Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Converted by convertEPub
Annie Ernaux nasceu em Lillebonne, na Nor-mandia, em 1940, e estudou nas
Letras (2019) pelo conjunto da sua obra, destacam-se os seus livros Um Lugar
Annie Ernaux
4099-023 Porto
Portugal
www.portoeditora.pt
ISBN 978-989-711-081-8
Nous deux – a revista – é mais obscena do que Sade.
ROLAND BARTHES
1
Este verão vi pela primeira vez um filme pornográfico no Canal + .
vaivém dos dois sexos foi mostrado sob diversos ângulos. A verga
olhar sem quase morrer, e agora é tão fácil de ver como um aperto de
mãos.
do juízo moral.
1
Canal +: canal privado de televisão. (N. da T.)
A partir do mês de setembro do ano passado, não fiz mais nada a não
uma longa habituação a esses atos teria sido impossível, a não ser com
das minhas atividades, dos filmes que tinha visto, das pessoas que tinha
escrever-lhe cartas
passávamos juntos
país de onde vinha, com os sítios onde tinha ido. A pessoa que estava a
falar comigo nem suspeitava que o meu intenso interesse súbito por
aquilo que me dizia não tinha nada que ver com a sua maneira de contar,
e era muito pouco por causa do tema em si, mas prendia-se sim com o
facto de que um dia, dez anos antes de eu o ter conhecido, A., numa
ser aquilo que qualquer atividade tinha sido para mim durante um ano,
pegar lentamente no aparelho e dizer está. Descobrindo que não era ele,
caía numa tal deceção que passava a odiar a pessoa que estava do outro
algum prazer no sexo), cheia de uma energia febril para tarefas que eu
passar a esfregona. Já não sabia quem esperava. Era apenas engolida por
entrada de cimento.
que ia ter de fazer, os jantares em casa de amigos onde teria de ir, antes
de o voltar a ver. O que eu queria era não ter de fazer nada a não ser
esperar por ele. E vivia num pânico crescente de que acontecesse fosse o
que fosse que impedisse o nosso encontro. Uma tarde, quando chegava a
casa de carro e ele devia chegar uma meia hora depois, pensei
1
parava.»
Também não queria, de certo modo, desviar a atenção para uma coisa
que não fosse esperar por A.: para não estragar isso. Muitas vezes,
escrevia numa folha a data, a hora e «ele vai chegar», e outras frases,
outros medos, de que ele não viesse, ou de que ele me desejasse menos.
À noite pegava outra vez nessa folha, «ele veio», e anotava
dois tinha havido palavras, gestos, que tornavam qualquer gesto irrisório,
nada de mais importante na minha vida, nem ter filhos, nem as melhores
classificações nos concursos, nem as viagens mais longas, nada a não ser
olhava para o relógio que estava pendurado por cima da porta, «já só
faltam duas horas», «uma hora», ou «daqui a uma hora estou eu aqui e
está o presente?»
relação, mas que era também essa acumulação de gestos e de prazer que
francês, ou então não lhe apetecia utilizá-las porque não estavam, para
2
RER , no supermercado, ouvia a voz dele murmurar «acaricia-me o sexo
com a tua boca». Uma vez, na estação de Opéra, mergulhada nos meus
sempre uma toilette diferente. Cinco minutos era o tempo que ele tinha
para ver a blusa ou os sapatos novos que iam ser abandonados num sítio
perante um desejo novo que ele sentisse por outra mulher. Mas aparecer
pensei que não me importava de morrer depois de ter ido até ao fim
1
Frequentemente ponho lado a lado um desejo e um acidente em que sou eu a agressora ou a
vítima, qualquer coisa mais ou menos trágica. É uma maneira bastante segura de medir a força
do meu desejo – talvez de desafiar o destino, também –, isso de saber se, imaginariamente, aceito
pagar o preço: «Não me importo que a minha casa arda se conseguir acabar o que estou a
escrever.»
2
O Réseau Express Régional é uma rede do Metropolitano de Paris destinada a servir a zona
que faziam para viver assim, quer dizer – segundo a minha existência
anterior – sem terem nada para esperar a não ser o fim de semana, ir
que confessasse estar a viver, ou ter vivido, «um amor louco com um
falta de cuidado, por menor que fosse. Essas conversas em que eu tinha
nenhuma. Mas eu teria preferido que para os meus filhos esta história
lhes estão, de um ponto de vista carnal, mais próximos, e lhes são para
momentos, elas não contam mais do que para uma gata impaciente por ir
1
atrás dos gatos velhos.
1
Na Marie-Claire, os jovens, entrevistados, condenam sem apelo os amores da mãe separada ou
divorciada. Uma rapariga diz, com rancor: «Os amantes da minha mãe só serviram para a fazer
Vartan cantar, nessa altura, «é fatal, animal», tinha a certeza de não ser a
estava a viver.
à trama por lhe ter posto em cima uma cafeteira a ferver. Tanto se
me dava. Aliás, sempre que via aquela marca, ficava contente por
(mas não teria sido capaz de dizer o que é que havia em mim de
semelhante a eles).
profunda.
paixão no modo romanesco, mas agora já não sei em que modo escrevo,
se é como testemunho, ou confidência, como se pratica nas revistas
de texto.
Não conto a história de uma ligação, não conto uma história (cerca
descrição de factos, nem ironia nem cinismo, que são formas de contar
tanto quanto isso é possível com um estrangeiro – que ele não se sentia
me fazia. Sem dúvida porque podia considerar os gostos de A., que era
discos e viagens, privada disso entre amigas que as tinham – tal como
A., «privado» com todo o seu povo, que só aspirava a ter as camisas
1
bonitas e os vídeos das montras ocidentais.
Ele bebia muito, como era costume nos países de Leste. Isso
olhar para mim, dizer «guiei que nem um maluco para cá chegar»,
contar-me a infância – de que ele sentia a mesma paixão por mim. Esta
amigos, pensava nas atenções que ele não achava necessário ter comigo,
no Natal?» era apenas uma pergunta banal ou prática, para prever ou não
a neve com alguém (talvez ele até quisesse que eu fosse, para poder
significavam para ele aquelas tardes passadas a fazer amor. Com certeza
não significavam nada além disso, fazer amor. Como quer que fosse, era
não ser de uma coisa: do desejo dele ou da falta desse desejo. A única
1
Este homem continua vivo num lugar qualquer do mundo. Não posso descrevê-lo mais, nem
fornecer sinais suscetíveis de o identificarem. «Faz-se à vida» com determinação, o que significa
que para ele não há obra mais importante a elaborar do que essa vida. Que o meu caso seja
diferente não me autoriza a revelar quem ele é. Não escolheu figurar no meu livro. Só na minha
existência.
O facto de ele ser estrangeiro tornava ainda mais improvável
língua francesa, que ele falava, e aquilo que é a sua utilização mais
lhe telefonar – não lhe enviar cartas – não lhe dar presentes que ele teria
tinha cuidado em não lhe deixar nenhum sinal meu na roupa e não
lhe fazia marcas na pele. Queria evitar-lhe cenas com a mulher, e não
com ele. Tinha medo de trair à frente dela, com um gesto espontâneo –
como sempre que a via, A. a fazer amor com ela – nem achá-la
insignificante, nem pensar que ele talvez fizesse isso porque ela «estava à
vezes não havia ninguém do outro lado. Com a continuação, percebi que
funcionasse. Este primeiro telefone mudo era o sinal que precedia a voz
imaginar.
com a nossa situação. Nessa altura eu imaginava que ele via A Mulher
1
do Lado pondo-nos a nós no lugar das personagens. Se ele me dizia que
nessa noite por nossa causa, e que, representada no ecrã, a nossa história
lhe devia parecer mais bonita, e, como quer que fosse, justificada.
(Naturalmente, afastava depressa a ideia de que a nossa relação podia,
2
vezes as paixões extraconjugais acabam mal.)
Por vezes, dizia a mim própria que ele passava provavelmente um dia
isso era possível? Mas ele próprio teria ficado estupefacto por saber que
não me largava a cabeça de manhã à noite. Não havia razão para achar a
minha atitude mais justa do que a sua. De certo modo, eu tinha mais
atarefado, dava-me conta de que A. não era nem mais nem menos do
que um entre eles, preocupado antes de mais com a carreira, com uns
Dava-me a certeza de que ele se tinha tornado para mim tão anónimo e
Claro que não sinto vergonha nenhuma ao escrever estas coisas, por
que sou a única pessoa a vê-las, do momento em que serão lidas por
outras pessoas e que, parece-me, não chegará nunca. Daqui até lá, posso
escaldar um dia inteiro, e aos vinte fazia amor sem contracetivos: sem
(Por isso é um erro comparar aquele que escreve sobre a sua vida
2
Lulu de Pialat, Bela de Mais para Ti de Blier, etc.
Na primavera, a minha expectativa passou a ser contínua. Instalou-se
verão surgiram nas ruas, as esplanadas dos cafés estavam cheias. Ouvia-
que bairro fosse, esperava sempre vê-lo passar de carro com uma mulher
boulevard des Italiens, a suar, sob o seu olhar imaginário, enquanto ele
Vincennes.
quarto de hotel e não havia nada que nesse momento pudesse convencer-
voz não conseguia fazer-me feliz. Tudo era uma carência interminável, a
fosse o preço – ele ter uma mulher, várias (o que seria um sofrimento
uma loucura desejar que acabasse, porque isso aconteceria um dia sem
pessoas, não suportava vê-lo só por ver. Foi assim que eu não fui a uma
inauguração para a qual ele estava convidado, e acabei por ficar toda a
estavam três gatos pingados. Fiquei aliviada, e repetia para mim aquela
frase com prazer, como se houvesse uma relação entre o ambiente numa
eu souber o sítio onde é a festa ou onde são as férias dos meus filhos
isso basta para garantir que não vai haver nem acidente, nem droga, nem
afogamento.)
hotel para dali a dois meses, em Florença. Estava muito satisfeita com
inscrito muito tempo antes e que não tivesse preparado – prostrada, com
oito dias mais tarde: era a perspetiva de uma felicidade inaudita, quase
e que me fazia sentir o intervalo entre a ida e a vinda como uma duração
interminável e atroz.
O pior era não poder ficar no quarto de hotel o dia inteiro, à espera
que estivessem abertas, fazia três pedidos (por causa da crença de que
explicação de cada um dos quadros, tudo coisas sem relação com as suas
próprias vidas. O uso que eu fazia das obras de arte era puramente
passional. Voltava à igreja de Badia porque fora ali que Dante encontrara
pelas estátuas de homens nus. Era nelas que reencontrava a forma dos
admiração que chegava a ser dolorosa, por ter sido um homem e não
1
parecia-me que qualquer coisa tinha falhado para sempre.
percorrendo os museus, obcecada por A., a ver tudo com ele, a comer e
que regressasse para ler essa história de uma mulher que amava um
homem, e que era a minha história. Esses oito dias sozinha, sem falar, a
(até me sentir estupefacta por ser abordada na rua, então eles não viam a
finalmente como uma prova que aperfeiçoava ainda mais o amor. Uma
ausência.
1
Também lamentei que não existisse, pintado por uma mulher, um quadro que provocasse uma
tão grande emoção indizível como a tela de Courbet que mostrava em primeiro plano o sexo
oferecido de uma mulher deitada, de rosto invisível, e que se chama A Origem do Mundo.
Ele saiu de França e voltou para o seu país há seis meses. Claro que
Gostaria de poder arrancar a dor, mas doía-me tudo. O que eu queria era
tentava estar constantemente ocupada, não ficar sentada sem fazer nada,
porque se isso acontecesse estava perdida (nessa fase, esta palavra tinha
coragem que me exigia essa manipulação. Não podia ver televisão nem
Voltava a cara para o lado quando passava à frente das lojas de lingerie.
uma cartomante, parecia-me que era a única coisa vital que eu podia
como se ainda estivesse a fazer alguma coisa por ele. A seguir não
telefonei a vidente nenhuma, tive medo que alguma me dissesse que ele
não ia voltar nunca mais. Pensei «afinal eu também acabo nisto», sem
interior da boca, a forma das coxas, a sua pele. Pensava que a distância
e a loucura.
Durante semanas:
sono, mas ele permanecia sempre como que suspenso por cima
de mim.
desejar aquelas coisas, qualquer coisa, fosse ela qual fosse, sem
que isso fosse para uma pessoa, para servir o amor? Precisei de
com A.
ele não tinha dito, a palavras que ele não ia escrever nunca.
Café Cucciolo, da mesa coberta por uma toalha branca sobre a qual eu
tinha pousado os meus livros, e enumerava os títulos. Contava as coisas
que ali estavam, uma por uma, tentando esgotar o conteúdo de um lugar
atos eram uma repetição daquilo que tinha acontecido antes. Queria
Calculava sempre «há duas semanas, há cinco semanas que ele se foi
embora», e «o ano passado, nesta altura, onde eu estava era ali, o que eu
esteve.» Revia momentos dessa época que não tinham nada de particular
que era impossível passar por aquele dia, por aquele momento, da
viva outra vez, mas no meu sonho eu sabia – e ela também – que ela
morte estava atrás dela, como «uma coisa que já estava feita», e pronto.
(Parece-me que tive este sonho muitas vezes.) Outra vez, eu era uma
para voltar a fazer, ela própria, o itinerário que a tinha levado à morte.
iminente. Voltava a ver A. no meio das pessoas, ele não olhava para
minha casa. Mas naquele caso era um cansaço vazio, sem memória de
não ser esperar um homem», etc., dois meses depois de A. se ter ido
embora, já não sei bem em que dia. Embora seja capaz de me lembrar
julho de 1989, e até dos pormenores mais fúteis, como comprar uma
uma repetição eterna. Também serve para produzir uma dor substituta
olhar e tocar o roupão turco que ele vestia em minha casa e tirava no
diferença: estas páginas vão sempre manter um sentido para mim, talvez
para mim – um dia deixa de evocar o que quer que seja, e eu hei de
homem que levava numa cidade fria uma existência que eu não
utilizar todos os meios que servem para suportar o desgosto, que dão
desses meios.)
minha paixão, igual àquela que vivi nessa altura. No entanto, não me
abrir, como se Anna Karénina fosse uma dessas obras esotéricas em que
está estipulado que não se deve voltar a ler determinada página sob pena
de infelicidade.
empurrei a porta, que era uma das poucas sem código digital. Na parede
tinha morrido, ou então tinha saído dali para uma casa de repouso na
província, agora são pessoas de uma classe superior que vivem naquela
até à estação mais próxima, sem dúvida para se certificar de que eu não
«um dia estive aqui». Procurava a diferença entre essa realidade passada
que eu tinha ali estado um dia, e que não sentiria se se tratasse de uma
personagem de romance.
ter feito aquilo, por ter voltado a um desamparo cuja origem também foi
um homem.
coisas idênticas, ou então para eles acharem normal sentir essas coisas.
1
contínuo.
ele me disse. Por exemplo, que tinha ido ao circo de Moscovo e que o
de que tudo voltou a estar em ordem, de que «agora está tudo bem».
Depois reparo que isso se refere a uma coisa qualquer longínqua, que
prazo de validade.
A., ou que descobri um aspeto da nossa relação que até aí não tinha
me que teve uma relação muito física com uma mulher casada mais
Esta noite, no RER, duas raparigas iam a falar uma com a outra à
exemplo, àquela que me teria evocado a palavra Brunoy, onde vivia uma
construía na minha cabeça dia após dia desde a primeira noite, com
há de ser nada.
E no entanto não sou capaz de o deixar, como também não fui capaz
o meu desejo ainda não tinham sido interrompidos. Embora saiba que,
escrever, não me preocupei com essa eventualidade. Agora que fui até ao
enquanto vivia a minha paixão, e não passei a sentir por estar a contá-la.
dentro das capas dos meus cadernos e tudo o que se pode escrever
1
Deixo de usar o imperfeito, aquilo que era – mas até quando? –, e passo a usar o presente – mas
desde quando? – à falta de melhor solução. Porque não posso dar conta exatamente da
transformação da minha paixão por A., dia após dia, só posso parar nestas imagens, isolar os
signos de uma realidade cuja data em que surgiu – como na história geral – não pode ser definida
com precisão.
Fevereiro, 1991
nesse texto. Considerá-lo fora do tempo, ou seja, pronto a ser lido. Mas
lugar de um adjetivo.
imaginação.
visto. Olhava para a porta, apalermada. Ele entrou sem bater, como
embora a mulher quisesse ter um. Continuava a parecer novo aos trinta e
estavam menos cuidadas, as mãos mais ásperas, sem dúvida por causa
do frio no seu país. Riu-se muito por eu lhe censurar não ter dado sinais
de vida desde que se tinha ido embora: «Então telefonava-te, dizia bom
dia, está tudo bem. E depois?» Não tinha recebido o postal que eu lhe
acariciávamo-nos.
Ele foi-se embora três dias depois sem nos voltarmos a encontrar
O homem que voltou essa noite já não é aquele que eu trouxe em mim
durante o ano em que ele esteve ali, e depois enquanto eu escrevia. Esse
irreal, quase inexistente, que dá à minha paixão todo o seu sentido, que é
não ter nenhum, e ter sido durante dois anos a realidade mais violenta
lenço, num papel dobrado com as suas súplicas – para que ele voltasse.
sentido nenhum. E que tudo isto comece a ser-me tão estranho como se
se tratasse de outra mulher não muda nada quanto a isto: graças a ele,
aproximei-me do limite que me separa da alteridade, a ponto de
Ele tinha-me dito «não vais escrever livro nenhum sobre mim». Mas
eu não escrevi um livro sobre ele, nem sequer escrevi sobre mim.
dúvida, que não lhe são destinadas – aquilo que a sua existência, só por
ter uma vida de intelectual. Agora parece-me também que é poder viver