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Ivan, Titus, Dorien.

Esses Bad Boys do Barroco1 podiam tocar instrumentos como anjos, mas eles
estão determinados a fazer da minha vida um inferno.

Quando minha mãe ficou doente, os meus sonhos de uma carreira na música
implodiram. Isto é, até Madame Usher entrar na minha vida como um fantasma do
passado e me oferecer a chance de estudar na exclusiva Manderley Academy, uma
escola de música para os mais talentosos e ricos.

Era uma oferta que eu não poderia recusar. Ofereciam acomodações e


alimentação grátis na mansão gótica onde estudantes de elite mergulhavam no domínio
de sua arte. Mas havia um problema, e era um grande problema.

Eu virei a escrava dela.

Eu deveria limpar os quartos, polir as teclas do piano e servir a ela e aos três
caras pretensiosos que governam está escola.

Devo suportar o bullying em silêncio. Mesmo quando destroem minhas coisas,


sabotam minhas performances e fazem o possível para me expulsar de Manderley.

Ricos. Arrogantes. Cruéis.

Eles não querem o pobre caso de caridade arruinando suas diversões.

Eles me ouviram tocar.

Eles sabem que sou uma séria candidata ao prestigioso Prêmio Manderley.

1Bad Boys do Barroco – Bad Boys of Baroque é um termo real que faz referência à pintores que
romperam o padrão de sua época e incluíram em suas obras temas sombrios, que despertavam no
espectador uma sensação de horror e fascínio.
Esses Musos Quebrados não estão acostumados a perder, principalmente para
uma inferior.

Mas eles não são os únicos que me assombram.

Algo distorcido e maligno envolve a Manderley Academy. Talvez meus valentões


sejam o menor dos meus problemas. Talvez Dorien, Ivan e Titus não sejam os que estão
por trás dos barulhos estranhos nas paredes, dos avisos rabiscados no meu espelho e
dos horríveis assassinatos no terreno da escola.

Talvez... talvez os fantasmas de Manderley sejam reais.


Um mistério sombrio se desenrola em torno da musicista Faye De Winter no
livro #1 deste emocionante romance de harém reverso em uma academia gótica, da
autora best-seller do USA Today, Steffanie Holmes.

Aviso: Este romance de três garotos ricos mimados com segredos inquietantes e
a garota que se recusa a aturar suas merdas contém temas sombrios, uma casa
assustadora, um romance de segunda chance latente, angústia na academia, valentões
cruéis e sexo digno de desmaio.
Para Niccolò, Johann, Wolfgang e Franz –

Os Bad Boys originais do Barroco.


“Não é preciso ser uma câmara para ser assombrada,

Não é preciso ser uma casa;

O cérebro tem corredores que ultrapassam o

Lugar Material.”

– Emily Dickinson, não é preciso ser uma câmara para ser assombrada
Bip Bip. Bip Bip.

A máquina ecoa em meus ouvidos como uma batida de tambor soando em


minha condenação. O som representava tudo pelo que trabalhei se transformando em
cinzas.

Era o som da minha mãe se afastando de mim.

Recostei-me na cadeira de plástico duro do hospital, esfregando os meus olhos


em chamas. Eu não tinha ideia de que dia era ou há quanto tempo eu estava sentada.
Uma câimbra subiu pela minha perna, que era uma dor surda que não tinha nada a
ver com a dor lancinante no meu coração. Estiquei minha panturrilha, ofegante
quando a cãibra desceu pelo músculo.

É como se eles deliberadamente tornassem os quartos de hospital o mais


desconfortáveis possível. Porque ver alguém que você ama se esvair aos poucos não era
um sofrimento suficiente.

Meu pé roçou o estojo do violino no chão. E antes que eu percebesse, estava


segurando meu instrumento em minhas mãos. O descanso do queixo se ajustando
perfeitamente ao meu corpo e o peso familiar no pescoço contra meus dedos me deu
conforto. Parecia tão natural para mim quanto respirar, correr o arco pelas cordas e
tocar as notas trêmulas familiares de Nigun Bloch.

O compositor suíço escreveu esta peça em memória de sua mãe, e era baseada
em cantos improvisados judaicos. A idéia era que, ao se perder na música, você se
aproximaria de Deus. Agora, eu sentia vontade de estrangular o grande bastardo no
céu pelo que ele estava fazendo com a minha mãe. Eu não estava tocando para ele.

Bip Bip. Bip Bip.


Nigun era uma das peças favoritas da minha mãe, e aprendi a tocar para o
aniversário de quarenta anos dela. Ela organizou sua festa em seu escritório chique
no East Village. Todos os seus investidores e a equipe executiva me observavam com
admiração enquanto ela brilhava de orgulho.

Agora, eu tocava ao lado de sua cama de hospital, para uma plateia de uma
única pessoa.

Os médicos dizem que ela podia ouvir a música dentro do coma. E esta poderia
ser minha única chance de falar com ela, de atraí-la de volta para o meu lado.

Notas tristes ecoaram enquanto meu arco dançava sobre as cordas. O quarto
cinza de hospital ganhou vida naquele momento, as bordas estéreis lavadas sob uma
onda de lamento. Imaginei ver as sombras de outros que se sentaram nesta mesma
cadeira para chorar por seus entes queridos. Conjurei a dor deles e a tornei minha.

A música era mágica.

E eu precisava de um pouco de magia agora.

Enquanto eu tocava, um cheiro enjoativo atingiu minhas narinas. Um odor de


floral falso, como as tigelas de pot-pourri que minha avó costumava deixar em casa.
Antigas rosas e jacintos ingleses encharcados de caramelo pegajoso e cobertos de
naftalina. O cheiro puxou uma memória esquecida, um fantasma do passado.

Meu dedo mindinho escorregou na corda, causando uma nota maçante.


Estremeci, forçando-me a ignorar o cheiro, e continuei tocando. Acontecia algumas
vezes quando eu estava tão compenetrada na música: a melodia chegava a evocar
imagens, cheiros ou sentimentos do fundo do meu subconsciente. Eles pareciam reais
até eu pousar o arco, e então eu percebi o quão estúpido isso era. Obviamente, eu não
conjurava memórias perfumadas com música.

É apenas o cheiro do desinfetante do hospital ou algo assim. Não se distraia...

Mas não, não é. O Déjà vu me puxou, trazendo consigo um mau pressentimento.


Eu já senti esse exato perfume antes.
Cheguei ao final da peça e abaixei o arco. Uma dor familiar se instalou no meu
braço, uma vez que o sofrimento também era outra coisa que eu nunca sentia até
depois que parava de tocar. Uma vez esmaguei meu pé enquanto subia no palco.
Toquei toda a Sonata para violino nº 9 de Beethoven de pé sobre um dedo quebrado e
nem percebi.

Alguém aplaudiu.

Mas que porra?

Eu quase pulei para fora da minha pele.

Meus olhos voaram para minha mãe, mas ela estava deitada na cama, imóvel.
A máquina apitava atrás dela. Então eu me virei.

“Bravo.” Uma mulher estava no canto da sala. Eu não tinha notado ela entrar.
Seu sotaque do Leste Europeu parecia tão fora de lugar neste hospital comum na
parte mais merda de Nova York. Essa não era a única coisa nela que era estranha,
um antiquado vestido até o chão em renda preta e linho se agarrava a sua figura
ampla, e ela segurava uma grande bolsa de tapete com fechos de ouro. O cheiro de
floral falso saía dela em ondas. “Você ainda é talentosa.”

Larguei o violino, zangada por ela ter se intrometido. “Esta é uma sala privada.”
A única indulgência que eu me permiti ter em todo esse show de merda, para que
pudesse lamentar, ter esperança e raiva, tudo em particular. E logo até isso
desapareceria, a menos que eu conseguisse mais dinheiro.

“Eu estou ciente. Mas desejo falar com você, Faye De Winter.”

Como essa mulher estranha sabe meu nome? Sua presença me puxou, o Déjà
vu ficando mais forte. Aquele cheiro e sua voz eram muitos familiares. Mesmo aquele
vestido preto despertava alguma lembrança, mas eu não conseguia imaginar onde eu
teria oportunidade de falar com uma mulher assim. Ela parecia ter se perdido no
caminho para uma convenção de fãs de Crepúsculo.

Bip Bip. Bip Bip.


A tensão cantou no ar entre nós. Eu não a queria aqui, infectando o espaço da
minha mãe com seu cheiro. Mas eu tinha que saber por que ela sabia meu nome e
por que ela tinha me procurado. Suspirei. “Sim?”

“Talvez você não me reconheça. Eu sou Madame Usher.”

Esse nome perfurou meu coração como uma flecha.

Claro. O perfume. Como eu poderia esquecer o jeito que me sufocava durante as


aulas de música, ou como se agarrava ao meu pai quando ele voltava de suas aulas
particulares?

Eu não tinha visto Madame Usher da Manderley Academy desde que minha mãe
me tirou de suas aulas quando eu tinha nove anos. Ao lado de seu marido no piano,
ela havia sido uma violinista talentosa em sua época, mas agora dirigia um
conservatório de elite nas montanhas, oferecendo tutela especializada apenas para os
músicos mais excepcionais. Ela costumava vir à cidade para ensinar um punhado de
alunos super-ricos, crianças e adultos, inclusive eu e meu pai. Mas desde o
desaparecimento de papai, o nome dela era venenoso em nossa casa, nunca
pronunciado.

“Vejo que você se lembra agora. Faz, o quê, nove anos?”

“Dez,” eu faria vinte anos este ano.

“Você era apenas um pedacinho de gente naquela época, mas você dominava
seu instrumento. A única pessoa que ouvi tocar melhor a Chaconne da Partita No. 2
foi Donovan.”

“Não fale comigo sobre ele,” eu assobiei.

“Vejo que você herdou a amargura de sua mãe.”

“Caí fora.” Eu espetei meu dedo para a porta.

“Com licença?”
“Você não pode entrar no quarto de hospital da minha mãe e a acusar de ser
amarga. Eu também ficaria chateada se descobrisse que o marido que eu apoiei
através de uma educação musical cara estava transando com sua professora.”

“Uma linguagem tão suja.” Em vez de recuar, Madame Usher entrou na sala e
fechou a porta atrás dela. “Você deveria saber que eu o amava com uma paixão que
só reservava para a música. Meu marido era uma conveniência, pelo bem de nossa
carreira internacional, fazia sentido casar com Victor. Mas quando Donovan e eu
tocávamos, era como se fizéssemos amor por meio de nossos instrumentos.”

Fechei as mãos em punhos, resistindo ao impulso infantil de tapar os ouvidos


com as mãos. “Escute-me com atenção: Eu. Não. Quero. Ouvir. Isso.”

O sorriso nos lábios de Madame Usher fez meu sangue ferver. “Ele planejava
deixar sua mãe, e eu deixaria Victor. Devíamos fugir juntos. Mas então ele
desapareceu, e eu jamais senti tamanha dor, antes ou depois.”

“Saia,” eu rosnei, dando um passo em direção ao botão de chamada. “Ou eu vou


chamar a segurança.”

Cadela.

Madame Usher continuou como se eu nunca tivesse falado nada. “Depois que
sua mãe tirou você das minhas aulas, fiquei de olho em você, Faye. Você pode pensar
em mim como um anjo da guarda, pairando no fundo, esperando o talento de Donovan
florescer dentro de você. Seu pai sempre acreditou que você um dia o superaria, mas
admito que tinha minhas dúvidas. Não aceito qualquer um sob minha tutela, e você
nunca foi séria sobre seus estudos, sempre correndo por aí com Dorien.”

Dorien Valencourt. Fechei os olhos, lembrando do garotinho que tinha sido meu
único amigo enquanto crescia. Dorien tinha aulas de piano com Victor Usher, mas
sempre formávamos duplas para conjuntos e recitais. Dorien era rico de uma forma
que minha família nunca poderia esperar ser, praticamente vivíamos na pobreza para
financiar a carreira de papai e minhas mensalidades, mas eu era muito jovem para
entender o abismo entre nós ou por que os outros garotos ricos me evitavam tão
abertamente. Eu só sabia que os olhos cinza-ardósia de Dorien brilhavam de alegria
sempre que eu aparecia na aula. Tínhamos sido os terrores da escola de música de
Madame Usher. O dia em que Dorien colocou sua iguana de estimação no piano e ela
saltou assim que Victor Usher se sentou no banco...

Não. Eu não conseguia pensar em Dorien agora, não depois de tudo. Essa dor
ainda cortava muito fundo.

“Dorien nunca levou nada a sério também, e ele se saiu bem,” eu retruquei.

“Ah. Então você acompanha a carreira dele?”

Mesmo se eu nunca mais quisesse ouvir o nome dele novamente, o que eu


definitivamente não queria, eu não poderia deixar de ver Dorien em todos os lugares.
Toda semana havia um novo artigo jorrando sobre o Broken Muse, o conjunto que
Dorien formou com dois de seus amigos. A imprensa musical se deliciava em
acompanhar o trio, que eles apelidaram de Bad Boys do Barroco, enquanto rasgavam
a cena europeia com suas travessuras. Eles tinham a minha idade, mas sua
extravagância, trajes barrocos modernizados e fileiras de amantes exóticas, estavam
dando ao mundo clássico abafado uma reforma ao estilo playboy. No início do ano
passado, eles pararam de fazer turnês e desapareceram da face da terra. Ninguém
sabia onde eles estavam, o que só aumentou sua mística. Mas eu não ia dar a Madame
Usher a satisfação de revelar que eu sabia disso. Então eu ignorei a pergunta dela.
“Diga-me o que você quer e vá embora.”

“Vim para a cidade para conversar com professores de música e escolas


particulares. Por meses eu me desesperei para encontrar um aluno para preencher
nossa última vaga. A professora de música de sua escola sugeriu seu nome, e embora
eu inicialmente a tenha descartado por causa da escória usual que ela tenta enviar
para mim, a lembrança do talento de seu pai me encorajou a procurá-la. Passei muito
tempo rastreando você, mas, eventualmente, a trilha me trouxe até aqui. Estou feliz
por isso. Não há necessidade de você fazer um teste, eu ouvi o suficiente para lhe
oferecer um lugar em Manderley, se você quiser.”
Se eu quisesse? Porra, ela estava brincando? Não importava o fato de eu odiá-
la. Claro que eu queria. A saliva se acumulava na minha língua, como se o simples
pensamento de entrar naquela mansão sagrada me deixasse com fome.

Bip Bip.

As máquinas me trouxeram de volta à realidade. A doença misteriosa da mamãe.


As montanhas de contas médicas. Os dois empregos em que eu estava trabalhando
na tentativa de quitá-las. Eu balancei minha cabeça. “Eu não posso.”

“Faye, uma oferta como essa não pode ser levada em conta de forma leviana e
não será oferecida novamente.”

Não use o meu primeiro nome. Não somos, nem nunca seremos próximas. Faço
um gesto para a figura deitada na cama. “Ela precisa de mim.”

“Você não entende.” Madame Usher moveu-se para o final da cama, de pé sobre
minha mãe e olhando para ela com os lábios franzidos. “Não estou apenas oferecendo
a você um lugar em Manderley, mas a chance de um futuro. Espera-se que todos os
músicos que se formem sigam para uma carreira internacional impressionante. Você
não pode fazer isso amarrada a uma cama de hospital. Temos os meios para ajudá-
la.”

“Ajudar-me como?”

“Sua mensalidade será paga pelo fundo de doação do meu falecido marido.
Providenciarei seu quarto, alimentação, uma mesada para roupas e demais
necessidades. E mais importante, pagarei as dívidas médicas de sua mãe e a mudarei
para uma instalação mais avançada, mais próxima da escola, para que você possa
visitá-la nos fins de semana. Em troca, você estenderá seus serviços à escola.”

“Meus serviços?”

“Você vai cozinhar as refeições, manter a casa e os quartos limpos, garantir que
os instrumentos sejam guardados corretamente, esse tipo de coisa.”

“O que aconteceu com sua última empregada?” Eu murmurei.


A boca de Madame Usher puxou o canto. “Teve um pescoço quebrado.”

Eu respirei fundo. Ela está falando sério?

Madame Usher acenou para o meu telefone na mesa de cabeceira. “Não vou
desenterrar esse infeliz incidente falando sobre isso em voz alta. Procure se você ainda
tem sua propensão para a morbidez.”

Ela se referiu ao fato de eu ter sido uma criança estranha. Eu era obcecada por
livros de terror e histórias de fantasmas. Ainda sou. Minha coisa favorita a fazer em
uma noite de sexta-feira era me enroscar na cama com mamãe e uma pilha de comida
gordurosa para assistir a um filme assustador. Eu sabia todos os filmes de cor, mas
nunca me cansava de me esconder debaixo das cobertas de fantasmas e monstros.

Peguei o telefone e digitei uma linha na barra de pesquisa. Alguns momentos


depois, a manchete apareceu: “EMPREGADA MORTA NA ELITE MUSIC ACADEMY.”
Ela foi encontrada amassada ao pé da escada, uma queda feia. Um terrível acidente.
O jornalista sentiu um prazer mórbido ao descrever o trauma em seu crânio,
sugerindo que o ângulo de seu corpo significava que ela havia sido empurrada. A
polícia investigou, mas acabou por considerar a morte dela um acidente, embora o
jornalista tenha gostado de especular o contrário.

Conhecendo Madame Usher, a pobre mulher provavelmente dobrou as toalhas de


maneira errada e sofreu as consequências.

Madame Usher franziu a testa para o meu telefone. “Como você pode adivinhar,
fica difícil encontrar ajuda nova quando a imprensa aproveitou todas as
oportunidades de sugerir que a empregada foi assassinada. Por isso, fui inspirada a
procurá-la. Podemos ajudar uma à outra.”

Um caso de caridade.

Afundei na cadeira. O plástico rangeu quando cedeu sob o meu peso. Eu nunca
deveria ser um caso de caridade. Depois que papai desapareceu, levando todas as
nossas esperanças de viver de sua carreira musical com ele, mamãe jurou que nós,
as mulheres Winter, abriríamos nosso próprio caminho no mundo. Ela estava cansada
de trabalhar em turnos de sessenta horas como motorista de táxi para sustentar o
sonho de um homem. Ela voltou para a escola de negócios e construiu uma empresa
de relações públicas de sucesso desde o início. Depois de anos vivendo tendo que
regrar todos os gastos possíveis, finalmente tínhamos dinheiro. Nós nos mudamos
para uma linda casa em East Village. Mamãe pagou pelo melhor professor de violino
que o dinheiro podia comprar que não fosse Madame Usher. Eu fui para uma escola
preparatória chique onde era ignorada porque eu não era 'dinheiro velho', mas os
alunos eram todos uns merdinhas, então eu não dava a mínima. Tiramos férias em
lugares exóticos como Vietnã e Istambul. Não éramos mega ricas, mas vivíamos
confortavelmente. Não precisávamos de ninguém nem de nada além de nós mesmas.

Mas, bem, com ficou provado, também precisávamos de seguro saúde.

A doença da mamãe surgiu do nada e sem aviso prévio. Em um momento ela


estava levando sua equipe para férias em um spa no Havaí para comemorar seu
melhor ano de todos os tempos, reclamando que a comida do resort lhe dava cólicas
estomacais, e no momento seguinte ela estava deitada inconsciente na parte de trás
de uma ambulância. Liguei para nossa companhia de seguros para pagar as contas e
descobri que mamãe havia se esquecido de pagar a mensalidade premium, então eles
cancelaram nossa cobertura.

O que começou com náuseas e cólicas se transformou em uma série de


estranhos problemas gastrointestinais, e então seus rins começaram a falhar. Ela
vinha se deteriorando nos últimos dois anos, entrando e saindo do hospital, enquanto
eles faziam exames e tentavam medicamentos e diálise, mas nada funcionava. Cada
novo tratamento, cada voo para um estado diferente para experimentar uma nova
máquina de diagnóstico, esticava nossas economias cada vez menores. Eu vendi a
casa. Eu me formei no ensino médio (quase não consegui), mudei-a para um hospital
barato e arranjei dois empregos para tentar manter o ritmo. Então, uma semana atrás,
ela entrou em coma, e os médicos ainda não tinham ideia do que havia de errado com
ela.
O que os dramas médicos na TV não dizem é o quão caro é manter alguém no
suporte de vida. Se eu não encontrasse alguma forma de pagar as contas logo, não
teria escolha a não ser desligá-la.

Minha mãe era minha vida inteira. Eu não seria capaz de dizer adeus. Ainda
não.

Farei o que for preciso para mantê-la viva.

E se isso significa me curvar e esfregar o chão para esta bruxa, apenas me chame
de Cinder-fodida-rella.

Inclinei-me sobre a cama, pressionando meus lábios na testa de mamãe. Como


era estranho vê-la assim. Mamãe estava sempre quicando nas paredes, uma bola de
energia sem limites. “Eu não vou desacelerar, se você desacelera, você morre,” ela me
advertiu uma vez depois que ela quase saiu de casa com sua calcinha na cabeça
porque estava animada com a aparição de um cliente na TV. “A única forma de eu
ficar parada é se você me colocar em coma.” Apenas posso dizer que o destino é uma
amante maldita e cruel.

Bip Bip, as máquinas me advertem por minha traição.

Eu me endireito e pego o estojo do meu violino, abraçando-o contra meu peito.


Durante toda a evolução da doença de mamãe, mesmo quando vendi nossas posses,
ela me proibiu de vender meu violino. Ela o fez sob medida por um Luthier Artisan,
uma das marcas mais famosas, como presente para o meu décimo terceiro
aniversário, e era a coisa mais preciosa que eu possuía.

Então eu o mantive, mesmo tendo perdido a esperança de uma carreira na


música. O dinheiro que mamãe reservava para a minha faculdade havia sido
consumido por suas contas médicas nos primeiros três meses. Esta era uma segunda
chance para nós duas, para ela e para mim.
Meu pai foi embora e nos deixou sem nada. Se eu aceitasse o acordo de Madame
Usher, então pelo menos algo de bom viria de sua trahison des clercs2.

O sorriso que cruzou o rosto de Madame Usher era mais frio do que o inverno
ao que eu tinha acabado de sobreviver no meu apartamento de merda e sem
aquecimento. “Seu pai ficaria tão orgulhoso. Faye De Winter, bem-vinda à Manderley
Academy.”

2 Uma traição de padrões intelectuais, artísticos ou morais cometidos por escritores,


acadêmicos ou artistas.
Bem, foda-se.

Uma semana se passou desde que aceitei a oferta de Madame Usher. Durante
esse tempo, deixei o emprego de recepcionista em um hotel e trabalhei no meu último
turno no bar. Arrumei as coisas da mamãe e preenchi a papelada para que ela fosse
transferida para uma suíte de luxo em um hospital particular a uma hora de carro de
Manderley.

Equilibrei meu laptop nos joelhos enquanto me inclinava contra a parede nua
do meu apartamento, atualizando o site da escola um milhão de vezes, analisando as
imagens dos opulentos quartos vitorianos, grandes espaços de ensaio e jardins
extensos.

Mas nada me preparou para ver a Manderley Academy de perto pela primeira
vez.

Mas eu não deveria começar por aí. Eu deveria começar com a limusine.

A porra da limusine que eles mandaram para me buscar.

Madame Usher me disse para esperar no meio-fio com minhas malas às 7h em


ponto. Ela não tinha ideia de que garotas da minha idade não deveriam relaxar
sozinhas nas esquinas do meu bairro. Ou talvez ela saiba disso. Não acho que aquela
bruxa seria incapaz de fazer uma coisa dessas.

Toquei a faca no meu bolso enquanto olhava para os dois lados da rua. Por
favor, cheguem aqui logo.

Uma gangue de caras com ombros enormes e expressões malvadas


perambulava na esquina oposta, olhando para a garota branca com um estojo de
violino e todos os seus pertences em uma mochila pulando nervosamente de pé em
pé. A pele do meu pescoço começou a formigar. Eu encarei os caras com meu melhor
olhar de ‘não foda comigo’, um olhar que eu aperfeiçoei muito antes de nossa mudança
para Bushwick. Aquele olhar era tudo o que se interpunha entre mim e a destruição
certa na minha antiga escola preparatória.

Um dos caras pulou do meio-fio e veio em minha direção, sua arrogância toda
profissional, seu sorriso inconfundível. Malditos. Era só o que me faltava.

Minha mente passou pelas minhas opções e estava apenas escolhendo uma rota
de fuga ideal quando uma limusine preta apareceu na esquina. O cara saltou para
trás quando os pneus bateram no meio-fio. O espelho lateral raspou ao longo da
lateral de um carro estacionado, e o veículo insano parou em frente ao meu prédio.

“Que porra é essa?” O cara do outro lado da rua gritou quando caiu de bunda
na vala. Seus amigos gargalharam, todos os quatro olhando para as janelas escuras
como se tivessem certeza de que algum rapper famoso estava prestes a surgir de
dentro.

Eu concordava com a surpresa do cara. Quem diabos dirigiria uma limusine em


Bushwick? Esse idiota está bloqueando a rua, então o carro que Madame Usher enviou
não poderá estacionar...

A porta do motorista se abriu. Um velho corpulento de cabelos brancos e um


colete bem passado saltou e abriu a porta do passageiro. “Posso pegar suas malas,
senhorita?” Ele perguntou-me.

Abracei meu estojo de violino no peito e balancei a cabeça antes de perceber que
ele estava aqui por mim.

“Uhm, sim. Certo.” Entreguei-lhe minha bolsa e ele a levou embora. Acomodei-
me em um assento de couro macio, descansei meu estojo de violino contra minhas
pernas e examinei o frigobar. Garrafas minúsculas de bebida lotavam as prateleiras
sob a tela sensível ao toque. Tinha até petiscos. Meu estômago roncou de desespero,
uma vez que me alimentar não tinha sido uma prioridade ultimamente. Enquanto a
maioria das crianças da minha idade estava lidando com o Freshman Fifteen (o peso
ganhado nos primeiros anos da faculdade) eu tinha perdido pelo menos dezesseis
quilos desde que mamãe ficou doente, não que isso tivesse feito muito estrago em meu
amplo traseiro. Eu geralmente comia um prato de batatas fritas ou nachos no bar,
mas essa seria minha única refeição do dia. Peguei uma barra de chocolate e a mordi,
deixando o caramelo pegajoso adocicar a minha língua.

Eu poderia me acostumar com isso.

“Você gostaria de dizer adeus aos seus amigos?” O motorista perguntou quando
ele deslizou em seu assento, indicando os caras na esquina.

Abaixei a janela e mostrei meu dedo médio para aquele que se aproximou de
mim. “Eles sabem que vou sentir falta deles.”

Não mesmo.

O motorista pisou no acelerador. Nós voamos. Adeus, Bushwick. Eu nem olhei


para trás. Ficaria feliz em esquecer essa parte da minha vida.

O motorista apertou um botão no painel e sua voz amigável ressoou no


interfone. “Meu nome é Harrison. Madame Usher queria estar aqui, mas ela tem muito
o que fazer agora que as aulas começaram, então tenho a honra de acompanhá-la até
Manderley. Eu sou o motorista, zelador e responsável geral pela propriedade.”

Terminei minha barra de chocolate e peguei um saco de batatas fritas.


Inclinando-me, bati na divisória de vidro. “Role isso para baixo.”

“Eu não deveria...”

“É uma longa viagem, e eu não quero ter uma conversa pelo interfone como se
eu fosse a Duquesa de York. Nós somos a ajuda contratada, Harrison, temos que ficar
unidos.”

Harrison me deu um sorriso cheio de dentes quando apertou outro botão e o


vidro rolou para baixo.
“Assim é melhor. Então, Harrison...” inclinei-me pela janela e ofereci a ele uma
batata frita. Ele parecia que ia dizer não, mas então seus olhos brilharam e ele enfiou
a mão no pacote. “Há quanto tempo você trabalha na Manderley?”

“Há quarenta e três anos eu trabalho para a família Usher.” Harrison estufou o
peito com orgulho. “Assim como meu pai antes de mim. Eu cresci na casa, correndo
pela floresta com Victor Usher. Nós éramos amigos de infância antes dele se tornar o
dono da casa, mas ele sempre foi bom para mim. Ele disse que eu teria um emprego
com a família pelo tempo que quisesse.”

Eu não posso imaginar como seria viver e trabalhar na mesma casa, ano após
ano, por toda a vida. Eu era como minha mãe, cujo sangue mexicano ganhava vida
quando ela viajava. A música deveria ser minha maneira de ver o mundo. Agora, seria
o laço em volta do meu pescoço. E Madame Usher era meu carrasco. “E quanto a
Madame Usher?”

“Ainda me lembro de quando ele a trouxe para a casa,” Harrison bateu no


volante enquanto acelerava por um conjunto de luzes, completamente alheio aos
motoristas buzinando de cada lado de nós. “Naquela época, Manderley era apenas a
casa da família, embora sempre cheia de música. Victor Sênior era um violinista e
tanto, e Mary ensinou piano ao filho. Victor conheceu Gizella durante uma turnê pela
Europa, ela era a primeira violinista da Filarmônica Nacional Húngara quando ele
estreou seu Nocturne, e foi amor à primeira vista. Eles fugiram para a Espanha, e ele
a trouxe para casa, sua nova noiva, mas ela era tudo, menos tímida. Ela atravessou
a porta como se fosse dona do lugar, e em pouco tempo governava a casa com mão de
ferro. Eles estavam casados há menos de um ano quando ela convenceu Victor a levar
seus pais para um asilo e abrir a escola de música.”

“Ela soa como a sua pessoa favorita.”

“Perdoe-me, senhorita. Eu não deveria falar mal da Madame. Ela permitiu que
eu ficasse depois que Victor morreu no ano passado. Essas casas antigas não são
mais muito comuns, e eu teria dificuldade em encontrar um novo emprego de
jardineiro. Eu provavelmente limparia grama em um grande campo de golfe.” O olhar
horrorizado no rosto de Harrison me disse exatamente o que ele pensava de tal
mudança de carreira.

“Você conhecia a empregada que foi morta?”

“Sim, sim, eu conhecia. Clare... uma menina tão doce.” Os dedos de Harrison
apertaram o volante. “Fui eu que… na escada… estava consertando uma vidraça
quebrada na biblioteca quando ouvi o grito. Nunca vi nada tão horrível em todos os
meus anos de vida. Seu pescoço todo torcido, seus olhos arregalados e sua boca aberta
como se ela ainda estivesse gritando.”

“Li no jornal que a polícia concluiu que foi um acidente.”

“Acidente.” A mandíbula de Harrison se apertou. Parecia que ele queria dizer


mais coisas. “Ela foi empurrada.”

Ele parecia tão certo disso que um calafrio percorreu minha espinha. Que as
trombetas soem, no que eu me meti? “Diga-me o que aconteceu.”

“Clare estava namorando um dos alunos do sexo masculino, um verdadeiro


galanteador, usando sua riqueza e boa aparência para tirar proveito da natureza doce
da menina. Ela me disse com estrelas nos olhos que ele planejava levá-la para a
Europa em sua próxima turnê, e pedi-la em casamento sob a Torre Eiffel, todos os
tipos de fantasias femininas que poderia pensar, mas ele nunca teve essa intenção.
Ele tinha mulheres na discagem rápida em todo o mundo, mas Clare não conseguia
ver isso. Ferveu meu sangue, ferveu sim, pois na minha época aprendíamos a tratar
bem uma dama.”

“Posso dizer que você é um cavalheiro da mais alta ordem.” Eu sorri, e Harrison
sorriu e estufou o peito. Notei uma aliança de casamento em seu dedo, sujeira
manchada entre a delicada filigrana. O sorriso desapareceu de seu rosto enquanto ele
continuava sua história.

“Uma noite, encontrei Clare na despensa, soluçando. Ela não quis me dizer o
que estava errado, só que ela brigou com seu namorado. Dois dias depois, ela estava
morta. E ele estava lá, bajulando o corpo dela, chorando por ela ter caído.”
“Você acha que ele a empurrou?”

Harrison assentiu. “Eu sei que ele a empurrou. Aquele bastardo ainda está lá,
desfilando como se fosse um presente de Deus para a música. Guarde minhas
palavras, Srta. Faye, mantenha-se alerta perto desses alunos, especialmente os
rapazes. Todos eles têm paus enfiados tão fundo em suas bundas que poderiam
acená-los como pirulitos.”

Eu ri da imagem, mas as palavras de Harrison me enervaram. Se ele estivesse


certo, e um assassino ainda estivesse na escola...

Não seja ridícula. Esta é a vida real, não um filme de terror. A polícia teria
interrogado esse cara. Se eles o liberaram, devia haver uma boa razão.

Saímos da cidade e fomos para as montanhas. Árvores altas pairavam sobre a


estrada, e eu fiz Harrison abrir o teto solar para que eu pudesse colocar minha cabeça
para fora e aproveitar o ar fresco. Meu cabelo chicoteou em volta do meu rosto, e por
um momento eu esqueci que eu estava sem um tostão e sozinha. Por um momento,
eu estava livre.

Então, o peso da doença da minha mãe e meu acordo com Madame Usher
caíram sobre meus ombros. Eu deslizei de volta para a limusine e fechei o teto solar.

Passamos por algumas cidades pequenas e uma cidade maior, onde Harrison
apontou para o reluzente prédio do hospital na colina. “Sua mãe já está instalada em
seu novo quarto. Ela tem uma bela vista para o rio. Cuidei de todos os detalhes.”

Do outro lado da cidade, viramos em uma sinuosa estrada arborizada que


serpenteava pelas montanhas, ziguezagueando por uma floresta densa e por riachos
borbulhantes. Eu estava pensando em abrir o teto solar novamente quando a estrada
terminou em um conjunto de portões de ferro forjado quase totalmente obscurecidos
por trepadeiras. Atrás deles, uma pequena guarita de tijolos espiava por entre as
árvores.
Harrison baixou a janela e o ar fresco da montanha entrou, lavando sobre mim,
uma exalação primitiva que me lembrou de estar no palco com a respiração coletiva
do público sendo liberada enquanto a música os ancorava na terra.

“Bem-vinda à Manderley.” Harrison apertou um botão no painel e os portões se


abriram. Um caminho estreito serpenteava pela floresta. Galhos arranhavam a lateral
da limusine enquanto avançávamos, e era impossível ver qualquer coisa através das
árvores grossas e cones altos de pinheiros de aparência maligna. Aqui e ali eu via
bordas dos muros de pedra, indicando que esses jardins já haviam sido bem cuidados,
mas agora as montanhas haviam caído sobre eles de surpresa, a natureza
reivindicando o que era dela.

Lembrei-me de todos os músicos, compositores e maestros famosos listados no


folheto que supostamente visitam Manderley todos os anos. Eu não conseguia
relacionar os glamurosos ternos de gala nas fotos com esta entrada de carros
abandonada e coberta de vegetação.

Justamente quando eu pensei que a estrada não poderia ficar mais estreita, ela
se alargou em um caminho circular, cercando uma fonte seca, o Cupido olhando para
mim por trás de sua lira em cima de um pedestal coberto de ervas daninhas. Além
dele, tive meu primeiro vislumbre da Manderley Academy.

O lugar é uma loucura.

Se você estivesse procurando escalar uma casa assustadora para gravar um


filme de terror gótico, você viria para Manderley. O telhado de duas faces mastigava o
céu amargo com dentes serrilhados. Torres gêmeas se projetavam dos cantos, e
paredes de pedra cinzenta erguiam-se como as ameias de um castelo, imóveis contra
o passar do tempo. Um amplo alpendre em volta da frente, uma adição posterior, pelo
que parecia, sustentado por postes de madeira elaboradamente esculpidos e coroado
com delicadas grades de ferro. Janelas de vidro temperado ao longo do telhado
pairavam sobre mim, refletindo o sol no vidro, pontos brilhantes observando.
Julgando.
O caminho se espalhava em ambas as direções, levando a construções de pedra
e madeira espalhadas mais profundamente nas árvores. Reconheci o que poderia ter
sido um estábulo. A qualquer momento eu esperava ver um cavalo e uma carroça
passar ou ouvir alguém gritando para trazer as vítimas da peste.

O único aceno para a modernidade era a fila de carros estacionados em uma


pequena clareira sob as árvores. Um Porsche, um Jaguar F-type, um pequeno Corvette
cor-de-rosa, uma espécie de enorme picape enfeitada... Todos recém polidos e
lustrados, apesar do perigo da seiva das árvores pairando diretamente acima deles.

“Obrigada,” eu disse a Harrison enquanto ele puxava minha mochila do baú e


a entregava para mim.

“Foi um prazer, senhorita De Winter. Se você me perdoar, normalmente eu


entraria com você, mas preciso recolher a madeira antes que as nuvens cheguem.
Acredito que vou vê-la mais tarde, quando você começar seu trabalho.” Harrison tirou
o chapéu para mim e partiu em direção às dependências, assobiando uma melodia
alegre.

Ele parece bom o suficiente. Um pouco estranho, mas ele vive no meio do nada
atendendo músicos ricos e esnobes que estacionam seus carros esportivos chiques
debaixo das árvores. Aposto que não são eles quem os mantêm tão limpos.

Mudei o estojo do violino para a outra mão para poder segurar a balaustrada de
ferro enquanto subia os degraus. De perto, pude ver que a casa era tão pobre quanto
o terreno. Faltavam telhas no telhado e ervas daninhas entupiam os canos de
drenagem e serpenteavam pelas paredes de pedra em ruínas. Era estranho o fato de
a Manderley ser tão prestigiada, aceitando apenas um punhado de alunos todos os
anos, e ainda assim o lugar estava se deteriorando assim. Estava muito longe do
polimento que mostrava na propaganda. Inspecionei a madeira podre dos degraus
enquanto subia. Não parecia estruturalmente sólida...

PORRA.
A prancha rachou sob minha bota. Meu estojo de violino voou quando eu caí
direto pela varanda. Eu me joguei para frente, estendendo minha mão para me
segurar antes de cair de cara na porta.

Como eu conseguia parecer graciosa no palco quando eu era tão desajeitada na


vida real era um dos grandes mistérios da vida, como o fato de existirem pessoas que
gostavam de jujubas pretas.

Eu estremeci quando olhei para a minha perna enterrada na varanda quase até
minha coxa. Meu pé ficou solto na escuridão abaixo e, por um momento, imaginei
todos os ratos e bichos que poderiam estar lá embaixo, e um arrepio me percorreu.
Uma mordida pungente ao longo da minha panturrilha me disse que eu tinha raspado
uma tonelada de pele nas bordas irregulares de madeira podre.

Puta merda. Tanto esforço para uma boa primeira impressão e agora isso.

Eu lutei para libertar minha perna, mas eu não tinha a força na parte superior
do corpo para me empurrar para cima. Olhei para trás, esperando que Harrison ainda
estivesse por perto, mas ele já tinha levado a limusine para algum lugar. Joguei minha
cabeça para trás, pronta para gritar por ajuda.

Uma longa corda de veludo pendia do lado da porta, estendendo-se até os céus.
Eu me contorci e bati e raspei e finalmente consegui enrolar meus dedos ao redor do
nó na ponta. Dei-lhe um puxão forte, meio que esperando que o teto desabasse em
cima de mim. Em vez disso, um gongo profundo soou de dentro da casa.

A porta se abriu. No limiar estava a garota mais bonita que eu já tinha visto.

O cabelo louro-mel caía sobre seus ombros em cachos sedosos e apertados.


Devia levar horas todas as manhãs para que seu cabelo se comportasse assim,
emoldurando sua boa aparência californiana, pele bronzeada, olhos como o oceano
Pacífico, um nariz que foi feito apenas para olhar para a plebe. Lábios macios em
forma de arco se curvaram em um sorriso que era tudo, menos amigável.
“Oi.” Acenei timidamente do meu buraco. “Meu nome é Faye De Winter. Sou
uma nova aluna aqui, e parece que tive um pequeno desentendimento com a varanda.
Você poderia me dar uma mão ou chamar Harrison ou algo assim...”

“Você não pode entrar aqui.”

Sua voz escorria como mel de uma colher, doce e estival. Ela parecia cantar
enquanto falava. Mas por baixo de toda aquela doçura açucarada havia um ferrão que
causaria sérios danos se eu a antagonizasse. Aparentemente, apenas minha
existência era o suficiente para trazer à vista as garras dessa garota.

Dei de ombros, como se não fosse grande coisa, como se eu ficasse presa em
varandas todos os dias. “Eu te disse, eu sou uma estudante aqui, então...”

“Está vendo isso?” Ela deu um passo para trás, apontando para o grande arco
de pedra, painéis de madeira polida e aparador antigo no corredor atrás dela. “Tudo
isso é para os alunos que realmente podem pagar as mensalidades. Você pode estar
assistindo as nossas aulas, mas você não é uma de nós. Você é uma serva. Use a
entrada dos servos.”

“Mas...”

Ela bateu à porta na minha cara.


Cadela.

Babaca.

Idiota.

Olhei para a porta, gritando os insultos mais imaginativos dentro da minha


cabeça.

Acho que estou sozinha. Bem, foda-se, então. Que seja. Eu estava sozinha há
muito tempo. As mulheres De Winter cuidavam de si mesmas. Trabalhei em dois
empregos, me formei no ensino médio com um GPA de 3,8 e aperfeiçoei minha peça
no Sibelius (o programa de edição musical) para os exames de violino, tudo isso
enquanto administrava o dinheiro da minha mãe e lidava com seu inútil conselho de
administração e estava ao lado de sua cama em todas as oportunidades que tinha. Eu
tinha feito tudo isso, então é claro que eu poderia sair dessa porra de varanda.

Agarrei a corda de veludo novamente. O dong soou dentro da casa, mas imaginei
que ninguém mais viria. Eu me inclinei contra a corda, sentando o máximo que pude
na varanda e apoiando minha outra perna contra a porta enquanto me levantava.

Doooong.

O gongo continuou a soar enquanto eu me arrastava, uma mão atrás da outra.


O suor escorria pelo meu rosto. Finalmente, minha perna voou livre e eu saltei para a
varanda, ainda inteira.

Bem, quase inteira. Um corte irregular abriu na lateral do meu jeans, o


suficiente para que eu pudesse ver o longo arranhão e o gotejamento de sangue.
Limpei a sujeira e as teias de aranha o máximo que pude, mas não havia nada que eu
pudesse fazer sobre minha roupa arruinada até finalmente entrar.

Acho melhor encontrar a entrada dos criados.

Peguei meu estojo de violino e manquei pela lateral da casa, minha perna
ardendo. O sangue fervia sob minha pele. Aquela loira nem me deu um segundo para
me explicar. Ela podia ver que eu precisava de ajuda, e bateu à porta na minha cara
mesmo assim. Agora eu tinha que entrar e servir sua comida e limpar sua bagunça.

Mas acho que tenho que me acostumar a ser tratada assim, afinal.

Enquanto eu mancava e fumegava, passei sob uma janela parcialmente


obscurecida por hera rastejante. A vidraça tinha uma fresta aberta. Eu parei no meu
caminho, presa pela música que fluía de dentro.

A vibração mais leve nas teclas fazia a peça soar sem esforço, mas eu a reconheci
imediatamente como Liszt, La Campanella. Liszt é um dos compositores mais difíceis
de tocar, já que o bastardo podre adorava criar composições complicadas que
pareciam desafiar as leis da física. Se você cometesse alguns erros, a coisa toda soava
uma merda completa, então era corajoso adicionar uma peça como essa ao seu
repertório.

Este músico não estava apenas tocando Liszt, ele estava criando magia com
Liszt. Os saltos na composição carregavam consigo uma paixão selvagem que evocava
o estilo pouco convencional do músico, mas com uma ludicidade completamente
única.

Eu não pude evitar. Larguei meu violino e pisei no canteiro elevado do jardim,
esticando o pescoço para espiar pela janela. A música me parou, agarrando meu
coração no meu peito. Eu precisava ver quem poderia tocar assim.

Apertei os olhos para a sala escura, minha respiração presa na garganta


enquanto lutava para distinguir as formas dos móveis e das pessoas. Uma garota
estava sentada ao piano, suas feições delicadas inclinadas em direção às teclas, seus
olhos semicerrados enquanto ela tateava a peça. Uma cascata de cabelo loiro-branco,
perfeitamente liso e brilhante como fios de prata, descia pelas costas dela. Nas
sombras, eu podia apenas distinguir as pernas dobradas do tutor, sentado em
contemplação extasiada.

A pianista era uma pequena coisinha, tudo sobre ela era leve e sem esforço,
seus olhos fechados, suas feições serenas. Essa garota apenas canalizou o tipo de
emoção crua que fazia lágrimas brotarem dos cantos dos meus olhos...

“Srta. De Winter,” uma voz afiada interrompeu meu devaneio. “O que você pensa
que está fazendo?”
Eu pulei com a voz, batendo minha cabeça no lintel de pedra. Vergões vermelhos
dançaram na frente dos meus olhos.

Pelo menos agora não estou mais pensando na dor na minha perna.

Esfregando minha cabeça, me virei para encarar Madame Usher. Ela estava no
caminho atrás de mim em outro de seus amplos vestidos de renda, este preto e roxo,
com as mãos nos quadris e uma expressão de desgosto absoluto em seu rosto pintado.

Excelente. Porque este dia não poderia ficar pior.

“Esgueirando-se pelos jardins e espiando pelas janelas como uma ladra de


gatos,” ela disse. “Esta não é a conduta que se espera de uma estudante da Manderley.
Sob minha tutela, você representa não apenas a mim, mas a todos os graduados de
nossa boa escola. Não vou tolerar esse tipo de comportamento antissocial. Você
entendeu?”

“Eu estava apenas tentando encontrar a entrada, e eu...”

“Um simples ‘sim, Madame Usher’ seria suficiente.” Ela me acertou com aquele
sorriso de novo, aquele que prometia dor se eu não obedecesse.

Mordi de volta uma centena de réplicas perversas. “Sim, Madame Usher.”

As palavras tinham gosto de lixa na minha língua. Eu odiava ter que me curvar
e atender a essa mulher, a cadela que seduziu papai com todas as suas promessas
bonitas, deixando mamãe quebrada e eu sem um pai.

“Bom. Agora me siga.”

Eu pulei do muro do jardim, enviando uma pontada de dor através do meu


crânio. Devo ter batido no lintel com mais força do que pensava. Quando me abaixei
para pegar meu estojo de violino, a boca de Madame Usher se contraiu como se ela
estivesse chupando um limão.

“Seguimos um código de vestimenta rigoroso aqui. Eu sei que você tem vivido
‘na periferia’, mas seu estilo ‘moradora de rua’ não será tolerado aqui.”

Do que ela está falando... Ah, certo. Olhei para o meu jeans rasgado e imundo,
que agora ostentava algumas folhas mortas e manchas de orvalho do jardim coberto
de vegetação. “Eu caí em uma tábua podre na varanda. Eu esperava me trocar antes
de ver você...”

“Quando eu quiser que você fale, Sra. De Winter, direi a você.”

OK, tudo bem. Vai ser assim então.

Seu comportamento não fazia sentido para mim. No hospital, ela alegou que
ainda amava meu pai. Ela ficou impressionada com o meu jeito de tocar. Ela até usou
a palavra ‘talentosa’. Mas agora ela parecia quase irritada por eu estar aqui.

Para uma mulher magra, Madame Usher andava rápido, com propósito. Eu tive
que correr para acompanhá-la, o que só fez minha perna e minha cabeça doerem
mais. Ela me conduziu por um caminho largo e por um pequeno portão de ferro até
uma horta cheia de ervas daninhas. Uma porta estreita de madeira quebrava a
monotonia da parede de tijolos. Madame removeu um molho de chaves de uma argola
de metal e selecionou uma, girando a velha fechadura até ouvir um clique.

Como ela planejava me deixar entrar se a porta estava trancada?

A porta se abriu para um corredor curto, envolto em sombras. Uma única


lâmpada fluorescente pendia do teto, sua luz mal penetrando nos cantos.

Ela me mostrou a primeira sala, uma despensa estreita cheia de suprimentos.


Um quadro branco na parede detalhava as listas de compras e os menus em uma
caligrafia delicada e enrolada. O chão tinha uma sensação arenosa, como se alguém
tivesse derrubado um saleiro nele, mas nunca se preocupou em limpá-lo.

O armário em frente continha o material de limpeza. Outra porta levava a uma


lavanderia com uma máquina de lavar antiga e varais suspensos no teto. Eu meio que
esperava que houvesse um espremedor de manivela e uma pedra para moer farinha
aqui também.

A última porta levava a uma cozinha de teto baixo. Uma parede inteira estava
ocupada por um fogão de madeira antiquado com panelas e frigideiras de ferro
fundido, suspensas em um equipamento que não ficaria deslocado em uma masmorra
sexual. Armários de mogno escuro forrados ficavam dos dois lados, com tampos de
madeira desgastados e marcados pelo tempo. Uma janela estreita acima da pia dava
para o jardim dos fundos, para as dependências, e para um riacho borbulhante e o
vale da montanha além.

Este lugar é irreal. Parece que eu voltei no tempo.

“Harrison costuma cortar a lenha. Os bosques ao redor da casa fazem parte de


nossa propriedade, e também administramos a floresta deste lado das montanhas,
então o corte das árvores é uma parte importante do manejo, mas isso é preocupação
de Harrison. Cabe a você monitorar o suprimento de madeira da casa e avisá-lo
quando estiver acabando. O forno é à lenha, e há três lareiras neste andar, mais uma
em cada quarto. Durante o inverno, você precisará acender as lareiras pela manhã e
trazer a lenha para os quartos. Eu forneço um orçamento semanal para alimentos e
material de limpeza. Tudo isso está detalhado aqui.” Ela abriu uma gaveta e me
mostrou um livro encadernado em couro, os cantos manchados com o que pareciam
ser pontas de dedos polvilhadas com farinha.

No centro da sala, uma mesa de fazenda com bancos gemia sob o peso de, pelo
menos, dez caixas. Moscas zumbiam preguiçosamente ao redor da pilha, e notei
algumas manchas vermelhas estranhas no canto do papelão, vazando na mesa.

“Este é o último pedido que fizemos do supermercado. Está aqui há algumas


semanas. Optamos por pedir o serviço de bufê da vila desde que Clare...” Madame
Usher deixou a frase suspensa. “Bem, a questão é que isso não é suficiente e você
precisará limpar tudo e fazer um novo pedido para incluir o que está faltando. Os
detalhes estão no livro-caixa.”
Olhei para a pilha, horrorizada. “Você simplesmente deixou toda essa comida
aqui para apodrecer?”

Ela fungou. “Estive um pouco ocupada com os preparativos para o ano letivo, e
com a polícia bisbilhotando a casa, fazendo perguntas desagradáveis sobre o acidente
de Clare. Além disso, os outros alunos não sabem cozinhar um ovo. Eles têm
preocupações mais relevantes. Aqui estão as suas chaves.”

Um molho de chaves estava sobre a mesa da cozinha, idêntico ao que Madame


Usher segurava. Eu o peguei, surpresa com o peso dele. Muitos quartos trancados
nesta casa. Muitos segredos.

O pavor tomou conta do meu estômago quando Madame Usher me levou para
fora da cozinha e por um corredor estreito para emergir de uma pequena porta sob
uma grande escadaria. A escada onde Clare caiu para a morte.

Eu estava no hall de entrada que tinha visto antes. Cortinas grossas de veludo
pendiam das janelas da frente, permitindo apenas uma lasca de luz opaca através das
aberturas. Padrões saltaram para mim do tapete floral e das molduras douradas para
as decorações pintadas nos móveis de madeira pesada e o papel de parede vitoriano
desbotado. Desse ângulo, dei uma boa olhada nos retratos que se amontoavam nas
paredes. Professores anteriores, alunos e patronos da escola, a julgar pelo número de
perucas e instrumentos extravagantes.

Fracos fragmentos de música ecoavam pela sala alta, arrebatando os detalhes


sem vida da casa, ameaçando dar vida aos padrões.

Notei uma parte vazia na parede ao pé da escada. O papel de parede se


destacava em cores vibrantes, mulheres vestidas com roupas transparentes em torno
de uma cesta flutuando na água tingida de azul, mostrava que uma pintura havia
sido movida recentemente.

“O que aconteceu aqui?” Apontei para o quadrado vazio. “Alguém começou uma
carreira no jazz maligno e teve que ser excomungado?”
“O retrato foi enviado para reparos.” Madame Usher começou a atravessar o
saguão de entrada, suas saias varrendo atrás dela. “Não se preocupe com isso. Me
siga.”

Ela me conduziu por um amplo corredor cheio de antiguidades e retratos


dourados. Meus pés afundavam em um tapete pesado. Aqui, o som de Liszt era mais
alto, o som turvo por outra voz, uma melodia de violino assombrosa por trás de uma
porta fechada diferente que subia e descia pelo piano, tocando uma música
completamente diferente. As duas composições se misturavam em algo dissonante e
vagamente ameaçador.

“Temos três salas de prática no piso térreo. Estas devem ser compartilhadas
entre todos os alunos.” Madame abriu uma porta larga para revelar um salão azul-
celeste. Cadeiras de veludo cobriam as paredes, voltadas para dentro para estantes
de música espalhadas e um segundo piano de cauda, um Bösendorfer 3 , pelo que
parecia. Uau, eles só fazem algumas centenas desses por ano. Madame Usher devia
estar muito cheia de dinheiro. “Esta é a Sala Azul. As outras, na torre, são as Salas
Amarela e Vermelha, e estão atualmente ocupadas. Você pode reservar vagas nas
folhas de inscrição localizadas no quadro de avisos do corredor.”

“Uau.” Eu tinha visto as fotos no site, mas estando aqui pessoalmente, cercada
por todos os móveis pesados e adornos dourados... Tudo que eu conseguia pensar era
em quanto tempo levaria para virar pó.

“Temos aulas e palestras pela manhã, das 8 às 11 na Sala Vermelha ou no Salão


de Baile. Às 11h paramos para almoçar. À tarde, você terá aulas particulares com o
Mestre Radcliffe. Quando não estiver nas aulas, você estará praticando em grupos ou
sozinha, completando suas tarefas ou cuidando de suas tarefas domésticas.
Oferecemos oportunidades regulares para os alunos se apresentarem na comunidade
e no exterior, e também damos vários recitais, galas e mostras ao longo do ano. Muitos

3 Bösendorfer é uma fabricante austríaca de pianos fundada em 1828 por Ignaz


Bösendorfer, situada em Viena.
dos principais maestros, patronos e profissionais do setor estarão presentes, por isso
é importante que você participe e continue a atender aos nossos altos padrões. No
final do ano, Mestre Radcliffe e eu escolheremos um aluno para ganhar o Prêmio
Manderley. Esse aluno receberá US $ 200, 000 e praticamente terá uma carreira
internacional garantida. É improvável que você esteja apta a concorrer, dada a sua
educação abaixo do padrão depois que deixou minha tutela. No entanto, acredito na
igualdade de oportunidades e adoraria fazer isso pela filha de Donovan.”

“Caramba, valeu.” Porque a única coisa que vale a pena em mim é o fato de eu
ser filha do meu pai.

Ela me deu um olhar fulminante, mas continuou sem reconhecer minha reação.
“Essas salas devem ser mantidas imaculadas. Se o trabalho doméstico não estiver de
acordo com os nossos padrões, você não poderá continuar aqui como uma estudante.
Vou lhe mostrar os demais quartos.”

Eu balancei a cabeça, a bola de pavor dentro de mim girando mais rápido. O


programa de estudos que ela acabou de descrever seria intenso por si só, e eu teria
que manter essa casa enorme com todas essas antiguidades limpas e cozinhar
também? Parecia impossível.

Mas obviamente é impossível. Ela fez de propósito.

Assim que o pensamento me ocorreu, eu sabia que era verdade. Eu não tinha
ideia do porquê, mas Madame Usher queria que eu falhasse. Por que eu estava aqui,
então? Ela não tinha que me convidar para sua escola rica ou pagar pelos cuidados
da mamãe. Ela poderia simplesmente ter ignorado a recomendação da minha
professora, fingindo que nunca soube que eu ainda tocava violino. Então, qual é o
intuito dela?

Eu não entendia, mas estava determinada a descobrir.

Eu esperava voltar ao hall de entrada para subir ao segundo andar. Em vez


disso, Madame Usher me conduziu por um corredor estreito, passando por duas
amplas portas de mogno que se abriam para um grande salão de baile com outro
piano de cauda, até um lance estreito de degraus simples de madeira.

As escadas dos criados.

Subimos para emergir no final de outro corredor longo e largo. Em cada porta
havia uma placa dourada exibindo o nome e o instrumento de cada aluno.

TITUS THIBODEAUX, VIOLONCELO, li enquanto passávamos. Thibodeaux? Eu


me perguntei se Titus tinha alguma relação com Amos e Delphine Thibodeaux, o
famoso duo clássico de Nova Orleans que injetou sua herança cajun e afro-americana
em suas performances.

AROHA RAWHIRI, PIANO... Alguém lá dentro praticava uma peça russa


dissonante. HEATHER DANVERS, VIOLINO... IVAN E ELENA NICOLESCU, VIOLINO
E PIANO... Eu me perguntei por que eles dividiam um quarto. Eles eram casados?
Interessante, uma vez que os alunos geralmente entravam em um conservatório como
Manderley assim que saíam do ensino médio, ou até mesmo antes dos dezoito anos.
Como eles casaram assim tão jovens?

“…espera-se que esses banheiros sejam arrumados e os lençóis trocados toda


semana. Fora isso, os alunos são responsáveis por seus próprios quartos. Há suítes
de hóspedes neste andar para pais ou músicos visitantes, e você vai precisar tirar o
pó...”

A voz de Madame Usher recuou para o fundo da minha mente. A porta do outro
lado do corredor estava entreaberta. Eu pisei na frente dela, e a curiosidade atraiu
meu olhar para dentro.

Esparramado em uma enorme cama de dossel com cortinas azuis estava o cara
mais bonito que eu já tinha visto. Ele tinha a minha idade, mas o olhar em seus olhos
cinza-ardósia era mais velho e pingava pecado, como se ele tivesse visto alguma coisa
ruim e fosse responsável pela maior parte dela. Lábios macios em um corte cruel
adornavam seu rosto enquanto olhos assombrados piscavam sobre meu corpo.

Familiares olhos assombrados.


Olhos que eu reconheceria em qualquer lugar.

Não pode ser.

Eu quis me virar, mas meu olhar desceu por seu peito nu, pela tinta que se
curvava em torno de seus peitorais, pelos braços impossivelmente esculpidos até suas
mãos, onde tatuagens de clave de sol dançavam nos dedos longos.

Aquele era ninguém menos que Dorien fodido Valencourt.

Meu amigo de infância, o menino que arrancou meu coração e pisou nele com
tanta força que eu nunca o abri para mais ninguém, me lançou um sorriso astuto
enquanto seus dedos acariciavam o pau mais enorme que eu já tinha visto.
Dorien Valencourt.

Isso é impossível. De todos os lugares do mundo inteiro, como ele poderia estar
justo aqui? Sem chance.

Que soem as trombetas, estou condenada.

Minha garganta secou. Tento desviar os olhos, mas eles se fixaram naquele pau
como se eu fosse um radar e ele um submarino alemão, um navio rígido saqueando
os oceanos…

Eu pigarreio.

Dorien deslizou seu corpo perfeito para fora da cama. Ele não se preocupou em
jogar uma toalha sobre si mesmo ou vestir uma camisa ou qualquer coisa assim,
porque o universo nunca era assim tão gentil comigo. Enquanto ele caminhava em
direção à porta, minha mente vacilou entre o passado e o presente.

O sorriso de merda de Dorien enquanto passava manteiga de amendoim no


clarinete de outro aluno. Dorien me abraçando com alegria quando descobrimos que
estaríamos na mesma classe avançada. Os olhos frios de Dorien desnudando minha
alma quando ele me disse que não éramos mais amigos.

Eu com os meus olhos injetados de vermelho por causa das noites sem dormir,
sentada naquela cadeira de plástico desconfortável no quarto de hospital da mamãe,
olhando com atenção extasiada para a tela do meu computador enquanto passava uma
montagem do show de Dorien em sua última turnê com o Broken Muse. Meu corpo
respondendo com fogo e chamas enquanto aqueles mesmos dedos tatuados dançavam
sobre as teclas.
Os outros dois músicos que tocavam com Dorien também eram quentes como o
pecado, mas isso só piorava as coisas. Um violoncelista afro-americano desfiava seu
arco nas cordas, suas trancinhas de contas balançando em torno de sua cabeça
enquanto ele contorcia a música à sua vontade. Ele virou a cabeça para a câmera, e no
instante em que meus olhos encontraram seus orbes cor de meia-noite, senti um chiado
percorrer minha espinha, um ímã me puxando para a tela, para um mundo distorcido
onde um cara como aquele notaria uma garota como eu. Então a câmera se voltou para
o violinista, uma beleza de cabelos brancos com olhos de puro gelo, cujos dedos longos
se enrolavam nas cordas com uma graça tão requintada que uma lágrima não
derramada espremeu os meus olhos. E eu pensando que já tinha chorado todas as
lágrimas que tinha em mim...

Enquanto as memórias me inundavam, o reconhecimento brilhou nos olhos de


Dorien. Seu passo vacilou por um momento, mas ele se recuperou, enxugando sua
expressão com uma dureza que enviou um arrepio pela minha espinha.

“Fique fora do meu quarto privado, lixo.” A voz de Dorien era como música em
meu corpo, tocando-me em todos os lugares certos, mesmo quando ele me insultava.

A porta bateu na minha cara, e o som ricocheteou pela casa como um tiro. Do
lado de fora do quarto, ouvi um arco guinchar nas cordas e alguém xingar.

Dorien, o que aconteceu com você?

O velho Dorien, meu melhor amigo de infância, era um palhaço total. Ele estava
sempre pregando peças e tentando me fazer rir quando eu ficava muito séria. Ele
adorava fazer as pessoas rirem, fazê-las adorarem ele.

Eu não vi nada do carinha brilhante e divertido que conheci naqueles olhos de


pedra. Toda a diversão havia sido sugada da alma de Dorien. Claro, ele era
fodidamente lindo, além da crença até, mas o que adiantava ter uma boa aparência e
modos de playboy se você estivesse vazio por dentro?

Bom, sua alma podia estar murcha, mas seu pau...


Eu tive que morder meu lábio para parar de salivar. O que estava errado comigo?
Recomponha-se, Faye. Você está aqui para que sua mãe possa obter os melhores
cuidados médicos, e é isso. Você definitivamente não está aqui para perseguir um cara
que já rejeitou você uma vez.

Se Madame Usher notou a nudez de Dorien, ela parecia completamente


imperturbável por isso. Ela continuou meu passeio ao me dirigir por uma fileira de
suítes de hóspedes, banheiros, outra pequena sala de prática, uma pequena
galeria/armazém cheia de instrumentos doados para a escola e uma biblioteca em
uma sala de pé-direito duplo cheia de livros velhos empoeirados e partituras que
ninguém nunca havia lido. Eu balançava a cabeça e escutava com metade da minha
atenção, minha mente ocupada com Dorien.

O que o mudou?

Por que ele está aqui?

Dorien não precisava da Manderley. Ele já tinha uma carreira internacional. Ter
o programa de prestígio em seu currículo podia parecer bom, mas também ou seria
uma turnê internacional como solista ou uma turnê com os outros dois gatos do
Broken Muse, e ele não podia fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Aquele olhar
morto e assombrado em seus olhos dizia muito: Ele não queria estar aqui. Então, por
que estava?

Aposto que são os pais dele. Mesmo quando Dorien agia como um merdinha
completo, ele amava a música, e ele queria muito se sair bem. Seu pai o empurrava
com força, e sua mãe sempre se sentava no fundo da sala, seus olhos queimando em
suas costas enquanto ela memorizava cada movimento seu para criticar mais tarde.
Os dois eram super estranhos, eu fui à casa deles uma vez para o aniversário de
Dorien, e o pai dele nos fez brincar nesta sala que não tinha móveis e apenas uma
caixa de blocos de madeira, mas mamãe disse que era assim que as pessoas vindas
do dinheiro velho agiam. Eles pareciam gostar de mim, embora fosse principalmente
a fama de meu pai que os interessava. Eu sempre me perguntei se eles eram a razão
pela qual Dorien terminou nossa amizade, mas eu não queria inventar desculpas para
seu comportamento idiota...

Com um sobressalto, percebi que Madame Usher havia parado em seu caminho.
Eu derrapei no tapete pesado em uma tentativa de parar meu impulso antes de bater
nela. Consegui, mas isso me desequilibrou um pouco. Minha mão agitada resvalou
em um vaso, derrubando-o da beirada do suporte. Eu o alcancei e o peguei antes que
ele batesse no chão.

“Tenha cuidado.” Madame Usher apontou para uma pesada porta de madeira
no final do corredor com uma placa de PROIBIDO ALUNOS gravada nela. “Eu moro
na ala leste da casa. Nenhum aluno deve entrar em minhas salas privadas a menos
que seja convidado. Desobedecer a esta regra resultará em expulsão imediata. Não
encare essa ordem levianamente, pois já dispensei alunos por isso antes.”

Eu balancei a cabeça.

“Mestre Radcliffe mora no estábulo na parte de trás do terreno. Ele se junta a


nós para as refeições, a menos que esteja viajando. Você já conheceu Harrison, ele
mora na guarita que você viu quando entrou na propriedade. Se você precisar saber
onde encontrar alguma coisa, ele é a melhor pessoa para perguntar. Estarei muito
ocupada com a escola para me preocupar com pequenos detalhes. Este é o primeiro
ano em que estarei executando nosso programa sem Victor, e deve funcionar
perfeitamente. Alguma pergunta?”

Um milhão delas, mas nenhuma que eu quisesse perguntar a ela. “Onde é meu
quarto?”

“Você ficará no terceiro andar. Me siga.”

Subimos outro lance de escadas, tão íngremes e estreitas que tive que abraçar
o estojo do violino no peito para caber. Saímos em um pequeno patamar, as paredes
de madeira inclinadas para dentro em um ângulo tão íngreme que tive que me abaixar
enquanto subia. Madame Usher puxou uma corda e uma única lâmpada nua
iluminou o espaço.
Estávamos obviamente no sótão da casa. Diante de mim havia três portas.
Presumi que, quando o prédio era usado como casa senhorial, os criados moravam
nesses quartos. Parecia apropriado então que me fosse dado um. Madame Usher
encontrou outra chave em seu molho e a enfiou na fechadura da porta do meio.

“Reformamos esses quartos há três anos, quando contratamos Clare. O quarto


à sua esquerda é o seu banheiro, e está porta externa está bloqueada, então o único
acesso é pelo seu quarto. A outra porta deve permanecer trancada o tempo todo,”
disse ela. “Nós a usamos para armazenamento e contém muitas ferramentas antigas
e outras bugigangas. Se tornaria um problema de saúde e segurança se os alunos
começassem a vagar por dentro, então não lhe dei uma chave para acessá-la.”

Ela abriu a porta do meio para revelar um espaço surpreendentemente grande.


As paredes se inclinavam em direção ao centro da sala, e uma janela de vidro
temperado lançava uma luz fria sobre o tapete cinza felpudo e os móveis confortáveis,
se eu quisesse usá-los. Uma cama de latão branco feita com lençóis creme dava para
a janela. Uma pilha de cobertores repousava sobre um baú de madeira esculpida. A
chaminé de pedra subia em um canto da sala, então pelo menos eu ficaria aquecida
quando o fogo do andar de baixo fosse aceso.

Enfiar-me no sótão era obviamente outra parte do plano de Madame Usher para
me humilhar, mas ela teria que fazer melhor. O quarto era realmente muito legal, e
tinha mais personalidade do que as suítes luxuosas do andar de baixo. Coloquei meu
estojo de violino ao lado da cadeira embaixo da janela. “Obrigada.”

Fiquei ali, esperando que ela fosse embora. Quando ela não o fez, eu virei minha
mochila em cima da cama e peguei as roupas que eu enfiei apressadamente dentro,
tirando meus dois vestidos de show para pendurar na prateleira ao lado da janela, e
um conjunto extra de jeans para me trocar.

“O que você está fazendo?” Ela exigiu.

“Me instalando.”
“Não há tempo para isso.” Ela olhou para o relógio. “Já passa das dez.
Almoçamos pontualmente às onze. Você precisa voltar para a cozinha.”
Depois de uma hora de picar e refogar freneticamente, preparei um almoço
razoável com o que ainda podia ser usado na geladeira e na despensa, medalhões de
cordeiro incrustados de ervas, uma salada quente de chouriço e batata-doce e um
pouco de pão amanhecido que cortei em fatias, em croutons e grelhados com um
pouco de alho, e servidos com uma cebola caramelizada em conserva que encontrei
nas prateleiras. Mamãe pode não ter sido uma idiota virtuosa como meu pai, mas eu
aprendi muito com ela, ou seja, como arrasar em uma cozinha vazia.

Levar os pesados pratos de comida para a sala de jantar era outra questão. Era
mais uma chance para a minha coordenação natural desequilibrada brilhar. Quando
contornei o canto da escada, um dos croutons escorregou do prato e caiu com o lado
da conserva para baixo no tapete do corredor.

Excelente. Isso vai deixar uma mancha. Preciso lembrar de limpar mais tarde.

Conversas e risadas ecoavam nos tetos altos quando entrei na sala e dei uma
primeira olhada em meus colegas.

Dorien Valencourt sentava-se ao lado direito de Madame Usher, que fazia o


papel de anfitriã na mesa. Ele devia ter acabado de dizer algo hilário, porque a garota
de cabelo cor de mel que me deixou presa na varanda jogou o cabelo por cima do
ombro e riu. Sua risada soou como água escorrendo de uma cachoeira.

A menina solitária de cabelos brancos que eu tinha visto ao piano estava


sentada ao lado de um garoto que... Espere um segundo.

Era o violinista dos vídeos de Dorien, eu tinha certeza. Ele e a garota pareciam
praticamente idênticos, o mesmo cabelo prateado perfeitamente liso, olhos cativantes
e maçãs do rosto salientes. Enquanto ela tinha a aparência de um duende, ele era um
elfo escuro, do tipo que atrai você para fora do caminho em um círculo mágico onde
faria amor selvagem com você e depois cortaria sua cabeça e sugaria seu sangue. Ele
colocou a mão sobre a de sua irmã, seu olhar gelado me varrendo com uma ameaça
que deixava claro que ele era tão perigoso quanto bonito.

Gêmeos. Isso explicava o sobrenome idêntico, mas não porque dividiam um


quarto. Eles não iriam querer seu próprio espaço?

Do outro lado da mesa, em frente aos gêmeos, estava uma garota com curvas
como as minhas (talvez pudéssemos ser amigas...), sua pele de um marrom profundo
e rico, e seus olhos brilhando com malícia. Ela não era afro-americana, mas não
consegui identificar suas feições. Ela usava uma saia de couro apertada e uma regata
preta que exibia tatuagens pretas giratórias em seus ombros e mal cobria seus seios,
com uma atitude que dizia ao mundo para ir se foder imediatamente. Ela abaixou a
cabeça para falar com um cara que eu imediatamente reconheci como o terceiro Muso
do vídeo de Dorien. Ele só poderia ser Titus Thibodeaux. À fraca luz das velas, ele era
a cara de seu pai Amos, exceto que os olhos esfumaçados de Titus, as bordas tingidas
de meia-noite, não compartilhavam nada do calor do maestro. Ele parecia ter passado
o dia em funerais consecutivos com uma rápida parada para um tratamento
desagradável de canal.

Madame Usher estava sentada à cabeceira da mesa, e um homem de cabelos


brancos com suaves olhos cinzentos e nariz ligeiramente adunco a encarava do outro
lado. Mestre Radcliffe, imaginei. Um músico raro que dominava três instrumentos; os
folhetos faziam um grande alarido sobre sua presença na equipe de Manderley. Ele foi
a única pessoa que sorriu para mim quando me aproximei da mesa.

Dorien Valencourt se levantou enquanto eu me esgueirava para frente, meu


joelho doendo onde a varanda me arranhou. Ele usava roupas desta vez, graças a
Deus, embora seu jeans preto justo e camisa vermelha justa com bordados barrocos
na gola e nos punhos não fizessem nada para disfarçar aquele corpo quente como o
pecado por baixo. Uma mão se estendeu para mim, aquelas tatuagens de clave de sol
dançando sobre seus dedos, e imaginei como seria ter essas mãos dançando sobre
minha pele nua...

Eu endureci, minhas mãos tremendo. Ele vai falar comigo? Ele vai me levar para
o meu lugar como um cavalheiro e...

Os olhos de Dorien percorreram meu corpo, considerando minha camiseta


amarrotada e jeans rasgados, procurando por algo que ele não encontrou. Ele se virou
com um bufo de desgosto e pegou uma garrafa de vinho tinto do aparador, despejando
o líquido escuro em copos de cristal.

Madame Usher acenou para mim. Coloquei as travessas no meio da mesa,


depois recuei desajeitadamente, sem saber o que fazer. Eu poderia sentar à mesa, ou
ela tinha um armário em algum lugar onde Harrison e eu dividiríamos uma tigela de
mingau?

“Junte-se aos seus colegas músicos,” Madame Usher me ordenou.

Sem armário para mim, então. Contando isso como uma vitória, puxei a única
cadeira vazia, ao lado da que Dorien havia desocupado. Seis cabeças se viraram para
mim. Seis pares de olhos me encararam.

“Estudantes, esta é Faye De Winter. Ela se juntará a nós para as aulas de


violino, além de assumir as funções da querida falecida Clare.”

“Só devia haver seis alunos,” Titus interrompeu, sua voz profunda retumbando
sobre meus ossos. Tranças caíram sobre seus ombros enquanto ele agarrava a carne,
por pouco não conseguindo arrastar o cabelo na comida. “Mestre Radcliffe nunca
ensina mais de seis alunos, e Victor não está mais aqui para ensinar piano, então...”

“O Mestre aceitou Faye como um favor para mim, pois precisamos de ajuda
doméstica. Seu pai é Donovan De Winter, meu maior amor.” Os olhos de Madame
ficaram vidrados e, por um momento, ela se perdeu em alguma lembrança de meu
pai. Engraçado, eu também, embora duvide que tenhamos visto as memórias da
mesma maneira.

“Ele era meu pai,” eu a corrigi. “Agora ele está meio que indisponível.”
Do outro lado da mesa, a garota de pele morena bufou. Madame Usher
continuou, não deu nenhuma indicação de que me ouviu. “Se Faye tiver um pingo do
talento dele, ela será uma séria candidata ao Prêmio Manderley.”

Isso era o oposto do que ela me disse, mas era óbvio pelos seis olhares hostis
ao redor da mesa que Madame queria que eu fosse odiada aqui.

Dorien distribuiu as taças para todos, exceto para o gêmeo, aquele de olhos cor
de safira. Era estranho beber álcool na hora do almoço, no que era tecnicamente um
dia de escola, quando aposto que a maioria de nós ainda tinha menos de 21 anos,
mas eu estava na escola preparatória há tempo suficiente para saber que havia regras
diferentes para os ricos e esnobes. Quando Dorien se dirigiu ao meu copo, ele tinha
terminado a garrafa, então teve que abrir outra. Ele mexeu em algum aerador na
tampa, então encheu meu copo até a borda, o dobro da quantidade de álcool que ele
deu aos outros.

“Por que você não economizou o esforço e me entregou a garrafa inteira de uma
vez?” Minha voz escorria com sarcasmo enquanto eu tentava não derramar o vinho
sobre a toalha de mesa branca imaculada.

“Aposto que é assim que vocês bebem vinho no Bronx.” Dorien deixou a palavra
escorrer de sua língua, a atitude explosiva me dando um tapa no rosto. Interessante.
Como ele sabia onde eu estava morando? Quando o conheci, morávamos no East
Village.

Se Dorien sabia sobre a doença de mamãe e nossa queda em desgraça... o chão


poderia me engolir agora?

Meus dedos se fecharam em punhos. Eu poderia achatar o nariz perfeito de


Dorien. As coisas ficariam equilibradas entre nós se ele tivesse um rosto arruinado
para combinar com a minha vida arruinada, mas isso provavelmente era exatamente
o que Madame Usher queria, a desculpa perfeita para se livrar de mim.

Sem mencionar o fato de que estragar um rosto tão perfeito era um pecado
capital.
Lembre-se, você não está aqui por si mesma.

Foi preciso muito autocontrole para abrir meu punho e segurar meu copo como
se estivesse grata por ele ter me servido. Contanto que eu continuasse na linha,
mamãe teria o melhor tratamento médico que o dinheiro poderia comprar. Talvez
esses novos especialistas sofisticados pudessem descobrir o que os doutores
Frankenstein do último hospital não conseguiram, e finalmente trazê-la de volta para
mim.

Agora que eu sabia que Madame Usher me preparou para falhar, eu estava mais
determinada a ficar, vencer e descobrir exatamente qual era a intenção dela. Por que
ela estava tão determinada a me ter aqui se ela também queria que eu falhasse? Por
que se oferecer para ajudar minha mãe quando ela tentou roubar seu marido? E por
que agora?

Minha perna arranhada doía, e eu sabia que tinha arrastado teias de aranha
pelo tapete que ficaram presas na minha calça. Sob o escrutínio de todos, eu me senti
desmoronando. Todos usavam roupas de grife e sorrisos de vidro lapidado. Ivan
passou as mãos por um corte de cabelo emplumado que provavelmente custou mais
do que um mês de aluguel do nosso apartamento no Bronx. A garota de pele morena,
que eu imaginei ser Aroha (isso era havaiano? Eu não acho que poderia perguntar)
usava vários anéis grandes em seus dedos, os diamantes brilhando sob as velas
bruxuleantes.

Os olhos de Dorien passaram por mim, tirando minha roupa com sua mente,
da mesma forma como sua música costumava desnudar minha alma. Arrastei-me no
meu lugar ao lado dele, completamente nua. Ele sorriu, uma expressão maldosa. Ele
parece não ter gostado do que viu.

Um silêncio constrangedor caiu sobre a mesa enquanto todos bebiam seu vinho
e olhavam para a comida como se dela pudesse brotar tentáculos e devorá-los todos.
Madame Usher franziu a testa para minha taça de vinho até que eu peguei a dica e
bebi. Tinha um gosto ruim, como maçãs podres encharcadas. Rezei para que ela não
esperasse que eu bebesse a coisa toda.
Finalmente, Mestre Radcliffe se inclinou para frente e pegou o prato de cordeiro.
“Isso parece delicioso.” Sua voz tinha um tenor melodioso, como se ainda estivesse
dentro de uma música. Ele raspou três medalhões em seu prato, junto com uma
generosa porção de salada. Isso pareceu ser uma deixa tácita para todos os outros
avançarem. Esperei até que todos os alunos tivessem comida em seus pratos antes de
me inclinar para me servir. Eles não tinham me deixado nenhum cordeiro (bastardos
gananciosos), então eu enchi meu prato de salada e pão. Precisaria para absorver o
vinho, que já estava me fazendo sentir mal e, a julgar pelos olhares furiosos de
Madame Usher, ela realmente esperava que eu terminasse.

“Então, Faye, por favor, conte-nos sobre você,” disse o Mestre em seu tom
agradável. “Com quem você tem estudado?”

Eu estava prestes a dizer: “Sra. Finch em História e Sr. Sacks em Matemática,”


quando cliquei que ele estava se referindo aos meus professores de música.

Olhos perfurados em mim. “Emma Garrison,” eu murmurei em meu prato.


Minha língua ficou presa no céu da boca, e havia uma estranha aspereza no fundo da
minha garganta.

Do outro lado da mesa, risadinhas soaram abafadas com guardanapos.

“Emma Garrison? Não posso dizer que já ouvi falar dela. Ela veio da escola de
Berlim?”

Eu balancei minha cabeça. Ele está me provocando deliberadamente, ou ele


realmente não sabe? “Ela é... independente.”

“O que Faye quer dizer é que ela esteve sob a tutela de amadores,” Madame
Usher ofereceu. “Esta Sra. Garrison foi sua professora de música do ensino médio, e
seu programa de música está longe de ser distinto. Um desperdício de talento raro e
requintado. Você terá trabalho para lapidá-la, Maestro.”

Do outro lado da mesa, Aroha sufocou uma bufada. Ela tentou encobrir o som
mastigando um pouco de pão, mas minha pele se arrepiou.
O que eu esperava? Esses idiotas ricos estudavam com mestres talentosos desde
que ainda usavam fraldas, enquanto eu tive que desistir de minhas aulas caras duas
vezes, tudo para que pudéssemos sobreviver. As lacunas no meu conhecimento me
colocam atrás deles antes mesmo de começarmos.

“Eu me lembro bem de seu pai,” Mestre Radcliffe continuou. “Nos encontramos
várias vezes em eventos sinfônicos na cidade. Eu o vi tocar Sibelius com a Filarmônica
de Londres, e foi uma das performances mais sublimes que já vi. O mundo não estava
pronto para perdê-lo.”

Eu aceno com a cabeça. O que mais havia para dizer? Eu também não estava
pronta para perdê-lo. Pena que eu não tinha nada a dizer sobre o assunto. Em um
minuto, papai estava gritando com mamãe que ela não apreciava sua necessidade de
espaço artístico depois de ela ter trabalhado 22 horas seguidas para cobrir seus voos
para Veneza e não conseguia entender por que ele estava em casa o dia todo e não
cozinhou o jantar. No próximo instante, ele tinha desaparecido sem deixar rastro.

Uma memória que eu não tinha pensado em muito tempo veio à tona agora,
uma que eu enfiei naquela pequena caixa preta na minha cabeça de coisas dolorosas
demais para pensar. Uma Madame Usher muito mais jovem e muito mais magra
parada na nossa porta, seus lábios molhados com batom carmesim e seu falso
perfume floral percorrendo nossa casa como um furacão com cara de vadia. Minha
mãe a encarava com as costas rígidas e olhos endurecidos. As duas sentadas frente a
frente na mesa da cozinha, xícaras de café intocadas e um envelope branco fechado
entre elas. Eu, de nove anos, sentada na escada e me esforçando para ouvir, mas elas
falavam tão baixo e com vozes tão duras... Quando Madame Usher foi embora, ela
carregava o envelope e ostentava um sorriso satisfeito que não alcançou seus olhos, e
mamãe tinha parado de chorar. Ela não derramou uma única lágrima pelo papai
depois disso.

Eu chorei por nós duas, e meus ductos lacrimais hiperativos fizeram isso muito
bem, soluçando por um homem que agora eu sabia que não era nada além de um
trapaceiro podre.
Eu ainda não sabia o que elas tinham dito naquele dia, ou o que havia naquele
envelope.

“O aluno mais talentoso de Victor,” Madame Usher ainda estava entusiasmada


com meu pai. “Donovan seria a estrela brilhante da Manderley Academy, mas o
destino tinha outras ideias.”

Eu desejei que o Mestre mudasse de assunto antes que minha faca de bife
fizesse uma viagem para a cidade do esfaqueamento. Em vez disso, ele pegou uma
segunda porção de salada. “Você aspira a uma carreira na música?”

“Não sei.” Essa era a resposta honesta.

“Se você não sabe, então por que está aqui?” Madame Usher estalou.

Mais risadinhas do outro lado da mesa. Apenas a garota abandonada, Elena,


parecia desconfortável.

“Estou aqui porque você precisava desesperadamente das minhas habilidades


culinárias.” Enfiei um pedaço de chouriço na boca. Como se ela não soubesse que eu
não poderia sair em uma turnê mundial enquanto minha mãe ainda estivesse deitada
em uma cama de hospital.

A conversa passou a ser sobre um próximo recital que os alunos dariam em um


museu na cidade de Nova York. Um debate animado foi iniciado sobre quais peças
deveriam apresentar. Eu ansiava por participar, mas nunca os tinha ouvido tocar, e
tive a impressão de que minha opinião não seria bem-vinda.

Ao meu lado, Dorien dominava a conversa. Enquanto ele brincava com Ivan
sobre sua técnica de dedilhado, eu peguei uma dica do garoto travesso com quem eu
cresci. Estar tão perto de todos os três Musos fez meu corpo se iluminar e meu
estômago revirar de maneiras que eu não entendia. Desviei meu olhar sobre a mesa,
mas os olhos escuros de Titus se fixaram nos meus com uma intensidade inquietante,
como se ele não visse nada de errado em me abrir para estudar minhas entranhas.
Eu decidi que olhar para a minha comida era a melhor opção. Entre olhares para cima
da minha salada, notei a loira mel (Heather?) pendurada em cada palavra de Dorien,
concordando com o que quer que ele dissesse.

Sim, Dorien. Claro, Dorien. Vou polir seu pau para você, Dorien...

“Opa.” Dorien derrubou meu garfo sobre a beirada da mesa. “Deixe-me pegar
isso para você.”

Está tudo bem. Eu queria dizer, não querendo ele mais perto de mim. Mas minha
boca não funcionou. Esta sala estava muito quente.

Quando Dorien se inclinou para alcançar debaixo da mesa, sua cabeça se


aproximou da minha coxa. Sua respiração fez cócegas na pele nua atrás do meu
joelho, onde meu jeans havia rasgado. Eu respirei fundo. O fogo atravessou meus
membros.

Dorien hesitou, seu corpo enrijecendo. Uma mecha de cabelo escuro caiu para
frente, roçando minha coxa. Ele virou a cabeça para olhar para mim, seus lábios
perigosamente perto de... de... lugares onde um cara tão gostoso como ele nunca
esteve perto antes. Meu corpo reagiu instantaneamente, todo o fogo dentro de mim
convergindo entre minhas pernas. Eu apertei minhas coxas juntas, mas era tarde
demais. Um leve suspiro escapou dos meus lábios... Um suspiro que Dorien
Valencourt ouviu.

Os lábios de Dorien se curvaram em um sorriso. Ele sabia exatamente o que


estava fazendo, pairando sobre mim assim. Que filho da puta.

“Você gosta disso?” Ele arqueou uma sobrancelha perfeita. Minha blusa tinha
subido, e seus lábios sopraram ar quente contra minha pele já queimada. Eu quase
podia imaginá-lo como o Dorien que eu costumava conhecer. Quase. Se não fosse por
aquela frieza em seus olhos.

“Eu gostaria do meu garfo de volta,” eu consegui engasgar.

Dorien sentou-se, deixando-me corada. Ele largou o garfo no meu prato e se


inclinou para mim. A penugem do tapete rolou na minha comida, mas eu não me
importei. Eu odiava o chiado que varreu minhas veias enquanto sua respiração fazia
cócegas na minha orelha.

“Você não pertence a este lugar, Duende,” ele sussurrou. “E nós vamos ter
certeza de que você saiba disso.”
Porra.

Faye De Winter.

Porra fodida.

Minha mente girou, e lutei para expulsar qualquer pensamento coerente que
não fosse a montanha de problemas que eu trouxe para a minha própria cabeça.
Quando Madame Usher me informou que o Mestre desejava oferecer um lugar para
Faye De Winter, eu disse a mim mesmo que não importava. Eu parei de me importar
com Faye há muito tempo. Eu seria capaz de fazer o que tinha que fazer para manter
meu lugar em Manderley.

Eu menti para a Madame.

Eu menti para mim mesmo.

Ao meu lado, Faye se debruçou sobre seu prato, sua pele deliciosamente
próxima. Ela olhava para sua salada como se a comida guardasse todos os mistérios
do universo. O vinho manchava seus lábios com um toque de vermelho, como o rubor
de um beijo intenso.

Minha pele se arrepiou com o cheiro dela. Lavanda e flor de laranjeira, um


perfume distinto. O cheiro da minha infância. De outro tempo, quando eu era feliz,
livre, não preso em um pesadelo que eu mesmo havia criado.

Eu me preparei para ver Faye novamente, mas no minuto em que ela apareceu
na minha porta, tudo foi para o inferno. Eu fiz aquele truque no quarto para despistá-
la, para mostrar a ela desde o nosso primeiro encontro que ela não era nada para
mim, mas isso também era mentira. Eu soube assim que bati a porta e meu pau
ganhou vida em minhas mãos.

Então ela entrou na sala de jantar com aquele desafio brilhando em seus olhos,
suas roupas todas rasgadas e sujas e exalando uma atitude de 'não foda comigo' por
todos os poros. Ela usava sua herança meio mexicana com orgulho, aquela queda de
cachos pretos nas costas e aquele nariz ligeiramente largo virado para cima, como se
ela fosse boa demais para nós, e não o contrário.

Minha Faye. Minha Duende.

Quanto mais cedo ela saísse de Manderley, melhor.

Heather deixou seu olhar cair para o copo de Faye, então se virou para me
encarar, a pergunta óbvia em seu rosto. Eu chutei o pé dela por baixo da mesa.
Heather poderia se foder se ela esperava que eu me explicasse para ela. Meu pequeno
truque do garfo não fazia parte do plano, mas funcionou. Bem demais. Cerrei os
dentes quando me lembrei do pequeno suspiro de Faye, uma fenda na armadura que
ela usava, uma dica de que o fogo escaldando minha pele também a estava queimando
por dentro.

Eu pretendia desarmar Faye, tirar esse desafio de seu rosto, mas o cheiro dela...
Fez minha cabeça girar, de um jeito bom, o que era ruim. Meu pau estava duro
novamente.

Assuma o controle, Dorien. Isso não é sobre você.

Tentei me concentrar na discussão, qualquer coisa para tirar minha mente de


Faye. Percebi que Titus tinha aquele brilho nos olhos quando alguém novo entrava
em sua vida. Ele sempre quis que todos o amassem, e eles geralmente o amavam. Só
espero que seu desejo de ser necessário não estrague nosso plano.

Mestre Radcliffe voltou sua atenção para Elena e a peça para o próximo recital.
Enquanto Elena discutia os méritos das diferentes escolhas de músicas em sua voz
ofegante, eu peguei o olhar de seu irmão. Ivan estava sentado ereto, e a toxidade em
seus olhos poderia ter envenenado a todos nós.
De todos os alunos, Ivan tinha mais a perder para Faye, e isso significava
alguma coisa. Eu tinha visto aquele olhar em seus olhos antes. Uma vez, em nossa
última turnê, estávamos atrasados em um aeroporto na França por dezesseis horas,
e a companhia aérea só poderia nos levar ao Canadá a tempo para o nosso show se
Elena pegasse um voo mais tarde. Ivan deixou que certos fatos fossem conhecidos com
sua típica personalidade romena bruta, e dez minutos depois nós quatro tínhamos
assentos na primeira classe.

Eu interrompi a discussão com minha opinião, tentando me inserir entre Elena


e Radcliffe, para levar a conversa a algum lugar que deixasse Ivan menos nervoso.
Chutei Heather novamente, e ela finalmente entendeu a dica e parou de olhar para
Faye por tempo suficiente para contribuir com a conversa.

Espetei o cordeiro no meu prato, mastigando com força. Parecia incrível, mas
tudo que eu podia provar era papelão. Papelão aromatizado com lavanda e flor de
laranjeira. Incapaz de me conter, estendi a mão sobre a mesa para pegar a pimenta e
dei uma olhada em Faye. Ela tomou um gole de vinho novamente, seu cabelo cobrindo
seu rosto, uma parede de proteção contra o mundo e contra mim.

Eu me odiava pelo que estava prestes a fazer, mas a odiava ainda mais.

Dez anos atrás, eu disse a Faye De Winter que nunca mais queria vê-la. Agora,
ela rasgava minha vida como um maldito furacão. Se eu não atacasse primeiro, ela
destruiria tudo. Esse cheiro já estava me arrastando para baixo. Aqueles olhos com
aro de fogo queimariam tudo pelo que trabalhei. Ela me arruinaria.

Eu tinha que arruiná-la primeiro.


Você não pertence a esse lugar, Faye. E nós vamos ter certeza de que você saiba
disso.

As palavras arrepiantes de Dorien me assombraram a tarde toda enquanto


minha náusea piorava, misturando-se com os avisos de Harrison e visões da última
empregada esparramada ao pé da escada. Meu estômago revirou enquanto eu
empilhava a máquina de lavar louça, e continuei olhando por cima do ombro,
esperando ver Dorien ou um dos outros alunos se esgueirando atrás de mim,
brandindo uma faca.

Quando terminei na cozinha, a casa cantava com notas fracas e roubadas de


perfeição enquanto os alunos praticavam. Eu caminhei de volta para o meu quarto
para vestir um par de calças pretas e pegar meu violino. Durante o dia, o sótão aquecia
a uma temperatura insuportável, uma combinação de construção pré-vitoriana e calor
subindo pela casa. Abri a janela e fui ao banheiro jogar água fria no rosto, mas não
fez nada para parar meu estômago embrulhado ou o rubor de calor doentio se
acumulando em minhas bochechas, calor que não tinha nada a ver com o sótão
quente e tudo a ver com aqueles três caras irritantemente lindos que já pareciam me
odiar sem motivo.

Eu estava descendo as escadas para encontrar um espaço livre para praticar


quando Mestre Radcliffe saiu da biblioteca de música.

“Faye, gostaria de saber se você poderia me acompanhar ao salão de baile,”


disse ele. “Eu gostaria de ouvir você tocar, para que possamos ter uma noção de onde
você está em seu aprendizado. Não é sempre que eu ensino alunos com seu...
treinamento pouco ortodoxo.”
Ele quis dizer minha falta de treinamento, mas ele foi educado o suficiente para
não dizer isso. Até agora, o Mestre era a única pessoa nesta casa mal-assombrada que
me tratava como um ser humano de verdade. Mas eu ainda o achava intimidador, ele
tinha sido um superstar uma década atrás, mas ele desistiu de tudo abruptamente
para ensinar em Manderley. Havia rumores de um colapso mental por causa da
pressão de sua carreira, e de um escândalo abafado, mas seus olhos castanhos
quentes olhando para mim por trás de óculos bifocais traíam apenas bondade, e eu
precisava de um pouco disso agora.

“Certo. Eu adoraria tocar para você.”

Mestre Radcliffe estendeu sua mão e enrolei meu braço no dele, entregando-me
ao modo antiquado e cavalheiresco com o qual ele me acompanhou pela escadaria
principal. Manderley já parecia mesmo uma casa parada no tempo.

Ele empurrou as portas do salão de baile. Entrei, meu estômago revirando


enquanto meu olhar se fixava nos lustres de cristal pendurados no teto
impossivelmente alto.

“Está sala tem quase o dobro da altura convencional.” Mestre Radcliffe abriu as
cortinas de veludo, lançando um quadrado de luz cinzenta sobre o piano. Do lado de
fora das janelas altas, a floresta invadia, árvores estendendo dedos vigorosos em
direção às janelas. “Muitas vezes imagino as festas e bailes alegres realizados nesta
sala, as damas em seus vestidos de musselina dançando, as dinastias forjadas e os
escândalos sussurrados entre fofocas. Esse é o meu cômodo favorito da casa. Como
você logo descobrirá, a acústica é excelente.”

Ele se sentou no banco do piano, cruzando as pernas e as mãos no colo. “Por


favor, me dê algumas de suas músicas favoritas do seu repertório. Isso me permitirá
ver seus pontos fortes e fracos. Se você deseja que eu a acompanhe, basta pedir.” Ele
tocou o primeiro compasso de St Matthew Passion de Bach. “Ainda tenho um pouco
de fogo em meus dedos.”

Apoiei o violino no queixo e comecei a afinar. Os nervos formigavam ao longo da


minha espinha, e meu estômago embrulhou. Talvez pela primeira vez, tenha me
deparado com o que significava estar em uma escola como está. Eu sabia que estaria
atrás dos outros alunos, mas eu estava tão focada no dinheiro de Madame Usher
financiando os cuidados de mamãe que eu não tinha considerado como seria tocar
para um maestro, ver a decepção gravada em suas feições.

Enquanto eu sintonizava, Mestre Radcliffe fazia comentários contínuos sobre


meu pai. “... o dedilhado mais requintado que eu já vi. Ele teria se tornado um dos
maiores virtuosos do nosso tempo, se ao menos ele... oh, querida.” Ele estremeceu
quando eu fiz uma nota arranhada. “Você precisa de mais tempo, talvez?”

Eu preciso que você pare de me comparar com aquele bastardo. Mas, em vez
disso, eu sorri. “Está tudo bem. É agradável ouvir essas coisas de alguém que
conheceu meu pai.”

Agradável como um buraco de bala na cabeça.

“Ele veio para a minha escola de verão em seu ano inaugural,” disse Mestre
Radcliffe. “Ele teria ganhado uma bolsa integral se não estivesse tão distraído por...
Atividades sociais. Ele permitiu que outros alunos ultrapassassem a frente dele.
Espero que não cometa o mesmo erro.”

“Não pretendo.” Para calá-lo, lancei-me na Sonata para violino nº 3 de Brahms.

Eu adorava essa peça melancólica e geralmente a tocava bem, mas o peso do


legado do meu pai me arrastava pelo braço. Eu soube assim que bati no primeiro
arpejo que estava lenta demais. Meus dedos endureceram nas cordas. Fechei os olhos
para não ver a boca do Mestre Radcliffe se curvar com decepção.

No meio da minha tentativa desajeitada de emular Winter de Vivaldi, a porta se


abriu. Todos os seis alunos entraram para ficar ao longo da parede. Titus era uma
montanha alta no canto da sala, sua energia sombria sugando os últimos resquícios
de vida da minha performance e jogando-os contra seu corpo. As expressões dos
gêmeos eram inexpressivas, duas bonecas de porcelana sentadas em uma prateleira,
silenciosamente me julgando. Os olhos de Dorien perfuraram os meus, seu sorriso
largo, sombrio e triunfante.
Era um sorriso que dizia: Eu vou comer você no café da manhã.

Meu estômago torceu enquanto a humilhação queimava em minhas bochechas.


Eles não deviam estar aqui. Eles não podiam me ver tocar assim. Eu tinha visto o pau
de Dorien em toda a sua glória, mas eu era a única despida agora.

Quando me virei de costas para os alunos, meu estômago borbulhou em


protesto. Bílis quente subiu na minha garganta. Engoli em seco, mas a sensação só
ficou mais forte.

Talvez não fossem os nervos revirando meu estômago. Talvez eu fosse vomitar.

Meus dedos vacilaram nas cordas enquanto eu estremecia contra a bile


subindo. Uma onda de náusea me atingiu, me virando até perder o pouco foco que me
restava. Eu tateei meu caminho através do movimento final, não ousando me curvar
para não vomitar nos sapatos do Mestre Radcliffe.

Quando abaixei os braços, minhas mãos tremiam. Eu sabia que tinha tocado
mal. Se eu quisesse provar para Dorien e sua legião que eu merecia meu lugar aqui,
então eu tinha fodido tudo.

“Você é promissora, mas sua técnica carece de precisão.” Mestre Radcliffe se


levantou. Ele pegou minha mão, virando meus dedos e os enrolando em uma posição
estranha. Eu me apoiei nele mais do que deveria quando outra onda de náusea me
atingiu. “Isso é o que vem de ter uma educação de segunda categoria. Pode ser tarde
demais para reparar o dano. Teremos que trabalhar muito juntos para aprimorar sua
técnica.”

Atrás de mim, Titus bufou. Mestre Radcliffe olhou por cima do ombro, pela
primeira vez notando nossa audiência. “Você não deveria estar ensaiando seu Elgar,
Titus?” Ele comentou.

Com um lampejo de seus olhos de obsidiana, as bordas da meia-noite


desaparecendo nas sombras do salão de baile, Titus se levantou. “Desculpe, mestre.
Estávamos curiosos sobre a nova garota.”

Dorien também se levantou. “Não vamos perturbá-lo mais.”


Interessante. Dorien podia se pavonear como se fosse o dono deste lugar, mas
respeitava o Mestre Radcliffe o suficiente para ouvi-lo. Guardei essa informação para
mais tarde. Qualquer vantagem potencial que eu tivesse sobre Dorien Valencourt seria
útil.

Mas não tão útil quanto um banheiro. Agarrei meu estômago protestando
quando a bile atingiu o fundo da minha garganta.

“Com licença?” Eu consegui sufocar. Mestre Radcliffe assentiu. Joguei meu


violino no sofá e corri trêmula da sala.

“Ela nem se preocupou em guardar seu instrumento,” eu ouvi Heather


sussurrar enquanto abria a porta. “Lixos de trailers como ela não respeitam a arte de
verdade.”

Por sorte, o banheiro do térreo ficava do outro lado do corredor. Bati a porta
atrás de mim e me joguei em um lavabo antiquado.

Enquanto eu enxugava meus olhos e cuspia repetidamente na pia, meus


pensamentos giravam mais rápido que meu estômago. Por que me sinto tão doente
assim? Eu estava bem no caminho para a Academia, e nunca tive nenhum tipo de
medo do palco. Nervos, sim, mas nada que me deixasse fisicamente doente. Eu só
comecei a me sentir estranha depois do almoço, e não pode ter sido nada que eu comi
porque eu cozinhei tudo...

O vinho.

Achei o gosto nojento, mas atribuí isso a não saber nada sobre vinhos caros.
Lembrei-me de outra coisa, os olhos de Dorien brilhando enquanto ele abria uma nova
garrafa. Só para mim.

Ele colocou algo no vinho.

Maldito idiota.

E eu esvaziei o copo inteiro como uma tola, pensando que eles estavam me
testando. Eu inclinei minha bochecha contra o espelho frio, não me importando que
eu tivesse deixado uma mancha que eu teria que limpar mais tarde.
Quando saí do banheiro, Heather e Titus esperavam no corredor. Heather sorriu
enquanto eu passava. “Eu também ficaria doente se tocasse tão mal. Um desperdício
de lugar na academia. O triturador de lixo toca melhor do que você, e é por isso que a
chamamos de lixo.”

Passei por ela sem responder. O corpo imóvel de Titus se elevou sobre mim
enquanto eu ia direto para o quadro de avisos para ver se alguma das salas de prática
estava livre. Nenhuma estava. Na verdade, os quartos estavam todos reservados para
o resto da semana. Apressadamente, rabisquei meu nome nas duas lacunas restantes
na lista da próxima semana. Eu sabia que precisava de toda a prática que pudesse
obter.

Peguei meu violino no salão de baile e voltei para o sótão, escalando. E por
escalando, quero dizer que rastejei em minhas mãos e joelhos enquanto me dobrava
em agonia. Meu telefone ainda estava na cama entre meus pertences espalhados.
Havia uma mensagem do hospital dizendo que mamãe havia chegado em segurança.
Eu estava muito ligada para terminar de desempacotar, então arrastei uma cadeira
para debaixo da janela, virando-a para poder encarar o jardim inclinado e coberto de
mato e o riacho cercado pela natureza, os topos das montanhas escondidos na
neblina.

Eu coloquei o violino contra o meu queixo e puxei o arco pelas cordas, desejando
poder usá-lo para cortar o lindo pescoço estúpido de Dorien.

Eu ignorei a dor no meu estômago enquanto me lançava em uma peça rápida,


construindo um tremolo4 (arrastando o arco para cima e para baixo) com meu pulso
na parte superior do arco, então movendo para o meio até que o arco começasse a
balançar. Quanto mais eu pressionava, mais o arco quicava e mais rápido eu

Ornamento que consiste na rápida repetição de um ou mais sons, ger. sem divisão rítmica,
4

para produzir um efeito trêmulo; trêmulo .


conseguia tocar. Minha cabeça balançou enquanto eu marcava o tempo, as notas
gritando ecoando a dor ofegante na minha barriga.

É assim que eu deveria ter tocado para Mestre Radcliffe, se Dorien Valencourt
não tivesse me sabotado.

Enquanto eu tocava, meus olhos foram para a janela. A floresta, galhos


alcançando a casa como mãos estendidas, esperavam para me agarrar e me dar as
boas-vindas. Era o tipo de floresta que aparecia em um livro infantil, como as
ilustrações em um antigo exemplar dos Contos de Fadas de Grimm que meu pai havia
me dado, cheio de monstros assustadores e olhos amarelos que observavam você.

Afastei os pensamentos melancólicos. Acho que os monstros mais assustadores


estão dentro dessa casa.

Espere, o que é aquilo?

Uma figura atravessou o gramado, em direção às árvores. Um isqueiro piscou,


e uma nuvem de fumaça circulou uma cabeça de cabelos pretos lisos. Reconheci
tatuagens estilizadas em seus ombros nus. Aroha.

Eu me pergunto onde será que ela está indo?

Eu ansiava por ir atrás dela, mesmo que não fosse por outro motivo além de
fumar um cigarro. Atrás de mim, meu alarme tocou.

Porra. Já se passaram duas horas? Pego minhas coisas e vou para a cozinha.
Não havia tempo para cigarros quando você tinha poodles ricos para servir.
“O que você acha da nova garota?” Entrei no quarto de Dorien e bati na porta
com o pé. Titus já estava lá, chutando a parede para poder girar a cadeira em círculos
rápidos. Ele é uma pessoa grande demais para ser tão enérgico o tempo todo.

Dorien ergueu os olhos de onde estava deitado na cama, os olhos brilhando.

“Você está atrasado.”

“A lição de Elena acabou há poucos minutos.” Dorien não perguntou por que
eu estava na aula particular da minha irmã, ou por que eu não podia deixá-la lá
sozinha. Ele não precisava, e eu apreciei isso. Dorien podia ser um babaca, mas ele
guardava meus segredos como se fossem dele. Eu me joguei na ponta da cama,
pegando um fio solto na colcha bordada. “Qual é o veredicto sobre a Srta. De Winter?”

“Terrível violinista, mas completamente fodível.” Titus empurrou a cadeira até a


janela e levantou o caixilho o mais alto que pôde. Ele se inclinou para fora e acendeu
um baseado. Fumaça enrolou em torno de seus lábios quando ele o estendeu para
mim.

Eu balancei minha cabeça. Eu precisava daquela erva para tirar Faye De Winter
da minha cabeça, mas Elena odiava e ela sentiria o cheiro em mim. “Eu concordo.”

“Eu não colocaria meu pau nela. Vocês não sabem por onde ela andou.” Dorien
se arrastou para o canto da cama e se inclinou em direção à janela, pegando o baseado
de Titus e dando uma tragada profunda.

Eu não gostei do olhar nos olhos de Dorien. Ele estava com a mesma aparência
da noite em que me entregou aquelas passagens de avião em Praga, a noite em que
ele fodeu nossas vidas para sempre. Era a mesma raiva assassina que ardeu quando
a polícia o levou para interrogatório após a queda de Clare.
Observar o rosto de Faye enquanto ela lutava através da peça de Vivaldi deveria
ter me dado satisfação. Seria muito fácil quebrá-la e continuar com as nossas vidas.
Mas tudo o que senti foi uma dor surda no meu estômago. Era uma dor nascida do
fracasso. Em seus olhos brilhava o desafio que corria em minhas veias desde Praga,
um eco do homem que eu poderia ter sido. Agora eu vendi minha alma ao diabo para
salvar minha irmã, e fiz de nós dois seus escravos. Nem mesmo a música estava
fazendo alguma coisa por mim nos últimos tempos. Fiquei entorpecido porque o
entorpecimento era a única maneira de conseguir passar por isso, de conciliar as
coisas que eu tinha que fazer.

Nada me afetava, exceto o sorriso de Elena. Eu faria qualquer coisa para sempre
ver aquele sorriso.

“Você já a conhecia, certo?” Titus pegou o baseado de Dorien e curvou seus


lábios gordos ao redor dele, tirando uma trancinha do rosto. “Você costumava ter
aulas com ela.”

“Quando meus pais eram grosseiros o suficiente para me deixar ficar com a
plebe, sim.” Dorien se recostou na cama e cruzou os braços atrás da cabeça. “Ela
também era medíocre na época.”

Mas apesar do que ele disse, todos nós sabíamos a verdade. Faye De Winter era
tudo, menos medíocre. Era por isso que ela tinha que ir embora.

“Nós vamos ter que tocar com ela nos conjuntos.” Titus estava se convencendo
a agir. Ele precisava acreditar na mentira, e ele contaria a si mesmo esse conto de
fadas até que se tornasse um fato em sua mente. “Ela vai derrubar a reputação de
toda a escola, se Madame Usher trazê-la aqui ainda não conseguiu fazer isso.”

“Não irá chegar a esse ponto.” Os olhos de Dorien se fixaram no teto. Ele fez um
bom show fingindo que não se importava, mas aquele olhar assombrado em seus olhos
o denunciou, era o mesmo olhar que ele tinha quando se sentava ao piano, quando a
música o dominava, e era a razão pela qual as mulheres afluíam mais a ele do que a
nós. Faye De Winter estava mexendo com Dorien, e isso por si só era interessante.
“Precisamos nos livrar dela.”
Eu balancei minha cabeça. “Porque se importar? Ela mesma vai se eliminar a
julgar pelo seu domínio magistral de Vivaldi.”

Titus riu. Dorien, não.

“É o primeiro dia dela. Provavelmente foram os nervos.” Dorien acenou com uma
garrafa de vidro empoeirada na frente do meu rosto. “E o xarope de ipeca que eu
coloquei no vinho dela.”

“O quê?”

“É uma coisa que os vitorianos costumavam usar se alguém fosse envenenado,


para induzir o vômito, sabe? Clare encontrou todas essas estranhas garrafas velhas
no baú do quarto dela. Eu guardei este, pensei que poderia ser útil um dia.”

Titus deu um tapinha nas costas de Dorien enquanto ele passava o baseado de
volta. “Você é um merda. Não é à toa que ela correu tão rápido.”

“Isso foi fodidamente hilário.” Mas Dorien é perigoso. Agora ele está do meu lado,
mas nunca posso esquecer que ele poderia fazer isso com Elena se eu o contrariar.

“Foi ideia de Heather, e temos muito mais de onde isso veio. Garantiremos que
Faye deixe Manderley até o final do semestre. Nada vai se voltar contra nós.” Dorien
sentou-se novamente, pegando o baseado de Titus e pendurando-o em seus lábios.
“Este é o nosso território. Somos invencíveis.”

Invencíveis. Eu costumava acreditar nisso. Nós três tocando em shows


esgotados em Londres, Viena e Berlim, a imprensa nos apelidando de Bad Boys do
Barroco e involuntariamente nos banhando em uma montanha de mulheres bonitas,
a promessa de coisas maiores e mais brilhantes por vir. Eu com certeza me senti
invencível na época, mas Dorien e eu fodemos tudo, e agora éramos todos prisioneiros.

“Aqui está o que Heather e eu decidimos: Ninguém deve falar com ela. Não a
reconheçam. Não a insultem. Apenas ajam como se ela não estivesse lá.”

“Espere, por que Heather está nisso?” Olhei para Dorien.


Ele desviou o olhar. “Não se preocupe, Nicolescu. Ela tem uma participação
nisso também. Heather manterá as preciosas mãos de Elena, limpas. Para vocês, Faye
é um fantasma. Nós cuidaremos do resto.”

A ira de Dorien era uma coisa. Dorien fazendo planos com Heather e não
compartilhando conosco? Um arrepio percorreu minha espinha.

Era melhor que Faye De Winter tome cuidado, Dorien a tinha em sua mira, e
ele planejava brincar com ela. O Príncipe das Trevas gostava de quebrar seus
brinquedos.
Depois de outra refeição excruciante com os alunos, durante a qual todos
agiram como se eu não existisse, voltei para o meu quarto. Meu estômago e garganta
ainda queimavam com o que Dorien colocou no meu vinho, e eu mal belisquei minha
comida. Assim que pude pedir licença, carreguei a máquina de lavar louça e escapei
para o meu quarto.

O ar abafado do sótão grudava nas minhas roupas. Abri a janela para deixar
uma brisa fresca circular. Vozes e risos correram para me cumprimentar. Olhei para
baixo para ver os alunos reunidos em torno de uma mesa na beira do jardim. Heather
olhou para cima e me viu. Seu nariz se ergueu como se eu exalasse um cheiro ruim.
Suspirando, me afastei da janela, joguei minhas roupas em uma cadeira e desabei na
cama de calcinha, deixando a brisa escovar minha pele úmida.

As cólicas estomacais haviam diminuído, substituídas por uma dor surda. Seja
lá o que quer que Dorien tivesse colocado no vinho, parecia que o efeito passaria pela
manhã. Mas se eles estavam adulterando meu vinho logo no primeiro dia, que novo
horror me esperaria amanhã?

Peguei meu telefone da minha bolsa e estava escrevendo uma mensagem para
mamãe quando me lembrei que ela não poderia responder porque estava em coma.
Minha linda e vibrante mãe, que deixava homens adultos de joelhos em salas de
reuniões e em pistas de dança, foi acometida por uma doença misteriosa, e eu não
tinha mais ninguém com quem conversar. Não achava que ia fazer amigos nesta escola
também.

Em vez disso, liguei para o hospital e conversei com a enfermeira de plantão.


Mamãe foi bem acomodada, Madame Usher cumpriu sua palavra e a instalou no
melhor quarto deles. Não houve melhora em seu estado, no entanto.
Percorri minha lista de contatos, procurando alguém para ligar. Eu tinha alguns
amigos com quem eu saía no ensino médio, principalmente colegas estudantes de
música, mas eu passei a ignorá-los quando mamãe ficou doente. Amelia mudou-se
para Boston para estudar arquitetura, e John estava fazendo um mochilão pela
Europa. Eu tinha visto suas fotos no Facebook, mas nós realmente não conversamos
mais. Eu tinha uma boa desculpa, mas eu ainda era uma amiga de merda. Eu não
estava lá para eles desde que a escola terminou, e eu não podia ligar para eles agora
quando eu precisava deles.

Foda-se. Joguei meu telefone na cama com nojo. Eu era filha de Marguerite De
Winter. Eu poderia lidar com algumas doninhas ricas.

Eu rolei e peguei o livro surrado que eu enfiei na minha bolsa para a viagem de
carro. Era um romance de harém reverso ambientado em uma escola gótica
assustadora chamada Miskatonic Prep. A personagem principal, Hazel, era intimidada
pelos três Reis da escola, mas ela se mantém firme e há algo nela que não era 100%
normal...

Creak.

Eu empurro minha cabeça para cima com o barulho. “Olá?”

Creak, creak, creaaaaak.

Parecem passos.

Joguei uma camiseta sobre meus seios nus e fui até a porta. Abri com cuidado,
esperando ver alguém no patamar. O quadrado de luz da minha porta aberta iluminou
o espaço estreito. Ninguém estava lá.

Devo ter imaginado.

Fechei a porta e voltei para a cama. Mas assim que afundei nos lençóis, o
rangido recomeçou. Fiz uma pausa, ouvindo. É apenas o barulho normal de uma casa
antiga, nada para se preocupar...

Creak, creak, creeeeak.


Não, isso são passos.

Definitivamente passos.

Neste andar.

Deslizei para fora da cama, silenciosamente desta vez, pegando o abajur da


mesa de cabeceira e puxando o fio da parede. O rangido continuou enquanto eu
cruzava a sala e me encostava na porta, levantando a lâmpada acima da minha cabeça
enquanto meus dedos se fechavam ao redor da maçaneta.

Creak, crea...

“Foda-se,” eu gritei enquanto abria a porta e saltava para a escuridão.

O rangido parou.

Minha respiração congelou.

O patamar estava completamente vazio.

Girei em um círculo, então me inclinei para verificar a escada. Ninguém lá


também. Meu sangue correu em meus ouvidos enquanto meus dedos apertavam a
lâmpada. “Dorien, se for você, vou relatar isso como assédio. Eu não me importo com
o quão rico seu pai é.”

O silêncio me respondeu. Fiquei de pé até que meus dedos suados não


pudessem mais segurar a lâmpada, tentando descobrir o que diabos estava
acontecendo.

De volta ao meu quarto, apaguei o abajur e coloquei minha cabeça para fora da
janela. Lá embaixo, os alunos estavam reunidos em torno de uma mesa de ferro
forjado, passando uma garrafa de alguma coisa ao redor. Eu reconheci todos eles, os
gêmeos, Heather, Aroha, Titus... e Dorien.

Como ele voltou lá para fora tão rapidamente?

Como se sentisse minha acusação silenciosa, Dorien olhou para cima. Quando
seus olhos encontraram os meus, ele me lançou um sorriso que era todo dentes e
ameaça. Ele passou a mão pelo cabelo; o luar pintava suas mechas escuras com tons
de ruivo e carmesim. Uma onda de calor percorreu meu corpo, e eu me odiei por isso.

Eu não podia ser atraída por Dorien Valencourt, ou qualquer um dos Musos,
especialmente quando eles estavam voltando sua ira contra mim.

Com um rugido de frustração, fechei a janela e puxei a cortina. Uma onda de


exaustão tomou conta de mim. Eu só estava em Manderley há um dia e já queria ir
embora. Eu me joguei na cama e me remexi debaixo das cobertas.

Mas mesmo que meu corpo doesse de cansaço, eu não conseguia dormir. Minha
pele se arrepiou com a sensação de estar sendo observada. Acendi a luz, vasculhando
a sala vazia e depois a apaguei. Mas a sensação não foi embora.

E então, assim que minhas pálpebras se fecharam, eu ouvi novamente.

O rangido de passos contra as tábuas do assoalho. Mais lento agora, mais


deliberado e cuidadoso. Só que desta vez, eu poderia dizer que eles não estavam vindo
do lado de fora da minha porta.

Eles ecoavam ao longo da parede em frente à minha cama.

Os passos vinham do depósito trancado.


Briiing.

Esfreguei os olhos, tentando tirar meu cérebro de um sonho perturbador. Que


horas são? Estou atrasada para o meu turno?

Enquanto meus olhos se ajustavam à escuridão, eu olhei para o meu ambiente


esparso com confusão. Nosso apartamento foi roubado? Merda, mamãe está bem?
Ela…

Então me lembrei. Mamãe estava em seu novo hospital, recebendo os melhores


cuidados que o dinheiro podia comprar. E eu estava no sótão da Manderley Academy,
prestes a começar meus deveres matinais como a nova empregada. Não havia nem luz
lá fora, e eu tinha que estar lá embaixo para fazer o café da manhã e limpar os quartos
antes que as aulas do dia começassem.

Eu não ouvi Dorien ou quem ele enviou para se esconder no depósito


novamente, provavelmente porque eu enterrei meu rosto no travesseiro e me recusei
a reconhecer sua façanha infantil. Mas eu fiquei acordada por horas, meus sentidos
em alerta para o próximo truque malvado. A velha casa rangeu e gemeu ao meu redor,
cada som agitando uma nova onda de nervos, e cada rajada de vento sacudiu a vidraça
com um mau presságio.

Agora, à luz quente da manhã, eu não estava com medo. Eu estava chateada
como o inferno.

Coloquei o vestido preto liso que Madame Usher me deu como uniforme de
empregada. A lã arranhava minha pele. Ela está investida nessa coisa de servidão um
pouco grosseiramente demais. O vestido era apenas mais uma de suas críticas sutis
ao meu status, me marcando como diferente dos outros alunos, que usavam roupas
de grife e possuíam aqueles carros caros estacionados do lado de fora.

O zíper ficou preso. Agarrei-o e pulei para cima e para baixo, puxando até que
ele se soltou. O vestido estava um pouco apertado em meus seios, mas fora isso, não
era um ajuste ruim. Era muito pouco lisonjeiro, me fazendo parecer ampla e quadrada
em vez de acentuar a forma de ampulheta dos meus quadris, mas eu não estava em
Manderley para ser admirada. Eu estava aqui para tocar música e dar à minha mãe
os cuidados que ela precisava.

Falando nisso... Peguei meu telefone pela centésima vez e verifiquei se não havia
perdido uma mensagem do hospital dizendo que ela havia acordado. Mas não, o
universo não era assim tão gentil comigo.

Vestida, tudo que eu precisava era de um pouco de base e um pouco de rímel e


estaria pronta para enfrentar os Musos. Abri a porta do banheiro.

E gritei.

Rabiscadas em meu espelho em vermelho-sangue estavam as palavras: DEIXE


MANDERLEY.
O grito de Faye ecoou pela mansão. Olhei para o dossel da minha cama, tecido
vermelho coberto de estrelas douradas, e imaginei que tinha o superpoder de ver
através de objetos sólidos. Descasquei o tecido, o teto e as tábuas do piso em minha
mente e imaginei aqueles olhos arregalados de terror, seu cabelo selvagem escorrendo
pelas costas enquanto ela batia a porta do banheiro.

Meu pau se mexeu, e eu envolvi meus dedos ao redor dele. Fechei meus olhos.
E imaginei que ela estivesse gritando meu nome.

Faye De Winter.

Tudo nela me intrigava. E eu não tenho estado intrigado há muito tempo.


Manderley me aborrecia até a morte, os móveis velhos e duros, as composições
monótonas, as horas intermináveis praticando as mesmas peças repetidamente. Eu
ansiava por estar de volta à estrada, uma nova cidade a cada noite, uma nova garota
na minha cama, os aplausos da plateia me lavando, afogando minhas veias em uma
vida pulsante e emocionante.

Em vez disso, eu estava preso aqui, a quilômetros de qualquer coisa


interessante. A única coisa que me divertia era a vingança de Dorien contra a novata.
Quando Faye entrou na sala de jantar carregando aquelas bandejas, vi algo em seus
olhos que reconheci, um animal selvagem preso atrás das grades. Ela era muito mais
do que suas roupas sujas e seu desempenho medíocre deixavam transparecer. Ela era
mais do que o fantasma do passado de Dorien, e se ele tirasse a cabeça da bunda por
um segundo, ele seria capaz de ver isso também.

Não que eu quisesse que ele visse. Eu queria Faye só para mim.
Minha mão se moveu mais rápido, e meu pau estremeceu. No andar de cima,
alguém pisava no piso do sótão. Imaginei Faye como eu a tinha visto na noite passada
enquanto eu pairava em sua porta, a chave enfiada na minha mão, esperando Heather
terminar no banheiro dela. O luar riscava a cama pela janela aberta, dançando
sombras em suas feições serenas. O cabelo de corvo se espalhou pelo travesseiro,
caindo como ondas de um rio de seda sobre o edredom. Olhar para ela despertou algo
dentro de mim, uma mistura de fascínio, desejo e repulsa por mim mesmo. Meus pais
sempre me avisaram que Dorien era uma má influência, e agora aqui estava eu,
entrando sorrateiramente no quarto de uma garota e vendo-a dormir como um
perseguidor esquisito.

Pensei em sacudir o tornozelo que espreitava por baixo dos lençóis. Eu queria
que Faye acordasse, nos visse em seu quarto, gritasse e se enfurecesse, acordando a
casa inteira. Pelo menos iria sacudir as teias de aranha deste lugar.

Eu queria que ela se jogasse em mim, queria sentir sua pele quente contra a
minha enquanto seus punhos me esmurravam ou seus lábios me devoravam.
Qualquer opção funcionaria para mim, embora meu pau preferisse a última.

Em vez disso, eu me virei e segui Heather para fora. Trancamos a porta de Faye
atrás de nós e voltamos para nossos quartos.

E agora eu estava me masturbando enquanto Faye surtava com a mensagem


que deixamos em seu quarto trancado.

Eu sou uma pessoa horrível.

Minha respiração saía em suspiros rápidos enquanto eu bombeava mais forte.


Porra, porra, porra. Isso é doente. É nojento. Mas é o mais perto que vou chegar de Faye
De Winter.

Eu estava proibido de falar com ela. Por ordens de Dorien. Aquele cara esteve lá
para mim mais vezes do que eu poderia contar. Eu não gostava de jogar dentro das
regras, mas essa era uma que eu tinha que obedecer.
Meu corpo voltou à realidade. Meu pau amoleceu na minha mão quando a visão
de Faye desapareceu da minha mente, substituída por algo igualmente sedutor, mas
ainda mais perigoso.

O segredo escondido debaixo da minha cama. A razão pela qual eu não poderia
chegar perto de Faye De Winter. A vergonha que me comeria vivo mesmo enquanto
minha alma petrificava nesta casa.

O vício que eu não conseguia me livrar.


Mas que porra?

Passei o dedo pelas letras molhadas e levei-o ao nariz. Meu estômago revirou
novamente. Minha mente se voltou para o rosto tenso de Harrison quando ele me
disse que a última empregada em Manderley havia sido assassinada.

Eu enruguei meu rosto. Realmente não queria ter que fazer isso.

Cheirei.

Era um cheiro estranho.

Eu tinha visto filmes de terror o suficiente para esperar o cheiro metálico de


sangue, mas em vez disso, senti cheiro de batom. Na verdade... abri os olhos e
esfreguei o vermelho entre os dedos. Sim, isso era definitivamente batom. A cor
parecia suspeitamente com a que Heather usava ontem.

Uma brincadeira juvenil. Totalmente o estilo de Dorien.

Aquele filho da puta.

Mas o que mais me preocupou não foi a mensagem estúpida, mas o fato de que
um dos alunos entrou sorrateiramente no meu quarto enquanto eu dormia. Não
podiam ter subido pela janela, então só restava a porta.

A porta que eu definitivamente tranquei.

Atravessei a sala em três passos e verifiquei, ainda estava trancada. Abri a porta
e inspecionei o mecanismo. Nada quebrado.

O que significa que... Eles têm uma chave.


Isso provavelmente significava que eles também tinham uma chave para o
depósito ao lado. Isso explicaria os rangidos da noite passada. Um deles deve ter se
escondido lá e esperou até que eu fosse dormir, então se esgueirou para escrever a
mensagem.

Dorien.

Mas não, percebi com um sobressalto, Dorien não poderia ter feito isso se era
ele quem estivesse escondido no depósito. Eu o vi com os outros alunos ao redor
daquela mesa, e não havia como ele ter subido as escadas até o depósito sem que eu
o ouvisse, as escadas rangiam mais do que um poema de Edgar Allan Poe.

Meu coração saltou no meu peito enquanto eu cruzava o quarto até a janela e
afastava a cortina. Com certeza, lá estava a mesa, com um cinzeiro e uma garrafa
vazia de uísque. Eles podiam ter escapado enquanto eu dormia para fazer a arte no
espelho, mas isso não explicava os passos. Eu não conseguia ver como alguém ao
redor daquela mesa poderia ter feito os rangidos no depósito.

A menos que…

Aroha. Ela não estava com o grupo na mesa, eu me lembrei. Poderia ter sido
ela.

Excelente. Então todos eles estavam envolvidos com os Musos. O ódio de Dorien
por mim era pessoal, e eu não entendia. Foi ele quem partiu meu coração. Mas de
qualquer forma, nós pelo menos tínhamos uma história. Os outros... Eles nem me
conheciam. Aroha não parecia a vadia rica que Heather era. Algo sobre suas roupas e
as tatuagens e o jeito que ela se portava me dizia que ela não dava a mínima para o
que alguém pensava dela ou do problema mesquinho de Dorien comigo. Então, por
que ela se esgueiraria no armário ao lado e escreveria mensagens no meu espelho?

Afastei-me da janela, endireitando meus ombros.

Peguei meu estojo de violino e desci as escadas, sem me importar em soar como
uma manada de elefantes avançando pela casa silenciosa. Fiquei na frente da porta
dos aposentos privados de Madame Usher.
Eles têm uma chave para o meu quarto. Eu não me sinto segura aqui. Mesmo
como o caso de caridade residente nesse lugar, isso é inaceitável.

“Madame Usher?” Eu bati. “Eu preciso relatar algo. Alguns dos alunos
invadiram meu quarto ontem à noite e escreveram coisas nas minhas paredes.”

Uma briga soou dentro da sala. Eu pressionei meu ouvido na madeira quando
uma voz fraca assobiou alguma coisa. Houve um par de baques surdos, então passos
vieram em minha direção.

A porta se abriu. Madame Usher bloqueava a porta, seus olhos brilhando. “O


que eu disse a você?”

“Mas, Madame...”

“Eu não me importo se a casa está pegando fogo ao nosso redor ou se um disco
voador pousar no telhado, você não me perturba, nunca. Isso seria motivo para
expulsão, mas devido ao nosso acordo, eu lhe darei uma segunda chance.” Ela olhou
para mim. “Não faça isso de novo.”

“Espere. Eu...”

A porta bateu na minha cara.

“Bom dia, lixo. Dormiu bem?”

Eu me virei. Dorien encostava-se ao batente da porta, vestindo apenas uma


cueca boxer e um sorriso que faria o Titanic levantar do fundo do oceano. A saliva
secou na minha língua quando vislumbrei as tatuagens dançando em sua pele nua.
Não dê a ele a satisfação de olhar. Isso é exatamente o que ele quer.

Sim, mas acontece que não tenho autocontrole. Meus olhos varreram as linhas
duras de seu torso. Dorien era o próprio pecado, sua beleza angelical sobrenatural
escondia o orgulho amargo e o estado desolado de sua alma. Fiz uma pausa nas letras
góticas soletrando uma frase em latim em seu peito. In Cauda Venenum.

Tão diferente do menino que eu conhecia, e ainda exatamente como eu o


imaginei. Dorien sempre esteve destinado a ser um rebelde. Ser um Bad Boy do
Barroco estava escrito em seu futuro desde a primeira vez que ele colocou tinta
vermelha na cadeira de Madame Usher.

Mas por que os bad boys tinham que parecer tão bons?

“Nenhum fantasma visitou você durante a noite?” Dorien ergueu uma


sobrancelha perfeita.

“Foda-se.” Eu passei por ele. Seu cheiro me atingiu, o coração escuro de canela
e incenso, salpicado de violetas doces. Pura luxúria disparada com inocência. Eu
ansiava por me afogar naquele cheiro, permitir que ele me puxasse para baixo mesmo
quando me avisava que eu poderia me perder em suas profundezas. “E fique fora do
meu quarto.”

A risada cruel de Dorien me seguiu escada abaixo.

Durante um café da manhã com granola, iogurte grego e frutas vermelhas


congeladas (se os alunos achavam que eu iria cozinhar bacon todas as manhãs, eles
poderiam ir se foder), Madame Usher nos informou que Dimitri Solokov, o produtor
da Orquestra Filarmônica de Moscou, jantaria em Manderley na sexta-feira.

“Após suas aulas particulares, reúnam-se no salão de baile esta tarde. Cada um
de vocês fará seu melhor concerto para o Mestre Radcliffe, que escolherá um aluno
para tocar para o Mestre Solokov.”

Meu coração disparou. Eu só estava em Manderley há uma noite, e Madame


Usher já estava apresentando essa oportunidade incrível à minha frente. Fazer Dimitri
Solokov ficar arrebatado por uma performance solo... Isso era uma grande coisa.
Mesmo quando minha mãe era rica o suficiente para me mandar para a escola
preparatória e minhas aulas particulares, eu nunca poderia esperar por esse tipo de
conexão.
Os outros alunos continuaram a enfiar comida na boca como se a presença de
Solokov não fosse grande coisa, como se bombas como essa caíssem toda semana. E
talvez eles estivessem acostumados mesmo.

Eu entrei em um mundo totalmente diferente.

Madame Usher se levantou, indicando que o café da manhã havia terminado.


Eu me levantei também, circulando a mesa para pegar os pratos. Enquanto os alunos
saíam da sala de jantar a caminho da aula de redação, Titus parou ao meu lado, seus
ombros largos bloqueando a porta, então tive que diminuir o passo para evitar bater
nele. Porra, aquele garoto parecia bem, com aquele corte de cabelo arrumado com as
trancinhas no meio, amarradas longe de seu rosto para que caíssem pelas costas, o
corpo que poderia modelar para Calvin Klein, e aqueles olhos de fogo e enxofre. Se
Dorien era o Senhor do Inferno, então Titus era o Demônio das Armas. Pena que ele
já tinha decidido de que lado ficaria. Ele se inclinou para sussurrar em meu ouvido:
“Nem se incomode em aparecer hoje. Um dedilhado como o seu só é bom para
estrangular gatos.”

Eu não dignifiquei Titus com uma resposta, mas eu lancei a ele um olhar que
eu esperava que articulasse o quão pouco eu me importava com o que ele pensava.
Suas palavras só me deixaram mais determinada a ter sucesso.

Seus lábios se curvaram em um sorriso. Mas não era caloroso exatamente, o


mesmo fogo maldoso em seus olhos cintilava em seu rosto. “Você baba enquanto
dorme. É adorável.”

As palavras bateram em mim. Eu parei no meu caminho, meu corpo rígido.


Atrás de mim, Heather praguejou enquanto colidia comigo. Ela me empurrou para o
lado sem dizer uma palavra e foi embora. Minha cabeça girou.

Titus esteve no meu quarto. Ele me observou enquanto eu dormia. Agora ele está
sorrindo para mim como se isso não fosse nada assustador.

Ele poderia ter feito qualquer coisa. O medo ondulava através de mim, um medo
nascido da incerteza, de saber que eu estava muito abaixo na cadeia alimentar e esses
caras poderiam fazer o que quisessem comigo sem consequências. Claramente, eles
planejavam fazer exatamente isso.

Uma imagem passou pela minha mente, uma empregada com o mesmo vestido
de lã áspero que eu usava agora, amassada no pé da escada, o pescoço dobrado em
um ângulo impossível. Titus abriu a boca para dizer mais alguma coisa, mas eu passei
por ele e fugi para a cozinha.

Quando virei a esquina, meu peito arfando, olhei para trás por cima do ombro
e notei Dorien olhando para Titus, que deu de ombros e passou por seu amigo a
caminho das salas de prática. Esquisito. Sobre o que eles estavam falando?

Na cozinha, joguei a louça na máquina de lavar sem enxaguar. Eu não tinha


tempo para me recompor, para me recuperar do que tinha acabado de aprender.
Joguei água fria no rosto e corri para a Sala Vermelha na torre para Composição.
Mestre Radcliffe já havia começado a aula. Ninguém me reconheceu quando me sentei
no final de um semicírculo ao redor do piano.

Pelas próximas três horas, eu esqueci tudo sobre os alunos de merda e a nota
no meu espelho, o vestido arranhando e até mesmo a doença da mamãe. A música
poderia fazer isso comigo, era minha fuga da realidade. Composição não era minha
área mais forte, mas a maneira como o Mestre Radcliffe explicava e demonstrava os
conceitos me deixava extasiada. Quando ele tocou uma pequena peça que ele compôs
no momento, lágrimas brotaram em meus olhos. Se eu pudesse ser tão boa quanto ele,
eu seria uma Maestra de renome mundial.

Tive que sair mais cedo da aula para preparar o almoço. Foi uma merda arrastar
minha bunda da cadeira e deixar os outros absorverem os minutos finais da sabedoria
do Mestre Radcliffe.

Ontem, eu tinha agendado apressadamente uma entrega de comida. Quando


entrei na cozinha, a mesa gemia sob o peso das sacolas. Harrison movia-se pelo
espaço, fazendo a cozinha baixa parecer menor de alguma forma enquanto colocava a
carne e os vegetais congelados no freezer da despensa.
“Obrigada por ajudar.” Ele acabou de me poupar muito tempo, e eu sei que ele
estava ocupado consertando o buraco que eu fiz na varanda.

“É um prazer.” Harrison limpou as mãos no macacão imundo. “É bom ter uma


pausa dos serviços lá de fora. Como você está se encontrando na escola?”

“É bem diferente.” Joguei um filé de salmão na forma, desejando estar batendo


o peixe molhado na boca presunçosa de Dorien ou no olhar de gelo de Ivan ou nas
gloriosas maçãs do rosto de Titus.

“Esses alunos estão lhe dando problemas.” Não era uma pergunta.

Eu balancei a cabeça. “Não é nada que eu não possa lidar. Eles têm a chave do
meu quarto. Você tem uma fechadura sobressalente para substituí-la?”

O rosto de Harrison ficou nublado. “Você precisa dizer isso a Madame Usher.”

“Eu tentei. Mas ela não queria ouvir, então acho que estou sozinha.”

“Eu vou fazer uma viagem para a cidade amanhã.” Harrison deixou cair uma
pilha de filés de salmão no freezer. “Vou trazer de volta um novo cadeado. Victor nunca
tolerou o mau comportamento deles, mas a Madame os deixa escapar até de...”

Assassinato, ele estava prestes a dizer. E um pensamento me incomodava, que


os alunos não eram os únicos que queriam que eu saísse de Manderley. Se Madame
Usher quisesse que eu fosse embora sem sujar as mãos...

Pensei em Titus parado sobre mim na escuridão enquanto eu dormia, e aqueles


passos andando de um lado para o outro no quarto ao lado. Um pensamento horrível
me ocorreu, ele admitiu estar no meu quarto, mas Titus não poderia ter feito aqueles
passos. Ele estava lá fora com os outros. Eu o vi…

O pensamento deixou um sentimento incerto no meu intestino. “Harrison, diga-


me sem rodeios, eu estou em perigo aqui?”

“Tenha cuidado, especialmente com aquele Dorien Valencourt. Ele é o animal


de estimação dela.” Harrison parecia querer dizer mais. Em vez disso, ele bateu a
tampa do freezer e saiu correndo, como se não pudesse suportar ficar na casa grande
um momento a mais do que o necessário.

Eu temperei um lombo de carne de porco, cobri com papel alumínio e coloquei


no forno para cozinhar lentamente para o jantar, enquanto jogava legumes no azeite
de trufas e grelhava os bifes de salmão. Quando levei o almoço para a sala de jantar,
Dorien estava de pé novamente, servindo o vinho. Começou com o Mestre e deu a volta
na mesa. Eu precisava cruzar seu caminho para colocar as travessas.

“Com licença,” eu murmurei baixinho. Equilibrava quatro pratos em minhas


mãos. Eles eram muito mais pesados do que sua garrafa de vinho.

Dorien fingiu que não me ouviu, movendo seu corpo, então acabei fazendo uma
dança desajeitada para contorná-lo. Quando me aproximei do mestre, Dorien esticou
o pé. Eu tropecei, espirrando bifes suculentos e salada na toalha de mesa imaculada.

“Ai, credo.” Heather saltou para trás, sua cabeça balançando. “Ela jogou um
tomate no meu cabelo.”

“De Winter,” Madame Usher explodiu. “Limpe isso de uma vez.”

“Mas...”

“Nem mais uma palavra.” Madame Usher se levantou e estendeu seu prato.
“Salve o que puder. Vamos almoçar na sala de visitas enquanto você lida com a
bagunça que fez.”

Fumegando em silêncio, coloquei carne e salada de volta nas travessas,


entregando uma para ela e a outra para Elena. Tentei encontrar os olhos da garota
romena, mas ela manteve o queixo erguido. Ela pode não participar ativamente de
tudo o que os Musos planejaram para mim, mas ela certamente era conivente com o
que estava acontecendo.

No momento em que eu tinha esfregado as manchas de tomate do tapete e


colocado a toalha de mesa para encharcar, eles tinham acabado com a comida. Não
deixaram um único pedaço para mim. Peguei uma maçã na cozinha. Enquanto os
outros se espalhavam pelos espaços de prática, tirei um esfregão e um balde do
armário e limpei os banheiros dos dois andares, depois passei a esfregar os azulejos
de mármore da Sala Vermelha até que brilhassem. Limpei todas as antiguidades para
que o lugar ficasse perfeito para a visita de Andrei Solokov.

Minhas tarefas feitas, voltei para o meu quarto e pratiquei por duas horas. Eu
escolhi o Concerto para Violino No.2 de Bartok para minha peça de audição, eu estive
enrolando minha cabeça em torno da música ardente e conflitante ao longo do ano
passado. Quando Bartok compôs o concerto no período que antecedeu a Primeira
Guerra Mundial, ele estava sendo atacado em sua Hungria natal por suas visões
antifascistas, e o concerto reflete seu estado de espírito frenético. Combinava
perfeitamente com meu humor depois de saber sobre a invasão de minha privacidade
por Titus, e o fato de que sua confissão não explicava todos os barulhos que eu ouvi.
No final da minha prática, as notas zumbiam em minhas veias. Eu sabia que tocava
a peça com o coração, com fogo, e daria aos três Musos uma bela competição.

De volta à cozinha, assei alguns legumes e fiz rotkohl; repolho roxo, cravo, bacon
e maçãs. Uma receita herdada da minha avó alemã por parte de pai. Nós nunca a
vimos depois que meu pai desapareceu, e eu não sabia se era muito doloroso para
mamãe ou se ela suspeitava que vovó sabia de algo que ela não tinha revelado. Não
foi uma grande perda, a melhor coisa sobre vovó era seu repolho. A mulher amarga
morreu há alguns anos. Não fomos ao enterro.

A tensão crepitava no ar enquanto eu servia o jantar, com menos brincadeiras


entre os alunos do que o normal. Claro, esta noite eles não eram amigos, eram rivais.
Ninguém falou comigo, mas Ivan manteve olhares furtivos para mim entre mordidas,
aqueles intensos olhos de gelo varrendo meu rosto. Sua expressão nunca mudou, eu
não tinha ideia do que ele estava pensando, e isso me apavorou e me irritou ao mesmo
tempo. A pele do meu pescoço pinicava de nervos, e continuei olhando por cima do
ombro, certo de que havia algum horror prestes a me abordar por trás.

O jantar terminou em tempo recorde. Corri para empilhar a máquina de lavar


louça enquanto os outros subiam para trocar de roupa e afinar seus instrumentos.
Quando cheguei à Sala Azul, o maior dos espaços de prática, suada e ainda usando
meu vestido de lã, seis alunos perfeitamente arrumados estavam sentados em todas
as cadeiras disponíveis, cuidadosamente evitando me reconhecer.

Fiquei desajeitadamente ao lado do aparador, tentando evitar olhar para


qualquer lugar perto dos caras. Madame Usher enfiou a cabeça para dentro. “O Mestre
e eu não vamos demorar. Faye, sirva-nos um copo de vinho do porto. Isso acalma os
nervos.”

Fui ao armário de bebidas e encontrei a garrafa de vinho do Porto e oito copos.


Joguei um gole generoso do líquido escuro em cada copo e os arrumei em uma bandeja
de prata. A porta se abriu, e Mestre Radcliffe entrou. Enquanto eu estendia a bandeja
para ele, Dorien deslizou o pé pelo tapete e chutou meu tornozelo. Caí com força, a
bandeja voando de minhas mãos e espalhando vinho do porto pegajoso por todo
Mestre Radcliffe.
O Mestre franziu a testa para a mancha vermelha escorrendo na frente de sua
camisa de seda. “Preciso trocar de roupa.”

Ele saiu da sala, deixando-me sozinha com meus seis inimigos. Heather não se
preocupou em esconder sua risada atrás de sua mão. Aroha soltou um rugido
estrondoso que fez Titus se empertigar, e logo Dorien estava gargalhando também.
Elena e Ivan olharam para o chão, aparentemente indiferentes a tudo.

Dorien apontou para a mancha de vinho do porto no chão. “Limpe isso,” ele
ordenou.

Dei a única resposta possível a tal pedido. Eu o ignorei.

“Você é a serva. Faça o seu dever. Se isso não estiver limpo quando Madame
Usher retornar, você pagará.”

“Você que deveria limpar isso,” eu atirei de volta. “Você é quem me fez tropeçar.
Você acha divertido atrapalhar as pessoas, Dorien? Você é como um filho único
mimado jogando seus brinquedos para fora da caixa de areia porque não quer
compartilhar.”

Os olhos de Dorien brilharam para mim. “Você não sabe do que está falando.”

Eu bufei. “Eu sei exatamente do que estou falando. Você está mesmo com tanto
medo de eu ser melhor do que você? Por que você está aqui, afinal? A carreira
internacional não estava indo tão bem?”

Algo dentro de Dorien estalou. Eu sabia que tinha chegado até ele; eu só não
sabia como ou por quê. Cerrei os punhos, pronta para enfiar a faca mais fundo,
desesperada para machucar Dorien do jeito que seus insultos me machucaram,
quando Madame Usher entrou na sala. Seus olhos imediatamente caíram sobre a
mancha no chão. “Srta. De Winter, você não pode executar uma tarefa sem estragar
absolutamente tudo?”

“Dorien me fez tropeçar deliberadamente.”

“Você está acusando Dorien Valencourt para encobrir sua incompetência.”


Madame Usher piscou para mim com seu sorriso frio. “Dorien tem milhares de fãs
esperando por ele do outro lado dos muros de Manderley. Ele não precisa recorrer a
brincadeiras mesquinhas. Você irá limpar isso imediatamente. E então você vai para
o seu quarto pensar se realmente quer estar aqui.”

“Mas a audição...”

“Você não fará o teste.”

Suas palavras me atingiram como um soco no estômago. Uma coisa era receber
ordens como uma serva. Eu poderia lidar com isso se isso significasse que mamãe
estava segura. Mas ser privada dessa oportunidade por causa da babaquice de
Dorien? Engoli o veneno que dançava na minha língua.

Madame Usher sentou-se na espreguiçadeira de veludo sob a janela,


espalhando as saias ao redor dela. “Apresse-se, garota. Há um limpador de carpete
embaixo da cômoda. E é melhor você não estar aqui quando o Mestre Radcliffe
retornar.”

“Sim, senhora.”

Eu detesto você. Odeio você.

Olhos zombeteiros queimaram em mim quando me ajoelhei e localizei o spray.


De quatro, esfreguei a mancha. Acima da minha cabeça, Dorien e Heather faziam a
corte, brindando com seus copos enquanto se regozijavam com a minha humilhação.

“Pena que não se pode mais chicotear escravos insolentes,” Dorien meditou, e
havia um tom perverso em sua voz que fez algo quente e lascivo deslizar pela minha
espinha e se acumular entre as minhas pernas. Eu o odiei tanto naquele momento,
mas não tanto quanto eu me odiava por desejá-lo.
“Lixo como ela provavelmente está salivando por um gostinho do vinho no chão,”
Heather deu uma risadinha. Meus ouvidos zuniam de raiva. “Que desperdício de um
porto perfeitamente decente.”

“Não é um desperdício. É uma bela vista daqui,” o murmúrio de Titus chegou


aos meus ouvidos.

Seus amigos riram. Minhas bochechas queimaram de humilhação. Eu me


levantei, alisando à frente do meu vestido, agora amassado e coberto com felpa do
tapete, e enfiei o pano no bolso assim que Mestre Radcliffe entrou novamente, sua
camisa trocada por uma nova. Sentou-se atrás do piano e indicou que Dorien
começasse. Parei na porta, meu violino preso ao peito, esperando que Madame tivesse
mudado de ideia e...

“Saia,” ela raspou. “Por sua insolência, você ficará confinada ao terreno da
escola neste fim de semana. Permitir que Harrison dirija é um privilégio, não um
direito.”

“Mas eu tenho que visitar minha mãe...”

“Você deveria ter pensado nisso antes de fazer uma bagunça na minha casa.
Não faça eu me arrepender de tê-la trazido aqui, Srta. De Winter.”

A porta se fechou atrás de mim, ecoando pelo corredor.

Eu caí contra a porta, meu corpo vibrando quando as primeiras notas do


concerto de Dorien reverberaram pela porta. Mesmo quando eu fazia parte da
academia de música mais elitista do país, eu ainda era excluída.

Não posso ver minha mãe, e é tudo culpa dele.

Seria suportável se Dorien fosse um músico de merda, mas quando seus dedos
tocavam as teclas ele criava magia. Ele não apenas interpretava Beethoven, ele fazia
amor com Beethoven. Ele fodia Beethoven devagar e com firmeza por trás. Dorien fez
o desempenho de Elena do outro dia parecer o de uma novata.

Afastei-me da porta, determinada a não lhe dar a satisfação de ouvir mais de


sua apresentação. Músico brilhante ou não, Dorien tinha a intenção de me ver
fracassar, e ele convenceu todos os outros alunos a ajudá-lo. Algo que Madame Usher
disse me incomodou. Ele não precisa de brincadeiras mesquinhas.

Ela estava certa, Dorien já havia feito um nome para si mesmo no mundo
clássico. Ele tinha fama e fortuna e groupies em abundância. Ele não precisava da
Manderley ou do prêmio. E, no entanto, ele estava fazendo um grande esforço para
me afastar.

Dorien Valencourt me via como uma ameaça.

Esse conhecimento me fortaleceu. Eu enrolei meus dedos em punhos. Dorien


pode ter significado algo para mim uma vez, mas agora ele era apenas mais um
obstáculo no meu caminho. Sobrevivi à misteriosa doença da minha mãe, e lidar com
os Bad Boys do Barroco não era nada comparado a isso. Não apenas manteria meu
lugar na Academia e garantiria que mamãe tivesse o melhor atendimento médico,
como também terminaria o ano com o Prêmio Manderley, e esfregaria isso em seus
rostos hipócritas, esculpidos e lindos.
Acontece que os esforços de Dorien para me sabotar foram em vão. Mestre
Radcliffe escolheu Elena para tocar para o maestro visitante, com Ivan
acompanhando-a ao violino. Eles praticaram o dia todo na Sala Vermelha enquanto
eu trabalhava na minha composição na Sala Amarela menor. Ouvir os gêmeos através
das paredes era como uma lição de performance de concerto. Elena tinha aquele tipo
de talento raro que deixaria o público quebrado e assombrado, colado em seus
assentos depois que as luzes da casa se acendessem, sem saber se eles já haviam
retornado ao mundo real.

E Ivan... Ele era um violinista magistral, mas estava claro para mim que ele
ficava em segundo plano, permitindo que sua irmã brilhasse. Estranho, porque eu o
vi tocar com Dorien e Titus nos vídeos, e ele era tão rápido e furioso quanto qualquer
um deles. Ivan podia se defender e comandar um palco. No entanto, quando ele tocava
com Elena, ele se tornava um ruído de fundo.

Depois de um tempo, larguei meu violino e peguei meu espanador para limpar
a estante ao lado da janela, observando as nuvens cinzentas se moverem pelas
montanhas e as árvores se curvarem na ventania que se aproximava enquanto eu
ouvia através da parede. Eu não conseguia imaginar Ivan sendo o ruído de fundo de
ninguém, não com aqueles olhos azuis intensos e aquelas maçãs do rosto que
poderiam cortar vidro. E ainda assim... Ele parecia feliz em deixar sua irmã ser o
centro das atenções. Outro mistério de Manderley, que eu dificilmente resolveria
enquanto todos continuassem me ignorando.

A tempestade ficou mais intensa. A chuva descia das montanhas e se


acumulava em pontos baixos no gramado, criando poças de lama que refletiam
nuvens escuras da cor exata dos olhos de Dorien. Harrison teve que cancelar sua
viagem para a cidade, ele não podia dirigir naquelas estradas, o que significava que
eu não receberia meu novo cadeado até a próxima semana.

Dimitri Solokov chegou durante o pico da tempestade, a chuva caindo de lado


nas janelas, batendo em um ritmo constante que me fez companhia enquanto eu
trabalhava.

O gongo ecoou pela casa, sinalizando que alguém havia chegado. Quando saí
da sala de ensaio, Madame Usher estava cumprimentando o produtor no corredor,
pendurando seu casaco encharcado sobre o suporte de antiguidades. Ela estalou os
dedos para mim e apontou para a Sala Azul. Eu sabia o que ela queria, bebidas deviam
ser servidas.

“Faye é um caso de caridade,” ela explicou ao Mestre Solokov enquanto eu


estendia a bandeja de bebidas. “Pela bondade do meu coração, eu a aceitei no
programa de Manderley em troca de seus serviços. Acho que não vou fazer isso de
novo, no entanto. O pai dela era Donovan De Winter...”

O rosto de Solokov se iluminou com a menção do nome do meu pai.

“Infelizmente, ela não compartilha de seu talento. Em um bom dia, ela pode
estrangular Vivaldi com seu violino, mas eu não esperaria mais do que isso dela.”

Eu mordi de volta uma réplica. Não importa como ela me trata e o que ela diz
sobre mim. Ainda estou aqui na escola dela, aprendendo com o Mestre Radcliffe. Ela
ainda está pagando pelos cuidados médicos de uma mulher cujo marido ela tentou
roubar. Ainda tenho tanta chance quanto qualquer outra pessoa de ganhar o Prêmio
Manderley.

Deixei-os conversar enquanto voltava para a cozinha, onde havia feito uma
variedade de hors d'oeuvres para a visita de Solokov. Hoje à noite, eu tinha me
dedicado à herança mexicana de minha mãe, servindo esquites, chimichangas fritas
crocantes com salsa roxa e churros de canela com molho de chocolate amargo.
Comida saudável e quente para evitar o frio. Abaixei-me para pegar as bandejas e
notei algo.
Alguém havia tirado três chimichangas da bandeja.

Eu sorri. Se alguém pensou que roubar alguns petiscos me assustaria, eles


poderiam pensar melhor. Reorganizei a comida para que as lacunas não fossem
perceptíveis e levei as bandejas para a Sala Azul, arrumando-as em uma mesa no
canto.

Eu meio que esperava que Madame Usher me banisse da sala, mas ela parecia
ter se esquecido de mim assim que Mestre Solokov chegou. Harrison acendeu o fogo,
que ardia com calor acolhedor. Eu me acomodei no assento perto do fogo, deixando o
calor penetrar em meus membros.

Os outros entraram quando terminaram sua prática e se arrumaram. Os cachos


de Heather captaram a luz, saltando sob o candelabro. Elena parecia uma fada com
seu cabelo prateado caindo pelas costas. Aroha usava um vestido até o chão
estampado com desenhos ousados que combinavam com suas tatuagens. Os três
Musos entraram por último, e eu sufoquei um suspiro.

Eles usavam as camisas pretas com babados e calças apertadas de sua turnê
europeia. Em qualquer outra pessoa, essas roupas seriam fantasias ridículas, mas os
três eram deuses profanos. O cabelo escuro de Dorien caía sobre seus olhos e em
torno de seu colarinho, cada centímetro do príncipe escuro que ele era à vista. Titus
teve que se abaixar sob os antebraços do candelabro para evitar bater com a cabeça.
Ao fazê-lo, as trancinhas descendo pelas costas se abriram e as contas nas pontas se
juntaram. Aquele cara era tão grande que era difícil imaginá-lo tocando um belo
instrumento com precisão, e ainda assim ele poderia destruir aquele violoncelo como
ninguém. Ivan era um contraste para os dois, com seu cabelo prateado combinando
com os fios de bordados brilhantes em seus punhos e gola, e suas feições do Leste
Europeu duras e focadas.

Dorien e Ivan ocuparam lugares do outro lado da sala, perto de Madame Usher,
mas Titus caiu ao meu lado no sofá baixo. Sua perna roçou a minha, e faíscas subiram
pela minha perna. Minha mente podia ter ficado enojada com a ideia dele se infiltrando
no meu quarto e me vendo dormir, mas meu corpo não tinha tais escrúpulos.
Quando estávamos todos reunidos, Elena e Ivan tomaram seus lugares e
apresentaram sua peça. Enquanto a música fluía através de mim, o calor da perna de
Titus penetrou em minha pele até que eu pudesse senti-lo em meus ossos, e seu
perfume dançou em minhas narinas, almíscar vermelho e mirra, cortado com rosas
perfumadas, sua intensidade conjurada pela música e pela atração elétrica que sentia
por ele.

Algo está seriamente errado comigo. Passei muitas horas enfiada no quarto de
hospital da mamãe com apenas médicos idosos como companhia. Uma semana em
Manderley com os Bad Boys do Barroco e me transformei em uma bagunça de
hormônios.

Tentei me concentrar nos dedos de Elena e nas notas solenes de Ivan, mas a
presença de Titus parecia grande ao meu lado. Cada respiração que ele dava e cada
movimento sutil de seu corpo se traduzia naquele quadrado de pele onde nos
tocávamos, até que eu estava uma bagunça de desejo e frustração.

Recusei-me a olhar para ele, concentrando-me nas feições sombrias de nosso


visitante russo. A expressão de Solokov não revelou nada, mas quando Elena levantou
as mãos do piano ele correu para ela, pegando seus dedos nos dele, e beijou os nós
dos dedos de sua mão.

“Você vai longe. Na verdade, você já deveria estar na Europa, não definhando
nesta escola abafada.”

Em seu assento, Madame Usher se eriçou e olhou para Ivan como se exigisse
seu apoio. Ivan se esgueirou de volta para as sombras perto da porta. Foi Mestre
Radcliffe quem se adiantou para ficar ao lado de Elena. Ele jogou o braço em volta dos
ombros dela.

“Elena é minha aluna estrela,” ele disse, e havia uma pitada de desafio em sua
voz. “Como uma flor delicada, ela deve florescer no momento certo. Muito cedo e ela
vai murchar, sua beleza, desaparecer.”
Madame Usher se levantou de sua cadeira e todos começaram a falar ao mesmo
tempo, cercando Solokov e oferecendo-lhe bebidas, comida, um lugar para sentar.
Titus virou seu corpo para mim. Ele não disse nada, mas havia uma confiança em
seus ombros largos que me dizia que eu não queria estar perto dele. Eu me levantei e
corri ao redor do grupo até a porta. Para onde Ivan espreitava como um vampiro na
noite.

Encostei as costas na parede ao lado dele, meus dedos roçando o papel,


sentindo uma rachadura onde a parede encontrava os lambris. Uma leve corrente de
ar fez cócegas em meus dedos. “Sua irmã é tão talentosa.”

Ivan olhou para mim. Tão perto, seus olhos se tornaram fragmentos de safira,
facetas de beleza cintilante refletindo a luz. Tão claros que eles me atraíram até que
eu me perdi em suas profundezas, caindo em um lago de emoções congeladas.

Ele se virou, seu lábio se projetando, um movimento deliberado e consciente


para evitar me responder. Ivan fixou o olhar em sua irmã no centro da sala, cercada
pela adoração de professores e alunos, enquanto ele estava ali, esquecido. Do outro
lado da sala, Dorien levantou a cabeça e pegou o olhar de Ivan, e uma conversa
silenciosa cintilou entre eles.

Eu escorreguei para fora do quarto. Eu sabia que não era desejada. Madame
Usher não me deixou falar com Solokov, e os outros queriam me ignorar, então qual
era o ponto? Eu fechei a porta atrás de mim.

No final do corredor, uma porta bateu. O estrondo agudo de madeira batendo


contra a moldura ecoou pelas paredes, fazendo os vasos tremerem em seus pedestais.

Eu me virei, meu coração pulando no meu peito. “Quem está aí? Harrison?”

Ninguém respondeu.

Eu andei pelo corredor, olhando para os quartos de cada lado de mim,


procurando nas sombras por uma resposta. A porta da Sala Amarela estava fechada,
a única no corredor, e eu sabia que a tinha deixado aberta mais cedo, a madeira
pesada retida por uma rolha de latão.
Está tudo bem. Foi apenas uma rajada de vento que fechou a porta. Alguém deve
ter aberto uma janela. O que era ridículo, por causa da tempestade furiosa lá fora,
mas a Sala Amarela ficava nos fundos da casa, onde os beirais eram mais baixos, e
podia ficar bem abafado lá dentro.

Meus dedos se fecharam ao redor da maçaneta. Minha respiração saía em


suspiros curtos. Não é nada. É apenas esta casa velha assustadora aflorando sua
imaginação. Mas eu não conseguia parar a sensação mesquinha e apertada no meu
peito, o coçar na parte de trás do meu pescoço que sinalizava que alguém me
observava.

Desejando que meu coração voltasse ao normal, abri a porta e entrei. As janelas
estavam todas fechadas e não havia brisa no quarto. Claro, a tempestade poderia ter
sacudido tanto a moldura que a janela deslizou para baixo. Engoli o nó na garganta
enquanto atravessava a sala. A pele ao longo dos meus braços formigou, me
sobrecarregando com a sensação de que eu não estava sozinha na sala. Olhei ao redor,
mas não consegui ver ninguém, e não havia lugar para alguém se esconder, a menos
que rastejasse para dentro do piano.

Meus dedos tremiam quando eu afastei as cortinas. Todas as janelas estavam


bem fechadas. Nem uma brisa ou corrente de ar tocou meus braços nus.

Então, como a porta bateu daquele jeito? Todos estão dentro da Sala Azul. Não
pode ter sido nenhum deles.

Exceto por Harrison... Eu coloquei minhas mãos contra o vidro, mas eu mal
podia ver as luzes da portaria através da chuva. Peguei o telefone da casa ao lado do
assento da janela, minha mão tremendo, e disquei seu ramal.

“Olá,” a voz rouca de Harrison respondeu.

As palavras saíram correndo. “Oi, Harrison, sou eu. Você não estava na casa,
estava? Especificamente, na Sala Amarela?”
“Não. Eu não queria ser um incômodo enquanto a Madame entretinha seu
convidado, então parei de trabalhar mais cedo.” Eu podia ouvir uma TV tocando ao
fundo. “Por que a pergunta?”

“A porta bateu, mas não há ninguém aqui, e nenhuma janela aberta. E...” Fiz
uma pausa. Eu não poderia explicar a sensação estranha no meu estômago sem soar
insana.

“Sempre escuto barulhos estranhos nessa casa.” Um som de trituração soou


quando Harrison abriu um pacote de alguma coisa. “Batidas nas paredes. Passos onde
não deveria haver passos. Pontos frios. Clare reclamou da falta de comida na cozinha.”

Lembrei-me das três chimichangas desaparecidas, e uma nova onda de


inquietação percorreu meu corpo. “Você podia ter mencionado isso antes.”

Harrison mastigou seu jantar por um momento. “Mas tudo pode ser explicado,
não é? Ratos roubando a comida, correntes de ar entre as paredes, casas velhas
rangendo e se acomodando, crianças ricas podres pregando peças.”

“Sim. Você está certo. Obrigada, Harrison.” Desliguei o telefone e me virei para
a porta.

Eu queria tanto acreditar que ele estava certo, havia uma explicação lógica para
tudo o que aconteceu. Claro, se isso fosse um filme de terror, Harrison seria o
assassino com certeza, o inofensivo jardineiro velho com um passado sórdido e sede
de sangue.

Mas eu sabia que Harrison não podia estar aqui. Ele atendeu o telefone da
guarita apenas alguns minutos depois que a porta bateu. Mesmo uma pessoa em
forma não poderia ter voltado a tempo, e não nesta tempestade. Além disso, as janelas
estavam todas trancadas por dentro. Não havia como sair da sala a menos que alguém
subisse pela chaminé como o Papai Noel.

Meus olhos encontraram a estante ao lado da janela.

E eu congelo.
Porque eu sabia que quando limpei aquela prateleira hoje cedo, estava em
perfeita ordem. Agora, vários livros haviam sido retirados e espalhados pelo chão.

Juntei os livros e os empurrei de volta para a prateleira. Uma lasca de gelo subiu
pela minha coluna quando meus dedos se enrolaram em torno de um volume de couro
surrado.

Contos de fadas de Grimm.

Estranho, parecia exatamente com um livro que eu tinha quando criança. Meu
pai me deu de presente quando voltou de uma turnê pela Alemanha. Ele costumava
ler um capítulo para mim todas as noites antes de eu ir dormir. Quando ele estava em
turnê, ele me ligava sempre que podia do outro lado do mundo, e líamos as histórias
juntos pelo telefone. Ele fazia as melhores vozes, e eu sempre ria com seus monstros
estrondosos e bruxas cacarejantes. Quando ele desapareceu, joguei o livro no lixo.

Relâmpagos estalaram do lado de fora da janela, e a energia bruta da


tempestade chiou em minhas veias enquanto eu segurava aquele livro em minhas
mãos, memórias que eu não queria lembrar inundando minha mente.

Abri o livro.

E meu coração voou para a minha garganta.

O livro caiu de minhas mãos, o frontispício onde a ilustração arrebatava a


página, caindo aberto no chão.

Lá, escrita em um floreio em loop no canto da página, estava a mensagem:

MINHA QUERIDA FAYE,

QUE TODOS SEUS SONHOS SE TORNEM REALIDADE

AMOR, PAI
Depois da apresentação de Elena, Madame Usher nos dispensou para que ela e
Radcliffe pudessem conversar com Solokov. No corredor, Heather jogou seu braço no
meu. “Você deveria ter sido o único a tocar para ele,” disse ela. “Você sabe que é o
pianista mais talentoso aqui, especialmente quando eu te acompanho. Madame só
escolheu Elena porque ela é exatamente o tipo dele.”

“Mmmm.” Meu olhar caiu para as escadas, onde Ivan e Elena andavam de mãos
dadas, suas cabeças inclinadas em uma conversa silenciosa. Heather tinha muitas
razões para ter ciúmes de Elena, que era cem vezes a musicista que Heather poderia
esperar ser, mas a atenção de Radcliffe não era uma delas. A mão de Ivan no ombro
de Elena tremeu de raiva enquanto ele a levava para o quarto deles, a porta batendo
atrás dela. Pensei em seguir Ivan, tentando acalmar a raiva que ameaçava se soltar
esta noite, mas não estava em condições de ser um bom amigo hoje. Além disso, ele
tinha Elena, e isso era tudo que importava. Por enquanto.

Faye escapou após a apresentação. Madame me deu um sorriso satisfeito que


parecia algo viscoso subindo pela minha espinha, e eu sabia que aquela velha bruxa
tinha algo planejado, algo que ela não tinha me contado. Eu não gostava de não saber
o que estava acontecendo, especialmente quando Madame Usher estava envolvida.

Mas eu não podia simplesmente avisar Faye, não sem arriscar tudo. Eu não
podia falar com ela, e ela me desprezava, o que era exatamente o que Madame Usher
queria. Eu precisava pensar. Eu precisava saber por que ele não tinha me mandado
mensagens em duas semanas. Eu precisava que o silêncio parasse para que eu
pudesse descobrir meu próximo movimento neste tabuleiro de xadrez fodido com
inimigos por todos os lados.
“Dorien,” a voz estridente de Heather perfurou meus pensamentos. “Você não
está me ouvindo.”

“Nem um pouco,” eu rosnei.

Ela se inclinou contra mim, esfregando sua bochecha contra meu ombro e
olhando para mim com os olhos de pálpebras pesadas. Eu tinha visto esse olhar em
centenas de garotas, na primeira fila das salas de concerto em Milão, nas filas dos
bordéis de Amsterdã, nas íris marrom-escuras de Clare. “Venha para o meu quarto, e
eu encontrarei maneiras de tirar Elena de sua mente. Eu roubei uma garrafa de porto
do estoque de Madame. Poderíamos beber juntos e...”

“Não.” Abri a porta da cozinha com um chute, corri para a porta dos fundos e
saí para a noite.

Gotas de chuva respingaram no meu rosto e roupas, mas eu não dava a mínima.
Eu precisava de ar. Dentro da casa, eu sentia como se estivesse engasgando com as
mentiras e o maldito cheiro inebriante de Faye.

Caminhei até os fundos do jardim, seguindo o caminho coberto de mato em


direção ao gazebo. A tempestade havia diminuído, embora um vento cortante ainda
rasgasse minha carne exposta e a chuva caísse em poças entre as raízes retorcidas
das árvores. Meus dedos se atrapalharam no meu bolso. Peguei meu telefone e bati
na tela, colocando minha mão contra ele para protegê-lo da chuva. Sem mensagens.

Não entre em pânico. Ele disse que mandaria uma mensagem quando pudesse.
Só porque você não ouviu falar dele não significa que ele está em apuros.

Rolei de volta para seu último texto, meus olhos passando rapidamente pelas
palavras, embora eu as soubesse de cor.

Padre Aaron pegou meus sapatos hoje.

Seis palavras. Seis malditas palavras. Eu arrastei o chão, minha meia ecoando
um som molhado onde a água a tinha encharcado. O vento chicoteava meu cabelo em
meu rosto, açoitando os fios contra minha pele, uma autoflagelação que não parecia
perversa o suficiente. Mesmo que ainda fosse tecnicamente verão, as montanhas
podiam ser implacáveis.

Sobre o rugido da chuva, eu peguei as notas flutuantes de um violino. Olhei de


volta para a casa, mas ninguém deveria estar tocando agora. Tínhamos um toque de
recolher estrito, sem música depois das 22h. Era quase meia-noite e Solokov estaria
dormindo em um dos quartos de hóspedes. Ninguém ousaria arriscar a ira de
Madame.

Alguém claramente não dava a mínima para as regras de Madame, e eu tinha a


sensação de que sabia exatamente quem seria.

Segui as notas tristes pelo caminho até o mirante. Eu não reconheci a melodia,
mas não precisei para que ela enchesse meu peito e envolvesse meu coração. A
melodia tinha uma qualidade etérea, como se a música viesse de outro lugar, cada
nota um convite para cair por um buraco e acabar em algum reino feérico estranho e
esquecido.

Uma figura sombria estava sob a estrutura em ruínas, e eu sabia antes mesmo
que ela entrasse em foco quem seria. Nenhum outro músico poderia me fazer sair de
mim mesmo do jeito que ela podia.

Faye girava em um círculo lento, os olhos fechados enquanto puxava o arco


sobre as cordas. Eu tinha ouvido flashes da peça que ela tocava através das paredes
quando ela praticava, mas aqui, com a crueza da natureza em fúria ao seu redor, ela
tecia magia no próprio ar. Seus dedos voavam com facilidade sobre os arpejos, e seu
arco fez um trabalho leve no spiccato. A música ergueu-se através da tempestade,
trazendo esperança, luz e beleza a este lugar de escuridão. Seu cabelo úmido estava
grudado na curva de suas costas, e eu quase esperei que asas brotassem de entre
seus ombros ou um duende espiasse por trás de sua orelha.

Eu me aproximei, hipnotizado, não percebendo onde eu estava até que meu pé


ficou preso em uma pedra solta, chutando-a na lateral do gazebo.
Os olhos de Faye se abriram. O arco rangeu nas cordas. A música parou, e o
feitiço que me atraiu para ela quebrou. Ela olhou para mim e apontou seu arco em
direção à casa.

“Vá embora.”

“É um jardim público.” Eu me aproximei. O luar refletia em seu cabelo negro.


Ela deve ter saído quando ainda estava chovendo forte, porque ela tinha lama
respingada em suas pernas e seu vestido estava encharcado, o tecido grudado em sua
pele, revelando cada curva daquele corpo fodidamente lindo.

“Ah, então você está falando comigo agora?”

Eu deixei um sorriso lento brincar em meus lábios. Mesmo com aquela chama
desafiadora em seus olhos, ela ainda não conseguia resistir ao meu desafio. “Você está
tocando na chuva quando há uma cama perfeitamente boa e quente lá dentro.
Considere-me intrigado.”

“Eu não tenho que me explicar para você, Dorien.” Faye balançou a cabeça, e
uma tristeza cintilou em seus olhos que me lembrou tanto de seu desespero que eu
tive que desviar o olhar para recuperar o fôlego. Quando me virei para ela, aquela
tristeza havia desaparecido. “Por que você está fazendo isso? Não nos vemos há dez
anos. Eu fiquei longe de você, assim como você queria. Não é minha culpa termos
acabado na mesma escola. Então, por que você está tão determinado a me fazer sair
daqui? Você, de todas as pessoas, deveria saber que eu não me curvo à vontade de
ninguém.”

Eu nunca quis que você ficasse longe.

O pensamento tinha um gosto amargo. Ou talvez tenha sido apenas a década


de ressentimento que borbulhava dentro de mim. Porque Faye estava mentindo, ela
não se curvava à vontade de ninguém, exceto a minha. Eu disse a ela para me deixar,
e ela me deixou. E eu a odiava por isso, mas não tanto quanto eu me odiava.

Essa decisão deveria ter doído por apenas um momento. Eu deveria ter trancado
meu coração para que eu pudesse esquecer Faye, para que eu nunca mais sentisse a
dor de quando vi seu coração se partir na minha frente, enquanto as lágrimas
afogavam o fogo em seus olhos. Eu disse a mim mesmo que tinha funcionado por dez
anos, enquanto eu vagava pela terra sendo um fantasma de uma pessoa, uma caixa
vazia sem chave. Mas agora a decisão que me custou minha única amiga verdadeira
ameaçava destruir alguém que eu amava, e Faye voltou à minha vida e explodiu a
caixa em pedacinhos.

Quatorze dias e nenhuma mensagem. Ele devia saber que eu ficaria louco de
preocupação, porra.

Fechei o espaço entre nós em três passos. Faye gritou de surpresa quando meus
dedos circularam seu pulso, puxando-a para perto de modo que nossos corpos se
apertassem, peito contra peito. Seu coração dançou em um ritmo selvagem através do
tecido fino de seu vestido encharcado, combinando com a violência do meu. Lábios
vermelhos se separaram, e o desejo... o desejo... de deslizar minha língua entre eles
me dominou, de provocar a feitiçaria dentro, de beber e beber dela até explodir com
sua magia.

Mas aquelas seis palavras correram na minha cabeça, se misturando até


perderem todo o significado. Até que eu soubesse apenas uma coisa, que eu tinha
alguém para proteger, alguém que precisava de mim mais do que eu me convenci que
precisava de Faye.

Machucá-la deveria ser natural para você. Afinal, você já fez isso uma vez antes.

“Uma pequena dica para você.” Meus dedos apertaram o braço de Faye. Ela
choramingou, mas não era um som de medo. Eu me esforcei através do meu desejo,
procurando pelo tom de ameaça em mim. “Se você quiser sobreviver ao próximo ano,
você deve sair pelos portões agora e nunca mais voltar. Se ficar, eu vou te destruir. E
isso é uma promessa.”

Meu corpo zumbiu com o desejo de virá-la, levantar aquela saia sexy dela,
dobrá-la sobre o corrimão e penetrá-la. Quantas vezes ao longo dos anos eu me
perguntei como ela seria, a garota que eu deixei ir, quão quente, escorregadia e
convidativa seria, como ela empurraria de volta contra meu pau e jogaria a cabeça
para trás e uivaria para a lua como a selvagem mulher que era. Eu grunhi baixo em
minha garganta, e o som foi feito para assustá-la, mas enviou um tremor de desejo
através de seu corpo que ecoou no meu. Ela podia sentir meu pau duro contra sua
coxa?

Porra. Porra. Porra. Estou na merda.

“Por que você está tentando me assustar?” Faye sussurrou, olhando para mim
com desafio, com triunfo. “Eu nunca terei medo de você. Já vi horrores reais, Dorien.
Eu vivi uma dor que você só poderia imaginar, e tentar me manter longe da minha
mãe não vai me quebrar. Para mim, você não passa de um garotinho assustado.”

“Você acha que me conhece?” Eu rosnei. “Você acha que sabe o que é dor? Você
está prestes a descobrir o quão pouco você sabe. Aquele garoto que você se lembra
morreu há muito tempo, e o homem que ele se tornou é insensível e perigoso. Não vou
parar por nada para conseguir o que quero, e o que quero é que você vá embora.”

Faye sorriu. “Engraçado. Eu poderia jurar que você estava atrás de outra coisa
quando me agarrou.”

Eu a soltei para longe de mim, enviando-a cambaleando pelo gazebo. Ela gritou
de surpresa, mas eu não consegui ouvir. Eu tive que me fechar para tudo o que ela
era, tudo o que ela poderia ser. Eu lutei para controlar minha respiração enquanto
murmurava minhas palavras de despedida. “Este é o seu último aviso. Pobre Duende.
Você está presa em uma teia de aranha e nem sabe disso. Deixe Manderley para
sempre, ou você será a próxima fantasma a assombrar essas paredes.”
Ainda tremendo do meu encontro com Dorien, além de perder minha visita com
mamãe e encontrar o livro do meu pai, bati a porta do sótão e me joguei na cama,
tirando meus sapatos. Sair foi um erro, isso era óbvio. Passei uma boa hora sendo
golpeada pela chuva enquanto andava no canteiro do jardim sob a janela, procurando
sinais de que alguém tinha estado lá. Mas as únicas pegadas eram as minhas.

Eu deveria ter ido para a cama então, mas enquanto eu andava na ponta dos
pés pelo corredor com minhas roupas úmidas com o livro de contos de fadas debaixo
do braço, eu ainda podia ouvir os outros na Sala Azul, a risada tilintante de Elena e
a voz retumbante de Titus regalando o grupo com histórias da última turnê do Broken
Muse. E eu não pensei depois disso. Eu nem parei para trocar de roupa. Larguei o
livro ao lado da cama, peguei meu violino e corri para o vento cortante.

Eu só precisava tocar. Em algum lugar longe deles. Talvez o vento levasse as


notas para minha mãe. E assim que bati o arco nas cordas, me senti melhor. Fechei
os olhos e me transportei para longe de Manderley, para um tempo e lugar diferentes,
quando mamãe e eu estávamos felizes e o futuro parecia brilhante.

Mas Dorien tinha que me encontrar e arruinar tudo.

Eu me sacudi, como um cachorro se secando depois de rolar em uma poça, e


me joguei na cama. Desejei poder afastar o tremor em meus dedos que não tinha nada
a ver com o frio. Calor se acumulou no meu peito e em outros lugares que eu não
queria considerar.

Quando Dorien me segurou, seus lábios perigosamente perto, seu pau duro
pressionando contra minha coxa, quão perto eu cheguei de me inclinar para beijá-lo,
de saborear as palavras cruéis fluindo de seus lábios como mel?
“Porra,” eu murmurei em meu travesseiro. Esta noite inteira foi uma merda
completa.

Virei-me, acendendo o abajur e puxando o livro sobre a cama para descansar


em meus joelhos. Apertei as páginas familiares entre os dedos, olhando para aquelas
palavras rabiscadas no papel até que deixaram de fazer sentido. Era o livro do meu
pai. Meu livro. A dor de perdê-lo veio em ondas de raiva e desespero, cada uma
poderosa e incontrolável. Eu o joguei fora durante um dos acessos de raiva. Então,
como foi parar em Manderley?

E por que alguém queria que eu o encontrasse?


No sábado, uma semana depois da visita de Solokov, Madame Usher anunciou
durante o almoço que ele ficara tão impressionado que convidou Elena para se
apresentar em Moscou durante as férias de inverno. Tentei sorrir, mas saiu como uma
careta. Do outro lado da mesa, notei que os olhos de Dorien estavam tempestuosos
mesmo quando ele se juntou aos aplausos.

A pele pálida de Elena brilhava de alegria, e um leve sorriso apareceu no canto


de sua boca. Ela se virou para o Mestre Radcliffe. “E Ivan?”

“Esta será uma oportunidade solo, Elena,” Mestre Radcliffe respondeu em sua
voz amigável. “Não se preocupe. Vou acompanhá-la a Moscou para garantir que você
esteja acomodada e ver suas primeiras apresentações.”

O sorriso escapou de seus lábios. Ivan estendeu a mão e apertou a mão dela.
Elena balançou a cabeça. “Eu não posso ir sem Ivan. Eu não vou.”

A tensão estalou na mesa, embora eu não conseguisse entender o porquê. Meu


olhar caiu para o rosto de Ivan, seus olhos cacos de pedras afiadas, prontos para
cortar o Mestre.

“Você vai, e essa é a palavra final sobre o assunto.” Madame Usher olhou para
os gêmeos. “Você precisa crescer algum dia. Vocês dois, aliás.”

Nada mais foi dito sobre Moscou, ou sobre qualquer outra coisa. O almoço
terminou em um silêncio de pedra, Ivan perfurando cada pessoa na mesa com um
olhar gélido. Enquanto eu empilhava a máquina de lavar louça e embrulhava o resto
do rosbife para fazer sanduíches, Harrison entrou na cozinha carregando uma
braçada de madeira.
“Eu trouxe mais lenha. A previsão é de mais uma tempestade nesta semana.
Vamos visitar sua mãe esta tarde?”

“Claro que sim.” Bati a porta da geladeira e limpei as mãos no avental. “Eu posso
sair agora. Só preciso correr para cima e pegar meu violino.”

“Bom. Encontro você na frente da limusine. Se você encontrar com Dorien, diga
a ele que estou esperando.”

“Dorien virá conosco?”

O rosto de Harrison escureceu. “Eu também não gosto disso, mas a família dele
mora perto do hospital e faz sentido todos nós irmos juntos.”

Suspirei. Claro, para salvar o meio ambiente e tudo isso. “Eu sei por que não
gosto dele, mas e você?”

“Ele estava namorando Clare quando ela sofreu o acidente.”

Minha mão voou para minha boca. Dorien? Eu sabia o que Harrison suspeitava,
podia ouvir a acusação escorrendo de suas palavras. Eu tinha visto a crueldade nos
olhos de Dorien dirigidos a mim, mas eu não podia acreditar que o Dorien que eu
conhecia poderia matar uma garota.

Mas eu ainda o conhecia de verdade? Dorien tinha mais segredos do que uma
caixa-forte. Além disso, ele tinha me atormentado desde o momento em que cheguei,
e uma vez ele se importou comigo. Se essa Clare o tivesse contrariado, o que ele
poderia fazer com ela?

Saí da cozinha e fui para as escadas. Enquanto subia, meu olhar caiu para
aquele quadrado vazio na parede onde o retrato costumava estar. Ainda não tinha
voltado da limpeza. Eu me perguntei por que Madame Usher, geralmente tão exigente
para tudo estar em seu devido lugar, ainda não tinha falado com a empresa sobre seu
retorno tardio. Talvez ela reserve toda a sua ira para sua própria equipe, então.

Cheguei ao primeiro andar e me virei para o quarto de Dorien. Ele já estava


encostado em sua porta vestindo uma camiseta preta que grudava em seus ombros,
jeans pretos e botas de combate. Uma jaqueta de couro pendurada em seu ombro
estalou enquanto ele se movia. Cachos de cabelo escuro caíram sobre seus olhos
enquanto ele franzia a testa para o telefone, correndo os dedos sobre a borda de sua
mandíbula. Tão sexy e sem esforço, pena que ele era tão fodido.

Quando me ouviu chegando, Dorien enfiou o telefone no bolso, como se


estivesse escondendo algum tipo de segredo nacional.

“Harrison vai estacionar o carro aqui na frente, então encontre-o lá.” Eu apontei
um dedo para a escada.

Dorien não me reconheceu. Porra, eu odiava essa coisa de me tratar como um


fantasma, especialmente depois do que aconteceu no gazebo. Girei nos calcanhares e
subi as escadas estreitas do sótão até o meu quarto.

Peguei minha bolsa e estojo de violino e desci as escadas de dois em dois, muito
nervosa para me importar em escorregar e quebrar o pescoço. Eu sentia tanta falta
da mamãe. Se ela estivesse acordada e coerente, ela teria conselhos sobre como lidar
com a Manderley e os garotos Broken Muse. Eu podia apenas imaginá-la com um
cappuccino nas mãos, espalhando café quente em todos os lugares enquanto
gesticulava loucamente, me contando uma história de como ela conquistou alguns
executivos difíceis com sua inteligência e perspicácia.

Quando entrei na limusine, Dorien já estava lá dentro, olhando para a tela do


telefone com uma expressão suja. Sentei-me perto da frente, ao lado do bar, e bati no
vidro. Só porque Dorien não falaria comigo durante toda a viagem não significava que
eu tinha que suportar seu silêncio.

“Ei Harrison, você já usou o sistema de som dessa coisa?”

Harrison ligou o botão do rádio e uma forte explosão de estática explodiu pelos
alto-falantes. “Sem recepção até chegarmos mais perto da cidade.”

“Sem problemas.” Apertei o botão do meu telefone para sincronizar o Bluetooth,


depois bati o dedo na lista de reprodução perfeita, as músicas pop animadas que
mamãe adorava tocar enquanto cozinhava ou vasculhava a casa.
A voz de Lady Gaga explodiu no som estéreo. Sentei-me e cantei a plenos
pulmões. E fiquei de olho em Dorien, que não tirou os olhos do telefone nem um
minuto sequer.

Dez minutos na estrada e três músicas pop depois, uma veia latejava na cabeça
de Dorien. Folheei minha lista de músicas, escolhendo música após música que eu
sabia que o deixaria louco. Eu coloquei 'Achy Breaky Heart' e Harrison cantou as
palavras, sua voz um maravilhoso tenor retumbante.

Mantive um fluxo de sucessos dos anos 80, a época favorita da minha mãe, e
estava me divertindo tanto que mal percebi o caminho passar. Harrison virou por uma
estrada estreita. Uma cerca alta de pedra corria ao longo da vala, com arame farpado
enrolando no topo. Dorien olhou pela janela, imóvel como uma estátua. O clima no
carro ficou gelado, e nem mesmo os maiores sucessos de Prince conseguiram derretê-
lo.

Harrison parou do lado de fora de um alto portão de ferro, a única brecha na


parede de pedra em quilômetros. Através das barras estreitas eu podia apenas ver
uma entrada de carros em ruínas curvando-se para as árvores, e uma pilha gigante
de lixo empilhada ao lado do portão. Placas ao longo da parede diziam MANTENHA-
SE FORA e NÃO ULTRAPASSE. Um telhado de dois lados espreitava por entre as copas
das árvores, como uma espécie de fortaleza medieval. “Porque você parou aqui?”
Perguntei. Este é um lugar estranho para fazer uma pausa.

Dorien já havia aberto a porta traseira e saído. “Obrigado.” Ele acenou para
Harrison. “Vejo você de volta aqui às 16h.”

Harrison assentiu, afastando-se do portão tão rápido que as rodas traseiras


giraram. Eu pressionei meu rosto contra a janela traseira, observando os portões se
abrirem para permitir a entrada de Dorien. Seu corpo vestido de preto desapareceu
na distância enquanto nos afastávamos.

“O que é que foi isso?” Deslizei de volta pelo assento de couro e peguei uma
garrafa de suco de maçã do bar.
“Essa é a propriedade Valencourt.” Harrison agarrou o volante com tanta força
que os nós dos dedos ficaram brancos. “Eu não gosto de passar por aqui. Me dá
arrepios.”

“É um sentimento bem preciso.” Estudei o alto muro de pedra e o arame farpado


quando viramos a primeira esquina. Eu visitei a casa de Dorien na cidade de Nova
York uma vez, e era a habitual mansão decadente da elite. Eu imaginei sua
propriedade rural com gramados e estábulos, e não... o que quer que isso fosse.
“Parece mais uma prisão.”

“Uhmmmm. Os pais de Dorien não são vistos em público há dez anos. Há todos
os tipos de rumores estranhos sobre o lugar.”

Esperei que Harrison elaborasse, mas ele não o fez. Entramos na cidade e
Harrison me deixou do lado de fora do hospital. Demorei um pouco para me orientar
e encontrar a ala correta, mas, finalmente, parei do lado de fora de uma sala com uma
placa escrita DE WINTER na porta.

“Ei, mãe. Como estão as coisas?” Eu deslizei na cadeira ao lado de sua cama.
Nenhum plástico duro aqui. O quarto era um pouco como um quarto de hotel de 4
estrelas, se você apertasse os olhos e ignorasse a cama de hospital e as máquinas de
bipe que mantinham minha mãe viva. “Lamento não poder vir na semana passada.
Senti a sua falta.”

Toquei sua mão, me fortalecendo com o calor em seus dedos. Sempre esperei
encontrar sua pele fria e sem vida, por causa de sua aparência. Mas esse calor me
dava esperança, e essa esperança me mantinha ligada a ela, pagando os custos
crescentes do hospital semana após semana.

Ela estava em coma há sete semanas. Seu prognóstico era ruim porque seus
rins estavam falhando, e eles nem sabiam o que havia de errado com ela. Mas eu não
podia suportar o pensamento de minha mãe vibrante, ruidosa e esquecida fora deste
mundo. E assim aguentei, por muito mais tempo do que deveria, mas não consegui
apagar a chama da esperança que queimava dentro de mim.
“Você é a Sra. Usher?”

Eu me virei com a voz. Uma médica jovem estava parada na porta, sua boca em
uma linha nascida de noites tardias e resultados sombrios. Eu desatei a rir.

“Eu não fui expulsa de uma história de terror gótico, então não, não sou eu.”

“Desculpe.” Ela olhou para o tablet em sua mão, uma mecha de cabelo loiro-
avermelhado solto caindo de seu coque e balançando sobre seu rosto. “Eu tenho uma
Usher nos arquivos, junto com um homem chamado Harrison. Ninguém mais a visitou
desde que ela chegou. Eu sou a doutora Henrietta Nelson, e estou assumindo que
você é a sua filha, Faye?”

“Está sou eu.”

“Eu ia ligar para a Sra. Usher no final do meu turno, mas já que você está aqui
agora, posso lhe dizer. Recebemos alguns resultados de testes que lançaram luz sobre
o que aconteceu com a Sra. De Winter. Parece que sua mãe foi envenenada.”
“Envenenada?”

Dra. Nelson assentiu. “Neste momento, não podemos assumir que foi
deliberado; isso é para a polícia decidir.”

“A polícia? Você está dizendo que foi...” Eu não conseguia forçar a palavra
‘assassinato’ a sair dos meus lábios. Essa palavra não poderia pertencer a nenhuma
frase associada à minha mãe.

“Existem duas maneiras pelas quais um veneno pode causar danos ao corpo.
Uma delas é tomar uma grande dose de uma só vez. A outra é quando um paciente
ingere uma pequena quantidade de veneno por um longo período, cada dose individual
não o suficiente para causar um dano visível e, em alguns casos, nem é detectável em
testes, mas com o tempo ele se acumula no corpo até que um dia...” ela olha para a
minha mãe com preocupação.

“Você acha que foi isso que aconteceu aqui?”

Ela assentiu. “Nós chamamos isso de envenenamento crônico, era uma maneira
comum de envenenadores administrarem arsênico durante o século 19, mas não o
vemos com frequência em um hospital moderno, pois as pessoas geralmente vão ao
médico com mais sintomas antes de atingir esse estágio. Não foi arsênico, no entanto,
não é algo que já vimos antes, e é por isso que os médicos de sua mãe não puderam
ajudá-la até agora. Saberei mais quando nosso laboratório identificar o veneno, no
qual estão trabalhando agora como sua principal prioridade. O culpado mais provável
é algum tipo de suplemento não regulamentado ou medicina não tradicional. Sua mãe
estava comendo ou bebendo algo fora de sua dieta habitual, algo que aqueles ao seu
redor não ingeriam?”
Fechei os olhos com força, tentando me lembrar. “Ela costumava tomar esses
chás de ervas especiais. Sua assistente os encomendava a granel e fazia um para ela
todas as manhãs. Mamãe disse que eles ajudavam sua memória e habilidades
cognitivas, mas eles tinham um gosto tão amargo e nojento que eu nunca quis beber.”

“Você teria acesso a alguns desses chás? Se eles são a fonte, isso nos ajudaria
a identificar o veneno.”

“Eu duvido.” Os chás provavelmente tinham sido jogados fora quando o


escritório foi esvaziado pelos síndicos. “Mas posso verificar.”

Envenenada.

A Dra. Nelson deve ter visto o horror em meu rosto, pois ela entrou na sala e
colocou a mão sobre a minha. Suas feições estoicas se transformaram em algo como
um sorriso. “Eu sei que isso é difícil de ouvir, mas pode ser uma boa notícia. Se
pudermos encontrar a fonte do veneno, pode haver uma maneira de criar um antídoto.
Alguns dos sistemas internos de sua mãe foram danificados, mas o coma interrompeu
o colapso de seus órgãos. Não quero aumentar suas esperanças até sabermos com o
que estamos lidando, mas ainda há esperança para se agarrar aqui, mais esperança
do que a maioria possui.”

Eu balancei a cabeça. Meus dedos se fecharam ao redor dos da minha mãe,


apertando tão forte quanto ousei. “Ok. Obrigada.”

“Não me agradeça ainda.” Ela deu um passo para trás, reorganizando seu rosto
de volta em sua máscara prática. “Farei tudo o que puder por ela. Mas Faye, você
precisa falar com a polícia e descobrir tudo o que puder sobre este chá. Se essa for a
fonte do veneno, ele precisa ser retirado do mercado imediatamente. Lidamos com
vários casos de complicações de saúde de pessoas que tomam remédios de ervas feitos
com ingredientes perigosos. O bem-estar é uma coisa muito importante, mas muitos
desses produtos não foram testados. Se pudéssemos salvar outras vidas…”

Minha outra mão se fechou em um punho. “Não se preocupe, eu não vou deixar
ninguém sair impune disso.”
Dra. Nelson saiu e eu peguei meu violino. Eu geralmente tocava Nigun para
minha mãe, mas hoje, eu estava muito nervosa com as notícias para fazer justiça a
essa peça. Em vez disso, lancei-me no Caprice No. 5 de Paganini, enchendo a sala com
ousadia, luz e fúria enquanto meus pensamentos giravam ao meu redor.

Envenenada.

Minha cabeça girou. Não fazia sentido. Era algo saído de um filme ruim de
mistério e assassinato. Dra. Nelson parecia acreditar que poderia ser culpa de uma
empresa de chá de ervas sem escrúpulos, mas havia outra opção. Uma que eu não
gostaria de considerar, mas tinha que fazer.

Alguém poderia ter misturado o chá da minha mãe com outro veneno. Meu
primeiro pensamento foi sua assistente, Natalie, que fazia o chá e que há muito
desejava um papel maior na empresa, mas poderia ter sido qualquer pessoa com
acesso ao depósito onde o chá era guardado.

Mas por que alguém iria querer envenenar minha mãe?

A polícia veio mais tarde naquele dia, e eu dei a eles meu depoimento e uma
lista de nomes de pessoas que eu me lembrava de trabalhar na empresa de mamãe,
bem como uma descrição do chá e sua embalagem. Eles pegaram outra declaração da
Dra. Nelson, então me deixaram sozinha para tocar para mamãe novamente.

A próxima coisa que percebi foi que Harrison ligou para dizer que estava lá
embaixo. Guardei meu violino e beijei sua bochecha quente. No corredor, Dra. Nelson
passou, prancheta na mão. “Obrigada,” eu disse a ela. “Esta é a primeira vez em dois
anos que temos algo parecido com uma resposta.”

“Eu te ligo se descobrirmos mais alguma coisa.” Ela deu um tapinha no meu
ombro. “Você toca lindamente, a propósito. Da próxima vez que você visitar, você acha
que estaria interessada em tocar para alguns de nossos outros pacientes? Não há
muito para animá-los por aqui, então acho que eles adorariam ouvir músicas bonitas.”

“Eu adoraria.”

Do lado de fora, Harrison havia estacionado em uma área de estacionamento


bem do lado de fora das portas. Deslizei para o banco de trás e dei um pulo quando
as feições de Dorien apareceram, emergindo do canto mais escuro da limusine. Ver
aquele sorriso torcendo seus lábios e saber que minha mãe estava no andar de cima
com veneno em suas veias me rasgou por dentro. Eu não poderia lidar com mais
nenhuma de suas merdas hoje.

“Terminei minhas tarefas mais cedo,” explicou Harrison. “Até mesmo peguei
uma nova fechadura para o seu quarto, que instalarei assim que voltarmos. Decidi
sair e pegar Dorien primeiro, para dar a você um pouco mais de tempo com sua mãe.”

Eu balancei a cabeça, um nó se formando na minha garganta. Eu queria


agradecer a Harrison, mas se eu abrisse minha boca, eu começaria a chorar, e me
recusava a chorar na frente de Dorien.

“Você gostaria de ouvir música de novo?” Harrison perguntou quando saímos


do estacionamento.

“Não, obrigada.” Afundei de volta no meu assento, minha mente ainda se


recuperando das notícias da Dra. Nelson e da declaração que acabei de dar à polícia.

À minha frente, os olhos de Dorien se voltaram para os meus, suas profundezas


desviantes mergulhando em mim, tentando extrair meus segredos. “O que aconteceu
com você?”

Eu o ignorei.

Dorien se inclinou para frente, juntando as mãos e apoiando os cotovelos nos


joelhos abertos, dando-me este vislumbre tentador de suas coxas tonificadas, dos
botões em sua virilha puxando a costura. Aqueles olhos passaram por mim, e por um
momento eu estava de volta à sala de prática da escola de Madame Usher em Nova
York, com Dorien sorrindo maliciosamente para mim por trás do piano.
Quando as coisas eram mais simples.

Eu balancei minha cabeça. Eu não o deixaria colocar as mãos nesse segredo.


Ele já sabia muito sobre mim, tinha um aperto muito forte no meu coração. Mas
Dorien nunca aceitou um não como resposta. Seus olhos me atraíam para ele. Em
suas profundezas insondáveis agitavam-se todos os tipos de coisas depravadas e
desviantes, todos os rumores e histórias de suas façanhas, toda a promessa do que
eu poderia sentir em suas mãos experientes. Eu poderia esquecer até de mim mesma
nos olhos de Dorien, e eu tinha que ter cuidado porque agora esse pensamento era
muito tentador.

“Você está chateada.” Suas palavras queimaram minha pele como fogo. Não era
um questionamento. “É a sua mãe?”

“Por que a pergunta? Você não se importa.”

“Faye...” A forma como sua boca se ergueu nas bordas enquanto ele falava meu
nome, e como seus olhos revelavam os pensamentos desviantes que ele mantinha
para sua própria diversão... Foda-se. Eu contaria a ele todos os meus segredos mais
sombrios se aquele olhar fosse realmente para mim.

“Eu vou te contar sobre minha mãe se você me disser por que sua casa está
cercada de arame farpado,” eu atirei de volta.

E só assim, seus olhos se transformaram em pedra. Dorien se inclinou para


trás, cruzando os braços sobre o peito, emparedando-se em uma prisão particular. E
embora eu estivesse grata pelo espaço que ele me deu, parte de mim desejava que ele
rompesse o que o prendia e me dissesse o que ele estava escondendo, para que eu
também pudesse quebrar e compartilhar a dor que carreguei sozinha por tanto tempo.

Mas não era para ser. Nós dirigimos todo o caminho de volta para Manderley
em um silêncio de pedra, olhando um para o outro com cautela de lados opostos da
limusine enquanto o aviso de Harrison soava na minha cabeça.

Quem é você, Dorien Valencourt? O que você tem a esconder?


Meus dias em Manderley se misturavam, uma hora solitária após a outra. Os
alunos continuavam a me ignorar. Na hora das refeições eles conversavam ao meu
redor, enchendo a sala com notícias de seus próximos recitais e visitas de amigos. Na
maioria das noites, um deles se arrastava pelo depósito para me manter acordada.
Aposto que eles se revezavam, porque sempre apareciam para o café da manhã tão
bem descansados, enquanto eu parecia um panda 24 horas por dia, 7 dias por
semana.

Isso não me incomodou tanto. Ou pelo menos, eu disse a mim mesma que não
incomodava.

Minha nova humilhação era o trabalho em conjunto, onde todos tinham que
estar em grupos para trabalhar em concertos. Os gêmeos eram inseparáveis, e os
cacos de safira de Ivan deixavam claro que ele me apunhalaria se eu chegasse perto
de sua irmã. Aroha e Titus tinham definitivamente um flerte acontecendo, uma fervura
de ciúmes doía na minha barriga com a ideia de ficar presa naquele sanduíche, e
Heather parecia permanentemente presa ao quadril de Dorien. Eu saía da sala sempre
que eles tocavam juntos. Eu dizia a mim mesma que era porque era uma pena ver o
talento de Dorien sendo derrubado por Heather, a súcubo que sugava a vida de cada
músico com quem ela tocava. Mas a verdade, era o meu ciúme falando mais alto de
novo.

O que era ridículo para caralho, porque não era como se algum dos Musos
quisesse tocar minhas cordas. Tinha mais a ver com o fato de que eu queria que eles
me vissem como uma igual, como alguém digna de compartilhar seus holofotes. Era
como ser escolhida por último para as equipes das aulas de ginástica, mas apenas
cem vezes pior porque, ao contrário da ginástica, eu era realmente boa para caralho.
No violino talvez, não no sexo. Eu só tinha feito isso uma vez antes. Mas não
que eu quisesse ficar na horizontal com qualquer um dos caras. Eu não tinha vontade
de ter os olhos frios de Ivan fixos nos meus, ou sentir as mãos enormes de Titus nas
minhas costas, ou o pau de Dorien...

Não. De jeito nenhum.

Era um ponto discutível, já que nenhum deles falava comigo. As únicas pessoas
que proferiam palavras em minha direção eram Mestre Radcliffe, durante nossas
aulas, e Madame Usher, para me atacar por alguma infração percebida.

Ainda assim, eu tinha a música. Minha cabeça zumbia com o conhecimento de


Mestre Radcliffe. As horas que eu passava sozinha com meu violino me animavam.
Mas o que me surpreendeu foi o quanto eu comecei a gostar de Composição. Nos
últimos dois anos eu não tinha feito nada além de peças sem futuro, tentando
terminar meus trabalhos escolares e dormir naquela maldita cadeira de plástico
enquanto mamãe fazia exames. Ser capaz de aprender algo por puro prazer acendeu
uma chama dentro de mim que pensei ter se extinguido para sempre.

Uma noite, depois de voltar de outra visita à minha mãe, sem alterações, sem
resultados do laboratório ainda, eu estava na cozinha, planejando os cardápios para
a semana seguinte e cortando e assando um monte de legumes que eu poderia usar
nos próximos dias. Percebi que se eu tomasse cada segunda-feira como uma noite de
preparação, eu seria capaz de cozinhar a maior parte da comida, me dando mais
tempo durante a semana para praticar.

Enquanto eu estava no fogão, caramelizando cebolas, notei uma figura correndo


da varanda em direção às árvores. Aroha. Sem pensar, desliguei o fogão, joguei meu
moletom sobre meus ombros e fui atrás dela.

Atravessei o jardim murado e emergi no caminho coberto de mato que descia


por entre as árvores. O luar brilhou na jaqueta de couro de Aroha enquanto ela
caminhava ao redor do gazebo em ruínas e continuou indo mais fundo na floresta. Eu
a segui, me perguntando se estava cometendo um grande erro. É sempre assim que
as garotas dos filmes de terror são esfaqueadas, estripadas ou comidas vivas...
O caminho emergiu em uma pequena clareira. Podia ter sido lindo um dia, um
anel de árvores ao redor de uma estufa abobadada. Mas a negligência cobriu a
estrutura de ervas daninhas, quebrou várias vidraças e deu às plantas ao redor uma
vida própria. Elas cresceram demais em seus vasos, com tanta vivacidade que se
emaranharam em uma bagunça impenetrável que se espalhava por todas as
rachaduras e reentrâncias disponíveis, arrastando trepadeiras e delicadas gavinhas
florais pelo chão da floresta. Aroha estava sentada em um vaso de terracota virado
para cima, envolta na sombra de alguma planta estranha com folhas retorcidas e
alongadas. Um cigarro pendia de seus lábios.

“Cai fora, lixo,” ela murmurou quando me viu, mas as palavras não tinham
veneno algum.

Mudei meu peso de pé para pé. Aroha estava falando comigo, por vontade
própria. Claro, pode ter sido um insulto, mas mostrava uma coisa, Aroha não estava
de acordo com as regras que Dorien havia colocado em prática. Uma esperança tola
surgiu em meu peito, o tipo de esperança nascida da solidão e do desespero.

Eu levantei uma sobrancelha. “Posso fumar um cigarro?”

Aroha deu de ombros. Tomei isso como um convite. Peguei outro vaso e o virei,
caindo na superfície úmida ao lado dela. Peguei o maço de cigarros com cuidado,
esperando que ela o arrancasse das minhas mãos. Ela olhou para a caixa como se
estivesse debatendo, então deu de ombros novamente. Tirei um cigarro do maço e
levei-o aos lábios. Eu realmente não fumava, mas tentei algumas vezes na minha
escola de merda na tentativa de me encaixar. Acontece que fumar não torna os nerds
idiotas da música mais legais, a menos que você se pareça com Dorien Valencourt.
Quem teria adivinhado, não é mesmo? Às vezes eu compartilhava um cigarro com os
outros funcionários depois de um turno tardio no bar, Cory, O esquisito, não podia
estar perto de fumaça de cigarro por causa de sua asma, então isso me deu uma
pausa em seus comentários lascivos sobre meu corpo.

O silêncio se estendeu entre nós.

“Você vem muito aqui?” Perguntei.


“Se você tivesse dito que queria conversar, eu não teria dado a você um cigarro,”
Aroha retrucou sem olhar para mim.

Minha vez de dar de ombros. “Ok.”

Dei uma longa tragada no cigarro, deixando a fumaça encher meus pulmões.
Uma calma tomou conta do meu corpo. Isso quase parecia normal.

“Eu venho aqui porque às vezes não aguento naquela casa,” Aroha disse,
batendo seu anel de diamante contra a terracota. “Todos aqueles móveis
extravagantes. Todos aqueles olhos mortos olhando para você das paredes. Parece
uma cápsula do tempo ou a casa de uma pessoa depois que ela faleceu. Gosto de estar
aqui onde as coisas estão vivas, recuperando os limites da propriedade. Faz eu
lembrar da minha casa.”

“Onde é a sua casa?” Eu perguntei, ousando continuar a conversa. A solidão


doía dentro de mim. Eu não percebi o quanto eu estava perdendo interagindo apenas
com uma pessoa, o quanto eu ansiava pela risada ruidosa da minha mãe. Aroha me
lembrava dela em alguns aspectos.

“Nova Zelândia. Meus pais dirigem uma igreja. Costumávamos viver à beira de
uma cordilheira chamada Waitakeres. Passei minha infância subindo em árvores,
caçando coelhos, pegando enguias no riacho. Então papai decidiu se tornar um
pregador e nos mudamos para a cidade, e então eles me mandaram para cá.” Ela
parecia amarga sobre isso, mas podia ser apenas sua relutância em falar comigo.

Ah, o sotaque dela fazia todo o sentido agora. “Você sente falta da Nova
Zelândia? Deve ter sido interessante crescer lá.”

Ela deu de ombros. “Foi normal, eu acho. Não há exatamente hobbits selvagens
correndo por toda parte como a maioria dos americanos supõe. Minha família é Maori,
o povo indígena de Aotearoa, Nova Zelândia. Nós vivíamos em nosso marae, é como
uma casa de reunião para nossa comunidade. Fui praticamente criada por minhas
tias e primos. Sempre havia música, risadas e jogos. Meus pais desistiram de muita
coisa quando se mudaram para a cidade, e a cidade nem sempre os aceitava em troca.
É o mundo de Pakeha.”

“Pakeha?”

“Pessoas brancas.” Ela me deu uma cotovelada no braço. “Eles me mandaram


para um internato católico, todo empertigado e correto e branco para caralho. Não
havia instrumentos tradicionais, então eu aprendi a tocar violino.”

“Mas você ama a música.” Aroha adorava peças atonais, que tocava com uma
agressividade solta.

"Claro. Mas mais do que isso, eu amo ser uma garota não-branca em um mundo
de músicos brancos.” Ela sorriu. “Apenas espere, lixo. Assim que eu sair daqui, vou
usar essa educação clássica para trazer minha herança musical para o centro das
atenções. Eu tenho planos, então não os estrague para mim deixando transparecer
que eu tolero sua presença.”

“Como isso atrapalharia seus planos?”

“Nós não devemos falar com você. Ordens de Dorien. Normalmente, eu não dou
a mínima para o que alguém diz, e você parece inofensiva, mas os garotos do Broken
Muse parecem particularmente ansiosos para tirá-la daqui, e eles têm uma conexão
direta com Madame Usher. Preciso que ela goste de mim ou não vou me formar.” Uma
escuridão passou pelos olhos de Aroha, mas desapareceu em um momento.

Inclinei-me para frente, balançando meu cigarro entre os dedos, meu coração
batendo forte. Ela sabia de alguma coisa. “Você acha que se você não fizer o que Dorien
pede, ele poderá influenciar Madame Usher?” Ele realmente mexeria com toda a
carreira de alguém assim?

Aroha deu de ombros. “Você conhece Dorien? O cara é gostoso como o pecado,
mas ele tem os olhos loucos de um assassino em série.”

“Você estava aqui quando Clare... Caiu da escada?” Lembrei-me bem a tempo
de não revelar as suspeitas de Harrison a ninguém, muito menos a uma colega
estudante.
“Sim.” Ela estremeceu com a lembrança. Estendi a mão atrás de mim, curiosa
sobre a estranha planta saindo de uma rachadura no vidro. “Todos nós estávamos na
casa, exceto os gêmeos, que estavam em um recital. Clare estava meio louca, muuuito
obcecada por Dorien, mas ele... Não toque nisso!”

Aroha deu um tapa na minha mão. Forte. A picada de dor deixou uma marca
em minha palma. Eu esfreguei o local. “Porque você fez isso?”

“Isso é planta monk. É altamente venenoso. Se você deixar a seiva tocar na sua
pele, é um grande problema.”

“Como você sabe?”

Aroha apontou para a estufa. “Olhe em volta. Este lugar inteiro é um jardim de
veneno.”

“Um... o quê?”

“É uma curiosidade vitoriana. Aparentemente, um dos ancestrais Usher se


imaginava um botânico. Ele coletou todas essas diferentes plantas venenosas de todo
o mundo e as cultivou dentro da estufa. Ele fez muitos experimentos e algumas
descobertas científicas importantes. Madame Usher avisou a todos nós para não
virmos até aqui, aparentemente, algumas das plantas são tão tóxicas que você só
precisa passar por elas para cair e morrer. Veja.”

Ela apontou para um painel de madeira podre acima da porta fechada. Olhei
para ele, sem saber ao que ela estava se referindo, quando letras esculpidas
apareceram. Uma frase em latim: In cauda venenum.

A mesma frase tatuada no peito de Dorien.

Minha boca secou. “Você sabe o que isso significa?”

Ela bufou. “Certo. Como se eu tivesse tempo para estudar latim.”

Porra. Porra.

Minha mente zumbiu com pensamentos impossíveis. Como o porquê de Dorien


ter a mesma tatuagem de um jardim envenenado, e como estou descobrindo isso logo
depois que soube que minha mãe foi envenenada. A visão de um corpo amassado ao
pé da escada brilhou em minha mente novamente.

Não, é impossível.

Aroha deve ter visto algo no meu rosto porque sua expressão suavizou. “Olha,
Dorien não é realmente um serial killer. Ele é apenas um merda arrogante. Um
fodidamente lindo, mas um merda mesmo assim.”

Eu sorri. “Ele é realmente um grande pau idiota.”

Aroha jogou a cabeça para trás e riu. “Você é legal, lixo. Venha fumar um cigarro
comigo a qualquer momento.”

“Mas você não vai falar comigo dentro da casa?”

“De jeito nenhum. Não vou correr o risco de estar sob a ira deles. Não é apenas
com Dorien que você deve tomar cuidado, Titus e Ivan também não são anjos. Um
pequeno conselho, lixo. Todos em Manderley estão fugindo de alguma coisa. Os Musos
fazem questão de descobrir o que é esse algo, e então eles o usam para dobrar você à
vontade deles. Mantenha seus segredos bem guardados. Não os deixe entrar na sua
cabeça, ou eles vão arrancar seu coração enquanto ele ainda está batendo. Foi o que
fizeram com Clare.” Ela se levantou, esmagando a ponta do cigarro na terra com o
salto da bota. “Devemos voltar.”

Enquanto caminhávamos de volta pelo caminho, meus olhos examinavam a


fachada de Manderley. Desse ângulo, a casa parecia ainda maior e mais agourenta,
saída diretamente de um romance de Bram Stoker (o autor do Drácula), especialmente
devido ao número de romenos sensuais vagando por seus corredores. Senti um
pequeno vislumbre de paz quando meus olhos pousaram na janela do meu quarto.
Tem sido meu pequeno quadrado de santuário desde que Harrison trocou a fechadura.
Deixei a luz acesa porque a lâmpada no topo da escada explodiu. Eu podia apenas
distinguir o contorno da borda do meu cabideiro e...

Eu suspirei.

Lá, na janela, olhando para nós através do vidro, estava o contorno de um rosto.
“Merda.” Eu avancei, colidindo com Aroha. Ela cambaleou em suas botas altas,
jogando o braço contra um tronco de árvore para não cair.

“Que porra foi essa, lixo?”

“Você está vendo aquilo?” Eu apontei um dedo para a janela do sótão.

“Vendo o quê?”

“Aquele rosto no meu quarto. Estava olhando diretamente para nós...” O rosto
havia sumido.

“Eu não vejo nada. Ei, onde você está indo?”

Saí correndo em direção à casa, meu coração batendo no meu peito. Ah, não,
de novo, não.

Havia apenas uma escada até o sótão. Se eu pudesse chegar lá rápido o


suficiente, eu seria capaz de ver quem subiu até lá. Abri a porta da cozinha. Ela se
fechou atrás de mim enquanto eu corria pelo espaço, pegando o atalho pelo corredor
dos empregados até o saguão de entrada principal. Enquanto eu subia as escadas de
dois em dois degraus, a risada tilintante de Heather flutuou da Sala Azul, e a vibração
inconfundível de notas que só poderia ter sido Elena. Então não era nenhuma deles,
de jeito nenhum elas teriam sido rápidas o suficiente para chegar àqueles quartos sem
que eu as visse ou ouvisse.

Cheguei ao segundo patamar e olhei ao redor. Nenhum dos quartos estava


aberto, e ninguém estava no corredor. Talvez a pessoa ainda estivesse lá em cima,
tentando se esconder. Eu balancei o chaveiro no meu bolso. Eu não deixaria que
fugisse dessa vez.
“Eu sei que você está aí em cima,” eu chamei, tentando manter minha voz firme
enquanto subia os degraus de dois em dois. No patamar superior, fiz uma pausa,
minhas orelhas formigando. Tudo estava em silêncio.

Muito silêncio.

Meu coração despencou no meu peito quando percebi que não havia luz
brilhando pela fresta debaixo da minha porta. Enfiei minha chave na fechadura nova
e lentamente, com cautela, abri.

A luz do meu quarto estava apagada.


Merda.

Acendi a luz, entrando corajosamente no quarto, embora meu coração


martelasse contra meu peito. “Tudo bem, você pode sair agora.”

Meus olhos varreram meus móveis. Eu tinha deixado os livros assim? Minha
gaveta de roupas íntimas deveria estar entreaberta? E aquele amassado na cama?
Tudo parecia manchado, sujo, porque eu sabia que alguém tinha estado aqui.

Como eles entraram? Como eles conseguiram uma chave para a minha nova
fechadura?

Olhei para cada canto escuro e em cada esconderijo concebível, meus ouvidos
atentos ao som de alguém fugindo escada abaixo. Mas não havia nada. A sala estava
vazia.

Claro, eles não se esconderiam aqui. Eles deviam estar na sala de


armazenamento. Eles sabem que eu não tenho a chave de lá.

Apontei a lanterna do meu telefone para o grande buraco da fechadura do


depósito e tentei espiar dentro, mas estava tão escuro que tudo o que pude ver foi a
silhueta pálida da lua através da janela, atrás de caixas e móveis velhos. Se a pessoa
ainda estivesse lá dentro, não estava se movendo.

“Eu sei que você está aí.” Eu bati na porta com os meus punhos. “Mostre-se.”

O medo apertando meu peito se transformou em raiva. Isso é ridículo. Ninguém


está aqui. O invasor deve ter escorregado enquanto eu estava no meu quarto. Ele
provavelmente é ótimo em se esgueirar devido a todas as noites em que sobe aqui sem
que eu o pegue. Na verdade, esta é uma casa antiga, provavelmente há passagens
secretas ou algo assim. Sempre há uma passagem secreta nos filmes.

Dei meia-volta e desci as escadas. Corri em direção à porta de Dorien, mas sua
voz flutuou da Sala Azul abaixo. Não podia ser ele, então. Mas eu sei quem podia ser.

Agarrei a maçaneta do quarto de Titus e torci, esperando que ela estivesse


trancada. A porta se abriu, e eu tropecei por ela, meu pé pegando na borda do tapete
e me fazendo girar. Meu joelho estalou contra uma estrutura de metal da cama, e
minhas mãos deslizaram em algo grande e quente enquanto eu lutava para me
equilibrar.

Os lençóis farfalharam. “Que porra é essa?” O rosto de Titus apareceu ao lado


da cama quando eu rolei, meu joelho latejando.

“Não me venha com 'que porra é essa'.” Fiquei de pé com o máximo de dignidade
que pude reunir e me inclinei sobre a cama, mãos nos quadris, pernas afastadas, me
tornando maior do jeito que um gato eriçava o pelo antes de entrar em uma batalha
com um pitbull. “Você estava no meu quarto. E se esgueira para o depósito toda noite.
Eu ouvi você.”

Eu pretendia ameaçar Titus com a polícia, com qualquer coisa que eu pudesse
para fazê-lo parar de invadir meu quarto e perturbar meu sono com os passos no
depósito. Mas agora que eu estava aqui, e ele olhou para mim com cílios emaranhados
e um vinco de travesseiro em sua bochecha, seu lençol escorregando sobre seu torso
gloriosamente tatuado, as palavras secaram em minha garganta.

Titus esfregou os olhos. Ele certamente parecia estar dormindo. Mas eu não
tinha imaginado o rosto ou a luz se apagando no meu quarto. E ele admitiu ter estado
lá uma vez.

Antes que eu pudesse encontrar as palavras, a mão de Titus disparou,


circulando meu pulso. Ele se levantou de entre os lençóis, revelando tatuagens de
cobras entrelaçadas sobre sua pele escura e abdômen que pertenciam a um
fisiculturista. Como o cara conseguiu esse físico tocando violoncelo? Meus dedos
coçavam para tocar a pele de Titus, para arrastar minhas unhas sobre aquelas cobras,
para vê-las dançar enquanto ele rolava em cima de mim e...

Titus se inclinou tão perto que sua respiração beijou meus lábios. O ar entre
nós chiava com a tensão. Eu não sabia o que aconteceria a seguir, apenas o que eu
queria que acontecesse.

“Eu não estive nem perto do seu quarto.” Uhmmmm, seu sotaque de Nova
Orleans ficava mais aparente quando ele estava cansado.

“Sim, você estava,” eu consegui sufocar. “Eu estava do lado de fora com Aroha
e vi um rosto na janela. Eu estava do lado de fora e vi a luz do meu quarto acesa e,
quando voltei, estava apagada.”

“Não era eu.” Titus agarrou a corrente em volta do pescoço e a balançou na


frente do meu rosto. Uma chave. O tipo exato de chave que abria a velha fechadura
da porta do meu quarto. “Não funciona mais. Não subo desde aquela primeira noite,
quando vi você babar no travesseiro.”

“Onde você conseguiu isso?” Eu pulei para pegar a chave, mas Titus a segurou
além do meu alcance.

“Clare deu uma cópia para Dorien para que ele pudesse se esgueirar durante a
noite. Eu podia ouvir a cama ranger daqui. Um aviso amigável para você, lixo, Dorien
tem uma coisa real sobre transar com as ajudantes. Deve ser algo sobre este vestido
preto apertado.” Titus esfregou o dedo dentro do meu braço, e mesmo através do tecido
grosso de lã, seu toque enviou um fogo pelo meu corpo.

Eu sabia que estava perdendo rapidamente o controle da situação e de mim


mesma, mas a raiva e a violação ainda corriam em minhas veias. Eu preciso ter essa
chave. Era um símbolo que demonstrava que o meu espaço era apenas meu de novo.
Pulei novamente, pegando Titus de surpresa. Quando encostei na chave, meu peito
roçou o dele, enviando um choque através de mim como se eu tivesse enfiado meus
mamilos em uma tomada elétrica. Titus sentiu isso também, porque seus olhos se
estreitaram, os cílios se entrelaçando.
Titus não recuou. Em vez disso, ele se inclinou para mais perto, seus dedos
dançando no meu braço enquanto eu tentava pegar a chave. Minha respiração saía
em ofegos irregulares enquanto eu lutava contra o meu desejo. Seu rosto estava a
centímetros do meu, tão perto que seu cheiro de almíscar e mirra giravam ao meu
redor, e as notas de rosa evocavam uma memória que queimava minha pele com dor.
Rosas enviadas para o quarto de hospital da minha mãe pelos membros do conselho,
quando ela achava que estaria curada em uma semana, antes do coma e do
envenenamento e...

“Você deveria ficar longe de mim,” Titus assobiou. Sua voz profunda reverberou
por todo o meu corpo, me trazendo de volta para mim mesma, para o momento
presente, para a escassa polegada de ar que era tudo o que me protegia do erro mais
delicioso da minha vida.

“Ou o que?” Tentei lançar isso como um desafio, mas as palavras saíram roucas,
cheias de desejo.

“Ou...” Ele escolheu terminar o pensamento com seus olhos, o fogo dentro deles
prometendo escuridão, depravação e bela obsessão. A tensão estalou entre nós, uma
tempestade de raios piscando entre nossos olhos. Por que, por que deixei Titus fazer
isso comigo?

Os dedos de Titus caminharam sobre meu pulso, trilhando ao longo das veias
pulsando contra minha pele. O toque foi leve, mas deixou um rastro de fogo contra
minha pele que derreteu minhas entranhas em uma bagunça vacilante. Minha
respiração engatou, e eu me atrevi a me inclinar um pouco mais perto, um pouco...
Apenas para sentir o ar mudar quando seus lábios roçaram os meus...

“Mano, você não vai acreditar.... MAS QUE PORRA É ESSA?”

Dorien. Sua voz quebrou o feitiço. Eu soltei meu braço do aperto de Titus e me
virei para a porta. Dorien estava no corredor, uma tempestade em seus olhos
cinzentos, a tensão apertando seus ombros que não paravam de tremer. Titus olhou
com olhos esbugalhados para seu amigo, sua boca se movendo, mas nenhum som
emergindo, enquanto eu cambaleava em direção à porta, empurrando Dorien da
minha frente.

Vergonha queimou minhas bochechas enquanto o fogo em minhas veias esfriava


em gelo. Que porra acabou de acontecer? O que eu estou fazendo? Aquele cara admite
abertamente me atormentar, e eu estava prestes a... eu queria...

Que soem as trombetas, eu quero transar com os meus valentões.


“O que foi isso?” Dorien exigiu.

“Ela acha que eu estava no quarto dela.” Eu levantei meus joelhos para que
Dorien não tivesse que ver a barraca nos lençóis. Minhas veias latejavam com o fogo
da presença de Faye. “Não foi você? Aparentemente, ela estava do lado de fora com
Aroha e alguém apagou a luz do quarto dela.”

“O que ela estava fazendo lá fora com Aroha? Nossa regra de não falar com o
lixo ainda se aplica.” Dorien olhou para mim.

Dei de ombros. “Você sabe que Aroha gosta de ignorar as nossas regras.”

“E ela não é a única.”

“Então não era você que estava lá em cima?”

Dorien balançou a cabeça. “Não há como entrar com a nova fechadura que
Harrison instalou.”

Afundei na minha cama, o cheiro de Faye girando ao redor. Quando ela entrou,
seu cabelo selvagem ao redor de seu rosto e aquele olhar desafiador em seus olhos,
eu estive tão perto de...

A única coisa que me parou foi Dorien. Ele pairava na sala, um fantasma entre
nós, antes mesmo de aparecer na porta.

“E o depósito? Ela parecia pensar que alguém esteve lá em cima à noite, batendo
nas paredes e coisas do tipo.”

“Usher nunca entregaria a chave daquele lugar, nem mesmo se isso significasse
tirar Faye daqui para sempre. Duende provavelmente ouviu ratos ou algo assim.
Porque você se importa, afinal?”
Duende. Ouvir aquele apelido de infância voar de seus lábios fez meu estômago
revirar de inveja. Poderia facilmente ter sido eu a ter uma história com Faye, se meus
pais tivessem me mandado para uma escola diferente em Nova York. Desviei o olhar
para não desmoronar sob o olhar de Dorien. “Eu não me importo. Só acho que é um
desperdício de energia aterrorizá-la. Ela é uma musicista de merda e não consegue
atender à todas as demandas de Madame. Ela vai acabar se expulsando daqui.”

“Que energia? A única coisa que você precisa fazer é não falar com ela, mas,
aparentemente, até isso é muito difícil. Heather e eu estamos cuidando do resto.” O
tom petulante na voz de Dorien me lembrou da primeira vez que nos encontramos em
um acampamento de música no Colorado na nossa adolescência, e ele reclamou com
a equipe porque não queria dividir um quarto comigo. Era difícil decidir se
acabaríamos amigos ou inimigos amargos, mas Dorien tinha um magnetismo que
atraía qualquer um, e eu era uma criança desesperada pela aprovação de qualquer
pessoa. Quando o acampamento terminou, éramos como um velho casal. O tipo de
casal em que Dorien era o alfa e eu concordava com tudo o que ele dizia.

“Você me fez entrar no quarto dela junto com Heather. Enquanto ela dormia.”
Um calafrio percorreu meu corpo. Eu não gostei do jeito que isso me fez sentir, como
um perseguidor assustador. Foi por isso que contei a Faye, mesmo disfarçando a
história como outra parte de sua tortura. Ela merecia saber a verdade.

“Está bem. Eu não vou pedir para você fazer isso de novo. A partir de agora,
considere-se fora do plano.”

Eu balancei minha cabeça. “Não é assim também. Eu não quero ficar de fora.
Eu só…”

“O quê?” Dorien latiu. Ele parecia chateado para caralho, mas eu sabia que o
que se escondia por baixo desse aborrecimento era o medo. Eu nunca tinha visto
Dorien com medo antes, não do jeito que ele estava desde que voltamos para
Manderley.

E ele não é o único.


Eu rolei, empurrando meus pés para fora da cama e ficando na frente dele,
trazendo metade dos cobertores comigo. “Eu preciso ir para o depósito de madeira.”

“Nós não terminamos aqui.”

“Terminamos sim.” Caí de joelhos e enfiei a mão debaixo da cama, arrastando


uma mala para a luz.

Dorien endureceu quando viu o que eu estava segurando. “Você não deveria
guardar isso aqui. Se ela descobrir...”

“Qual é a pior coisa que ela pode fazer comigo, afinal?”

Dorien sorriu para isso. Ele pegou uma camiseta preta da minha cômoda e jogou
no meu peito. “Verdade. Mas tenha cuidado, você não é o único que ela segura pelas
bolas. Não tenho certeza se posso protegê-lo.”

Eu me endireitei, meus olhos encontrando os dele, e uma mensagem silenciosa


passou entre nós. As pessoas ouviam Dorien nos shows e liam sobre o que ele fazia
nos tabloides e achavam que o conheciam. Eles viam o bad boy, o desviante, aquele
que zomba da música clássica séria. Mas eu via algo diferente, a única pessoa que me
protegeu mesmo quando eu fodi tudo de novo e de novo. O cara que nunca disse que
eu não era bom o suficiente. O amigo que nunca colocou um preço em sua lealdade.
“Obrigado.”

Vesti a camisa e um jeans, e escorreguei escada abaixo, estremecendo quando


pisei em uma tábua solta e um rangido alto ecoou na casa escura. No andar de baixo,
caminhei pelo corredor dos empregados e pela cozinha. O cheiro de Faye grudava em
cada superfície, escondido atrás das especiarias mexicanas que ela usava
generosamente em sua cozinha.

Aquele cheiro fazia coisas com a minha cabeça. Eu não conseguia pensar, porra.

A mala bateu na minha perna enquanto eu saía para o ar gelado da montanha


e corria pela grama. Sobre o gramado, descendo o caminho, contornando a parte de
trás do galpão até a porta trancada. Eu menti para Faye, Heather estava com a chave
de seu antigo quarto. A que está em volta do meu pescoço desvenda os meus próprios
segredos.

Eu destranquei a porta do depósito e a abri com um chute, arrastando a mala


pesada para dentro e trancando-a atrás de mim. Apontei a lanterna do meu telefone
até encontrar o que estava procurando, o pequeno gerador que montei aqui para me
dar luz e energia. Liguei-o, e o estrondo baixo enviou um arrepio de antecipação
através de mim.

Eu destravei a mala. Ela se abriu. Meu segredo olhou para mim, bonito e mortal.

Imagens e sensações giravam em minha mente, o rosto de Faye se aproximando


de mim, aqueles lábios sensuais entreabertos levemente, a sensação de sua pele
estremecendo sob meu toque, quando alcancei dentro da mala e puxei para fora.
A luz do sol entrava pelas janelas altas do estúdio do décimo segundo andar,
lançando ondulações douradas na cascata do cabelo de Faye. Ela olhava para longe
de mim, para a cidade lá embaixo, o violino contra o pescoço enquanto cortava as
cordas com o arco em seu estilo exagerado de assinatura. Hoje ela tocou uma
assombrosa peça de Bach que agarrou meu coração e apertou muito forte. Ou talvez
fosse apenas a sensação da realidade do que eu estava prestes a fazer.

Faye terminou o movimento com uma nota baixa e trêmula, recuando e


curvando-se para seu público imaginário. Bati palmas, o barulho soando como tiros
no vasto espaço vazio.

“Dorien.” Faye se virou. O sorriso em seu rosto vacilou quando ela viu meu
rosto. “Qual é o problema?”

“Vim me despedir.”

“O que você quer dizer?” Seu cabelo saltou em seus ombros. “Você acabou de
chegar aqui. A aula começa em quinze minutos...”

“Quero dizer que esta é a última vez que nós veremos. Mamãe me transferiu
para outra escola de música.”

“Oh, isso é chato.” Mas seu rosto se iluminou. “Já sei! Vou pedir à mamãe que
me transfira também. Eu não suporto Madame Usher, de qualquer maneira. Ela não
parece gostar muito de mim. Acho que ela só me atura por causa do papai...”

Eu balancei minha cabeça. Ela não entendeu.

Endureça seu coração.


“Eu não quero que você se transfira. Estou indo embora por sua causa. Não
quero te ver de novo.”

O rosto de Faye congelou em choque. “O quê? O que você quer dizer? Íamos
tocar Beethoven juntos e...”

“Eu não quero nada com você, Duende.”

Lágrimas brotaram nos cantos de seus olhos. “Não use esse nome quando
estiver sendo horrível. É porque eu fui à sua casa na semana passada? Desculpe por
ter forçado você a me convidar, mas nos divertimos, não foi? Dorien, por favor,
explique isso para mim.”

Por favor, por favor, não torne isso ainda mais difícil.

“Não há nada para explicar. Eu não gosto de você, Faye. Fingi gostar de você
porque meus pais queriam que eu me aproximasse do seu pai. Mas não vale mais a
pena.” Eu estreitei meus olhos e conjurei os desejos sombrios e o ódio fervente que
queimava dentro de mim, e os joguei entre nós como um guerreiro grego erguendo seu
escudo.

Na época eu não entendia inteiramente o porquê de ter feito as coisas daquele


jeito, mas agora entendia. Ela tinha que me ver como uma pessoa ruim, como esse
idiota egoísta e egocêntrico que não valia seu tempo. Eu tive que dar a ela toda a
munição que ela precisava para me esquecer.

Era a única maneira de ela estar segura.

“Dorien, eu...” Suas palavras foram sumindo quando as lágrimas caíram sobre
seus olhos e rolaram por suas bochechas. Faye nunca chorava, nem mesmo quando
Madame Usher gritava com ela ou quando seu pai saiu em turnê e se esquecia de
ligar. Ordenei aos meus pés que se movessem, que fossem até ela para que eu pudesse
abraçá-la e tirar sua dor. Mas eu não podia. Porque eu era a raiz daquela dor, a causa
daquelas lágrimas.

“Não entendo.” Faye deslizou em uma otomana estofada, seu violino caindo em
seu colo. “Pensei que seus pais gostassem de mim. Na sua casa eles disseram...”
“Eles estavam sendo educados. E eu também.” Eu me virei. Se eu tivesse que
olhar para ela por muito mais tempo, eu estragaria tudo.

“Dorien, espere!” A rachadura em sua voz enviou um estremecimento pelo meu


corpo. Mas eu não me virei.

Cada centímetro de mim gemia em protesto, mas me afastei.

Fora da sala.

No elevador.

Do outro lado do estacionamento.

Longe dela.

Não era tão difícil fingir ser um idiota. E talvez eu não estivesse fingindo. Afinal,
aprendi com os melhores.

Minha mãe esperava na parte de trás do carro, seu casaco marrom puxado em
volta do pescoço. Assim que eu deslizei no banco, ela indicou para o motorista nos
levar para casa.

Mamãe deu um tapinha na minha perna. “Não é tarde demais para mudar de
ideia, Dorien. Ela é uma boa combinação; Mesmo o padre Aaron diz isso.”

Eu balancei a cabeça. Eu não conseguiria falar nada no momento, apenas


gritar.

“Não se preocupe.” Ela tinha aquele brilho falso em sua voz, o tom que ela
sempre usava quando o padre Aaron queria que fizéssemos algo com o qual ela não
concordava. O tom não carregava poder algum, mas ela jamais o contradizia. “Já
encontramos para você alguém ainda melhor, de uma família menos volátil. Você a
conhecerá em sua nova escola. O nome dela é Heather Danvers.”

Meu telefone apitou, me assustando para fora do meu sonho. Esfreguei os olhos,
tentando apagar a imagem do rosto esperançoso de minha mãe e as bochechas de
Faye manchadas de lágrimas. Corri para o telefone, meu coração batendo forte quando
vi que era uma mensagem dele.
Ei, espero não acordar você, mas as coisas estão ruins aqui. Aaron bate na mãe,
ele está com raiva o tempo todo e continua falando sobre essa coisa chamada ascensão.
Eu queria que você voltasse.

Essa foi a mensagem mais longa que ele já enviou. Deve ter levado muito tempo
para ele escrever todas as palavras. Meus pais nunca permitiram que ele estudasse
adequadamente, então ele era lento na escrita e na leitura.

Meu peito torceu com ódio frio e feio. Como eles não podiam ver o que estavam
fazendo com ele? Como eles podiam acreditar que está vida era melhor? Minha mãe
costumava me culpar por isso. “Você acabou desse jeito porque nós lhe demos tudo
em uma bandeja de prata. Você não tem disciplina. Está corrompido pelo mundo da
riqueza material. Não cometerei os mesmos erros duas vezes.”

Não, acabei desse jeito porque você nunca me amou a menos que eu cumprisse
com suas condições. Porque eu nunca fui bom o suficiente, então parei de tentar. Porque
você continua me chamando de 'erro'.

Eles nem me deixaram vê-lo quando o visitei há algumas semanas. O padre


Aaron me conduziu para o quarto que uma vez foi nosso recanto de café da manhã,
agora vazio de todos os móveis, exceto por um círculo de travesseiros encaroçados no
chão. A raiva irradiava dele em ondas. Ele não me queria lá com minhas roupas
extravagantes e perfume caro, lembrando os outros das tentações do mundo lá fora.

Mais do que tudo, eu queria escapar dessa jaula que fiz para mim mesmo no
dia em que deixei de ter Faye como minha amiga, mas estava preso. As palavras de
Madame Usher ecoavam em meus ouvidos. Uma nova aluna chegará em breve. Eu
preciso que você a destrua. Faça o que eu digo, ou eu vou cortar você do programa.
Quanto tempo você acha que vai durar quando o mundo descobrir a verdade sobre sua
família?

Ela pensou que isso era tudo com o que eu me importava. Mas ela não sabia
nem a metade.
Claro, Madame se lembrava de que Faye e eu éramos amigos. Foi por isso que
ela me escolheu; se alguém pudesse se enterrar no coração de Faye e apodrecê-la por
dentro, seria eu. E era isso que eu estava fazendo, transformando tudo o que tocava
em cinzas e pó.

Fiquei acordado, imaginando Faye em sua cama acima de mim, vestindo aquele
pijama sexy para caralho do Snoopy que se agarrava às suas curvas, fumegando
porque eu havia interrompido o que quer que estivesse acontecendo entre ela e Titus.
E mesmo que o pensamento deles se tocando fizesse meu corpo queimar de ciúmes,
eu não me importei, porque Titus era um cara bom, quase bom o suficiente para ela.
Ele não iria bagunçar as coisas com ela... Não a menos que eu mandasse.

Mas o que eu queria era diferente…

Imaginei-me rastejando escada acima, rolando na cama ao lado de Faye, meus


dedos emaranhados em seu cabelo enquanto eu traçava um caminho de beijos ao
longo de seu pescoço, através de sua clavícula, meus lábios se fechando sobre seus
mamilos até que ela se contorcia e implorava por mais. Uhmmmm. Ouvir Faye De
Winter implorar por mim...

Mas eu permaneci quieto, paralisado mesmo quando meu pau estremeceu com
antecipação, revirando a situação em minha mente, procurando por uma brecha, uma
solução.

Não havia nenhuma.

Eu não poderia ajudá-lo sem o Prêmio Manderley. E eu não poderia ganhar o


prêmio a menos que Faye deixasse Manderley. A menos que eu a quebrasse. E meu
tempo estava acabando.
De quem era aquele rosto?

Inclinei-me sobre meu laptop no meu canto da biblioteca. Eu deveria estar


trabalhando em um ensaio sobre o compositor Sibelius, mas não conseguia me
concentrar. Meus dedos continuavam traçando a pele do meu braço onde Titus me
tocou. Meus lábios formigavam com a memória daquela tensão escaldante nos
unindo.

Pare com isso. Pare de pensar nisso.

Não posso imaginar Titus nu debaixo dos lençóis. Não posso considerar que ele
não poderia ter sido a pessoa no meu quarto. Ele não teria se arriscado a descer as
escadas nu, o que significava que, no momento em que cheguei ao segundo andar, ele
precisaria ter descido as escadas correndo e subido na cama sem ficar ofegante ou
cheirando a suor...

E eu simplesmente não podia acreditar que isso era possível.

Então, quem mais poderia ser? Harrison tinha ido até a guarita, e as luzes de
Maestro Radcliffe estavam acesas no estábulo quando voltei para a casa, ou seja,
nenhum deles estava lá dentro. Madame Usher mal conseguia subir aquela escada,
de jeito nenhum ela teria sido hábil o suficiente para descer tão rapidamente, então
não foi ela também. Aroha estava comigo, e Elena, Dorien e Heather estavam na Sala
Azul.

O único fora dessa equação era Ivan. E eu assumi que ele estava na Sala Azul
também porque ele nunca saía do lado de Elena, mas alguém tinha que ter estado no
meu quarto... Porque a única outra possibilidade era que um fantasma tinha feito
tudo aquilo, e isso era ridículo.
Ivan era a única pessoa que eu poderia ter visto na minha janela. E eu estava
farta de engolir a merda dos Musos. Era hora de revidar.

Levei alguns dias para descobrir como me vingar de Ivan. Ele e Elena iam a
todos os lugares juntos, e apesar do fato de que ela nunca disse uma palavra para
mim e parecia uma cadela insensível, eu não queria envolvê-la. Esta não era sua
batalha.

Então, uma noite, durante o jantar, Madame Usher anunciou a próxima visita,
o maestro da Filarmônica de Berlim. Ele estava na América recrutando estudantes
para uma residência intensiva de uma semana e solicitou uma apresentação de cada
um dos alunos, então nós o receberíamos para um recital completo de nosso trabalho
mais polido. Algo que minha mãe disse passou pela minha mente então.

Ela estava tentando conseguir um contrato com um ator famoso que estava
lançando uma linha de mercadorias, mas outra empresa de relações públicas estava
querendo o mesmo acordo. O cara que dirigia essa empresa era famoso por não
divulgar conteúdo patrocinado nas mídias sociais; ele construiu algumas marcas de
celebridades de sucesso com base em seu marketing de influenciadores ‘autêntico’,
enquanto minha mãe sinalizava todas as propagandas, o que significava que suas
campanhas tinham menos alcance. Ele falou mal dela por toda a cidade, e continuei
perguntando por que ela não revidava. Ela apenas sorria para mim. “Não se preocupe
comigo. Estou mantendo minhas mãos limpas enquanto ele cava sua própria cova.”

E, com certeza, duas semanas depois, um artigo investigativo do New York


Times expôs as práticas obscuras desse cara, e os órgãos fiscalizadores apareceram.
Ninguém queria mais se associar a ele. E a De Winter RP conseguiu o acordo com a
celebridade, no final das contas.
Mamãe era inteligente. Ela sabia que as pessoas que se recusavam a seguir as
regras acabavam sendo pegas em suas próprias mentiras. E ela me deu todas as
ferramentas que eu precisava para mostrar aos Musos que eles não podiam foder com
Faye De Winter.
Enquanto os alunos assistiam a uma das palestras de música de Madame
Usher, eu tinha que limpar os banheiros, trocar os lençóis e aspirar qualquer espaço
visível em seus quartos. Normalmente, eu tentava ser o mais rápida possível, mas hoje
hesitei na porta do quarto de Elena e Ivan.

Deixe-o cavar a própria cova.

Eu vasculhei o banheiro, limpando enquanto o fazia. Era o domínio de Elena,


seus cosméticos decoravam o balcão, e uma pirâmide de roupa suja mantinha a porta
permanentemente aberta. Mais roupas e sapatos obscureciam sua cama, e era um
milagre ela dormir à noite sem acidentalmente enfiar um salto Louboutin no olho.

As coisas de Ivan eram muito mais arrumadas, sua cama feita com precisão
militar, uma pequena pilha de roupas sujas colocadas no cesto, uma pilha de livros
de música arrumados em sua mesa. Todo o seu cuidado tornou óbvio onde eu
precisava procurar. Eu puxei gaveta após gaveta em seu armário, procurando os
esqueletos que eu sabia que existiam. Não encontrei nada além de camisas
perfeitamente dobradas e meias enroladas. A especialista em organização Marie
Kondo ficaria tão orgulhosa...

Oh, olá, o que é isso?

Na parte de trás de sua gaveta de meias, meus dedos roçaram um saquinho. Eu


o puxei para fora e o segurei na luz, observando os cristais brancos cascatearem
através do plástico.

Quem diria...

Eu sabia o suficiente sobre drogas para saber que estava olhando para uma
grande quantidade de cocaína.
Além do baseado ocasional, eu nunca tinha visto outras drogas de perto antes.
Mas eu tinha visto seus efeitos nos eventos de negócios da mamãe. Caras
completamente malucos, perseguindo mulheres que não queriam ser perseguidas.
Mulheres acreditando que eram invencíveis porque tinham dinheiro e um escudo de
névoa induzido pelas drogas. Em nosso último apartamento, pude ver o outro lado;
viciados nas esquinas, vitrines saqueadas. Uma vez, um cara me perseguiu quatro
quarteirões enquanto declarava em voz alta seu desejo de me abrir e comer meus
intestinos.

Este saquinho de ouro branco era exatamente o que eu estava procurando, era
a pá que Ivan usaria para cavar sua cova. Eu só não esperava uma pá tão grande.

Este não era um estoque pessoal, era o suficiente para um retiro de ioga de
Robert Downey Jr. ou uma festa de estudo em uma faculdade de ricos. E as pessoas
que traficavam drogas tendiam a ser perigosas, ou tinham amigos perigosos.

Mas então eu pensei em como eu lutava para dormir, em como eu olhava por
cima do ombro toda vez que entrava em um quarto e tinha que checar debaixo da
minha cama, caso um dos caras estivesse escondido lá. Pensei na minha sensação
desgastada de segurança, de paz, e endireitei o maxilar. Esta é a coisa certa...

“O que você está fazendo?”

Eu pulei com a voz, batendo meu cotovelo na gaveta aberta. Minha mão voou
para trás, empurrando a coca no cós da minha saia. Olhei para Ivan, que se encostou
no batente da porta e me olhou com olhos de gelo e safira. Aquele olhar impenetrável
que faria qualquer garota desejar ser a única a abrir seu coração congelado.

Eu me endireitei, tentando pintar meu rosto em uma imagem de inocência. “O


que você acha que estou fazendo? Estou tirando o pó, como uma boa empregada.”

“Você costuma tirar o pó das gavetas de roupas íntimas das pessoas?”

Calor queimou em minhas bochechas. Ivan cruzou os braços, e algo puxou a


borda de sua boca. Em qualquer outra pessoa, eu poderia ter confundido com um
sorriso, mas Ivan Nicolescu não sorria. Ele era uma geleira, dura e fria, e se você
cavasse abaixo da superfície, encontraria apenas mais gelo.

Essa era a questão, na verdade. Eu não conseguia ver Ivan como um viciado ou
um traficante, mas então... A Manderley era uma casa cheia de segredos. Eu não
podia recuar agora que tinha descoberto o dele.

“Olho por olho. Você esteve no meu quarto, afinal.” Eu me endireitei, tentando
mover meu corpo sem deixar o pacote escorregar da minha saia.

Ele não negou. Em vez disso, ele deu um passo em minha direção, suas longas
pernas esticadas sobre uma pilha de lixo de sua irmã. Meu coração disparou. “Então
você acredita que isso nos deixa quites?”

Até sua voz soava glacial, lenta e primitiva, aquele sotaque romeno afiado como
gelo. O som vibrava pelo meu corpo mesmo quando eu dei um passo para longe dele.
Enquanto Ivan se aproximava, notei a maneira como ele se movia, um aperto em seus
membros, uma tensão em seus passos. Ele estava lutando para manter o controle.

Nós circulamos um ao outro como dois animais prontos para atacar, mas o que
aconteceria se um de nós fizesse o primeiro movimento; banho de sangue ou uma
foda? Ambos eram resultados igualmente prováveis, mas apenas um fazia meu corpo
formigar de antecipação.

Ivan deu um passo em direção à cama, e eu circulei ao redor da parede até ter
um caminho livre para a porta. Enquanto eu voltava para o corredor, Ivan falou
novamente. “Faye?”

Meu nome em seus lábios era uma fodida poesia. Eu levantei uma sobrancelha.

As feições de Ivan não vacilaram, mas algo cintilou em seus olhos, uma pitada
de emoção, uma pista de que ele não era inteiramente feito de gelo. “Tome cuidado.”

Abri a boca para perguntar o que ele queria dizer, mas ele bateu à porta na
minha cara em seguida.
O dia da visita do maestro chegou. Eu tinha ficado acordada até depois da meia-
noite na noite anterior, preparando a refeição da noite para que eu só precisasse
esquentar as coisas no dia seguinte. Eu poli a prataria de prata até que ela brilhasse.
Quando finalmente me arrastei para a cama, ansiava por dormir, mas os Musos
decidiram intensificar sua tortura. Em vez dos passos e rangidos soando no meu
quarto, o som mais fraco de música de violino arranhava o ar.

Tinha que ser uma gravação, estava quieto demais para ser alguém tocando no
depósito, e ninguém ousaria tocar lá embaixo tão tarde da noite por medo da ira de
Madame Usher. Aquele era o ataque deles a mim porque eles sabiam que eu estava
bisbilhotando no quarto de Ivan. Eles provavelmente sabem que eu estou com a cocaína.
Eles estão tentando me manter acordada, para então eu tocar mal amanhã. Bem,
aposto que eles não sabiam que depois que meu pai foi embora, a única maneira de
mamãe me fazer dormir era com o som dos shows dele. Adoro dormir com música
tocando. Então...

Só que, ao que parece, eu não era mais criança, e música de violino podia ser
irritante para caralho quando você a adiciona a um sótão abafado, nervos de
performance e a trama para destruir um Muso. Eu me mexi e me virei a noite toda,
lutando por cada pedaço de sono que eu lutava para ter contra a escuridão
perturbada. Quando o alarme disparou às 5h30, eu o joguei do outro lado da sala.

Arrastei-me escada abaixo, fiz queijo grelhado para mim, preparei granola e
iogurte para as doninhas reais e voltei para o sótão.

De volta ao meu quarto, comecei minha inspeção diária dos armários e cantos
em busca de um intruso. Empurrei a cama para o lado, a cômoda e o baú para pisar
no assoalho. Então, apertei cada painel de madeira e arranhei cada rachadura da
sala, procurando uma passagem secreta. Eu odiava estar deixando os alunos
chegarem até mim mesmo depois de eu ter trocado a fechadura, mas saber que eles
poderiam entrar no meu quarto a qualquer hora que quisessem e tocar minhas coisas
me deixou permanentemente no limite. Cada rangido e gemido da velha casa me fazia
sentar na cama, com o coração na garganta.

Eu não acreditava em fantasmas, mas sinceramente desejava estar sendo


assombrada. Seria mais fácil de lidar.

Eu rastejei de debaixo da cama, convencida de que ninguém estava me


espionando hoje. Movendo-me para o meu cabideiro, puxei meu vestido de concerto
do saco de lavagem a seco e o pendurei sobre minha cadeira. Mamãe me comprou este
vestido para minha audição de ingresso na Juilliard, no ano passado, antes de ela
ficar seriamente doente, quando nosso futuro parecia brilhante. E um bônus, tinha
um pequeno bolso secreto na costura da saia, perfeito para um esconderijo de cocaína.

Tirei meu vestido preto arranhado e entrei no chuveiro, ensaboando e


enxaguando o mais rápido que pude, meu coração na garganta. Normalmente, eu
gostava de tomar meu tempo, deixando o calor da água derreter qualquer nervosismo
sobre o meu desempenho, mas eu não conseguia me livrar da sensação de coceira de
alguém estar me observando. Os Musos também haviam me despojado desse simples
prazer.

Enrolei uma toalha em volta de mim e voltei para o meu quarto. Os nervos
rastejavam entre os meus ombros. Eu odiava isso. Então inclinei meu queixo
desafiadoramente. Se um dos caras estava assistindo, então que eles tivessem a porra
de um show.

Mas ao pensar em seus olhos em mim, o calor queimou entre minhas pernas.
Meu corpo me traiu, ansiando por algo que não existia. Eles estão tentando me
destruir, e tudo que eu posso pensar é no quanto eu os quero. Qualquer um deles. Todos
eles. Eu estou doente. Eu preciso de ajuda.

Fodam-se, Dorien, Titus, Ivan. Vocês irão cair.


Joguei a toalha no chão.

E na sala de armazenamento ao lado, algo bateu. Eu pulei três metros no ar,


meu coração na minha boca.

São apenas os canos retinindo. Eles sempre fazem isso depois que você toma
banho. Acalme-se. Não há ninguém aqui.

Meus dedos tremiam quando soltei os fechos e puxei o material colante sobre
minha cabeça. O cetim cobriu minhas pernas, agarrando-se aos meus quadris e se
espalhando em uma saia de rabo de peixe que acentuava minha forma de ampulheta.
Um painel de renda vermelha entre o decote em forma de coração, amarrado em um
cabresto em volta do meu pescoço, deixava meus ombros nus. Eu fiz um pequeno giro
e sorri para o meu reflexo.

Eu posso não ser libertinamente magra como Heather, mas ainda posso parecer
muito bem.

Enfiei a cocaína no bolso secreto, peguei meu estojo de violino e desci a escada
enquanto os outros alunos se reuniam no saguão de entrada. Mesmo sendo apenas
10 da manhã, Heather e Elena seguravam taças de champanhe, a beleza de duende
de Elena apenas realçada por seu vestido azul-celeste, enquanto Heather parecia estar
fazendo um teste para a primeira temporada de My Big Fat Baroque Wedding com um
enorme e bufante, uma monstruosidade de vestido. Os garotos do Broken Muse
podiam usar enfeites barrocos falsos por causa de sua boa aparência quase sobre-
humana, mas Heather não tinha as mesmas bênçãos.

Enquanto descia a escada, minha perna roçando na cocaína a cada passo, três
pares de olhos seguiam cada movimento meu. A tempestade cinzenta, a chama
escura, o pedaço de safira; seu olhar coletivo me atiçou e fez coisas estranhas em
minhas entranhas. Eu não entendia como essa tensão sexual havia surgido entre nós
no meio da luta pelo poder que estávamos travando. Mas por hoje eu estava
determinada a não deixar os Musos verem como eles me afetavam. Esta noite era a
minha vez de revidar.
Madame Usher entrou, suas saias pretas arrastando atrás dela. “Vocês todos
parecem fantásticos. E se ainda não o fizeram, por favor, vão para a sala de música e
afinem seus instrumentos.”

“Eu sintonizei mais cedo, assim como Titus e Ivan,” Heather disse naquele
trinado irritante dela. “É sempre bom estar preparado e tratar bem o seu
instrumento.”

Morda-me.

Segui Aroha até a sala de música, colocando meu estojo de violino ao lado do
de Ivan. Enquanto ela fechava a porta atrás de nós e puxava a fechadura, abri as
travas da maleta de Ivan e enfiei o saco de cocaína dentro. Levantei-me assim que ela
se virou para mim, um sorriso vicioso brincando em seus lábios.

Foi por causa do bullying dos Musos que minha mente imediatamente saltou
para a ideia de que ela ia fazer algo comigo.

“Por que você trancou a porta?” Tentei manter a voz calma enquanto enxugava
as palmas das mãos suadas no vestido.

“Acalme-se, lixo. Eu só não queria compartilhar com os outros.” Aroha largou o


estojo do violino e tirou algo do bolso interno. Um pequeno saco de pó branco. “Quer
um pouco? Eu sempre tomo antes de uma apresentação. Ajuda com os nervos.”

Cocaína.

O sangue correu para os meus ouvidos. Depois de ter passado as últimas vinte
e quatro horas com o estoque de Ivan em minha posse, me ofereceram mais drogas?
Isso é algum tipo de teste?

Cambaleei com o choque, e balancei minha cabeça. Eu estava sob um padrão


diferente dos outros. Se eu fosse pega com drogas ilegais no meu sistema, isso daria
a Madame Usher a desculpa que ela precisava para se livrar de mim.

Aroha sorriu. “Você é quem perde.” Ela se ajoelhou ao lado da mesa de café e
desenhou uma linha. Meus dedos tremiam quando destranquei meu estojo e removi
meu instrumento. Não pense no que ela está fazendo. Não é da sua conta. Não importa.
Mas importava. Importava tanto que minhas mãos tremiam enquanto eu
tentava afinar o violino. E eu não conseguia saber o porquê. Aroha não era realmente
minha amiga. Por que eu me importava com o que ela fazia?

É porque eu sei que ela não vem do tipo de riqueza que os outros desfrutam? Que
Ivan era um traficante de drogas aproveitando-se de seus nervos para deixá-la viciada
em um hábito que poderia custar sua carreira?

Sim. Provavelmente tinha algo a ver com isso.

Quando ela terminou, Aroha limpou o nariz e se levantou. “Assim é melhor.


Agora posso enfrentá-los.”

“Isso veio de Ivan?” Tentei manter minha voz casual.

“Ivan?” A risada de Aroha tinha uma qualidade ligeiramente maníaca. “Foda-se,


não. Aquele cafetão elegante não deixa nem um gole de álcool tocar seus lábios
preciosos, muito menos essas drogas do mal.”

Meu estômago embrulhou. Será que eu cometi um grande erro? Mas não, a coca
estava na gaveta de Ivan. Tinha que ser dele. Além disso, era tarde demais para tirá-
la agora.

Deixe-o cavar sua própria cova.

Terminamos de afinar e deixamos nossos instrumentos prontos em cantos


opostos da sala. Eu segui Aroha enquanto ela se juntava aos outros no hall de entrada.
Dorien passou por nós a caminho do banheiro, e ela sorriu e balançou os quadris para
ele. Seu comportamento me intrigou, Aroha era uma mulher forte e atrevida que
nunca teve problemas para falar o que pensava ou falar com os outros; por que ela
precisava de drogas para conseguir realizar uma performance informal?

Dorien voltou ao saguão de entrada assim que Harrison estacionou a limusine.


Madame Usher abriu as portas. “Hans,” ela estendeu os braços quando um homem
esguio subiu os degraus. Eles fizeram aquele beijo no ar que as pessoas sempre faziam
no mundo da música, o som desleixado da saliva batendo na carne.
“Permita-me apresentar os alunos deste ano.” Ela o levou para o corredor,
pegando seu casaco e jogando para mim. Eu pendurei no gancho que estava bem
atrás dela.

“Ah, Dorien Valencourt dispensa apresentações.” Dorien se inclinou para frente


para beijar o ar com o maestro, que tinha cabelos grisalhos na altura dos ombros
presos em um rabo de cavalo e um nariz adunco saído dos meus livros de contos de
fadas. “E vejo que Titus e Ivan se juntaram a você. Já faz muito tempo desde que vocês
tocaram para nós em Berlim.”

“De fato. O Broken Muse adoraria voltar para a Alemanha.”

Boris fez um tsk. “Da última vez que o hospedamos, você jogou uma TV em uma
piscina e fez com que a polícia fosse chamada ao seu hotel.”

“Três vezes,” Titus saltou, um sorriso malicioso se espalhando por seu rosto.

Dorien olhou para ele.

Hans assentiu. “Já, três vezes. Minha orquestra não pode arcar com outro
escândalo, ou perderemos o financiamento.”

Dorien fez o sinal da cruz. “Juro pelo Todo-Poderoso que nós três estamos em
nosso melhor comportamento.”

“Vou acreditar quando ver. E Elena Nicolescu.” Hans apertou a mão dela, seus
olhos a absorvendo. “Você continua tão encantadora como sempre.”

“Obrigada.” Sua voz de desamparada elevou-se de prazer.

Madame empurrou Aroha para frente. “Esta é Aroha Rawhiri, da Nova Zelândia.
E esta é Heather Danvers, do New Jersey Danvers.”

“E quem é essa beleza carmesim no canto?” Os olhos de Hans passaram por


mim como se ele fosse o Lobo Mau e eu tivesse acabado de aparecer na porta com um
capuz vermelho e uma cesta de tortas de amora.

Sete pares de olhos voaram para mim, a maioria deles brilhando com
aborrecimento.
“Esta é... Faye.” Madame Usher respondeu rigidamente. “Ela era aluna da
minha escola de Nova York antes de se mudar para o sistema de ensino público. Temo
que a técnica dela nunca se recupere.”

Eu amo o jeito que ela diz 'escola pública', como se fosse uma doença.

“Faye De Winter,” Aroha saltou da parte de trás. Eu olhei para ela, e ela me deu
um aceno astuto.

À menção do meu sobrenome, os olhos de Hans se arregalaram de interesse.


“Como em Donovan De Winter?”

“Ele era meu pai,” eu disse com os dentes cerrados.

“Surpreendente. Aquele homem tinha uma técnica de spiccato que nunca foi
replicada. Todo o mundo clássico ficou devastado quando ele desapareceu. Eu não
tinha ideia de que ele tinha uma filha. Você deve compartilhar comigo tudo o que sabe
sobre o paradeiro dele.”

Sim, se eu tivesse informações sobre meu pai desaparecido, eu estaria totalmente


disposta a revelá-las a um completo estranho com um rabo de cavalo detestável.

Hans juntou as mãos. Eu praticamente podia vê-lo salivando. “Madame Usher,


você nunca me disse que eu deveria esperar uma formação tão repleta de estrelas.”

“Guarde seus elogios para depois do recital.” Ela levou Hans para a Sala Azul,
o resto de nós arrastando os pés atrás.

Enquanto Hans se acomodava na cadeira perto da janela, geralmente reservada


para o Maestro Radcliffe, servi-lhe uma taça de champanhe. Quando entreguei a ele,
meu olhar pegou a estante de música perto da janela.

Meu violino não estava lá.

O pânico tomou conta de mim.

Lá estava o violino de Ivan exatamente onde eu o deixei, a caixa ainda trancada.


Do outro lado da sala, ao lado do piano, estava a peça de Aroha. O violino de Heather
e o violoncelo de Titus estavam juntos no canto. Mas meu instrumento não estava à
vista. “Onde está meu violino?”

“Shhh.” Heather olhou para mim, obviamente esquecendo a regra de não falar
com Faye. “Não nos faça parecer mal.”

Eu bufei. “Claro, não gostaria de superar a vergonha desses babados no seu


pescoço, Maria Antonieta. Deixei meu violino na janela, mas ele não está lá.”

Os olhos de Madame brilharam. “Você está acusando outro aluno de pegar seu
violino?”

“Não.” Minhas bochechas queimaram com o calor. Isso não pode estar
acontecendo. “Só estou dizendo que não está lá...”

“Eu certamente não movi seu violino. E nenhum dos meus outros alunos teria
feito isso. A única conclusão a que chego é que você esqueceu seu instrumento depois
que eu disse especificamente para preparar tudo para a visita do Sr. Brandt.”

Atrás de mim, Heather abafou uma risadinha.

“Vá” Madame Usher retrucou, acenando com a mão para a porta. “Traga seu
instrumento. Conversaremos amanhã.”

Saí do quarto, meu coração em pânico. Eu sabia que não tinha deixado meu
violino no meu quarto; nem quinze minutos atrás, eu o afinava enquanto Aroha
cheirava cocaína. A única maneira de ter mudado de lugar era se alguém o tivesse
pegado.

Aroha? Possível. Ela saiu da sala atrás de mim, mas eu olhei para ela e eu teria
visto ela carregando o violino. Dorien? Ele estava indo para o banheiro...

Claro. Empurrei a porta do banheiro masculino. Com certeza, meu violino


estava em cima da pia.

Esmagado em mil pedaços.

Como o último ato de One for Violin Solo de Paik, a performance onde o violino
é inteiramente destruído.
Meu pior pesadelo.

Lascas de madeira decoravam os azulejos de mármore, irreconhecíveis como


pertencentes ao que antes era um belo instrumento. Cordas enroladas em molas
saltavam no ar, zombando de mim.

Não.

Por favor, não.

Lágrimas picaram nos cantos dos meus olhos. Aquele violino foi um presente
da minha mãe no meu aniversário de dezesseis anos. Ele veio de um Artisan Luthier
do norte de Nova York e era uma obra de arte por si só.

E era meu.

Como eles se atreveram a estragar isso para mim?

Pânico passou por mim. Eles estavam todos me esperando, Hans ansioso para
ouvir a filha de Donovan De Winter se pavonear. E eu ainda tinha que testemunhar a
queda de Ivan. Eu tinha que voltar para aquela sala agora e lidar com isso mais tarde.
Se eu não pudesse usar meu instrumento, qualquer outro violino serviria.

Corri pelo saguão, subindo as escadas de dois em dois. Quando cheguei ao meu
quarto, peguei o molho grosso de chaves da minha cama e corri de volta para o
primeiro andar. No final do corredor, pouco antes dos aposentos particulares de
Madame Usher, havia um pequeno depósito que abrigava uma variedade de
instrumentos oferecidos à escola ao longo dos anos.

Entrei e acendi a luz, iluminando fileiras imaculadas de caixas de vidro e


prateleiras de instrumentos silenciosos e sentinelas. Meus dedos traçaram uma
prateleira de violinos, passando por um Sanctus Seraphin com o distinto verniz
avermelhado antes de pegar um instrumento bonito e simples que só poderia ter vindo
da oficina de Carl Becker, o maior Luthier do século XX.

Assim que meus dedos o tocaram, eu sabia que este era o instrumento que eu
tinha que tocar. Um formigamento de fogo desceu pela minha mão, a mesma sensação
que eu tinha quando tocava em Titus ou olhava nos olhos de Ivan ou trocava farpas
com Dorien: vertigem tingida de excitação. Peguei o instrumento e o arco e apaguei as
luzes.

Quando enfiei a chave na fechadura e voltei para a escada, notei que a porta
dos aposentos privados de Madame Usher estava entreaberta. Eu empurrei.

Ela nunca deixava a porta aberta. Nunca.

Incapaz de me conter, me aproximei, meu peito formigando. Empurrei a porta


entreaberta e espiei lá dentro.

A porta dava para uma sala de recepção, vazia de móveis, com cortinas pesadas
bloqueando a luz das janelas. O fogo parecia não ser aceso há alguns anos, e o chão
estava coberto de poeira, exceto por um caminho de passos que conduzia a uma porta
interna. Além disso, eu podia apenas distinguir as formas dos móveis em uma sala de
estar além.

Meus ouvidos captaram outra coisa. Os mais fracos fragmentos de uma melodia
familiar. A mesma música triste que eu ouvia tarde da noite, a música misteriosa que
parecia fluir das paredes do meu quarto, que era familiar para mim, embora eu não
pudesse dizer exatamente onde eu a tinha ouvido.

Estava vindo de dentro dos aposentos de Madame Usher.

Eu sabia que não era o barulho vindo do salão de baile lá embaixo porque eu
também podia ouvir o bater das teclas enquanto Dorien e Heather executavam seu
concerto.

Dei um passo à frente, atraída por aquela música, por minha necessidade
desesperada de descobrir quem estava me assombrando e como. Eu sabia agora que
tinha que ser Madame Usher, mas por que ela deixaria a gravação rodando aqui
quando ela sabia que eu estaria lá embaixo?

Assim que meu pé caiu dentro da sala, percebi meu erro. Meu calcanhar fez um
estalo alto no mármore. O violino parou. Olhei para baixo e percebi que minha
impressão se destacava entre a confusão de pegadas no limiar. Madame Usher não
usava saltos.
Merda. Merda.

Abaixei-me e manchei a impressão com a mão, mas isso só tornou mais óbvio.
Era tarde demais para fazer qualquer coisa. Saí e fechei a porta atrás de mim.

Heather e Dorien estavam terminando quando entrei na sala. Os olhos de


Dorien se voltaram para os meus, e ele ergueu uma sobrancelha para o violino em
minhas mãos. Hans se levantou e bateu palmas, seus olhos brilhando.

“Lindo e encantador. Dorien, você foi adequado, como sempre.” Mas ele disse
isso com um brilho nos olhos, porque obviamente Dorien era o superior da dupla. “Eu
gostaria de ouvir os gêmeos Nicolescu em seguida.”

Dorien saiu de trás do piano e inclinou a cabeça para Elena. Ivan pegou o estojo
do violino e abriu o trinco. Quando ele pegou seu violino, o pacote deslizou para o
tapete aos pés de Hans.

Os olhos de Ivan se arregalaram quando ele viu o que era. Levou tudo que eu
tinha para não cair na gargalhada ao ver Ivan Nicolescu estoico e gelado parecer tão
completamente chocado.

Mas isso não era motivo de riso.

A sala inteira ficou em silêncio quando Hans se abaixou e pegou o pacote,


segurando-o contra a luz e inspecionando-o como se esperasse que a substância
dentro dele pudesse se transformar magicamente em sal de cozinha.

“Bem, Ivan,” ele disse suavemente. Uma veia latejava em sua têmpora. “O que
você tem a dizer sobre isso?”

Ivan não disse nada. Ele mascarou seu rosto com gelo, mesmo quando seus
ombros caíram. Dorien e Titus se levantaram para ficar atrás dele, silenciosamente
apoiando-o, apesar dos crimes de seu amigo.

Hans jogou o pacote nas garras de Madame Usher. “Esta é a sua bagunça para
lidar. Não direi uma palavra sobre o que vi aqui hoje, mas você deve saber que não
posso hospedar mais nenhum dos Broken Muses em nossa residência.”
“O quê?” A voz profunda de Titus subiu pelo menos duas oitavas. Dorien parecia
estar pronto para cortar alguém. Ivan olhava para um ponto na parede atrás da cabeça
de Hans. Reconheci o vazio em seus olhos, foi o mesmo que senti quando os médicos
falaram sobre as chances de recuperação da minha mãe. Naquele instante eu deixei
meu corpo e flutuei para algum lugar atrás de meus ombros, observando a cena se
desenrolar diante de mim com distanciamento frio. Era um mecanismo de
sobrevivência; se eu não ficasse completamente apática e não me tornasse Faye, a
garota fantasma flutuante, eu perderia o controle, e os hospitais tendiam a desaprovar
exibições de destruição no estilo Keith Moon, um baterista completamente destrutivo
e excêntrico.

Foi isso o que Ivan fez, ele flutuou para longe para poder suportar as
consequências mais facilmente. Saber que eu tinha algo em comum com ele fez meu
estômago revirar com uma sensação que eu não gostava; simpatia.

Não. Você não vai sentir essa merda. Esta é a minha vingança, e vou apreciá-la.
Eu mereço esse momento.

Madame Usher olhou para os três meninos. “Ivan, vá embora. Agora. O resto de
vocês, ou vão com Ivan ou se sentem. Não quero ouvir mais uma palavra sobre isso.”

Dorien deu um passo à frente. “Mas isso não...”

“Eu disse, nem mais uma palavra.” Os dois olharam um para o outro, uma
batalha de vontades se desenrolando em um tabuleiro de xadrez invisível esticado
entre eles. Dorien podia ser uma tempestade furiosa presa no corpo de um Príncipe
das Trevas, mas Madame Usher era como uma antiga deusa demoníaca. Ela tinha
domínio sobre tempestades. Inferno, ela poderia castrar o próprio Diabo com aquele
olhar.

Dorien recuou, baixando os olhos. Ivan girou nos calcanhares e saiu da sala, a
porta se fechando atrás dele. Elena não moveu um músculo, mas uma única lágrima
rolou por sua bochecha.
Foi essa lágrima mais do que qualquer coisa que quebrou meu triunfo. Ao me
vingar de Ivan, eu custei a todos os três Musos a chance de residência e arruinei o
desempenho de Elena e Ivan.

Então me lembrei do meu lindo violino despedaçado, e afastei aquele sentimento


podre de arrependimento. Eu me deleitei com o rosto tenso de Hans, e Dorien e Titus
trocando olhares preocupados enquanto Elena tocava uma peça solo, suas notas
ainda mais dolorosas por causa das lágrimas silenciosas caindo em cascata por suas
bochechas.

“Brava, Elena, você foi fantástica.” Hans se levantou para beijar suas bochechas
úmidas quando ela terminou. “Quem é o próximo?”

“Vejo que a Srta. De Winter voltou, então talvez... O que você está fazendo?”
Quando Madame Usher se virou para mim, ela gritou. “Esse não é o seu violino.”

“Alguém destruiu o meu.” Olhei para Dorien enquanto segurava o Becker na


minha frente, como um escudo. “Eu peguei isso da sala de instrumentos para tocar
esta noite, até que eu consiga um substituto...”

“Isso não é seu!”

Pela segunda vez naquela noite, a sala caiu em um silêncio mortal. Madame
Usher avançou e arrancou o instrumento das minhas mãos. Sob sua maquiagem
endurecida, seu rosto estava branco como um lençol.

Em qualquer outra noite eu poderia ter sido capaz de me acalmar o suficiente


para encontrar uma maneira de sair disso, mas entre minha falta de sono terrível e a
vingança de Ivan e vendo meu instrumento despedaçado, algo se quebrou dentro de
mim. Inclinei-me bem na cara de Madame e gritei: “O que devo fazer, então? Meu
violino se foi e eu preciso tocar.”

Madame Usher bateu o pé. “Estou desapontada. Este não é o comportamento


de uma musicista profissional. Maestro Brandt, por favor, não aceite a atitude de
Faye como uma representação de nossos alunos. Você não vai tocar. Dorien, você será
o próximo; execute uma de suas peças solo.”
Eu me dirigi para a porta, mas Madame agarrou meu braço, suas unhas
cravando em minha pele.

“Você fica,” ela sussurrou. “Por sua insolência, você sofrerá com a perfeição
dele.”

Cadela.

Eu congelei, meu corpo preso no local por Dorien. Ele tocou A Graveside Story,
sua composição mais famosa, a peça que fez sua carreira com o Broken Muse. Era
tudo o que ele era, a peça sombria e sedutora, arrastando você sob um oceano feroz e
agitado e segurando você até que a água fechasse sua garganta e você não pudesse
respirar sob toda a sua beleza. Pois ele era a perfeição. Cada nota era uma lâmina
cortando minha pele, expondo minha alma para ele devorar com aqueles olhos de
ardósia.

Por que ele não poderia ter sido meu amigo? Eu não tinha um amigo de verdade
desde que ele me deixou. Exceto por minha mãe. Ela compareceu a todos os meus
recitais, até mesmo pulando reuniões importantes para estar no centro da primeira
fila. Ela saía de seu trabalho para comprar lanches quando eu estava no meio da
minha preparação para a audição da Juilliard. Ela enrolava meu cabelo e fofocava
sobre garotos e celebridades como se fôssemos melhores amigas em vez de mãe e filha.
E acima de tudo, ela me mostrou pelo exemplo o que uma mulher tinha que fazer para
ter sucesso, pois tanto nos negócios quanto na vida ela era feroz, sem remorso e
incrivelmente gentil.

Agora ela estava em coma.

E veneno a tinha colocado lá.

Eu chorava de verdade agora, lágrimas gordas e silenciosas rolando pelo meu


rosto, como as de Elena momentos antes, manchando minha maquiagem perfeita.
Mas não ousei limpá-las e chamar a atenção para mim.

Dorien terminou e se levantou para receber sua reverência. Ele voltou ao piano
para acompanhar Heather em um Vivaldi. Ele era impecável, é claro, mas as notas
dela eram monótonas e sem vida, ou talvez fosse porque eu as ouvia através das lentes
dos meus próprios gritos silenciosos. Depois de Heather, Aroha impressionou com
uma performance da sensual Cleópatra do compositor turco Fazil Say. Suas
bochechas brilhavam de prazer enquanto Hans elogiava seu tratamento da peça
única. Olhando para ela, era difícil acreditar que ela precisava de drogas para entrar
em sua performance.

Madame Usher bateu palmas e fez sinal para que saíssemos. Entorpecida, eu a
segui para fora do quarto, entrando no banheiro masculino para pegar os pedaços
quebrados do meu violino. Quando emergi segurando os restos do meu instrumento
em minhas mãos trêmulas, Dorien e Heather estavam saindo do salão de baile.
Heather enrolou o braço no dele e se inclinou em seu ombro quando passaram por
mim.

Os olhos de Dorien caíram sobre as peças em minhas mãos. Ele parou em seu
caminho, puxando o braço de Heather. Ela gritou de surpresa, então tentou fingir que
foi intencional.

“Dorien, você é cruel,” ela ronronou, olhando para ele com adoração. “Achei que
você ia apenas esconder o instrumento dela. Isso foi muito melhor.”

“Eu não o destruí,” a voz de Dorien percorreu meu corpo. “Eu escondi no
banheiro. Foi tudo o que fiz.”

Mentiroso de merda. Estávamos todos juntos no salão de baile. Quem mais


poderia tê-lo destruído? Harrison? O fantasma da mansão?

“Eu não fiz isso.” Dorien olhou para mim. Um tipo diferente de tempestade
brilhava em seus olhos, me arrastando de volta para o mar, para um recital quando
tínhamos oito anos, quando ele perdeu uma nota e sua mãe gritou com ele na frente
de todos. “Faye, eu juro. Eu sabia o quanto este violino significava para você.”

Sim. Ele sabia. Ele estava lá, nós três tendo um jantar de aniversário chique no
Denny's (tudo o que podíamos pagar por causa da minha mensalidade e da carreira
do papai) quando mamãe me presenteou com a caixa.
Ele sabia exatamente como me cortar para me fazer sangrar.

Eu balancei minha cabeça. Se eu abrisse a boca para falar agora, gritaria.


Heather caiu na gargalhada, sua voz cantante descascando ao longo do corredor
abobadado. “Oh, o pobre caso de caridade. Você vai chorar, Faye? Vai chorar como
um bebê? Olhe para você, toda vestida como se pensasse que é uma de nós. Seus
pneuzinhos estão transbordando nesse vestido. Você é nojenta.”

Eu tinha sido chamada de gorda e feia por toda a minha vida. As palavras
rolaram na minha pele, incapazes de penetrar porque eu não me importava com o que
as pessoas pensavam de mim. Mas esta noite eu segurava os restos do meu violino
em minhas mãos, e estava na frente de um garoto que uma vez foi meu amigo, e eu
apenas... Quebrei.

Uma nova cascata de lágrimas caiu dos meus olhos, rolando pelo meu rosto.
Dorien deu um passo à frente, mas eu me afastei, girando nos calcanhares e fugindo
para a não-segurança do meu quarto no sótão, a risada de Heather me perseguindo o
tempo todo.
Bati a porta com tanta força que a parede inteira chacoalhou. Uma cascata de
batons de Elena caiu da prateleira abarrotada e deslizou pelo chão. Meu corpo inteiro
tremia. Porra. Porra.

Eu sabia que deveria ter me livrado daquela cocaína. Eu sabia. Mas guardei por
que... Porque eu era um idiota de primeira classe.

Do outro lado do quarto, Elena se enrolava em sua cama, como uma rainha-
dragão guardando seus tesouros vistosos. Meus próprios olhos olharam para mim por
trás de seus cílios longos e emaranhados, largos e assustados.

“O que vai acontecer conosco agora?” Ela perguntou em voz baixa.

Eu balancei minha cabeça. Eu não fazia ideia. Nenhum de nós ficou depois do
recital para descobrir o que Madame Usher tinha reservado para nós. A desgraça
iminente pairaria sobre nós por mais algum tempo.

Ela lavaria as mãos nesse caso? Iria nos mandar de volta para a Roménia? Um
pavor frio tomou conta de mim enquanto as opções se alinhavam na minha frente,
cada uma mais sombria que a anterior. Ela se calaria e acrescentaria mais tempo à
nossa estada aqui?

O lábio de Elena tremeu. Eu sabia que ela estava pensando as mesmas coisas,
o que esse erro nos custaria, pois ambos sabíamos que tudo que o fazíamos tinha um
preço. Atravessei a sala em três passos e caí ao lado dela, varrendo-a em meus braços.
Tubos de cosméticos e bolsas espetadas em minhas costas enquanto eu estava deitado
ao lado dela. Elena descansou a cabeça no meu peito, seus dedos traçando os padrões
de filigrana da minha camisa. Ela esperou que eu falasse, anunciasse meu grande
plano. Eu era o mais velho por dois minutos, e durante toda a nossa vida Elena tinha
olhado para mim como o responsável, como aquele que encontraria uma saída para
qualquer confusão.

Mas eu não conseguia ver saída alguma, apenas escuridão, apenas as barras
douradas de nossa jaula se fechando sobre nós. Estávamos em um grande problema.

“Ivan, abra.” Dorien bateu com os punhos na porta.

“Dorien, que porra...” Eu me levantei assim que ele bateu na porta com o ombro,
arrancando a fechadura de seus parafusos. A porta se abriu e Dorien passou,
movendo-se para a janela para fechar as cortinas. Ele se virou para Elena, sua voz
um turbilhão de raiva mal contida.

“Saia.”

“Não fale com ela assim.” Eu me joguei na frente da minha irmã, mãos fechadas
em punhos. “Esta é a vida dela também.”

O rosto de Dorien suavizou, apenas uma fração. “Acalme-se, companheiro. Você


sabe que eu amo Elena como minha própria irmã, mas precisamos conversar.
Sozinhos. Aroha acabou de voltar para o quarto dela. Talvez ela possa receber uma
visitante.”

Elena enxugou os olhos e rolou para fora da cama. Ela se inclinou e beijou
minha bochecha. “Nós ficaremos bem. Vamos encontrar uma maneira.”

Eu não tinha tanta certeza sobre isso, mas a beijei de volta.

Titus saiu do caminho para permitir que ela passasse pela porta. “Não cheire
nada que eu não cheiraria, irmãzinha.” Todos a chamavam assim, e isso geralmente
me aquecia, mas não hoje. Elena deu um tapa no braço dele, e então ela se foi, o
cabelo voando atrás dela.

Meus amigos cuidavam dela como se ela fosse deles e eu adorava isso. Eles eram
a única família real que já tivemos.
Titus teve que virar de lado para passar os ombros pela porta. Ele a trancou e
se encostou no batente, enquanto Dorien andava de um lado para o outro. Enfiei as
mãos nos bolsos para não fazer nada estúpido.

Dorien se virou para mim. “Eu preciso saber, você quebrou o violino de Faye?”

Titus riu. “Isso é o mais importante aqui? Não aquele tijolo enorme de coca no
estojo do violino de Ivan? Que porra foi aquela, cara?”

Dorien olhou para Titus. “Aquilo era apenas um pacote, mas vamos chegar a
esse ponto. Primeiro, o violino de Faye.”

“Você fez isso.” Eu olhei para ele.

“Não. Eu o peguei depois que ela saiu da sala com Aroha, claro. Mas eu o escondi
no banheiro masculino. Não quebrei nada. Isso seria demais até para mim.”

De acordo. Lembrei-me do rosto de Faye quando ela voltou para a sala, seu
queixo erguido, mas trêmulo, sua voz rouca quando ela disse a Madame que seu
violino havia sido destruído. Ela não entrou em pânico, ela foi buscar outro
instrumento. Faye foi mais forte do que qualquer um de nós teria sido nessas
circunstâncias. Uma onda de admiração subiu em meu peito. Passei toda a minha
vida sendo forte por outras pessoas; por nossa mãe, por Elena, por Dorien e Titus. Eu
via algo de mim nela. E talvez seja por isso que eu sentia...

Não. Sentimentos são inúteis aqui.

Mas eu sabia o que Faye tinha feito, roubando aquela cocaína e colocando-a no
estojo do meu violino, apesar de não ser minha e nem de usá-la. Sua ira era
puramente como a de Dorien. Isso explicava por que os dois se enfureciam um contra
o outro o tempo todo. Quando eles finalmente quebrassem e fodessem, a força disso
abriria um buraco no universo. Eu sabia que ela o escolheria ao invés de mim, afinal
as mulheres sempre o faziam. Eu só desejava que fosse diferente…

Mas desejar não colocaria a cocaína de volta no estojo do violino. Faye tinha me
fodido regiamente, e eu não podia nem a culpar.

Dorien chutou a cômoda, estilhaçando a madeira. “Responda-me, seu idiota.”


Titus e eu trocamos um olhar. Este não era o Dorien que conhecíamos, de olhos
frenéticos e mandíbula cerrada. Eu não sabia dizer se ele ia quebrar por dentro ou
socar alguém. Eu nunca o tinha visto assim antes. Mesmo quando ele entregou a
Elena e eu aqueles passaportes falsos em Praga, ele estava calmo. Determinado.
Quando Clare foi encontrada morta, ele se segurou. Mas isso…

Desde que Faye veio para a Manderley, Dorien foi puxado para mais
profundamente em sua loucura. Mas eu não tinha certeza de até onde sua falta de
controle se estendia.

Titus balançou a cabeça. “Por que você está nos questionando, cara? Estávamos
todos no salão de baile. Ninguém saiu até que Madame Usher disse a Faye para ir
buscar o violino.”

“Se mais alguém nesta casa está atrás de Faye, então eu preciso saber sobre
isso. Há muitos segredos do caralho por aqui.”

“Você poderia dizer isso.” Titus murmurou enquanto olhava para baixo.

“Heather, talvez? Eu não acho que estaria acima dela fazer isso, mas ela teria
se gabado para todos nós. Aroha estava alta como uma pipa de novo, mas...” Dorien
quase sorriu. “Faye pode ter destruído seu próprio instrumento na esperança de me
incriminar de alguma forma? Ela poderia ter feito isso quando o encontrou no
banheiro. Eu não tinha considerado isso antes, mas seria intrigante.”

“Dorien.” Titus não gritou. Mas com aquela voz profunda dele, ele não precisava.
Apenas abrindo a boca, ele poderia cortar as besteiras de Dorien.

“Eu sei, eu sei. Porra.” Dorien passou os dedos pelo cabelo. Ele girou para me
encarar, se recompondo, empurrando para baixo o que quer que estivesse agitando-o
tanto. “Você. Cocaína? Eu não posso acreditar nessa merda. Você não costuma tomar
nem um gole de vinho.”

“Não era minha,” eu murmurei.

Um grande e maldito erro.


Dorien agarrou meu colarinho e me jogou contra a parede. Minhas costas
bateram na pedra, meus ossos rangendo com a força da batida. Seu rosto, a
centímetros do meu, se contorceu enquanto ele lutava para controlar o demônio que
ameaçava dominá-lo. “Estou tão perto de enfiar sua cabeça na parede. Estava no
estojo do seu violino. Que porra aconteceu lá?”

Eu estraguei tudo. Em todos os anos que nos conhecemos, todas as turnês


mundiais e quartos de hotel destruídos e brigas estúpidas e merda sombria, fizemos
um pacto para sermos verdadeiros uns com os outros a todo custo. Eu não escondia
segredos desses dois. Nunca... Até agora. Eu tinha que levar esse segredo para o
túmulo, porque eu estava caindo, e eu não iria arrastar eles ou Faye ou Elena, comigo.

“É de Aroha. Eu estava guardando para que ela não... Para que ela ficasse
sóbria. Eu escondi a coca na minha gaveta, mas tenho certeza de que Faye a
encontrou e a colocou no estojo do meu violino.”

“Faye não faria isso,” Dorien rosnou, seus dedos apertando meu colarinho.

“Não? Ela não tentaria se vingar de nós por intimidá-la?” Eu engasguei.

“Talvez ela pense que Ivan estava no quarto dela na outra noite,” Titus disse da
porta. “Ela parecia muito certa quando pensou que era eu, mas não fazia sentido
porque eu não teria sido capaz de entrar lá. Dorien, solte-o. Você não está ajudando.”

Os olhos de Dorien brilharam, mas ele soltou meu colarinho. Eu afundei no


chão, puxando meus joelhos até meu peito, sugando respirações profundas para
tentar controlar meu coração acelerado. Titus foi até minha cama, jogando um saco
de maconha na colcha e enrolando um baseado.

“Vocês dois precisam relaxar.” Ele estendeu um baseado para mim. Eu balancei
minha cabeça.

“Não fume aqui. Elena...”

“É o menor dos seus problemas, mano.” Dorien aceitou o baseado, tirando um


isqueiro do bolso. Ele nem se deu ao trabalho de ir até a janela, apenas deixando a
fumaça enrolar em seu rosto. Titus rolou outro, e logo os dois estavam soltando
baforadas, gavinhas de fumaça enrolando em volta de seus rostos. A tensão na sala
se dissipou.

“Não podemos culpar Faye por se defender.” Titus se encostou na parede,


franzindo os lábios enquanto exalava. “Mas temos que fazer o controle de danos. Ela
vai atrás de um de nós em seguida, provavelmente Dorien, depois que ele quebrou...”

“Eu não fiz aquilo,” Dorien rosnou.

Titus deu de ombros. “Por que você se importa, afinal? Você queria machucá-
la. Parece uma missão cumprida para mim. Então por que não estamos comemorando
ainda?”

A expressão de Dorien se contorceu, e eu senti uma pontada familiar e ciumenta


em minhas entranhas. Dorien achava que a vida era muito difícil, mas ele era o tipo
de cara que sempre caía de pé, sempre encontrava uma solução, sempre ficava com a
garota. Se ele pudesse puxar a cabeça para fora de sua bunda, ele veria como
realmente se sentia sobre Faye, e então eles fariam sexo bizarramente alto que eu
seria capaz de ouvir ecoando em toda essa prisão.

Faye e Dorien foram escritos nas estrelas. E isso me deixava sozinho lá embaixo,
com as ervas daninhas e os monstros.

Dorien bufou. “Não estamos comemorando porque Ivan está prestes a ir para a
cadeia. Ou ser chutado de volta para a Romênia, o que é pior.”

“Certo. Porra. Então, o que nós vamos fazer?”

Ninguém lhe respondeu. Todos nós sabíamos o que tinha que acontecer a
seguir. Havia uma pessoa em Manderley que tinha o poder de fazer tudo isso
desaparecer, mas ela exigiria um preço. Sempre havia um preço. Ela já tinha tirado
muito de cada um de nós. O que mais restou em mim para dar, afinal?
Titus e eu esperamos com Ivan a noite toda. Eu deitei na cama de Elena
enquanto Titus torcia seu corpo para caber na cama de Ivan, do jeito que
costumávamos dormir nos primeiros dias de Broken Muse, quando só podíamos pagar
por quartos duplos baratos.

Madame Usher não veio atrás de Ivan, no entanto. A polícia não bateu na porta.
Mas isso não significava que ele estava seguro.

Ninguém estava seguro em Manderley.

Na manhã seguinte, no café da manhã, Madame Usher elogiou a minha


performance. “Hans ficou tão impressionado com sua maestria e presença, Dorien.”
Ela bagunçou meu cabelo como se eu fosse seu filho favorito. “Acredito que ele vai
superar sua relutância em lidar com um ex Muso e convidar você para a residência
de verão em Berlim.”

Essas palavras deveriam ter me dado alguma emoção. Berlim era uma das
minhas cidades favoritas, voltar lá para tocar e aprender com uma orquestra de classe
mundial seria um grande feito para a minha carreira. Sem mencionar que me levaria
para um passo mais perto do que eu vim fazer em Manderley. Mas o triunfo parecia
vazio, sem sentido.

Ganhei a residência em Berlim com a miséria de Faye.

Porque mesmo que eu não tivesse arruinado o violino dela, todos acreditavam
que eu tinha. Eu sabia a verdade que se escondia nas palavras de Madame. Esta é a
sua recompensa por arruiná-la.

Mas quem tinha feito isso? E por que a pessoa não se apresentou para
reivindicar sua recompensa?
Faye empurrou a porta da sala de jantar, mas Madame Usher entrou em seu
caminho. “Você não será bem-vinda hoje. O Maestro não a perdoou por pegar o violino
dele.”

Isso era uma mentira. Maestro Radcliffe não foi a pessoa a reagir com
impetuosidade quando Faye apareceu com aquele Becker, mas Madame Usher sim.
Ela gritou com Faye, e em todos os anos que eu a conhecia, eu nunca, nunca a vi
perder o controle assim.

O que havia com aquele violino? Eu tinha que saber. Precisávamos de algo,
qualquer coisa que pudéssemos usar contra Madame Usher.

Os olhos de Faye saltaram com fogo enquanto ela olhava para sua inimiga. Ela
parecia prestes a discutir. Mas em vez disso, ela empurrou uma bandeja de ovos
mexidos e bacon nas mãos de Madame, virou-se e saiu correndo.

Após o café da manhã era a aula de composição. Madame Usher sorriu para
Ivan quando ele se esgueirou para dentro da sala, um sorriso que dizia que ela
guardaria seu segredo junto com todos os outros que ela acumulava como um rato
estocando queijo, mas seu silêncio teria um preço a ser pago no futuro. Estremeci ao
pensar em qual seria esse preço.

Faye também não apareceu na aula de composição. E eu não conseguia me


concentrar com ela ausente. Quando me juntei a Heather para acompanhar sua
composição, meus dedos não conseguiam ter firmeza. Finalmente, ela largou o
instrumento e olhou para mim. “Se você não vai levar isso a sério, eu vou fazer parceria
com Titus.”

“Tudo bem, então.” Eu deslizei meus dedos para fora das teclas. “Fique à
vontade.”

“Não seja bobo. Você sabe que somos perfeitos juntos.” Heather ergueu o arco.
“Toque novamente.”

Isso é estúpido. Eu não deveria me sentir mal por Faye. Eu estava conseguindo
exatamente o que queria, e ela teria que sair em breve. Ela não estaria mais em perigo,
ou seria uma ameaça ao meu plano. Eu ganharia o Prêmio Manderley, e tudo ficaria
bem.

Mas eu não me sentia bem. Eu me sentia uma merda completa.

Quando saímos da aula, a mesa da sala de jantar já estava posta com travessas
de sanduíches frios. Faye não estava à vista. Heather torceu o nariz enquanto pegava
o pão. “Atum enlatado? Que merda é essa?”

Enquanto os outros brigavam e fofocavam sobre Faye, eu empurrava minha


comida no meu prato. Isso é estúpido. Não posso deixar as coisas assim. Não posso
fazê-la acreditar que destruí o violino dela.

Não deveria importar, mas importava.

Empurrei meu prato de lado e me levantei. “Eu não estou com fome.”

Heather procurou meu rosto, seus olhos se arregalando com aborrecimento.


“Dorien...”

Mas eu já estava subindo as escadas. Antes que eu percebesse, eu estava no


patamar estreito do sótão, minhas costas curvadas e uma lâmpada fraca balançando
contra minha bochecha. Eu me fechei contra a onda de memórias, do rosto excitado
de Clare no escuro quando eu ia visitá-la, de todas as coisas que ela disse nas horas
escuras da manhã que eu ignorei, muito perdido em minhas próprias besteiras.

Bati na porta de Faye.

Nada. Nenhum som. Nem mesmo a sequência de palavrões que eu merecia. Bati
novamente e estava prestes a gritar quando a porta se abriu.

Minha respiração ficou presa na minha garganta. Faye abriu a boca para falar,
mas nenhum som saiu. Ela parecia... bem, ela era fodidamente linda. Mas hoje era
uma beleza nascida da fragilidade, de olhos avermelhados e cabelos desgrenhados e
um vinco de travesseiro ao longo de sua bochecha, nada da força que ela carregava
estava à vista agora. Ela segurava um velho livro surrado em suas mãos. O fogo em
seus olhos tinha se apagado, e seu queixo tremia quando ela levantou o rosto para
me encarar.
Seus olhos, seu rosto... Tudo isso me quebrou.

“Você está feliz?” Ela sibilou, agarrando a porta e fechando-a na minha cara
logo em seguida.

Fiquei no corredor, congelado e mudo.

Porra. Porra.

Aquele olhar assombrado em seus olhos. Eu tinha feito isso. Eu a tinha


quebrado.

Era meu trabalho. Eu não podia desafiar Madame Usher. Não sem colocar todo
o meu futuro, e o futuro dele, em risco.

A menos que…

Eu caio no degrau mais alto, minha cabeça em minhas mãos, minha mente
zumbindo com possibilidades. Essa coisa de chantagem podia funcionar em duas vias.
Havia alguma razão para Madame Usher querer que Faye deixasse a Manderley. Não
fazia sentido, porque ela não tinha que oferecer a Faye um lugar aqui em primeiro
lugar. Mas Faye estava aqui, e a Madame queria que ela fosse embora, mas ela se
recusava a sujar as mãos. Era aí que o Broken Muse entrava. Madame tinha uma
corda amarrada em nossos pescoços, e adorava isso.

Ela negociava segredos. Mas ela tinha os seus próprios também. E se eu


pudesse descobrir por que ela queria tanto que eu destruísse Faye, então eu poderia
ter uma chance de nos libertar de sua teia.
Eu te odeio, Dorien Valencourt.

Você é o próximo.
“Quer tocar um pouco de Bach?” Titus se inclinou sobre minha mesa, suas
trancinhas caindo sobre suas orelhas. Sua voz profunda ecoou pela biblioteca.

Fechei a tela do meu laptop e olhei para o meu amigo. “Não posso. Tenho que
terminar aquele ensaio sobre estruturas composicionais barrocas. Vá incomodar Ivan.
Ele parece estar precisando de uma pausa.”

Titus me deu um soco no ombro e deslizou do canto da minha mesa para ir até
os gêmeos, que estavam sentados juntos no assento da janela. Um conjunto de velhos
livros de composição estava aberto entre eles, sendo ignorado. Elena aparentemente
teve uma ideia nova e brilhante, pois seu rosto estava iluminado de alegria enquanto
ela falava a mil por hora com Ivan. Eu sabia por aquele olhar tenso em seu rosto que
até o paciente Ivan estava atingindo seu pico com uma overdose de Elena. Ele pareceu
aliviado quando Titus se colocou entre eles.

Satisfeito por estar sozinho de novo, abri a tela do meu laptop, onde abri um
novo arquivo intitulado “Sobre a queda da Casa de Usher.” Se alguém o encontrasse,
eu poderia afirmar que era inspiração para uma música. Abaixo eu tinha escrito tudo
o que sabia, o que não era muito; Madame Usher convidou Faye para a escola, mas
ela me disse que tinha sido decisão do Maestro Radcliffe. Ele nunca a contradisse. Ela
me chantageou para fazer bullying com Faye e puxou Titus e Ivan para isso também.

E então, aconteceram esses estranhos acontecimentos, coisas feitas a Faye que


eu não conseguia explicar. O violino arruinado. O rosto na janela. Faye dizendo algo
sobre música tocando à noite. Todas essas coisas pelas quais não éramos
responsáveis.
Nós não éramos os únicos assombrando Faye. E esse conhecimento gelou meu
sangue como nada mais poderia.

Acrescentei à lista a reação enlouquecida de Madame quando Faye trouxe


aquele violino da sala de instrumentos. Naquele dia, presumi que Faye tinha alguma
outra peça particularmente rara, mas, embora fosse um Carl Becker, era de baixo
valor emocional para sua coleção. Eu nunca tinha ouvido a Madame gritar daquele
jeito, no entanto, perdendo as rédeas de seu controle firmemente preso. Por alguma
razão, aquele violino era pessoal.

Eu só não sabia o porquê. A sala de instrumentos ficava sempre trancada e eu


não tinha a chave. Isso seria mais fácil se eu pudesse falar com Faye. Mas então se
eu pudesse falar com ela, eu não estaria nessa confusão.

Mas uma coisa estava clara; Faye era o centro disso tudo. Percebi o quão pouco
eu sabia sobre sua vida desde que deixamos de ser amigos. Curioso, mudei para o
navegador e pesquisei o nome dela no Google. Eu esperava ver as notícias usuais
sobre o desaparecimento de seu pai, aquelas que eu vasculhei por meses depois que
deixei a escola de música, desesperado para ver um vislumbre dela nas imagens, para
saber se ela estava bem.

Em vez disso, o que surgiu foram histórias dos últimos dezoito meses. LENDA
RP DESTRUÍDA POR DOENÇA MISTERIOSA, dizia uma manchete. Eu cliquei nela e
abri o artigo.

“Marguerite De Winter, a it girl do East Village que construiu um império de


relações públicas do zero, foi atingida esta semana por uma doença misteriosa. Sua
empresa, a De Winter RP, continuará operando com a assistente executiva Natalie
Baker, enquanto De Winter se recupera em seu quarto de hospital.

De Winter é conhecida em certos círculos de música clássica não como a gigante


das relações públicas, mas como a esposa do famoso virtuoso Donovan De Winter, que
desapareceu sem deixar vestígios há uma década. Ela não tem família nos Estados
Unidos, além de sua filha Faye, que se recusou a comentar com a mídia a condição de
sua mãe. A Sra. Baker explicou que a condição de De Winter é crítica, com os médicos
não tendo nenhuma pista sobre a origem de sua doença”

Cliquei em outro link de seis meses atrás: DE WINTER RP DECLARA FALÊNCIA.

“A De Winter RP anunciou sua falência esta semana depois que a filha da CEO,
Faye De Winter, esgotou seus cofres para pagar as contas médicas de sua mãe. A
empresa encerrará as operações no final da semana e desocupará seu moderno
escritório em East Village.”

Faye se recusou a comentar, mas fontes dentro da empresa explicam como essa
tragédia aconteceu. “Nós entendemos a posição de Faye, é claro. A saúde de Marguerite
deve ser prioridade. Mas estamos chocados e entristecidos que tudo o que Marguerite
construiu agora está destruído.”

Como uma empresária tão bem-sucedida acabou nessa posição? Claro,


Marguerite De Winter não poderia ter previsto sua doença, mas poderia ter protegido
seus negócios. A diretora de operações Natalie Baker explicou: “Marguerite era uma
força da natureza, ela rasgava a vida como um furacão, e foi assim que ela construiu
um negócio tão bem-sucedido. Ela tinha uma visão grande e bonita em sua cabeça e
contava com aqueles ao seu redor para preencher os detalhes. Ela era uma total
desmiolada, constantemente esquecendo as coisas, deixando suas chaves para trás,
perdendo documentos importantes. Não estou surpresa por ela não ter lembrado de
pagar as contas do seguro.”

De acordo com Baker, a trágica história de De Winter deveria ser um alerta para
todos os empresários. “É uma mensagem poderosa saber que mesmo aqueles que são
bem-sucedidos devem cuidar das pequenas coisas. Se Marguerite tivesse todas as suas
contas em dia, seu seguro não teria expirado e seu legado não teria sido desmantelado.”

Interessante que essa Natalie já tinha sido assistente e foi promovida a COO,
ou seja, diretora de operações. Meu coração batendo forte, eu continuei clicando. Um
pequeno artigo em um blog do setor de uma semana antes de Faye chegar a Manderley
notou que Marguerite De Winter havia entrado em coma.
Merda.

Eu sabia que Faye sempre visitava alguém no hospital porque Harrison foi
buscá-la lá, mas eu não tinha ideia... A mãe de Faye estava no suporte de vida, sem
seguro. Ela não tinha dinheiro em seu nome.

Ela estava sozinha.

Eu sabia bem como era isso.

Merda.

Não é de se admirar que Faye estivesse tão determinada a ficar em Manderley,


não importava o que eu fizesse com ela. Ela precisava do prêmio em dinheiro tanto
quanto eu. Mais ainda. E isso dizia alguma coisa.

Madame Usher sabia disso. Ela balançava o Prêmio Manderley sobre a cabeça
de Faye, fazendo Faye dançar como uma marionete para sua própria diversão.
Certamente Faye podia ver que Madame nunca a recompensaria com o prêmio,
embora queimasse minha garganta admitir, ela provavelmente merecia apenas por
seu talento na composição.

Madame Usher puxava as cordas, e nós dois dançávamos de acordo.

Mas por quê?

Minha mente voltou ao pesadelo que eu revivia todas as noites enquanto me


deitava para dormir.

Clare estirada ao pé da escada, o pescoço dobrado em um ângulo impossível.

Suas palavras, gritadas para mim segundos antes de ela cair para a morte.

Dorien, me escute! Tenho que lhe contar algo sobre Madame Usher. Sobre os
ruídos nas paredes.

Eu apertei meus olhos bem fechados. Eu disse a mim mesmo que aquilo foi um
acidente. Clare estava correndo atrás de mim, tentando chamar minha atenção, e
tropeçou na escada e caiu. Era nisso que eu tinha que acreditar. Pelo bem dele.
Mas meus olhos se abriram. Não posso ignorar a verdade. A morte de Clare. A
doença da mãe de Faye. O estranho comportamento de Madame Usher. Tudo voltava
a uma pergunta: Por quê?

Madame Usher geralmente lidava com seu próprio trabalho sujo, mas desta vez
ela confiou nos Broken Muses para fazer isso. E eu a faria se arrepender dessa
decisão.
Depois do desastroso recital para Hans e meu confronto com Dorien, ninguém
na casa falou comigo por uma semana. Bom. Eu também não queria falar com eles.

Os olhos dos Musos me seguiam aonde quer que eu fosse, espreitando sobre os
meus ombros, perfurando minha alma. Talvez suspeitassem que eu fosse a
responsável por colocar a coca de Ivan no estojo do violino. Não que ele tivesse sofrido
algum tipo de punição por isso. Eu me recusei a reconhecê-los de qualquer forma,
uma vez que se eles quisessem me tratar como um fantasma, então eu me tornaria
um.

Juntei as peças do meu violino arruinado. No meu quarto, coloquei-as debaixo


da janela em cima do livro de contos de fadas do meu pai. Enquanto o luar lançava
seu brilho sobre os cacos e as lascas, eu chorei todas as lágrimas que eu tinha
guardado desde que mamãe foi para o hospital. Foi uma verdadeira sangria para a
minha dor, e depois eu me senti melhor. Enrolei os restos mortais em um lenço que
minha mãe me deu e os levei para fora. Encontrei uma pá no depósito de lenha e cavei
um buraco na terra atrás do gazebo.

Abri minha porta na segunda-feira de manhã para encontrar um violino novinho


em folha no patamar, um belo instrumento veneziano no estilo de Sanctus Seraphin.
Arrastei-o para dentro e o virei de todos os lados, procurando um rótulo que pudesse
dizer de quem era, mas não havia nada. Minha mente vacilou para os três Musos,
mas isso era ridículo. Foram eles que destruíram meu violino, então por que o
substituiriam?

Eu não queria aceitar o presente sem saber de quem era, ou por que deram a
mim. Mas eu não iria longe em Manderley sem um instrumento, e Madame deixou
claro que as peças da coleção da escola estavam fora dos meus limites. Então eu
segurei o instrumento no meu queixo e toquei até meus dedos sangrarem, até que a
música tivesse cauterizado a determinação por vingança em minha alma.

Recusei-me a comer na sala de jantar com os outros alunos. Em vez disso, eu


colocava a mesa e me retirava para a cozinha. Pelo menos ali eu poderia me apegar à
crença de que o silêncio era por minha própria escolha.

Ninguém reconheceu a mim ou ao novo instrumento quando entrei na aula na


segunda-feira de manhã. Eu mantive minha cabeça erguida enquanto me sentava no
canto. Eu canalizei o espírito de minha mãe. Não deixaria o desprezo deles me atingir.

Segurei aquele violino novo no meu queixo e toquei cada nota com perfeição.

Mas não foi o suficiente para consertar o que havia feito quando peguei aquele
violino Becker. Nem mesmo o Maestro Radcliffe me daria atenção na aula particular
que tinha com ele. Ele apenas apontou o dedo para a partitura que ele queria que eu
tocasse e eu fui deixada para interpretar suas carrancas. Era uma forma ineficaz de
aprendizado. E após a aula de segunda-feira, decidi poupar a nós dois da agonia e
matar aula para praticar meu Sibelius e Paganini sozinha no meu quarto.

Alguém deve ter falado algo para Harrison, porque em vez de sua habitual
saudação jovial quando ele trouxe a madeira, tudo o que consegui foi silêncio e um
olhar de pena. Eu não percebi o quanto eu precisava desesperadamente de sua
bondade até que ela foi tirada de mim.

Os Musos fizeram isso.

Eles me odiavam tanto. Tudo porque eu... o quê? Existia?

A merda deles estava ficando insana. Meus sentidos trabalhavam horas extras.
Imaginei ouvir passos me seguindo enquanto me movia pela casa. Gemidos e rangidos
ecoavam dentro das paredes. No entanto, toda vez que eu me virava, o corredor estava
vazio.

A estranha música de violino flutuava para o meu quarto à noite, me mantendo


acordada. Esconder-se debaixo dos lençóis de um fantasma residente não era tão
divertido quanto os filmes diziam. Mesmo através dos meus fones de ouvido com
cancelamento de ruído, eu pegava trechos da mesma melodia assustadora, tocada
várias e várias vezes.

No final da semana, eu era um zumbi. Deixei cair um copo no jantar e Madame


Usher gritou que minha mãe me criou como um animal. Sentei-me à mesa da cozinha,
lutando contra as lágrimas enquanto devorava um pacote inteiro de alcaçuz Red
Vines.

Enquanto empilhava a máquina de lavar louça, notei uma figura se movendo


pela varanda dos fundos. Sem chance. Titus não poderia ter saído pela cozinha,
porque eu o teria visto. Eu coloquei minhas mãos sobre a janela e olhei para a
escuridão. A janela da Sala Amarela estava totalmente aberta, as cortinas balançando
ao vento. Ele devia ter escorregado lá para fora. Mas o que um dos Musos estava
fazendo esgueirando-se no escuro? Eles geralmente andavam por aí como se fossem
os donos do lugar. Titus correu pelo caminho em direção ao depósito de lenha,
olhando por cima do ombro para a casa como se não quisesse que ninguém o seguisse.
Uma grande caixa retangular batia contra sua perna.

Hmmmm.

Ele não tinha voltado para casa quando terminei de lavar a louça. Curiosa
agora, olhei para o relógio acima da geladeira. Quase 20h. Eu podia ouvir os outros
rindo e tocando música na Sala Azul. Por que Titus não estava com eles?

Pensando bem, eu não tinha certeza se já tinha visto Titus vagando pela casa à
noite. Ele se esgueirava para o depósito de lenha todas as noites? Se sim, o que ele
devia estar fazendo lá fora?

Uma raiva crescente fervia dentro de mim. Graças a esses caras, eu tive uma
semana infernal. Eles tinham prazer em fazer parecer que eu zombava da autoridade
de Madame Usher a cada instante, quando na verdade eram eles que andavam em
círculos ao redor dela.

Talvez fosse hora de eu voltar sua crueldade contra eles. Aposto que Madame
Usher estaria interessada em saber onde Titus vai toda noite.
Peguei meu casaco do gancho na porta da cozinha e a empurrei o mais
silenciosamente que pude. O vento estava forte esta noite, uivando pelo vale e
raspando os galhos nas paredes.

Fechei a porta o mais silenciosamente que pude e corri pela horta, parando no
portão para verificar se alguém viria da casa principal. Ninguém à vista. Eu
destranquei o portão, estremecendo quando as dobradiças rangentes perfuraram o ar
da noite. Mas o vento chicoteou o som contra a casa. Se Titus percebesse que eu
estava atrás dele, não seria por causa daquele som.

Deslizei e rastejei pelo caminho, mantendo-me perto da casa. Cheguei ao


depósito de madeira com sua baia aberta onde Harrison empilhava lenha para secar
e guardava seu enferrujado maquinário de jardim. Eu não conseguia ver Titus em
lugar nenhum.

Atrás do depósito de madeira havia outro anexo, e eu nunca o tinha notado


antes, mas não passava muito tempo aqui. Era longo e baixo e feito de tijolos,
escondido pelas árvores pendentes. Uma luz fraca cintilava na janela suja de sujeira.

Peguei você.

Eu rastejei, parando na porta para pressionar meu ouvido contra a madeira,


lutando para ouvir.

Havia um barulho estranho, como um... Eu não conseguia explicar. Um


zumbido chato. Um som intermitente. Titus grunhia. Ah, tem uma garota lá dentro. A
filha de algum lenhador local? Um escândalo digno de um Broken Muse, com certeza.

Eu sorri para mim mesma. Eu o tinha nas minhas mãos agora.

Bem-vindo ao seu pior pesadelo, Titus Thibodeaux.

Abri a porta e entrei.

Levou um momento para meus olhos se ajustarem. O zumbido vinha de um


pequeno gerador no canto, expelindo fumaça nociva em uma chaminé improvisada
apontando para uma janela voltada para a floresta. Um par de lanternas repousava
em prateleiras de madeira em ruínas, sua luz apontada como dois holofotes para a
parede oposta.

E o que elas refletiam... Roubou ar dos meus pulmões.

Titus estava sob a luz da lanterna, pernas abertas, jogando a cabeça em círculos
frenéticos para que suas trancinhas voassem ao seu redor. Fones de ouvido cobriam
seus ouvidos, e um fio serpenteava pelo chão até um pequeno amplificador e uma
unidade principal conectada ao gerador.

Pendurada abaixo, em seus quadris, seus dedos voando sobre as cordas tão
rápido que eram apenas um borrão, estava uma guitarra elétrica Gibson Flying-V
surrada.
Fiquei parada, congelada pela visão à minha frente, minha mente voltando para
as horas de vídeos de Titus tocando no palco que eu tinha assistido, a ferocidade com
a qual ele apunhalava o violoncelo, aquela massa pesada de instrumento em suas
mãos.

Seus olhos se abriram. Ele me viu ali de pé e saltou tão alto no ar que bateu a
cabeça no teto baixo do barraco.

“Que porra é essa?” Titus arrancou seus fones de ouvido e marchou em minha
direção, a guitarra batendo contra seu peito nu. Seu amplificador emitiu um zumbido
alto.

Eu engoli em seco. Ele parecia bravo para caralho, bravo o suficiente para fazer
alguma coisa…

Mas, bem, foda-se ele. Eu tinha algumas coisas para ficar com raiva também.

“O que é isso, Titus?” Inclinei meu telefone em direção a ele, tirando algumas
fotos que eu poderia usar como segurança. Porque ele claramente queria que isso
fosse um segredo, caso contrário ele não estaria tocando escondido em um barraco
no vento gelado. Eu esperava que a lanterna brilhante o retardasse se ele se lançasse
em mim.

“Não é da sua conta.” Titus arrancou a guitarra do pescoço e a jogou em um


estojo coberto com adesivos de bandas, seus olhos nunca deixando meu rosto. Seus
ombros tremiam de raiva, e percebi o quão estúpido foi entrar neste barraco remoto
para confrontar esse cara.

“Você está errado.” Com mais bravura do que sentia, deslizei meu telefone no
bolso e o acariciei com satisfação. Uma pilha de ferramentas velhas estava encostada
na parede. Peguei uma pá e a segurei na minha frente. “Vocês estão tentando arruinar
minha vida desde que cheguei a Manderley. E depois que Dorien destruiu meu violino,
pensei que tinham ganhado. Mas com essas fotos, eu posso ter conseguido alguma
coisa.”

“O que você vai fazer?” Ele estreitou aqueles olhos pecaminosos para mim.

“Nada. Por enquanto.” Eu deixei um sorriso lento arrebatar meu rosto. “Mas se
você ou seus amigos fizerem mais alguma coisa comigo, essas fotos vão direto para
Madame Usher. E talvez alguns dos meus amigos da mídia musical também.”

“Você não faria isso,” ele rosnou.

“Não presuma saber o que eu faria ou não.”

Eu me virei e me afastei antes que ele pudesse pensar em vir atrás de mim.

Do lado de fora, minha bravura quebrou, e minhas pernas tremiam tanto que
tive que me inclinar contra o galpão de madeira para recuperar o fôlego. Larguei a pá
na terra e peguei meu telefone, folheando as fotos novamente.

Eu finalmente tinha algo sobre os caras. Eu segurava a liberdade de seu bullying


em minhas mãos. Mas tudo que eu conseguia pensar era no medo piscando nos olhos
de Titus. Ele era a pessoa mais intimidadora que eu já conheci, então o que poderia
deixar um cara assim com tanto medo? E por que ele estava tocando guitarra em
segredo em um barraco abandonado em primeiro lugar?

E por que eu me importava? Não podia ser por causa daquela vez em seu quarto,
quando eu jurei que seus lábios roçaram os meus, quando eu queria tanto cair nele e
me perder.

Quão fodida eu tinha que ser para desejar meu valentão quando finalmente
tinha poder sobre ele?
“Estou fodido.” Enterrei minha cabeça em minhas mãos.

“Você não está fodido.” Dorien se inclinou para fora da janela, sugando o último
prazer de seu baseado. Ele me ofereceu um trago, mas eu estava muito agitado para
isso. Eu não precisava me acalmar. Eu precisava…

Porra. Eu precisava que aquelas fotos sumissem. Eu precisava ver Faye


novamente. Eu precisava de seus lábios nos meus, e sentir seu corpo sucumbir
debaixo de mim enquanto ela cedia à química insana entre nós.

Mas enquanto ela estivesse com aquelas fotos, ela poderia muito bem ter uma
corda em volta do meu pau.

“Duende não vai falar nada.” Dorien fechou a janela e atravessou a sala para
me encarar. Ele parecia muito calmo considerando a situação.

“Ela não tem motivos para ficar quieta,” eu atirei de volta. “Ela ainda está
chateada por eu ter estado no quarto dela. Você viu o que ela fez com Ivan. Eu sou o
próximo. Ela tem toda a munição de que precisa para me tirar de cena.”

“Eu vou falar com ela,” Dorien rosnou. “Eu vou fazê-la ver a razão.”

Eu não gostei daquele tom na voz dele, do jeito que ele disse isso, adicionando
uma inflexão perigosa em seu timbre. Eu sabia tudo sobre os poderes de persuasão
de Dorien. Eu o vi usar em centenas de garotas quando estávamos em turnê. E a ideia
de Faye ser outro entalhe em sua cabeceira quando ela significava tanto... “Não, eu é
quem deveria fazer isso. Eu cavei o buraco, eu deveria ser o único a preenchê-lo
novamente.”
“Para ela, você é apenas um perseguidor pervertido. Faye e eu temos história.
Ela confia em mim, embora não admita. Eu vou falar com ela.”

Havia um brilho em seus olhos cinzas que eu achava que nem ele entendia.
Dorien queria Faye, e também queria me manter longe dela.

E Dorien sempre conseguia o que queria.


Eu ajustei meu alarme para 5 da manhã e desci as escadas antes que Faye
reivindicasse sua sala de prática matinal. Ela costumava praticar no início do dia para
que pudesse realizar suas tarefas sem ter que nos ver. Eu me escondi no canto para
que ela não tivesse a oportunidade de fechar a porta na minha cara, e esperei.

Às 5h30, ela destrancou a porta com a chave da casa e entrou, acendendo as


luzes. Ela montou sua estante de partitura e estava no meio da escala quando eu saí
de trás do aparador.

“Merda.” Ela largou o arco. “Dorien, seu idiota.”

Medo real escureceu seus olhos. Medo de que eu a machucasse. E por que ela
não deveria ter medo? Eu não tinha feito nada além de machucá-la nas últimas
semanas, e agora eu aparecia de um esconderijo no canto. Eu odiava ver minha
crueldade refletida de volta para mim.

Isso me fez sentir coisas desconhecidas. Dor. Arrependimento. Auto aversão.

Eu levantei minhas mãos. “Isso não é sobre você e eu. É sobre Titus. Você não
pode contar a ninguém o que viu ontem à noite.”

Faye estreitou os olhos. Para alguém que estava com tanto medo, ela se manteve
firme, afastando os pés em uma posição de poder, tornando-se maior. Faye De Winter
nunca recuava. “E por que não?”

“Titus não fez nada para te machucar. Exceto por aquela vez que ele entrou em
seu quarto com Heather, e ele odiou fazer aquilo. Ele me disse que não faria mais nada
com você, Duende. Então apenas finja que você nunca o viu lá fora.”
“Não use esse apelido. Você perdeu esse direito há muito tempo. Não posso fingir
que nunca vi Titus, porque não faz sentido. Por que ele estava lá fora, no frio, com
uma guitarra? Por que isso precisa ser um segredo?”

Suspirei. Não era meu segredo para contar, mas Faye não ia deixar isso de lado.
Eu tinha que fazê-la entender. “Os pais de Titus... Você sabe, eles são bem famosos...”

“Amos e Delphine Thibodeaux. Eu não sou idiota.”

“Certo. Bem, eles querem que ele siga na música, que continue o legado deles.
Esse tem sido o seu destino desde o momento em que Titus foi concebido. Mas não é
o que ele quer.”

Faye bufou. “Titus quer desistir de sua carreira clássica para se juntar ao Iron
Maiden?”

“Para falar a verdade, sim. Titus tocou guitarra secretamente durante a maior
parte de sua vida. Ele escondia uma na minha casa. Ele costumava ficar comigo
sempre que seus pais estavam em turnê e tocava em nosso salão de baile. Até que
isso... Não era mais uma opção. Ele é bom. E ele poderia ser fantástico, mas seus pais
se recusam a ouvir isso. Se ele se apresentasse como um guitarrista de heavy metal,
eles o deserdariam, o cortariam da família para sempre.”

“Titus é legalmente um adulto. Ele pode fazer o que quiser.”

“Eu já disse isso a ele uma centena de vezes, mas você não conhece Titus como
eu. Ele não suporta a ideia de seus pais o odiarem. Sua aprovação e amor são tudo
para ele. É por isso que você tem que guardar o segredo dele. Ninguém mais sabe,
nem Madame Usher, nem Heather ou Aroha, ninguém. Se alguém descobrir e a mídia
se apossar da história, ou se os outros descobrirem, eles vão contar aos pais dele, e
então estará tudo acabado para ele.”

“Por que você nunca usou isso contra ele? E não o tirou do caminho para o
Prêmio Manderley?” Seus olhos brilharam. “Ou é só a mim que você está determinado
a destruir?”
“Titus me apoiou mais vezes do que posso contar. Vou chutar o traseiro dele na
competição, mas não vou sabotá-lo. Você pode não acreditar, mas eu levo minhas
amizades a sério.”

“Você está certo.” Ela agarrou seu arco e segurou-o sobre o peito como uma
espada medieval. Uma memória passou pela minha mente: Faye e eu caindo na
gargalhada enquanto travávamos uma luta de espadas com nossos arcos. “Eu não
acredito. Agora saia, eu reservei está sala.”

“Então você não vai...”

“Saia.”
Eu não posso acreditar nele.

Eu arrastei o ferrolho pela porta da sala e empurrei uma cadeira sob a fechadura
para garantir. Minhas mãos voaram para o meu violino, a agitação e o medo em meu
corpo desesperados por liberação. Deslizei o arco pelas cordas, lançando-me primeiro
nos caprichos de Paganini e depois direcionando-me por um caminho desconhecido,
seguindo a música em qualquer lugar onde ela me levasse.

Eu nem estava pensando, isso era pura improvisação, evocando imagens do


meu passado que se misturavam com o presente. Eu ansiava por Dorien. Eu o odiava.
Eu queria rastejar para dentro de seu aroma de especiarias e violeta e viver lá para
sempre.

Três Musos quebrados. Tudo que eu cheirava, tudo que eu podia sentir, eram
Dorien, Titus e Ivan. Eles corriam em minhas veias, inseparáveis de sua música, a
magia que mexia com minha alma e me fazia sentir coisas que eu não entendia.

Com um grito de frustração, arranquei o violino do meu queixo, girando pela


sala em uma dança imprudente. Do canto da sala, um leve som de arranhar ecoou na
parede, seguido pelo rangido de passos que se afastavam.

“Você é o caralho do fantasma mais inútil que eu já conheci!” Eu gritei para a


parede.
Naquele domingo, eu tinha um tempo livre para visitar minha mãe. Mas
Harrison estava visivelmente ausente quando fui encontrá-lo. Lágrimas picaram em
meus olhos. Eu sabia que ele não tinha esquecido. Alguém estava deliberadamente
me mantendo longe da minha mãe.

Liguei para uma empresa de táxi para ver se conseguia alguém para me buscar.
Custaria cada centavo da mesada que Madame me dava e que eu tinha economizado,
mas valeria a pena. De repente, eu não queria nada mais no mundo do que estar na
presença de mamãe, mesmo que ela estivesse dormindo. Mas quando liguei para pedir
um táxi para Manderley, o cara do outro lado do telefone riu de mim.

“Você nunca vai conseguir alguém que faça a viagem até aí. Mesmo que
estivessem dispostos a viajar tão longe, não o fariam porque esse lugar é assombrado.”

“Isso é ridículo. É apenas uma velha propriedade de uma senhora excêntrica.”

“Excêntrica? Oh, ok. Todos nós conhecemos as histórias; passos na noite,


ruídos nas paredes, música tocando quando ninguém está segurando um
instrumento. E aquela garota morreu na casa há menos de dois meses, e tudo
continua um mistério. Manderley é assombrada, escute o que estou dizendo.”

Meu coração saltou na minha garganta. Essas eram exatamente as mesmas


coisas que estavam acontecendo comigo. Mas fantasmas? Mesmo? Manderley era
velha e assustadora, com certeza, mas eu tinha quase certeza de que seu fator
maléfico era inteiramente devido às pessoas que a habitavam.

E o rosto de Dorien quando você o confrontou com o violino quebrado?

Ele parecia horrorizado. Completamente surpreso. Continuou insistindo que só


escondeu meu violino. Ele admitiu livremente ter feito todas as outras coisas horríveis
comigo Ele se deleitava com sua crueldade, e isso fazia parte da tortura. Ele queria
que eu soubesse que ele queria me derrubar. Mas Dorien se recusou a admitir que
destruiu meu instrumento.

E nenhum dos caras admitiu ser aquele rosto na minha janela, ou ter invadido
meu quarto para apagar a luz. Lembrei-me de como verifiquei todos os cantos do meu
quarto, como nunca ouvi ninguém descer as escadas, como minha fechadura nova e
elegante não havia sido perturbada e não encontrei nenhum vestígio de um painel
escondido. Parecia impossível que alguém pudesse ter estado lá e, no entanto, eu
tinha certeza do que vi.

A menos que fosse um fantasma...

Pare com isso. Eu balancei minha cabeça. Você está sendo ridícula. Não deixe a
Manderley chegar até você. Fantasmas não existem.

A vontade de me jogar na cama e chorar no livro do meu pai ameaçou me


dominar, mas eu endireitei meus ombros e coloquei minha melhor cara de bravura.
Se eu não pudesse ver minha mãe, pelo menos me certificaria de que meu dia fosse
produtivo.

Todas as salas de prática estavam ocupadas, mas eu ainda tinha uma redação
para terminar. Não era para ser entregue em meses, mas não faria mal ter uma
vantagem. Talvez se eu entregasse cedo eu pudesse recuperar um pouco do respeito
do Maestro Radcliffe. Eu ainda não estava pronta para desistir do Prêmio Manderley.
Então fui em direção à biblioteca.

Dorien olhou para cima de uma mesa perto da janela enquanto eu abria a porta.
Excelente. Lancei a ele um olhar de 'não brinque comigo' e propositalmente sentei-me
o mais longe possível dele, puxando livros das prateleiras com certa raiva em meus
movimentos. TUM, TUM, TUM, TUM. Bati volume após volume na mesa, saboreando
o barulho alto que ecoava por toda a sala de teto alto.

Caí em um cubículo e comecei a trabalhar na redação, mas era impossível me


concentrar com Dorien na mesma sala sendo todo... Dorien. Li a mesma página sobre
as técnicas de performance de Paganini cinco vezes antes de desistir. Deixei cair
minha cortina de cabelo sobre o meu rosto, e me atrevi a olhar através dos fios para
o outro lado da sala.

Por cima de seu laptop, os olhos cinzas de Dorien olhavam para mim.

Porra.

Eu olhei para ele e voltei meus olhos para os meus livros, mas a sensação de
ser observada não me deixou. Ao contrário do rastejar na minha pele que geralmente
me assediava à noite, isso parecia diferente, e eu acolhi bem o sentimento. Eu ansiava
por isso. E eu não conseguia entender o porquê. De todos os Musos, Dorien era quem
eu mais odiava.

Ele destruiu meu violino, a coisa mais preciosa que eu tinha.

E o que eu tinha feito com Ivan não era nada como o inferno que eu ia fazer
chover em Dorien... Assim que eu reunisse coragem.

Eu ousei dar outro olhar para o Bad Boy do Barroco. Ele nem tentou esconder
que estava me observando. Dorien se inclinou para trás em sua cadeira, um sorriso
brincando em seus lábios.

Filho da puta.

Aqueles lábios perfeitos se separaram. “Duende, eu...”

BANG.

Eu pulei para fora da minha pele. Meus livros bateram no chão quando a porta
bateu contra a parede. Heather atravessou a sala e plantou ambas as mãos em cada
lado da mesa de Dorien. “Aí está você. Eu estive procurando por você em todos os
lugares. Deveríamos estar praticando juntos.”

“Eu não vou mais praticar com você.” O sorriso nunca deixou o rosto de Dorien,
mas quando ele o virou para Heather, sua risada assumiu aquela qualidade cruel que
ele até então reservava apenas para mim.
“Dorien, não seja bobo. Temos um mês inteiro de recitais chegando. Você sabe
que combinamos perfeitamente juntos, dentro de uma sala de concertos e... Em outros
lugares...” Ela arrastou os dedos pelo braço dele.

Ele empurrou a mão dela. “Heather, eu tentei ser legal, mas você parece não
estar entendendo a mensagem. Não vou mais tocar com você. Acabamos.”

“Não seja estúpido.” Sua voz assumiu um tom estridente, toda a musicalidade
desaparecida. “Você sabe que eu sou seu destino, Dorien. E você não pode brincar
com o destino.”

Isso é algo meio estranho de se dizer.

“Eu posso fazer o que eu quiser, com quem eu quiser, e esse alguém não é você.”

“Você vai se arrepender disso.” Os dedos de Heather se fecharam em punhos ao


seu lado. A capa de pele vintage que ela usava escorregou por cima do ombro. “Você
ainda se acha muito importante, não é, Sr. Bad Boy do Barroco? Mas você acabou
com sua carreira europeia e a queimou até as cinzas, e se você ainda tem alguma
esperança de chegar ao topo novamente, então você precisa de mim, e sabe disso.”

“Eu nunca precisei de ninguém, e isso não mudou. Se eu decidisse levar outra
pessoa para o topo comigo, não seria uma cadela mimada e musicista ruim de um
metro e meio envolta em peles de animais mortos. Você não é mais interessante o
suficiente para continuar me acompanhando.”

“Você vai se arrepender disso. E então vai me chamar quando cair em si,”
Heather assobiou com os dentes cerrados. A porta bateu atrás dela.

Interessante.

Não. Peguei um livro que tinha deslizado para o fundo da prateleira. Não é
interessante. Aconteceu que duas pessoas horríveis decidiram ser horríveis
separadamente. Isso não é da minha conta. Eu tenho um ensaio para escrever.

Dorien deslizou sua cadeira para fora da mesa, as pernas rangendo contra o
piso de parquet. Voltei a pegar meus livros espalhados, rastejando debaixo da minha
mesa em minhas mãos para alcançar um volume que havia deslizado sob uma
prateleira.

“Faye.”

Eu pulei com o meu nome em seus lábios, a palavra agitando uma tempestade
em minhas entranhas. Minha cabeça bateu na parte de baixo da minha mesa, fazendo
cintilar estrelas em minha visão. Malditos trompetes. Ai.

Eu ousei dar uma olhada por cima do ombro. Lá estava Dorien, em toda a sua
glória sombria e taciturna, encostado nas estantes com aquele sorriso no rosto
enquanto olhava para a visão mais desfavorável da minha bunda que eu poderia ter
apresentado a ele.

Querido fantasma de Manderley, se você realmente existe, eu gostaria que você


sacudisse algumas correntes ou espalhasse um pouco de ectoplasma por aí agora, ou
apenas abrisse o chão para que eu pudesse cair em um buraco, por favor e obrigada.

“Vá embora.” Eu deslizei para fora da mesa, minha saia subindo nas minhas
coxas. A cor brilhou em minhas bochechas, e eu me odiei por isso. Eu não tinha
motivos para me sentir envergonhada na frente de Dorien, especialmente depois do
que ele fez.

“Eu queria falar sobre sua mãe.”

“Bem, talvez eu não queira falar com você.”

“Faye...” Dorien lançou um olhar por cima do ombro, seus olhos correndo ao
redor da sala. Ele estava nervoso, mas por que estaria? Dorien Valencourt nunca ficou
nervoso um dia sequer em sua vida. “Eu não sei se você sabe disso, mas nós tínhamos
uma empregada antes de você. O nome dela era Clare. Ela caiu da escada e quebrou
o pescoço.”

“Harrison acha que você a empurrou,” eu atirei de volta.

E me arrependi instantaneamente. Mesmo tendo o visto em seus dias mais


cruéis, eu não conseguia acreditar que Dorien fosse capaz de tal ato. Mas isso foi
antes do meu violino, era claro. Atrevi-me a olhar para aqueles olhos sem limites, e o
que vi ali agarrou meu coração e apertou. Seus olhos cinzentos giravam com dor e
arrependimento, não o olhar de um assassino a sangue frio, mas algo muito mais
humano e não-Dorien.

Dorien suspirou. “Claro que sim. A polícia também tinha suas suspeitas. Fui
um idiota com Clare, e isso não pode ser discutido. Ela gostava de mim, e eu estava
envolvido com ela. Mas eu não poderia tê-la empurrado. Eu estava na escada à frente
dela. Tinha acabado de chegar ao patamar inferior quando ela caiu. Clare estava
correndo atrás de mim. Ela queria me contar algo sobre Madame Usher.”

“Eu não me importo. Vá embora.”

“Você deveria se importar. Porque eu acho que você está em perigo. Madame
Usher...” Dorien desviou o olhar. “Ela não quer você aqui.”

“Você não me quer aqui. E até agora, você, Titus e Ivan foram os únicos me
atormentando, chegando até a destruir meu...” Engasguei com a palavra. Eu não
podia nem falar sobre meu violino perto dele; ainda doía muito profundamente.

Desta vez, Dorien não desviou o olhar. Uma tempestade feita de tormento
cresceu em seus olhos. “Eu fiz essas coisas por ordem dela. Não tive escolha. E juro
pela vida do meu irmão que não quebrei seu violino e que nenhum de nós era o rosto
na sua janela. Você tem que acreditar em mim”

Eu não sabia que Dorien tinha um irmão.

“Por que eu deveria acreditar em você? Você fez tudo ao seu alcance para me
deixar infeliz, e o que eu fiz para você, além de ser sua amiga? Agora você quer que
eu fale sobre minha mãe, a experiência mais horrível que já aconteceu comigo? Por
que você acha que eu devo isso a você?”

“Você não me deve nada.” Dorien deu um passo em minha direção, seus olhos
endurecendo como pedra. “Eu devo a você, Duende. Devo tudo a você.”

Eu abri minha boca para perguntar o que diabos ele queria dizer com isso, mas
então Dorien esmagou seus lábios nos meus.
O beijo afastou todos os pensamentos racionais da minha cabeça. Os lábios
quentes e exigentes de Dorien me arrastaram para baixo, varrendo-me na tempestade
de sua necessidade. Todas aquelas noites em que eu me aconcheguei no meu
computador assistindo vídeos de Dorien no palco, aqueles lábios cruéis fazendo
beicinho enquanto ele acariciava as teclas do piano como um amante, me tocando
enquanto eu imaginava como seria ter a atenção de um cara assim. Agora eu sabia,
eu sabia, porra, e era tudo.

A música dançou sobre minha pele enquanto Dorien envolvia seus dedos em
volta do meu pescoço, me puxando para mais perto, seus lábios devorando os meus.
A música de nossas vidas tocou em um emaranhado de língua, lábios e toques
pecaminosos. Um gemido escapou da minha garganta que fez o corpo de Dorien
estremecer. Ele engoliu meu suspiro enquanto seus dedos apertavam meu pescoço, e
um rosnado profundo retumbou em sua garganta, cru e primitivo e tão fodidamente
quente.

Os dedos da outra mão de Dorien se enrolaram na minha, pressionando minha


palma contra as prateleiras. Livros caíram ao nosso redor enquanto ele se apoiava em
mim, tocando meu corpo do jeito que ele tocava piano, duro e implacável e
perversamente delicioso. Eu senti como se minha pele fosse derreter com o calor
abrasador que corria pelo meu corpo.

A imagem do meu violino em pedaços cintilou em minha mente, e todo o calor


foi drenado da minha pele. Eu me afastei dele.

“Duende?” A sobrancelha arqueada, aquela boca cruel se transformando em


uma pergunta. Ele ainda não tinha a mínima ideia de porquê eu queria distância,
porra.

Não posso acreditar que eu o beijei. Que as trombetas soem, porque isso é tão
confuso?

Eu precisava de espaço. Eu precisava pensar.


“Saia de cima de mim.” Eu empurrei Dorien. Mais forte do que eu pensava. Ele
colidiu com a pilha oposta, enviando uma avalanche de livros para o chão. “Você
termina nossa amizade sem explicação, então age como se eu tivesse vindo aqui
deliberadamente estragar sua diversão. Você destrói meu violino, e então usa o apelido
que fez para mim como se nada tivesse mudado, e, como se tudo isso já não fosse
confuso o suficiente, você ainda me beija? Eu não me importo se você é o Bad Boy do
Barroco e toda garota quer você. Eu não sou seu brinquedo.”

“Eu nunca...” A tempestade nos olhos de Dorien rugiu contra o meu fogo. Ele
passou os dedos pelos cabelos e seu queixo tremeu. Eu queria desviar o olhar, mas a
magia que seus olhos conjuravam me prendeu. “Faye, eu não estava tentando... Foda-
se, eu nem sei o que estava fazendo. Mas você tem que acreditar que eu não...”

Eu me recusei a deixá-lo terminar. Desvencilhei-me dele e fugi da biblioteca.


Eu a observei fugir, cabelo preto tecendo ao redor dela, bunda quente
balançando entre as pilhas. Eu queria tanto ir atrás dela, mas sabia que era inútil.

Faye tinha todo o direito de me odiar. Eu tinha sido horrível.

Mas agora que eu a tinha provado, de jeito nenhum eu a deixaria ir.

Faye estava certa sobre uma coisa, ela não era como as outras garotas. Os
músicos clássicos não tinham groupies como os rockstars, mas quando os tabloides
chamavam alguém de 'Bad Boy do Barroco', isso carregava consigo uma certa mística.
Eu tinha tantas garotas caindo aos meus pés em todas as cidades que minha cama
nunca esfriava. Aprendi truques com as prostitutas de Amsterdã que eram
sussurrados em tons reverentes entre Maestras residentes em salas verdes do outro
lado do continente. Mas não importava quem eu conquistasse, quão ricas, bonitas ou
talentosas essas pessoas fossem, todas elas se misturaram no final. Vasos dispostos
nos quais despejei minhas tristezas, vícios nos quais me entorpeci, um desfile de
prazeres sem nome para me distrair do buraco escancarado de miséria que era minha
vida.

Apenas um rosto se destacou para mim. Apenas um. Faye, a única pessoa que
se importava comigo o suficiente para me deixar uma cicatriz.

Faye me queria. A maneira desesperada como ela chupou meu lábio, aquele
rosnado lindo que ela fez quando eu escovei minha mão sobre seu mamilo, a forma
como seu corpo se inclinou para mim, cada curva derretendo. Ela me queria, e ela se
odiava por isso. Eu conhecia bem aquele sentimento fodido.

No entanto, ela seria capaz de morder esse desejo e ignorar as faíscas entre nós
por pura força de vontade. Se eu a queria, então teria que conquistá-la.
Felizmente, eu a conhecia bem o suficiente para entender exatamente como
tocar seu coração. Havia duas coisas que Faye amava mais do que tudo no mundo:
Sua mãe e sua música.

Assim que o Maestro Radcliffe entrou na aula de composição na manhã


seguinte, eu o agarrei. “Maestro, eu gostaria de pedir para trabalhar junto com Faye
em uma composição conjunta. Ouvi a peça em que ela está trabalhando e acredito
que transformá-la de uma sonata em um dueto entre piano e violino daria uma
profundidade que está faltando à música atualmente.”

Maestro Radcliffe ergueu uma sobrancelha em surpresa, mas ele sabia que não
deveria me questionar. “Certamente, Dorien. Acho uma ideia maravilhosa. Faye se
beneficiaria de trabalhar ao lado de um músico que teve um treinamento mais….
tradicional.”

Nesse momento, Faye entrou, com as bochechas coradas por ter se apressado
em suas tarefas, o vestido preto grudado em suas curvas de uma maneira deliciosa.
Seus olhos se estreitaram enquanto eu caminhava até ela, bloqueando seu caminho
para seu lugar habitual no canto sombreado da sala.

“Saia da minha frente.” Ela segurou o estojo do violino como um escudo romano
e me atacou. Ela atingiu um canto das minhas costelas, mas em vez de lutar contra
ela, eu saí do caminho, pegando seu braço enquanto ela tropeçava para frente.

“Claro.” Fiz um gesto para o piano. “Você quer trabalhar aqui, ou no salão de
baile?”

Ela puxou o braço para longe. “Do que você está falando?”

“Maestro Radcliffe nos juntou para trabalhar em uma composição.”

Os olhos já tempestuosos de Faye se agitaram em turbilhões. “Ele não fez isso.”

“Ele fez.” Dei a ela o sorriso que transformava a maioria das garotas em
manteiga. A maioria das garotas, mas não Faye. “Que sorte a minha.”

Mestre Radcliffe se levantou de onde estava sentado ao lado de Elena e se


aproximou. “Ah, Faye. Eu disse a Dorien que ele deveria trabalhar com você em sua
composição. Sua peça é extremamente complexa, e acredito que adicionar o piano lhe
dará a profundidade necessária para ser verdadeiramente excepcional.”

O rosto de Faye se contorceu enquanto ela lutava contra seus impulsos, entre
agradar o Mestre Radcliffe e me estrangular até que eu ficasse azul. Eu sabia um
pouco sobre como ela se sentia, naquele momento eu queria cair na gargalhada e jogá-
la contra a parede e beijá-la ao mesmo tempo. Eu optei por nenhum dos dois, e em
vez disso, ofereci meu braço. “Salão de baile, então. Devemos?”

Faye me lançou um olhar sujo, ergueu seu violino, passou por mim e saiu pela
porta. Eu sorri enquanto a seguia, observando aquela bunda linda balançar pelo
corredor, enquanto Heather enfiava adagas nas minhas costas com os olhos.

BANG. Faye abriu a porta do salão de baile com tanta força que bateu contra a
parede, sacudindo uma cômoda cheia de pratos de porcelana. Ela atravessou a sala e
jogou o estojo do violino sobre uma otomana de veludo. Um raio de luz difusa saiu da
janela e caiu em seu rosto.

“Eu não sei qual é a sua intenção aqui,” ela retrucou. “Mas você pode parar
agora. Aquele beijo foi um erro. Você se aproveitou de mim, me pegou desprevenida
e...”

“Eu, me aproveitar de você, Faye De Winter? Acho que não. Ainda me lembro de
como você costumava gritar e chutar e esbravejar quando Madame Usher te colocava
com outros alunos até ela ceder e deixar você trabalhar comigo. Você nunca fez nada
que não fosse exatamente o que você queria. A forma como seu corpo se enrolou ao
redor do meu, você me queria.” Deslizei para o banquinho do piano, levantando a
tampa. “Você ainda me quer, Duende.”

Usar o antigo apelido que dei para ela era uma aposta, uma que valia a pena.
Ela bufou, mas notei seu peito arfante quando se posicionou no meio do chão, de
frente para mim. O feixe de luz cortou seu peito, destacando a curva de seus seios,
mesmo através daquele vestido preto severo. Eu umedeci meu lábio inferior.
“Que jogo você está jogando agora?” Ela exigiu. “Isso é uma distração enquanto
Titus e Ivan destroem meu quarto? Você está planejando despejar um balde de sangue
de porco na minha cabeça?”

“Nada de sangue de porco. Nós vamos apenas fazer uma bela música juntos.”
Minha boca virou para cima quando estendi a mão para passar meus dedos em seu
pulso, para sentir a pulsação de seu sangue em suas veias. “E talvez eu também te
dobre sobre este piano e faça você gritar meu nome quando gozar.”

Faye puxou o braço para longe, e uma parede de vergonha me atingiu. Depois
de tudo que fiz para machucá-la, não a culpo por suspeitar de mim.

Mas aquele beijo me deu esperança. Faye derreteu em meu corpo como se ela
se encaixasse em mim. Ela queria isso tanto quanto eu. E ela só tinha que me perdoar
primeiro. Esse perdão não viria facilmente, mas eu sabia o que tinha que fazer para
conquistá-lo.

Eu tinha que descobrir o que Madame Usher queria dela.

“Se você fizer um movimento errado, Dorien Valencourt, eu vou matar você. Eu
só quero passar por essa composição sem ter que fazer isso. A última coisa que preciso
é ser presa por homicídio.”

Eu me acomodei em meu assento. “Então vamos trabalhar. Toque para mim.”

Faye fechou os olhos e levou o violino ao queixo. Ela respirou, estremecendo, e


eu me perguntei se ela estava tentando livrar o meu cheiro de seu corpo, me apagar
para que eu não infectasse sua música.

Era muito tarde para isso.

Ela dedilhou a primeira nota. Era a peça que ela estava tocando no jardim
naquela noite, só que ela a refinou, desenhando o tema, girando-o sobre si mesmo
para criar uma melodia tão dolorosamente assombrosa que me roubou o fôlego.

Sua música me hipnotizava, mas era Faye quem me deixava cambaleando. A


maneira como ela mergulhava totalmente no momento, dando corpo, coração e alma
à música. Essa era minha Faye, minha Duende, ela vivia para o aqui e o agora. E
embora ela tocasse com a graça de uma performer experiente, ela evitou a quietude
estoica da postura tradicional e optou pela paixão, seu corpo se movendo enquanto
ela tocava através dos arpejos arrebatadores que faziam parte de seu estilo de
assinatura.

Eu estava de volta à sala de aula da velha escola de Madame Usher, nós dois
rindo enquanto fazíamos um arranjo clássico para a música Muppets Mahna Mahna,
que tocamos em um recital sob aplausos arrebatadores, embora Madame Usher
franzisse a testa para nós o tempo todo.

Lembrei-me de Faye como a criança brilhante e despreocupada, o antídoto para


meus humores sombrios. O padre Aaron ainda não tinha entrado em nossas vidas e
queimado tudo até o chão, mas meus pais só me notavam quando eu fazia algo errado.
Porém, assim que entrei pelas portas do estúdio de Madame e os olhos brilhantes de
Faye se iluminaram ao me ver, o mundo pareceu ser um lugar mais feliz.

Ela precisava de mim, e eu a abandonei.

Eu fui muito egoísta, e estava muito atolado em minhas próprias merdas para
pensar em como isso deveria ter machucado ela, mesmo que eu continuasse vendo
seu rosto caído em meus sonhos. E ainda passei as últimas semanas esfregando sal
em suas feridas.

Ela terminou a peça, inclinando a cabeça. Bater palmas agora seria quebrar o
momento.

Em vez disso, me virei para o piano e comecei a tocar.

Eu não tinha preparado nada, mas era como se a composição dela fosse
perfeitamente desenhada para mim, para o meu estilo. Eu peguei o tema de sua peça,
expandindo e aprofundando, dando um toque mais emocional nos momentos certos.
Eu queria olhar, ver a reação dela, mas eu sabia que se eu quebrasse meu foco, eu
perderia a magia que envolvia meus dedos.

Eu dei a ela essa música, esse pedaço de mim. A cada nota, eu tentava dizer
palavras que nunca haviam saído da minha boca antes.
Eu sinto muito. Eu sinto sua falta.

Eu preciso de você.

Terminei com um floreio, meus dedos varrendo o ar. Eu me atrevi a olhar para
cima. Faye permanecia no lugar, seus dedos agarrando o pescoço de seu violino como
se estivesse prestes a quebrá-lo em dois.

Eu levantei uma sobrancelha. “Você gostou?”

Ela assentiu.

Dei um tapinha no banquinho. “Sente-se aqui comigo.”

Faye hesitou, um milhão de argumentos se desenrolando em seus olhos. Seu


lado sombrio venceu, porque ela atravessou a sala como se estivesse em transe e
afundou na almofada ao meu lado.

Onde nossos joelhos se tocaram, o calor atravessou minha pele, saltando entre
nós. Eu debati minhas opções.

Ela ficaria incrível curvada sobre o piano, seu cabelo escuro espalhado pelas
teclas enquanto se contorcia em êxtase...

Não. Tentei ignorar o latejar no meu pau. Na biblioteca, quebrei suas defesas.
Eu a tinha visto despida de barreiras, praticamente vulnerável. E ela me odiava por
isso porque acreditava que tinha demonstrado fraqueza, dado um terreno para mim
que ela não podia reivindicar novamente. Eu tinha que mostrar a ela que sua chegada
a Manderley me abalou.

Eu respirei fundo. Meus dedos tocaram as teclas. Com apenas uma mão, eu
tocava uma cantiga, o tipo de coisa que costumávamos inventar juntos o tempo todo
quando éramos crianças.

“Você se lembra daquele dia em que foi à minha casa?” Ela assentiu. “Eu nunca
disse isso a você, mas aquela foi a última vez que comemorei meu aniversário. Aquele
cara que a interrogou, Padre Aaron, ele não era meu tio de verdade. Ele é um... Bom,
ele costumava ser um padre, mas ele foi expulso da igreja por suas opiniões
extremistas, então ele fundou sua própria religião. Minha mãe foi sua primeira e mais
leal convertida.”

Faye pareceu surpresa. Eu penso em todas as coisas que ela esperava que eu
dissesse, e essa com certeza não era uma delas. “Ela usava aquele manto longo…” ela
se lembrou.

“Sim. Todos os discípulos de Arão usam essas vestes, a menos que estejam em
público. Eles mesmos tecem e costuram o tecido. Aaron acredita que os humanos se
desconectaram da natureza e do batimento cardíaco da Mãe Terra, então seu culto é
sobre retornar a esse ‘estado de espírito’. No começo, ele passava muito tempo em
nossa casa, depois parecia ter uma opinião sobre tudo que meus pais faziam, e
quando voltei de uma residência em Londres, ele tinha se mudado para lá
permanentemente.”

“Aaron só tem como alvo os super ricos. Quando ele descobriu meus talentos
musicais, tornei-me parte fundamental de seu plano. Ele viu uma maneira de passar
sua mensagem para muitas pessoas ricas através da minha música. Assumiu as
decisões sobre minha carreira. E agora usa meus pais para me controlar, e a mim
para controlar eles. E é aí que você entra.”

Faye parecia chocada. “Eu?”

“No começo, meus pais ficaram felizes por sermos amigos. Eles admiravam a
carreira em ascensão de seu pai. Eles viram você como parte do plano. Na verdade,
eles foram até sua mãe e ofereceram dinheiro a ela se ela prometesse que você se
casaria comigo.”

As sobrancelhas de Faye se ergueram. “Ela nunca me disse isso.”

“Ela provavelmente esqueceu. Segundo minha mãe, Marguerite De Winter riu


na cara deles e disse onde eles poderiam enfiar o dinheiro.”

“Parece algo que ela diria.” Um sorriso puxou o canto da boca de Faye, mas foi
rapidamente arrancado por aquela melancolia. “Eu não posso acreditar que seus pais
tentaram armar um casamento arranjado para você. Isso é bárbaro.”
“Essa é a influência do padre Aaron. Foi por isso que te disse que não
poderíamos mais ser amigos. Eu tinha que fazer isso, ou...” Eu me segurei bem a
tempo.

“Ou o que?” Faye enfiou os dedos nas teclas. “Dorien, ou o quê?”

Abri a boca e a fechei novamente. Eu não podia. Todos esses anos de silêncio e
doutrinação. Eu não conseguia quebrar as amarras da minha jaula, nem mesmo por
Faye, nem mesmo quando eu queria desesperadamente.

Em vez disso, coloquei minha mão sobre a dela, meus dedos pressionando as
teclas, tocando as notas da música Mahna Mahna. Os lábios de Faye se abriram em
um silencioso O de surpresa e deleite. Ela deixou sua mão esquerda vagar pelas teclas,
tocando os acordes que devem ter vindo a ela como uma memória muscular.

“Eu não posso acreditar que você se lembra disso,” ela sussurrou.

“Eu me lembro de você,” eu murmurei de volta.

Desta vez, quando a beijei, fui devagar. Meus lábios permaneceram nos dela por
um momento, dando-lhe a chance de se afastar. Eu precisava que ela se sentisse no
controle, para ser capaz de aproveitar este momento.

Os olhos de Faye se arregalaram, mas ela não se afastou. Pude ver sua decisão
antes mesmo do momento decisivo e inevitável em que ela cederia ao seu lado sombrio
e desabaria em meus braços.

Sim. Sim…

Mas então seu bolso vibrou, quebrando o feitiço de luxúria e fúria que nos
prendia.

“É o meu telefone.”

“Ignore,” eu grunhi. Meu coração doía com a necessidade de tê-la, de provar


tudo dela.

“Eu não posso. Pode ser do hospital.”


Os olhos de Faye nunca deixaram os meus enquanto ela tirava o telefone do
bolso. A chamada parou de tocar. O nome Dra. NELSON piscou na tela. Faye apertou
o botão para ligar de volta, pressionando o telefone no ouvido com tanta força que eu
temi que ela estivesse encaixando-o em seu crânio.

“Faye? Estou tão feliz por ter conseguido falar com você.” A voz da Dr. Nelson
soava distante, algo que não pertencia ao nosso momento. “Venha rápido. Houve um
incidente.”
“Faye, você pode falar comigo.” Os dedos de Dorien tamborilaram no volante de
seu Porsche enquanto esperava que as luzes do semáforo ficassem verdes.

Eu não disse nada. Eu não podia. Se eu abrisse minha boca agora, eu gritaria.

Meus dedos agarraram a borda do assento de couro enquanto eu olhava para


frente. Quando as luzes mudaram e Dorien pisou no acelerador, meu estômago
embrulhou. Eu passei a última hora quase inteira passando mal, e a velocidade
insana com a qual ele dirigia não ajudava muito.

Mas não que eu estivesse reclamando. Por mais que eu o odiasse, Dorien era o
meu salvador hoje. Quando me lembrei em pânico que Harrison estava ausente,
Dorien se ofereceu para me levar ao hospital. E eu não estava em condições de
recusar.

Ele saiu de Manderley de carro e deslizou pelas trilhas da floresta como se


estivéssemos em uma pista de corrida. Na autoestrada, ele se abaixou e ziguezagueou
entre os carros, chegando à cidade em tempo recorde. Eu teria expressado meu apreço
se não fosse a porra de um desastre emocional agora.

Dorien nem tinha parado do lado de fora do hospital quando eu voei para fora
do carro e corri para as portas, meu coração apertado, meus olhos ardendo com
lágrimas não derramadas.

Doutora Nelson me encontrou na enfermaria. “Fizemos uma verificação


completa de todo o equipamento, ela está bem, nada foi adulterado. Eu sei que isso é
angustiante para você, mas quero garantir que levamos isso extremamente a sério.
Temos a segurança do hospital vasculhando as imagens do circuito interno de TV
agora. Vamos pegar o cretino que fez isso.”
Eu balancei minha cabeça. “Eu duvido. As únicas pessoas que fariam isso não
sujariam as próprias mãos. Elas contratariam alguém e garantiriam que ninguém
pudesse rastrear.”

A médica parecia cética. “Eu acho que isso pode ser apenas um ataque aleatório.
Eles acontecem de vez em quando. As pessoas estão chateadas com o sistema de
saúde deste país, e constantemente direcionam suas agressões pessoais para
estranhos.”

Eu balancei minha cabeça, muito enfurecida para falar qualquer coisa. A


Doutora Nelson deve ter notado a fumaça saindo dos meus ouvidos porque ela se
inclinou e apertou meu ombro, me levando pelo corredor até o quarto da minha mãe.

Assim que coloquei os olhos nela, as lágrimas se derramaram dos meus olhos.

Corri para a cama de mamãe e me inclinei sobre ela, esmagando seu corpo com
a força do meu abraço unilateral. As enfermeiras fizeram um bom trabalho esfregando
sua testa, mas a palavra rabiscada em sua pele ainda permanecia visível.

A caligrafia era terrível, mas eu entendia claramente.

SAIA

Fazer isso com uma pessoa que não podia revidar, que estava lutando por sua
vida em uma cama de hospital... Meu estômago revirou. Eu apertei minha mão sobre
minha boca, lutando para não vomitar.

Doutora Nelson empurrou uma caixa de lenços na minha direção. “Eu posso
sair se você quiser ficar sozinha...”

“Não.” Eu engoli em seco, me recuperando. Deito minha cabeça no peito de


mamãe do jeito que eu fazia quando era criança, ouvindo a batida lenta de seu
coração, sentindo o ritmo de seu peito, uma maré do oceano, varrendo-me para casa.
Atrás de mim, as máquinas apitavam em seu ritmo constante e incessante.

Ela ainda está viva. É isso que importa. Pelo menos os bastardos não mexeram
nas máquinas.
“Vocês chamaram a polícia?”

Doutora Nelson assentiu. “Eles estão com a equipe de segurança agora. Eu disse
a eles que você está aqui. Se estiver disposta, eles gostariam de falar com você
também.”

“Eu posso fazer isso.”

Doutora Nelson se mexeu em seus pés, folheando as páginas em sua prancheta.


“Faye, não sei se você quer falar sobre isso agora, mas eu preparei isso para sua
visita.” Ela soltou alguns papéis e os entregou para mim. “As análises de laboratório
da sua mãe voltaram. Eu fiz algumas cópias para você. É definitivamente um
envenenamento crônico por Aristolochia Clematitis, uma planta comumente conhecida
como Aristolochia.”

Sentei-me, pegando os papéis com as mãos trêmulas. “O quê?”

“Era comumente usada pelos antigos egípcios e no mundo clássico para aliviar
a dor durante o parto. Havia essa crença generalizada de que, se uma planta se
parecesse com uma certa parte da anatomia, ajudaria com doenças dessa área. As
flores têm a forma de um útero, por isso a relação. Na era vitoriana, era um veneno
conhecido, mas as plantas às vezes ainda eram cultivadas em jardins senhoriais por
sua beleza. Não é uma planta comum agora, e seus médicos não a identificaram em
exames toxicológicos anteriores porque ninguém nunca cogitou isso. Eu também
nunca teria pensado nisso, se você não tivesse me contado sobre os chás de ervas de
sua mãe. Isso me deu a ideia de investigar ingredientes venenosos na medicina
natural. A erva ainda é usada em alguns medicamentos fitoterápicos, apesar dos
avisos das agências de saúde.”

Eu afundei contra a cama, lutando para processar essa nova informação.


Depois de todos esses meses de visitas ao hospital e minha mãe implorando aos
médicos que levassem sua dor a sério, mesmo quando seus rins pararam, finalmente
tínhamos um nome para o que a estava matando.

Nomear o inimigo era uma coisa, mas ele poderia ser combatido?
Doutora Nelson antecipou minhas perguntas. “A boa notícia é que, agora que
entendemos o que aconteceu com sua mãe, acreditamos que podemos ajudá-la.”

Meu coração batia contra meu peito. “Vocês podem?”

Ela sorriu. “Envolveu muita pesquisa em antigos livros vitorianos de veneno e


alguns experimentos de laboratório, mas achamos que podemos deter o progresso do
veneno no corpo dela. Uma vez administrado este tratamento, desde que ela não ingira
mais a toxina e que monitoremos seus rins quanto a complicações, ela poderá viver
uma vida normal. Gostaríamos de sua permissão para prosseguir com o tratamento.”

“O que isso significa, exatamente?”

“Primeiro, vamos administrar uma pequena quantidade de antídoto e monitorar


as mudanças. Se tudo correr bem, e esperamos que sim, já que o corpo dela a essa
altura já processou grande parte do veneno em seu sistema, podemos tentar acordar
sua mãe do coma.”

Aquelas palavras... Aquelas palavras mágicas que eu estava querendo ouvir há


semanas correram por mim. Minha cabeça girava e eu ofegava. Isso era demais. Era
fantástico. Era a esperança que eu não ousava sentir há muito tempo.

“E se ela...” Engoli o nó subindo pela minha garganta. “Na melhor das hipóteses,
o que acontecerá quando ela acordar?”

“Ela ainda terá danos nos órgãos e provavelmente precisará de diálise pelo resto
da vida. Mas muitas pessoas vivem vidas plenas e felizes com danos maiores do que
os que ela sofreu. O coringa é o cérebro dela. Simplesmente não há como saber que
dano foi causado pelo coma prolongado.”

Eu balancei a cabeça, não confiando em mim para falar alguma coisa.

“Se você concordar com isso, iniciaremos os testes iniciais imediatamente. Se


tudo correr bem, podemos discutir os próximos passos. Não quero deixá-la mais
tempo do que o necessário nesse estado agora que sei que podemos ajudá-la. Tudo
bem por você?”

Eu balancei a cabeça novamente. “Obrigada.”


A polícia veio logo depois, e eu respondi suas perguntas e saí do hospital em
transe. Dorien estava caído no capô de seu carro, bebendo de um copo de café de
papelão.

“A comida da lanchonete do hospital era uma merda, então eu saí para comprar
algo melhor.” Ele empurrou uma xícara de café e um saco de papel cheio de
rosquinhas em minhas mãos. “Lembrei que você gostava disso.”

Olhei para dentro da sacola, hesitando antes de espiar dentro, meio que
esperando que uma aranha enorme rastejasse para fora e pulasse em meu rosto. Em
vez disso, um cheiro celestial me cumprimentou. Quatro donuts empilhados com
migalhas de biscoito Oreo. Eles pareciam e cheiravam como…

Uma memória me assaltou. Eu tinha oito anos de idade. Naquele dia, na escola,
Rebecca Marshell e seu grupo de garotas malvadas roubaram minhas roupas dos
vestiários da academia e as prenderam no quadro de avisos sob uma placa que dizia
REDES DE BALEIA. Fui direto da escola para o treino de música, debulhada em
lágrimas. Dorien foi embora assim que me viu, e pensei que minha vida não poderia
ficar pior. Mas ele voltou dez minutos depois com um saco cheio de rosquinhas Oreo
de manteiga de amendoim de uma lojinha na esquina chamada Nothing But the
Dough. Nós nos escondemos em um depósito e comemos todas elas, e em apenas
minutos ele me fez rir. Esqueci daquelas garotas estúpidas. Desde então, sempre que
algo ruim acontecia, sempre que precisávamos nos animar, os donuts Oreo com
manteiga de amendoim cumpriam com esse papel. Até que Dorien se tornou uma
decepção em minha vida, e eu não toquei neles desde então.

A loja Nothing But the Dough ficava no East Village, se é que ainda existia.
Dorien não poderia ter...

“Vá em frente. Tente um.”

Tirei um donut da sacola, espalhando migalhas de Oreo pela lateral do carro.


Eu o mordi. Massa de chocolate e cobertura de manteiga de amendoim explodiram na
minha boca. Uma onda de emoção me atingiu, todo o horror de ver minha mãe com
aquela palavra rabiscada na testa colidiu com a memória dos donuts e o que eles
significavam. Pelo que parecia ser a primeira vez desde que o pesadelo com a minha
mãe começou, eu não estava totalmente sozinha. Dorien estava aqui comigo.

Meu peito apertou. Porra, eu não queria mais ter que passar por tudo isso
sozinha.

Olhei para ele com os olhos arregalados. “Como você...”

Dorien me deu seu sorriso de assinatura, aquele que prometia travessuras. “Eu
sou rico pra caralho, lembra? Custou uma fortuna conseguir que um entregador os
trouxesse até aqui em uma motocicleta, e eu nem tinha certeza de que chegaria a
tempo. Mas valeu a pena só para ver o seu rosto.”

Limpei o glacê do meu queixo. “Coberto de manteiga de amendoim?”

Dorien se aproximou. O saco de donuts era a única coisa que estava entre nós,
e de repente eu achei muito difícil respirar. “Valeu a pena ver você sorrir, Duende.
Você não sabe o quanto eu senti falta do seu sorriso.”

As lágrimas que eu estava segurando transbordaram, rolando pelo meu rosto e


caindo no saco. Eu queria tanto cair nos braços de Dorien, deixá-lo me abraçar, me
entregar à ideia de que alguém se importava comigo.

Mas a dúvida arranhava minha nuca. É exatamente isso que ele quer que você
faça.

Fazer com que eu confiasse nele novamente era parte de seu plano. Foi por isso
que ele foi atrás desses donuts e me contou aquela história sobre seus pais estarem
em um culto. Dorien sabia como articular uma situação em seu próprio benefício, e
ele estava me tocando como uma sonata agora. Era manipulação envolta em glacê.

Ele adivinhou na biblioteca que eu não acreditava que ele tivesse matado Clare.
Agora ele também sabia sobre minha mãe, então também podia adivinhar o quanto
eu precisava do Prêmio Manderley. Ele sabia que eu não desistiria sem lutar. Agora
ele estava tentando me convencer de que Madame Usher estava por trás de tudo isso,
que ele não tinha escolha, que o bullying acabou porque ele me beijou e me trouxe
rosquinhas.
Mas eu não conseguia acreditar. Eu não poderia ser tão crédula. Até onde ele
iria para conseguir o que quer?

A mensagem ‘DEIXE A MANDERLEY’ foi escrita no meu espelho com batom, e


então alguém escreve ‘SAIA’ na testa da mamãe? Obviamente tudo estava ligado. Não
tinha nada a ver com ela, era uma mensagem para mim.

Os fantasmas, as mensagens estúpidas, os sons que me mantinham acordada


à noite, eram todas coisas juvenis. Tentar me convencer de que não foi ele... Isso era
mais difícil. Mas quebrar meu violino? Machucar minha mãe só para afetar meu
desempenho?

Que coisa doentia e horrível de se fazer.

Esse era o seu jogo, então?

Meus dedos se apertaram ao redor do saco de donuts. Eu puxei um e bati no


rosto de Dorien.

“Ai, que porra é essa?” Dorien cambaleou para trás, glacê de amendoim
escorrendo por sua bochecha. Flocos de Oreo salpicavam a frente de sua camisa. Eu
queria cair na gargalhada, mas a raiva queimava muito forte dentro de mim.

Sem outra palavra, eu me virei e saí do estacionamento, arrastando meu


telefone do bolso de trás. De jeito nenhum eu voltaria no mesmo carro que ele, mesmo
que isso significasse que eu teria que caminhar até a Manderley.

“Duende, espere!”

“Vá embora!” Eu gritei.

“Duende... Por favor.” A voz de Dorien falhou, e precisei de todo o meu


autocontrole para não me virar para ele. “Vou ligar para o Harrison. Ele virá buscar
você. Não ande por aí sozinha. Eu vou embora, eu prometo. Duende, eu sinto muito.”

Eu sinto muito. Nunca imaginei que ouviria essas palavras saindo dos lábios de
Dorien Valencourt. Pena que elas eram a porra de uma piada. Limpei com raiva as
lágrimas que escorriam pelo meu rosto, recusando-me a me virar até que ouvi as rodas
do Porsche girarem enquanto Dorien se afastava.

Minha boca ainda tinha gosto de glacê de manteiga de amendoim, uma das
muitas lembranças felizes que eu tinha com ele que ele mesmo destruiu. Minha
mandíbula se apertou em uma linha dura.

Está na hora.

Eu estava segurando a minha retaliação, sem saber se estava pronta para o que
planejava fazer. Eu não deixaria Dorien cavar sua própria cova, esse plano significava
quebrar algumas regras. Significava fazer algo que eu nunca poderia voltar atrás. Mas
era o único jeito.

Dorien tinha apontado direto para o meu coração, para a música da minha
alma, e ele sufocou as notas com sua crueldade. Se eu quisesse que Dorien Valencourt
pagasse, teria que bater nele onde mais doía.

Sua carteira.
“Obrigada, Harrison.” Minhas pernas vacilaram quando subi na parte de trás
da limusine. “Sinto muito que você teve que vir até aqui...”

“A qualquer momento, minha querida. Só lamento não ter trazido você aqui em
primeiro lugar.” Seu rosto mudou desconfortavelmente. “Ela fica com essas ideias na
cabeça, a Madame...”

“Eu sei. Não se preocupe com isso.” Eu sabia agora quanto poder Dorien
realmente tinha naquela casa, Madame Usher tinha dado a Harrison uma ordem para
me ignorar, mas uma ligação de Dorien e aqui estava minha limusine. Tudo o que ele
me disse na biblioteca era mentira. Seus lábios devorando os meus, seus dedos na
minha nuca, aquele rosnado que ele fez enquanto chupava meu lábio...

Tudo mentira.

“Espero que sua mãe esteja bem. E espero que peguem o bastardo que fez isso.
Dorien disse que algo aconteceu.”

“Dorien aconteceu,” eu murmurei, minhas mãos se fechando em punhos.

“Você acha que Dorien...”

Eu não disse nada. Eu não podia. Se eu abrisse minha boca, explodiria


completamente.

Harrison amaldiçoou, algo que eu nunca tinha ouvido ele fazer. “Ele não vai se
safar dessa, querida.” Ele empurrou o carro para fora do estacionamento do hospital.
“Você o fará pagar.”

Sim, eu planejava fazer isso. Que as trombetas soem, Dorien Valencourt cairia.
“Ei, Cory,” eu sussurrei, colocando minha mão ao redor do telefone.

“Faye?” Creepy Cory, o idiota que trabalhava do outro lado do bar em que eu
costumava fazer turnos, parecia surpreso e fodidamente encantado ao ouvir minha
voz. Imbecil. “Eles me disseram que você não iria mais trabalhar aqui. Eu estava tão
preocupado. Fui até sua casa para ver você, mas o lugar está vazio.”

Obviamente, seu perseguidor assustador. Cory era metade da razão pela qual eu
estava tão feliz em deixar aquele lugar. Ele estava sempre tentando se aproximar
demais, sempre me convidando para sair e tentando me levar para casa, sempre me
encarando como se estivesse se perguntando como seriam meus órgãos espalhados
em sua cama. “Sim. Eu me matriculei em uma escola de música chique. Ganhei uma
bolsa de estudos,”

“Isso é incrível. Posso ir ver você se apresentar?”

“Não é realmente esse tipo de escola. O problema é que tem um cara que está
sendo horrível comigo.” Eu deixei minha voz macia, dando a Cory algo para se agarrar,
a chance de ser meu herói. “Eu estou assustada. Ele é um valentão e colocou todos
os outros alunos contra mim. Normalmente seria o tipo de coisa que um soco rápido
na garganta resolveria, mas…”

“Mas?” A voz de Cory soou meio embargada. Aposto que ele estava se lembrando
daquela vez comigo depois de fechar o bar, quando eu dei a ele um soco na garganta.
Ele não conseguiu falar por uma semana.

“Mas... esse cara tem recursos. Ele é um idiota rico, e eu preciso que ele não
seja capaz de me destruir. Eu esperava que você pudesse me ajudar.”

“Você quer que eu ensine uma lição a esse cara?”

“Algo parecido. Eu quero que ele saiba que a gatinha aqui tem garras.”
“Eu posso ajudar. Me dê dez minutos. Você terá que me colocar como amigo no
Facebook novamente se quiser ver acontecer. Qual é o nome dele?”

“Dorien Valencourt.” Desliguei o telefone, abri meu laptop e entrei no Facebook.


Eu bloqueei Cory meses atrás porque eca, então entrei nas minhas configurações para
desbloqueá-lo. Ele apareceu instantaneamente com um link. ‘Clique aqui’.

Eu cliquei. Uma janela apareceu, mostrando um login para uma conta de fundo
gerenciada. Um cursor se moveu pela tela por conta própria e uma linha de asteriscos
apareceu enquanto Cory digitava uma senha.

“Seu idiota não é muito inteligente. Eu quebrei a senha dele em segundos,” Cory
mandou uma mensagem. Um momento depois, uma lista de contas e transações
apareceu na tela. A faixa na parte superior da tela dizia: “Bem-vindo, Dorien.”

Não acredito que estou fazendo isso.

Cory passou o controle para mim, e eu cliquei na primeira conta. Dorien usava
seu dinheiro para exercer controle não apenas sobre mim, mas sobre todos em
Manderley. A única maneira de mostrar que ele não podia me controlar era tirar todo
esse dinheiro dele.

Meu dedo pairou sobre o mouse. O que eu estava prestes a fazer era muito
ilegal. Eu estava roubando dinheiro. Muito dinheiro. Não para mim, é claro, eu escolhi
a instituição de caridade perfeita para receber a generosa doação de Dorien. Eles
ofereciam aulas de música para crianças carentes do centro da cidade, enviando os
melhores e mais brilhantes alunos para conservatórios de todo o mundo com bolsas
de estudo. Exatamente o tipo de coisa que Dorien estaria por trás.

Então... Sim. Eu vou fazer isso.

Exalei bruscamente enquanto clicava na conta principal de Dorien, trazendo


uma lista de transações. Meu dedo pairou sobre o botão Fazer uma Transação quando
notei algo estranho.

Huh?

Sua conta continha apenas $ 224,67.


Isso não pode estar certo. Essa é provavelmente sua última retirada ou algo
assim. Um cara como Dorien gasta esse valor em boxers de seda de luxo.

Eu cliquei em suas declarações, procurando pelo pote de ouro. Mas não


encontrei. O que encontrei foi um montante cada vez menor. Três anos atrás, Dorien
tinha mais de meio milhão de dólares no fundo. Mês a mês, esse dinheiro foi sacado
e nunca reposto.

Onde está todo o dinheiro dele?

Liguei para Cory novamente. “Dorien tem outros fundos? Devemos ter cometido
um erro. Não há dinheiro nesta conta.”

“Não que eu possa ver. Ele tem uma conta corrente no banco dele, mas eu já
hackeei e contém apenas $23. Mais três cartões de crédito, todos praticamente
estourados. A última transação foi ontem, por pouco mais de US$ 400 para Nothing
But the Dough no East Village. $ 400 em donuts, consegue acreditar? Ele deve
acumular dezenas de milhares de dólares por mês e depois fazer com que mamãe e
papai paguem a conta. Bastardos ricos, certo?”

“Certo.” Curioso. “Obrigada de qualquer maneira, Cory. Ouça, você poderia


continuar procurando? Eu adoraria saber para onde está indo todo esse dinheiro.”

“Claro. Mas você vai ter que continuar minha amiga no Facebook.” Cory parecia
um cachorrinho esperançoso. Eu sentiria pena dele se não fosse pelo fato de eu me
lembrar da sensação de sua mão indesejada segurando meus seios.

Suspirei. “Eu suponho que sim, então. Tchau, Cory.”

“Não, espere. Não deveríamos nos encontrar e traçar estratégias? Talvez eu


possa te levar para um encontro na sexta à noite...”

Eu apunhalei meu dedo no botão ENCERRAR CHAMADA e joguei o telefone na


cama. Minha pele arrepiou. Não posso acreditar que acabei de fazer isso. Tentei roubar
o dinheiro de Dorien.

Não posso nem acreditar que Dorien não tem dinheiro.


Voltei para o computador. Minha mão pairou sobre o mouse. Eu me preparei
para esse plano de vingança. Arranjei justificativas com o fato de que Dorien era um
bastardo rico escondido atrás de pilhas de dinheiro. Afinal, seus pais eram donos
daquela enorme propriedade. Eles vinham do dinheiro velho. Eles nunca decairiam.

Mas 225 dólares? Cartões de crédito estourados? O que estava acontecendo com
Dorien? Eu poderia realmente pegar até ó seu último centavo?

Sorrindo, deslizei meu dedo sobre o cursor, digitando as informações para


enviar cada centavo do dinheiro de Dorien para a caridade.

Dorien fez questão de aprender meus segredos e usá-los para me machucar.


Mas acabou que o maior dos Bad Boys do Barroco escondia um segredo próprio.

Dorien Valencourt estava falido.


Eu revirei esse novo conhecimento na minha cabeça pelos próximos dias, sem
saber o que fazer com ele. A polícia me ligou para me dizer que havia identificado um
homem nas imagens de segurança e estava perseguindo várias pistas para identificá-
lo. O detetive responsável estava interessado em ouvir sobre a descoberta do veneno
pela Dra. Nelson e os chás de ervas de minha mãe. Dei-lhe o nome da antiga assistente
da mamãe. Se alguém pudesse se lembrar do nome daquela empresa de chá, seria
Natalie.

Dorien não tinha falado comigo desde que voltei do hospital, porém seus olhos
tempestuosos seguiam cada movimento meu. Ao contrário de Cory, no entanto, ele
não fazia minha pele arrepiar, mas enviava faíscas de eletricidade pelas minhas veias.
Eu me odiava toda vez que sentia seu olhar varrendo meu corpo, caindo na memória
de seus lábios nos meus.

Eu deveria odiá-lo, não o querer.

E ele nem é o único que eu quero. Pois lá está Titus com olhos de fogo e mãos
enormes. Aposto que ele saberia exatamente como usá-las. E Ivan, que nem se abalou
quando foi pego com aquelas drogas. Como seria vê-lo perder o controle...?

Eu estou doente. Eu deveria estar naquela cama de hospital ao lado da mamãe.

Mãe. Porra, eu gostaria de poder falar com ela. Ela saberia exatamente o que
fazer. Com seu negócio de sucesso e personalidade selvagem, mamãe tinha uma série
constante de homens poderosos competindo por suas afeições. Uma vez, ela até
namorou um rapper semi famoso por alguns meses, e os paparazzi nos seguiam até
na lavanderia. Ela saberia exatamente como lidar com Dorien, Titus e Ivan.

Mas ela não estava aqui. Eu tinha que lidar com tudo isso sozinha.
E apesar do olhar constante de Dorien, e até de Titus e Ivan, ninguém mais
falou comigo. Heather me olhava como se tivesse crescido uma terceira cabeça em
mim. A tensão estalava sempre que eu entrava em uma sala, e eu tinha essa sensação
assustadora de mau presságio de que em breve tudo se transformaria em uma grande
bagunça.

Quando Dorien descobrir o que eu fiz...

Optei por não enfrentar a aula de redação junto com os outros, e fui para a
biblioteca, para trabalhar na minha redação final. Eu tinha escolhido escrever sobre
Paganini, esse incrível virtuoso do violino do século XIX. Paganini tinha todos esses
truques de palco que gostava de fazer, ele mexia nas cordas do violino antes de uma
apresentação para que elas quebrassem durante a música. Ao final de sua
performance, ele estaria tocando uma peça inteira em uma única corda. Algumas de
suas composições perdidas eram tão impossíveis de tocar que corria a lenda de que
Paganini fez um pacto com o diabo em troca de seu talento. Ele é o bad boy original
da música clássica, então obviamente eu o adorava.

Eu disse que tinha uma queda pelos garotos maus.

Enfiei meus fones de ouvido e coloquei minha playlist de indie rock, afinal uma
garota não pode viver só de Paganini. Meu telefone apitou com uma mensagem da
Dra. Nelson. Ela tinha sido incrível, me atualizando todos os dias sobre o progresso
da doença da mamãe, oferecendo-se para me enviar mensagens em vez de ligar caso
eu não conseguisse lidar com uma conversa telefônica.

“Oi, Faye. Suspeito que em breve você receberá uma ligação da polícia, pois
acabei de falar com eles. Eles têm boas e más notícias, receio. A boa notícia é que
pegaram o cara que agrediu sua mãe. A má notícia é que ele é um sem-teto que fez
isso por dinheiro. Ele não tem um nome ou descrição da pessoa que o contratou.”

Eu suspeitava disso, mas ver a confirmação escrita em preto e branco fez meu
sangue ferver. No começo, eu assumi que alguém do mundo das relações públicas
tinha feito isso, afinal mamãe fez um monte de inimigos quando ela conseguiu chegar
ao topo, e eu já tinha dado uma longa lista à polícia. Mas quando eu fiz a conexão
entre a palavra SAIA e a mensagem no meu espelho, percebi quem realmente fez
aquilo. Eu também disse isso à polícia, mas eles disseram que seria difícil provar. Eles
não queriam ir atrás de uma família poderosa como os Valencourt. Covardes.

Tamborilei minhas unhas contra a mesa.

Quando andei pelo mezanino para pegar um volume sobre a vida de Paganini,
notei Dorien curvado sobre um cubículo no canto, franzindo a testa para seu laptop.
Ele o fechou quando eu passei, e ele olhou para mim, mas o corte de seu sorriso não
tinha o veneno usual.

“O que há de errado, Dorien?” Eu murmurei. “O pobre bebê está em apuros?”

Dorien fez um ruído baixo em sua garganta, como um leão encurralado se


preparando para atacar. Aquele rosnado afundou pelo meu corpo, se acumulando
entre minhas pernas, espalhando calor para lugares escuros e escondidos dentro de
mim.

“Porque você está sorrindo?” Ele grunhiu.

Eu levantei a mão para tocar meu rosto. Ele estava certo, eu estava sorrindo.
Fazia tanto tempo desde que eu tinha uma razão para sorrir que eu esqueci como era
a sensação.

“Por nada,” eu disse docemente. “Estava apenas lendo um livro muito


engraçado.”

“'Traduções e Anotações de Repertório Coral' é um livro engraçado?” Dorien


estreitou os olhos para o título na minha mão.

“Ah, sim.” O calor em meu corpo borbulhava em minhas veias, transformando-


se em uma alegria vertiginosa que aquecia minha pele. “É hilário pra caralho.”
Bati a porta do meu quarto com tanta força que a parede estremeceu. O rosto
alegre de Faye enquanto ela me olhava por cima do meu computador passou pela
minha mente, sobrepondo sua carranca viciosa de quando ela esmagou o donut no
meu rosto.

Ela fez aquilo.

Como ela fez não era tão importante, e o porquê era óbvio. Vingança pela merda
que eu a fiz passar desde que ela chegou em Manderley. Ela nos pegou um por um,
primeiro Ivan, depois Titus, e agora eu. Ela pensava que eu tinha algo a ver com a
agressão de sua mãe.

O que sacudiu meus ossos mais do que qualquer coisa foi o que isso significava.

Ela sabe o meu segredo.

Peguei meu telefone da cama, meus dedos voando sobre as teclas para enviar
uma mensagem para ele, mas apaguei todas as palavras antes de clicar em enviar. O
que eu poderia dizer que faria diferença?

Acalme-se. Não perca o controle. Ela não sabe de tudo. Ela sabe sobre o dinheiro...
ou a falta dele. Mas ela não tem como saber para onde foi, ou por quê.

Mas ela vai descobrir. E você só tem a si mesmo para culpar. Você mencionou seu
irmão. Você cutucou o urso, e agora o urso não vai descansar enquanto não arrancar
suas entranhas.

E esse segredo... Poderia custar a vida da única pessoa no mundo com quem
eu me importava mais do que Faye.
“Porra. Porra. Porra.” Peguei um travesseiro da minha cama. Essa era a coisa
chata de ficar preso nessa escola no meio do nada. Não havia ninguém para socar. Eu
poderia bater em Titus, eu suponho, mas como ele estava me emprestando dinheiro e
ele era do tamanho de um trem de carga, tudo o que eu conseguiria seriam dedos
quebrados.

Ivan? Eu poderia socá-lo. Isso seria meio satisfatório, porque eu conseguiria


uma reação dele pelo menos. Mas ele me daria um soco de volta, e Ivan poderia ser
pequeno, mas por trás daquela fachada gelada espreitavam décadas de fúria romena
reprimida. Eu gostava bastante do formato do meu nariz para me atrever a provocá-
lo.

Eu ficaria feliz em socar Mestre Radcliffe até que seu rosto fosse uma polpa
sangrenta, mas isso tornaria as coisas piores para Ivan e Elena, e eu não poderia fazer
isso.

Sem ter para onde dirigir minha raiva, bati meu punho no travesseiro. Penas
voaram por toda parte, cobrindo meu quarto em uma tempestade de neve suave e
amarela.

Joguei o travesseiro longe com nojo. Ele atingiu o porta-retratos na minha mesa
de cabeceira, fazendo-o voar. Vidro se estilhaçou no chão.

Faye. Aposto que ela estava adorando isso. Aqueles lábios vermelhos dela
tinham formado um sorriso genuíno porque ela conseguiu me superar. Imaginei
aqueles lábios deslizando ao redor do meu pau, sua língua passando rapidamente
sobre a ponta enquanto ela me levava profundamente. Eu gemi com o pensamento de
me render a ela.

Com dedos trêmulos, digitei uma mensagem no meu telefone no bate-papo


privado do Broken Muse. Precisávamos resolver essa merda, de uma vez por todas.
Estávamos dançando muito perto das chamas, e um de nós, ou todos nós, iriam se
queimar.
Eu estava relaxando na Sala Azul, bebendo vinho e assistindo reality shows no
laptop de Aroha, quando meu telefone tocou.

“Ooooh, alguém está te mandando uma mensagem.” Aroha mexeu a bunda na


cadeira, me lançando seu sorriso perverso. Suas pupilas estavam largas, dilatadas.
Ela está sob o efeito de alguma coisa. Merda.

Todos nós sabíamos que Aroha tinha um medo paralisante de se apresentar, e


sabíamos que ela escondia isso com cocaína, cigarros e uma atitude forte. Mas
estávamos apenas confraternizando, sem fingimento aqui, sem performance, então
por que ela estava drogada agora?

Como se não tivéssemos o suficiente para nos preocupar. Eu abri minha boca
para perguntar a ela sobre isso, mas então meu telefone tocou novamente.

Do outro lado da sala, no sofá que dividia com a irmã, Ivan franzia a testa para
a tela do próprio celular. Isso só podia significar uma coisa.

Dorien.

“Eu tenho que ir.” Eu me levantei, desembaraçando o braço de Aroha dos meus
ombros e entregando seu computador de volta. Ela me deu um sorriso artificialmente
brilhante.

“Quando o Príncipe das Trevas chama, seus pequenos lacaios saem correndo.”
Ela revirou os olhos.

“Eu vou assistir com você, Aroha.” Elena deslizou ao lado dela, colocando a
garrafa de vinho em seu colo. Aroha pegou o laptop e começou a percorrer a seleção
de programas. Encontrei os olhos de Elena e ela assentiu. Ela tinha visto a névoa nos
olhos de Aroha também. Ela não deixaria Aroha sozinha.

No corredor, Ivan e eu trocamos um olhar. “Faye?” Ele sussurrou. Eu acenei


com a cabeça. Tinha que ser. Ela era a única coisa que poderia deixar Dorien tão
agitado assim.

Faye De Winter.

O cheiro dela me seguia por toda parte, vazando do papel de parede, se


espalhando pelos móveis abafados e tapetes puídos, enchendo minhas narinas com a
promessa de mais.

Mas nunca poderia haver mais, porque Dorien já havia carimbado sua
reivindicação. E o que Dorien queria, ele conseguia.

Faye estava provando ser uma oponente formidável. Ela foi atrás de Ivan e quase
o expulsou de Manderley. Se mais alguém tivesse feito isso, Dorien o teria feito em
pedaços, mas ele nunca considerou fazer isso. Ao contrário, ele foi até Madame Usher
e alisou as coisas. Ivan permaneceu na escola e nunca mais falamos sobre o incidente.
Não tive coragem de perguntar o que Dorien negociou para conseguir isso, mas sei
que deve tê-lo machucado. Muito.

E embora ainda estivéssemos ignorando Faye, ele parecia ter desistido da trama
para destruí-la. Ele a levou para o hospital outro dia, e então ligou para Harrison ir
buscá-la. Ele se exaltou comigo quando perguntei o que aconteceu, e Faye estava
evitando-o e observando-o com cautela sempre do outro lado da sala desde então. Eu
nunca tinha visto ele se entregar a uma garota antes, e era estranho. Um pouco
assustador.

E era uma merda, porque eu a queria também. Mas Dorien tinha a prioridade,
como sempre teve. O Broken Muse deveria ser uma democracia, mas todos nós
sabíamos que isso era besteira. Dorien dava as ordens, e Faye era dele desde o
momento em que ela entrou pelas portas de Manderley.
Ele vai despedaçá-la como faz com tudo em sua vida, assim como fez com a nossa
banda. Se Faye acha que ser odiada por Dorien era o inferno na terra, então ela deveria
tentar ter o amor dele.

Enquanto subíamos as escadas, Ivan pigarreou. Eu me virei para ele, mas ele
se encolheu sob meu olhar, engolindo o que quer que estivesse prestes a dizer.
Chegamos ao quarto de Dorien em silêncio. Eu empurrei a porta.

“O que aconteceu aqui? Faye finalmente lhe deu as travesseiradas que você
merece?”

Penas voavam em todas as direções, girando em círculos preguiçosos pelo ar e


pousando nas coisas de Dorien. Ele estava deitado na cama com os joelhos para cima,
mexendo na penugem em suas calças. Uma camada de penas de pato estava grudada
em seu cabelo, sua camisa, e até mesmo em suas bochechas. Ao meu lado, Ivan cobriu
a boca com a mão, sufocando uma risada.

“Você é fodidamente hilário.” Dorien olhou para mim. Uma pena amarela
grudada em sua sobrancelha. “Faye sabe sobre o meu dinheiro.”

Isso me centrou. Fechei a porta e cruzei os braços. “Como?”

“Ela invadiu minha conta e limpou tudo o que restava, mas não que houvesse
muito. Ela doou tudo para uma instituição de caridade para músicos carentes.”

Eu não pude evitar. O riso explodiu de mim como fogos de artifício no 4 de julho.

Dorien olhou para mim. “Pare com isso. Ela virá atrás de você em seguida,
guitarrista.”

Dei de ombros. “Deixe-a. Talvez eu queira que ela venha atrás de mim.”

“O que isso significa?”

“Quero convidá-la para sair.”

Eu não pretendia dizer essas palavras. Elas simplesmente explodiram de mim


junto com as risadas, e eu não poderia pegá-las de volta. Ivan olhou entre nós,
pressionando as costas contra a parede e movendo os pés em posição de correr caso
as coisas ficassem violentas.

Dorien jogou a cabeça para trás. A risada começou no fundo de seu estômago e
borbulhou como um vulcão começando a entrar em erupção. Ele chutou as pernas no
ar e pegou uma pena flutuante em sua mão, esmagando-a entre os dedos.

“Eu não posso acreditar nessa merda. Boa sorte então, cara. Passamos o
semestre inteiro intimidando-a. Ela acha que você entrou no quarto dela enquanto ela
dormia. Se você acha que pode convencê-la a ignorar isso e lhe dar uma chance, fique
à vontade para tentar. Você não precisa da minha permissão; mas eu recomendo usar
alguma proteção na virilha enquanto isso.”

“Então você não se importa se eu perguntar a ela?”

Dorien deu de ombros. “Eu não disse isso. Eu apenas disse que é inútil.”

Meus dedos se fecharam em punhos. “Você não pode reivindicá-la só porque


vocês se conhecem desde que são crianças. Você estragou tudo, e ela deixou bem claro
que não te suporta. Deixe outra pessoa tentar.”

Dorien sentou-se, seus pés batendo no chão. Quando seus olhos encontraram
os meus, as tempestades ameaçaram me derrubar. “Ela me beijou na biblioteca, você
sabe. E porra, ela fez um gemido delicioso... Você deveria ter ouvido, teria deixado seu
pau duro como pedra.”

“Não provoque, Dorien,” Ivan advertiu.

Meus dedos se apertaram, unhas cravadas na minha pele.

Dorien abriu os braços. “Vá em frente, Titus. Faça. Você sabe que quer.”

“Foda-se.” Virei-me para sua cômoda e joguei uma pilha de livros de música no
chão. Tum, tum, tum. Eles quicaram no tapete. Isso não me fez sentir melhor, mas
quebrou o domínio hipnótico que ele tinha sobre mim.

Dorien riu novamente, e o som era histérico e um pouco aterrorizante. “Você


está certo, mano. Faye não me suporta. Ela acha que eu contratei um vagabundo para
invadir o quarto de hospital da mãe dela e escrever em seu rosto. Mas isso não
significa que ela não sente nada. Confie em mim, uma coisa que eu sei de fato é que
Faye De Winter não é minha. Mas você sabe que eu vou domá-la. Então, por que
estamos brigando por isso? Não é como se nós dois não tivéssemos gostado da mesma
garota antes. Lembra de Cherie, em Paris? Encontramos uma maneira de...”

“Três,” Ivan disse da porta.

Eu me virei. “Me desculpe?”

Ivan engoliu. “Eu disse que nós três gostamos da mesma garota antes. E
queremos a mesma garota agora também.”

Eu levantei uma sobrancelha. “Você também?”

Interessante. Eu não tinha certeza se Ivan já havia gostado de uma garota. Eu


era o único que se apaixonava por cada garota que piscava os olhos para mim ou
elogiava meu jeito de tocar. Dorien era uma força da natureza, e sugava tudo e todos
ao seu redor. Mas Ivan... Ele tinha apenas um amor, um único interesse, e era Elena.

Até agora, aparentemente.

Ivan assentiu enquanto dava um passo à frente. “Não quero que briguemos por
ela.”

Dorien caiu para trás na cama, enviando uma rajada de penas pelo quarto.
“Quem está brigando? Aqui está a questão; no que diz respeito a nós três e nossos
paus, a escolha é única e exclusivamente de Faye. Um de nós, dois de nós, todos os
três, podemos dar essas opções a ela, mas a decisão é dela, certo?”

“Certo...” eu disse lentamente, sem saber onde ele queria chegar com isso.

“Então não há nada para discutir. Simplesmente apresentamos a Faye um bufê


de opções, o melhor que o Broken Muse tem a oferecer. Sem sabotagem, sem jogar
uns contra os outros para ganhar, sem ciúmes. Faye escolhe, e nós aceitamos sua
escolha. Temos um acordo?”
Ivan e eu nos entreolhamos. Na superfície, tudo o que Dorien disse era
perfeitamente razoável. E não era incomum para nós. Nós já tínhamos compartilhado
garotas antes. As coisas ficavam bem loucas em turnê, especialmente quando íamos
a Amsterdã. Ou Berlim. Ah, Berlim… Como poderia esquecer a geleia, e as coisas que
a jovem Fraulein Ana fazia com picles gigantes…

Mas não estávamos lidando com uma groupie do Broken Muse. Esta era Faye.
A Faye de Dorien. E só porque ele concordou com isso não significava que ele pretendia
lutar de forma justa.

Mas sendo justo ou não, eu não ia perder minha chance.

“Sim.” Dei um passo à frente, oferecendo meu punho.

“Eu também concordo.” Ivan colocou seu punho no meu.

Dorien empurrou seu punho em cima dos nossos, as tatuagens de clave de sol
dançando sobre seus dedos. “Bom. Porque temos algo maior para lidar do que seus
paus ansiosos. Alguém que não é a gente está atrás de Faye. Alguém está tentando
chegar até ela através de sua mãe. E precisamos concentrar todos os nossos recursos
na derrocada dessa pessoa, mesmo que isso signifique a queda de Manderley
também.”
Os três meninos saíram da academia e foram para a cidade para um recital, e
Madame Usher me ordenou que limpasse seus quartos enquanto eles estivessem fora.
Assim que abri a porta de Dorien, fui recebida com uma bagunça fofa e felpuda.

Penas. Quê?

Eu assumi que esta era uma nova maneira de me torturar até encontrar a fonte
da penugem, um travesseiro rasgado ao meio. Meu sapato amassou alguma coisa, um
porta-retratos quebrado entre livros espalhados e outras coisas. A sala parecia uma
zona de guerra, com patos sendo as vítimas e o cheiro inebriante de Dorien disposto
como arame farpado pronto para me fazer tropeçar.

Enquanto eu cuidadosamente embalava o vidro em um saco de lixo, eu peguei


a fotografia para colocá-la na escrivaninha de Dorien. Era uma foto dele, seus olhos
cinza ardósia olhando desafiadoramente para a câmera, acentuados com delineador
escuro e borrado, hipnotizando qualquer espectador que ousasse olhar para ele. Ele
usava uma camisa preta com gola de babados e maquiagem de palco que lhe dava a
aparência de um vampiro hipnotizante, atemporal e de tirar o fôlego. Ele tinha o braço
em volta de uma garota sorridente, puxando-a contra seu peito, sua linguagem
corporal possessiva.

Ao lado da fotografia, alguém havia usado renda e diamantes para criar uma
colagem, com uma nota manuscrita no centro. “Dorien. Obrigada pela melhor noite
da minha vida. Com Amor, Clare.”

Clare.

Meu dedo traçou as linhas de seu rosto. Esta era a empregada morta. Ver seu
rosto jovem, agradável e feliz, com um nariz levemente arrebitado e olhos verdes
amigáveis e cabelos castanhos presos em um coque alto, fez ela ser real para mim
pela primeira vez. Ela morou nesta casa, dormiu no meu quarto, morreu no tapete do
corredor. A caligrafia torta no bilhete combinava com a que eu tinha apagado do velho
quadro branco na despensa. E ela estivera com Dorien. Ele a levou para um encontro.
A melhor noite da minha vida. Analisei melhor as luzes no fundo da foto. Eles estavam
na cidade de Nova York...

Creeeak. Rangidos.

Eu me virei, meu coração na garganta. “Quem está aí?”

Ninguém respondeu. Obviamente que não o fariam. Porque era só a casa se


acomodando em suas dobradiças. Mas meus nervos já estavam abalados. Larguei a
fotografia na cômoda e limpei o quarto o mais rápido que pude, o tempo todo sentindo
o arranhão de olhos invisíveis na minha nuca.

Estar perto do cheiro de Dorien assim... Tocando suas coisas, acariciando meus
dedos ao longo da seda crua de seu edredom... Fazia coisas comigo. Isso me fez
duvidar da minha convicção anterior de que ele estava por trás do ataque de mamãe.
Isso me fez desejar coisas que nunca poderiam acontecer de verdade.

Eu precisava deixar essa tensão sair do meu corpo. E se eu não podia foder,
então eu precisava tocar.

Felizmente, com três alunos ainda ausentes por causa do recital, as salas de
prática estavam vazias. Eu rabisquei meu nome no quadro branco da Sala Amarela e
entrei. Lembrei-me da última vez que estive aqui, quando encontrei o livro do meu
pai, e meus ombros se apertaram com uma tensão diferente. Meus dedos zumbiam
com energia reprimida enquanto eu removia meu violino de seu estojo e o descansava
contra meu queixo.

Eu puxei o arco sobre as cordas, e naquela primeira nota prolongada eu me


transportei para fora do meu corpo e para dentro da música. Toquei Nigun como
aquecimento, deixando as notas tristes evocarem imagens de minha mãe que faziam
meu peito doer, antes de me lançar nos caprichos explosivos de Paganini.
Meus dedos voaram ao longo das cordas, e minha mente se tornou uma
confusão de cores, luzes e sensações. Os caprichos não são tanto movimentos
musicais, mas exercícios de loucura, e precisei de cada grama de concentração que
eu possuía para manter meus dedos nas cordas enquanto executava os trinados de
dupla parada e saltos impossíveis. Nenhuma memória poderia atravessar a parede da
música, nem mesmo o cheiro de Dorien.

Em algum canto distante da minha mente, fiquei vagamente consciente da porta


se abrindo. Elena apareceu na borda da minha visão. Ela parou na porta por um
momento, lançando um olhar por cima do ombro, antes de deslizar para dentro e
trancar a porta atrás dela.

Instantaneamente, os cabelos do meu pescoço se arrepiaram. Meu dedo


escorregou na corda. Por que ela está aqui? Que nova tortura os Musos prepararam
para mim?

Eu não parei de tocar, mas fiquei atenta à Elena enquanto ela atravessava a
sala e se empoleirava na ponta da espreguiçadeira de veludo sob a janela. A luz do sol
espreitava através das cortinas de renda, salpicando seu cabelo dourado. Ela me
observou, sua expressão serena. Esperei que Elena falasse, ou que algo acontecesse.
Mas ela não disse nada, então continuei tocando.

Não ousei fechar os olhos, como costumava fazer quando tocava para mim
mesma. Em vez disso, concentrei-me nas novas técnicas que o Mestre Radcliffe me
ensinou, descansando minha mão contra o corpo do violino para que eu pudesse usar
meu polegar como pivô para realizar os alongamentos. Uma cãibra percorreu o lado
do meu dedo indicador, mas eu a ignorei.

Enquanto as últimas notas do capricho tremiam das cordas, Elena se levantou.


Seus olhos encontraram os meus, aquele olhar de fada que atraía homens assim como
o Titanic atraiu um iceberg, me hipnotizando. Fiquei surpresa ao ver uma lágrima cair
em seu rosto. Ela me reconheceu com um aceno de cabeça quando saiu da sala, um
rastro de perfume exótico flutuando atrás dela.

O que diabos foi isso?


Eu aninhei meu violino de volta no estojo, incapaz de controlar meu coração
acelerado. Elena veio aqui para me espionar? Era o primeiro estágio de alguma nova
tortura que os Musos orquestraram? Aquela lágrima, no entanto... Parecia impossível,
mas eu não pude deixar de me perguntar se Elena veio me ouvir tocar.

O gongo soou pela casa quando os Musos chegaram. Uma comoção no corredor
chamou minha atenção. Fechei o estojo e me arrastei até a porta, abrindo uma fresta
para espiar lá fora. Ivan e Elena estavam ao pé da escada. Os dedos de Elena se
curvavam ao redor do corrimão esculpido, enquanto Ivan apertava seu pulso livre,
tentando puxá-la de volta para encará-lo.

“Onde você estava?” Ivan conseguiu girá-la, envolvendo seus braços ao redor de
sua cintura, segurando-a no lugar contra seu corpo. Apertei a porta com mais força,
debatendo interferir, mas não parecia que ele estava tentando dominá-la. Era mais
como se ele estivesse... desesperado. Com medo. “Não consegui te encontrar quando
saímos. Eu estava preocupado. Eu pensei que...”

Ela balançou a cabeça, pressionando as mãos nas costas dele, deixando sua
bochecha cair contra seu ombro. “Eu não estava com ele. Eu queria ver Faye. Eu tinha
que ter certeza que ela é digna de você, e eu acredito que ela seja.”

Espere, o quê?

Ivan franziu o cenho. “Você não pode desaparecer assim de novo.”

“Por favor, Ivan. Esqueça isso.”

“Eu não posso esquecer isso. O que ele está fazendo com você... é errado. É tudo
tão errado.” A voz de Ivan tremia de raiva. Ele soltou uma série de palavras em sua
língua romena nativa.

Elena respondeu a ele no mesmo idioma, seus ombros caídos com a derrota. Eu
estava prestes a fechar a porta novamente quando ela voltou para o inglês. “Não há
nada que possamos fazer. Somos prisioneiros aqui. Mas ele nos ajudará a conquistar
a liberdade. Essa é a única razão pela qual eu o deixo perto de mim, e esse é o meu
sacrifício, Ivan. Tudo vai valer a pena, eu juro.”
Ivan cuspiu uma resposta, suas mãos fechadas em punhos contra as costas
dela. Eu não precisava entender romeno para saber que ele ameaçou alguém com
violência. Mas quem era o ‘ele’ a quem ela se referia? Dorien?

Eu recuei e bati na porta com o pé, inclinando minha bunda contra ela. Por que
Elena veio me ouvir tocar? Por que ela não queria que Ivan soubesse onde ela estava?
E o que ela quis dizer quando disse que eles eram prisioneiros?

Seria este outro segredo escondido nas paredes de Manderley?


“Estudantes, como um presente especial, Mestre Radcliffe e eu gostaríamos de
convidá-los para participar da apresentação de gala da Filarmônica de Nova York
neste fim de semana como nossos convidados, bem como do baile que acontecerá
depois.”

Meus ouvidos se animaram. Mamãe e eu costumávamos assistir a


apresentações o tempo todo. Quando estávamos bem financeiramente, ela foi patrona
da orquestra, e eu dancei com ela em muitos bailes de gala sob lustres brilhantes.
Mesmo em uma sala cheia de doninhas ricas e opulentas, minha mãe não tinha medo
de deslizar sobre as tábuas do piso e chamar a atenção de todos os homens na sala.
Um banqueiro de Wall Street uma vez nos interrompeu no meio do tango para propor
casamento a ela.

Ir sem ela seria... tão ruim quanto tudo o que eu tinha que fazer sem ela, mas
seria maravilhoso estar imersa na música e me lembrar daquilo pelo que eu estava
lutando.

“Como punição por certos crimes, Ivan e Dorien ficarão para trás.” Madame
ergueu o nariz no ar. “E, claro, Faye estará muito ocupada com suas tarefas para
participar.”

Ivan lançou um olhar para Elena, seu garfo caindo de sua mão. Elena colocou
os dedos sobre os dele. “Eu não posso ir sem Ivan,” ela disse, os olhos encontrando
os de Madame em um confronto de vontades. Mas o poder de seu olhar de safira não
foi refletido em sua voz fina, e Elena rapidamente cedeu, baixando os olhos para o
prato.
“Não seja idiota. Você é uma mulher adulta que pode ficar sem seu irmão por
uma noite. O que vai acontecer quando você estiver em turnê solo, por exemplo?” Ivan
estava tremendo. Madame olhou ao redor da mesa, desafiando alguém a ir contra ela.
“O resto de vocês, estejam prontos para partir às 10h em ponto da manhã de sábado.
Já reservei quartos de hotel na cidade.”

Não ir à festa de gala não me incomodou tanto quanto um fim de semana inteiro
sozinha com Dorien e Ivan. Levei uma braçada de pratos para a cozinha e, quando
voltei para terminar de limpar a mesa, notei Dorien e Heather sussurrando juntos do
outro lado do corredor. Heather apontou o polegar na minha direção, sua voz pingando
veneno. Eu parei em meu caminho.

Eles estão falando de mim. Que porra?

Dorien girou nos calcanhares e se afastou. Heather gritou atrás dele: “Se você
não tiver estômago para terminar o que começamos, eu mesma faço isso.”

“Faça, e eu vou arruinar você.” Dorien não gritou, mas a ameaça era clara em
sua voz.

Heather bateu à porta da Sala Vermelha na cara dele. Dorien olhou para ela por
alguns momentos, seu peito subindo e descendo, suas mãos fechadas em punhos. Ele
caminhou pelo corredor em minha direção; e a tempestade em seus olhos poderia
afundar um navio de guerra.

Os passos de Dorien vacilaram quando ele me viu, então ele estreitou aqueles
orbes de ardósia para mim e acelerou o passo. Suas botas batiam no tapete grosso.
Ele deixou clara sua intenção. Se eu não saísse do seu caminho, ele passaria por cima
de mim e não sentiria nenhum remorso por isso.

Ele deve ter descoberto a doação para a caridade.

Uma distensão muscular. Uma batida. Mesmo uma contusão poderia afetar
minha música. Eu não podia me dar ao luxo de me machucar.

Mas também sabia que não podia deixar Dorien vencer. Se eu desse a esse idiota
um centímetro de abertura, ele me destruiria.
Dei um passo em direção a Dorien, endireitando meus ombros, deixando claro
que não sairia do lugar.

Dorien continuou vindo, aquele lindo maxilar flexionado em determinação


sombria. O espaço se fechou entre nós, trazendo uma onda de seu perfume inebriante
que quase me derrubou. Mas eu não parei, não desacelerei.

No último segundo possível, bati meu corpo contra a parede e estiquei o pé. A
bota pesada de Dorien deslizou por baixo dela, e ele caiu como um tronco no chão.

“Que porra é essa?” Ele gemeu quando rolou para se ajoelhar no tapete. Ele
agarrou sua mão, que ficou arranhada por causa do piso.

“Ah, então você fala.” Eu estava sobre ele com os braços cruzados. Um sorriso
apareceu no meu rosto, e eu o deixei brilhar. Gostei da visão que tinha dele agora,
rastejando embaixo de mim com uma expressão confusa no rosto.

“Você... me fez tropeçar.” Dorien ergueu o braço. Ele havia se ferido, um


pequeno corte ao longo do lado de seu antebraço. “Eu estou sangrando.”

“Não soe tão surpreso.” Uma pontada de culpa se contorceu em meu estômago,
mas eu a empurrei para baixo. “Você pretendia me machucar há 1 minuto atrás, e me
fez tropeçar duas vezes. Sem falar que machucou a minha mãe. Vale tudo pela guerra
e pelos prêmios em dinheiro.”

Dorien se levantou, usando o braço que não estava sangrando para tirar cachos
escuros de cabelo de seus olhos. “Eu nunca toquei em sua mãe. Se você pensasse
sobre isso por um momento, saberia. E mesmo se você fosse a melhor musicista desta
escola, o que você não é, Madame Usher nunca lhe daria o Prêmio Manderley.”

“Talvez não, mas isso não significa que eu não possa impedir que o prêmio vá
para um membro do Broken Muse.” Dei de ombros. “Eu já entendi. Você me odeia.
Mas eu não vou a lugar nenhum, então você está desperdiçando sua energia me
atormentando.”

“Não é um desperdício.” Dorien limpou as calças. “Eu gosto disso.”

“Mas há tantas maneiras mais agradáveis de passar o tempo.”


As palavras saíram da minha boca antes que eu pudesse detê-las. Um rubor se
formou em minhas bochechas, e eu resisti à vontade de bater minha cabeça contra a
parede até limpar toda a memória da sobrancelha levantada de Dorien e sua expressão
chocada.

Dorien passou por mim, deixando um rastro de incenso e violetas e uma


vibração no meu peito em seu rastro.

Eu imaginei, ou Dorien Valencourt simplesmente me deu um sorriso?


O fim de semana chegou rápido. Heather, Aroha, Elena e Titus saíram na
limusine com Madame Usher e Mestre Radcliffe, o que significava que éramos apenas
Dorien, Ivan e eu para o jantar.

Enquanto eu cortava legumes, recebi um telefonema da polícia sobre o caso de


mamãe. Eles tinham imagens de segurança do sem-teto parado com alguém em um
caixa eletrônico duas horas após o incidente. Eles não podiam ver o rosto da figura
ou mesmo concluir se era homem ou mulher. Não poderia ser Dorien, porque ele
estava comigo naquela hora.

Ele poderia ter contratado alguém, ou um dos outros foi pego pela câmera,
mas... Eu simplesmente não acreditava nisso. E então havia todas aquelas coisas que
Dorien tentou dizer na biblioteca, sobre Madame Usher e... a entrega de rosquinhas
de $400 não mentia. Assim como eu não acreditava que Dorien fosse capaz de matar
Clare à sangue frio, eu não conseguia ver os garotos Broken Muse orquestrando isso.

Mas se não foram eles, quem então?

Sentindo-me uma vilã, cozinhei o chili mais quente e apimentado que eu sabia
fazer, com o clássico molho da minha mãe, e empilhei colheradas em cima de dois
montes de arroz. Servi uma porção muito mais razoável para mim e levei as três tigelas
para a mesa, onde os caras tinham se envolvido em uma conversa profunda e
significativa sobre hard house (Um estilo de música eletrônica que surgiu no início
dos anos 1990) com Ivan sendo a favor e Dorien contra.

“O que é isso?” Dorien olhou para sua montanha com desgosto claro em seu
tom.

“Você está falando comigo agora?” Eu pisquei para ele da ponta da mesa.
“Só para dizer que essa comida parece merda de cachorro. Não é comestível.
Traga-me outra coisa.”

Ivan já estava comendo, seus olhos passando rapidamente entre Dorien e eu.
Ele não reagiu quando o chili atingiu sua boca. Esse cara é feito de pedra ou algo
assim?

“Foi o que eu cozinhei,” eu disse. “Agora, se você não quer comer, pode ir até a
cozinha e fazer alguma coisa. Caso contrário, coma.”

Dorien pegou o garfo, deixando o chili e a guacamole respingarem na mesa.


“Parece que alguém já comeu.”

“É legal” Ivan enfiou a colher em outro bocado. Minha boca queimava só de


observá-lo comer toda aquela comida apimentada.

“Não é nem mesmo comida mexicana adequada. É uma abominação. Eu já comi


no restaurante de Aarón Sánchez, e ele não acharia isso adequado para alimentar os
camponeses que engraxam seus sapatos.”

“Você não reconheceria comida mexicana adequada nem se ela mordesse sua
bunda, e você não vai receber mais nada de mim, então coma.” Eu mastiguei um
salgadinho de milho bem alto. “Você poderia ter ido ao jantar de gala chique com os
outros se tivesse implorado à Madame. Você não está de castigo como eu e Ivan.”

“Você sabe que eu não poderia.”

Engasguei com meu chili. “O que você quer dizer?”

A sala fervia de tensão.

“Abri minha conta e descobri que até o último centavo do meu dinheiro foi doado
para uma instituição de caridade.” Dorien empurrou a cadeira para trás. “Eu não sei
como você fez isso, mas foi muito... Rude.”

Ivan largou o garfo e olhou para o amigo, mas Dorien o ignorou. Enquanto eu
observava seu rosto em busca de uma reação, percebi o que ele quis dizer quando nos
confrontamos no corredor. Ele não tinha dinheiro para pagar ninguém para machucar
minha mãe. Eu teria visto quando estava vasculhando seus fundos. Alívio tomou
conta de mim com uma força para a qual eu não estava preparada. Por que eu queria
tanto que Dorien fosse inocente?

“Eu nunca faria uma coisa dessas,” eu disse docemente. “Mas se eu tivesse feito,
eu poderia ter ficado surpresa ao descobrir quão pouco dinheiro havia lá. Parece estar
em desacordo com a imagem de um idiota rico que você criou para si mesmo. Eu me
pergunto como a imprensa se sentiria se soubesse que o Bad Boy do Barroco é
realmente o Bad Boy Falido?”

Dorien endureceu. Algo em seus olhos brilhou para mim. Algo como...
Admiração.

“Bem jogado.” Dorien tamborilou os dedos na mesa. “Ivan, você tem planos para
esta noite?”

Embora ele tenha falado com seu amigo, seus olhos nunca deixaram meu rosto.
Ivan respondeu com a mesma atenção intensa que tinha em mim, aqueles cacos de
safira cortando lascas da minha pele. Mais uma vez, eu ansiava por saber o que Ivan
estava pensando por trás daquele olhar gelado.

“Nós temos esta casa inteira só para nós,” ele respondeu sem emoção.

“E eu tenho a chave do armário de bebidas,” Dorien sorriu. “O que você nos diz,
Faye? Titus não está aqui, mas isso não significa que não podemos ter uma festa
adequada.”

Por um momento, eu não consegui registrar onde eles estavam querendo chegar.
“Você está me pedindo para... Festejar com vocês?”

“Vamos lá. É sexta-feira à noite e Ivan precisa de uma distração para não se
preocupar tanto com a irmã. Você deveria até soltar o cabelo, Duende.” Dorien
estendeu a mão sobre a mesa, seus dedos roçando minha bochecha enquanto
enrolava uma mecha do meu cabelo em volta dos dedos.

Por um momento, o tempo parou. Tudo o que existia era o calor dos dedos de
Dorien na minha bochecha, e o leve puxão no meu cabelo que fez fogo mergulhar pelo
meu corpo e se acumular entre as minhas pernas, e os olhos de Ivan me puxando,
um lampejo nas bordas de seu gelo que prometia algo…

Eu me recompus, apenas um pouco, e dei um tapa na mão dele. Eu deslizei


minha cadeira para trás, fazendo o meu melhor para ignorar o crepitar do fogo em
minha pele no lugar onde ele me tocou.

“Tenho pratos para lavar.”

“Nós vamos ajudar.” Dorien deu uma risada amarga. “Afinal, a servidão pode
estar no meu futuro também.”

Dorien e Ivan levaram seus pratos para a cozinha enquanto eu limpava a mesa.
Quando voltei, ambos tinham amarrado aventais bordados com babados sobre suas
camisas. Ivan encheu a pia com água quente enquanto Dorien tentava lidar com o
pano de prato.

“Se vocês estiverem aqui para ajudar, vocês precisam realmente ajudar.”
Apontei para a máquina de lavar louça. “Dorien, preencha isso e dê tudo o que não
serve para Ivan.”

“Sim e sim, chefe. E enquanto estamos nos escravizando, o que você vai fazer?”

Me beliscando para ter certeza de que não estava alucinando essa loucura,
respondo: “Tenho que arrumar a prateleira de temperos e dobrar a roupa.”

Tê-los na cozinha era estranho. Uma memória passou pela minha mente, de
uma cozinha diferente e de um garoto diferente. Os olhos de Dorien se arregalaram
quando ele viu os limites minúsculos da nossa casa na primeira vez que ele visitou,
depois das aulas de música. “Uau,” ele saltou para olhar os azulejos mexicanos
coloridos que minha mãe usava para decorar as paredes. “Esse lugar é tão legal.”
Eu nunca tinha pensado em nosso pequeno apartamento como legal,
especialmente quando o comparava com a cobertura de Dorien. Eu só fui lá uma vez,
no aniversário dele, e parecia mais um cenário de Star Trek do que uma casa, tudo
brilhando em tantos tons de branco que doeu nos meus olhos, sua mãe pairando
sobre nós em um roupão marrom que deslizava sobre o chão com um sorriso
assustador no rosto, e aquele cara que Dorien chamou de tio Aaron me perguntando
sobre a carreira do meu pai enquanto comíamos um bolo de aniversário de trigo
sarraceno.

E Ivan... Esse cara parecia ter sido feito sob medida para um pedestal, para ser
adorado em um templo pagão, uma distração para caramba quando se estava
tentando limpar o balcão de uma cozinha. Ele se movia pelo lugar com uma graça tão
silenciosa que eu ficava parando para observá-lo e esquecia o que estava fazendo. Ele
me seguiu até a lavanderia enquanto eu tirava os lençóis da secadora e
silenciosamente pegava os cantos para me ajudar a dobrá-los. Trabalhei em empregos
que hospedavam pessoas por tempo suficiente para tudo ficar bem arrumado e limpo,
mas os cantos retos e quase militares que ele fazia me fascinaram.

“Eu dobrava muita roupa quando era menino,” ele se ofereceu. “Muitos turistas
visitam nossa cidade natal por causa de suas construções medievais. Nossa mãe
lavava roupa para os hotéis por causa do dinheiro extra. Elena e eu tínhamos que ir
buscar os lençóis sujos e devolver os limpos.” Essa foi a maior quantidade de palavras
que ele já me disse. Na verdade, foi a maior quantidade de palavras que eu o ouvi dizer
a alguém.

“Quando vocês vieram para os Estados Unidos?” Perguntei.

“Tínhamos oito anos. Fizemos um recital em Bucareste. Elena... Mesmo naquela


época ela tocava como ninguém. O Mestre e Madame Usher abordaram nossos pais
depois da apresentação e se ofereceram para nos levar para os Estados Unidos. Eles
agiriam como nossos guardiões e garantiriam que tivéssemos a melhor educação. Eles
nomearam um montante de dinheiro que fez os olhos do meu pai saltarem da cabeça,
e meus pais concordaram ali mesmo. Eles não nos perguntaram o que queríamos.”
Seus olhos brilharam com ressentimento. “Estamos em Manderley há quinze anos.”

Eu sabia que estávamos patinando em torno da questão de por que ele se


preocupava tanto com Elena, mas ele não revelou nada mais. As palavras saíram da
minha boca antes que eu pudesse detê-las. “Como você aguenta isso?”

Ivan baixou os olhos para o lençol, que deslizou por entre seus dedos hábeis
enquanto ele o dobrava com precisão. “Não é uma questão de escolha.”

Eu estava intrigada por causa dessas palavras quando Dorien apareceu. “A


máquina de lavar louça está funcionando. Podemos ir agora?”

“Porque esse interesse repentino em mim?” A memória do nosso beijo queimou


meu corpo. Meus dedos dos pés se curvaram no chão. E então eu me lembrei das
semanas de tormento com um ‘fantasma’, as brincadeiras podres, meu violino em
pedaços na pia do banheiro, e eu quis me chutar ali mesmo.

“Acalme-se, Duende. Vamos apenas relaxar um pouco.” Os lábios de Dorien se


curvaram em seu sorriso de assinatura. “A menos que você tenha um compromisso
com o fantasma residente.”

Com a palavra fantasma, um lampejo de pânico percorreu minha espinha.


Todas as coisas que eu tinha visto, ouvido e sentido em Manderley que eu não
conseguia explicar, que estavam ligadas de alguma forma aos Bad Boys do Barroco...
E aqui estava eu concordando em passar um tempo com eles, sozinha.

Eu poderia simplesmente dizer não e voltar para o meu quarto e ler um livro ou
praticar minha performance de Paganini.

Eu poderia dizer não...

Mas hesitar diante de Ivan e Dorien, com seus olhos fixos nos meus, não era
uma opção. Pensei em minha mãe em sua cama de hospital e em sua determinação
vitalícia de aproveitar todas as oportunidades e todos os dias enquanto ela ainda os
tinha. Dei de ombros, esperando que eles não pudessem ouvir meu coração batendo
contra meu peito. “Ok, então.”
Segui os Musos pelo corredor. Dorien entrou na Sala Azul e tirou uma garrafa
de uísque do armário. Enfiando-a debaixo do braço, ele liderou o caminho para o salão
de baile, empurrando as portas duplas abertas para revelar o vasto espaço, envolto
em luz fria e manchada que espreitava através das árvores.

Ivan se moveu para acender os castiçais de prata no aparador. Percebi que


alguém havia movido meu estojo de violino da sala de ensaio para debaixo da janela,
ao lado do de Ivan. Dorien sentou-se ao piano, seus dedos varrendo as teclas enquanto
ele puxava a tampa e tomava um gole direto da garrafa. “Toque conosco.”

A maneira como ele disse isso, com o canto da boca torcido, reverberou pelo
meu corpo. Eu sabia que ele não estava falando apenas sobre a música. Estendi
minha mão para a garrafa. Quando Dorien a pressionou em meus dedos, seu toque
permaneceu no meu, e as batidas do meu coração aumentaram.

Eu puxei a garrafa e tomei um gole profundo. O álcool queimou o fundo da


minha garganta e acumulou calor na minha barriga. Uma parte pequena dos meus
nervos desapareceu. Coloquei a garrafa na mão estendida de Ivan e peguei meu arco.
“O que estamos tocando?”

“Você pode escolher,” disse Ivan.

“Que tal uma peça Broken Muse, 'Confessions of an Opium Eater'?” Todas as
suas peças tinham títulos estranhos como esse, muitos fazendo referência à literatura
gótica antiga. Eu amava essa peça porque era um exemplo perfeito do que a música
clássica poderia fazer, ela transportava você como ouvinte para um canto escuro de
um antro de ópio e o levava a uma altura vertiginosa antes de derrubá-lo no desespero
do vício.

Dorien bateu na barra do piano. “Não foi escrita para dois violinos.”

“Talvez eu tenha algumas ideias sobre a peça.” Não contei a eles que as notas
assombravam tanto os meus sonhos que eu chegava a brincar com a composição em
minha mente.
Ivan acenou para Dorien e levou o violino ao pescoço. A parte de Dorien era
baixa, as notas longas, e o som me atingiu profundamente. Os olhos de Ivan se
prenderam nos meus quando ele entrou com a melodia. Ele praticamente conjurava
o doce aroma das drogas, o ar inebriante com a fumaça, a promessa sedutora de
partes inexploradas da mente...

Eu entrei no terceiro compasso, sobrepondo minha melodia sobre a dele,


acrescentando uma melancolia que sugeria a futura turbulência do terceiro ato, onde
o prazer do ópio se transformava em dor.

Eu me virei para Ivan à medida que tocava, e enquanto a música arrebatava o


meu corpo, meus membros se moviam, balançando e mergulhando com a música. O
olhar de Ivan me seguiu, aquele gelo queimando minha pele como fogo. Uma risada
escapou da minha garganta enquanto a música afastava meus medos, minhas
inibições. Senti como se estivesse afundando sob o feitiço do ópio.

Ou talvez esse fosse apenas o feitiço lançado pelos dois belos e quebrados Musos
que tocavam comigo, brincavam comigo, seus olhos varrendo minha pele enquanto
seus dedos invocavam a mais velha e imprudente magia.

Ivan se aproximou, seus olhos nunca deixando os meus enquanto ele me


encarava, arco a arco, nossos dedos e pulsos trabalhando em uníssono, um duelo
equilibrado onde o vencedor levaria... o quê? A tensão entre nós se esticou, como uma
corda que ou nos esmagaria um contra o outro ou se partiria e nos arremessaria
através da sala. Ficamos ali, suspensos dentro da música, nossos arcos lançando
magia no ar.

Os dedos de Dorien deslizaram das teclas, deixando a mim e Ivan sozinhos em


nossa parte. Violinos guincharam pelo espaço cavernoso enquanto descíamos para a
euforia sombria do segundo ato. Eu não parei de tocar enquanto Dorien se movia atrás
de mim, sua presença dançando em minha pele. Eu não conseguia parar. A música
tinha tomado conta de mim.

Então, a mão de Dorien deslizou pela minha coxa.


Seu toque era puro pecado e fogo. Os olhos de Ivan me capturaram, me
prenderam entre eles. Cada centímetro da minha pele chiava com o calor.

Dedos tocaram meu cabelo, arrastando-se pelos fios enquanto Dorien o


empurrava para o lado. Lábios quentes roçaram meu pescoço enquanto a mão
deslizou mais ao meu redor. Seus dedos se espalharam pelo meu estômago, me
pressionando de volta contra ele, moendo minha bunda contra seu jeans até que eu
pudesse sentir seu pau duro.

Duro... Para mim.

O arco de Ivan guinchou nas cordas. Minha boca se abriu quando Dorien beijou
um rastro de fogo ao longo do meu pescoço.

“Foda-se,” Ivan gemeu. Ele jogou o violino na cadeira, sem se importar se o


instrumento escorregasse e saltasse para o tapete. Ele fechou o espaço entre nós,
pressionando seu corpo contra o meu, prendendo minhas mãos para que eu não
pudesse mais tocar.

Seus lábios encontraram os meus com um desejo que me tirou o fôlego. Ivan se
agarrou a mim como se estivesse se afogando e eu fosse sua salvação. Afundei nele
também, deleitando-me com a alegria de ser desejada.

Os dedos de Ivan envolveram meu pescoço, me puxando para mais perto,


esmagando meu instrumento entre nós. Dorien agarrou o pescoço, e eu soltei meu
aperto para que ele pudesse puxá-lo. Agora nada nos separava a não ser a promessa
que pairava no ar.

O dedo de Dorien escorregou sob a bainha da minha camiseta. Engoli em seco


na boca de Ivan quando dedos quentes tocaram a pele nua do meu estômago. Ivan fez
esse barulho rosnado que era tão fodidamente delicioso...

Dorien puxou minha camisa, arrastando as mãos sobre minha carne enquanto
a enrolava. Suas mãos agarraram meus seios através do meu sutiã, e seus dentes se
arrastaram pelo meu pescoço.
Dedos circularam meus mamilos através do tecido transparente do meu sutiã,
e eu pensei que meu coração dispararia do meu peito. Eu tinha perdido toda a noção
de onde estavam suas mãos; tudo que eu sabia era o quão incrível eu me sentia.

Eu tinha tantas perguntas, mas se eu as pronunciasse, teríamos que parar. E


eu não queria parar. Não quando suas mãos estavam por toda parte e seus lábios e
línguas...

“O banco do piano,” Dorien murmurou, sua voz apertada com a necessidade.

Ivan enlaçou os dedos nos meus e me levou para o banco. Ele estendeu os dedos
em meu ombro, me pressionando até que eu me deitasse contra o tecido floral. As
molduras de filigrana do teto emolduravam o rosto de Ivan como uma auréola
enquanto ele me arrastava para outro de seus beijos intensos.

“Sem monopolizar o prêmio, Nicolescu.”

Com um grunhido de protesto, Ivan saiu de cima de mim. Eu choraminguei com


a necessidade que eu tinha dele, mas os dedos de Dorien estavam na minha braguilha,
desabotoando minha calça jeans e puxando-a para fora dos meus quadris, e o beijo
do ar contra minha pele e o formigamento de seus olhos em mim enviaram uma dor
selvagem profundamente em meu núcleo. Ivan estendeu a mão e tirou meu sutiã,
jogando-o do outro lado da sala. O menino que estava em meus sonhos desde que eu
tinha oito anos e a beleza safira que constantemente roubava minha respiração
olhavam para o meu corpo coberto apenas por um pedaço de tecido preto. Deleitei-me
em seu olhar. Porque aqui, eu era a única no poder.

Um sorriso malicioso surgiu no rosto de Dorien. Ele se inclinou na minha frente,


abrindo minhas pernas. Sua mão roçou o tecido da minha calcinha. Agarrei as bordas
do banco. “Você está encharcada,” ele sussurrou, seu tom reverente.

Ivan se abaixou na outra ponta do banco, ao meu lado. Eu pensei que ele se
inclinaria para me beijar, mas em vez disso, seus lábios se fecharam sobre meu
mamilo. A sensação de sua língua quente passando sobre aquela protuberância
sensível fez com que lava derretida fluísse pelas minhas veias.
Com um golpe, Dorien rasgou minha calcinha, jogando o tecido arruinado de
lado. Ele se inclinou sobre mim, e quando Ivan chupou meu mamilo em sua boca, a
língua de Dorien circulou meu clitóris.

Puta merda, isso é incrível…

A língua de Dorien trabalhava em círculos lentos, tomando seu tempo,


provocando o calor dentro de mim. Ivan se moveu para meu mamilo negligenciado e
deu a ele a atenção que merecia.

Eu me contorci entre eles, sabendo que estava fazendo uma mancha molhada
no banco e não me importando nem um pouco. Dorien colocou um dedo dentro de
mim enquanto lambia minha umidade, e nesse ponto, eu já estava fora de mim.

O fogo caiu sobre mim em ondas, como um tsunami de calor me puxando para
baixo, jogando meu corpo em um oceano de êxtase. Perdi-me no fogo, no calor e no
prazer, voltando à tona momentos depois para ver os dois Musos inclinados para trás,
seus braços em volta um do outro enquanto olhavam para mim como se eu fosse
algum tesouro que acabaram de descobrir.

Os olhos cor de safira de Ivan brilharam de prazer, e a expressão presunçosa de


Dorien implorou para ser esbofeteada.

Quando o calor inebriante em minhas veias diminuiu, percebi a tensão que


ainda pairava no ar. Não tínhamos terminado.

Dorien virou-se para o amigo, puxando a barra da camisa de Ivan. “Não tenho
certeza se é justo que Duende seja a única a estar nua aqui.”

Sem dizer nada, Ivan tirou a camisa. Meus olhos se arregalaram quando
observei a beleza etérea de sua pele de alabastro e sua forma perfeita, e a desfiguração
que a maculava. Estendi a mão para tocar a rede de cicatrizes que cobria suas costas.
“O que foi isso?”

Os olhos de Ivan se cobriram de gelo. Ele se encolheu por um momento antes


de se virar para mim novamente. Ele puxou uma fachada sobre si, trancando seu
segredo em um canto escuro de sua mente para que eu não pudesse chegar até lá.
“Elas não são importantes, não quando estou olhando para uma mulher tão bonita.”

Ele está se referindo a mim. Eu sou a mulher bonita. Ninguém nunca tinha me
chamado assim antes. Gorda, inadequada, feia, esses eram os nomes que eu estava
acostumada a ouvir sendo gritados para mim do outro lado do campus por outros
caras. Bêbados lascivos babando no balcão sobre o quanto eles amavam minhas
curvas e Cory assustador me seguindo depois do trabalho não era a mesma coisa que
dois membros do Broken Muse olhando para mim como se eu fosse uma deusa
merecedora de adoração.

Dorien tirou a camisa e saiu de seu jeans. A luz das velas cintilou sobre suas
tatuagens, iluminando a escrita latina em seu peito, a frase In Cauda Venenum. Eu
ainda tinha que perguntar a ele sobre isso, mas não agora.

Agora eu tinha outras coisas em mente.

Dorien agarrou meus quadris e me virou como se eu não pesasse nada.


Honestamente, essa foi a coisa mais sexy que ele tinha feito comigo até este ponto, o
que, considerando os arrepios de prazer ainda correndo por mim do meu orgasmo,
queria dizer algo.

Ele arrastou um dedo sobre as bochechas da minha bunda. “Uma bunda tão
bonita,” ele murmurou. “Eu adoraria deixá-la vermelha com um chicote um dia
desses.”

Porra. Por que essa sugestão fez meu estômago se encher de calor?

Os dedos de Ivan se entrelaçaram nos meus, e ele deu um beijo gentil na minha
testa. Eu ouvi o rasgo de uma embalagem de preservativo, e então as mãos de Dorien
estavam em meus quadris novamente. Meu corpo inteiro doía com uma necessidade
que eu não conseguia expressar. Inclinei meus quadris para trás, convidando-o e
implorando-lhe.

Com um único movimento, Dorien se inclinou e mergulhou em mim,


enterrando-se o mais fundo que podia. Direto ao ponto, esse era o estilo de Dorien.
Senti uma dor aguda quando seu tamanho me esticou, me empurrando ao limite do
que eu podia aguentar. Uma vez que ele todo estava dentro de mim, ele ficou parado,
seus antebraços se apoiando no banco do piano, seu corpo levantado acima do meu
enquanto sua respiração irregular queimava minha pele.

“Eu nunca pensei que estaria dentro de você,” ele sussurrou, sua respiração
contra meu ouvido enviando um estremecimento de prazer através do meu corpo já
trêmulo. Enquanto meu corpo se abria para ele, aquecendo-se com sua presença,
Dorien permaneceu duro, apertado, rígido, uma cobra enrolada pronta para atacar.

Sua mão serpenteou ao redor da minha garganta, puxando minha cabeça para
cima e para trás, atacando minha boca com a dele quando ele começou a se mover.
Lento no início, e então ele estava resistindo contra mim, perdendo-se na selvageria
dos movimentos, na liberação de toda a tensão que se estendeu entre nós por tanto
tempo.

Ivan se ajoelhou ao meu lado, seus dedos emaranhados no meu cabelo


enquanto ele arrancava meus lábios dos de Dorien para me devorar nos dele. Estendi
a mão e puxei Ivan para mim, arrastando-o para cima para que meus lábios pudessem
fechar em torno de seu pau. Ele tinha um gosto incrível, quente e azedo e
exclusivamente Ivan, e seu pau se contraiu contra meus lábios enquanto eu o tomava
o mais fundo que podia.

Dois paus dentro de mim. Dois Musos só para mim.

Não acredito que estou fazendo isso.

Isso é tão bom.

Tão certo.

O dedo de Dorien mergulhou entre minhas pernas, esfregando meu clitóris


enquanto ele batia em mim, empurrando Ivan ainda mais fundo. Eu gemi ao redor do
pênis de Ivan, e isso pode ter sido demais para ele. Ele agarrou um punhado do meu
cabelo em sua mão, seus olhos nunca deixando meu rosto enquanto sua mandíbula
apertava. Por um breve momento, quando ele se rendeu ao seu eu primitivo, aquele
controle apertado escorregou de seus olhos, e eu vislumbrei o verdadeiro Ivan. O cara
orgulhoso, gentil e assustado que faria qualquer coisa para proteger as pessoas que
amava.

O corpo de Ivan estremeceu. Gozo quente e salgado atingiu a parte de trás da


minha garganta ao mesmo tempo que Dorien empurrou mais fundo do que nunca e
seu dedo bateu no meu clitóris, e um segundo orgasmo explodiu através de mim.

Meu corpo inteiro ganhou vida, minhas veias zumbindo com a mesma magia
que eu sentia quando tocava música, apenas amplificada em um milhão de vezes. A
melodia de nossos corpos se encontrando conjurou uma onda de detalhes sensoriais;
o cheiro da comida caseira de minha mãe, o gosto de rosquinhas de manteiga de
amendoim derretendo na minha língua, a dor no meu ombro depois de tocar uma
peça muito difícil, o inchaço no meu peito sempre que mamãe me dizia que estava
orgulhosa de mim. Todos aqueles momentos brilhantes e detalhes perfeitos
convergiram dentro de mim em um único momento de êxtase.

Eu vi estrelas e galáxias e o nascimento e morte de universos no interior das


minhas pálpebras. Eu gritei quando gozei, minha voz ecoando pela sala cavernosa.

Foi demais para Dorien. Seu corpo ficou tenso, seus músculos se contraindo.
Ele caiu sobre a borda junto comigo, gozando com um grunhido antes de desmoronar
contra mim, pele com pele. Seu pênis deslizou para fora.

Dorien afastou o cabelo dos olhos. O olhar que encontrou o meu queimou com
algo que eu nunca tinha visto nele antes, contentamento. “Bem, bem, Duende. Você
certamente tocou todas as notas certas.”

Eu ri quando me sentei, jogando o cabelo emaranhado por cima do ombro, e


pegando a garrafa de uísque, tomando um longo gole. Procurei os olhos de gelo de
Ivan e lhe dei uma piscadela de flerte. “Bebam, rapazes. Temos a noite toda.”
Por que meu cérebro está pegando fogo?

Eu rolei, agitando os braços, tentando apagar as chamas que engolfavam meu


crânio. Mas não havia nenhuma. A dor lancinante vinha de dentro. Tentei abrir um
olho trêmulo para contemplar o mundo, mas ao ver a luz brilhante entrando pela
minha janela aberta, meu olho se rebelou e se fechou novamente.

Estou em um inferno de minha própria autoria.

Memórias trêmulas reluziram através da dor. Eu, pegando uma garrafa de


uísque de Dorien, dançando pelo salão vertiginosamente com Ivan enquanto Dorien
tocava uma valsa no piano, invadindo a varanda do segundo andar para uivar para a
lua, correndo nua pelo gramado coberto de mato para pular no riacho gelado da
montanha no fundo do jardim, sentada nos ombros de Dorien enquanto bêbados
tentávamos desembaraçar minha calcinha rasgada do lustre, mais uísque... Tanto
uísque...

Ah, merda.

Eu me levantei, ofegante enquanto as memórias se solidificavam em uma


imagem perturbadora, aterrorizante e muito nua.

O que eu fiz?

Eu dormi com dois caras. Dois rapazes.

Os mesmos que me intimidavam desde o dia em que cheguei a Manderley.

Eles me foderam no banco do piano. E então… e então Ivan na espreguiçadeira,


e Dorien me curvando sobre as teclas do piano, e novamente ao lado do riacho…

Minhas bochechas queimaram.


Eu estive em... um trio. Como se eu fosse uma estrela pornô ou uma de suas
groupies em vez da deselegante e nada sexualmente aventureira, Faye De Winter.

Quero dizer, não deveria haver um estágio entre perder a virgindade e fazer sexo
grupal? A primeira e única vez que fiz sexo foi com um cara chamado Henry em um
acampamento de música no sul do Maine. Eu posso ter sido uma geek sem amigos na
escola, mas o acampamento de música era onde geeks como eu iam para transar.
Coloque uma centena de adolescentes condenados ao ostracismo em dormitórios
juntos com supervisão mínima, e você terá praticamente uma orgia.

Henry Oxshott viajava para o acampamento todos os anos, vindo de seu


internato britânico, e sempre saíamos juntos. Ele usava suéteres de lã e tinha um
sotaque adorável e um rosto cheio de espinhas. Nós nos unimos por causa de nosso
amor compartilhado pela comida mexicana e pais ausentes. Dois verões atrás,
decidimos que era hora. Nenhum de nós sabia o que fazer, mas Henry me segurou e
sussurrou coisas doces no meu cabelo e foi bom, para não dizer decepcionante. Voltei
do acampamento me sentindo mais velha e mais sábia. Contei à minha mãe o que
tinha acontecido e que não entendia o motivo de todo aquele alarido.

Agora eu entendia.

Que as trombetas soem. Dorien Valencourt me deu meu primeiro orgasmo, e


Ivan Nicolescu poderia me fazer gozar praticamente apenas sussurrando coisas sujas
em meu ouvido.

Eu queria muito, muito mais.

Todos os orgasmos que pudesse ter.

Só não agora. Eu gemi, segurando minha cabeça em uma tentativa vã de parar


meu cérebro de vazar pelos meus globos oculares. Agora eu queria morrer.

Porra, por que eu bebi tanto uísque?

Ao lado da cama, meu telefone apitou, lembrando-me que era hora de me


levantar e começar minhas tarefas. Depois de algumas tentativas cegas, meus dedos
circularam o telefone. Meu corpo inteiro gritou quando eu arrastei meu braço para
trás e o joguei na parede. COLISÃO. THUMP. Ele caiu no chão. Isso pareceu calar a
droga do alarme.

Ao meu lado, algo gemeu.

Maldito fantasma.

Mas espere, poltergeist. Minha névoa cerebral se dissipou apenas o suficiente


para uma lasca de medo cortar meu crânio. Sério, que barulho foi esse?

O fantasma gemeu novamente. Sentei-me, procurando a luz, meu coração


martelando tão rápido que agitou a bile em meu estômago delicado. Enquanto lutava
para abrir os olhos, algo se moveu na cama ao meu lado.

“Bom dia, Duende,” o fantasma murmurou debaixo dos lençóis.

“Porra!” Pulei da cama, puxando os lençóis sobre meus seios. O fantasma rolou
quando eu o revelei à luz, e o rosto sonolento de Dorien olhou para mim com uma
diversão irônica. “O que você está fazendo na minha cama?”

“Isso quer dizer que ela já nos esqueceu?” Ivan sentou-se, seu cabelo loiro-
branco empilhado em um lado da cabeça.

“Arrrgh!” Eu arranquei o resto do lençol da cama e cambaleei para trás até bater
na parede. Minha mão voou para meu estômago revolto. Minha disposição
enfraquecida não poderia lidar com dois Musos muito quentes e muito nus
entrelaçados na minha cama.

Eu morri dormindo. Essa é a única explicação lógica. Eu morri e fui para uma
versão estranha do céu. Ou inferno.

Definitivamente um inferno. Porque o fato de ambos parecerem tão bem depois da


quantidade de uísque que bebemos é absolutamente pecaminoso.

“Eu não posso lidar com isso agora.” Eu caí contra a parede, pressionando meus
dedos nas minhas têmporas. “Por que vocês estão aqui? Vocês têm camas muito
maiores e menos lotadas lá embaixo.”
“A companhia lá embaixo não era tão boa.” Ivan bocejou. “Além disso, foi você
quem nos arrastou até aqui.”

“Você não aceitava um não como resposta.” Aquele sorriso perigoso apareceu
no rosto de Dorien. “Você ficava gritando que se o fantasma de Manderley viesse atrás
de você durante a noite, você precisaria de homens grandes e fortes para se sacrificar
enquanto você escapava pela janela.”

“Foi bastante convincente,” acrescentou Ivan. “E quente pra caralho.”

Eu gemi novamente, minhas bochechas queimando com a vergonha. “Achei que


tivesse sido um sonho.”

“O melhor tipo de sonho.” Dorien sentou-se, deslizando as pernas para fora da


cama. Seus cachos desgrenhados caíam sobre seu rosto, e eu cambaleei contra a
parede... Por causa da ressaca ou de sua gostosura, eu não saberia dizer. “Ei, então,
precisamos conversar. Sobre coisas sérias.”

“Nada de conversa séria antes do café.” Eu me abaixei para pegar meus jeans
de onde os tinha jogado no chão. Grande erro. Meu estômago não aprovou a flexão.

Os dedos de Dorien circundaram meu pulso, e ele me puxou para seu colo,
afastando meu cabelo do meu rosto. Seus dedos contra minha pele eram como um
bálsamo curativo. “Essa coisa que estamos fazendo, Duende, não é uma coisa única,
não se você não quiser que seja. Você é uma garota Muse agora. Nossa Musa.”

Eu levantei uma sobrancelha. “Titus não teria que concordar com isso?”

“Acredite em mim, Titus concorda. Na verdade, ele vai ficar chateado por não
ter estado aqui. Ele está querendo te convidar para sair desde o começo do ano.”

Quê? “Isso não é verdade.”

“Ah, sim, com certeza é. Titus só não fez um movimento porque pensou que eu
tinha reivindicado você.”

Eu bati contra sua mão na minha bochecha. “Esta não é a Idade das Trevas. Eu
tomo minhas próprias decisões e não sou um objeto pelo qual lutar.”
“Eu nunca duvidei disso.” As mãos de Dorien roçaram minhas coxas,
desenhando círculos nas minhas costas. Mesmo através da névoa da minha ressaca,
era tão bom ser tocada por ele. “É por isso que não vamos brigar. Nós três
compartilhamos tudo, então por que não compartilhar nossa garota? Você não parece
se importar. Para uma nerd de música certinha, você se transforma em uma
verdadeira leoa em um piscar de olhos.”

Ivan se arrastou pela cama, pegando minha mão e entrelaçando seus dedos nos
meus. “O que Dorien está tentando dizer, em seu jeito idiota de sempre, é que nós
nunca quisemos te machucar. Fizemos coisas horríveis porque acreditávamos que não
tínhamos escolha.”

“Ainda assim vocês as fizeram.” Eu pressionei minha mão na minha têmpora,


tentando parar a onda de memórias ruins antes que ela inundasse minha cabeça, no
caso de fazer meu cérebro vazar pelos meus ouvidos.

“Sim. E sabemos que temos que rastejar muito antes que você nos perdoe.”
Dorien rolou meu mamilo entre os dedos, e eu mordi meu lábio para impedir que um
gemido escapasse dos meus lábios. “Que tal um orgasmo matinal?”

“Dorien.” Ivan franziu o cenho, sua voz grossa com advertência.

Relutantemente, Dorien afastou a mão. A tempestade rastejou para as bordas


de seus olhos. “Certo. Coisas sérias primeiro. Você é nossa garota Musa, Duende, e
nós a protegeremos. Mas temos que manter isso em segredo. Temos que continuar a
intimidá-la.”

Eu endureci. “Por quê?”

“Na biblioteca, eu tentei dizer a você que Madame Usher quer que você saia de
Manderley. Ela veio até mim antes de você chegar, e disse que o Mestre Radcliffe
insistiu que você se tornasse sua aluna, mas que ela sentiu que sua formação seria
uma desvantagem muito grande. Ela mencionou o caso com seu pai, e como os
queixos caíam para ele dentro da comunidade musical. Disse também que não podia
ir contra o Mestre Radcliffe, mas deixou bem claro que você precisava ser expulsa.
Desde então, eu a ouvi mudar essa história várias vezes.”

“Isso é... Eu nem sei o que dizer, porque ou ela mentiu para você, ou então você
está mentindo para mim agora.” Meu peito apertou. “Madame disse que ficou de olho
na minha carreira desde que saí da escola. Meu convite veio dela, não do Mestre
Radcliffe.”

“Ela mentiu para um de nós então. Não me surpreende. Só não sei o que isso
significa.”

Eu apertei meus olhos bem fechados. Isso era demais para lidar agora. Eu não
poderia processar isso com um cérebro imerso em ressaca. “Por que você concordou
em fazer isso? Não pode ser por causa de sua família...”

“Ela segura uma espada sobre minha cabeça,” Dorien rosnou. “Sobre todas as
nossas cabeças.”

“As pessoas de quem gostamos correm perigo se não fizermos o que ela diz,”
acrescentou Ivan.

Como Elena, imaginei. Mas isso não fazia sentido. O que Madame Usher poderia
fazer com Elena se Ivan estava sempre com ela? E que poder ela tinha sobre Dorien?
Tinha a ver com o que Dorien me contou sobre sua família, mas isso não fazia sentido,
o lindo e selvagem Dorien, que nunca dava a mínima para o que alguém pensava? Ele
não deixaria a Madame possuí-lo, nem mesmo por causa desse segredo.

“Vocês não vão me dizer o que ela tem contra vocês?”

Dorien balançou a cabeça. “Garota gananciosa. Você já tem nossos corações,


não nos faça dar a você nossos segredos também.”

“Por enquanto, é mais seguro para você viver na ignorância.” Ivan apertou meus
dedos.

“Acho, embora não possa provar, que ela está por trás de todas essas coisas
estranhas que não podemos explicar. Nenhum de nós quebrou seu violino ou pagou
aquele mendigo para machucar sua mãe. Mas também não consigo descobrir como
ela fez e continua fazendo essas coisas.”

“E tem isso também.” Procurei na mesa de cabeceira o livro de contos de fadas


dos Grimm. Enquanto Dorien franzia a testa para o livro, expliquei sobre a noite em
que o encontrei.

“Alguma coisa está acontecendo nesta casa. E aposto que tem algo a ver com
aquele violino Carl Becker que você pegou. Nós vamos descobrir. Vamos lidar com
Madame Usher,” Dorien prometeu. “Ela espera que a gente siga suas ordens como
cordeirinhos no matadouro. Ela tem seus próprios segredos, e vamos enterrá-la com
eles. Mas se temos alguma esperança de descobrir o que está acontecendo em
Manderley, então Madame Usher precisa acreditar que as coisas estão normais. Para
todos os efeitos, nos odiamos e estamos tentando forçar você a desistir. Além disso,
essa pode ser a melhor maneira de lidar com Heather.”

“Heather?”

“Acontece que eu fiz meu trabalho um pouco bem demais.” Dorien se inclinou
para frente e provou meus lábios com a língua. “Ela te odeia com o ardor de mil sóis,
o lixo de trailer que capturou a atenção do Mestre Radcliffe e meu coração também.
Heather tem alguns planos desagradáveis para você.”

“Planos que ela pretendia realizar com seu futuro noivo, antes que ele a
abandonasse,” acrescentou Ivan.

“Eu não a abandonei,” Dorien atirou de volta. “É impossível terminar com


alguém quando vocês estavam juntos apenas na imaginação.”

“Estou em perigo?” Eu sussurrei.

“Heather estará em perigo se ela tocar em você.” Dorien levantou meu queixo
com o dedo. Sua respiração irregular enviou calor pelas minhas veias. “O que você
nos diz, Duende? Deixe-nos fingir que te odiamos na frente de Usher, e continuaremos
explodindo sua mente em particular. Você é mais forte do que qualquer um que eu
conheço. Você pode lidar com algumas palavras duras e brincadeiras estúpidas.”
“Uhmmm.” Seus lábios encontraram os meus, e eu me perdi em seu beijo. As
mãos de Ivan rastejaram sobre minha pele nua, sua boca arrastando beijos leves ao
longo do meu pescoço, levantando os pelos da minha pele. Afundei de volta na cama
enquanto os dois se pressionavam contra mim, lábios e mãos vagando livremente,
explorando cada lugar escondido no meu corpo.

Através da névoa do orgasmo e da ressaca, minha mente zumbia com tudo que
Dorien e Ivan me disseram. Madame Usher estava realmente indo tão longe para se
livrar de mim?

E, mais importante, eu realmente concordei em deixar os Musos continuarem a


me torturar?
Quando os outros voltaram, eu já tinha conseguido expulsar os caras do meu
quarto, colocado meu vestido preto e bebido um milhão de galões de café. Dorien e
Ivan, que mal pareciam sentir os efeitos do uísque da noite passada, os idiotas, me
ajudaram a limpar a bagunça que fizemos no salão de baile, depois desapareceram
para praticar um pouco enquanto eu continuava com minhas tarefas. Eu estava
lutando para polir o corrimão da grande escadaria e tentando não pensar no corpo de
Clare deitado na base quando Elena, Heather e Aroha irromperam pela porta, apenas
sorrisos e risadas. Da parte de trás do grupo, Titus olhou para mim, seus olhos
escuros queimando com perguntas.

As palavras de Dorien ecoaram na minha cabeça. Ele está querendo te convidar


para sair desde o começo do ano. Ele não fez um movimento porque pensou que eu tinha
reivindicado você.

Os lábios de Titus se curvaram em um sorriso que brilhava com promessas. Caí


de joelhos, fingindo polir entre as grades quando na verdade minhas pernas não
aguentavam mais o meu peso.

Madame Usher entrou por último, franzindo a testa quando me viu na


escadaria. “Você preparou o almoço para nós?”

“Ainda não. Eu não tinha certeza de que horas vocês voltariam.”

Ela bufou. “Apresse-se e prepare, então.”

Corri de volta para a cozinha e quase vomitei na pia. Eu consegui me recompor


e encontrar uma seleção de frios e sobras para fazer como almoço. Durante toda a
refeição, continuei lançando olhares furtivos para os Musos. Fiéis à sua palavra, eles
continuaram a me ignorar. Dorien até sussurrou 'grande gorda' baixinho enquanto eu
me sentava, e Heather deu uma risadinha. O comentário doeu até que eu peguei a
tempestade em seus olhos, parte arrependimento, parte promessa de como ele faria
as coisas serem boas para mim quando estivéssemos sozinhos. Fiquei surpresa que a
eletricidade crepitando entre nós não tivesse incendiado a toalha da mesa.

Depois do almoço, levei meu violino para a Sala Vermelha para praticar. Assim
que toquei o movimento final da minha versão de ‘Confessions of an Opium Eate’,
Elena entrou na sala. Ela se sentou no canto mais escuro, puxando as pernas para o
peito e se escondendo atrás de uma cortina de cabelo. Eu estava praticando o Paganini
novamente, e precisei continuar repassando a mesma passagem complicada para
fazer meus dedos dobrarem de uma maneira quase impossível. Tinha que ser tedioso
de assistir e, no entanto, ela ficou quase até o fim, saindo pouco antes de eu terminar.

Esquisito.

Subi as escadas dois degraus de cada vez, meu estômago embrulhado em nós,
esperando passar por um dos caras no patamar e ainda temendo o encontro. A noite
passada já parecia ter sido um sonho. Dorien e Ivan realmente disseram todas aquelas
coisas para mim, sobre me proteger? Sobre eu ser uma ‘garota Musa’? Ou isso era
apenas um ardil bem elaborado para que eles pudessem continuar jogando comigo?

Não encontrei ninguém nas escadas. Larguei meu violino no meu quarto e deitei
na cama por uma hora, olhando para o teto e tentando cair no sono. Minha mente
arruinada e minhas têmporas latejantes se recusavam a cooperar.

Olhei para o meu relógio. Hora de voltar lá para baixo, para começar a fazer o
jantar. Tomei um par de ibuprofeno, passei uma escova pelo cabelo emaranhado e
joguei água fria no rosto. A ressaca era uma merda. A última coisa que eu queria fazer
era cozinhar agora.

Enquanto eu me arrastava de volta pela escada dos empregados, uma música


familiar soou pela casa, outra favorita do Broken Muse, chamada 'Graveyard Shift'.
Os caras deviam estar praticando na Sala Vermelha. Fiz uma pausa, descansando
minhas costas contra a parede, deixando aquela música sombria e sedutora me
preencher.
Não importava o que acontecesse a seguir, eu sempre teria as lembranças da
noite passada. Nada poderia tirar isso de mim.

Eu cantarolei a melodia baixinho enquanto me dirigia até a despensa. Abri o


freezer para inspecionar minhas opções. Talvez uma salada de frango frito? Ou eu
poderia usar aquela perna de cordeiro da Nova Zelândia e...

Mãos em volta de mim, prendendo meus braços em volta das minhas costas.
Eu gritei, tentando torcer minha cabeça para ver quem era. O aço frio de uma faca
pressionou minha garganta.
Soltei um grito de surpresa. A perna de cordeiro que eu estava segurando caiu
de minhas mãos e bateu no chão.

“Quieta, vadia,” Heather murmurou em meu ouvido. “Grite de novo e eu vou te


cortar. Não pense que não vou.”

Merda. Merda. Meu sangue congelou. Todos os movimentos de autodefesa que


aprendi em uma aula com mamãe voaram da minha cabeça. Tudo em que eu
conseguia focar era na lâmina beijando minha pele e o hálito quente de Heather no
meu ouvido. Ela estava segurando uma faca. Ah, porra, isso é ruim, isso é muito ruim.

“Segure-a bem forte,” Heather latiu. Alguém agarrou minhas mãos, torcendo-as
para trás em um ângulo que os braços não deveriam torcer. Eu gritei quando meu
corpo se moveu para frente em protesto, me pressionando contra a faca. O pânico
cresceu dentro de mim enquanto eu lutava contra o aperto, tentando não cortar minha
própria garganta.

“Estou tentando.” A voz de Aroha chegou aos meus ouvidos, e meu pânico
aumentou um pouco. Duas contra uma, e elas me encurralaram na despensa, onde
ninguém me ouviria, nem mesmo se eu gritasse. Os caras estavam na sala de treino.

Eu estava sozinha.

“Mova-se!” Heather me empurrou em direção à porta. A faca penetrou na minha


pele. Eu odiei o gemido que saiu dos meus lábios. Minhas pernas vacilaram e o sangue
correu em meus ouvidos, mas de alguma forma consegui me arrastar para o corredor.

Heather e Aroha me empurraram pela cozinha, pressionando meu estômago


contra a borda do fogão. O calor do fogão a lenha penetrou em minhas roupas,
alimentando meu pânico crescente. “Você está esquecendo o seu lugar,” Heather
sibilou enquanto inclinava seu peso em meu corpo, me apertando com força.
“Andando pela casa como se fosse a dona da Mansão, tentando tomar o que não é
seu. É hora de você se lembrar do seu lugar, serva. Aroha, ligue o gás.”

Heather largou a faca e agarrou meu pulso, arrancando meu braço de trás de
mim. Fiquei tão aliviada por ter a lâmina longe da minha garganta que não percebi o
que ela planejava até que fosse tarde demais. Aroha girou os botões até que um anel
de fogo circulou o queimador. Tentei puxar meu braço para trás, mas estava no ângulo
errado. A dor irradiava ao longo do meu braço enquanto eu lutava pelo controle, mas
Heather tinha a vantagem, e ela rosnou com triunfo enquanto empurrava minha mão
em direção às chamas.

“Vamos ver se você vai impressionar Mestre Radcliffe com uma mão queimada,”
ela murmurou.

Quando o calor beijou meus dedos, o pânico borbulhante explodiu dentro de


mim. Eu xinguei e amaldiçoei e resisti e me debati, mas eu era apenas uma e elas
eram duas, e Heather estava acostumada a conseguir o que queria.

“Não, por favor.”

Não.

Meu mundo inteiro encolheu para aquelas chamas alaranjadas se aproximando


cada vez mais....

Aroha passou os braços em volta do meu ombro para me prender no lugar. Eu


bati meu pé para baixo, moendo o calcanhar da minha bota em um tênis macio.
Heather gritou, e recuei alguns centímetros antes de Aroha forçar meu ombro para
baixo. Heather cravou as unhas no meu pulso, apertando forte. A chama lambeu a
ponta do meu dedo mindinho e eu gritei.

Não, não, não, não, não a minha mão, por favor, não...

“Tome seu castigo, sua puta,” Heather murmurou, sua voz alcançando meu
pânico. “Ele nunca vai querer você depois disso...”
Suas palavras se transformaram em um grito quando algo a atingiu por trás.
Eu puxei minha mão para trás assim que Aroha se lançou em um último esforço para
me empurrar para baixo, em direção às chamas.

Eu me abaixei sob seu golpe e me virei. Ivan trancava Aroha contra ele, seus
braços presos. Titus segurava Heather por seu rabo de cavalo loiro.

“Toque nela de novo e eu vou queimar você.” Titus segurou a cabeça de Heather
a uma polegada de seu rosto, e suas feições se contorceram com raiva mal disfarçada.

“Ah, você vai?” Ela atirou de volta em uma voz cantante, mesmo quando agarrou
a mão dele em uma tentativa frenética de se libertar. “Parece que vocês três
esqueceram do porquê estão em Manderley.”

Aroha olhou de Heather para Titus em confusão. “Do que ela está falando?”

“Não é da sua conta, drogada.” Titus puxou o cabelo de Heather, balançando


seus pés do chão. A presunção de Heather se transformou em gritos. Estendi o braço
com as mãos trêmulas e desliguei o fogão.

“Me solte!”

“Como quiser.” Titus abriu a mão. Heather desmoronou no chão de madeira,


agarrando o crânio e uivando de dor.

“Então não é apenas Dorien que está sob o feitiço dessa harpia. Todos vocês
estão,” Heather gargalhou, seus olhos arregalados de agonia enquanto ela se arrastava
até a porta. “Vocês estão fodendo a buceta do lixo de trailer. Madame Usher vai adorar
ouvir isso.”

Ivan largou Aroha e a empurrou em direção à porta. Ela olhou por cima do
ombro para mim. “Eu não quis...”

“Saia,” Titus rosnou, sua voz profunda como um estrondo dos céus. Aroha
correu.

Um momento depois disso, Titus estava em cima de mim, varrendo-me para


aqueles braços enormes. Ser abraçada por ele era como se esconder no tronco de uma
árvore ou receber um abraço de um urso pardo. Senti como se tivesse essa força da
natureza maior do que eu, cuidando de mim. Titus pressionou minha cabeça em seu
ombro, seus dedos gigantes emaranhados no meu cabelo. Respirei fundo seu perfume
delicioso, almíscar e mirra, com um leve toque de jardim de rosas inglês, e foi como
voltar para casa, em um lugar que nunca estive antes, mas que imediatamente me
trouxe paz. O tremor em meus membros desapareceu, embora o medo do que elas
quase fizeram ainda mordesse minha pele.

Ivan pegou minha mão, virando-a, passando os dedos sobre os meus. “Elas
queimaram você? Elas te machucaram?”

Eu balancei minha cabeça. O alívio tomou conta de mim, e lágrimas inundaram


meus olhos, escorrendo pelo meu rosto. Eu desabei contra Titus novamente e Ivan
passou os braços em volta de nós dois, pressionando seu peito em minhas costas até
que eu estivesse em um casulo feito do calor dos dois.

“Como v...vocês s...sabiam o que estava acontecendo?”

“Elena ouviu Heather e Aroha se esgueirando para a cozinha,” Ivan disse. “Ela
invadiu nossa Sala para nos contar, e corremos direto para cá.”

“Dorien ficou no corredor, esperando por elas,” Titus acrescentou. “Ele vai
garantir que elas não corram para Madame Usher.”

Da porta, um rosto preocupado espiou. Elena. Dei-lhe um sorriso fraco


enquanto me afastava de Titus. “Obrigada.”

Seus olhos se arregalaram, e ela disparou para fora.

Eu desabei contra o peito de Titus novamente, saboreando o calor de ambos os


braços em volta de mim. “Vocês dois apareceram como fantasmas guardiões.” Uma
risadinha de pânico borbulhou da minha garganta.

Exatamente como fantasmas.

Nunca pensei que ficaria tão grata pelos Musos me assombrarem.


“Elas nunca mais vão tocar em você,” Titus sussurrou, segurando minha cabeça
contra seu peito. “Vamos garantir isso.”

Eu me afundei nele e pensei no Titus que eu tinha visto escondendo seu


verdadeiro eu em um barraco minúsculo e úmido na beira da floresta. Se ele não podia
proteger seu próprio coração, como ele me protegeria?

Tantos segredos enchiam os corredores da Manderley, empilhados uns sobre os


outros como um castelo de cartas. Um movimento errado, uma respiração ansiosa, e
a casa inteira cairia. Eu tinha visto o brilho odioso nos olhos de Heather, mas até onde
ela iria para conseguir o que queria? Agora eu sabia que ela estava pronta para
queimar tudo até o chão, eu incluída.
Agarrei-me a Titus e Ivan tanto quanto ousei. Dorien apareceu na porta, com os
olhos furiosos. “Madame Usher quer ver vocês dois. Ela não quer esperar.”

“Estamos ocupados,” Titus olhou para seu amigo. “É sobre o quê?”

Dorien balançou a cabeça. “Todos nós temos que manter nossos segredos,
lembra?”

Titus se afastou, olhando para mim com aqueles olhos escuros. “Você vai ficar
bem sozinha?”

Eu acenei com a cabeça. Como se eu tivesse escolha.

Relutantemente, Titus se afastou de mim. Ele levantou uma de suas mãos


enormes para desgrenhar o cabelo de Ivan. “Vamos ver o que a bruxa quer agora.”

Depois de um jantar tenso onde ninguém disse uma palavra e todos os três
Musos deliberadamente evitaram olhar nos meus olhos, eu me retirei para a cozinha
para empilhar a máquina de lavar louça. Enquanto eu preparava um lote de massa
de panqueca para tirar da geladeira pela manhã, meu pescoço arrepiou com a
sensação de estar sendo observada.

Peguei a faca que mantinha no balcão ao meu lado e me virei para a porta. Ivan
se inclinou contra a moldura, seus olhos gélidos passando rapidamente para a arma.
“Eu não queria te assustar.”
“Então você provavelmente não deveria espreitar pelas portas e se aproximar
das pessoas assim,” eu atirei de volta.

“Você está certa.” Uhmmm, aquele sotaque romeno realmente fazia coisas nas
minhas entranhas. Ivan deu um passo à frente e estendeu a mão. “Está uma noite
adorável. Madame Usher já se recolheu, e os outros estão na Sala Azul jogando cartas
e bebendo. Quer andar comigo?”

Estava na ponta da minha língua dizer não, mas seus olhos de cristal
imploravam para mim. Eu não conseguia relacionar a fachada fria de Ivan com sua
adoração possessiva pela irmã, ou o viciado em cocaína que a evidência de seu quarto
sugeria. A curiosidade levou a melhor sobre mim. Eu acenei com a cabeça.

Segui Ivan até a horta. Ele segurou o portão aberto para mim. Eu respirei fundo
quando o ar gelado golpeou minha pele. Eu deveria ter pensado em trazer um casaco.

Ivan já estava tirando sua jaqueta de couro e estendendo-a para mim. “Você
quer?”

“Deixe-me adivinhar, está cheia de insetos?” Eu inclinei minha cabeça para o


lado. “Não, espere, eu a coloco e algum sensor dentro me eletrocuta?”

“Se você não quiser, então...” Ivan começou a puxar as mangas de volta, mas
eu arranquei a jaqueta de suas mãos e a puxei sobre meus ombros. Se eu tivesse que
estar aqui fora com um Muso, eu não iria congelar os meus peitos.

Os lábios de Ivan se curvaram no que poderia ter sido o começo de um sorriso.


“Fica bem em você.”

“Você está malditamente certo.” Eu me virei para admirá-lo. “Não espere tê-la
de volta.”

Passamos pelo gazebo. Ao luar, o lugar assumia um ar sinistro. Atrevi-me a


olhar para a casa, para as empenas que perfuravam o céu sem nuvens, dentes de um
demônio mordendo o céu. Por alguma razão, isso me fez pensar em minha mãe,
sozinha a quilômetros de distância, dentro do hospital. Estremeci e me virei para Ivan.
Eu estava morrendo de vontade de ficar sozinha com esse cara, para descascar as
camadas daqueles olhos de gelo, mas agora que éramos apenas nós dois, lutei para
encontrar algo para dizer.

“Você...” Eu tentei novamente. “É... quero dizer... desculpe.” Eu ri, e então me


senti estúpida. “Eu não sei o que dizer para o meu valentão que virou uma espécie
de... namorado?”

Ivan riu. O som era tão raro, tão inesperado, que me pegou desprevenida. “Por
favor, não se desculpe. Acho que você gostaria de falar sobre a cocaína.”

A cocaína. Sim, isso era certo. Eu nem tinha parado para considerar o fato de
que estava me envolvendo com alguém que poderia não estar apenas usando drogas,
mas traficando-as.

“As drogas não me pertenciam. Elas eram de Aroha. Todos nós queríamos
ajudá-la a desistir, e eu estava escondendo o pacote dela. Acabou sendo inútil, pois
ela simplesmente encontrou outro fornecedor.” Ivan suspirou. “Eu sei que você
colocou a cocaína no estojo do meu violino. E eu queria dizer que entendo por que
você fez isso.”

“Fiz isso porque você entrou no meu quarto depois que troquei a fechadura. E
vocês ainda estão tentando me convencer de que há um fantasma aqui.”

“E se eu te disser que nunca pus os pés no seu quarto até ontem à noite, você
acreditaria em mim?”

Eu considerei isso. Ele parecia tão sério, mas eu sabia que era uma questão de
lógica. Isso não podia ser verdade. “Mais ninguém poderia ter estado lá, a menos que
haja uma passagem secreta entre o meu quarto e algum outro lugar da casa, como o
depósito.”

“Não tenho a chave do depósito. Madame Usher nunca permitiu que nenhum
de nós fosse até lá. Ela sempre fala de ‘Saúde e Segurança’, ou algo assim.”

Uhmmm. Por que eu nunca percebi que tinha uma queda por sotaques do Leste
Europeu?
“Mas isso é interessante.” Ivan olhou para frente. “Uma passagem secreta. Todos
nós devíamos procurar por uma.”

“Então, se não foi você, quem é que está tocando música através da parede e
pisando no andar de cima e acendendo e apagando a luz do meu quarto?”

Ivan ergueu uma sobrancelha em uma expressão que era muito parecida com
Dorien. “Camundongos, talvez?”

Eu bati em seu ombro.

A essa altura, havíamos chegado ao jardim venenoso. E enquanto o caminho


estava delineado com os ruídos da floresta; corujas piando, roedores deslizando na
terra e insetos cantando, nada se movia naquela clareira. Era como se tudo o que
vivesse soubesse dar à estufa um amplo espaço. Ivan olhava para frente. “Você sabia
que Madame Usher ainda é nossa guardiã?”

“Isso... não faz nenhum sentido.” Por que ele precisaria de um guardião? Ele já
tinha seus vinte e poucos anos.

“Eu disse que Elena e eu não viemos de uma família rica, mas nossa casa era
sempre cheia de música. Nosso pai dominava todos os tipos de instrumentos,
principalmente violino, e ele tocava canções folclóricas romenas para os turistas que
visitavam nossa aldeia todo verão. Herdamos dele os nossos talentos. Eu sempre fui
bom, mas Elena... ela foi tocada pelos dons do zâne.”

“Zâne?”

“É como uma espécie de fada madrinha nas histórias romenas. Os zâne vivem
nos bosques e nas montanhas e visitam mulheres grávidas para presentear seus filhos
ainda não nascidos com os dons da dança, da música, da beleza ou da sorte. Minha
mãe acreditava ter recebido a visita de uma dessas fadas, e é verdade que quando
Elena começa a tocar, as pessoas sentam e ouvem. Ela praticamente evoca magia com
sua música.”

“Eu sei.” Eu sorri, pensando na primeira vez que ouvi Elena tocar.
“Meu pai nunca trouxe muito dinheiro para casa, e o que ele conseguia era gasto
em bebida e cigarros. É por isso que minha mãe trabalhava em vários empregos e
lavava roupa, sempre economizando. Ela conseguiu comprar uma casa em nossa
cidade com um quarto vago para alugar aos hóspedes. Nosso governo tinha anunciado
planos para construir um parque temático do Drácula perto de nossa casa, e todos
estavam comprando propriedades para lucrar com o fluxo de turistas quando o parque
fosse inaugurado.”

“Lembro-me de ouvir sobre esse parque. Mas o projeto não foi cancelado?”

Ivan assentiu. “Muitas pessoas reclamaram. Disseram que era brega e que seria
construído sobre as cinzas de uma antiga floresta de carvalhos. Os historiadores
notaram que, embora nosso herói Vlad Tepes, o cara que inspirou o vampiro original,
tenha nascido em minha cidade, não tinha nenhuma ligação com o Drácula da ficção,
e muitos romenos não gostam da confusão entre os dois. O príncipe Charles da Grã-
Bretanha se envolveu na questão e o governo decidiu que o projeto não aconteceria.
Mas isso deixou muitas pessoas sem esperança de um futuro melhor dentro do
turismo, incluindo meus pais, que deviam muito dinheiro ao banco por aquela casa
que não podiam preencher.”

Era maravilhoso ouvir Ivan falar. Eu balancei a cabeça para ele continuar.

“Não tivemos escolha, Elena e eu começamos a trabalhar. Meu pai nos tirou da
escola e nos levou para Bucareste, porque mais turistas equivalem a mais dinheiro.
Ficávamos parados na esquina dos prédios do Parlamento e tocávamos música
durante seis horas por dia. Até que notei uma mulher sentada do outro lado da praça,
nos observando. A mesma mulher, dia após dia, envolta em uma pele mesmo sob o
sol forte. Um dia, meu pai apareceu para nos buscar e ela se aproximou dele com o
marido. Ela disse que tinha uma escola de música nos Estados Unidos e que lhe
ofereceria um pagamento anual se pudesse nos levar com ela e gerenciar nossa
carreira. Ela atuaria como nossa agente. E assim, ela continuou pagando ao meu pai
a mesma quantia insignificante todos os anos enquanto ganhava dezenas de milhares
em cima dos nossos shows e gravações. Fizemos várias turnês pela Europa e pela
Ásia, mas não temos um centavo em nossos nomes.”

“Não acredito.”

“Ela diz que depositou parte do dinheiro para nós, mas não podemos acessá-lo
até que tenhamos vinte e cinco anos. Isso é daqui a dois anos. Até então, ela é nossa
proprietária. A única coisa que ela não pode controlar é o Broken Muse, e mesmo
assim ela exerce sua influência no grupo de outras maneiras. Você pode pensar que
é o caso de caridade desta escola, mas não é a única. Eu queria que você soubesse
porquê... Porque pode ser perigoso estar comigo, e você deve considerar isso antes de
escolher estar junto de mim.”

Ivan enfiou as mãos nos bolsos da calça, o rosto virado para longe de mim, em
direção à lua. Ele parecia meio exausto depois de falar tanto.

Paramos em frente à estufa. Ivan passou um braço em volta do meu ombro e


me puxou para perto. Olhei para as trepadeiras que escapavam do vidro quebrado,
para as formas bulbosas que se contorciam e se projetavam contra as laterais da casa.
Um arrepio me percorreu quando pensei novamente em minha mãe e nos médicos
trabalhando para livrar seu sistema de todo aquele veneno.

“Porque estamos aqui?” Eu respirei.

Em resposta, Ivan se virou para mim. Ele estendeu a mão, seus dedos roçando
minha bochecha enquanto colocava uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha.
O mundo pairava entre nós, suspenso em um momento onde tudo era perfeito.

“Eu queria ficar sozinho com você. Queria saber que a conexão entre nós é mais
do que apenas negócios inacabados entre você e Dorien.”

Suas palavras doíam de desejo, com uma necessidade desesperada que torceu
meu coração. Quando os lábios de Ivan roçaram os meus, deixei os pensamentos ruins
irem embora, liberando-os no ar fresco. As montanhas os arrancaram de mim
enquanto Ivan me envolvia em seu calor. Longe de ser gelado, seu beijo era doce e leve
e incrivelmente lindo.
Um farfalhar nas árvores me tirou do meu devaneio. Meus olhos se abriram. Eu
peguei um movimento atrás do ombro de Ivan e me afastei quando Aroha saiu das
sombras, um cigarro pendurado em seus lábios.

“Só vim aqui para fumar,” ela zombou, batendo em seus bolsos para pegar um
isqueiro. Eu endureci quando ela se aproximou. Achei que éramos... Não exatamente
amigas, mas tínhamos um entendimento mútuo. Isso, era claro, foi antes de ela tentar
queimar minha mão.

Ivan estreitou os olhos. “Não chegue perto de Faye novamente.”

Aroha riu, jogando o cabelo por cima do ombro. Ela entrou na sombra da estufa
e colocou a mão em concha ao redor do cigarro enquanto tentava acender a fumaça.
“Você acha que tem algum poder aqui, Ivan?”

“Acredite, eu não me importo com o que ela pode fazer comigo.” As mãos de Ivan
se fecharam em punhos, e ele deu um passo em direção a Aroha. Agarrei seu braço,
e meu toque pareceu estabilizá-lo. Porque eu sabia que ele falava a verdade, ele não
se importava consigo mesmo. Mas Madame Usher sabia disso, e se ele saísse da linha,
ela iria atrás de Elena.

Se já não estivesse.

“Tanto faz.” Aroha finalmente conseguiu acender sua fumaça. Ela deu uma
longa tragada, jogando a cabeça para trás. “Não é nada pessoal, Faye. Eu tenho que
sobreviver aqui assim como você, e às vezes isso significa me aliar a uma vadia como
Heather. Um pequeno aviso para você, no entanto; eu ficaria longe dela. Ela ainda não
terminou com você.”
“Estudantes, um evento muito especial acontecerá para marcar o fim do
semestre.”

Meu garfo estava a meio caminho da minha boca. Eu sabia agora que Madame
Usher via seus 'eventos especiais' como novas maneiras de me atormentar. Não ousei
olhar para nenhum dos Musos, uma vez que tinha certeza de que algo em meu rosto
revelaria as coisas que estávamos fazendo juntos em segredo.

“É outra visita de um de seus amigos na Europa?” Heather perguntou, sua voz


alta com entusiasmo.

“É ainda melhor.” Eu assisti com os cílios abaixados enquanto Madame Usher


passava um envelope folheado a ouro para Dorien. Ele abriu a aba e tirou um convite
elegante de dentro. “Harrison foi até a cidade para postar uma centena desses convites
para alguns dos meus amigos mais influentes do ramo, incluindo todos os seus pais.
Vamos dar uma festinha aqui em Manderley.”

Os dedos de Dorien escorregaram e o papel caiu em sua sopa. Madame Usher


não pareceu notar.

“Estou satisfeita com o progresso que vocês fizeram este ano e quero mostrar
isso a todos vocês. Haverá muitas pessoas importantes, maestros, produtores,
patronos e jornalistas, para vocês impressionarem. Maestro Radcliffe, talvez você
possa fazer sugestões para a sequência de músicas.”

“Certamente.” O maestro sorriu para cada um de seus alunos, aparentemente


inconsciente da tensão crepitando ao redor da mesa. “Heather e Elena, farão sonatas.
Elena e Ivan devem abordar a peça de Liszt em que estão trabalhando. Dorien e Faye,
gostaria que interpretassem a composição que Faye escreveu. Titus, Aroha, Faye e
Elena vão nos deliciar com um pouco de Beethoven, e então terminaremos com a
estreia mundial do meu mais novo concerto.” Seus ombros se endireitaram com
orgulho. “A partitura já está pronta. Vocês devem começar a aprendê-la hoje.”

Heather dominou a conversa sobre a festa, jorrando palpites sobre as escolhas


do Maestro. Madame Usher ofereceu a Aroha uma doação do fundo de seu marido
para pagar os voos de seus pais da Nova Zelândia. Percebi que nenhuma menção foi
feita a fazer o mesmo por Elena e Ivan.

Fugi o mais rápido que pude para a segurança da deserta Sala Vermelha. Mas
não seria segura por muito tempo. Elena entrou no meu santuário particular,
escolhendo o assento perto da janela novamente. Não havia vestígios da garota
quebrada se escondendo nas sombras desta vez. Ela sorriu enquanto eu tocava
minhas partes do concerto de Radcliffe até que eu tivesse certeza de que as tinha
interpretado perfeitamente.

Larguei meu violino. “Por que você está aqui, afinal? Madame Usher ou Heather
mandaram você?”

Elena abriu a boca, como se fosse falar alguma coisa, então a fechou. Em vez
disso, ela balançou a cabeça.

Eu avancei, mãos nos quadris, pairando sobre ela. “Então, porquê?”

Os olhos de Elena se arregalaram de medo enquanto ela olhava para mim. Não,
não para mim. Atrás de mim. Eu me virei.

A porta estava aberta. Elena deve ter esquecido de trancá-la depois que entrou.
Ivan estava parado ali, sua expressão dura.

“Elena.” Ele gesticulou para ela e latiu algo em romeno. Ela balançou a cabeça.
Ele repetiu o comando.

“Você não é o meu chefe,” ela anunciou com uma voz altiva, levantando-se. Ela
flutuou pela sala para encará-lo, e me lembrei do que ele me contou no jardim, sobre
a mãe deles sendo visitada pelas fadas.

Elena mostrou a língua para o irmão e bateu à porta na cara dele.


“Por favor, toque para mim o concerto novamente,” disse ela, cruzando as mãos
no colo e se acomodando com um olhar satisfeito em seu rosto de fada.

Elena não era a única agindo de forma estranha. Desde que Maestro Radcliffe
nos disse que tocaríamos juntos no recital, Dorien dava desculpas para não praticar
comigo. Finalmente, eu o encurralei. “Eu sei que você não dá a mínima para o que
seus pais pensam de você, mas eu preciso que tudo corra bem nessa festa. Se você
não estiver disposto a tocar comigo, eu me apresentarei sozinha.”

Eu não tinha o poder de tomar essa decisão, e nós dois sabíamos disso, mas os
ombros de Dorien caíram. Ele me lançou um sorriso tingido de tristeza nas bordas, o
tipo de sorriso que poderia quebrar o coração de uma garota em um milhão de
pedaços. “Eu vou me comportar, Duende. Eu prometo.”

Enquanto tocávamos a peça, pude dizer que sua cabeça estava a um milhão de
quilômetros de distância. Seu dedilhado não tinha a desenvoltura usual, e o resultado
foi duro, desprovido da emoção que eu precisava desesperadamente transmitir na
peça.

Eu arranhei o arco nas cordas, criando um guincho poderoso que ecoou pela
sala. Dorien pulou, seus dedos caindo sobre as teclas.

“Porra.” Ele bateu na tampa do piano.

“Bom, isso pelo menos chamou sua atenção.” Eu olhei para ele. “Eu disse para
você não estragar isso para mim. No entanto, aqui está você, fodendo tudo.”

“Eu sei.” Dorien descansou a cabeça nas mãos. “São os meus pais. Já toquei
para multidões em shows esgotados em algumas das maiores salas de concerto da
Europa e da Ásia sem suar a camisa, mas o pensamento de tocar na frente deles com
você…”
“Apenas me diga o que está te deixando todo torcido para que você possa chorar
sobre isso e superar logo. Eles provavelmente nem me reconhecerão depois de todos
esses anos.”

Dorien balançou a cabeça. “Eles vão se lembrar de você. Eles se lembram de


tudo. E eles vão querer saber por que estou tocando com você e não com Heather.
Porra.” Ele bateu o punho na tampa novamente. A tensão em seus ombros poderia
arrebentar sua musculatura.

“Talvez eles não venham?” Tentei. “Se eles são tão adeptos dessa coisa de culto
como você diz, então talvez eles não saiam de casa para desfrutar de um simples
recital?”

“Eles virão. Madame Usher se certificará disso.” Os olhos de Dorien brilharam.


“Eu não posso esconder você deles, e Heather não vai me deixar fingir ser o namorado
dela. Ela quer o negócio real. Eles vão nos encurralar em um canto, e saber de tudo
em um minuto.”

“Eu gostaria que você apenas me falasse a verdade em vez de falar em enigmas.
Eu posso ajudar, você sabe. Eu sou bastante inteligente.”

“Você é.” Dorien levou minha mão aos lábios e deu um beijo ardente em meus
dedos. “Mas agora, a verdade é perigosa para você. A menos que eu encontre uma
maneira de convencê-los... Sim.” Uma faísca de brilho cintilou através da tempestade
em seus olhos. “Acho que tenho uma maneira de fazer isso dar certo, para todos nós.”
A casa inteira vibrava de excitação com o recital. Aroha praticamente dançou e
cantou canções tradicionais Maori quando ouviu que seus pais viriam. Heather
parecia ter declarado uma trégua comigo e com os Musos, ou pelo menos, ela estava
muito ocupada focada em melhorar sua forma de tocar para colocar qualquer esforço
em suas tentativas de tortura contra mim.

Elena entrou na minha sala de prática novamente.

“Você toca lindamente,” ela sussurrou depois que terminei minha composição
ainda sem nome.

Eu bufei. “Sim. Quando as pessoas não estão escondendo meu instrumento ou


arruinando minhas performances.”

Elena assentiu, mas não ofereceu nenhum tipo de pedido de desculpas ou


explicação. Pessoas como ela quase nunca precisavam fazer isso.

“Você quer alguma coisa?” Eu bati as palavras, tentando mostrar a ela que eu
não seria intimidada por sua beleza como os outros.

Elena estremeceu. “Eu quero acompanhá-la. Tudo bem?”

As palavras 'Vá para o inferno' dançaram na ponta da minha língua. E por um


momento, eu saboreei a satisfação de negar algo à Elena Perfeita, de ver seu rosto
quando ela finalmente percebesse que o mundo inteiro não se curvava
automaticamente aos seus caprichos.

Mas foi ela quem avisou os Musos sobre o ataque de Heather. E eu estava tão
desesperada para conversar com alguém, qualquer um. Não precisava nem mesmo
ser um amigo, apenas alguém próximo a um amigo. Esta era a primeira vez desde que
eu tinha fumado cigarros com Aroha que alguém em Manderley me estendia a mão.
Dorien e os Musos não contavam porque nem sempre eu podia dizer o que estava se
passando em suas cabeças fodidas.

Dei de ombros. “Sim, claro.”

Elena caminhou até o piano e abriu a tampa, levantando as mãos para as teclas
com seus pulsos macios, como uma bruxa conjurando um feitiço. Sem me perguntar
o que eu queria tocar, ela se lançou na Sonata para Violino nº 9 de Beethoven, uma
peça que eu amava por sua beleza crua e riqueza de cor musical que Beethoven dava
a todas as suas peças.

Ela diminuiu o ritmo para algo mais lento do que eu estava acostumada, dando
à abertura um ar ainda mais melancólico. Quando ela alcançou o primeiro ato, seus
dedos dançaram ao longo das teclas com uma leveza impossível, como uma borboleta
esvoaçando entre as flores. Tentei combinar com seu estilo hábil e leve, mas era difícil
manter o ritmo com ela.

No meio do caminho, enquanto o suor se acumulava na minha testa e meus


dedos quase escorregavam das cordas durante um compasso particularmente difícil,
percebi que isso era um teste. Uma espécie de iniciação de Manderley. Mas algo mais
me ocorreu que fez um sorriso brincar no meu rosto.

Estou tocando com Elena Nicolescu. A Elena Nicolescu, filha das fadas romenas,
que um dia se tornará a maior musicista clássica de nossa época. Objetivo de vida
alcançado aqui.

Enquanto tocávamos, eu lancei um olhar furtivo para ela, admirando a forma


como seu pescoço gracioso se esticava enquanto ela jogava todo o seu corpo na
performance, o posicionamento de seus dedos nas teclas, a perfeição de cada
movimento. Elena vivia a música de uma forma que me impressionava e me
aterrorizava um pouco.

Chegamos ao movimento final, um acorde de Lá maior esmagado no piano, e


então subimos juntas, terminando em um floreio jubiloso de contraste e luz. Joguei
meu arco no chão em triunfo. As mãos de Elena deslizaram das teclas. Eu sorri para
ela. Um leve sorriso puxou o canto de seus lábios, seu impulso quebrado pelas
lágrimas que escorriam por seu rosto.

“Elena, você está bem?” Eu deslizei para o banco com ela. Havia algo nela, certa
inocência, aqueles olhos de fada, que me fizeram instantaneamente querer cuidar
dela.

Ela balançou a cabeça, enxugando os cantos dos olhos com os dedos. “Eu sinto
muito. Eu não sei o que deu em mim. Eu...”

“Se você quiser falar sobre alguma coisa, eu estou ouvindo.” Olhei para a porta,
me perguntando sobre o significado da fechadura. Ela sempre trancava a porta
quando vinha me ver. Era para manter alguém fora? Seu irmão, talvez?

Lembrei-me da conversa áspera deles ao pé da escadaria. Alguma coisa ruim


estava acontecendo entre eles?

Elena fungou. Ela deve ter percebido minha pergunta implícita, porque disse:
“Ivan gosta muito de você. Eu posso ver o porquê.”

“É por isso que você tem vindo me ver?”

Ela assentiu. “Ele nunca demonstrou interesse por uma garota. Nunca. Eu
queria ter certeza de que você era boa o suficiente para ele. Mas agora estou me
perguntando se ele é bom o suficiente para você.”

Uma batida soou na porta. “Elena?” Era o Mestre Radcliffe. “Você está aí? Desejo
que você passe por Brahms novamente.”

Graciosa como um gato, Elena se levantou. Ela enxugou o rosto na bainha do


vestido de verão e, quando baixou o tecido, sua expressão era vazia, serena. Eu a
reconheci pelo que era, uma máscara.

Todos usávamos máscaras em Manderley. Parecia que a única vez que nos
desnudávamos era quando tocávamos. Elena não precisava me dizer o que estava
errado, porque há poucos momentos ela apenas tocou sua tristeza para eu ouvir.
“Eu devo ir,” Elena sussurrou. Ela saiu da sala tão graciosamente quanto fazia
todo o resto, mas havia uma fragilidade em seu movimento que traía seu terror.

Do que ela tinha tanto medo?


Depois disso, Elena começou a frequentar mais minhas práticas. Tocamos
juntas Beethoven, Brahms e um compositor romeno que ela adorava chamado George
Enescu. No horário das refeições, ela guardava o lugar ao lado dela na mesa, chegando
ao ponto de pedir a Heather que trocasse de lugar. O rosto de Heather quase explodiu
na hora, mas no final ela se moveu. Achei isso interessante.

Elena raramente falava comigo, mas cada gesto demonstrava um desejo tácito
de quebrar o silêncio que Dorien havia imposto. Eu me perguntei se ele tinha feito
algum levantamento oficial de sua proibição, ou se todos tinham percebido a mudança
da dinâmica entre nós.

Eu sabia melhor do que esperar que este fosse o começo de uma amizade, mas
eu esperava que sim, de qualquer maneira. A solidão tinha um jeito de se infiltrar nos
ossos das pessoas.

Dois dias antes do recital dos pais, Elena entrou em nossa sala de ensaio, e com
que rapidez eu comecei a pensar nela como nossa, chegando ao ponto de escrever
nossos nomes no quadro de reservas. Suas bochechas estavam coradas de felicidade
e ela praticamente deslizou para o piano. Acho que nunca a tinha visto tão feliz.

“Você deveria vir conosco no próximo sábado,” ela anunciou.

Para o fim de semana depois da festa, Dorien, Elena e Ivan foram contratados
para fazer um recital em Nova York. Eles não queriam voltar para Manderley à noite,
então obtiveram permissão especial para ficar em um hotel. Para mim parecia uma
desculpa para festejar, e eu secretamente estava fervendo de ciúmes por isso, mas
nunca imaginei ser capaz de ir.
Eu balancei minha cabeça. “Eu tenho que limpar as salas de ensaio de cima à
baixo. É mais fácil quando vocês estão fora, pois há menos pessoas usando-as. Além
disso, mesmo se eu quisesse, Madame Usher nunca me deixaria ir.”

“Se eu pedir, ela vai ouvir.” Elena pegou minha mão. Eu praticamente podia
sentir sua excitação fervendo em suas veias. “Liguei com antecedência e solicitei que
você fosse adicionada ao recital. Vamos tocar Beethoven juntas. E também reservei
uma suíte para nós. Por favor, diga que irá. Estou cansada de fazer tudo com Ivan.
Eu quero ter algum tempo só de garotas.”

Além do fato de que uma noite longe de Manderley com meus três Musos
significava todos os tipos de possibilidades deliciosas, de jeito nenhum eu poderia
dizer não para Elena. Seria como chutar um cachorrinho.

Além disso... Esfreguei meus olhos vermelhos. Outra noite sem dormir ouvindo
trechos daquela música através da parede do quarto ao lado me fez desejar uma noite
de sono decente em uma cama não assombrada. Se isso fosse um filme de terror,
Freddy Kreuger já teria me sugado para o mundo dos sonhos.

Mas talvez eu estivesse em um mundo dos sonhos agora. Isso explicaria por que
três Musos querem me compartilhar.

O resto da semana passou como um borrão. Eu estava tão animada para o


recital que até limpar os banheiros e servir comida para crianças ricas e mimadas não
parecia tão ruim. Dra. Nelson ligou para dizer que os testes preliminares em mamãe
tinham sido extremamente promissores, e que eles estavam intensificando o
tratamento. Eu saberia em alguns dias se ela seria capaz de sair do suporte de vida.

E daí se Heather olhava para mim como se eu fosse um inseto? E daí se aquele
concerto detestável à meia-noite me mantinha acordada? Durante minha visita
semanal ao hospital, eu falei sobre Elena para mamãe, mas decidi deixar de fora todas
as coisas maliciosas sobre os caras. Eu não tinha certeza se ela gostaria de ouvir isso.
Até toquei para ela o segundo ato da nossa peça de Beethoven. Dra. Nelson e algumas
das enfermeiras entraram para ouvir e aplaudiram no final. Fiquei muito feliz em dizer
a elas que as pessoas não costumavam aplaudir música clássica.
Eu me arrastei para a cama na noite anterior à festa, meu estômago revirando
de emoção. Eu sabia pelo quadrado de luz brilhante da lua cheia e pelo zumbido em
minhas veias que eu lutaria para dormir.

Com certeza, eu me contorci nos lençóis e tentei forçar minha mente a desligar.
Contei Beethovens no lugar de ovelhas saltando sobre cercas. Imaginei ondas calmas
roçando uma praia de areia branca. Eu me toquei e pensei nos caras. Mas ainda
assim, minha mente foi em direção ao depósito, procurando por sinais de vida.

Depois da meia-noite, os passos começaram a andar pelas tábuas do assoalho.


Creak, creak, creaaaaak. Eu tinha que admitir a Heather, mesmo quando ela fingia
ser um espectro, ela se movia com uma certa musicalidade.

Em seguida, silêncio por um tempo. Muito tempo, tempo suficiente para eu


começar a me questionar novamente. Não eram passos, era apenas a velha casa se
instalando em suas dobradiças.

Eu tinha acabado de começar a adormecer quando o rangido recomeçou. Os


passos se moveram pela sala de armazenamento, então pararam. Esforcei-me e ouvi
outro som, como o raspar de um móvel. Então eu não ouvi mais nada por um longo
tempo, exceto meu coração martelando em meus ouvidos.

Então, a primeira nota triste soou.

Olhei para o meu telefone. 3h02 da manhã. E ainda assim, alguém estava
tocando novamente. A mesma melodia assombrosa, repetidas vezes. Vagamente
familiar, mas impossível de reconhecer.

Eu joguei as cobertas para longe, circulando o quarto e pressionando meu


ouvido nas paredes, tentando descobrir de onde a música vinha. Abri a porta e parei
no patamar, esforçando-me para ouvir. Não, não era alguém praticando lá embaixo.
Era definitivamente mais alto dentro do meu quarto.

Não faz sentido. Eu circulei o quarto novamente, me esforçando para ouvir onde
o som era mais alto. Não no banheiro. Definitivamente ao lado da cômoda, e ao redor
do cabideiro…
Meu estômago se apertou de medo. Eu posicionei minha orelha na parede. Um
tremor começou nas minhas pernas e percorreu todo o meu corpo.

A música soava através da parede, vinda do outro lado.

De dentro da sala de armazenamento trancada.


A música continuou.

Eu bati na parede. Não parou.

Às 4 da manhã, joguei os lençóis de lado uma última vez e deslizei para fora da
cama. Se eu não ia dormir, eu poderia muito bem me levantar e terminar minhas
tarefas.

Enquanto descia as escadas, usando meu telefone como lanterna, me esforcei


para ouvir o violino, mas era como se a música parasse do lado de fora do meu quarto.
A única vez que a ouvi em qualquer outro lugar da casa foi quando entrei nos
aposentos privados de Madame Usher. Eu não sabia o que isso significava, exceto que
ela provavelmente era a culpada por tudo isso.

Na cozinha, preparei linguiça picante, feijão e ovos mexidos para os burritos do


café da manhã. Um mimo para começar o dia da festa. Quando me inclinei sobre a
máquina de lavar louça, esvaziando-a dos pratos do jantar da noite anterior, a porta
da cozinha se abriu e Titus apareceu.

“Bela vista.” Ele mexeu as sobrancelhas de uma forma que me fez cair na
gargalhada.

Eu me endireitei, empurrando a bandeja de burritos no forno até precisar deles.


“Porque você acordou assim tão cedo?”

“Eu queria praticar um pouco pela manhã.” Ele acenou com a cabeça em direção
ao depósito de lenha. “Então ouvi você na escada e pensei que gostaria de alguma
companhia.”
Meu coração batia forte, mas desta vez não era de medo. Lembrei-me do que
Dorien disse sobre Titus querer me convidar para sair.

“Dorien e Ivan contaram o que aconteceu quando eu estava fora.” Seus olhos
escureceram. “Eu queria... Acho que queria dizer que você obviamente tem as mãos
cheias com esses dois, mas se você quiser adicionar um terceiro cara ao seu harém,
estou dentro.”

“Meu... harém?”

“Uhmmm.” Titus se inclinou para mim. Seus dedos percorreram meu braço,
levantando uma linha de fogo que queimou minhas veias. Ele se aproximou, sua
respiração beijando meu pescoço...

…até que ele pegou uma maçã da tigela atrás de mim, trazendo a fruta aos
lábios e dando uma mordida. Porra, como poderia o ato de comer uma maçã parecer
tão gostoso? Um arrepio percorreu meu corpo que não tinha nada a ver com a corrente
de ar que soprava pela janela.

Afastei-me de Titus até que minha bunda estava pressionada contra a máquina
de lavar louça. “Pode chocá-lo saber que não estou acostumada a esse tipo de atenção
vinda dos caras. Não tenho certeza do que fazer com um harém.”

“Você pode fazer o que quiser comigo.” Titus estava em cima de mim em um
momento, seu volume me cercando, bloqueando qualquer saída possível. Eu não me
importei. Nem um pouco. Agora era minha vez de arrastar meus dedos sobre a pele
de seu braço.

Seus olhos expressivos imploravam por mais. Mas ele não ia fazer um
movimento, ele queria que eu fosse aberta sobre o meu consentimento e controle da
situação. Este era seu pedido de desculpas, sua maneira de fazer as coisas certas
depois de ter estado no meu quarto. Ele queria devolver o meu poder.

Eu o peguei, colocando minhas mãos em sua camisa e arrastando-as até o


último centímetro de seu torso, até que nossos lábios se encontraram em um beijo
ardente.
Ele tinha o sabor fresco e azedo da maçã. Abaixo dele, seu aroma distinto de
mirra, almíscar e rosas salpicadas com orvalho matinal, me varreu para a pura força
de seu ser. Se Ivan era um elfo negro, então Titus era algum tipo de antigo deus da
floresta, escuro, caótico e ferozmente protetor.

Eu me afastei, lutando para respirar. “Eu realmente não quero parar, mas se
eu não terminar de fazer essa comida...”

Titus assentiu, mas não me soltou de seus braços.

“Você por acaso já ouviu música de violino tocando de madrugada?” Eu tentei


me libertar. “Eu ouço no meu quarto, mas em nenhum outro lugar da casa. Parece vir
do depósito, só que não é alto o suficiente para haver alguém tocando lá, e quando
saio para o patamar, não consigo ouvi-la pela porta. E ah, uma vez eu também a ouvi
nos aposentos de Madame Usher.”

Os olhos de Titus escureceram. “Nunca ouvi essa música. Mas eu tenho uma
explicação para isso, uma que você não vai gostar. Apenas... Considere quem
costumava ocupar o seu quarto.”

“Quem costumava...” Eu cruzei meus braços e olhei para ele. “Estou muito
cansada e estressada para enigmas. Explique.”

“Dorien não te contou? Clare tocava violino.”

“Clare? Você quer dizer, a empregada morta?”

Titus assentiu. “Ela era talentosa. Trabalhava para Madame em troca de aulas
gratuitas. A única hora em que ela podia praticar era tarde da noite, quando todos
nós já tínhamos ido dormir. Eu sei que você não acredita em fantasmas, mas…”

...mas por que eu ouvia a tal música misteriosa na calada da noite, música que
só podia ser ouvida dentro do meu quarto?

É impossível. Não pode ser.

Fantasmas não são reais.

São?
Eu cantarolei alguns compassos de 'Confessions of an Opium Eater' baixinho
enquanto abotoava uma de minhas camisas barrocas, debatendo se deveria optar pelo
traje completo com minha sobrecasaca sob medida. Eu nunca me senti tão alegre ao
ver meus pais, mas pela primeira vez em décadas, meu coração estava leve. Eu tinha
um plano. Eu poderia consertar tudo. Eu poderia tornar a vida melhor para todos nós.

Faye era minha.

Minha, de Titus e de Ivan, eu me lembrei. Mas eu não me importava de


compartilhá-la por enquanto. Se alguém podia lidar com os três de nós, esse alguém
era Faye De Winter. Além disso, ela iria me escolher no final. Faye e eu fomos escritos
nas estrelas.

Ela voltou para a minha vida por causa de um completo acaso, e eu não iria
deixá-la ir novamente.

Houve uma batida na porta. “Entre.” Terminei de dar o nó na minha gravata.


“Eu tenho... Heather?”

Eu esperava ver as lindas curvas de Faye passando pela porta. Em vez disso,
Heather invadiu o interior, seu nariz aprumado erguido no ar. Ela fechou a porta atrás
dela, enfiando o ferrolho na fechadura.

“Dorien, precisamos conversar.”

“Já disse tudo o que tinha a dizer a você.” Eu me virei para o espelho e agitei
minha mão como se estivesse afastando um inseto irritante, o que Heather
definitivamente era. Uma barata. Ou um escaravelho.
Heather não gostou nem um pouco disso. O sorriso falso caiu de seus lábios,
substituído por uma carranca que não fazia nada para melhorar sua aparência.

“Eu sei o seu segredo,” ela sussurrou. “Eu sei tudo sobre o que está acontecendo
em Valencourt Manor. Ou devo chamar de O Templo das Verdades Terrenas?”

Meu sangue congelou em minhas veias. Essa era a primeira vez que eu ouvia
esse nome sendo pronunciado fora das paredes da minha casa.

Não adiantava fingir que eu não sabia do que ela estava falando. Eu me virei,
fixando-a com o que eu esperava que fosse um olhar aterrorizante, mesmo quando
meu coração batia forte contra meu peito. “Como?”

Heather veio atrás de mim, colocando as mãos nos meus ombros. “Não importa
como. O que importa é que eu tenho a informação. E ainda estou decidindo o que
fazer com ela.”

“O que você quer, Heather?”

“Não é óbvio? Você não precisa estar em Manderley, Dorien. Você é talentoso
demais para ficar definhando dentro dessas paredes. Mestre Radcliffe não tem nada
novo para lhe ensinar. Você precisa voltar aos holofotes, onde realmente pertence. E
você deve ter a mulher certa ao seu lado enquanto faz isso.”

Heather se inclinou para lamber minha orelha. Eu não pude parar o


estremecimento de asco que disparou pelo meu corpo ao seu toque. “É o que seus pais
queriam.”

“Eu não me importo. Eu não vou fazer isso.”

“Você vai fazer isso,” Ela sussurrou. “Ou vou denunciar seus pais às
autoridades. E onde isso vai levar seu irmão?”

Merda. Porra. Merda.

Ela sabe. Como ela pode saber?

“Deixe-o em paz,” eu assobiei. “Ele não tem nada a ver com isso.”
“Tsk, tsk. Tudo isso é culpa sua, Dorien. Você não deveria ter perdido a calma.
Tudo piorou desde então. Alguém com uma condenação criminal grave não pode ser
nomeado guardião de longo prazo. Felizmente, como amiga de longa data da família e
com um histórico impecável, ficarei feliz em assumir a guarda.”

“Fique longe dele,” eu rosnei.

“E o temperamento ressurge novamente. Vá em frente, Dorien. Bata em mim.


Adicione outro ataque ao seu registro. Tudo o que você vai fazer é me dar mais
munição. Vou tirar seu irmão de você, e o que mais você terá? Faye, aquela puta lixo,
para aquecer sua cama? Espero que você tenha tomado todas as doses das suas
vacinas, para não contrair nenhuma doença.”

Sentei-me no parapeito da janela, minha cabeça girando. “Você fez o seu ponto,
Heather. Diga-me os seus termos.”

“Faye não vai tocar com você. Meus pais dão muito dinheiro para esta escola e
esperam certos padrões. Eles não aceitarão mais ninguém ao seu lado, especialmente
não uma novilha empregada. Ela vai renunciar, e você e eu vamos tocar juntos em vez
disso.”

“Você não pode tocar a composição de Faye.”

“Por favor. Modéstia não combina com você. Não tem como aquela vaca gorda
ter escrito algo assim. A música tem Dorien Valencourt estampado por toda parte.”
Ela parou na frente do meu espelho, virando o corpo para se admirar. “Ou deveria
dizer, Dorien Valencourt e Heather Danvers.”

“Faye não vai deixar você se safar disso.”

“Ela não terá escolha.” O sorriso de Heather poderia ter congelado um pinguim.
“Pretendo fazer com que Faye De Winter nunca mais ponha os pés em Manderley. E
você vai me ajudar. Ou então nunca mais verá seu irmão.”
Quando desci para a cozinha para terminar a preparação da festa, notei vários
sanduíches e almôndegas faltando em uma das travessas.

Gah. Tenho que lembrar de dizer aos rapazes que não roubem mais comida. Se
eles estiverem com tanta fome assim eu posso dar a eles algo para devorar.

Argh. Eu sorri estupidamente para mim mesma. Algumas noites com Dorien e
Ivan e até meu monólogo interno ficou imundo.

Eu embaralhei as almôndegas ao redor, mas agora eu tinha uma grande lacuna


na lateral de um dos pratos. Eu quebrei meu cérebro para pensar em algo simples
para preencher o espaço. Eu vi alguns biscoitos na parte de trás da despensa. Se não
forem velhos, seriam perfeitos.

Cantarolando Beethoven para mim mesma, fui até a despensa e coloquei as


caixas de lado, jogando qualquer coisa que cheirasse mal fora. Ao afastar uma caixa
gigante de sal, notei algo manchado na parede perto do fundo da prateleira, meio
escondido na escuridão. Peguei meu telefone e iluminei a parede.

O que eu pensava ser uma mancha de ketchup ou algo assim eram palavras
rabiscadas em marcador de quadro branco com a mesma escrita que um dia esteve
no quadro de avisos. A letra de Clare.

As palavras me gelaram até os ossos.

AS PAREDES ESTÃO FALANDO.


As paredes estão falando.

O que diabos isso significava?

Clare escreveu lá por uma razão. Ela sabia que a próxima empregada iria
encontrar. Ninguém mais teria motivos para ir até o fundo da despensa.

Era uma mensagem para mim.

Olhei novamente para as palavras, e meu estômago revirou. Senti medo tantas
vezes na minha vida que pude reconhecer o terror em suas palavras. Quando Clare
escreveu essa frase, ela estava sentindo medo.

E então ela caiu da escada.

Eu acreditava na história de Dorien, ele já estava na metade da escada quando


ela caiu. Eu não acreditava que ele a tinha matado. Então, de quem Clare tinha tanto
medo? Por que ela escreveu isso?

Alguém poderia tê-la empurrado?

Eu me levantei e escapuli pela porta sob as escadas para o hall de entrada.


Minhas botas pisaram no tapete grosso enquanto subia ao primeiro andar. Do alto da
escada, olhei para os dois lados do corredor e meu coração afundou. Não havia
nenhum vaso ou peça de mobília antiga e feia, grande o suficiente para alguém se
esconder atrás, nenhuma cortina convenientemente colocada. Os aposentos de
Madame Usher ficavam bem no final do corredor. Dorien teria visto outra pessoa
parada no corredor quando ele passou por aqui. Não haveria tempo suficiente para
alguém chegar ao topo das escadas e empurrar Clare.
Eu não conseguia ver como alguém poderia ter a empurrado, e ainda assim...
Eu tinha certeza de que sua morte não foi um acidente. Então, o que diabos aconteceu?
Trabalhei o dia todo, esfregando o salão de baile antes da festa e pensando na
mensagem de Clare. Madame Usher exigia que tudo fosse perfeito, mas obviamente,
ela se recusou a contratar ajuda extra ou pedir aos outros alunos que levantassem
um dedo. Ivan e Titus entraram na cozinha enquanto eu preparava a comida e me
prenderam na despensa por meia hora. Dorien passou por mim no corredor com uma
pilha de toalhas limpas para os banheiros de hóspedes, e não vendo mais ninguém
por perto, beliscou minha bunda.

No momento em que terminei tudo da minha lista, eu mal conseguia arrastar


meus pés escada acima para colocar meu vestido de concerto. Deixei a luz do sótão
acesa para mim, mas o fantasma bastardo a desligou. Enquanto eu caminhava em
direção ao meu quarto, uma rajada de ar gelado me envolveu, tirando o ar dos meus
pulmões.

Esquisito. Aqui nunca fazia tanto frio assim.

Desconforto formigou na parte de trás do meu pescoço. Eu odiava estar aqui,


sabendo que havia alguém na casa tentando me assustar. Era quase melhor quando
eu pensava que os Musos eram os responsáveis por minha ‘assombração’. Agora, no
entanto…

Ignore isso. É uma rajada de ar frio vinda de algum outro lugar da casa.

Procurei a chave no meu bolso. Quando minha mão se fechou em torno dela,
alguém saiu das sombras à minha frente, enviando uma nova onda de gelo ao redor
do meu corpo.

“O que...” Mas eu não conseguia formar as palavras. Minha respiração morreu


na minha garganta.
O cabelo castanho preso em um coque. Esse nariz de botão. Olhos que antes
brilhavam com vida, mas agora ardiam de ódio.

Clare.

Ela olhou para mim, sua cabeça torcida para o lado em um ângulo impossível,
uma sobrancelha levantando em uma expressão medonha.

Através de sua pele, o vão de madeira da minha porta era visível.

Corre. Eu me ordenei. Você tem que correr.

Mas permaneci congelada de terror.

O silêncio se estendeu entre nós. Clare abriu os lábios, mas nenhum som saiu,
sua boca se abriu em um poço de escuridão aterrorizante que engolia toda luz e
esperança.

Eu cambaleei para trás, meu peito explodindo de pânico. Sombras saíram da


boca de Clare e circundaram seu corpo, alcançando, agarrando, rastejando em minha
direção. Uma agarrou meu braço.

Mas antes que eu pudesse me livrar de seu aperto, algo quente e duro se fechou
em volta da minha boca, pressionando um pano perfumado entre meus lábios.

Então, tudo ficou preto.

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