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Poética Musical
em 6 lições
Tradução:
Luiz Paulo Horta
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Stravinsky, lgor, 1882-1 971
S894p Poética musical (em 6 lições)/ lgor Stravinsky; tradução,
Luiz Paulo Horta - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996
CDD 781
CDU 781
- - - - - - - - - - - -------------
, .
sumario
prefácio, 7
1 estabelecendo relações, 13
2 o fenômeno da música, 29
J a composição da música, 49
' tipologia musical, 67
~ os avatares da música russa, 87
epílogo, 123
prefácio
5. Cf. p.124.
6. Igor Stravinsky, -whe~ is thy sting?", T'M Nm, Yum Review of Boalt..,;, 12:4,
24 de abril, 1969; republicado cm lgor Stravinsky e Roben Craft, &,ros-
pectiWJ and Omclu.rioru, Nova York, Knopf, 1969.
prefácio :1D=ttll1===-____JIL1!.!1_JI
t:I
GEORGE SEFERIS
Atenas, maio de 1969
espec1es an1ma1s.
A arqueologia, portanto, não nos fornece certezas, e
sim hipóteses vagas. E à sombra dessas hipóteses alguns
artistas sentem prazer em sonhar, consideranderas menos
como fatos científicos do que como fontes de inspiração.
Isso é tão verdadeiro para a música como para~ artes
plásticas. Pintores de todas as épocas - inclusive a nossa
- deixam sua fantasia vaguear no tempo e no espaço, e
oferecem sacrificios suce~ivamente, ou mesmo simulta-
neamen te, nos altares do arcaísmo e do exotismo.
Essa tendênciat em si mesma, não requer elogio nem
censura. Gostaria apenas de observar que essas viagens
imaginárias não nos fornecem nada que seja exato, e não
estreitam nossa intimidade com a música.
Em nossa primeira aula, descobrimos com espanto
que, no cas~ de Gounod, há sessenta e nove anos, mesmo
o Fausto, de início. encontrou ouvintes que se rebelavam
,
e métrica? E a obses.,ão com a regularidade. Os tempos
isócronos, nesse caso, são apenas um·,, modo de pôr em
relevo a invenção rítmica do solista. E isso que traz sur-
presa e produz o inesperado. Refletindo sobre isso, per-
cebemos que sem a presença real ou implícita das mar--
cações de tempo não poderíamos descobrir o sentido
dessa invenção. Estamos aqui apreciando uma forma de
relação.
Este exemplo me parece esclarecer suficientemente as
conexões entre métrica e ritmo, tanto no sentido hierár-
quico como no sentido crononômico.
Que podemos dizer, então, agora que estamos plena-
mente informados, quando alguém fala - o que é muito
comum - num "~~~ ~~pi_~o"? Como pode tal erro ser
cometido por uma pessoa sensata? Pois, afinal de contas,
ràcelerar altera apenas o movimento.l Se eu canto o Hino
-
Nacional Americano duas vezes mais rápido que o usual,
l-estou apenas modificando o -seu andamento; de modo
algum estou mudando seu ritmo, já que a relação dos
valores musicais permanece intacta..;
Fiz questão de desperdiçar alguns minutos ne~ pro-
blema elementar porque é possível vê-lo singularmente
distorcido por pessoas ignorantes que abusam do vocabu-
lário da música.
Mais complexo, e de fato fundamental, é o problema
específico do tempo musical, do cronos da música. Es.~
problema foi objeto, recentemente, de um estudo muito
interes1ante de Pierre Souvtchinski. um filósofo rusoo e meu
amigo. Seu pensamento encontra-se tão próximo ao meu,
que nada posoo fazer aqui senão procurar resumir sua tese.
Ele vê a criação musical como um complexo inato de
intuições e possibilidades baseadas fundamentalmente
numa experiência exclwivamente musical do tem~ -
'
cronos - , do.qual a linguagem musical nos dá apenas a
realização funcional.
Todos sabemos que o tempo transcorre numa veloci-
dade que varia de acordo com as disposições íntimas do
indivíduo, e com os fatos que afetam sua consciência.
o fenômeno da música :::1lttl:1:l==--------1l..:3~7...JI
t:I
,
E escusado dizer que não esgotamos aqui esse tema
infindável, e precisaremos voltar a ele.
Não estamos em um conservatório, e não tenho inten-
ção de aborrecê-los com pedagogia mt1sical. Não estou
preocupado, a· essa altura, em apresentar certos princí-
pios elementares conhecidos de vocês e que, se necessário
- supondo que os esqueceram - , poderiam ser facil-
mente encontrados em qualquer compêndio. Não irei
prender vocês com noções de intervalos, acordes, modos,
harmonia, modulação, registro e timbre - conceitos que
não são ambíguos; mas quero deter-me por um momento
em certos elementos da terminologia musical que podem
gerar confusão, e tentarei esclarecer alguns equívocos,
assim como acabei de fazer em relação ao cronos ao falar
sobre métrica e ritmo.
Todos vocês sabem que a gama de sons audíveis cons-
titui a base .ttsica da arte da música. Também sabem que
a escala é formada p<>r meio dos sons da série harmônica
arranjados em ordem diatônica numa sucessão diferente
da que a natureza nos oferece.
Sabem também que a relação de altura entre dois sons
denomina-se intervalo, e que um acorde é o complexo
sonoro que resulta da emissão simultânea de pelo menos
três sons de altura distinta.
Tudo vai bem até aqui, tudo i$0 é claro para nós. No
entanto, conceitos de consonância e dissonância deram
origem a interpretações tendenciosas que deveriam ser
definitivamente esclarecidas.
;consonância, diz o dicionário, é a combinação de
diversas notas musicais em uma unidade harmônica. A
di~onância resulta da perturbação dessa harmonia pela
adição de notas estranhas a ela. Precisamos admitir que
isto não está claro. Desde que surgiu em nosso vocabulá-
rio, o termo dis.fonância traz em seu bojo um certo cheiro
de pecado.,.
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LI poética musical
lodia sem sequer ter pedido por ela, como se os Céus lhe
dissessem: "Darei a você o que falta a Beethoven.":
Sob o efeito do intelectualismo erudito que predomi-
nava entre os melômanos do gênero sério, foi moda,
durante algum tempo, fazer pouco da melodia. Começo
a pensar, de pleno acordo com o público em geral, que
a melodia deve manter seu lugar no topo da hierarquia
o fenômeno da música t:I ==-----.....LI...::=4~S.JI
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,
E isto o que se chama de progresso? Talvez. A menos
que os compositores encontrem força para sacudir essa
pesada herança obedecendo ao admirável conselho de
Verdi: "Vamos voltar aos velhos tempos; isso será um
progresso."
a composição da música
IVF-\fOS UM PERÍODO L\f que a condição humana
passa por profundas transformações. O homem
moderno vem perdendo progressivamente a sua
compreensão dos valores e o seu senso de proporções.
Es.sa inaptidão para entender realidades essenciais é ex-
tremamente séria, levando de modo infalível à violação
das leis fundamentais do equilíbrio humano. No domíRio
da música,,-....
as conseqüências desse equívoco são as se-
guintcsf por um lado, existe a tendência de afastar o
espírito.do que chamarei de alta matemática da müsica, de
modo a dcgrJdá-la a uma utilização servil, de vulga~µ-la
adaptando-a às exigências de um utilitarismo elementa~ -
.como logo veremos ao examinar a música soviética. Por
outro lado, como o próprio espírito está enfermo, a música
de nosso tempo, especialmente a música que advém de si
mesma e que se crê pura, traz com ela os sintomas de um
defeito patológico, e espalha os germes de um novo pecado
original. :'õ. velho pecado original era sobretudo um pe-
cado de conhecimento; o novo, se pooso falar n ~ termos,
é antes e sobretudo um pecado de não reconhecimento -
a recusa em reconhecer a verdade e as leis que daí proce-
dem, leis que chamamos de fundamen~J Qual é, então,
essa verdade no domínio da música? E quais são suas
repercussões sobre a atividade criadora?
Vamos lembrar o que está escrito: Spiritus ubi vult sfrirat
(São João 3,8); "O Espírito sopra onde quer". O que é
preciso reter nessa proposição é sobretudo a palavra
QUER. O Espírito está, ~im, dotado da capacidade de
querer. O Jlrincípio da volição especulativa é um fato.
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LI ILJI poética musical
,
descobrir a obra. E essa cadeia de descobertas, bem como
cada descoberta individual, que provoca a ernoção -
quase um reflexo fisiológico, como o apetite que provoca
um fluxo de saliva - essa emoção que invariavelmente
seg~e de perto as fJ.Ses do proce~o criativ~'
'1Toda criação pressupõe, em sua origem, uma espécie
de apetite provocado pela antevisão da descoberta. Esse
gosto antecipado do ato criativo acompanha a captação
intuitiva de uma entidade desconhecida já possuída mas
ainda não inteligível, uma entidade que só tomará forma
definitivd
,
pela ação de uma técnica constantemente vigi-
lante.:
Esse apetite despertado em mim pela simples idéia de
colocar cm ord~m elementos musicais que atraíram a
minha atenção não é absolutamente uma coisa fortuita
como a inspiração, mas algo de tão habitual e periódico,
mesmo não sendo tão constante, quanto uma neces-
sidade natural
Essa intuição de uma obrigação, esse gosto antecipado
de um prazer, esse reflexo condicionado, como diria um
moderno fisiologista, mostra claramente que é a idéia da
descoberta e do trabalho difícil o que me atrai.
O próprio ato de colocar a minha obra no papel, ou,
como dizemos, de trabalhar a ma~, é para mim insepa-
~vel do prazer da criação. No que me diz respeito, não
consigo separar o esforço espiritual do esforço físico e
fisiológico; eles me aparecem no mesmo nível, e não se
apresentam numa hierarquia.
fÃ. palavra artista, que, bastante incompreendida h~c,
confere ao que a carrega o imenso prestígio intelectual,
o privilégio de ser aceito como puro espírito- esse termo
pretensioso é, a meu ver, inteiramente incompatível com
a fEnção do homo f abef_}
i -.
dcndo-se,,,
sob qualquer aplicação que dela se quiser fa-
zer. E verdade que, segundo se diz, cada um de nós deve
viver em seu próprio tempo. O conselho é supérfluo:
como poderia alguém fazer de outro modo? Mesmo se eu
quisesse reviver o passado, as mais enérgicas tentativas de
uma vontade desgarrada seriam fúteis.
Segue-se daí que todos tiraram vantagem da flexibili-
dade desse termo vazio para tentar dar--lhe forma e cor.
Porém, insisto, o que entendemos pelo termo modernis-
mo? No passado, ele nunca foi usado, e era até desconhe-
cido. No entanto, os que nos antecederam não eram mais
estúpidos que nós.f,rerá sido este termo uma verdadeira
descoberta? Já mostramos que não foi nada disso. Não
poderia ele, antes, ser o sinal de uma decadência na
moralidade e no gosto? Aqui, acredito fortemente que
podemos responder pela afirmativa.
Minha grande esperança, para concluir, é que vocês se
sintam tão embaraçados como cu com essa expressão.
Seria bem mais simples abandonar a mentira e admitir de
uma vez por todas que cham~mos de moderno tudo o
que lisonjeia nosso esnobismo.\~1as será que vale a pena
lisonjear nosso esnobismo? ~--
0 termo modernismo é ainda mais ofensivo quando
normalmente acoplado a um outro cujo sentido é perfei-
tamente
--- claro. Falo do academicismo.
i, Uma obra é considerada acadêmica quando composta
estritamente de acordo com os preceitos do conservató-
rio. Segue-se daí que o academicismo, tomado como um
exercício escolástico baseado na imitação, é em si mesmo
algo de muito útil, e mesmo indispensável para iniciantes
que se adestram estudando modelos. Segue-se da mesma
maneira que o academicismo não deveria encontrar es-
paço fora do conservatório, e que os que esposam um
ideal acadêmico depois de completarem seus estudos
produzem obras a rigor correras, mas secas e desprovidas
de sangue. 1
· Os que escrevem atualmente sobre música adquiriram
ri hábito de tudo avaliar em termos de modernismo, isto
80 ~1======-..1lwlILJI
L I. : : poélica musical
Obviamente, é muito
,,
mais fácil colocar perguntas do
que dar respostas. E mais fácil questionar do que expli--
car.
Minha convicção é que o público sempre se mostra
mais honesto em sua espontaneidade do que aqueles que
se estabelecem oficialmente como juízes das obras de
arte. Vocês podem acreditar em alguém que, ao longo de
sua carreira, teve a oportunidade de tomar contato com
os mais diversos tipos de público. Tenl10 observado, em
meu duplo papel de compositor e intérprete, que quanto
menos o público estava predisposto favorável ou desfavo-
ravelmente em relação a,uma obra musical, mais saudá--.
veis eram suas reações à obra, e mais propícias ao desen--
volvimen to da arte musical.
\ Depois do fracasso de sua peça mais recente, 11m ho-
mem de espírito declarou que o público tinha decidida-
mente cada vez menos talenlo ...Já eu penso, em vez dis.5o,
que são os compositores que algumas vezes mostram
pouco talento, e que o público sempre tem, se não talento
(o que dificilmente se poderia aplicar a uma coletivi-
dade), pelo menos, quando en_tregue a si mesmo, uma
espontaneidade que confere grande valor a suas reações.
Desde que não tenha sido contaminado e]e mesmo com
o vírus do esnobismo,_!. ,,
musica russa
,1 •
de um modo passive>. ) ·
~~~
pi?=-:
"A música", diz o sábio chinês Tchen-ma-tsen em suas
memórias, "é o que unifica". Esse laço de unidade nunca
,-===========i,-1-27-)
epílogo -,-,--,