adequada nem se ela mordesse sua
bunda, e você não vai receber mais nada de mim, então coma.” Eu mastiguei um
salgadinho de milho bem alto. “Você poderia ter ido ao jantar de gala chique com os
outros se tivesse implorado à Madame. Você não está de castigo como eu e Ivan.”
“Abri minha conta e descobri que até o último centavo do meu dinheiro foi doado
para uma instituição de caridade.” Dorien empurrou a cadeira para trás. “Eu não sei
como você fez isso, mas foi muito... Rude.”
Ivan largou o garfo e olhou para o amigo, mas Dorien o ignorou. Enquanto eu
observava seu rosto em busca de uma reação, percebi o que ele quis dizer quando nos
confrontamos no corredor. Ele não tinha dinheiro para pagar ninguém para machucar
minha mãe. Eu teria visto quando estava vasculhando seus fundos. Alívio tomou
conta de mim com uma força para a qual eu não estava preparada. Por que eu queria
tanto que Dorien fosse inocente?
“Eu nunca faria uma coisa dessas,” eu disse docemente. “Mas se eu tivesse feito,
eu poderia ter ficado surpresa ao descobrir quão pouco dinheiro havia lá. Parece estar
em desacordo com a imagem de um idiota rico que você criou para si mesmo. Eu me
pergunto como a imprensa se sentiria se soubesse que o Bad Boy do Barroco é
realmente o Bad Boy Falido?”
Dorien endureceu. Algo em seus olhos brilhou para mim. Algo como...
Admiração.
“Bem jogado.” Dorien tamborilou os dedos na mesa. “Ivan, você tem planos para
esta noite?”
Embora ele tenha falado com seu amigo, seus olhos nunca deixaram meu rosto.
Ivan respondeu com a mesma atenção intensa que tinha em mim, aqueles cacos de
safira cortando lascas da minha pele. Mais uma vez, eu ansiava por saber o que Ivan
estava pensando por trás daquele olhar gelado.
“Nós temos esta casa inteira só para nós,” ele respondeu sem emoção.
“E eu tenho a chave do armário de bebidas,” Dorien sorriu. “O que você nos diz,
Faye? Titus não está aqui, mas isso não significa que não podemos ter uma festa
adequada.”
Por um momento, eu não consegui registrar onde eles estavam querendo chegar.
“Você está me pedindo para... Festejar com vocês?”
“Vamos lá. É sexta-feira à noite e Ivan precisa de uma distração para não se
preocupar tanto com a irmã. Você deveria até soltar o cabelo, Duende.” Dorien
estendeu a mão sobre a mesa, seus dedos roçando minha bochecha enquanto
enrolava uma mecha do meu cabelo em volta dos dedos.
Por um momento, o tempo parou. Tudo o que existia era o calor dos dedos de
Dorien na minha bochecha, e o leve puxão no meu cabelo que fez fogo mergulhar pelo
meu corpo e se acumular entre as minhas pernas, e os olhos de Ivan me puxando,
um lampejo nas bordas de seu gelo que prometia algo…
“Nós vamos ajudar.” Dorien deu uma risada amarga. “Afinal, a servidão pode
estar no meu futuro também.”
Dorien e Ivan levaram seus pratos para a cozinha enquanto eu limpava a mesa.
Quando voltei, ambos tinham amarrado aventais bordados com babados sobre suas
camisas. Ivan encheu a pia com água quente enquanto Dorien tentava lidar com o
pano de prato.
“Se vocês estiverem aqui para ajudar, vocês precisam realmente ajudar.”
Apontei para a máquina de lavar louça. “Dorien, preencha isso e dê tudo o que não
serve para Ivan.”
“Sim e sim, chefe. E enquanto estamos nos escravizando, o que você vai fazer?”
Me beliscando para ter certeza de que não estava alucinando essa loucura,
respondo: “Tenho que arrumar a prateleira de temperos e dobrar a roupa.”
Tê-los na cozinha era estranho. Uma memória passou pela minha mente, de
uma cozinha diferente e de um garoto diferente. Os olhos de Dorien se arregalaram
quando ele viu os limites minúsculos da nossa casa na primeira vez que ele visitou,
depois das aulas de música. “Uau,” ele saltou para olhar os azulejos mexicanos
coloridos que minha mãe usava para decorar as paredes. “Esse lugar é tão legal.”
Eu nunca tinha pensado em nosso pequeno apartamento como legal,
especialmente quando o comparava com a cobertura de Dorien. Eu só fui lá uma vez,
no aniversário dele, e parecia mais um cenário de Star Trek do que uma casa, tudo
brilhando em tantos tons de branco que doeu nos meus olhos, sua mãe pairando
sobre nós em um roupão marrom que deslizava sobre o chão com um sorriso
assustador no rosto, e aquele cara que Dorien chamou de tio Aaron me perguntando
sobre a carreira do meu pai enquanto comíamos um bolo de aniversário de trigo
sarraceno.
E Ivan... Esse cara parecia ter sido feito sob medida para um pedestal, para ser
adorado em um templo pagão, uma distração para caramba quando se estava
tentando limpar o balcão de uma cozinha. Ele se movia pelo lugar com uma graça tão
silenciosa que eu ficava parando para observá-lo e esquecia o que estava fazendo. Ele
me seguiu até a lavanderia enquanto eu tirava os lençóis da secadora e
silenciosamente pegava os cantos para me ajudar a dobrá-los. Trabalhei em empregos
que hospedavam pessoas por tempo suficiente para tudo ficar bem arrumado e limpo,
mas os cantos retos e quase militares que ele fazia me fascinaram.
“Eu dobrava muita roupa quando era menino,” ele se ofereceu. “Muitos turistas
visitam nossa cidade natal por causa de suas construções medievais. Nossa mãe
lavava roupa para os hotéis por causa do dinheiro extra. Elena e eu tínhamos que ir
buscar os lençóis sujos e devolver os limpos.” Essa foi a maior quantidade de palavras
que ele já me disse. Na verdade, foi a maior quantidade de palavras que eu o ouvi dizer
a alguém.
Ivan baixou os olhos para o lençol, que deslizou por entre seus dedos hábeis
enquanto ele o dobrava com precisão. “Não é uma questão de escolha.”
Eu poderia simplesmente dizer não e voltar para o meu quarto e ler um livro ou
praticar minha performance de Paganini.
Mas hesitar diante de Ivan e Dorien, com seus olhos fixos nos meus, não era
uma opção. Pensei em minha mãe em sua cama de hospital e em sua determinação
vitalícia de aproveitar todas as oportunidades e todos os dias enquanto ela ainda os
tinha. Dei de ombros, esperando que eles não pudessem ouvir meu coração batendo
contra meu peito. “Ok, então.”
Segui os Musos pelo corredor. Dorien entrou na Sala Azul e tirou uma garrafa
de uísque do armário. Enfiando-a debaixo do braço, ele liderou o caminho para o salão
de baile, empurrando as portas duplas abertas para revelar o vasto espaço, envolto
em luz fria e manchada que espreitava através das árvores.
A maneira como ele disse isso, com o canto da boca torcido, reverberou pelo
meu corpo. Eu sabia que ele não estava falando apenas sobre a música. Estendi
minha mão para a garrafa. Quando Dorien a pressionou em meus dedos, seu toque
permaneceu no meu, e as batidas do meu coração aumentaram.
“Que tal uma peça Broken Muse, 'Confessions of an Opium Eater'?” Todas as
suas peças tinham títulos estranhos como esse, muitos fazendo referência à literatura
gótica antiga. Eu amava essa peça porque era um exemplo perfeito do que a música
clássica poderia fazer, ela transportava você como ouvinte para um canto escuro de
um antro de ópio e o levava a uma altura vertiginosa antes de derrubá-lo no desespero
do vício.
Dorien bateu na barra do piano. “Não foi escrita para dois violinos.”
“Talvez eu tenha algumas ideias sobre a peça.” Não contei a eles que as notas
assombravam tanto os meus sonhos que eu chegava a brincar com a composição em
minha mente.
Ivan acenou para Dorien e levou o violino ao pescoço. A parte de Dorien era
baixa, as notas longas, e o som me atingiu profundamente. Os olhos de Ivan se
prenderam nos meus quando ele entrou com a melodia. Ele praticamente conjurava
o doce aroma das drogas, o ar inebriante com a fumaça, a promessa sedutora de
partes inexploradas da mente...
Ou talvez esse fosse apenas o feitiço lançado pelos dois belos e quebrados Musos
que tocavam comigo, brincavam comigo, seus olhos varrendo minha pele enquanto
seus dedos invocavam a mais velha e imprudente magia.
O arco de Ivan guinchou nas cordas. Minha boca se abriu quando Dorien beijou
um rastro de fogo ao longo do meu pescoço.
Seus lábios encontraram os meus com um desejo que me tirou o fôlego. Ivan se
agarrou a mim como se estivesse se afogando e eu fosse sua salvação. Afundei nele
também, deleitando-me com a alegria de ser desejada.
Dorien puxou minha camisa, arrastando as mãos sobre minha carne enquanto
a enrolava. Suas mãos agarraram meus seios através do meu sutiã, e seus dentes se
arrastaram pelo meu pescoço.
Dedos circularam meus mamilos através do tecido transparente do meu sutiã,
e eu pensei que meu coração dispararia do meu peito. Eu tinha perdido toda a noção
de onde estavam suas mãos; tudo que eu sabia era o quão incrível eu me sentia.
Ivan enlaçou os dedos nos meus e me levou para o banco. Ele estendeu os dedos
em meu ombro, me pressionando até que eu me deitasse contra o tecido floral. As
molduras de filigrana do teto emolduravam o rosto de Ivan como uma auréola
enquanto ele me arrastava para outro de seus beijos intensos.
Ivan se abaixou na outra ponta do banco, ao meu lado. Eu pensei que ele se
inclinaria para me beijar, mas em vez disso, seus lábios se fecharam sobre meu
mamilo. A sensação de sua língua quente passando sobre aquela protuberância
sensível fez com que lava derretida fluísse pelas minhas veias.
Com um golpe, Dorien rasgou minha calcinha, jogando o tecido arruinado de
lado. Ele se inclinou sobre mim, e quando Ivan chupou meu mamilo em sua boca, a
língua de Dorien circulou meu clitóris.
Eu me contorci entre eles, sabendo que estava fazendo uma mancha molhada
no banco e não me importando nem um pouco. Dorien colocou um dedo dentro de
mim enquanto lambia minha umidade, e nesse ponto, eu já estava fora de mim.
O fogo caiu sobre mim em ondas, como um tsunami de calor me puxando para
baixo, jogando meu corpo em um oceano de êxtase. Perdi-me no fogo, no calor e no
prazer, voltando à tona momentos depois para ver os dois Musos inclinados para trás,
seus braços em volta um do outro enquanto olhavam para mim como se eu fosse
algum tesouro que acabaram de descobrir.
Dorien virou-se para o amigo, puxando a barra da camisa de Ivan. “Não tenho
certeza se é justo que Duende seja a única a estar nua aqui.”
Sem dizer nada, Ivan tirou a camisa. Meus olhos se arregalaram quando
observei a beleza etérea de sua pele de alabastro e sua forma perfeita, e a desfiguração
que a maculava. Estendi a mão para tocar a rede de cicatrizes que cobria suas costas.
“O que foi isso?”
Ele está se referindo a mim. Eu sou a mulher bonita. Ninguém nunca tinha me
chamado assim antes. Gorda, inadequada, feia, esses eram os nomes que eu estava
acostumada a ouvir sendo gritados para mim do outro lado do campus por outros
caras. Bêbados lascivos babando no balcão sobre o quanto eles amavam minhas
curvas e Cory assustador me seguindo depois do trabalho não era a mesma coisa que
dois membros do Broken Muse olhando para mim como se eu fosse uma deusa
merecedora de adoração.
Dorien tirou a camisa e saiu de seu jeans. A luz das velas cintilou sobre suas
tatuagens, iluminando a escrita latina em seu peito, a frase In Cauda Venenum. Eu
ainda tinha que perguntar a ele sobre isso, mas não agora.
Ele arrastou um dedo sobre as bochechas da minha bunda. “Uma bunda tão
bonita,” ele murmurou. “Eu adoraria deixá-la vermelha com um chicote um dia
desses.”
Porra. Por que essa sugestão fez meu estômago se encher de calor?
Os dedos de Ivan se entrelaçaram nos meus, e ele deu um beijo gentil na minha
testa. Eu ouvi o rasgo de uma embalagem de preservativo, e então as mãos de Dorien
estavam em meus quadris novamente. Meu corpo inteiro doía com uma necessidade
que eu não conseguia expressar. Inclinei meus quadris para trás, convidando-o e
implorando-lhe.
“Eu nunca pensei que estaria dentro de você,” ele sussurrou, sua respiração
contra meu ouvido enviando um estremecimento de prazer através do meu corpo já
trêmulo. Enquanto meu corpo se abria para ele, aquecendo-se com sua presença,
Dorien permaneceu duro, apertado, rígido, uma cobra enrolada pronta para atacar.
Sua mão serpenteou ao redor da minha garganta, puxando minha cabeça para
cima e para trás, atacando minha boca com a dele quando ele começou a se mover.
Lento no início, e então ele estava resistindo contra mim, perdendo-se na selvageria
dos movimentos, na liberação de toda a tensão que se estendeu entre nós por tanto
tempo.
Tão certo.
Meu corpo inteiro ganhou vida, minhas veias zumbindo com a mesma magia
que eu sentia quando tocava música, apenas amplificada em um milhão de vezes. A
melodia de nossos corpos se encontrando conjurou uma onda de detalhes sensoriais;
o cheiro da comida caseira de minha mãe, o gosto de rosquinhas de manteiga de
amendoim derretendo na minha língua, a dor no meu ombro depois de tocar uma
peça muito difícil, o inchaço no meu peito sempre que mamãe me dizia que estava
orgulhosa de mim. Todos aqueles momentos brilhantes e detalhes perfeitos
convergiram dentro de mim em um único momento de êxtase.
Foi demais para Dorien. Seu corpo ficou tenso, seus músculos se contraindo.
Ele caiu sobre a borda junto comigo, gozando com um grunhido antes de desmoronar
contra mim, pele com pele. Seu pênis deslizou para fora.
Dorien afastou o cabelo dos olhos. O olhar que encontrou o meu queimou com
algo que eu nunca tinha visto nele antes, contentamento. “Bem, bem, Duende. Você
certamente tocou todas as notas certas.”
Ah, merda.
O que eu fiz?
Quero dizer, não deveria haver um estágio entre perder a virgindade e fazer sexo
grupal? A primeira e única vez que fiz sexo foi com um cara chamado Henry em um
acampamento de música no sul do Maine. Eu posso ter sido uma geek sem amigos na
escola, mas o acampamento de música era onde geeks como eu iam para transar.
Coloque uma centena de adolescentes condenados ao ostracismo em dormitórios
juntos com supervisão mínima, e você terá praticamente uma orgia.
Agora eu entendia.
Maldito fantasma.
“Porra!” Pulei da cama, puxando os lençóis sobre meus seios. O fantasma rolou
quando eu o revelei à luz, e o rosto sonolento de Dorien olhou para mim com uma
diversão irônica. “O que você está fazendo na minha cama?”
“Isso quer dizer que ela já nos esqueceu?” Ivan sentou-se, seu cabelo loiro-
branco empilhado em um lado da cabeça.
“Arrrgh!” Eu arranquei o resto do lençol da cama e cambaleei para trás até bater
na parede. Minha mão voou para meu estômago revolto. Minha disposição
enfraquecida não poderia lidar com dois Musos muito quentes e muito nus
entrelaçados na minha cama.
Eu morri dormindo. Essa é a única explicação lógica. Eu morri e fui para uma
versão estranha do céu. Ou inferno.
“Eu não posso lidar com isso agora.” Eu caí contra a parede, pressionando meus
dedos nas minhas têmporas. “Por que vocês estão aqui? Vocês têm camas muito
maiores e menos lotadas lá embaixo.”
“A companhia lá embaixo não era tão boa.” Ivan bocejou. “Além disso, foi você
quem nos arrastou até aqui.”
“Você não aceitava um não como resposta.” Aquele sorriso perigoso apareceu
no rosto de Dorien. “Você ficava gritando que se o fantasma de Manderley viesse atrás
de você durante a noite, você precisaria de homens grandes e fortes para se sacrificar
enquanto você escapava pela janela.”
“Nada de conversa séria antes do café.” Eu me abaixei para pegar meus jeans
de onde os tinha jogado no chão. Grande erro. Meu estômago não aprovou a flexão.
Os dedos de Dorien circundaram meu pulso, e ele me puxou para seu colo,
afastando meu cabelo do meu rosto. Seus dedos contra minha pele eram como um
bálsamo curativo. “Essa coisa que estamos fazendo, Duende, não é uma coisa única,
não se você não quiser que seja. Você é uma garota Muse agora. Nossa Musa.”
Eu levantei uma sobrancelha. “Titus não teria que concordar com isso?”
“Acredite em mim, Titus concorda. Na verdade, ele vai ficar chateado por não
ter estado aqui. Ele está querendo te convidar para sair desde o começo do ano.”
“Ah, sim, com certeza é. Titus só não fez um movimento porque pensou que eu
tinha reivindicado você.”
Eu bati contra sua mão na minha bochecha. “Esta não é a Idade das Trevas. Eu
tomo minhas próprias decisões e não sou um objeto pelo qual lutar.”
“Eu nunca duvidei disso.” As mãos de Dorien roçaram minhas coxas,
desenhando círculos nas minhas costas. Mesmo através da névoa da minha ressaca,
era tão bom ser tocada por ele. “É por isso que não vamos brigar. Nós três
compartilhamos tudo, então por que não compartilhar nossa garota? Você não parece
se importar. Para uma nerd de música certinha, você se transforma em uma
verdadeira leoa em um piscar de olhos.”
Ivan se arrastou pela cama, pegando minha mão e entrelaçando seus dedos nos
meus. “O que Dorien está tentando dizer, em seu jeito idiota de sempre, é que nós
nunca quisemos te machucar. Fizemos coisas horríveis porque acreditávamos que não
tínhamos escolha.”
“Sim. E sabemos que temos que rastejar muito antes que você nos perdoe.”
Dorien rolou meu mamilo entre os dedos, e eu mordi meu lábio para impedir que um
gemido escapasse dos meus lábios. “Que tal um orgasmo matinal?”
“Na biblioteca, eu tentei dizer a você que Madame Usher quer que você saia de
Manderley. Ela veio até mim antes de você chegar, e disse que o Mestre Radcliffe
insistiu que você se tornasse sua aluna, mas que ela sentiu que sua formação seria
uma desvantagem muito grande. Ela mencionou o caso com seu pai, e como os
queixos caíam para ele dentro da comunidade musical. Disse também que não podia
ir contra o Mestre Radcliffe, mas deixou bem claro que você precisava ser expulsa.
Desde então, eu a ouvi mudar essa história várias vezes.”
“Isso é... Eu nem sei o que dizer, porque ou ela mentiu para você, ou então você
está mentindo para mim agora.” Meu peito apertou. “Madame disse que ficou de olho
na minha carreira desde que saí da escola. Meu convite veio dela, não do Mestre
Radcliffe.”
“Ela mentiu para um de nós então. Não me surpreende. Só não sei o que isso
significa.”
Eu apertei meus olhos bem fechados. Isso era demais para lidar agora. Eu não
poderia processar isso com um cérebro imerso em ressaca. “Por que você concordou
em fazer isso? Não pode ser por causa de sua família...”
“Ela segura uma espada sobre minha cabeça,” Dorien rosnou. “Sobre todas as
nossas cabeças.”
“As pessoas de quem gostamos correm perigo se não fizermos o que ela diz,”
acrescentou Ivan.
Como Elena, imaginei. Mas isso não fazia sentido. O que Madame Usher poderia
fazer com Elena se Ivan estava sempre com ela? E que poder ela tinha sobre Dorien?
Tinha a ver com o que Dorien me contou sobre sua família, mas isso não fazia sentido,
o lindo e selvagem Dorien, que nunca dava a mínima para o que alguém pensava? Ele
não deixaria a Madame possuí-lo, nem mesmo por causa desse segredo.
“Por enquanto, é mais seguro para você viver na ignorância.” Ivan apertou meus
dedos.
“Acho, embora não possa provar, que ela está por trás de todas essas coisas
estranhas que não podemos explicar. Nenhum de nós quebrou seu violino ou pagou
aquele mendigo para machucar sua mãe. Mas também não consigo descobrir como
ela fez e continua fazendo essas coisas.”
“Alguma coisa está acontecendo nesta casa. E aposto que tem algo a ver com
aquele violino Carl Becker que você pegou. Nós vamos descobrir. Vamos lidar com
Madame Usher,” Dorien prometeu. “Ela espera que a gente siga suas ordens como
cordeirinhos no matadouro. Ela tem seus próprios segredos, e vamos enterrá-la com
eles. Mas se temos alguma esperança de descobrir o que está acontecendo em
Manderley, então Madame Usher precisa acreditar que as coisas estão normais. Para
todos os efeitos, nos odiamos e estamos tentando forçar você a desistir. Além disso,
essa pode ser a melhor maneira de lidar com Heather.”
“Heather?”
“Acontece que eu fiz meu trabalho um pouco bem demais.” Dorien se inclinou
para frente e provou meus lábios com a língua. “Ela te odeia com o ardor de mil sóis,
o lixo de trailer que capturou a atenção do Mestre Radcliffe e meu coração também.
Heather tem alguns planos desagradáveis para você.”
“Planos que ela pretendia realizar com seu futuro noivo, antes que ele a
abandonasse,” acrescentou Ivan.
“Heather estará em perigo se ela tocar em você.” Dorien levantou meu queixo
com o dedo. Sua respiração irregular enviou calor pelas minhas veias. “O que você
nos diz, Duende? Deixe-nos fingir que te odiamos na frente de Usher, e continuaremos
explodindo sua mente em particular. Você é mais forte do que qualquer um que eu
conheço. Você pode lidar com algumas palavras duras e brincadeiras estúpidas.”
“Uhmmm.” Seus lábios encontraram os meus, e eu me perdi em seu beijo. As
mãos de Ivan rastejaram sobre minha pele nua, sua boca arrastando beijos leves ao
longo do meu pescoço, levantando os pelos da minha pele. Afundei de volta na cama
enquanto os dois se pressionavam contra mim, lábios e mãos vagando livremente,
explorando cada lugar escondido no meu corpo.
Através da névoa do orgasmo e da ressaca, minha mente zumbia com tudo que
Dorien e Ivan me disseram. Madame Usher estava realmente indo tão longe para se
livrar de mim?
Depois do almoço, levei meu violino para a Sala Vermelha para praticar. Assim
que toquei o movimento final da minha versão de ‘Confessions of an Opium Eate’,
Elena entrou na sala. Ela se sentou no canto mais escuro, puxando as pernas para o
peito e se escondendo atrás de uma cortina de cabelo. Eu estava praticando o Paganini
novamente, e precisei continuar repassando a mesma passagem complicada para
fazer meus dedos dobrarem de uma maneira quase impossível. Tinha que ser tedioso
de assistir e, no entanto, ela ficou quase até o fim, saindo pouco antes de eu terminar.
Esquisito.
Subi as escadas dois degraus de cada vez, meu estômago embrulhado em nós,
esperando passar por um dos caras no patamar e ainda temendo o encontro. A noite
passada já parecia ter sido um sonho. Dorien e Ivan realmente disseram todas aquelas
coisas para mim, sobre me proteger? Sobre eu ser uma ‘garota Musa’? Ou isso era
apenas um ardil bem elaborado para que eles pudessem continuar jogando comigo?
Não encontrei ninguém nas escadas. Larguei meu violino no meu quarto e deitei
na cama por uma hora, olhando para o teto e tentando cair no sono. Minha mente
arruinada e minhas têmporas latejantes se recusavam a cooperar.
Olhei para o meu relógio. Hora de voltar lá para baixo, para começar a fazer o
jantar. Tomei um par de ibuprofeno, passei uma escova pelo cabelo emaranhado e
joguei água fria no rosto. A ressaca era uma merda. A última coisa que eu queria fazer
era cozinhar agora.
Mãos em volta de mim, prendendo meus braços em volta das minhas costas.
Eu gritei, tentando torcer minha cabeça para ver quem era. O aço frio de uma faca
pressionou minha garganta.
Soltei um grito de surpresa. A perna de cordeiro que eu estava segurando caiu
de minhas mãos e bateu no chão.
“Segure-a bem forte,” Heather latiu. Alguém agarrou minhas mãos, torcendo-as
para trás em um ângulo que os braços não deveriam torcer. Eu gritei quando meu
corpo se moveu para frente em protesto, me pressionando contra a faca. O pânico
cresceu dentro de mim enquanto eu lutava contra o aperto, tentando não cortar minha
própria garganta.
“Estou tentando.” A voz de Aroha chegou aos meus ouvidos, e meu pânico
aumentou um pouco. Duas contra uma, e elas me encurralaram na despensa, onde
ninguém me ouviria, nem mesmo se eu gritasse. Os caras estavam na sala de treino.
Eu estava sozinha.
Heather largou a faca e agarrou meu pulso, arrancando meu braço de trás de
mim. Fiquei tão aliviada por ter a lâmina longe da minha garganta que não percebi o
que ela planejava até que fosse tarde demais. Aroha girou os botões até que um anel
de fogo circulou o queimador. Tentei puxar meu braço para trás, mas estava no ângulo
errado. A dor irradiava ao longo do meu braço enquanto eu lutava pelo controle, mas
Heather tinha a vantagem, e ela rosnou com triunfo enquanto empurrava minha mão
em direção às chamas.
“Vamos ver se você vai impressionar Mestre Radcliffe com uma mão queimada,”
ela murmurou.
Não.
Não, não, não, não, não a minha mão, por favor, não...
“Tome seu castigo, sua puta,” Heather murmurou, sua voz alcançando meu
pânico. “Ele nunca vai querer você depois disso...”
Suas palavras se transformaram em um grito quando algo a atingiu por trás.
Eu puxei minha mão para trás assim que Aroha se lançou em um último esforço para
me empurrar para baixo, em direção às chamas.
Eu me abaixei sob seu golpe e me virei. Ivan trancava Aroha contra ele, seus
braços presos. Titus segurava Heather por seu rabo de cavalo loiro.
“Toque nela de novo e eu vou queimar você.” Titus segurou a cabeça de Heather
a uma polegada de seu rosto, e suas feições se contorceram com raiva mal disfarçada.
“Ah, você vai?” Ela atirou de volta em uma voz cantante, mesmo quando agarrou
a mão dele em uma tentativa frenética de se libertar. “Parece que vocês três
esqueceram do porquê estão em Manderley.”
Aroha olhou de Heather para Titus em confusão. “Do que ela está falando?”
“Me solte!”
“Então não é apenas Dorien que está sob o feitiço dessa harpia. Todos vocês
estão,” Heather gargalhou, seus olhos arregalados de agonia enquanto ela se arrastava
até a porta. “Vocês estão fodendo a buceta do lixo de trailer. Madame Usher vai adorar
ouvir isso.”
Ivan largou Aroha e a empurrou em direção à porta. Ela olhou por cima do
ombro para mim. “Eu não quis...”
“Saia,” Titus rosnou, sua voz profunda como um estrondo dos céus. Aroha
correu.
Ivan pegou minha mão, virando-a, passando os dedos sobre os meus. “Elas
queimaram você? Elas te machucaram?”
“Elena ouviu Heather e Aroha se esgueirando para a cozinha,” Ivan disse. “Ela
invadiu nossa Sala para nos contar, e corremos direto para cá.”
“Dorien ficou no corredor, esperando por elas,” Titus acrescentou. “Ele vai
garantir que elas não corram para Madame Usher.”
Dorien balançou a cabeça. “Todos nós temos que manter nossos segredos,
lembra?”
Titus se afastou, olhando para mim com aqueles olhos escuros. “Você vai ficar
bem sozinha?”
Depois de um jantar tenso onde ninguém disse uma palavra e todos os três
Musos deliberadamente evitaram olhar nos meus olhos, eu me retirei para a cozinha
para empilhar a máquina de lavar louça. Enquanto eu preparava um lote de massa
de panqueca para tirar da geladeira pela manhã, meu pescoço arrepiou com a
sensação de estar sendo observada.
Peguei a faca que mantinha no balcão ao meu lado e me virei para a porta. Ivan
se inclinou contra a moldura, seus olhos gélidos passando rapidamente para a arma.
“Eu não queria te assustar.”
“Então você provavelmente não deveria espreitar pelas portas e se aproximar
das pessoas assim,” eu atirei de volta.
“Você está certa.” Uhmmm, aquele sotaque romeno realmente fazia coisas nas
minhas entranhas. Ivan deu um passo à frente e estendeu a mão. “Está uma noite
adorável. Madame Usher já se recolheu, e os outros estão na Sala Azul jogando cartas
e bebendo. Quer andar comigo?”
Estava na ponta da minha língua dizer não, mas seus olhos de cristal
imploravam para mim. Eu não conseguia relacionar a fachada fria de Ivan com sua
adoração possessiva pela irmã, ou o viciado em cocaína que a evidência de seu quarto
sugeria. A curiosidade levou a melhor sobre mim. Eu acenei com a cabeça.
Segui Ivan até a horta. Ele segurou o portão aberto para mim. Eu respirei fundo
quando o ar gelado golpeou minha pele. Eu deveria ter pensado em trazer um casaco.
Ivan já estava tirando sua jaqueta de couro e estendendo-a para mim. “Você
quer?”
“Se você não quiser, então...” Ivan começou a puxar as mangas de volta, mas
eu arranquei a jaqueta de suas mãos e a puxei sobre meus ombros. Se eu tivesse que
estar aqui fora com um Muso, eu não iria congelar os meus peitos.
“Você está malditamente certo.” Eu me virei para admirá-lo. “Não espere tê-la
de volta.”
Ivan riu. O som era tão raro, tão inesperado, que me pegou desprevenida. “Por
favor, não se desculpe. Acho que você gostaria de falar sobre a cocaína.”
A cocaína. Sim, isso era certo. Eu nem tinha parado para considerar o fato de
que estava me envolvendo com alguém que poderia não estar apenas usando drogas,
mas traficando-as.
“As drogas não me pertenciam. Elas eram de Aroha. Todos nós queríamos
ajudá-la a desistir, e eu estava escondendo o pacote dela. Acabou sendo inútil, pois
ela simplesmente encontrou outro fornecedor.” Ivan suspirou. “Eu sei que você
colocou a cocaína no estojo do meu violino. E eu queria dizer que entendo por que
você fez isso.”
“Fiz isso porque você entrou no meu quarto depois que troquei a fechadura. E
vocês ainda estão tentando me convencer de que há um fantasma aqui.”
“E se eu te disser que nunca pus os pés no seu quarto até ontem à noite, você
acreditaria em mim?”
Eu considerei isso. Ele parecia tão sério, mas eu sabia que era uma questão de
lógica. Isso não podia ser verdade. “Mais ninguém poderia ter estado lá, a menos que
haja uma passagem secreta entre o meu quarto e algum outro lugar da casa, como o
depósito.”
“Não tenho a chave do depósito. Madame Usher nunca permitiu que nenhum
de nós fosse até lá. Ela sempre fala de ‘Saúde e Segurança’, ou algo assim.”
Uhmmm. Por que eu nunca percebi que tinha uma queda por sotaques do Leste
Europeu?
“Mas isso é interessante.” Ivan olhou para frente. “Uma passagem secreta. Todos
nós devíamos procurar por uma.”
“Então, se não foi você, quem é que está tocando música através da parede e
pisando no andar de cima e acendendo e apagando a luz do meu quarto?”
Ivan ergueu uma sobrancelha em uma expressão que era muito parecida com
Dorien. “Camundongos, talvez?”
“Isso... não faz nenhum sentido.” Por que ele precisaria de um guardião? Ele já
tinha seus vinte e poucos anos.
“Eu disse que Elena e eu não viemos de uma família rica, mas nossa casa era
sempre cheia de música. Nosso pai dominava todos os tipos de instrumentos,
principalmente violino, e ele tocava canções folclóricas romenas para os turistas que
visitavam nossa aldeia todo verão. Herdamos dele os nossos talentos. Eu sempre fui
bom, mas Elena... ela foi tocada pelos dons do zâne.”
“Zâne?”
“É como uma espécie de fada madrinha nas histórias romenas. Os zâne vivem
nos bosques e nas montanhas e visitam mulheres grávidas para presentear seus filhos
ainda não nascidos com os dons da dança, da música, da beleza ou da sorte. Minha
mãe acreditava ter recebido a visita de uma dessas fadas, e é verdade que quando
Elena começa a tocar, as pessoas sentam e ouvem. Ela praticamente evoca magia com
sua música.”
“Eu sei.” Eu sorri, pensando na primeira vez que ouvi Elena tocar.
“Meu pai nunca trouxe muito dinheiro para casa, e o que ele conseguia era gasto
em bebida e cigarros. É por isso que minha mãe trabalhava em vários empregos e
lavava roupa, sempre economizando. Ela conseguiu comprar uma casa em nossa
cidade com um quarto vago para alugar aos hóspedes. Nosso governo tinha anunciado
planos para construir um parque temático do Drácula perto de nossa casa, e todos
estavam comprando propriedades para lucrar com o fluxo de turistas quando o parque
fosse inaugurado.”
“Lembro-me de ouvir sobre esse parque. Mas o projeto não foi cancelado?”
Ivan assentiu. “Muitas pessoas reclamaram. Disseram que era brega e que seria
construído sobre as cinzas de uma antiga floresta de carvalhos. Os historiadores
notaram que, embora nosso herói Vlad Tepes, o cara que inspirou o vampiro original,
tenha nascido em minha cidade, não tinha nenhuma ligação com o Drácula da ficção,
e muitos romenos não gostam da confusão entre os dois. O príncipe Charles da Grã-
Bretanha se envolveu na questão e o governo decidiu que o projeto não aconteceria.
Mas isso deixou muitas pessoas sem esperança de um futuro melhor dentro do
turismo, incluindo meus pais, que deviam muito dinheiro ao banco por aquela casa
que não podiam preencher.”
Era maravilhoso ouvir Ivan falar. Eu balancei a cabeça para ele continuar.
“Não tivemos escolha, Elena e eu começamos a trabalhar. Meu pai nos tirou da
escola e nos levou para Bucareste, porque mais turistas equivalem a mais dinheiro.
Ficávamos parados na esquina dos prédios do Parlamento e tocávamos música
durante seis horas por dia. Até que notei uma mulher sentada do outro lado da praça,
nos observando. A mesma mulher, dia após dia, envolta em uma pele mesmo sob o
sol forte. Um dia, meu pai apareceu para nos buscar e ela se aproximou dele com o
marido. Ela disse que tinha uma escola de música nos Estados Unidos e que lhe
ofereceria um pagamento anual se pudesse nos levar com ela e gerenciar nossa
carreira. Ela atuaria como nossa agente. E assim, ela continuou pagando ao meu pai
a mesma quantia insignificante todos os anos enquanto ganhava dezenas de milhares
em cima dos nossos shows e gravações. Fizemos várias turnês pela Europa e pela
Ásia, mas não temos um centavo em nossos nomes.”
“Não acredito.”
“Ela diz que depositou parte do dinheiro para nós, mas não podemos acessá-lo
até que tenhamos vinte e cinco anos. Isso é daqui a dois anos. Até então, ela é nossa
proprietária. A única coisa que ela não pode controlar é o Broken Muse, e mesmo
assim ela exerce sua influência no grupo de outras maneiras. Você pode pensar que
é o caso de caridade desta escola, mas não é a única. Eu queria que você soubesse
porquê... Porque pode ser perigoso estar comigo, e você deve considerar isso antes de
escolher estar junto de mim.”
Ivan enfiou as mãos nos bolsos da calça, o rosto virado para longe de mim, em
direção à lua. Ele parecia meio exausto depois de falar tanto.
Em resposta, Ivan se virou para mim. Ele estendeu a mão, seus dedos roçando
minha bochecha enquanto colocava uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha.
O mundo pairava entre nós, suspenso em um momento onde tudo era perfeito.
“Eu queria ficar sozinho com você. Queria saber que a conexão entre nós é mais
do que apenas negócios inacabados entre você e Dorien.”
Suas palavras doíam de desejo, com uma necessidade desesperada que torceu
meu coração. Quando os lábios de Ivan roçaram os meus, deixei os pensamentos ruins
irem embora, liberando-os no ar fresco. As montanhas os arrancaram de mim
enquanto Ivan me envolvia em seu calor. Longe de ser gelado, seu beijo era doce e leve
e incrivelmente lindo.
Um farfalhar nas árvores me tirou do meu devaneio. Meus olhos se abriram. Eu
peguei um movimento atrás do ombro de Ivan e me afastei quando Aroha saiu das
sombras, um cigarro pendurado em seus lábios.
“Só vim aqui para fumar,” ela zombou, batendo em seus bolsos para pegar um
isqueiro. Eu endureci quando ela se aproximou. Achei que éramos... Não exatamente
amigas, mas tínhamos um entendimento mútuo. Isso, era claro, foi antes de ela tentar
queimar minha mão.
Aroha riu, jogando o cabelo por cima do ombro. Ela entrou na sombra da estufa
e colocou a mão em concha ao redor do cigarro enquanto tentava acender a fumaça.
“Você acha que tem algum poder aqui, Ivan?”
“Acredite, eu não me importo com o que ela pode fazer comigo.” As mãos de Ivan
se fecharam em punhos, e ele deu um passo em direção a Aroha. Agarrei seu braço,
e meu toque pareceu estabilizá-lo. Porque eu sabia que ele falava a verdade, ele não
se importava consigo mesmo. Mas Madame Usher sabia disso, e se ele saísse da linha,
ela iria atrás de Elena.
Se já não estivesse.
“Tanto faz.” Aroha finalmente conseguiu acender sua fumaça. Ela deu uma
longa tragada, jogando a cabeça para trás. “Não é nada pessoal, Faye. Eu tenho que
sobreviver aqui assim como você, e às vezes isso significa me aliar a uma vadia como
Heather. Um pequeno aviso para você, no entanto; eu ficaria longe dela. Ela ainda não
terminou com você.”
“Estudantes, um evento muito especial acontecerá para marcar o fim do
semestre.”
Meu garfo estava a meio caminho da minha boca. Eu sabia agora que Madame
Usher via seus 'eventos especiais' como novas maneiras de me atormentar. Não ousei
olhar para nenhum dos Musos, uma vez que tinha certeza de que algo em meu rosto
revelaria as coisas que estávamos fazendo juntos em segredo.
“Estou satisfeita com o progresso que vocês fizeram este ano e quero mostrar
isso a todos vocês. Haverá muitas pessoas importantes, maestros, produtores,
patronos e jornalistas, para vocês impressionarem. Maestro Radcliffe, talvez você
possa fazer sugestões para a sequência de músicas.”
Fugi o mais rápido que pude para a segurança da deserta Sala Vermelha. Mas
não seria segura por muito tempo. Elena entrou no meu santuário particular,
escolhendo o assento perto da janela novamente. Não havia vestígios da garota
quebrada se escondendo nas sombras desta vez. Ela sorriu enquanto eu tocava
minhas partes do concerto de Radcliffe até que eu tivesse certeza de que as tinha
interpretado perfeitamente.
Larguei meu violino. “Por que você está aqui, afinal? Madame Usher ou Heather
mandaram você?”
Elena abriu a boca, como se fosse falar alguma coisa, então a fechou. Em vez
disso, ela balançou a cabeça.
Os olhos de Elena se arregalaram de medo enquanto ela olhava para mim. Não,
não para mim. Atrás de mim. Eu me virei.
A porta estava aberta. Elena deve ter esquecido de trancá-la depois que entrou.
Ivan estava parado ali, sua expressão dura.
“Elena.” Ele gesticulou para ela e latiu algo em romeno. Ela balançou a cabeça.
Ele repetiu o comando.
“Você não é o meu chefe,” ela anunciou com uma voz altiva, levantando-se. Ela
flutuou pela sala para encará-lo, e me lembrei do que ele me contou no jardim, sobre
a mãe deles sendo visitada pelas fadas.
Elena não era a única agindo de forma estranha. Desde que Maestro Radcliffe
nos disse que tocaríamos juntos no recital, Dorien dava desculpas para não praticar
comigo. Finalmente, eu o encurralei. “Eu sei que você não dá a mínima para o que
seus pais pensam de você, mas eu preciso que tudo corra bem nessa festa. Se você
não estiver disposto a tocar comigo, eu me apresentarei sozinha.”
Eu não tinha o poder de tomar essa decisão, e nós dois sabíamos disso, mas os
ombros de Dorien caíram. Ele me lançou um sorriso tingido de tristeza nas bordas, o
tipo de sorriso que poderia quebrar o coração de uma garota em um milhão de
pedaços. “Eu vou me comportar, Duende. Eu prometo.”
Enquanto tocávamos a peça, pude dizer que sua cabeça estava a um milhão de
quilômetros de distância. Seu dedilhado não tinha a desenvoltura usual, e o resultado
foi duro, desprovido da emoção que eu precisava desesperadamente transmitir na
peça.
Eu arranhei o arco nas cordas, criando um guincho poderoso que ecoou pela
sala. Dorien pulou, seus dedos caindo sobre as teclas.
“Bom, isso pelo menos chamou sua atenção.” Eu olhei para ele. “Eu disse para
você não estragar isso para mim. No entanto, aqui está você, fodendo tudo.”
“Eu sei.” Dorien descansou a cabeça nas mãos. “São os meus pais. Já toquei
para multidões em shows esgotados em algumas das maiores salas de concerto da
Europa e da Ásia sem suar a camisa, mas o pensamento de tocar na frente deles com
você…”
“Apenas me diga o que está te deixando todo torcido para que você possa chorar
sobre isso e superar logo. Eles provavelmente nem me reconhecerão depois de todos
esses anos.”
“Talvez eles não venham?” Tentei. “Se eles são tão adeptos dessa coisa de culto
como você diz, então talvez eles não saiam de casa para desfrutar de um simples
recital?”
“Eu gostaria que você apenas me falasse a verdade em vez de falar em enigmas.
Eu posso ajudar, você sabe. Eu sou bastante inteligente.”
“Você é.” Dorien levou minha mão aos lábios e deu um beijo ardente em meus
dedos. “Mas agora, a verdade é perigosa para você. A menos que eu encontre uma
maneira de convencê-los... Sim.” Uma faísca de brilho cintilou através da tempestade
em seus olhos. “Acho que tenho uma maneira de fazer isso dar certo, para todos nós.”
A casa inteira vibrava de excitação com o recital. Aroha praticamente dançou e
cantou canções tradicionais Maori quando ouviu que seus pais viriam. Heather
parecia ter declarado uma trégua comigo e com os Musos, ou pelo menos, ela estava
muito ocupada focada em melhorar sua forma de tocar para colocar qualquer esforço
em suas tentativas de tortura contra mim.
“Você toca lindamente,” ela sussurrou depois que terminei minha composição
ainda sem nome.
“Você quer alguma coisa?” Eu bati as palavras, tentando mostrar a ela que eu
não seria intimidada por sua beleza como os outros.
Mas foi ela quem avisou os Musos sobre o ataque de Heather. E eu estava tão
desesperada para conversar com alguém, qualquer um. Não precisava nem mesmo
ser um amigo, apenas alguém próximo a um amigo. Esta era a primeira vez desde que
eu tinha fumado cigarros com Aroha que alguém em Manderley me estendia a mão.
Dorien e os Musos não contavam porque nem sempre eu podia dizer o que estava se
passando em suas cabeças fodidas.
Elena caminhou até o piano e abriu a tampa, levantando as mãos para as teclas
com seus pulsos macios, como uma bruxa conjurando um feitiço. Sem me perguntar
o que eu queria tocar, ela se lançou na Sonata para Violino nº 9 de Beethoven, uma
peça que eu amava por sua beleza crua e riqueza de cor musical que Beethoven dava
a todas as suas peças.
Ela diminuiu o ritmo para algo mais lento do que eu estava acostumada, dando
à abertura um ar ainda mais melancólico. Quando ela alcançou o primeiro ato, seus
dedos dançaram ao longo das teclas com uma leveza impossível, como uma borboleta
esvoaçando entre as flores. Tentei combinar com seu estilo hábil e leve, mas era difícil
manter o ritmo com ela.
Estou tocando com Elena Nicolescu. A Elena Nicolescu, filha das fadas romenas,
que um dia se tornará a maior musicista clássica de nossa época. Objetivo de vida
alcançado aqui.
“Elena, você está bem?” Eu deslizei para o banco com ela. Havia algo nela, certa
inocência, aqueles olhos de fada, que me fizeram instantaneamente querer cuidar
dela.
Ela balançou a cabeça, enxugando os cantos dos olhos com os dedos. “Eu sinto
muito. Eu não sei o que deu em mim. Eu...”
“Se você quiser falar sobre alguma coisa, eu estou ouvindo.” Olhei para a porta,
me perguntando sobre o significado da fechadura. Ela sempre trancava a porta
quando vinha me ver. Era para manter alguém fora? Seu irmão, talvez?
Elena fungou. Ela deve ter percebido minha pergunta implícita, porque disse:
“Ivan gosta muito de você. Eu posso ver o porquê.”
Ela assentiu. “Ele nunca demonstrou interesse por uma garota. Nunca. Eu
queria ter certeza de que você era boa o suficiente para ele. Mas agora estou me
perguntando se ele é bom o suficiente para você.”
Uma batida soou na porta. “Elena?” Era o Mestre Radcliffe. “Você está aí? Desejo
que você passe por Brahms novamente.”
Todos usávamos máscaras em Manderley. Parecia que a única vez que nos
desnudávamos era quando tocávamos. Elena não precisava me dizer o que estava
errado, porque há poucos momentos ela apenas tocou sua tristeza para eu ouvir.
“Eu devo ir,” Elena sussurrou. Ela saiu da sala tão graciosamente quanto fazia
todo o resto, mas havia uma fragilidade em seu movimento que traía seu terror.
Elena raramente falava comigo, mas cada gesto demonstrava um desejo tácito
de quebrar o silêncio que Dorien havia imposto. Eu me perguntei se ele tinha feito
algum levantamento oficial de sua proibição, ou se todos tinham percebido a mudança
da dinâmica entre nós.
Eu sabia melhor do que esperar que este fosse o começo de uma amizade, mas
eu esperava que sim, de qualquer maneira. A solidão tinha um jeito de se infiltrar nos
ossos das pessoas.
Dois dias antes do recital dos pais, Elena entrou em nossa sala de ensaio, e com
que rapidez eu comecei a pensar nela como nossa, chegando ao ponto de escrever
nossos nomes no quadro de reservas. Suas bochechas estavam coradas de felicidade
e ela praticamente deslizou para o piano. Acho que nunca a tinha visto tão feliz.
Para o fim de semana depois da festa, Dorien, Elena e Ivan foram contratados
para fazer um recital em Nova York. Eles não queriam voltar para Manderley à noite,
então obtiveram permissão especial para ficar em um hotel. Para mim parecia uma
desculpa para festejar, e eu secretamente estava fervendo de ciúmes por isso, mas
nunca imaginei ser capaz de ir.
Eu balancei minha cabeça. “Eu tenho que limpar as salas de ensaio de cima à
baixo. É mais fácil quando vocês estão fora, pois há menos pessoas usando-as. Além
disso, mesmo se eu quisesse, Madame Usher nunca me deixaria ir.”
“Se eu pedir, ela vai ouvir.” Elena pegou minha mão. Eu praticamente podia
sentir sua excitação fervendo em suas veias. “Liguei com antecedência e solicitei que
você fosse adicionada ao recital. Vamos tocar Beethoven juntas. E também reservei
uma suíte para nós. Por favor, diga que irá. Estou cansada de fazer tudo com Ivan.
Eu quero ter algum tempo só de garotas.”
Além do fato de que uma noite longe de Manderley com meus três Musos
significava todos os tipos de possibilidades deliciosas, de jeito nenhum eu poderia
dizer não para Elena. Seria como chutar um cachorrinho.
Além disso... Esfreguei meus olhos vermelhos. Outra noite sem dormir ouvindo
trechos daquela música através da parede do quarto ao lado me fez desejar uma noite
de sono decente em uma cama não assombrada. Se isso fosse um filme de terror,
Freddy Kreuger já teria me sugado para o mundo dos sonhos.
Mas talvez eu estivesse em um mundo dos sonhos agora. Isso explicaria por que
três Musos querem me compartilhar.
E daí se Heather olhava para mim como se eu fosse um inseto? E daí se aquele
concerto detestável à meia-noite me mantinha acordada? Durante minha visita
semanal ao hospital, eu falei sobre Elena para mamãe, mas decidi deixar de fora todas
as coisas maliciosas sobre os caras. Eu não tinha certeza se ela gostaria de ouvir isso.
Até toquei para ela o segundo ato da nossa peça de Beethoven. Dra. Nelson e algumas
das enfermeiras entraram para ouvir e aplaudiram no final. Fiquei muito feliz em dizer
a elas que as pessoas não costumavam aplaudir música clássica.
Eu me arrastei para a cama na noite anterior à festa, meu estômago revirando
de emoção. Eu sabia pelo quadrado de luz brilhante da lua cheia e pelo zumbido em
minhas veias que eu lutaria para dormir.
Com certeza, eu me contorci nos lençóis e tentei forçar minha mente a desligar.
Contei Beethovens no lugar de ovelhas saltando sobre cercas. Imaginei ondas calmas
roçando uma praia de areia branca. Eu me toquei e pensei nos caras. Mas ainda
assim, minha mente foi em direção ao depósito, procurando por sinais de vida.
Olhei para o meu telefone. 3h02 da manhã. E ainda assim, alguém estava
tocando novamente. A mesma melodia assombrosa, repetidas vezes. Vagamente
familiar, mas impossível de reconhecer.
Não faz sentido. Eu circulei o quarto novamente, me esforçando para ouvir onde
o som era mais alto. Não no banheiro. Definitivamente ao lado da cômoda, e ao redor
do cabideiro…
Meu estômago se apertou de medo. Eu posicionei minha orelha na parede. Um
tremor começou nas minhas pernas e percorreu todo o meu corpo.
Às 4 da manhã, joguei os lençóis de lado uma última vez e deslizei para fora da
cama. Se eu não ia dormir, eu poderia muito bem me levantar e terminar minhas
tarefas.
“Bela vista.” Ele mexeu as sobrancelhas de uma forma que me fez cair na
gargalhada.
“Eu queria praticar um pouco pela manhã.” Ele acenou com a cabeça em direção
ao depósito de lenha. “Então ouvi você na escada e pensei que gostaria de alguma
companhia.”
Meu coração batia forte, mas desta vez não era de medo. Lembrei-me do que
Dorien disse sobre Titus querer me convidar para sair.
“Dorien e Ivan contaram o que aconteceu quando eu estava fora.” Seus olhos
escureceram. “Eu queria... Acho que queria dizer que você obviamente tem as mãos
cheias com esses dois, mas se você quiser adicionar um terceiro cara ao seu harém,
estou dentro.”
“Meu... harém?”
“Uhmmm.” Titus se inclinou para mim. Seus dedos percorreram meu braço,
levantando uma linha de fogo que queimou minhas veias. Ele se aproximou, sua
respiração beijando meu pescoço...
…até que ele pegou uma maçã da tigela atrás de mim, trazendo a fruta aos
lábios e dando uma mordida. Porra, como poderia o ato de comer uma maçã parecer
tão gostoso? Um arrepio percorreu meu corpo que não tinha nada a ver com a corrente
de ar que soprava pela janela.
Afastei-me de Titus até que minha bunda estava pressionada contra a máquina
de lavar louça. “Pode chocá-lo saber que não estou acostumada a esse tipo de atenção
vinda dos caras. Não tenho certeza do que fazer com um harém.”
“Você pode fazer o que quiser comigo.” Titus estava em cima de mim em um
momento, seu volume me cercando, bloqueando qualquer saída possível. Eu não me
importei. Nem um pouco. Agora era minha vez de arrastar meus dedos sobre a pele
de seu braço.
Seus olhos expressivos imploravam por mais. Mas ele não ia fazer um
movimento, ele queria que eu fosse aberta sobre o meu consentimento e controle da
situação. Este era seu pedido de desculpas, sua maneira de fazer as coisas certas
depois de ter estado no meu quarto. Ele queria devolver o meu poder.
Eu me afastei, lutando para respirar. “Eu realmente não quero parar, mas se
eu não terminar de fazer essa comida...”
Os olhos de Titus escureceram. “Nunca ouvi essa música. Mas eu tenho uma
explicação para isso, uma que você não vai gostar. Apenas... Considere quem
costumava ocupar o seu quarto.”
“Quem costumava...” Eu cruzei meus braços e olhei para ele. “Estou muito
cansada e estressada para enigmas. Explique.”
Titus assentiu. “Ela era talentosa. Trabalhava para Madame em troca de aulas
gratuitas. A única hora em que ela podia praticar era tarde da noite, quando todos
nós já tínhamos ido dormir. Eu sei que você não acredita em fantasmas, mas…”
...mas por que eu ouvia a tal música misteriosa na calada da noite, música que
só podia ser ouvida dentro do meu quarto?
São?
Eu cantarolei alguns compassos de 'Confessions of an Opium Eater' baixinho
enquanto abotoava uma de minhas camisas barrocas, debatendo se deveria optar pelo
traje completo com minha sobrecasaca sob medida. Eu nunca me senti tão alegre ao
ver meus pais, mas pela primeira vez em décadas, meu coração estava leve. Eu tinha
um plano. Eu poderia consertar tudo. Eu poderia tornar a vida melhor para todos nós.
Ela voltou para a minha vida por causa de um completo acaso, e eu não iria
deixá-la ir novamente.
Eu esperava ver as lindas curvas de Faye passando pela porta. Em vez disso,
Heather invadiu o interior, seu nariz aprumado erguido no ar. Ela fechou a porta atrás
dela, enfiando o ferrolho na fechadura.
“Já disse tudo o que tinha a dizer a você.” Eu me virei para o espelho e agitei
minha mão como se estivesse afastando um inseto irritante, o que Heather
definitivamente era. Uma barata. Ou um escaravelho.
Heather não gostou nem um pouco disso. O sorriso falso caiu de seus lábios,
substituído por uma carranca que não fazia nada para melhorar sua aparência.
“Eu sei o seu segredo,” ela sussurrou. “Eu sei tudo sobre o que está acontecendo
em Valencourt Manor. Ou devo chamar de O Templo das Verdades Terrenas?”
Meu sangue congelou em minhas veias. Essa era a primeira vez que eu ouvia
esse nome sendo pronunciado fora das paredes da minha casa.
Não adiantava fingir que eu não sabia do que ela estava falando. Eu me virei,
fixando-a com o que eu esperava que fosse um olhar aterrorizante, mesmo quando
meu coração batia forte contra meu peito. “Como?”
Heather veio atrás de mim, colocando as mãos nos meus ombros. “Não importa
como. O que importa é que eu tenho a informação. E ainda estou decidindo o que
fazer com ela.”
“Não é óbvio? Você não precisa estar em Manderley, Dorien. Você é talentoso
demais para ficar definhando dentro dessas paredes. Mestre Radcliffe não tem nada
novo para lhe ensinar. Você precisa voltar aos holofotes, onde realmente pertence. E
você deve ter a mulher certa ao seu lado enquanto faz isso.”
“Você vai fazer isso,” Ela sussurrou. “Ou vou denunciar seus pais às
autoridades. E onde isso vai levar seu irmão?”
“Deixe-o em paz,” eu assobiei. “Ele não tem nada a ver com isso.”
“Tsk, tsk. Tudo isso é culpa sua, Dorien. Você não deveria ter perdido a calma.
Tudo piorou desde então. Alguém com uma condenação criminal grave não pode ser
nomeado guardião de longo prazo. Felizmente, como amiga de longa data da família e
com um histórico impecável, ficarei feliz em assumir a guarda.”
Sentei-me no parapeito da janela, minha cabeça girando. “Você fez o seu ponto,
Heather. Diga-me os seus termos.”
“Faye não vai tocar com você. Meus pais dão muito dinheiro para esta escola e
esperam certos padrões. Eles não aceitarão mais ninguém ao seu lado, especialmente
não uma novilha empregada. Ela vai renunciar, e você e eu vamos tocar juntos em vez
disso.”
“Por favor. Modéstia não combina com você. Não tem como aquela vaca gorda
ter escrito algo assim. A música tem Dorien Valencourt estampado por toda parte.”
Ela parou na frente do meu espelho, virando o corpo para se admirar. “Ou deveria
dizer, Dorien Valencourt e Heather Danvers.”
“Ela não terá escolha.” O sorriso de Heather poderia ter congelado um pinguim.
“Pretendo fazer com que Faye De Winter nunca mais ponha os pés em Manderley. E
você vai me ajudar. Ou então nunca mais verá seu irmão.”
Quando desci para a cozinha para terminar a preparação da festa, notei vários
sanduíches e almôndegas faltando em uma das travessas.
Gah. Tenho que lembrar de dizer aos rapazes que não roubem mais comida. Se
eles estiverem com tanta fome assim eu posso dar a eles algo para devorar.
Argh. Eu sorri estupidamente para mim mesma. Algumas noites com Dorien e
Ivan e até meu monólogo interno ficou imundo.
O que eu pensava ser uma mancha de ketchup ou algo assim eram palavras
rabiscadas em marcador de quadro branco com a mesma escrita que um dia esteve
no quadro de avisos. A letra de Clare.
Clare escreveu lá por uma razão. Ela sabia que a próxima empregada iria
encontrar. Ninguém mais teria motivos para ir até o fundo da despensa.
Olhei novamente para as palavras, e meu estômago revirou. Senti medo tantas
vezes na minha vida que pude reconhecer o terror em suas palavras. Quando Clare
escreveu essa frase, ela estava sentindo medo.
Ignore isso. É uma rajada de ar frio vinda de algum outro lugar da casa.
Procurei a chave no meu bolso. Quando minha mão se fechou em torno dela,
alguém saiu das sombras à minha frente, enviando uma nova onda de gelo ao redor
do meu corpo.
Clare.
Ela olhou para mim, sua cabeça torcida para o lado em um ângulo impossível,
uma sobrancelha levantando em uma expressão medonha.
O silêncio se estendeu entre nós. Clare abriu os lábios, mas nenhum som saiu,
sua boca se abriu em um poço de escuridão aterrorizante que engolia toda luz e
esperança.
Mas antes que eu pudesse me livrar de seu aperto, algo quente e duro se fechou
em volta da minha boca, pressionando um pano perfumado entre meus lábios.