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Escombros

Poesia
Jacson J. Faller

Escombros
Poesia

2ª Edição

Organização
Marcus Wörterheim
fosse apenas o desespero da
ocasião da
descarga de palavreado
 
perguntando se não será melhor abortar
que ser estéril
 
Samuel Beckett
Prefácio, 11

O Fruto Comemora o Apodrecer, 13

Olhando pela Janela, 15


Coisas, 16
Mais uma Canção de Amor, 17
À Loucura, 18
03:00, 20
Insônia, 21
Lúcia, 22
Deixo Meus Cânticos, 23
O Fruto Comemora o Apodrecer, 24
Você ainda lembra? 25
Também Tenho uma Sina, 26
Sabino, 27
Ruínas, 28
É Tão Engraçado, 29
Meu Leito é um leito de Gelo, 30
Potência do Nada, 31
Relatos, 33
Uma Tarde de Caminhada, 34
À Mesa, 35
Oblata, 36
Adeus, 37
Ouço o Clamor da Serpente, 38
Morte Sorrateira, 39
Um Dolorido e Presunçoso Quintanar, 40
Noites, 41
Desalento, 44
Quinto de Gregório, 45
Segundo da Cânone, 47
Uma Homenagem ao Erro, 48

Nos Jardins da Alquimia, 49


Fragmento, 50
Aβουλή , 51
Encontro, 52
Uivos de um Amor Perdido, 53
Doença, 54
Morrer Todas as Noites, 55
Meu Pensar em Ti, 56
Adro, 57
Temporalidade Cacofônica, 59
Não Vejo Meus Dias Há Anos, 60
Revés, 61
Onde Está a Arte, 62
Poema, 63
Despertar, 64
Espelho, 65
Fato-Passo, 66
Composição, 67
Ilha, 68
Movimentos, 69
Olhos Índios, 70
Santidade, 71
Maria-Puta-Da-Paixão, 72
Na Carne, 73
Alvitre, 74
Quarto de Infância, 75
Líquido, 76
No Corpo um Universo, 77
Animæ, 78
Um Adeus à Vovó, 81
A Análise de Hermes, 82
Poesia, 83
Nu Artístico, 84
Azáfama, 86
Ex-Voto, 87
Silêncio, 88
Ex-Voto-Redux, 89
Há Sempre Algo Entre o Plano e os Fatos, 90
Tempo, 91

Da poesia de que não tive coragem, 92

da poesia de que não tive coragem, 93


da maria puta da paixão, 94
da enferma que sonha sonhos de deus, 95
da infanti solidão, 96
do desapego, 97
das coisas que há, 98
do fazer-se em cacos, 99
do querer-dizer no rasgo da analogia, 100
dos pré-fragmentos, 101
das coisas que não sei o nome, 102
do não estar mais presente, 103
das criaturas que habitam a realidade, 104
do fisicalista em crise, 105
do amor prometido, 106
do desaconchego pátrio, 107
do sábado por dentro frio, 108
das coisinhas pequenas e grudentas, 109
do fetiche, 110
dos sábados às dez, 111
da transcendência, 112
dos versos tortos, 113
da primavera interior, 114
do desalento, 115
da poesia, 116
da experiência anapodíctica, 117
da criação, 118
do vazio nas prateleiras, 119
do final, 120

Escombros, 121

Poema Primeiro, 122


Poema Segundo, 123
Poema Terceiro, 124
Poema Quarto, 125
Poema Quinto, 126
Poema Sexto, 127
Poema Sétimo, 128
Poema Oitavo, 129
Poema Nono, 130
Poema Décimo, 131
Poema Décimo Primeiro, 132
Poema Décimo Segundo, 133
Poema Último, 134
Prefácio

Tenho como missão, mesmo sem uma existência completa, apresentar


os poemas que se seguem e falar um pouco sobre seu autor, já que
tratei da ficcionalidade ou não dos prefácios na apresentação 1 de
“Ficção”, textos de Jacson J. Faller, também organizados por mim.
Faller nasceu na cidade de Sobradinho em 1974, no estado
do Rio Grande do Sul. Filósofo de formação e mestre em Filosofia
da Linguagem, na juventude estudou fotografia e flertou com o
teatro. Como fotógrafo fez apenas trabalhos sob encomenda,
sempre relacionados à criação artística. Assim como no teatro, em
detrimento da evolução pessoal, nunca considerou ter a fotografia
ou as artes cênicas como profissão. No campo da Filosofia, foi
professor durante quatro anos e escreveu alguns poucos artigos
sobre epistemologia na filosofia moderna. Mais especificamente,
sobre o Filósofo e teólogo escocês Thomas Reid. É autor de
"Relatos de um Suicida " e de "Depois de Clarisse”, livros escritos
em prosa, bem como de três livros de poemas cujos mesmos estão
relacionados aqui. Assim como em “Ficção”, organizei esta
coletânea quando soube da exclusão de seus livros do circuito
comercial.
Ser incumbido como responsável para redigir um prefácio,
mesmo em termos singulares como este, não é, em nada, amena. Não
sou escritor, embora muitas vezes, em meio a divagações
autoprosopopeicas, tenha me arriscado a grafar símbolos neste ou
naquele espaço em branco. Um grafador da própria ruína. Noutras
vezes, mesmo em espaço algum, pois, como disse, são divagações.
Por mais que a crítica aos poemas me sejam vetadas, vejo que há
algo de amador nestes versos. Amador sob um aspecto estrito do
termo, o que torna ainda mais louvável o esforço aferido aqui.
1
FALLER, Jacson J. Ficção. Ed. Independently published (18 Maio 2021), p. 11.
Minha intenção neste panorama, é claro, é de orientar o leitor ao
que concerne aos textos mesmos. Aos versos que serão, ou não,
lidos.
Neste apanhado, o autor aborda, valendo-se de versos
livres, as dicotomias presentes na existência humana. Trata de vida
e de morte, de descrença e de fé, de alegrias e de tristezas; mas
empreendendo, sobretudo, o âmago do poeta que, em meio a um
sentimento de incapacidade da linguagem de expressar o interior
humano, usa dos artifícios da arte e, por vezes, da crítica à própria
poesia, para repensar sua vida e seu tempo. Ao organizar esta 2ª
edição, optei por suprimir um dos poemas presentes na primeira
edição e, por conta disso, acrescentar outro, até agora, inédito.
Espero que me perdoem se causo certo desconforto ou confusão
com esta modificação. Boa leitura!

Marcus Wörterheim
Porto Alegre, outono de 2021.
O Fruto Comemora o Apodrecer
Olhando pela Janela

Olhando pela janela, eu vejo


Meu passado confundindo-se com o agora.
Vejo todas as malícias a esmo,
Meus versos esvaziando-se outrora.

Mente derrotada e sofrida


(tristonho espinho renasce)
Peito dolorido, desiludido com a vida…
Pálido anjo que à esquerda padece.

Olhando pela janela eu vejo


A injustiça caçoando do tempo,
Sagrada a utilidade do medo,
Dilacerado oportuno respeito.

O mesmo erro assumindo seu lugar,


Um mundo perdido ao mesmo…
(grande tolice depois de tanto acreditar,
entregar-se ao insistente desalento).

Olhando pela janela eu vejo


A violenta velocidade que a ferida cresce:
Falazes palavras na mesma batalha há tempos perdida.
O homem com sua inútil crença (sorte com instinto suicida).

Olhando pela janela, eu vejo


Nada mais que olhares bisonhos,
Vejo a madrugada perdendo espaço —
A morte curando-nos dos sonhos.

15
Coisas

coisas que passei contigo


hoje, quando lembro, não me deixam em paz...
apenas um aperto na garganta, saliva sem gosto
sem paixão
sem esperança de reviver, sem sorrisos
sem fervor
coisas como a dor de um pensamento sem rosto
como a perda de um ente querido
coisas que não achei
coisas que não quero perder
coisas que um dia mudam
coisas
coisas que ainda duvido

16
Mais uma Canção de Amor

O amor é o engano que chora


Embriagado sob a lua fosca
É realidade-utópica
É uma grande ilusão.
Nunca passa de sonho
Nunca passa de
Então

Amar é confuso
Minha vida não é como a tua.
Te amo. Te deixo…
O pessimismo toma conta
A verdade vem à tona
Um poeta se insinua.

Teus olhos não me dizem nada


Se escondem atrás de um passado de sujeição.
Nos teus olhos, meu amor enfraquece
Se perde
Não passa de aspiração…

Num cálice de vinho, vejo


A noite como minha casa
Na respiração, minha falta de paciência
Na fumaça do cigarro, marcas do fracasso…

Teus olhos não me dizem nada


Mas no teu suor —
Vejo pedidos de clemência.

17
À Loucura

A loucura
É a rouquidão da mente.
É uma doença ou algo que nos atrai?
Quando a loucura se manifesta
O ambíguo se impõe,
Sua voz provoca o riso ou
Nos leva à paixão?
Coisas do Homem ou coisa do gênio
Que nos une ou nos divide
Nos palcos do dia a dia
De onde tiramos a experiência.

A loucura,
Aquela que nos confunde, lamenta a controvérsia
Dos Homens que a rodeiam…
Sente-se triste e solitária quando sua origem não levanta
Nenhum suspiro (longo) no Tempo
Ou nenhuma Causa maior que antes.
‘Sou um parasita julgado pelo medo ou
Uma essência que assombra os entes…’
Pensa ela, aliciada pela dúvida
Que rasga também
O espírito servente.

A loucura,
A que não impõe limites.
Que fútil aos covardes
E um tesouro — para o ir-além….
Deslumbrante enigma do mundo,
Deusa de Calígulas e de Napoleões,
Amante dos poetas entre os sonetos
Perfumado lençol da ilusão —

18
Recebe os lobos e seus ideais
Junto aos inocentes e aos amorais…
Como se fossem todos filhos
Que precisassem de paz.

À Loucura,
Dama colossal de qualquer território.
Irmã mais velha da Razão e do Caos.
Que o desequilíbrio acompanha desde sempre
Atribuído ao descaso dos ausentes.
Julgada como qualquer palavra
Em que o significado nos perturba, e se mantém…

“Loucos, Loucos, Loucos!”


Facínoras que não participam do jogo…
Quantos horrores trazem à margem
Da visão de sermos todos…?

19
03:00

Meu cão matou meu melhor galo.


Amarrei o galo no pescoço como lição.

(pobre galo! correu, correu 


e não consegui fugir)

O galo ficará no pescoço do cão


Até apodrecer, apodrecer e
c
a
i
r
.
.
.

20
Insônia

… após a minha morte


a cada noite irei velar-te
com um beijo frio e amargo
como fora o nosso amor.

21
Lúcia

Lúcia nadava em águas escuras


Onde as crianças sujas a observavam.
Não percebia a ilicitude da carcaça
E que à direita, a Peste sorria…

Enquanto fúteis canibais choravam 


A ilusão mais forte renascia.
Lúcia dormente se assombrava
Com a triste imagem de sua filha.

Pobre mulher que na ilusão flutua


Aceita a mão da podre esperança 
E a impiedosa Peste 
se anuncia…

Ao meu lado seu corpo descansa


Entre detalhes que só à morte confia 
Agora — que sua antiga dor — 
uniu-se à minha.

22
Deixo Meus Cânticos

Deixo meus cânticos


Aos mortos-vivos deste planeta.
Refugos da peneira de minha mente.
Memórias de todo-sempre
Do meu viver, atormentado…

Homem-Seu. Incompreendido.
Cujo Deus foi o desequilíbrio,
A noite sua genitora e
Seu pai, o sofrimento….

Venerador de outras Cores,


Espiava a tudo de dentro de seu peito.
Sentado no colo da inércia…
Bebendo seus vinhos funestos.

Degustador de nocivas flores,


Cobaia de todas as dores.
Filho bastardo da ordem e do caos.
Escravo, destes dias.

Deixo meus cânticos


Sobre cabeças aterrorizadas,
Pobres inventores do Tudo.
Pobres vidas de Nada —
Repletas.

23
O Fruto Comemora o Apodrecer

Mulheres seminuas travestidas de segurança


Falsas crenças, falsos cultos
Imagens destorcidas em vagas lembranças.
O passado perturbando-me com seus vultos
Homens vomitando ignorância…

Já vivi meus amores


Mastiguei os freios da esperança
Suguei sangue de todos os sabores
Assinalei o lado belo das matanças…

Como continuar lutando


Perante essa maldade
Que a cada dia mais se expande?
Como chorar sem ver visto
Se meus olhos são rios de sangue?

Nada mais justo


Que desistir ante esta solidão
Dar vitória ao bíblico corcel
Dar vitória a esta esnobe podridão.

Chega de iludir minha carne viva


Que posso vencer os nacos podres.
Com reverência, desisto diante deles e
Calo-me — aos pés dos grandes senhores.

24
Você ainda lembra?

Você ainda lembra... 


de como era linda
a nossa dança?
 
A lua e seu brilho abraçados,
nós dois em passos combinados
vivendo o que era mais feliz 
e aquilo que jamais pensamos 
que um dia seriam apenas 
lembranças...
 
Você ainda lembra?

25
Também Tenho uma Sina

Também tenho uma sina


(sendo sincero — deveras estranha)
Ser o fundo que o balde arranha
Quando a água abandona o poço…

26
Sabino

Em louvor à arte
Tomo emprestado de um livro
A ilustração magnífica
da capa
e a imortalidade
de Sabino.
Exibindo-me (assim) entre os convidados
divulgo a poesia sem lucro….
… e minha camiseta toda estampada
com a ilustração 
(ilustre).
Bebo um ou outro champanha
Lançando assim meu livreto
“Como é estranho esse poeta”
Irão dizer as marionetes….
[UM PRELÚDIO DE FUTURO ANSEIO UM DIA
MUITO MAIS QUE POEMAS NA BARRIGA]
Espero que ao amanhecer, bêbado, eu esteja ainda
Os críticos de olhos arregalados e
todas nuas
as meninas.
E solitário em pensamentos
direi sem rodeios…
Ficaste louco de vez
em anseios
Quando choveu
— Sabino.

27
Ruínas

Olhei para as ruínas


Olhei para o castelo desmoronado
Olhei para o céu
E novamente para o cavalo.
Olhei procurando equilíbrio
Procurando meu triste amigo
Ou mesmo um simples retrato.
Montei o cavalo
Peguei-o pelas crinas
e entrei no quarto.
Te senti presente, de corpo ausente
Perfumada, deitada…
Dormindo ao meu lado. 
Pensei que estava certo
No momento que me enganava
Cobrindo-me com um manto de escuridão —
Ansiando pela época do Nada…
Dormindo
Dormindo ao teu lado.
Da tua alma senti o cheiro
Na hora que lembrei do beijo 
que por ti
Pela primeira vez foi-me dado.
Acordei e me vi sonhando
Acordei e me vi morrendo
No poço que eu mesmo construí…
Simples, limpo
e raso…
Chorei
E tu não estavas
dormindo ao meu lado.

28
É Tão Engraçado

É tão engraçado
Eu, aqui parado 
E o tempo passando
A lua nova fingindo
Um tal astro-rei chorando
O céu azulado
O amor iludindo e deixando
E eu aqui, sentado
É tão engraçado
Os casais entre olhares namorando
Conciliações pelo ar pairando
E eu aqui, sozinho
Só pensando
É tão engraçado.

29
Meu Leito é um leito de Gelo

Meu leito é um leito de gelo


Que outrora teve um nome

(aproximo-me de outra vida)

A humanidade nunca me bastou


Recorro a um magnífico inferno
Pacífico e multiforme…

Revolto foi o mar que naveguei!


Turbulenta é minha nave espacial!

Seus olhos acesos velaram-me


Sua lua é vermelha, puro sangue.

(fumando — sigo fumando a solidão)

30
Potência do Nada

“alvor, suplícios, manhãs


“pagãos, ironia, raparigas
“consciência, ópio, poetizas

O reencontro com as páginas


Lupinas, infames, vazias, peçonhas
Faz-me suspirar como antes e
Escrever as coisas mais estranhas
Ver o nada que somos e
A inutilidade da poesia…

“dor, desespero, muxiba


“ultramontanismo, morte, fado
“avareza, Inanição, razia

Todas as palavras que soam


Limpas, imundas ou não
Flácidas, duras ou volúveis
Fazem-me soberano na tristeza
Relembrar aquilo que fomos
Em algum momento tranquilo…

“solidez, narcotismo, anjos


“chacais, vida, homens
“deus, demônio, incoerência

O poema chora a leveza


Que me pesa sobre os ombros
Este espaço, esta ânsia que não acaba
Esta “angústia que me esmaga o peito”
Não tem fim este tormento —

31
Palavras que não cessam…

“fogo, injúrias, sonhos


“traição, regozijo, flores
“sangue, câncer, injustiça

São lembranças de meus poetas


Sussurros de meus livros de cabeceira
Versos que ressuscitam com pressa
Plágios e criações verdadeiras —
Minhas artérias explodirão 
E cederei ao tormento…

“senda, lágrimas, visco


“noite, universo, beleza
“moral, ética, aparência

Rasguem sem dó minha pele


Mas acabem com o vazio que sinto…
Digo. Digo-te. Desapareça.
Imploro um desfecho ou um rosto
Qualquer gênero ou número que me faça
Saber por quem falo ou por que escrevo…

“fecundidade, paralisia, solidão


“natureza, inatismo, amor
“síncope, reflexão, alegria

A ansiedade chegou-me aos ossos


À boca, aos dedos e todo resto
Demência filosófica, poética, patética
Não suporto meus olhos mortais
A incógnita maior, tudo, todos, eu mesmo…
(não suportarei mais nenhum verso)

32
Relatos

I
Na calçada há uma flor entre os corpos.
Uma flor trazida por uma menina cega.
Ao lado, com câncer, uma idosa espera…

II
Sigo uma linha áspera que me leva ao céu.
Flutuo sobre a cidade noturna…
Caio à disposição dos carros na avenida.

III
Abraçam-se os dois, sorrindo
Com corpos brilhantes de sangue.

IV
Corre perto dali o assassino.
Uma criança contempla a cena.

33
Uma Tarde de Caminhada

Uma tarde de caminhada


Para aliviar a angústia, talvez
Até seja bom…
Sem o calor do sol, sem o brilho da lua.
Apenas eu, a tarde nublada
E a rua.

Uns versos mal rimados, talvez


Até seja bom.
Sem lágrimas, sem risos.
Ficar escrevendo sem compromisso.
Sem se importar com a solidão. 

Vá lá! É isto que tenho feito!


Escrevendo, caminhando… 
Traçando ruas, pisando versos.
Seguindo caminhos porosos —
Inatingíveis por completo…

34
À Mesa

embriago de gregos
aparenta-me
um desvelo de outro deus

enquanto o garimpar dos olhos meus


aparta da tua boca
o veneno.

35
Oblata

Dê-me alguma palavra


Para suportar esta vida tosca.
Dê-me algum sorriso
Para à noite servir-me de abrigo.
Dê-me algo entre as dores
Para afugentar a realidade.
Dê-me sombra, dê-me gosto
Dê-me morte —
Com afazeres…
Dê-me sombra, dê-me sobra
Dê-me morte —
Tranquila.

36
Adeus

gostaria de partir
rumo ao princípio da terra
ao livro perdido
partir rumo a um horizonte, nunca
visto antes

gostaria de adormecer nos braços da ursa-mãe


acariciar o pelo de um animal já extinto
voar n’asas do mais belo condor
beijar amor, sentir a vida

gostaria de abdicar do convívio entre os homens


partir para os confins da humanidade
renunciar ao nome de Deus

mas sem sofrer com isso…

37
Ouço o Clamor da Serpente

Ouço o clamor da serpente


Vejo um futuro sem espinhos.
Sobrevivo e sinto-me contente
Entre estes e outros delírios.

Bebo deste líquido sagrado


Ironicamente brindando à saudade.
Sou poeta menor celebrando o errado:
Sugerir emoções! Esta é a arte!

Voo, brisa silvestre, ao te encontro


Com asas de anjos e perfume de lírio.
Assim materializo teu lindo rosto,
Beijo-te e continuo tranquilo…

Recordando o que o pássaro me disse


N’aquele céu profano e longínquo:
Não se preocupe, amigo, não se preocupe,
Adormece contigo — a ansiedade 
... e o desequilíbrio.

38
Morte Sorrateira

Há tempos não sentia tal perfume


Tal languidez em meus pensamentos.
Há tempos
Não via olhar tão penetrante
Tanta fragilidade em meus lamentos.

Há tempos
Não via noite tão escura
Tanta escuridão em uma só noite
Funesta figura
Um rosto tão voraz e deslumbrante.

Há tempos não sangravam meus ouvidos


Meu fantasma dormia solenemente...
Amante traiçoeira, agora entendo
Por que andaste tão ausente…?

Esperavas, ansiosa, por meu declínio


Esperavas, ansiosa… por este momento.

39
Um Dolorido e Presunçoso Quintanar

Ontem 
estive n’um velório

não havia ninguém vivo


exceto, o defunto

Foi quando caí n’um buraco,


Buraco pra lá de escuro...

E como se não bastasse


ainda se fechou a saída...

(Já sentiram o cheiro


de uma esperança morta
— ainda viva?)

40
Noites

em momentos de lucidez
com minhas calejadas mãos
sustento este imenso céu…

II

nada sei sobre a superficialidade


ou sobre o poder da indiferença
tudo capto
tudo vejo
vejo-me por detrás da pele
sinto meus ossos ao amanhecer
não ignoro o cheiro da carne e do sangue
exponho-me como presa
— e como predador.

III

a ilusão que renova o passado


é a mesma que desvenda o futuro

IV

nesta noite sinto o cheiro de flores


talvez seja a morte
que esteja a me rondar
ou apenas
a tristeza
sendo sincera.

41
V

acordo
deparo-me com meu corpo no teto
olhando-me e sorrindo
com os ossos quebrados e o coração partido

à espera do afável silêncio


à espera do juízo…

VI

A insegurança consome a vida


como uma nota suicida
consome pensamentos.

VII

… um pássaro cortou o céu


o céu cortado onde outros pássaros voavam…

VIII

de perfil distraído 
o fantasma-mor me fita 
a página me desafia: 
Idiota... Medíocre... Insolente... 
preencha-me com tua impotência 
sufoca-me com tua pobreza... 
a abandono sem medo 
entrego-me à noite 
e vejo-me a fragmentar.

42
XIX

(Incom to ou A Mão Embriagada de Pollock)

O bêbado que pinta,


A vida que enerva…
O som das tintas,
O Vômito nas telas…

A mão que finge,


O copo que seca…
O gênio que urdi,
A arte que eleva…

XX

não me importa
se a palavra é fraca
se a rima é pobre

aonde te levas
onde te sentes
me importa.

43
Desalento

De dentro do meu armário de angústias e desequilíbrio


Olho para o insuportável espelho que pouco reflete.
Vejo meu inconsciente invadido pela realidade...
Meu único e último refúgio — destruído!

44
Quinto de Gregório

Um navio carregado de ouro


atravessa o mar sob a lua.
Um corpo nu, frio e sangrando,
agoniza entre ratos famintos.
Na mesinha de nobre madeira,
um caderno sujo de sangue
conta, em forma de poemas,
a dor que a verdade esconde.
Um desenho mal traçado, sem nitidez,
Sorri para o assassino alucinado...
Ele vê o rosto torpe da ganância,
ele duvida do próprio passado.
Uma árvore que surge da escuridão,
com pássaros e cobras em seus galhos
e uma estrela que sozinha completa o céu,
completa também o desenho mal traçado.
Ajoelhado diante da mesa,
lembra das brincadeiras juvenis
Sente-se culpado ante Deus
e percebe o Demônio, ao seu lado.
O corpo, agora sem vida,
serve de alimento a pássaros vorazes;
não desenha nem faz mais rimas,
é apenas carne — em pedaços...
O assassino se levanta e, com força,
aperta a arma na sua mão,
percebe que o sol já nascera
e que o medo, o Demônio, fortalece.
Ele vê, na faca, um reflexo
que não é do cansaço nem das nuvens
no céu… vê que o reflexo na lâmina

45
é o da sua própria solidão...
Já com fome e muita sede,
não distingue realidade e alucinação,
conversa horas com o cadáver que,
calmante, levantara-se do chão...
Ele desce as escadas com o corpo em seus braços,
sonolento e transtornado, chega ao escuro porão.
Sem aguentar o peso do ouro,
o casco rompido do velho navio
traduzia para o assassino:
aquele seria seu fim...
O corpo já estava boiando,
enquanto o assassino se desesperava:
Aqui estou afundando, na gélida saliva de Deus… e
agora que a morte purifica meu coração,
percebo que o Demônio é o ouro
e que, eu, ao desejar o tesouro
— assassinei meu irmão.

46
Segundo da Cânone

O corpo deitado na calçada.


A mão estendida para o alto.
A ajuda é atira aos seus pés
— e tem o som do metal…

Outra pessoa não olha quando passa.


Sentiu o cheiro do corpo sujo…
Saltou do carro pensando nos canapés 
Que em seu Natal serão servidos...

Uma criança, curiosa, para:


Tenho casa e tenho sapatos

Mas é puxada pela mão.


E segue…

47
Uma Homenagem ao Erro

48
Nos Jardins da Alquimia

Em meu jardim cultivo a árvore da tristeza,


onde não há lugar para a praga-riso...
Apenas o pensamento puro e limpo,
faz-se sobrepor ao silêncio...
Impera ali a lei da serenidade,
a lei do pressuposto e do Além...
À sombra, a mais bela sombra que aludo,
cultiva-se também o Andejo...
Que acre mais belo ali pleiteia
a nascente do mais belo rio!
Não há deuses nem gemidos
no gramado do oriundo jardim...
Mas que corpo sadio! Que esplêndido!
Que se mantém ali infindo.
Forças capazes do Creio
n’aquilo que sopra no Atento...
Porém, à noite (que clama em porvir)
nada mais digo nem repito.
Mas o que pressinto no Álter-Íntimo:
— Oh, mãe!
— Oh, Tristeza!

49
Fragmento

Tua voz é tão bonita quanto o teu rosto.


Teu sorriso é como o horizonte — duvidoso.

Qual seria teu sentimento por mim?


O horizonte que vejo agora é o mesmo que vi ontem?
Ou será que este horizonte
(ontem)
não era triste assim?

50
Aβουλή

... apenas lembro que era inverno,


que teu rosto era bonito
e que chovia...
Chovia lágrimas em forma de riso,
chorava amor a tua mão fria...
Lembro que não estavas sozinha.
 
Apenas lembro-me do teu nome,
de tua força invejável e infinita,
e lembro-me
de tudo o que eu tinha...
 
Lembro-me daquela tarde
em que tudo era confuso
e eu não entendia...
Apenas lembro-me do que senti,
e da nova palavra que aprendi:

Abulia.

51
Encontro

A lua ainda está lá. Eu a vejo.


Também aos poucos, nesta página, noto um sorriso...
As sétimas dos encontros — partes sedutoras da vida,
Rondando a antiga lua e a estética do sorriso...
Mas a lua ainda está lá. Atrás daquele prédio...
Provocando quantas lágrimas e quantos outros
— Sorrisos?

52
Uivos de um Amor Perdido

O Mortal ama. O Poeta chora...


Será repúdio ou falta de honra
Que sente o Amor nestas horas?

Decerto o Amor não ama Poetas,


Talvez não ame também quem chora;
Ou o Cupido (o grego Eros)
Fosse um Demônio de outrora?

Que castigo merece quem fica


Aliciando a Alma que ignora...
O futuro que a Dor edifica...
Tecendo suas teias à Aurora?

Fui Apolo? Foste Dafne?


Suguei teu sangue verde
Ou maltratei tua raiz?

Sufoquei-te com meu amor impuro


Ou à tua semente não cantei?

Por que não lembro teu nome?


Por que tua voz não ouvi?

53
Doença

A Doença vem em marcha majestosa


Destruindo o que é mais bonito.
Solitário, no imo, depois recordo
Dos versos que falavam ao infinito.

A Doença vem em marcha majestosa


Rasgando almas e corações aflitos.
Você se assusta e chorando acorda,
Disfarça – e sobrevive – aos gritos!

A Doença vem em marcha majestosa


Vestida de dor e som de sinos...
Em segundos, você dorme ou morre,
Ela sumiu – na floresta dos sentidos.

A Doença vem em marcha majestosa


Com a ironia, o cansaço e o mito;
Resgata a esperança e adormece.
Em soluços – Nada mais eu sinto.

54
Morrer Todas as Noites

Ontem me deitei
Com o pesar daqueles anos.
Lembrei-me de como eram doloridas
Minhas feridas de infância...

Ontem me deitei
Com uma dúvida sombria:
Para que pensar assim
Se é assim todos os dias?

Ontem me deitei
Em toda a minha insignificância,
Me cobri com nossa música,
Sonhei com nossa dança...

Ontem me deitei
Nas pétalas da verdade:
Nem mais as crianças são sinceras
Nem a noite
Nem a morte...

Ontem me deitei
Sobre meu atro destino –
Relutei pela madrugada;
Padeci sozinho...

Ontem me deitei
Para cumprir os versos do
[epicédio,
Abraçar minha sina:
Morrer todas as noites

55
Meu Pensar em Ti

Se te faço frases
Queres flores –
Se te trago rosas
Forças briga –

(É sempre bom
quando à noite
ficas comigo...)

Se te rogo pragas
Sentes sono –
Se te amaldiçoo mais
Viras anjo –

(É sempre bom
quanto antes
virar o jogo...)

Se fico em silêncio
Choras por dentro –
Se falo um pouco
Já estamos bem –

(É sempre bom
quando lês...
meu pensar em ti.)

56
Adro

Na casa sobre o Adro


Arde a desilusão.
Em esboços de decadência
Versa a esnobe dor...

Anjos com asas sujas


Invejam a humana prole.
Sonhos e ambições
Alimentam os horrores...

A persistência e a angústia
Imperam durante as eras.
Almas humanas sem anelo
São escravas do carbono...

A decomposição dos corpos


Não instiga a avareza.
O poeta não se inspira
N'áusea sem apegos...

Para a dúvida que nos enlaça


Não somos importantes.
Roemos qualquer resto
De sofismas que nos sobra.

O futuro pertence ao Homem


Que cumpre seu papel.
Toda terra removida pelo Animal
Cobre-nos o ego até a eira…

57
O que procuras não existe
Até encontrarmos uma imagem.
À nossa volta sentimos o mundo
Cada pessoa possui um horizonte...

58
Temporalidade Cacofônica

Novos aspectos do ontem


Em repugnância rarefeita
Forjando lábios para beijo
Com sincero
Veneno...

Dispersa língua e fácil


Sorriso
Espírito que se deixa
Atrair pelo nojo...

O nojo do hoje
O já jazigo —
Vida cacofônica
Onde amo os mortos.

59
Não Vejo Meus Dias Há Anos

Não vejo meus dias há anos,


Apenas os sinto, no estômago.
Pelas manhãs, quando acordo,
Não vejo os dias – vejo os anos.

Uma ansiedade me consome,


O Cão-Tédio me abate –
Ali, quase morto, desperto...
Não vejo os dias – vejo os anos.

Depois, ao longo do dia,


Do amanhecer não esqueço.
Peno, durante as horas que apresso...

À noite, quando finjo sério,


Deito-me às iras e adormeço –
Não vejo os dias – vejo os anos.

60
Revés

O meu revés
estava torto
ao invés
de gritar

calei.

A minha vida
estava torta
ao contorno de passar

parei.

61
Onde Está a Arte

um dia descobri que tudo fazia parte de um


grande espetáculo... enxerguei a corda que
sustentava a linda lua – encontrei nos fundos
do castelo as tintas com que pintavam o astro
principal... o céu era um magnífico pano azul –
que com outras tintas faziam dele um
esplêndido manto negro...
(e com panículas – tínhamos as estrelas!)
enxerguei deus
despindo-se para o sono e igualmente vi seus
filhos vestindo-se para o próximo ato...
um dia enxerguei a verdade:
não havia plateia alguma e
éramos nós

os Palhaços.

62
Poema
 
(são dolorosos
os primeiros passos de um dia –
 
flores
sangue
poemas)

63
Despertar

Há um desequilíbrio que me acompanha


Não sei se é perda ou acréscimo
Sinto a mesma dor da mocidade
Que, por dentro, corroía-me os ossos...

(Há a primeira pessoa que me acompanha


Não traço linhas para medidas ou analiso
Não meço a poesia que sustento)

Roubaram-me a vida que tinha


Em mãos vivas e serpentes e porcos –
Corro atrás do que me foi tirado...
Mas peno, por não lembrar de como era.

Há uma luz que não percebe a minha


Há um laço que me aperta ao leito...
Maldade própria ou por saber, tristeza:
Há uma traição que me acompanha!

Por se erguerem em si e nada mais


Tenho, por fim, outras coisas ainda.
Sem me arder como antes a mente
Há a morte da esperança e o fardo.

Sem sombras ou feitos sobra-me a vinha


Onde jazem poucos suspiros e o intelecto.
Sinto a mesma dor da mocidade
Que, por dentro, corroía-me os ossos.

64
Espelho

Reconstruo teu corpo abstrato


Dilacerado por tua arte concreta
Procuro em tuas palavras alguma vida
Antes de concluir o teu retrato...

Dispenso todo o comentário, tudo


Tudo o que é exposto, cênico, vil...
Observo teu coração senil
E abdico da amargura, ao fundo.

Não restando contraste algum, eu falho


Invento traços, traças e mazelas...
Evito assim, deparar-me com o nada

Banho em mágoas toda a figura


Levo ao rosto as aquarelas
E dou às costas — ao espelho.

65
Fato-Passo

De cada passo
Que destaco da calçada
Perco um movimento...
Se não fala minha palavra
Não possuo uma imagem:
A perdi no ante-atrito
Que precede ao fato...
Não escrevo nas ruas
Poeto a passadas!
Depois dissipo no pós-atrito
Que sucede ao fato...
Um passo, dois passos
Como me doem estes detalhes
Que fotografo
— à tarde...

66
Composição
 
com pó
com po sição
com ra razia

com por
com dor
can ç ões

com po esia
com po dridão
com nos talgia
com a versão

con so lidei
con so lação
não va cilei

cão só: cansei!

67
Ilha

É manhã. Desperto sem isso metar


Vivo. Não ouço minha voz...
Alagado inteiro de lama e a sós
Sou ilha sem ouvidar
O Bom, o Mau, a sorte e os nós.
Calado, não vejo o zelar
O Bem, o Mal, um continente, um mar
Gélido e vão, desprendido, algoz...
É tarde. É solidão. Reflito a velar
O trágico. O corpóreo e falaz
Deus divino. Filho audaz:
Sou ilha calada, surda – sem olvidar...

68
Movimentos

Um movimento
Um alvo em movimento...
Alvo para quem?
Alvo para que?

É só um movimento
Um pensamento...
Sou só. É só aparência:
Trespasso a rua em devaneio
Não estou a salvo...
Sou um alvo.

Um amanhecer, um alvo amanhecer.

Alvo para quê?


Alvo para quem?

Enquanto alvo
Noite ávida...
Enquanto ávido
Manhã esfólia...

Um movimento
Um alvo em movimento...
Retrocedo.
Sou um alvo.

69
Olhos Índios

Percebe-se o momento, vislumbra-se o vale verde


sob a luz do outono.
Cai a noite, olhos índios ao longe
também me tocam, docemente
o veludo.

Cavalgo sobre os montes, alazão de todo-belo –


tomo-o pelas crinas soluçando e finjo ter-te
seminua, eu-só em meu enlevo...
Percebo o momento, sinto roçar em mim teu corpo belo
levemente, qual a bruma verte.
À tua procura lanço-me à frente –
enrosca-me no pescoço
um fio do teu cabelo.

Vai-se a noite e eu-perdido no grande vale reconheço o medo:


Olhos Índios,
’té onde vão teus vãos segredos?

70
Santidade

Erguidos ante a nascente


Os meninos saboreiam o fardo;
Fadados a viver, vão além...
Choram e depois riem
Antes de beijá-los, a mãe.
Rompem o nexo
De que a vida é pior,
— Morrer é coisa fácil
— Queremos o pior.
E desafiados a vencer
Ainda amam a mulher,
Choram e depois riem...
Pois conheceram o amor.
Caídos à fonte,
Choram e depois riem
Depois de beijar-lhes, o filho...
Que erguido ante a nascente
Não chora e nem ri
Em respeito aos gemidos...
Que fadado ao pior, já bem nulo,
Ao fácil se opõe
— caído.

71
Maria-Puta-Da-Paixão

Nem santo nem ateu


O menino-deus-vencido
Sobre a terra agora é...
Renovou sem a mãe notar
O puro crer do homem
E a alucinação do próprio ser...
Sob o chão do império
Pairam a tristeza e o pó –
Qual homem algum veio dar...
Anoitece amanhã outra vez
Depois de dito o tolo mistério
Do baldio e belo — renascer...

72
Na Carne

Um Rei morto governa o mundo fantástico por onde transitas.


Seus súditos ancoram suas preces em um mar profundo...
Na superfície tremulo, solitário, minhas fatais ideias
— sanado de crenças, amontoo lençóis
sobre berços de príncipes, ao Rei, tementes...

Satirizo o amor ao Deus banido,


mastigo as plumas de teu manto...
De um Rei morto tu és a Rainha,
sou teu filho que de Édipo se farta!
Fartos seios e anca larga,
grandes olhos que de poder tudo lisérgica...
— turba de bobos a uma corte ausente!

Eis que teu inato Rei surge de um tudo-nada esquipático e burlão,


— neres vida, zombaria; dádiva concedida a qualquer um...
Mas tu como Rainha embriaga-te de lágrimas e teimas que não.

A lei é a tua palavra e do fantástico mundo ainda te alimentas


Com tua suave ânsia — e teu baldado suor.

73
Alvitre

Alguma vez já sentiste o tal perfume vago e belo da tristeza, amigo?


A nobre dor de um cão solitário?
Já quiseste sentir?
Minhas memórias eu arranquei de certas mentiras,
Sentimentos.
Questionei ao próximo minhas próprias dúvidas,
E através do olhar de cada um... também pude negar
A dor do belo,
A beleza do vago.

74
Quarto de Infância

Folhas. Devem ser as folhas que barulho fazem;


Não só, ..., sem vento.
Silêncio. Silencio também ao vento...
Palavra que não encontro, nem ao menos
Invento.
Onde achá-la?
Densa, áspera, fria –
Lâmina afiada ao osso rente?
Palavra, ...,

Medo.

75
Líquido
à menina que bebia aquilo rosa

Um livro à mão. No peito um maldito


Coração fatigado. Uma menina
Ao lado... Sua sede era a minha
Sede de bebê-la. Beber aquilo rosa.
À mão, Drummond. No coração
Amor. Ao lado, sede de menina
E aquilo rosa.

76
No Corpo um Universo
à menina que comia sementes

Sigo os rastros da tua saliva,


Levam-me ao lugar escolhido para ser o nosso lar –
Profundo, gélido, vão...
Eis um lar? – não.
Meu e teu. Nosso corpo é o nosso lar,
Minha igreja onde hei de pousar –
Hóstia una – santidade falaz...
Eis um lar? – não.
Teu e meu. Nosso exílio é nosso lar.
Onde pensamentos desvelam a dor...
Amor é. Palavras não.
Não há palavras – quiçá gemidos,
Úmidos gemidos de amor;
Dorido amor. Não-lar.
Para onde levam,
Ou hão de levar –
Os rastros da tua saliva...

77
Animæ

Sombras e movimentos assombram o forçado olho;


Densa é a meia-noite que se aproxima por alento,
Como sua irmã & irmão – escuridão & lampejo.
Há algo que me identifica entre os outros inimigos,
Faz-se necessário, pois por morto podem me ter...
Qual é o gesto dos gestos, pouco importa,
Entre os vultos sou outro e sou eu;
Pouco é o sopro para que puro seja –
Há de ter pureza para torná-lo o que julga ser;
A vida é de quem espera e apenas espera aquele que vive,
Espanto e dor, nascimento e lágrima...
No leito entempestam-se poema e máscara,
Também é negro o mar & a embarcação;
Sou eu quem aporta e o que o olho vê...
O silêncio deixa marcas a quem silencia,
Espera e silencia, e agride também...
Ergo sobre o Outro o véu do desprezo, e eu o desprezo
Como o desprezo que no inferno queima...
O que me anima? Força o choro e o ar?
O lábio, a língua bulímica?
Meus próprios gestos – espanto e dor?
A voz da noite por um segundo cala
Em vigília ao vindo ser
O céu se abre e o mundo chora,
Chora o olho e o olho vê...
Aquele que nasce também mata,
Aquele que agride também faz nascer...
O choro e o riso, a espera e a vida –
Sou outro, o outro sou eu...
Nada ter; só ilusão... o tempo é de todos e de ninguém...
O que viveu, o que viverá neste espaço ambíguo?
O presente?! Ah, o presente – corra – amigo!

78
Ele poderá existir...
Sombras e movimentos assombram o forçado olho,
Enquanto brinco e espero a constância do ser...
O fruto podre da espera é a angústia maturada
Em anseios e calafrios... uma criança –
Que solta o choro, solta o riso,
Baba a boca, transborda o muco...
No silêncio ouço mais, na cegueira a tudo se vê...
– Rasgo o véu! O outro sou eu! – Acorda! Brinca! Levanta-te!
Espera & brinda! Saúda a juventude com os teus!
(de saudades morro, irmão & irmã...
estou só – e a meia-noite se aproxima...
de vontades morro, escuridão & lampejo...
estou só – e a meia-noite se aproxima...).
Qual é o gesto dos gestos pouco importa,
Há a raiva e há o tempo; qual espaço é o espaço pouco noto
– há o movimento... e
Existo; Eu... Carapaça dura, frágil coração...
De carne também é o feto e o pão...
Alimento & alimento...
De palavra também é o feto e o pão...
Proeminente é o homem em seu castelo de ideais,
Na pueril realidade de seus sonhos infantis –
A dúvida faz o humano na promessa e na certeza,
Como o silencioso “Não!” do animal infeliz...
Perceber o mundo, a terra e o fel,
O inerte ato controverso e real,
Negar aos céus o que nos é obrigação,
Reter a dormência da língua viril –
É lançar-se ao perigo, proteger e pedrar...
A melancolia é uma deusa tranquila,
Satisfeita do necessário, passa a desejar...
Do desejo vem o vácuo; manto áspero sobre corpo senil...
— de todas as noites, a meia-noite é a mãe,

79
Sopro dos sopros e de toda traição...
Do despertar sempre presente da luz que não comporto...
Da escuridão de minha vida &
dos beijos de minha sorte:

— Folhas. Devem ser as folhas que barulho fazem...

80
Um Adeus à Vovó
À menina que comia sementes

... e o beijo no morto amor perdurou


e a boca gélida viveu ainda
por sete dias.

81
A Análise de Hermes

Há um rosto que me acompanha no passado


[dos meus instantes?
Poderia ele, afastar-me o cansaço?
Tornar afável a noite imatura –
Lançar-me ao sono, como se Olimpo fosse?

Há um rosto escondido no passado?


Há semelhanças com os indistintos segundos?
Definitivos traços de um rosto –
Rosto não-eu, que me aborrece os sentidos?

Amo aquele rosto, pele e odor?


Pelos ralos por insônia e preguiça?
É o pesadelo que dos sonhos me separa?
É o despertar que à vida – me condena?

82
Poesia

Pergunto-me – que é então Poesia?


Pensamento puro em papel cortante,
Alegria de sangue, dor de poema?
O que sinto? O que senti?

Pergunto-me – que é então Poema?


Satisfação e tristeza a florescer no silêncio,
Solitude plena do eu que não alcanço...
Experiência solta que teima em pousar?

Pergunto-me – que é então pensamento?


Um nós submerso em egoísmo,
Uma amar sem morada onde o homem já está?
Ou fragmentos de uma eterna guerrilha
Buscando sentido – implorando palavra...

83
Nu Artístico
 
hoje
o que quero
é
despir-me
 
despir-me de todo efêmero
despir-me de toda amargura
armadura
de todo receio
almejo
ao meio
 
despir-me da sina
das cinzas
das coimas
despir-me de toda a sorte
todo norte
todo seixo
 
despir-me da máquina
da máscara
das sombras
das farpas
de tudo o que é presumível
plausível
inerte
 
despir-me sem zelo
vagar sem elo
acordar sem medo

84
 
hoje
o que quero
é
despir-me
 
despir-me ao ventre
despir-me ao útero

85
Azáfama

Sofremos
&
Calados

Futuros
&
Passados

Vexames
&
Vitórias

Marias
&
Glórias

Fantasmas atormentados

86
Ex-Voto

Nasci morto e não chorei


Com violência forcei a vida
Vi uma certa ausência
Que de Deus talvez fosse
Uma sobra de dissabor
Do alimento que ruminei
Cuspi na terra uma semente
Que do negro céu se fez caída
Entre espinhos
& serpentes
& porcos.

87
Silêncio

Venho gritar sobre o meu silêncio,


Estou em descanso.
Lembro-me do que era sussurro, absurdo...

Venho gritar sobre o meu silêncio


Ante Deus e os Homens
Que a matar-nos vivem, aos poucos...

Venho gritar, mas se do meu grito


Voam farpas, estilhaços...
E também me torno um assassino — de inocentes.

Do meu silêncio guardo mágoas, lástimas


Que minto, finjo, enojo...
Pois descanso.

Descanso sobre mim as mãos de uma criança,


Eu lembro.
Sou a criança, sussurro...

Absurdo!
Venho gritar sobre o meu silêncio...
Mas não grito

— Assumo.

88
Ex-Voto-Redux

E assim que adormeci


Novamente o fantasma dissera:
Que adulto te tornaste
Criança funérea?
Nasci morto e não chorei
Fora os versos que fizera;
Que adulto te tornaste,
Oh! Criança venérea?
E como da vez primeira respondi,
Que tudo aquilo que pudera;
Não cometer amados erros
Que outrora cometera.
E com isso percebi
O nada que alcançara:
Tornara-me a aversão que mantinha
— Por aquilo que eu era.

89
Há Sempre Algo Entre o Plano e os Fatos

Há sempre algo entre o plano e os fatos


Algo que aludo a um lance de dados
Plano que conforta o lato...
Fatos que confrontam o ávido.

Lance que permeia o falso


Dados que destroçam os lábios...
Lábios que anseiam o beijo
Beijo que evocam os laicos.

Laicos cacofônicos & lascivos


Embebidos em áurea linguagem...
Trâmites inocentes de um roto horizonte
Horizonte corroído — pela imanência dos fatos.

90
Tempo

Imaginação & Imagem como cisma,


Valoração do inútil que nos queima
Espírito tão doce & violento
Ubíquo ramo de flores e veneno
Vazio que sopra & anima
Girassol insone. Intermédio
Entre mim e o Outro
Dado à luz, ausência de dor que a tudo rebenta
Ouro que reluz quando a vida cessa
Pêndulo perene de dor e de tédio
O querer e o já não basta
A dúvida que nos enlaça em segredo
Bruma altiva de um dia Impotente & Novo
Contingência que assola — e depois liberta.

91
Da poesia de que não tive coragem

92
da poesia de que não tive coragem

não me antecipo à palavra


si-lá-bi-ca
meu poema ruim não é problema para mim
meu poema ruim é problema seu
sou entre a palavra e a coisa
encaixado entre o sopro e a máxima
um ranger de dentes
um partir de ossos

93
da maria puta da paixão

tecido macio, gosto áspero


epiderme fria
poucos gemidos ao pé do ouvido
crucifixo

94
da enferma que sonha sonhos de deus

do alto azul da tua morada


onírica e sonora
trespasso a luz que te ilude
teu guardião informe
saboreia a carne
teu pai a saludar
não ousa amar-te

95
da infanti solidão

sou o engatinhar de uma criança


ao lado oposto de sua mãe
sou o ególatra carcereiro que
busca ao outro atacar
sou o astronauta sem asas que
busca ver o todo sem mover-se &
andar
viajo ou rastejo internamente &
nada mais

96
do desapego

hoje conheci o Gran-Cañón


ele está dentro de mim
em meu peito enfrento exércitos
ganho e perco guerras
sobrevoo a dor humana
enlaço meus desapegos
faço do todo um nada
tão imenso quanto um suspiro
acaricio meu inimigo
arranco seu lábio
perco-me em seu labirinto
por buscar uma voz
ditosa e não-austera
nem maior nem menor
do que as coisas que sinto

97
das coisas que há

nomes que existem coisas que há


no número há algo que não se pode tocar
há no olhar perdido uma fala que não dorme
busco sobre minha mesa o aroma do café
distrai-me facilmente o sentido
dentro da palavra há um mar

98
do fazer-se em cacos

visto por dentro não fui algo sem sinal


sem um signo que me deixasse a sós
como quando enquantos e poréns

o dizer sempre rompe o que se cala à beleza


das mixórdias cacofônicas que sempre me servem
não à rima, mas à mesa

99
do querer-dizer no rasgo da analogia

não posso ver-te em cores tão inexatas


como homem sou o oposto da sépia
como cor sou tempo e espaço
entre visões e cores saboreio teu corpo
por dentre as fissuras largas da minha triste língua

100
dos pré-fragmentos

gostaria de pensar que minha hora há de chegar


gostaria de escrever um poema sobre isso
mas nisso não há nada de possível
sou alma de outro tempo, carne de outro lugar
sou um filho do sol habitando uma imensa noite interior...

101
das coisas que não sei o nome

não se poeta antes de expressar-se em poema


por natureza ouve-se a alma e ouve-se os pais
há sobretudo um duro nome
vejo todo amor como dentes podres
não se poeta antes de expressar-se em poema
todo verso é o esconderijo de um nome

102
do não estar mais presente

a lembrança afastada do momento


que há tempo cruzou, enfim
fiz-me eu girassol insone que tarda a sentir
enquanto minha vida escava suas covas & sonha em ti
belos ramos sem flores de uma casa sem jardim

103
das criaturas que habitam a realidade

sozinho em casa não principio em busca


de princesas virgens que sangram aos pares
calo-me apenas e olho a ruína bela
e dos meus olhos, saem cavalos

104
do fisicalista em crise

a palavra diz os corpos


sentimos o que é destituído
como o azulado sabor de certos pescoços
& a lua gasta da tua virilha

105
do amor prometido
 
Lábios, dentes, saliva —
Do que é feito o amor prometido?
Vibrações de um crânio oco, uma vertigem
Um pueril instante, uma língua...?
“Prometo-te... é para sempre...”
A resposta: Um Ruído!

106
do desaconchego pátrio

emaranhado à tela
os pés ao léu
acortino o descompasso
da vertigem do tempo
oscilo ao gosto
de um deus qualquer
de toda senda a sombra é o pai
e ainda me sobra um pescoço
que ei de quebrar

107
do sábado por dentro frio

de uma pequena recordação


minha juventude não vingou
não houve entre os fatos fato que não foi
restos de pequenas lembranças
sem formato e uma esperança vã

108
das coisinhas pequenas e grudentas

agarrados a pequenas coisinhas


seguimos a vida plena de super-humanos
mentiras tão perfeitas que não apenas nós
mas também muitos mais
antigas orações e drogas nobres
seduzindo-se pelos sons...
embriagados entre colos mais que maternos
confortabilíssimos travesseiros, local perfeito e lágrimas
transmorfos risos
alucinada esperança entre fofas tetas
esquecendo-se

à música

109
do fetiche

M
Mi
Mil
Mill
Milla
Milla J
Milla Jo
Milla Jov
Milla Jovo
Milla Jovov
Milla Jovovi
Milla Jovovic
Milla Jovovich
Milla Jovovic
Milla Jovovi
Milla Jovov
Milla Jovo
Milla Jov
Milla Jo
Milla J
Milla
Mill
Mil
Mi
M

110
dos sábados às dez

o que há no teu frasco amor


frasco-palavra
na manhã em que chegas
com o amor às favas
o que há no teu frasco amor
frasco-palavra
na manhã em que escreves amor palavras
o que há no teu frasco amor
frasco palavra
no âmbito flozô
lindo ócio
amor palavra

111
da transcendência

submersa em águas límpidas


a dura pedra vida e também flui
olhar rígido compos sui
estranheza nula sensismo dêitico
leve e mui...
entre bucólicos amores que a vida rege

e com a indiferença do homem roto


alheio e à margem
eu rio e também passaro
a extensão de todas as coisas

112
dos versos tortos

sempre soube das mazelas do eu banhado em águas poluídas


que o trabalho enobrece e que a esperança também fadiga
e, que em rotos horizontes, a vista falha
& enigma

113
da primavera interior

há um lindo dia dentro de mim


há vida e há morte
há um sorriso que escapa aos fracos
uma tristeza que acolhe o forte
uma fé que assombra os laicos
um silêncio que não dorme
há vida e há morte
há um dia lindo dentro de mim

114
do desalento

tão mau
tão vão
tão nulo
homem que sonha
homem que sombreia
e tateia sobre a própria sombra
em busca de algo que não pode tocar

115
da poesia

são quantas as vezes que falha, falta, grita ao silêncio


— a palavra?
são quais os lugares que não se ouve, não se ama, não se sabe
— o instante?
são tantas as questões que não se pergunta, sussurra, admira
— o tempo?
são quais as esperas, que não se espera, aperta, alarga
— o espanto?
são elas que não saem, que não se perdem, que não pecam
— o lugar?
são elas que julgam, que afirmam, que permanecem
— no que não há?

116
da experiência anapodíctica

a fina pele dos lábios que amam


teu suco ardente e doce
violento afronte resíduos da cama
amor insone suor da noite
clama à seda
um sonho contigo

117
da criação

a tinta fresca escorre por sua testa


a criança não sussurra apenas fita
o pintor observa o langue olhar
de criança suja fez-se margarida
dentre os lábios do guerreiro
impotente e caído
ouve-se solto um lento grito
guernica

118
do vazio nas prateleiras

há mais dano que poema


em qualquer livro ou poesia
dano que somo, dano que centra
espalhando suspiros inócuos
& banhando-me em letras

119
do final

forjei meu canto e era escuro


não há nada de errado nisso
há pessoas que brilham ao luar
fico eu sempre preso ao fundo
sou avesso ao riso solto
e não há nada de errado nisso
procuro sempre no lábio amigo
algo de mim que não anulo
chacota daquele que vence
íntimo do homem imaturo
e não há nada de errado nisso
das preces precoces não assumo
um desespero lindo e puro
forjei meu canto e era escuro
e não há nada de errado nisso

120
Escombros

121
Poema Primeiro

a palavra que não sai de casa


presa à língua
presa à boca
presa à memória
num pensar intraduzível
inefável
impossível
a palavra que não sai de casa
desmedida
estrangeira
despalavreada
palavra que não sai de casa
é também palavra?

122
Poema Segundo

aqui vai, meu poema


a imagem prometida outrora
grafada está à memória
um sentido a buscar
no agora

aqui vai meu poema


ávido de olhares e de sangue
pulsando n’um corpo ausente
e n’um pensar a vida
que esfola

aqui vai, meu poema


no teu seio um embate
todo enleio (e’standarte)
da falta que te lança
à sorte.

123
Poema Terceiro

cachorro que come


osso que rala
bicho que morre
homem que mata

tipo que voa


feio & assumido
enfeza concreto
indefinido

amor que some


palavra que dupla
medo que afunda
no sujo umbigo.

124
Poema Quarto

coisa que não há


muito se viu de tão misera
vel’eidade aguda de todo poe
ma’tizar dores sem uma ri
ma’is pobre que tu
do’irando o próprio ce
trino manto escu
ro’busto passado e
vadido de nós

125
Poema Quinto

não é possível que tudo seja arte


toda palavra, todo poema...

no escrito da carta
um segredo...

ouvinte querido, uma pena


de toda dor de buscar um ritmo
uma voz que não a tua,
sublima.

126
Poema Sexto

em vão
palavra torta, frase morta
amém!
e o povo ora
reza, esfrega as mãos
e o povo ruge, foge
finge, não passa
há uma escada!

e o povo ora
chama, proclama, reclama
meu deus!
reza, para
gato preto, não!
e o povo ora
arruda, ferradura
amém!

sal grosso, trevo murcho


sem feição, sem feijão
e o povo ora, o povo
pede
ora juíza, ora altera
amém!

ora a um, ora a outro, ora a muitos


o ateu...
ora a deuses, o sem Deus

em vão, reza frouxa, mensagem chocha


amém!

127
Poema Sétimo

eu sei. um dia tive felicidade. eu acho.


foi naquele texto, o de maio.
o céu estava nublado, à minha escrita.
sem calor, sem frio. a água era pura.
deus, sem barba.
justiça sentava-se à direita
(sorria como sempre)
o amor nunca faltava...
a maldade era um anjo. de asas cerradas.
e por último, a fome. uma linda rua
ironizando um passado
eterno.

128
Poema Oitavo

eterna não é a alma


sou corpo
sou alma
apodrece corpo
apodrece alma

certa vez visitei uma estranha cidade


onde viviam homens estranhos estranhas mulheres
todos uivavam, ninguém sorria

olha vigília o que me fizeste


deslocado nos versos
sem tempo
sem vírgulas
sem sentido

perdi tudo o que tive


tudo o que tinha
tudo que havia

morro aos oito


morri aos vinte
morri sozinho.

129
Poema Nono

quando escrevo
não penso no sentido
penso no ritmo
se o som é longo ou conflito

absinto.

se faz frio ou se faz nojo


se arrogante ou se arroto
alma triste ou lavada
coisa ruim no estômago

alojada.

quando escrevo ouço sempre um grito


às vezes, sussurro... às vezes

gemido.

um fino trato proposto à língua


um toque suave à pele

formiga.

130
Poema Décimo

livros que me habitam


charco primeiro.
apeno um toque
e um costume, anteiro.

livros que me habitam


cães peludos, puro felpo.
caça fraca. passeio.

livros que me habitam


mata baixa, rasteira.
presa de memória
avessa.

131
Poema Décimo Primeiro

há um pai que está morto


sob os trilhos
trilhos de recôncavos gramaticais

um o, outros os... por conta


dos vivos
vivos que deturpam uma ordem
revertem aquilo pronto

pobre o, pobres vivos


arrancam a vida de artigos
por obra da pequenez
de seus intelectos

132
Poema Décimo Segundo

teu amarelo me fascina


não há como não falar disso
não são curvas, não são cheiros
é linguagem iluminada
que transborda o próprio fascínio
acalanto de arte dilacerando o ínfimo
túmulo de mediocridade e dos dejetos
de todo Narciso.

133
Poema Último

a menina dos sonhos e dos olhos


saiu sem as horas para voltar...
levou seu caderno sem palavras
ousou um sonho de não sonhar...

A menina dos olhos e dos sonhos


Saiu sem as horas para voltar...
Olhou nuamente para o sentir e o viu
Igualmente desnudo, sem lugar e cruel...

a menina dos sonhos e dos olhos


saiu sem as horas para voltar...
despalavreou sua língua sem medo
rasgou suas folhas de não amar...

sem as horas para voltar...

134

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