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O Moisés de Freud:

entre o sublime e a sublimação

Guilherme Massara Rocha*

Palavras-chave: psicanálise; arte; A investigação freudiana foi, no solo opaco das pulsões, se
ética; sublime; sublimação. desde sua mais remota origem, constata a absoluta
marcada por uma consideração impossibilidade de esgotar-se, por
ao incomensurável, ao meios discursivos, a elucidação da
imponderável. Sua antropologia, totalidade das determinações que
Resumo erguida sobre uma hipótese ali operam. Ou seja, se por um
o trabalho consiste em discutir, a partir fundamental, a de que a lado as operações da ciência são
do escrito O Moisés de Michelângelo
subjetividade é inexoravelmente absolutamente fundamentais para
de S. Freud, algumas consequências
da abordagem psicanalítica da obra de
clivada entre a disposição a apreensão da subjetividade
arte para a ética da psicanálise. A pulsional e a determinação inconsciente em termos daquilo
minuciosa interpretação que Freud significante, é o que recoloca, de que nela incide a partir da estrutura
realiza do trabalho do escultor italiano modo original, uma questão central da linguagem ; por outro, a
revela, liminarmente, como Moisés se da filosofia moderna que, com psicanálise, desde Freud, sentir-
faz capaz de converter seu ódio e suas Kant, assume sua formulação se-ia tentada a tomar de
paixões vingativas num impulso mais bem acabada: como se empréstimo a outros domínios da
civilizatório de laço social. No curso articulam, na experiência humana, racionalidade certos
dessa análise, os elementos da os planos da natureza e da procedimentos que têm, em seu
sublimação e da estética do sublime
liberdade? Essa pergunta, horizonte, a possibilidade de
se mostram fundamentais.
substancialmente ética, Freud a expressar, de mostrar, de
retoma sob a perspectiva de seus circunscrever, ou, no limite, de
esforços de determinar os comensurar, aquilo que não se
fundamentos daquilo que, com pode calcular.
Lacan, passou a designar-se sob
Freud não ignorava a obra de
a rubrica de uma “posição
seus predecessores. Na trajetória
subjetiva”.
de Kant, exemplarmente, o
Se a clínica psicanalítica problema da liberdade moral é
permanece tributária de um exatamente aquele que não é
dispositivo científico que lhe faculta passível de tratamento pela
o recurso a categorias vertente dos fenômenos, da
diagnósticas elementares – démarche científica, exigindo do
neurose, psicose e perversão, por filósofo de Königsberg um
outro lado, o seu exercício impõe volumoso esforço de
a tarefa de distinguir, isolar e fundamentação metafísica que se
localizar, no curso de cada põe no entrecruzamento de suas
tratamento, o ponto de absoluta duas últimas críticas, da razão
irredutibilidade de uma posição prática e do juízo estético.
subjetiva a quaisquer arranjos Schopenhauer1 , por seu turno,
qualitativos que lhe sejam aponta, em sua Metafísica do
exteriores. O Deus-Logos de Belo, o quanto o princípio de
Freud é um deus não-todo causalidade que comanda a
* Psicanalista, Doutor em Filosofia
(Universidade de São Paulo), Professor-
poderoso, e isso tão somente na investigação científica,
adjunto do Departamento de Psicologia medida em que, estando as raízes procedendo diacronicamente, não
da FAFICH/UFMG. do sujeito do inconsciente fincadas é capaz de exceder os limites que

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articulam a sucessão de enigmática, Freud despede-se de 1


SHOPENHAUER, A. Metafísica do
encadeamento lógico dos Salvador Dali após uma visita que belo. Trad. Jair Barbosa. São Paulo:
fenômenos. “A cada fim”, escreve recebera do artista, no verão de Unesp, 2003. p.59.
o filósofo, “a ciência é atirada 1938 em sua residência de 2
Apud MOLNAR, M. Anotações. In:
novamente mais adiante”. Maresfield Gardens. A alusão a seu FREUD, S. Chronique la plus brève:
Devotada a subsumir o diverso da controverso ensaio, "Moisés e o Carnets intimes 1929/1939. Paris:
experiência sob o marco do monoteísmo", no qual Freud então Londres: Freud Museum: Albin Michel
conceito, a ciência torna-se, por ainda trabalhava, é o que parece Ed., 1992. p.243.
excelência, a disciplina do cálculo contextualizar a sentença. Quase 3
Podem adquiri-la, diretamente, no
e da forma. A arte, todavia, pondera quarenta anos depois, em 1974, Museu Dali em Montmartre, Paris,
Schopenhauer, “suspende a roda Dali assinaria a arte de uma aqueles dispostos a pagar por ela
do tempo”, permitindo-nos luxuosa edição do ensaio de cerca de 75.000 euros.
entrever a objetividade imediata Freud, para a qual ele contribui 4
Apud ROUDINESCO, E.; PLON, M.
das disposições da liberdade. Para com a capa e com mais dez Dicionário de Psicanálise. Trad. Vera
ambos os filósofos, assim como litogravuras. A cobertura dessa Ribeiro e Lucy Magalhães. Rio de
para Schiller e Schelling – cujas célebre edição consiste num Janeiro: Zahar, 1998. p.607.
obras tanto sensibilizaram o baixo-relevo em metal e pátina de
inventor da psicanálise –, a prata e traz uma imagem de
consideração estética é o regime Moisés, indisfarçavelmente
privilegiado de apreensão dos surrealista3. Mas essa obra de Dali
fundamentos da conduta humana, é discretamente caracterizada por
a via de acesso por excelência elementos que remetem à
para a abordagem da ética. E isso, escultura de Michelangelo. Aquela
sem que a dimensão de mesma que tanto fascínio causara
incomensurabilidade aí no precursor da psicanálise. Mais
engendrada seja apagada, do que os audaciosos
ignorada ou contornada. Ao apontamentos que Freud
contrário, o pensamento estético empreende em seu longo estudo
moderno inventa (ou re-inventa) um de 1934-1938, é seu estudo sobre
regime epistêmico privilegiado para o Moisés de Michelangelo,
o tratamento do incomensurável – publicado anonimamente em
entenda-se, para o tratamento da 1914, a que se faz necessário
questão da liberdade – e que pontualmente retroceder.
provém da investigação estética. As razões do caráter anônimo
Eis o sublime, acerca do qual de sua primeira publicação
Freud nada nos lega, além da permanecem não esclarecidas.
inquietante noção metapsicológica
Freud diria a seus colegas mais
de sublimação.
próximos tê-lo feito por pura
No presente trabalho, pretende- diversão. Mas os editores ingleses
se revisitar uma incursão estética e franceses de sua obra completa,
de Freud, de modo a evidenciar os ambos insinuam a possibilidade
fundamentos de seu trato com a
de que a insegurança de Freud
dimensão do incomensurável. E
quanto às suas aptidões crítico-
de modo a demonstrar como suas
frequentes invectivas sobre o estéticas se tenham feito notar
território das artes são justamente nesse gesto. Com efeito, numa
aquelas que permitem entrever carta a Abraham, de 6 de abril de
sua posição no que se refere ao 1914, Freud faz alusão à
debate, ainda inesgotado, acerca “vergonha”, quanto a seu ensaio,
das articulações entre natureza e de seu "diletantismo manifesto"4.
liberdade. Somente dez anos depois de sua
"Moisés é carne de primeira publicação no periódico
sublimação" 2 . Com essa frase Imago, o texto aparece assinado

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O Moisés de Freud: entre o sublime e a sublimação

por ele, numa edição alemã de combinada com uma "orgulhosa schilleriano", fundado na noção de
seus trabalhos reunidos. simplicidade, uma dignidade dignidade e que concerne à
inspirada, uma fé viva". “liberdade espiritual” de exercer,
O pudor de Freud, Concordando com Guillaume, um sobre os impulsos, a soberania
injustificado – como o testemunha dos autores consultados, Freud moral 10. Sob o ponto de vista
o cuidadoso recenseamento vislumbra no Moisés de estético, Freud mesmo vai dizer
crítico que ele empreende acerca Michelangelo os olhos que que o segredo do impacto causado
dos comentários principais a "encaram o futuro" e que preveem pela estátua é tributário do
propósito da escultura do mestre a "sobrevivência duradora de seu "contraste artístico entre a flama
italiano –, talvez possa ter outra povo e a imutabilidade de sua lei"6 interior e a calma exterior de sua
origem. O texto, liminarmente, . Ele cerca a obra com suas postura"11, e que, correlativamente,
ainda que não de todo estranho ao sentenças, como quem procura também engendrariam esforços
debate acerca das origens e resumi-la numa exclamação, de fornecer a forma da conflituosa
desdobramentos propriamente numa palavra talvez. Lacoue- relação entre seu criador,
estéticos da obra, tem como seu Labarthe é quem lembra que outra Michelangelo, e aquele que o
propósito fundamental assumir o personalidade célebre, Giorgio contratara, o genioso Papa Julio II.
risco de uma interpretação. Ali Vasari, teria, diante da mesma
reside a particularidade do ensaio A obra à qual Freud parece
estátua, exclamado: "Sublime"!
de Freud, precisamente no fato de de algum modo endossar sua
Consignando, com isso, "o
que, ao descongelar a imagem resolução sublime, todavia lhe
primeiro uso estético dessa
secularmente fixada no mármore motiva algumas observações que
palavra"7. Para o filósofo8, em
por seu artífice, Freud nela reiteram seu matiz, schilleriano é
resumo, seria necessário chamar
discerne um conjunto de bem verdade, mas não só. Numa
a atenção para "com que precisão
movimentos que têm por horizonte delas, Freud alude à sensação que
e com que rigor o ensaio de Freud
distinguir certa posição que não é experimentara diante da estátua,
se inscreve na tradição estética do
somente a da figura retratada, de que, em algum momento,
sublime".
mas do sujeito em questão, Moisés finalmente se levantaria e,
nomeadamente Moisés. Sutil e Os apontamentos freudianos dando "vazão à sua ira",
substancialmente, o ensaio de de ordem propriamente artística, encenaria, com toda a violência e
Freud desliza dos apontamentos para além de exaltarem o caráter crueldade que nos é transmitida
de ordem artística e estética para magnífico da expressividade pelo Livro do Êxodo, os
o terreno ético. alcançada na obra, se debruçam movimentos derradeiros da
sobre uma série de indicações que narrativa bíblica que Michelangelo
Após semanas de visam justificar a tese de que congelara num instante de
observações, anotações e Michelangelo retrata, em última suspensão. Todavia, a "calma
esboços sobre a estátua que instância, o conflito experimentado quase opressivamente solene" do
repousa na Igreja de San Pietro in por Moisés diante das herói prevalece, e Freud12 parece
Vincoli, em Roma, Freud confessa manifestações heréticas de seu se solidarizar com a ideia de que
ao leitor seus esforços de "[...] povo, quando de seu retorno do "Moisés ficaria sentado assim, em
suportar o irado olhar de desprezo Monte Sinai. O conflito entre as sua cólera, para sempre".
do herói", sentindo-se identificado paixões e, como sugere Lacoue- Diferentemente do sublime
"à turba sobre a qual seus olhos Labarthe, sua maîtrise ou, mais kantiano, no qual a elevação moral
estão voltados", e desabonada da exatamente, entre um ímpeto de do sujeito parece não deixar
fé e da paciência, a rejubilar-se, virulência física e odiosa e a vestígios da natureza que se lhe
reconquistando seus "ilusórios demonstração de autocontrole e contrapõe, o segredo revelado
ídolos"5. Profundamente afetado reafirmação da soberania do pelo Moisés de Michelangelo é
pela obra, todavia, Freud se impulso moral, eis o ponto em que justamente aquele que, como
esforça por discernir-lhe Freud teria feito intervir sua lembrara Schopenhauer, permite
elementos estáveis, apoiando-se interpretação do sentido da obra. um vislumbre acerca da
na literatura crítica e culminando "Michelangelo escolheu esse soberania moral que não
por extrair-lhe caracteres último momento de hesitação, de escamoteia, contudo, a
peculiares, de um pathos e calma antes da tempestade" 9. lembrança da vontade. Ou, como
também de um ethos. A mescla de Poder-se-ia enxergar aí o formulara Schiller, trata-se de uma
“ira, dor e desprezo” do herói desenvolvimento de um cena em que a força moral é
antigo, Freud a discerne argumento "absolutamente aquela que, suspendendo o gesto

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5
empírico de descarga da ira e seu perder de vista todo o substrato FREUD, S. O Moisés de
consequente efeito de pulsional cuja pregnância é Michelangelo [1914]. In: ______.
apaziguamento do impulso, indispensável ao efeito ético/ Edição standard brasileira das obras
escolhe "desarmá-lo" moralmente, estético de seu empreendimento, psicológicas completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1987. v.XIII, p.255. A
revelando, com isso, a eticidade Michelangelo consuma aquilo que,
natureza da transgressão que fornece
do caráter, no limite, a dignidade. numa gramática schilleriana,
os contornos da obra de Michelangelo
Freud13 escreve: pertence ao domínio do signo aponta ainda, no interior da religião
sensível do Absoluto. Seu Moisés judaica, para a solidariedade entre fé
Michelangelo colocou na tumba
é a expressão da inversão habitual e conduta que, com seu ato, o povo
do Papa um Moisés diferente,
de uma trajetória que, do belo ao de Moisés avilta. Conforme aponta
um Moisés superior ao histórico
sublime, extrai da forma toda e Branca Facciolla, "[...] a religião
ou tradicional. Modificou o tema
qualquer possibilidade de judaica enfatiza o comportamento.
das Tábuas quebradas ; não Trata-se de uma ideologia religiosa que
apreensão num ente sensível. Se,
permite que Moisés as quebre alia claramente a intenção com a ação.
conforme se poderia notar
em sua ira mas faz com que Deus está presente em todos os
comparativamente, uma obra de
ele seja influenciado pelo perigo momentos. Portanto, não há qualquer
arte moderna, tal como o Nu
de que elas se quebrem, e faz sentido na ação sem que haja intenção,
descendo a escada, de Marcel bem como não há qualquer mérito em
acalmar essa ira ou, pelo
Duchamp, parece consistir num se ter intenção sem a prática, a ação"
menos, impedi-la de
esforço de sensibilizar a própria [FACCIOLLA, B. L. A Lei de Moisés:
transformar-se em ato. Dessa
temporalidade fugidia de um Torá como fonte de direito. São Paulo:
maneira, acrescentou algo de
movimento – decompondo-o, RCS, 2005. p.78]. Efetivamente, a
novo e mais humano à figura
pitorescamente, numa modalidade solidariedade entre intenção e ação
de Moisés; de modo que a parecerá, de algum modo, justificar a
quadro a quadro de representação
estrutura gigantesca, com a –, o Moisés de Michelangelo, ira divina e a sanha de destruição que
sua tremenda força física, inversamente, interrompe, lhe é consubstancial. Mas, como se
torna-se apenas a expressão aprisionando-o no instante de poderá observar, o Moisés de Freud ali
concreta da mais alta suspensão, um movimento
parece discernir outra coisa.
realização mental que é complexo ao qual inexoravelmente 6
FREUD, S. O Moisés de
possível a um homem, ou seja, a forma sensível remete. Ali, Michelangelo, op. cit., p.257.
combater com êxito uma paradoxalmente, é a forma que 7
LACOUE-LABARTHE, P. La verité
paixão interior pelo amor de remete ao informe, o ponderado faz sublime In : ______. COURTINE,
uma causa a que se devotou signo do imponderável, o belo faz Jean-François et al. Du sublime.
[...]Assim, esculpiu seu Moisés signo do sublime. Paris: Belin, 1998. p.148.
na tumba do Papa, não sem 8
A interpretação freudiana da Id., ibid., p.152.
uma censura ao pontífice
morto, mas também como obra, por seu turno, é aquela que, 9
FREUD, S. O Moisés de
uma advertência a si próprio, nas palavras de Georges Didi- Michelangelo, op. cit., p.258.
elevando-se, pois, através da Huberman, não recusa as 10
LACOUE-LABARTHE, P. La verité
auto-crítica, a um nível superior "latências do objeto". Mas recusa, sublime, op. cit., p.152.
à sua própria natureza. isso sim, o compromisso em que
11
as "vitórias da forma" se FREUD, S. O Moisés de
Dotado de incomparável afirmariam sobre os "inquietantes Michelangelo, op. cit., p. 264.
habilidade técnica, cabe lembrar, poderes da divisão"15. Ao contrário, 12
Id., ibid., p.263.
Michelangelo faz verter do a complexidade em jogo numa 13
Id., ibid., p.276-277.
mármore branco a tonalidade cena que distintos atos comporta,
14
rubra dessa carne de sublimação. e que Freud se concentra e LACOUE-LABARTHE, P. La verité
Sua obra, como lembrara Lacoue- sublime, op. cit., p.155.
decifrar-lhes um a um, teria, por
Labarthe, tomando de empréstimo resultado final, uma obra de arte 15
DIDI-HUBERMAN, G. Lo que vemos,
a expressão de Hegel, é aquela que não quer "impugnar a lo que nos mira. Buenos Aires: Ed.
que expressa como, porventura, o temporalidade do objeto"16, mas Manantial, 2006. p.21.
belo materializa a própria essência apreender, nos limites que se 16
Id., ibid., p.21.
do sublime. Tornando-se uma impõem a quaisquer
"homenagem, grandiosa, mas manifestações eidéticas, o que há
bela, prestada à arte segundo sua de ilimitado no horizonte para o
determinação eidética" 14. Sem qual a obra quer apontar. Freud

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O Moisés de Freud: entre o sublime e a sublimação

insistiria mais de uma vez no a seus apontamentos sobre o pela linguagem, é inassimilável a
aspecto físico do herói retratado, cristianismo, Freud alia-se, na quaisquer formas identitárias. O
em sua tensão muscular, que expressão de Betty Fuks, aos que poderia fazer pensar que, no
parece levar ao limite o esforço de "demolidores de ídolos" 19 . Moisés de Freud, a conservação
impor limites à "flama interior". A Tomando-se, portanto, em da lei seja talvez a insígnia da
deflexão do impulso, característica consideração o caráter implacável conservação de um mandamento
elementar da disposição da crítica freudiana da religião, não que equivale à própria dignidade
sublimatória, aqui realmente se faz seria de se surpreender que do real – o incognoscível, o
notar como aquela que parece alguma dose de solidariedade à ira irrepresentável, o incomensurável
algo extrair da própria carne do de Moisés e aos golpes por ele – sem o qual, todavia, nenhuma
herói, um quinhão de sua brutalmente desferidos sobre os liberdade é possível. A ira de
natureza17. que se regozijavam de seus Moisés, transformada em ato
"ilusórios ídolos" fizesse signo da nesse contexto, mais
Um aspecto, todavia, importante
posição de Freud. Ora, é bem corresponderia à realidade
e que possivelmente poderia
verdade que, num devaneio pulsional de um pathos, à forma
reiterar os parentescos entre esse
consciente, Freud confessa assumida pela natureza sensível
ensaio freudiano e o tema do
esperar o levante iminente do diante da impossibilidade de
incomensurável, refere-se à
herói, senão por solidariedade, assimilar a diferença que incide
questão da lei mosaica. O segundo
possivelmente em virtude de saber sobre a integridade imaginária do
mandamento da lei de Moisés –
como poucos avaliar a Eu, ali representada pela
"Não farás quaisquer efígies ou
avassaladora pressão que as heterogeneidade de uma
quaisquer representações, quer do modalidade alheia de gozo, de
pulsões exercem sobre as forças
que esteja na terra, acima da terra de ligação que visam contê-las. uma satisfação estranha. A
ou sob a terra" – contemplado por Mas, ao fim e ao cabo de seu passagem ao ato representaria,
Kant em sua analítica do sublime, argumento, é mesmo a versão portanto, um esforço de destruição
aqui reaparece implicitamente, mais espiritualizada de Moisés do real, empreendido em nome da
infiltrando-se na interpretação aquela em que ele parece elogiar. conservação da forma narcísica
freudiana. No episódio bíblico, é Moisés conserva as Tábuas da Lei do Eu ou, dizendo de outra
justamente a inobservância desse e, com isso, parece sinalizar para maneira, um ataque vertido contra
preceito, traduzida no ato leviano a primazia dos acordos simbólicos aquilo que de mais inassimilável
de adoração do bezerro, aquela e discursivos sobre o pathos da poderia uma alteridade
que deflagra a ira de Deus18. O vingança. No escopo de representar para um sujeito. O
Moisés de Freud, ao contrário conservação de suas leis, uma Moisés bíblico assumiria, nessa
daquele que nos é legado pelo Livro delas motivou, desde Kant pelo menos, medida, poder-se-ia arriscar, a
do Êxodo, é o que não fornece a importantes desdobramentos acerca posição de um terrorista. Posição
forma de uma passagem ao ato à do irrepresentável, do incomensurável. que o sublime parece bem
sua revolta contra a adoração do redefinir, na medida em que o
Bezerro de Ouro. Note-se, ainda, A lei mosaica que proíbe a
terrorista é aquele que converteria
incidentalmente, a relevância representação imagética da
divindade, associada, como em pathos da destruição o horror
clínica dessa observação, que diante do unheimlich, diante
reitera, em sua esteira, em que lembrara Fuks, ao "tetragrama
impronunciável" – YHVH –, parece daquilo que é, ao mesmo tempo,
medida as preocupações estranho e familiar. Não raramente,
estéticas de Freud seriam algo dar lugar, lembra a autora, à
invenção de uma "Ausência cabe lembrar, o pathos da
inseparáveis de sua démarche destruição terrorista coincide
como analista. radical" 20 . O esgotamento das
potências do sensível para a também com um ato de
A conservação das Tábuas da representação do suprassensível, autoextermínio, autodestruição.
Lei, que Freud afere como traduzido esteticamente em Quanto ao Moisés de Freud,
elemento de destaque na versão termos de um esgotamento das a atitude assumida pelo herói
alterada da narrativa proposta, em representações moduladas pela parece mimetizar a presença
tese, por Michelangelo, poderia noção de "efígie", impacta também mesma do conteúdo sublime que
parecer, todavia, incongruente o plano discursivo, na medida em ele carrega consigo, mas à qual
com a posição teórica do inventor que o nome de Deus é indizível, ele fornece outro
da psicanálise. Pois, "fora-do-discurso"21 , e referido a encaminhamento. A beleza que
particularmente no que se refere algo que, mesmo que perpassado Lacoue-Labarthe aponta na

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Guilherme Massara Rocha

versão espiritualizada de se pelos vetores de uma 17


Cf. Leonardo Da Vinci - São
Michelangelo – substancialmente identificação, nem tampouco pela Jerônimo no deserto.
realçada pela interpretação pura instrumentalização de um 18
Cf: BÍBLIA. Antigo Testamento: Livro
freudiana –, é divisada no que há pathos inconsciente e alienante. O do Êxodo, Cap. 32, Versículos 7 a 35.
de quase invisível na obra: o que não significa estar ele, como 19
sujeito, absolutamente separado FUKS, B. B. Freud e a judeidade: a
elemento ético nela imantado ou,
vocação do exílio. Rio de Janeiro: Jorge
como lembrara Freud, o desse Outro. O Moisés de Freud
Zahar, 2000. p.90.
compromisso do herói com a não reivindica tampouco, como
20
causa que lhe subjaz à decisão, condição da assunção de sua FUKS, B. B. Freud e a judeidade:...
seus olhos "voltados para o posição ética, a inexistência do , op. cit, p.100.
futuro", ciosos de uma tarefa ainda Outro. Pois sua posição não é 21
Id., loc. cit.
inacabada, nomeadamente aquela redutível àquela de um gozo de
de conduzir um povo, libertando- seu próprio desamparo, ou num
o, sobretudo, dos grilhões que regozijo de sua onipotência. O
resplandecem, como o ouro do Moisés de Freud é aquele capaz
bezerro, nos confins de seu de distinguir, no Outro a quem se
espírito. Se, no plano ético, o dirige, as vertentes da causa e do
Moisés de Michelangelo fornece pathos. Daí se descortinando,
elementos para pensar as como parece querer demonstrar
relações entre a causa do desejo Freud, sua verdadeira condição de
e os motivos morais, a questão sujeito. A lei a que obedece o
que se abre, no estético, é relativa Moisés de Freud é aquela que se
à representação do vazio, da põe como causa, des-identificada
ausência e da opacidade. O – a duras penas, diga-se de
pequeno opúsculo de Freud, passagem – da forma odiosa da
aparentemente despretensioso paixão divina. E se é o conteúdo
mas ao mesmo tempo tão do pathos divino que Moisés ousa
inspirado, inscreve-se, como recusar, ei-lo a demonstrar o
apontara Lacoue-Labarthe, na caráter informe de uma lei que
tradição do sublime, mas à sua assume, ali, a forma do mais
própria maneira. Pois parece paradoxal dos mandamentos: um
evidente considerar que Freud, mandamento esvaziado de
tendo relido o episódio bíblico sob conteúdo, refratário a toda
uma perspectiva que modifica sensibilização oriunda da paixão
substancialmente seus vetores alheia, mas voltado, cumpre
éticos, discerne o esforço reafirmar, para o imperativo de
subjetivo de exercer a liberdade uma lei que se põe como causa.
moral à qual o homem se vê A essa altura, talvez já se
livrado. fizessem suficientemente
Lembre-se, ainda, conforme o explícitos os vetores do
relato do Êxodo, que a ira de ordenamento ético que Freud
Moisés é solidária à ira de Deus, empresta à sua interpretação do
diante de quem, num primeiro Moisés de Michelangelo. Mas tais
momento, ele se propõe a mitigar vetores engendram ainda, no
a fúria, mas com a qual, caso em questão, um elemento
finalmente, se identifica e reproduz fundamental acerca do qual Freud,
em ato. Eis o Moisés bíblico. todavia, nada argumenta, qual
Moisés, tornado personagem de seja, o perdão. De forma quase
Freud, não realiza o desejo do irresistível, é como se o Moisés de
Outro. Nem se coloca, diante Freud se tornasse signatário da
desse Outro, como puro sentença mais extemporânea que
instrumento de sua satisfação a ele os escritos sagrados
pulsional, de seu gozo. Sua poderiam atribuir. Aquela do Cristo,
posição ética não parece definir- inapelavelmente sublime:

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O Moisés de Freud: entre o sublime e a sublimação

22
"Perdoai-lhes, Senhor, pois que Uma interessante observação
não sabem o que fazem"22. Se incidental poderia ser incluída aqui. De
essa aproximação tem aqui acordo com um estudo de Ze´ev Falk
alguma legitimidade, ela acerca do Direito Talmúdico, "entre os
ensinamentos atribuídos a Jesus",
liminarmente restitui à enigmática
encontram-se alguns que refletem as
expressão de Freud toda a "diferentes fases do argumento cristão
plenitude que lhe é devida. Moisés, diante da Lei Talmúdica" [FALK, Z. W.
responsabilizando-se até as O direito talmúdico. Trad. Neide Tomei
últimas consequências pela e Esther Handler. São Paulo:
preservação do vazio onde as Perspectiva, 1988. p. 50]. Um desses
esperanças de existência de uma argumentos, expresso no Sermão da
cultura viriam se alojar, converte- Montanha, parece visar contestar a
se, ao fim e ao cabo, em carne de ideia de que "nenhum ser humano
sublimação. Sua presença poderia apresentar seu ponto de vista
contra o da lei divina". Tal reivindicação,
eidética, como lembrara Lacoue-
argumenta Falk, "representa por si
Labarthe, transmite, como legado, mesma a aspiração de Jesus a ser
o caráter infinito da causa a que reconhecido como legislador
se consagrara uma existência supremo". Todavia, conclui o autor, "a
finita. Posição que se confunde resposta rabínica a esta formulação era
com aquela de Sigmund Freud no dupla. Não havia prova de que Jesus
trato com sua invenção, a era realmente um verdadeiro profeta e,
psicanálise. mesmo se fosse, nenhum profeta podia
desprezar a Lei de Moisés" [id., loc.
cit.]. De acordo com a interpretação
aqui aventada, quanto ao Moisés de
Freud, não se pretende fundá-la numa
torção que a revestiria de um caráter
mais elevado, nomeadamente, cristão.
Mas tão simplesmente apontar, num
gesto que contingentemente a
aproxima de uma passagem bíblica
marcante, seu caráter exemplar acerca
da assunção de uma posição ética.

74 Cógito • Salvador • n.13 • p. 68 - 75 • 2012


Guilherme Massara Rocha

REFERÊNCIAS

DIDI-HUBERMAN, G. Lo que vemos, lo que nos mira. Buenos Aires: Ed.


Manantial, 2006.
FACCIOLLA, B. L. A Lei de Moisés: Torá como fonte de direito. São Paulo:
RCS, 2005.
FALK, Z. W. O direito talmúdico. Trad. Neide Tomei e Esther Handler. São
Paulo: Perspectiva, 1988.
FREUD, S. Chronique la plus brève: Carnets intimes 1929/1939. Anotações e
apresentação de Michael Molnar. Londres: Freud Museum; Paris: Albin Michel
Ed., 1992.
FREUD, S. O Moisés de Michelangelo [1914]. In: ______. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v.XIII.
FUKS, B. B. Freud e a judeidade: a vocação do exílio. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000..
LACOUE-LABARTHE, P. La verité sublime In : ______. COURTINE, Jean-
François et al. Du sublime. Paris: Belin, 1998..
ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Trad. Vera Ribeiro e
Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
SHOPENHAUER, A. Metafísica do belo. Trad. Jair Barbosa. São Paulo: Unesp,
2003.

The Moses by Freud: between


sublime and sublimation
Keywords: psychoanalysis; art;
ethics; sublime; sublimation.
Abstract:
Taking as it's principal motives the
article named The Moses by
Michelangelo, from S. Freud, this work
discusses some aspects of the ethics
of psychoanalysis that are related with
the psychoanalytical approach from the
art experience. The minucious
interpretation that Freud sketches from
the italian sculptor's work reveals,
fondamentally, how Moses becomes
capable of converting his anger and
ravaging impulses into a civilizatory
appeal and into social and sublimatory
tendencies. This work tries to
demonstrate how important, during
Freud's analysis of Michelangelo's
work, is the concept of sublimation and
how it is connected with some aspects
of philosophical and aesthetical
theories of the sublime.

Cógito • Salvador • n.13 • p. 68 - 75 • 2012 75

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