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Poética Musical

Desenho de Stravinsky, por Pie asso, 1 Y20


lgor Stravinsky

Poética Musical
em 6 lições

Tradução:
Luiz Paulo Horta

Jorge Zahar Editor


Rio de Janeiro
Tradução autorizada da ediçlo
publicada por Harvard University Press,
de Cambridge, Mass., EUA
Copyright C 1942, 1947, 1970, lhe Presidenl and Fellows
of Harvard College
Copyright 0 1996 da edição para o Brasil:
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em parte, constitui violaçAo do copyright. (Lei 5.988)

Capa: Ana Paula Tavares e Mariana Zahar


Ilustração da capa: Desenho de Stravinsky, por Picasso, 1920

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Stravinsky, lgor, 1882-1 971
S894p Poética musical (em 6 lições)/ lgor Stravinsky; tradução,
Luiz Paulo Horta - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996

Tradução de: Poetics of music (in the form of six lessons)


ISBN 85-711 0-366-6

1. Teoria musical. 1. Titulo.

CDD 781
CDU 781
- - - - - - - - - - - -------------
, .
sumario

prefácio, 7

1 estabelecendo relações, 13

2 o fenômeno da música, 29
J a composição da música, 49
' tipologia musical, 67
~ os avatares da música russa, 87

6 a performance musical, 109

epílogo, 123
prefácio

E PUDESSE ESCOLHER LIVREMENTE onde gostaria de


estar no ano acadêmico de 1939-40, minha escolha
seria um lugar na jovem classe de Igor Stravinsky em
Harvard. Talvez eu tenha herdado ,
certas tradições das
antigas corporações medievais. E nesse espírito - o de
um artesão de uma época distante - que entendo Stra-
vinski quando, ao elogiar "a incomparável escrita ins-
trumen tal de Bach", observa que se pode sentir o cheiro
da resina de seus violinos, e provar as palhetas de seus
oboés. 1 Nesse mesmo espírito, aventuro-me a dizer que
os preceitos de mestres consagrados podem trazer tanta
densidade quanto suas criações.
Desde essa época em Harvard, páginas importantes
foram acrescentadas ao conjunto de textos tratando da
vida e da obra do grande compositor. Penso nas umver-
sações com Robert Craft, que vem fazendo por Stravinsky
o que o jovem Eckennann fez por Goethe. De todo modo,
desde logo devo observar que assilJl como as "Lições" de
Harvard não tornam supérfluos livros como as Chroniques
de ma w (Paris. 1935), 3$Ím também as "Lições" são
complementadas, e não invalidadas, pelas reflexões sobre

1. Igor Stravinsky e Robert Craft Convenation.s ruilh lgar Slravirulry, Nova


York, Doubleday, 1959, p.!1.
~B~I======-..1lwlILJI poética musical

música e pelas reminiscências que desde então vieram a


público.
f:sgs seis conferências foran1 feitas em francês sob o
título Poétiq',u musical.e sous forme de six /,eçons, e integram a
prestigiosa série das Charles Eliot Norton Lectures on
Poetry, de Harvard. O texto original encontrava-se há
bastante tempo fora de catálogo, e se transformara em
raridade.
Stravinsky nos fala de quão frato se sentia, não sendo
o francês sua língua materna, por ter podido revisar o
esboço do texto com seu amigo Paul Valéry. É uma
imagem cativante, a des.,a colaboração entre dois devotos
da precisão. Igualmente encantador, e instn1tivo, é esse
detalhe que o grande músico nos fornece: "Mesmo agora,
meio século após ter deixado o mundo de fala russa, ainda
penso em ruS5o, e, ao falar outras línguas, é como se fo~
uma tradução". 3 É difícil imaginar essa Babel em uma
alma que sempre aspirou pela unidade.
Stravinsky em Harvard me faz pensar em Paul Valéry.
Quando eu era estudante em Paris por volta de 1922,
Valéry sigriificava muito para mim. E mais tarde, quando
~oas mais velhas que o tinham conhecido me falavam
dele, eu ficava sempre comovido ao ver como fora amado.
1'Tunca esquecerei uma tarde de outono no pequeno
escritório de T.S. Eliot na Faber and Faber's e a voz do
pôeta dos Quartetos terminando nossa conversa sobre
Valéry: "Ele era tão inteligente que não tinha ambição
alguma."
E agora, quando registro esse pequeno tributo a um
músico de nosso tempo que sempre considerei com de-
voção, lembro-me da frase em uma das cartas de Valéry:
"... em termos de música, o vocabulário específico nada
me diz que não seja vago ou assustador". Participo desse

2. Igor Stravinsky e Robert Craft, Memoin cm.d ÚJfflmmJaM, Lond~s, Faber


and Faber, 1960, p.74.
3. Igor Stravinsky e Robert Craft. &pasitioru andDeuelopme,a~ Londrt'.s, Faber
and Fabcr, 1962, p.18.
prefácio -,--,-1 g--=--=--=-=-=-====::::ci--,-,

sentimento, e muito hesitei até concordar cm escrever


mesmo essas poucas palavras. E minha hesitação foi re-
forçada pela observação do próprio Stravinsky: "Como
são desnorteantes todas as descrições literárias de uma
forma musical! "4 É verdade, e não é apenas uma questão
de música. De modo geral, penso eu, é desnorteante
transferir uma determinada produção artística do meio
que nasceu para algum outro que, inevitavelmente, lhe
será estranho. Dou um exemplo.
: ..
"'"'-

(Todos conhecemos o episódio narrado no Livro II da


},,'neida, o episódio em que as serpentes estrangulam Lao-
coonte e seus filhos. Seria difícil sustentar que a pintura
dessa cena por EI Greco (que podemos admirar na Na-
tional Gallery de Washington) ou a famosa estátua de
Rodes reproduzem exatamente, sem.equívocos, a expres-
são dos versos de Virgílio. E seria possível dizer o mesmo
do L'Apres-midi d'unfaum. de Sthéphane Mallarrné, e da
soberba transposição musical que Debussy fez desse poe-
ma. Cada arte tem o seu próprio meio, aquele material
que a manipulação criativa do artista subitamente e de
maneira inesperada toma mais sensível - moldando-o
numa fonna diferente da que encontramos no dia-a-dia.
Este é um esclarecimento que me vejo obrigado a fazer,
e ao mesmo tempo implica uma distinção entre o uso das
palavras como instrumento de poesia e o uso das palavras
para finalidades didáticas ou explanatóri~J, É e~ segun-
do sentido que Stravinsky explora maravilhosamente,
tanto nas conferências de Harvard como nas páginas
escolhidas com que eventualmente nos presenteia.
Entretanto,\para a expressão mais profunda do que é
Stravinsky (e emprego a p_alavra em sentido absoluto),
não é no terreno das palavras que devemos procurar, mas
no terreno dos sons.\Afi ele transpôs todo o seu ser, ali
deixou sua marca como grande mestre da música, uma
figura comparável em relevância à de um outro pilar de

4. tbrlvn:J(Jtwru r.ntJa lf!)T Stravirulcy, op.cil, p.17.


======-..11lwlIL.JI
LI.!.:10:....t:I poética musical

no~ época, Pablo Picasso. As obras desses dois homens


deixaram seu selo sobre nosso tempo, mast;sê quisermos
encontrar a catarse, a libertação que elas nos oferecem,
é nas próprias obras que devemos buscá-las, não nas
palavras intermediárias, nas incontáveis palavras que fer
ram deixadas sobre eles.\--· : :

Certa ocasião observei, talvez num rompante de exa-


gero, que mesmo se a linguagem que falamos fosse redu-
zida a uma única palavra, o bom poeta ainda poderia ser
facilmente distinguido do poeta de menor talento. De~e
modo, pude refletir na pa-;sagem que Stravinsky, ao final
das "Lições", atribui ao Areopagita: "Quanto maior a
dignidade dos·anjos na hierarquia celestial,,, diz o santo,
"menos palavras eles pronunciam; de modo que o mais
elevado de todos pronuncia uma única sílaba. "5
Uma palavra, uma sílaba, um simples som. O objetivo
que buscamos, sem jamais atingi-lo. No entanto, a estrada
percorrida, o longo caminho cego que facilmente perde-
mos só voltando a encontrá-lo com muito trabalho, isso é
o que nos toca até o fundo na vida do artista criativo.
Sou grato a essas poucas linhas porque me deram a
oportunidade, no mês que passou, de ouvir de novo -
em gravações - grande parte da obra de Stravinsky, e de
ler suas Conversações. Numa delas, .uma entrevista que me
alcançou exatamente no momento certo,6 ele fala dos
últimos quartetos de Beethoven e diz: "Os quartetos são
wna carta de direitos humanos", e, ainda uma vez, "um alto
conceito de liberdade está incorporado nos quartetos."
Essa opinião, devo conf~ar, causou-me certo mal-es-
tar. Subitamente pensei na significação fundamental que
o tempo tem para a música e para o próprio Stravinsky:
vejam a frase em que ele fala da "respiração natural" da
música, sua afirmação de que "a pulsação é a realidade

5. Cf. p.124.
6. Igor Stravinsky, -whe~ is thy sting?", T'M Nm, Yum Review of Boalt..,;, 12:4,
24 de abril, 1969; republicado cm lgor Stravinsky e Roben Craft, &,ros-
pectiWJ and Omclu.rioru, Nova York, Knopf, 1969.
prefácio :1D=ttll1===-____JIL1!.!1_JI
t:I

da música". 7 Naquele instante, cintilou em minha memó-


ria um quarteto que se tomou parte de minha vida, e que
já ouvi inúmeras vezes, o opus 132, especialmente o
terceiro movimento ("molto adagio"), seu "Hino de Ação
de Graças no modo lídio". Ali, finalmente, senti que
_,,., •---..-•·•-.. - • - - - • -...A,~ ,

. ~~tendia claramente o ql_l:~. f,travinsky queria díier:-~'à /


músicà• (com à ete· ·nõs ensinou na segunda lição) é a arte :
1

de no~o tempo; e, refleti, também nossos corpos huma- ·


nos estão sujeitos ao tempo, essa humanidade torturada
que aspira constantemente a respirar em liberdade na
)irr~~~açã~.da s~~~SNesse'ifist:ante·o ªl"ennui ·de fourriir
dtl bavardage"", de Mallanné, me fez calar.
Apenas mais uma observação. Na preciosa colheita de
fatos e gestos de Igor Stravinsky que Robert Craft nos
oferece, há algo que permanece especialmente em mi-
nha memória. Craft diz: "Observei que o senhor sempre
dorme com uma luz acesa; lembra-se da origem de~a
nece~idade?'• Stravinsky responde: "Só consigo dormir,
à noite, quando um raio de luz entra em meu quarto
vindo de algum cômodo adjacente... A luz que pretendo
continuar a me lembrar deve ter vindo... da lâmpada da
rua fora da minha janela no Canal Krukov... Seja lá o que
tenha sido, entretanto, ... es.se cordão umbilical de ilumi-
nação ainda me permite, aos setenta e oito anos, retornar
ao mundo de segurança e isolamento que conheci aos
sete ou oito. "8
Fico maravilhado ao ouvir isso de um homem que
declara abruptamente: "Não gosto de lembrar de minha
iniancia. "9
A luz fraca mas persistente que vinha de uma lâmpada
da velha São Petersburgo continuou, década após déca-
da, muito tempo depois de ter se extinguido sua fonte
original - como a luz de uma estrela extinta-, a ilumi-
nar seu sono, e a fornecer-lhe a segurança da infãncia.

7. Mnwin and Qnnfflffllaria, op.cit., p.113.


8. E:cpo.filimu and Dewlopmnu, op.cit., p.13.
9. Memoirs and Commentarirs, op.ciL, p.24.
LI~12~(=====::.......Jlu.l.1.I....JI poética musica 1

No ano passado, Stravinsky declarou: "Mas eu sei que,


apesar de tudo. ainda tenho muita música dentro de
mim. E devo produzir; não po~ viver uma vida de apenas
receber." 1º Que Deus lhe proporcione muitos anos ain-
da! E que aquela centelha do escuro Canal Krukov possa
estar presente em seus sonhos fecundos!

GEORGE SEFERIS
Atenas, maio de 1969

10. lgorStravinsk.y, '-Side Efl'ects:An lnterview", TJuNtn,, YmliReuiewaJBoolu,


10:8, 14 de março, 1968; republicado em Igor Stravinsky e Robcn Craft,
/lebmp«IM.t and C..ondwimu, op.cit.
1
estabelecendo relações
ONSIDEROUMAGRANDEHONRAocupar, hoje, a cadeira
de poética Charles Eliot Norton, e é com especial
prazer que agradeço ao Comitê que, de modo tão
gentil, me convidou para falar aos estudantes da Univer-
sidade Harvard.
Não posso esconder de vocês o quanto estou feliz por
falar pela primeira vez a uma platéia que se dá ao trabalho
de ouvir e aprender antes de julgar.
Até o momento, tenho me apresentado apenas em
palcos de concertos e salas de espetáculo para essas aglo-
merações de pe~oas a que chamamos "público". Mas
nunca, até hoje, me dirigi a uma platéia de estudantes.
Como estudantes, certamente desejosos de adquirir in-
formação sólida sobre assuntos que lhes são apresenta-
dos, vocês não ficarão surpresos se eu os advertir que a
matéria especial a ser discutida aqui é séria - mais séria
do que usualmente se admite. Espero que não se assustem
com sua densidade, com sua gravidade específica. Não
tenho intenção de ser drástico... mas é dificil falar de
música caso se leve em conta apenas sua realidade mate-
rial; e me sentiria traindo a música se dela fizesse o objeto
de uma dissertação composta apre~adarnente, salpicada
de anedotas e digressões amáveis.
Não esquecerei que estou ocupando uma cadeira d~
poética. E não é segredo para nenhum de vocês que )O
significado exato de poética é o estudo de uma obra a ser
feita. O verbo poiein, do qual a palavra deriva, significa
exatamente fazeroufabricar.iA poéúca dos filósofos clás-
sicos não consiste de dissértações líricas sobre o talento
-,-,6--,- - - - -------...--,,~1--1--. . . .1. poética musical

natural e sobre a essência da beleza. Para eles, a palavra


~chné abrangia tanto as be~artes como as coisas práti-
cas, e aplicava-se ao conhecimento e ao estudo das regras
corretas e inevitáveis de um determinado métier. Eis por
que a Poética de Aristóteles muitas vezes sugere idéias
referentes ao trabalho pe~oalJ à organização do material
e à estrutura. A poética da música - é justamente sobre
isso que vou falar a vocês; isto é, falarei sobre o /az.er no
campo da músicaJÉ o bastante para dizer que não usarei
a música como pretexto para agradáveis devaneios.~
Quanto a mim, tenho plena consciência da responsabili-
dade que me incumbe para deixar de levar a sério minha
tarefa.
Assim, se dou grande valor à oportunidade de estar
falando a vocês, que estão aqui para estudar e receber
tudo o que eu for capaz de oferecer, por outro lado
;espero que aproveitem a oporrunidade de serem tes-
temunhas de unia série de confi~ões musicais.\
Não se assustem. Não serão confissões ao estilo de
Jean:Jacques Rousseau, e menos ainda do tipo psicanalí-
tico que, sob um disfarce pseudocientífico, iãpenas efetua
uma triste profanação dos verdadeiros valores do h~
mem, de suas faculdades psicológicas e criati~.\
-- -

Gostaria de colocar o meu projeto de confissões ia meio


caminho entre um curso acadêmícf!..te gostaria de chamar
a atenção de vocês para e~ termo, porque voltarei a ele
ao longo de minhas lições)le o que se poderia chamar de
uma apol.ogia de minhas próprias idéias gerais. Uso a
palavra apologia não em seu sentido usual, francês, de
elogio, mas no sentido de uma justificação e uma defesa
de minhas idéias e opiniões pe$0ais. ln fine, tudo isso
significa que estarei lhes proporcionando confidências
dogmátic~~i
Tenho plena consciência de que os termos dogma e
dogmático, por mais que evitemos empregá-los em as-
suntos estéticos ou mesmo espirituais, nunca deixam de
ofender - ou mesmo chocar - certas mentalidades,
mais ricas na sinceridade do que inabaláveis nas convie-
estabelecendo relações :::1l:1:111ir==----....Jl~1:,:_7_JI
t:I

ções. Exatamente por isso, peço que aceitem esses termos


na plena extensão de seu significado legítimo, e desejaria
que re<:onhece~em sua validade, tomando-se familiares
a eles; \espero inclusive que cheguem a apreciá-los.1 Se
falo do sentido legítimo desses termos, é para enfatizar o
uso natural e corrente do elemento dogmático em qual-
quer campo de atividade em que ele se toma categórico
e verdadeiramente essencial.
De fato, não podemos observar o fenômeno criativo
independentemente da forma cm que ele se manifesta.
·Todo processo formal deriva de um princípio, e o estudo
1

·desse princípio requer precisamente o que denomina-


mos dogma. Em outras palavras, a necessidade que senti-
mos de trazer ordem ao caos, de encontrar o caminho
certo de no~a operação a partir de um feixe de pos-
si bilidades ou da indécisão de pensamentos vagos, pres-
supõe a necessidade de alguma forma de dogmatismo.
Portanto, uso as palavras dogma e dogmatismo apenas na -
medida em que designam um elemento essencial para
salvaguardar a integridade da arte e do espírito, e sustento
que, nesse contexto, elas não extrapolam suas funções.
O próprio fato de que lancemos mão do que chama-
mos ordem - aquela ordem que nos permite dogmatizar
no campo que estamos considerando - não apenas
desenvolve no~o gosto pelo dogmatismo: incita..nos tam-
bém a colocar nossa própria atividade criadora sob a
égide do dogmatismo. Eis por que eu gostaria que vocês
admitissem o termo.
Ao longo de~ curso, e a todo momento, estarei fazen-
do apelo à sensibili~ade de vocês no que~ refere à 9rdem
e à disciplina. Pois e~es elementos - alimentados, plas-
mados e swtentados por conceitos positivos - formam a
base do que se chama dogma~
··--
Por ora, a fun de guiá-los na organização de seus futu-
ros estudos, devo adverti-los de que meu curso se limitará
ao desenvolvimento de teses que constituirão uma expli-
cação da música em forma de aula. Por que estou usando
a palavra explicação? E exatamente por que falo de uma
explicação? Porque o que pretendo dizer-lhes não signi-
ficará uma exposição impessoal de fatos genéricos, mas
será uma explicação da música tal como a concebo. E essa
explicação não será menos objetiva por representar o
fruto de minha própria experiência e de minhas obser-
- pessoais.
vaçoes .
O fato de que o valor e a eficácia desse tipo de explica-
ção foram testados pela minha própria experiência me
convence - e garante a vocês - de que não estou lhes
oferecendo simplesmente uma massa de opiniões; ao
contrário,{submeto a vocês um corpo de descobertas que,
embora feitas por mim, são, mesmo assim, tão válidas para
'
os outros como para mim mesm9_:\
Portanto, não se trata aqui de meus sentimentos e
gostos particulares; tampouco de uma teoria da música
projetada através de um prisma su~jetivo. Minhas expe-
riências e investigações são totalmente o~jetivas, e minha
capacidade de introspecção foi explorada apenas para
delas tentar extrair algo de concreto.
Essas idéias que estou desenvolvendo, essas causas que
estou defendendq, e que tentarei defender diante de
vocês de modo sistemático, serviram e continuarão a
servir como base para a criação musical justamente por-
que foram desenvolvidas numa prática efetiva. E caso
atribuam alguma importância, ainda qtte pequena. a meu
trabalho criador - fntto de minha consciência e de
minha fé - , então, peço-lhes, dêem crédito por isso aos
conceitos especulativos que geraram minha obra e que
foram se desenvolvendo simultaneamente a ela.
Explicar - do latim explicare, desdobrar, desenvolver
- é descrever 3:lguma coisa, descobrir sua gênese, perce-
ber a relação de uma coisa com outra, e tentar lançar luz
sobre elas. Explicar a vocês o que eu sou é também
explicar a mim mesmo para mim mesmo, ser obrigado a
esclarecer assuntos distorcidos ou traídos pe1a ignorância
ou malevolência que encontramos unidas por um mis-
terioso laço na maior parte dos juízos emitidos sobre a~
artes. Ignorância e malevolência cstãc> tinidas em uma
estabelecendo relações -1 -;-1-11---...:-------------=-==..:rl-1_9...,..I

única raiz; a segunda se beneficia sub-repticiamente das


vantagens que extrai da primeira, e não sei qual das duas
é mais detestável. Em si mesma, obviamente, a ignorância
não é nenhum crime. Ela c~meça a ser suspeita quando
se afirma sincera. Pois a sinceridade, como disse Remy de
Gourmont, dificilmente é uma explicação, ejamais é uma
desculpa. Já a malevolência, nunca deixa de invocar a
• 4ilrt • •

1gnoranc1a como c1rcunstanc1a ·atenuante.


A •

Sem dúvida, vocês hão de convir que,esta obscura


combinação de "ignorância, enfermidade e malícia" -
para usar a linguagem da teologia - ,. justifica uma refu-
tação, uma defesa vigorosa e leal. E nesse sentido que
entendo o termo "polêmica".\
--=-.-' '
Portanto, sinto-me no dever de ser polêmico. Antes de
tudo, tendo em vista a su hversão de valores musicais a que
acabo de me referir; depois, em defesa de uma causa que
pode parecer pessoal à primeira vista, mas que não o µa
realidade. Crt1staria de explicar este segundo ponto.\Por
algum acaso, que me agrada considerar feliz, minha
pessoa e minha obra foram marcadas, à minha revelia,
com um sinal distintivo desde o início de minha carreira,
e passaram a atuar como um "reagente". O contato desse
reagente com a realidade musical que me cerca, com o
ambiente humano e o mundo das idéias, provocou diver-
sas reações, c~ja vio]ência foi igualada apenas pela arbi-
trariedade. Parece que todos estavam com o endereço
errado. Mas acima e para além de minha obra, essas
reações impensadas afetaram a música como um todo, e
revelaram urn sério erro de jul~c1mento que viciou a
consciência musical dt~ toda uma época e invalidou todas
as idéias, teses e opiniõe~ que se manifestaram em relação
a uma da~ ,nais elev,ula, (acuidades do espírito - a
música co,no arte. N;i<> t''"<JÜcçamos que Petruchka, a Sa-
gração da /ni1111n,rra e <> /i,n,xinol surgiram em um momen-
lo caracterizado por prc ,fundas mudanças, que subverte-
ram muitas , oisas e pet Lurharam muitos espíritos. Não
que tais mudanças 1cnlian1 se dado no domínio da es--
tét.ica ()li no plano do~ nlodos de cxpre~ão (cs.§e tipo de
======-..11lwlIL.JI
IL.=..:20:.....t:I poética musical

mudança ocorrera antes, no início de minhas atividades).


As transformações de que falo produziram uma revisão
geral tanto dos valores básicos como dos elementos pri-
mordiais da músi~\
Essa revisão, inicialmente aparente na época a que me
referi, tem permanecido inalterável desde então. O que
estou afirmando aqui é evidente por si, e pode ser clara-
mente percebido no desenrolar de fatos concretos e
acontecimentos diários que estamos agora presenciando.
Tenho plena consciência de que há um ponto de vista
segundo o qual o período em que surgiu a Sagração da
primavera teria assistido a uma verdadeira revolução. Uma
revolução cujas conquistas estariam hoje em pr%esso de
assimilação. Contesto a validade desta opinião. ~sustento
que foi um erro terem me considerado um revolucioná-
ri~.!
Quando a Sagração veio à luz, muitas opiniões foram
emitiW.: No turbilhão das opiniões contraditórias, meu
amigo\Maurice Ravel interveio praticamente sozinho pa-
ra restabelecer a verdade dos fatos. Ele foi capaz de ver,
e afirmar, que a novidade da Sagração consistia não na
escrita, ou na orquestração, ou mesmo no aparato técnico
da obra, mas t . m sua realidade musical.
Fizeram de mim um revolucionário à minha própria
revelia. Ora, explosões revolucionárias nunca são total-
mente espontâneas. Há pessoas argutas, que produzem
revoluções com um intuito malicioso. E sempre neces-
sário estar em guarda contra as interpretações distorcidas
dos que lhe atribuem uma intenção que você não tinha.
De minha parte, nunca ouço alguém falar de revolução
sem pensar na conversa que, segundo ele descreve, G.K.
Chesterton teve, ao chegar à França, com o dono de uma
pousada em Calais. -o homem queixava-se amargamente
das asperezas da vida e da crescente falta de liberdade.
''Não vale muito a pena", concluía o pequeno empresário,
"ter passado por três revoluções para terminar sempre no
mesmo lugar onde você começou". Ao que Chesterton
observou que uma revolução, no verdadeiro sentido do
termo, é o movimento de um o~jeto que descreve uma
estabelecendo relações l_l__ll._________.1_2_1__.I

curva fechada, e que ~im sempre volt.a ao panto de


partida ...
O estilo de uma obra como a Sagração pode ter pareci-
do arrogante, a linguagem ali utilirada pode ter soado
áspera em sua novidade, mas isso de modo algum significa
que a obra é revolucionária no sentido mais subversivo da
palavra.
Se basta romper um hábito para merecer o rótulo de
revolucionário, então todo músico com algo a dizer e que,
para poder dizê-lo, ultrapassa os limites das convenções
estabelecidas seria conhecido como revolucionário. Por
que sobrecarregar o dicionário de be~tes com es.,e
termo agonizante, quando há tantas outras palavras ade-
q~clas para falar de originalidade?,fl
Na verdade, eu teria dificuldade em citar para vocês
um único fato na história da arte que pudes.se ser qualift-
cado de revolucionário. A arte é, por e~ncia. cons--
trutiva. Revolução implica ruptura de equilíbrio. Falar de
revolução é falar de um_caos temporário. Ora, a arte é o
contrário do caos. Ela nunca se rende ao caos sem ver
imediatamente ameaçadas suas obras vivas, sua própria
. .. .
ex1stenc1a..
- -_ ...

A qualidade de ser revolucionário é em geral atribuída


a artistas de nos.se tempo com uma intenção laudatória,
certamente porque vivemos um período em que a revo-
lução g~z.a de uma espécie de prestígio junto à elite de
ontem..:vamos chegar a um acordo: sou o primeiro a
reconhecer que a audácia é a força motriz das melhores
e maiores atitudes; o que é mais uma razão para não
empregá-la levianamente a serviço da desordem e de um
desejo mesquinho de causar sensação a qualquer preçQ_~_ 1
Eu aprovo a audácia; não estabeleço limites para ela.
Porém, da mesma maneira, não há limites para os prejuí-
zos causados por atitudes arbitrárias.
)Para poder desfrutar plenamente das conquistas da
audácia, devemos exigir que ela atue sob uma luz impie-
dosa:_ Estamos trabalhando a seu favor quando denuncia-
mos a moeda falsa que gostaria de usurpar o seu lugar. ()
excesso gratuito deteriora qualquer sttbstância, todas as
formas en1 que ele interfira. Em sua precipitação, ele
enfrc1quece a eficácia das mais valiosas descobertas, ao
mesmo tempo em que corrompe o gosto de seus devot~?S,
- o que explica por que esse gosto muitas vezes passa,
sem transição, das mais terríveis con1plicações às mais
frívolas banalidades.
Um complexo musical, por áspero que s<:ja, é legítimo
na medida em que é genuíno. Ma~ para reconhecer
valores legítimos cm meio aos excessos de artificialidade
é preciso ser dor.ado de um instinto seguro, que os nossos
esnobes detestam tanto mais intensamente quanto são
totalmente privados dele.
A nossa cli te de vanguarda, sempre decidida a superar-
1

se a si mesma, espera e exige que a música lhe satisfaça o


1

gosto pela mais absurda cacofoni~·_\


Digo cacofonia sen1 medo de ser incluído no número
dos pompiers* convencionais, dos laudatore~ temporis acti. *•
E usando a palavra, estou certo de não estar me contra-
dizendo nem um pouco. Minha posição a esse respeito é
exatamente a mesma do tempo cm que eu compunha a
Sagração, e as pessoas achavam conveniente chamar-me
de revolucionário. Hoje, assim como no passado, estou
sempre em guarda contra a moeda falsa, e tomo ~idado
para não aceitá-la como o dinheiro real do país. racofo--
nia significa som desagradável, mercadoria contraban-
deada, música descoordenada incapaz de sustentar-se
face a uma crítica séria. Seja qual for a opinião que se
possa ter da música de Arnold Schoenberg (para tomar
como exemplo um compositor que trabalha em linhas
essencialmente diversas das minhas, tanto estética como
tecnicamente), cujas obras deram vazão freqüentemente

• O lermo francês pompin origino\Hj,t? da semelhança. nas pinturas do


século XIX. entre os chnos dos anágos soldados romanm e os capacetes dos
bombeiros. Ap]ica-se a ~ssoa., que reprn;entam o pedantismo pomposo e
um certo convencionalismo.
** Ern latim, no orig111al: "l..011,·arion·s <lo.~ trmpos pasSJ<los". (N.T.)
estabelecendo relações t:I ==-----...Jl~2:::l_.l
::tlt';t:111:II

a reações violentas ou sorrisos irônicos, é impos.sível a


alguém que se leve a sério, e dotado de verdadeira cultu-
ra musical, não sentir que o compositor do Pierrol lunaire
tem plena consciência do que está fazendo, e que não está
tentando enganar ninguém. Ele adotou o sistema musical
que atendia às suas nece~idades, e dentro desse sistema
é perfeitamente consistente consigo mesmo, perfeita-
mente coerente. Você não pode simplesmente denegrir
urna 111úsica de qµe não gosta dizendo que se trata de
cacofonia.; t\ ,_..~r ·, •-""
-y..-, ..._,,..
·1 ·J • • , · , ,_.. .
1

Igualmente degradante é a vaidade dos esnobes que se


jactam de uma intimidade embaraçosa com o mundo do
incompreensível--~ conf~arn, deliciados, que ali estão em
boa companhia~ Não é música o que eles procuram, mas
sim o efeito , do choque, a sensação que embota o enten-
dimento.\---.
De modo que confesso ser totalmente insensível ao
prestígio da revolução. Todo o barulho que ela pos.g
fazer não despertará em mim o menor eco. Pois revolução
é uma coisa, inovação outra. E mesmo a inovação, quando
não apresentada de uma forma excessiva, nem sempre é
compreendida pelos C<)ntcmporâneos. Deixem-me to-
mar como exemplo o trabalho de um compositor que
escolho intencionalmente porque sua música, cujas qua-
lidades foram reconhecidas há muito tempo, tornou-se
tão universalmente popular que até os tocadores de rea-
lejo se apropriaram dela.
Refir~me a Charles Gounod. Não se surpreendam se
me detenho em Gounod por um momento. Não é tanto
o compositor de Fawt,o que me interes.sa aqui, mas sim o
exemplo que Gounod nos oferece de uma obra cujos
méritos mais evidentes foram mal compreendidos, quan-
do eram ainda novidade, pelas prqprias pessoas supos--
tamente informadas sobre as realidades que deveriam
julgar.
V~jam o Fausto. Os primeiros críticos dessa famosa
ópera não quiseram reconhecer em Gounod a inventivi-
<lade n1el{Jdica que hoje nos aparc<·c co1no o traço domi-
LI ======-.1ll1.l .JI
~24:....tl 1.I poética musical

nante de seu talento. Chegaram ao ponto de questionar


se tinha qualquer espécie de talento melódico. Viam em
Gounod "um sinfonista perdido no teatro", um "músico
severo", para usar os termos deles, e, naturalmente, mais
..erudito" do que l&inspirado". Nessa perspectiva, acusa-
vam-no de "alcançar seus efeitos não através das vozes,
mas sim da orquestra".
Em 1862, três anos depois das primeiras performances,
a Gautu Musical.e de Paris declarava simplesJllente que
Fausto, como um todo, "não era obra de um melodista".
Quanto ao famoso Scudo, cuja palavra era lei para a Revttf
da Deux Mondes, esse Scudo no mesmo ano apareceu com
esta obra-prima histórica, que nunca me perdoaria se não
. ,,
a ~ na integra:
Monsieur Gounod, para sua infelicidade, admira algumas pas-
sagens antiquadas dos últimos quartetos de Beethoven. Elas
constituem a fonte espúria de que têm saído os maus músicos
da Alemanha moderna: os Liszts, os Wagners, os Schumanns e
mesmo Mendelssohn em alguns aspectos questionáveis do seu
estilo. Se Monsieur Gounod realmente adotou a doutrina da
melodia contínua, da melodia da floresta virgem e do sol poen-
te, que constitui o charme de Tannhiius,:r e de Lohengrin, uma
melodia que pode sei" comparada à carta de Harlequin -
"quanto a períodos e vírgulas, não me impono nem um pouco,
pode ir botando onde você achar conveniente" - , Monsieur
Gounod, nes.,e caso, que eu gostaria de acreditar impos.,ível,
estará irremediavelmente perdido.
Mas mesmo os alemães, à sua maneira, corroboraram
o bom Scudo. <:om efeito, era possível ler no Münchener
Neueste Nachnchten que Gounod ~ão era francês, e sim
belga, e que suas composições não traziam a marca das
modernas escolas da França e da Itália, mas precisamente
a da escola alemã em que havia sido educado e formado.
Já que a literatura produzida em torno da música não
mudou nos últimos setenta anos - e que, à medida que
a música se transforma, os comentadores que se recusam
a tomar conhecimento de~as transformações não se
transformam eles mesmos - devemos, naturalmente,
en1punhar nossas armas.
estabelecendo relações ::11~1l1:::==---------l(~2~s_.l
1:::I

Portanto, disponho-me a ser polêmico, sem medo de


admiti-lo. Serei polêmico não em minha própria defesa,
mas de modo a defender com palavras a música e seus
princípios, da mesma forma que os defendo, de outro
modo, com as minhas próprias composições.
E agora deixem-me explicar de que maneira o meu
curso está organii.ado. Ele se dividirá em seis lições, cada
uma delas com título próprio.
A lição que acabo de ministrc1r, como devem ter per-
cebido, é apenas um meio de e.dabeuc~ rel,ações. Nessa
primeira lição, tentei resumir os princípios que irão reger
meu curso. Vocês agora sabem que vão ouvir confissões
musicais, sabem em que sen_tido uso essa expre~ão, e
como o caráter aparentemente subjetivo da p~avra é
contrabalançado por meu desejo de dar a essas confidên-
cias um caráter claramente dogmático.
Este nosso primeiro contato sob a égide austera da
ordem e da disciplina não deveria a.Mustá-los,já que meu
curso não se limitará a uma exposição árida e impessoal
de idéias genéricas, mas abrangerá uma explanação, tão
vital quanto possível, da música tal como a entendo; uma
explanação de minha experiência pessoal, fielmente vin-
culada a valores concretos.
Minha segunda lição abordará o fenômeno da música.
Deixarei de lado o problema insolúvel das origens da
música de modo a abordar o fenômeno musical em si
mesmo, na medida em que ele emana de um ser humano
completo e equilibrado, dotado dos recursos dos sentidos
e equipado com seu intelecto. Estudaremos o fenômeno
da música como uma forma de especulação em termos
de som e de tempo. Extrairemos desse estudo a dialética
do proc~o criativo. Nesse contexto, falarei a vocês do
princípio do contraste e da similaridade. A segunda parte
dessa lição será dedicada aos elementos e à morfologia da
,,,. .
musica.
A composição musical será o tema de minha terceira
lição. Nela consideraremos as seguintes questões: o que
é composição, e o que é o compositor? De que maneira
======-..Jl11.1I
.:.;26:....t:I
LI ...JI
..ILI poética musical

e até que ponto ele é um criador? Essas considerações nos


levarão a estudar um a um os elementos formais da arte
musical. Nesse contexto, será preciso deixar bem explíci-
tos os conceitos de invenção, imaginação, inspiração; de
cultura e gosto; de ordem como regra e como lei oposta
à desordem; e, finalmente, a oposição do reino da neces--
sidade e do reino da liberdade.
A quarta lição tratará da tipologia ·musical estudada
através de uma inspeção de suas origens históricas e seu
desenvolvimento. A tipologia pressupõe um ato de sele-
ção que presume um certo método de discriminação. As
análises q~e esse métod<:) nos incita a fazer conduzirão ao
problema do estilo, e, para além dele, aojogo dos elemen-
tos formais, cujo desdobramento constitui o que se pode-
ria chamar de "a biografia da música". Ao longo dessa
lição, examinarei uma série de questões que são hoje
vitais para nós: as que dizem respeit<> ao público, ao
esnobismo, ao mecenato, ao espírito filisteu. Tratarei
igualmente de modernismo e academicismo, e da eterna
questão do classicismo e do romantismo.
A quinta lição será inteiramente dedicada à música
ntssa. Em conexão com isso, falarei do folclore e da
cultura musical da Rússia; do cantochão, da música sagra-
da e profana. Também falarei sobre o italianismo, germa-
nismo e orientalismo da música russa do século passado.
Farei menção às duas desordens das duas R~ias - as
desordens do conservadorismo e do revolucionarismo.
Finalmente, discorrerei sobre o neofolclorismo dos sovié-
ticos e sobre a degradação dos valores musicais.
A sexta e última lição, que inclttirá música ao vivo, me
levará a uma descrição do fenômeno físico da música.
~tabelecerei os elementos que distinguem a interpreta-
ção da execução propriamente dita, e a e~e respeito
também falarei de intérpretes e seus ouvintes, da ativi-
dade e passividade do público, bem como do problema
crucial do julgamento ou critica. Meu epílogo procurará
determinar o profundo significado da música e o seu
objetivo e~ncial, que é promover uma comunhão, uma
-g-,------ -
estabelecendo relações -, -----------------~,-2-7......)

un1ao do homem com seu semelhante e com o Ser


Supremo.
Como vêem, essa aplan~ào da música que pretendo
realizar para vocês, e, espero, com vc>eês, assumirá a forma
de uma síntese, de um sistema que começará com uma
análise do fenômeno da música e terminará com o pro-
blema da execução da música. Vocês perceberão que não
escolhi o método mais freqüentemente utilizado em sín..
teses dessa natureza: o método que desenvolve uma tese
partindo Q!) geral para o particular. Farei de maneira
diferente. Adotarei uma espécie de paralelismo, um mé-
todo de sincronização; isto é, associarei princípios gerais a
fatos, particulares, constantemente apoiando uns a ou-
tro~.J ___
,. ..,,

Pois\é preciso reconhecer que é apenas por uma neces-


sidade prática que somos obrigados a distinguir as coisas
alocando-as em categorias puramenle convencionais co-
mo "primário e secundário'', "principitl e subordinado".
Além disso, meu objetivo não é isolar os elementos que
nos dizem respeito, e sim singularizá-los sem chegar a
desuni-los._!
1:A verdadeira hierarquia dos fenômenos, bem con10 a
verdadeira hierarquia das relações, aborda a substância e
a forma num plano totalmente distinto do das classifica-
.... . .'
çoes convenc1ona1s~-
Tenho a esperáriça de que o esclarecimento de~ tese
será um dos resultados de meu curso, um resultado cuja
obtenção me daria grande prazer.
2
o fenômeno da música
RETENDO USAROF.XEMPLO mais banal: o do prazer que
experimentamos ao ouvir o rumorejar da brisa nas
árvores. o murmúrio de um riacho, a canção de um
pássaro. Tudo isso nos agrada, nos diverte, nos delicia.
Podemos até dizer: "Que música delicios;:ir" Naturalmen-
te, estou usando apenas uma comparação. E a compara-
ção não é raciocínio. Esses ~~_s__ga_~~~-t!-1~~~~ nos sugerem
uma música, mas ainda nã<> são, em si mesmos, música.
Se extraímos prazer de~s sons e imaginamos que, ao nos
expormos a eles, n(>S tornamos músicos e até, eventuaJ.,.
mente, músicos criativos, é preciso admitir que estamos
enganando a nós mesmos.·(&ses sons são pron1essas de
músic~e é preciso um ser hum~no para registrá-los: um
ser humano sensível às vozes da natureza, obviamente,
mas que, além diS50, :sente a necessidade de organizá-las,
e que é dotado, para tal. de uma aptidão especial. Em suac;
mãos, tudo o que estou considerando como não sendo
música em música se transformará. Daí concluo que
fclementos sonoros só se tornam música quando come-
çam a ser organizados, e que essa organização pressupõe
um ato humano consciente.( ._

Assim, tomo conhecimento da existência de sons na-


turais, elementares- a matéria-prima da música-, que,
agradáveis em si mesmos, são capazes de acariciar o
ouvido e nos proporcionar um prazer que pode ser
bastante completo. Mas,facima e para além desse prazer
passivo, vamos descobrir a música, música que nos fará
participar ativamente do trabalho de um espírito que
ordena, dá vida e cria. Pois na raiz de toda criação encon-
LI =====::....1lu.f
:,:32:..J::I ...JI
.1..I poética musical

tramos um apetite que não é um apetite pelos frutos da


terra; de modo que, aos dons da narurei.a, acrescentam-se
os beneficios da elaboração humana - esta é a significa-
ção geral da arte.\
Não é exataménte arte o que chega a nós na canção
de um pássaro; porém, a mais simples modulação, cor-
retamente executada,já é arte, sem a menor possibilidade
de dúvida.
(
iA arte, no sentido verdadeiro, é o modo de trabalhar
uma obra de acordo com alguns métodos adquiridos, seja
pelo aprendizado, seja pela inventiviclad~ E os métodos
são canais eficaies e predeterminados que garantem a
propriedade de nos.g operação.
Há uma perspectiva histórica que, como toda visão d~
coisas subordinada às leis da perspectiva
...
ótica, só torna
distintos os objetos mais próximos. A medida que essas
áreas de visão se afastam de nós, perdem a nitidez, e só
podemos ~aptar visões fugidias de objetos sem vida e sem
utilidade .. Milhares de obstáculos nos separam de riquez.a.s
ancestrais, que nos fornecem apenas aspectos de uma
realidade morta. Mesmo a~im, podemos captá-las por
intuição, mais do que pelo conhecimento objetivo:
Nesse sentido, para captar o fenômeno da mtisica em
suas origens, não há necessidade alguma de .se estudar
rituais primitivos, modos de encantação, ou de penetrar
os segredos da mágica antiga. Lançar mão da história,
n~e caso, e mesmo da pré-história, não significa des-
perdiçar o nosso tiro tentando atingir o que não pode ser
atingido? Como explicar razoavelmente o que ninguém
jamais testemunhou? Se tomamos apenas a razão como
guia nesse terreno, ela nos levará a conclusões falsas, já
que não estará mais iluminada pelo instinto. O instinto é
infalível. Se nos leva a falsos caminhos,já não se trata de
instinto. De qualquer modo, uma ilusão viva é mais valio-
sa, nesse caso, do que uma realidade morta.
Há algum tempo, a Comédie Française estava ensaian-
do uma peça medieval em que o famoso ator Mounet-Sul-
ly, de acordo com a indicação do autor, tinha de jurar
o fenômeno da música ----------=--=-=.::ri-3_3_]
-1- , - , - , - -- -- -- -

sobre uma velha Bíblia. Nos ensaios, a velha Bíblia fora


substituída por um catálogo telefônico. "O texto pede
uma velha Bíblia", rugiu Mounet-Sully. "Arranjem-me
uma velha Bíblia!" Jules Claretie, o diretor da Comédie,
correu à sua biblioteca em busca de um exemplar dos dois
Testamentos numa esplêndida edição antiga, e trouxe-o
triunfante para o ator: MAqui você tem, mon cher Duyen",•
disse Claretie, "uma edição do século XV•.. ". "Século xvt•,
exclamou Mounet-Sully. "Mas então, naquela época, era
completamente nova... "
Mounet-Sully estava certo, se vocês insistem. Mas atri-
buía demasiada importância à arqueologia.
---
l O passado escapa de nossas mãos. Só nos deixa objetos
fragmentados. O laço que os une nos escapa. Nossa
imaginação normalmente preenche os claros lançando
mão de teorias preconcebidas.! Desse modo, por exem-
plo, um materialista apela para
as teorias de Darwin
colocando o macaco antes do homem na evolução das
, • 1 ..

espec1es an1ma1s.
A arqueologia, portanto, não nos fornece certezas, e
sim hipóteses vagas. E à sombra dessas hipóteses alguns
artistas sentem prazer em sonhar, consideranderas menos
como fatos científicos do que como fontes de inspiração.
Isso é tão verdadeiro para a música como para~ artes
plásticas. Pintores de todas as épocas - inclusive a nossa
- deixam sua fantasia vaguear no tempo e no espaço, e
oferecem sacrificios suce~ivamente, ou mesmo simulta-
neamen te, nos altares do arcaísmo e do exotismo.
Essa tendênciat em si mesma, não requer elogio nem
censura. Gostaria apenas de observar que essas viagens
imaginárias não nos fornecem nada que seja exato, e não
estreitam nossa intimidade com a música.
Em nossa primeira aula, descobrimos com espanto
que, no cas~ de Gounod, há sessenta e nove anos, mesmo
o Fausto, de início. encontrou ouvintes que se rebelavam

* Em francês no original: "1neu caro decano''. (N.T.)


======-.Jflul.1.I_JI
.:,:34.:....1:I
LI poética musical

contra o encanto de sua melodia, e eram insensíveis e


surdos à sua originalidade.
Que diremos então sobre a música antiga, e como
poderemos julgá-la apenas com os instrumentos do pen-
samento discursivo? Pois aqui o instinto nos falta. Não
temos um elemento indispensável de investigação - a
sa~r, a sensação da própria música.
!A minha própria experiência convenceu-me, há muito
teinpo, de que qualquer fato histórico, recente ou remo-
to, pode muito bem ser utilizado como estímulo para pôr
cm movimento a faculdade criativa, mas nunca como
uma ajuda para esclarecer dificuldades.
Só se pode construir solidamente sobre os alicerces do
imediato, pois o que já não está em uso não pode servir-
nos diretamente. Assim, é fútil ir além de um certo ponto,
até fatos que já não nos permitem contemplar a própria
músicat
De fato, não devemos esquecer que a música, do tipo
que tem significação para nós atualmente, é a mais jovem
de todas as artes, embora suas origens sejam tão antigas
quanto as do próprio homem. Quando remontamos
além do século XIV, as dificuldades materiais criam obs-
táculos e se acumulam a tal ponto que ficamos reduzidos
a fazer conjecturas quando se trata de decifrar a música.
De minha parte, não consigo intere~ar-me pelo fenô-
meno da música a não ser na medida em que ela emana
do homem integral. Isto é, do homem equipado com os
recursos de seus sentidos, suas faculdades psicológicas e
sua formação intelecn1al.
Só o homem integral é capaz da empreitada especula-
. . , .....
'1va que 1ra ocupar agora no~a atençao.
Pois o fenômeno da música não é outra coisa senão um
fenômeno especulativo. Não há nada nesse lermo que
deva a~ustá-los. Ele simplesmente supõe quci~· base da
criação musical é u1na es1>écie de sentimento preliminar,
uma vontade que inicialmente caminha no terreno do
abstrato com a intenção de dar forma a algo de concreto.
Os elementos a que essa especulação necessariamente diz
l:1:1==-----.....ll_:3::::S_JI
o fenômeno d a· música t:I:jlt:tl

respeito são o som e o tempo.') A música é inconcebível


quando isolada desses elementos.
A fim de facilitar a exposição, falaremos prin1eiro do
tempo.
As artes plásticas apresentam-se a nós no espaço: rece-
bemos uma impressão global anLcs de detectar os deta-
lhes, pouco a pouco e cm nosso ritmo próprio. A müsica,
porém, baseia-se numa succs..~<> temporal, e exige uma
memória alerta. Sendo ~im,. a música é uma arte cron~
j •

wgica. assim como a pintura é uma arte espacial' A música


pressupõe, antes de tudo, certa organização do tempo,
u~_a crononomia, se me permitem esse neologismo.
: As leis que regulam o movimento dos sons exigem a
presença de um valor mensurável e constante: a 1nélrica,
elemento puramente material, através do qual o ritmo,
elemento puramente formúl, se realiza. Em outras pa]a-
vras, a métrica resolve a questão de em quantas partes
iguais será dividida a 11nidadc musical que denominamos
compasso, enquanto o ritmo resolve a q11estão de con10
essas partes iguais serão agn1padas dentro de um deter-
minado cornpasso. Um compasso de quatro tempos, por
cxemp]o, pode ser composto de dois grupos . de dois
tempos, ou de três grupos: um tempo, dois tempos, um
tempo, e assim por diante ...
Vemos portanto que a métrica - já que intrinseca-
mente oferece apenas elementos de simetria, sendo ine-
vitavelmente composta de quantidades iguai4i - é neces-
sariamente utilizada pelo ritmo, cttia função é estabelecer
a ordem no movimento dividindo as quantidades forne-
cidas pelo compas.-;o._·:
Quantos de nós:011vindo jazz, não terão sentido uma
curiosa sensação, próxima da vertigem, quando um dan-
çarino ou músico solista, tentando insistentemente enfa-
tizar acentos irregulares, não consegue desviar o nosso
ouvido da pu]sação regular da métrica produzida pela
percussão?
De que modo reagimos a uma impressão dessa nature-
za? O que chama mais atenção nesse conflito entre ritmo
======--..1lwlIL.JI
(L...:.:36:....t:I poética musical

,
e métrica? E a obses.,ão com a regularidade. Os tempos
isócronos, nesse caso, são apenas um·,, modo de pôr em
relevo a invenção rítmica do solista. E isso que traz sur-
presa e produz o inesperado. Refletindo sobre isso, per-
cebemos que sem a presença real ou implícita das mar--
cações de tempo não poderíamos descobrir o sentido
dessa invenção. Estamos aqui apreciando uma forma de
relação.
Este exemplo me parece esclarecer suficientemente as
conexões entre métrica e ritmo, tanto no sentido hierár-
quico como no sentido crononômico.
Que podemos dizer, então, agora que estamos plena-
mente informados, quando alguém fala - o que é muito
comum - num "~~~ ~~pi_~o"? Como pode tal erro ser
cometido por uma pessoa sensata? Pois, afinal de contas,
ràcelerar altera apenas o movimento.l Se eu canto o Hino
-
Nacional Americano duas vezes mais rápido que o usual,
l-estou apenas modificando o -seu andamento; de modo
algum estou mudando seu ritmo, já que a relação dos
valores musicais permanece intacta..;
Fiz questão de desperdiçar alguns minutos ne~ pro-
blema elementar porque é possível vê-lo singularmente
distorcido por pessoas ignorantes que abusam do vocabu-
lário da música.
Mais complexo, e de fato fundamental, é o problema
específico do tempo musical, do cronos da música. Es.~
problema foi objeto, recentemente, de um estudo muito
interes1ante de Pierre Souvtchinski. um filósofo rusoo e meu
amigo. Seu pensamento encontra-se tão próximo ao meu,
que nada posoo fazer aqui senão procurar resumir sua tese.
Ele vê a criação musical como um complexo inato de
intuições e possibilidades baseadas fundamentalmente
numa experiência exclwivamente musical do tem~ -
'
cronos - , do.qual a linguagem musical nos dá apenas a
realização funcional.
Todos sabemos que o tempo transcorre numa veloci-
dade que varia de acordo com as disposições íntimas do
indivíduo, e com os fatos que afetam sua consciência.
o fenômeno da música :::1lttl:1:l==--------1l..:3~7...JI
t:I

Expectativa, tédio, angústia, dor e prazer, contemplação


- tudo Ís.5o aparece como diferentes c~tegorias em meio
às quais nossa vida se desdobra, e cada uma delas deter-
mina um processo psicológico específico, um andamento
particular. ~ variações no tempo psicológico são per-
ceptíveis apenas na medida em que estão relacionadas à
sensação primária - consciente ou inconsciente - do
tempo real, do tempo ontológico.
\ O que confere ao conceito de tempo musical sua
marca específica é que ~ categoria nasce e se desen-
volve tanto externa como simultaneamente às categorias do
tempo psicológico. Qualquer música, quer se submeta ao
fluxo normal do tempo, quer se dissocie dele, estabelece
uma relação particular, uma espécie de contraponto entre
a ~gem do tempo, a duração da própria música, e os
m~ios técnicos e materrl:us pelos quais a música se manifes~~~··
. Souvtchinski nos apresenta dois tipos de música: um
deles evolui paralelamente ao procesro do tempo ontoló-
gico, envolvend<r0 e penetrando-o, introduzindo na
mente do ouvinte um sentimento de euforia, o que se
poderia chamar de "calma dinâmica". O outro tipo vai à
frente. ou em direção contrária, desse processo. Não está
encerrado em cada unidade tonal momentânea. Desloca
os centros de atração e gravidade, e se estabelece no
instável. Esse fato torna-o particularmente adaptável à
transposição dos impulsos emotivos do compositor. Toda
música em que o desejo de expre~o predomina per-
tence ao segundo tipo.
E~ problema do t~mpo na arte da música é de impor-
tância capital. Achei que valia a pena mergulhar nele
porque as considerações daí resultantes podem ajudar-
nos a entender os diferentes tipos criativos, que serão
~nto da quarta lição.
. A música que se apóia no tempo ontológico é geral-
mente dominada pelo princípio da similaridade. A músi-
ca que adere ao tempo psicológico tende a proceder por
contraste. A e ~ dois princípios que dominam o proces-
.::38:....tl
LI ======-...111111.JLn.....JI poética musical

so criaúvo correspondem os conceitos fundamentais de


variedade e unidade. 1

Todas as artes recorrem a esse princípio. ()s métodos


policromático e monocromático nas artes plásticas C<?~-
respondem respectivamente à variedade e à unidade.\l)e
minha parte, sempre considerei que, de maneira geral,
é mais satisfatório proceder por similaridade do que
por contraste. Assim a música ganha força na medida
em que não sucumbe às tentações da variedade. O que
ela perde c_m riquezas questionáveis ela ganha em soli-
dez efetiva.!
- - . • -.... _ _J

O contraste produz um efeito imediato. A similaridade


só· satisfaz a longo prazo. O contraste é um elemento de
variedadcJ mas divide nossa atenção. A similaridade nasce
de um des~jo de unidade~ A necessidade de buscar varie-
dade é perfeitamente legítima, mas não deveríamos es- ,._
quecer que o Um precede o Múltiplo. Além disso, (a
c<>existê11cia de an1bos é constantemente necessária, e
todos os problemas da arte, bem como outros possíveis
prob]en1as - incluindo o problema do conhecimento e
do Ser - giram inelutavelmente em torno dessa questão\
com Parmênides, de um lado. negando a possibilidade
da multiplicidade, e 1-leráclito, do outro, negando a exis--
tência do Uno. O simples senso comum, bem como a
suprema sabedoria, nos con~da a afirmar tanto um quan-
to outro. De tod<> modo, 1a- melhor atitude para um
compositor, nesse caso, será a atitude do homem que tem
consciência de uma hierarquia de valores e que deve fazer
uma escolha. A variedade só é válida como meio de atingir
a similaridade. A variedade me cerca de todos <>s lados.
Portanto eu não preciso temer ser privado dela, já que
estou permanentemente em confronto com ela. O con-
tra~te está por toda parte. Temos apenas de registrar a sua
presença. A similaridade está oculta; é preciso procurar
por ela, e ela só se deixa encontrar depois de exaustivos
esforços. Quando a variedade me tenta, fico inseguro
quanto às soluções fáceis que ela me oferece. A similari-
dade, por outro lado, coloca problemas mais dificcis mas
o fenômeno d a música ==-----.Jl...:3~9:...JJ
t:I::11At:::tl1:11

também oferece resultados mais sólidos e, portanto, mais


. • l
va11osos para m1m.
---
1

,
E escusado dizer que não esgotamos aqui esse tema
infindável, e precisaremos voltar a ele.
Não estamos em um conservatório, e não tenho inten-
ção de aborrecê-los com pedagogia mt1sical. Não estou
preocupado, a· essa altura, em apresentar certos princí-
pios elementares conhecidos de vocês e que, se necessário
- supondo que os esqueceram - , poderiam ser facil-
mente encontrados em qualquer compêndio. Não irei
prender vocês com noções de intervalos, acordes, modos,
harmonia, modulação, registro e timbre - conceitos que
não são ambíguos; mas quero deter-me por um momento
em certos elementos da terminologia musical que podem
gerar confusão, e tentarei esclarecer alguns equívocos,
assim como acabei de fazer em relação ao cronos ao falar
sobre métrica e ritmo.
Todos vocês sabem que a gama de sons audíveis cons-
titui a base .ttsica da arte da música. Também sabem que
a escala é formada p<>r meio dos sons da série harmônica
arranjados em ordem diatônica numa sucessão diferente
da que a natureza nos oferece.
Sabem também que a relação de altura entre dois sons
denomina-se intervalo, e que um acorde é o complexo
sonoro que resulta da emissão simultânea de pelo menos
três sons de altura distinta.
Tudo vai bem até aqui, tudo i$0 é claro para nós. No
entanto, conceitos de consonância e dissonância deram
origem a interpretações tendenciosas que deveriam ser
definitivamente esclarecidas.
;consonância, diz o dicionário, é a combinação de
diversas notas musicais em uma unidade harmônica. A
di~onância resulta da perturbação dessa harmonia pela
adição de notas estranhas a ela. Precisamos admitir que
isto não está claro. Desde que surgiu em nosso vocabulá-
rio, o termo dis.fonância traz em seu bojo um certo cheiro
de pecado.,.
,::40:...tl======-Jlu.l.1.I.JI
LI poética musical

liguemos nos.sa lanterna: em linguagem de compên-


dio, la di~onância é um elemento de transição, um com-
plexo ou intervalo de notas que não está completo em si
mesmo, e que deve ser resolvido, para satisfação do ouvi-
do, em uma consonância perfeita. '
1

:Mas assim como o olho complementa as linhas de um


desenho que o pintor deixou conscientemente incomple--
to, também o ouvido pode ser chamado a complementar
um acorde e cooperar em sua resolução, inconclusa em
determinada obra. A dissonância, nesse momento, de-
sempenha o papel de uma alusão~--
Qualquer dos casos aplica-se a um estilo em que o uso
da dissonância determina a necessidade de uma resolu-
ção. Nada porém nos obriga a procurar constantemente
por uma satisfação que resulta apenas no repouso. Por
mais de um século, a mÍlsica vem nos oferecendo seguidos
exemplos de um estilo em que a dissonância alcançou sua
emancipação. Ela já não está amarrada à sua função
antiga. Tendo se tornado uma entidade ~uto-suficiente,
muitas vezes a di~onância não prepara nem antecipa
alguma coisa. Já não é mais agente da desordem, assim
como a consonância, tampouco garantia de segurança. A
música de ontem e de hoje aproxima sem hesitação
acordes dissonantes paralelos que, desg_ maneira, per-
dem seu valor funcional: e o nosso ouvido aceita natural-
• • - 1
mente essaJUStapos1çao.'
Obviamente, a instrução e a educação do público não
acompanharam o ritmo de evolução da técnica. O uso da
dissonância, em ouvidos mal preparados para aceitá-la,
não deixou de perturbar essa reação, causando um estado
de debilidade em que o dissonante já não se distingue do
consonante.
Já não estamos, assim, no contexto da tonalidade clás-
sica, no sentido escolástico da palavra. Não fomos nós que
criamos.esse estado de coisas, e não é n ~ culpa se somos
confrontados com uma nova lógica da música que pare-
ceria impensável para os mestres do pas,ado. E essa nova
o fenômeno da música :::1lt:tl•l==------1.l_:4~1_JI
t:I

lógica abriu os nossos o]hos para riquezas de cuja exis-


tência nem mesmo suspeitávamos.
Tendo atingido e~ ponto, toma--se indispensável obe-
decer não a novos ídolos, mas à eterna necessidade de
afirmar o eixo da no§.§3 música, e reconhecer a existência
de alguns pólos de atração. A tonalidade diatônica é
apenas um dos meios de orientar a música na direção a
esses pólos. A função da tonalidade está completamente
subordinada à força de atração do pólo da sonoridade.
Toda música não é senão uma suce~o de impulsos que
convergem para um ponto defmido de repouso. Isso é
tão verdadeiro para o canto gregoriano como para uma
fuga de Bach, tão verdadeiro na música de Brahms como
nadeDeb~~-
F.,«a lei geral da atração só é satisfeita, e de um modo
limitado, pelo sistema diatõnico tradicional. pois e~e
sistema não possui valor absoluto.
Hoje em dia, há·poucos músicos que não se dêem
conta desse estado de coisas. Mas permanece o fato de
que ainda é impossível estabelecer as regras que gover-
nam essa nova técnica. E nem isso chega a surpreender.
A harmonia tal como é ensinada hoje nas escolas dita
regras que não foram focadas senão muito tempo depois
da publicação das obras em que elas se baseiam, regras
que eram desconhecidas para os compositores dessas
obra,. Daí nossos tratados de harmonia tomarem como
ponto de partida Moi.art e Haydn, nenhum dos quais
jamais ouviu falar em tratados de hannoni~~
De modo que nossa principal preocupação é menos o
que se chama de tonalidade do que o que poderíamos
chamar de atração polarilÃlda do som, de um intervalo,
ou mesmo de um complexo de notas. Essa nota que soa
constitui, de certo modo, o eixo essencial da música. A
forma musical seria inimaginável caso faltassem os ele-
mentos de atração que plasmam todo organismo musi~
cal, e que fazem parte de sua psicologia. As articulações
do discurso musical traem uma correlação subterrânea
entre o andamento e a interação das notas. Toda mú-
=====::_JIIIJ.ll.1. I...JI
.::::42:..J::I
LI poética musical

sica não sendo senão uma sucessão de impulsos e repou-


~o, é fácil verificar que a aproximação e o afastamento
dos pólos de atração como que determinam a respiração
da. música
. .
.
\ Levando em conta que nossos pólos de atração já não se
encontram dentro do filstema fechado que era o sistema
diatônico, podemos aproximar os pólos sem a obrigação de
ceder às .exigências da tonalidade. \Pois não acreditamos
mais no valor absoluto do sistema.máior-menor apoiado na
entidade que os musicólogos chamam de escala de dó.
,_ A afinação de um instrumento, de um piano por
exemplo, exige que todo o espectro musical acessível a
esse instrumento seja ordenado de acordo com graus
cromáticos. E~a afinação nos leva a obseIVar que todas
esses sons convergem para um centro que é o lá acima do
dó central. )Compor, para mim, é pôr em uma determi-
nada ordem certo número de~s sons de acordo com
certas relações de intervalo. Essa atividade leva à procura
de um centro para o qual a série de sons implicada em
meu esforço po~a convergir. As.sim, dado um determina-
do centro, terei de encontrar uma combinação que con-
virja para ele. Se, por outro lado, t1ma combinação ainda
não orientada surgiu, terei de determinar o centro para
o qual ela deveria conduzir. A descoberta de~e ,,,.
centro é
que me sugere a solução do problema. E assim que
satisfaço o meu pronunciado gosto.por esse tipo de topo-
grafia m usiccll,\
O desgastado sistema da tonalidade clássica, que serviu
como base para construções music~is de fascinante inte-
resse, só teve autoridade de lei, entre os músicos, por um
curto período de tempo - um período muito mais curto
do que se costuma imaginar, e que vai apenas de meados
do século XVII a meados do século XIX. A partir do mo--
men to em que acordes já não setvem para cumprir sim-
plesmente as funções a ele atribuídas pela interação das
notas musicais, mas, em lugar disso, esquecem todo cons-
trangimento para se tornarem novas entidades, livres de
todas as amarras - a partir desse momento, pode--se dizer
o fenômeno da música ::1ltilt11l==------LI.:=4~3.JI
t:I

que o processo está completo: o sistema diatônico esgo-


tou o sett ciclo vital. A música dos polifonistas da Renas-
cença ainda não ingressara nesse sistema, e vimos que a
música de nossa época já não segue essa regra. Uma
progressão de acordes paralelos de nona bastaria como
prova. Foi assim que as portas se abriram para o que foi
batii.ado com um termo abusivo: awnalidatk
.
.
.

A expressão está na moda. Mas não significa que seja


muito clara. E eu gostaria de saber exatament~ o que as 1

pessoas que a utilii.am querem dizer com ela. \O prefixo


de negação a indica um estado de indiferença relaçãoem
ao termo, negando-o sem a ele renunciar inteiramente.
Entendida dessa maneira, a palavra atonal.idade dificil-
mente corresponde ao que têm cm mente os que a
empregam. Se fosse dito que minha música é atonal, isso
seria o mesmo que dizer que me tomei surdo à tona]j..
dadc. Ora, é perfeitamente possível que eu permaneça
por um tempo considerável dcntr<> dos limites da estrita
ordem tonal, mesmo se p<>sso conscientemente quebrar
essa ordem com a finalidade de estabelecer uma ordem
diferente. Nesse caso, não estou sendo atonal, mas anti~
naL Não estou tentando argumentar levianamente em
torno de palavras: é essencial saber o que negamos e o
que afirmam_y~
Modalidade, tonalidade, polaridade são apenas recur-
sos provisórios que pa~m, e acabarão por desaparecer.
i,ô que sobrevive a toda mudança de sistema é a melodia~)
Os mestres da Idade Média e da Renascença não estavam
menos preocupados com a melodia do que Bach e Mo:rart.
Minha topografia musical, entretanto, não rcseIVa espaço
para a melodia isolada. Reserva, para a melooia, a mesma
posição que lhe cabia nos sistemas modal e diatônico.
Sabemos que a palavra "melodia", no sentido científico
do termo, aplica-se à voz superior na polifonia, o que a
diferencia da cantilena não acompanhada que chama-
mos de monodia.
~ , .......

·Melodia, em grego mélôdia, implica a entonação do


m,e/,os, o que significa um fragmento, parte de uma frase.
======-.1lwlILJI
LI..:.44.:...tl poética musical

São ~~ partes que atingem o ouvido de um modo que


assinala algumas acentuações.1 Melodia é, assim, o canto
musical de uma frase cadencráda - uso a palavra caden,.
ciada no sentido genérico, não em seu sentido musical
específico. A capacidade para a melodia é um dom. Isso
significa que não está em nosso poder desenvolvê-lo atra-
vés do estudo. Mas podemos ao menos controlar sua
evolução através de uma autocrítica perspicaz. O exem-
plo de Beethoven deveria bastar para nos convencer de
que, de todos os elementos da música, a melodia é o mais
acessível ao ouvido e o mais díficil de se adquirir. Temos
aqui um dos grandes criadores de música que passou toda
a sua vida implorando a ajuda desse dom que lhe fazia
falta. De modo que e~ admirável surdo desenvolveu suas
faculdades extraordinárias em proporção direta à resis-
tência oferecida por aquela que lhe faltava, da mesma
maneira que um homem cego, em sua noite eterna,
aprimora sempre a acuidade de seu senso de audição.
Os alemães, como sabemos, honram seus quatro gran-
des B's. Num plano mais modesto, selecionaremos dois
B,s para as necessidades de nosso argumento.
Na época em que Beethoven oferecia ao mundo rique-
zas que parcialmente podem ser atribuídas à resistência
do sentido melódico, u1n outro compositor, cujas reali-
zações nunca foram iguais às do mestre de Bonn, espa-
lhava aos quatro ventos, com inesgotável fecundidade,
melodias magníficas da melhor qualidade, distribuindo-
as tão gratuitamente quanto as recebera, sem mesmo se
dar conta do méritó de tê-las criado. Beethoven acumu-
lou para a música um patrimônio .que parece apenas o
resultado de um esforço laborioso.\ ,Bellini herdou a me-
1

lodia sem sequer ter pedido por ela, como se os Céus lhe
dissessem: "Darei a você o que falta a Beethoven.":
Sob o efeito do intelectualismo erudito que predomi-
nava entre os melômanos do gênero sério, foi moda,
durante algum tempo, fazer pouco da melodia. Começo
a pensar, de pleno acordo com o público em geral, que
a melodia deve manter seu lugar no topo da hierarquia
o fenômeno da música t:I ==-----.....LI...::=4~S.JI
:::1lt:tl•I

de elementos que compõem a música. A melodia é o mais


essencial desses elementos não porque seja mais imedia-
tamente perceptível, mas porque é a voz dominante na
sinfonia - não só no sentido específico, mas também no
figurado.
Mas isso não é razão para ficarmos obcecados pela
melodia a ponto de perder o equilíbrio e esquecer que a
arte da música nos fala em muitas vozes ao mesmo tempo.
Gostaria de dirigir novamente a atenção de vocês para
Beethoven, cuja grandeza deriva de uma obsti_nada bata-
lha com a melodia rebelde. Se a melodia fosse tudo na
música, como justificar as vári~ forças que compõem a
imensa obrc1 de Beethoven, e em que a melodia certa-
mente é a menos privilegiada?
Se é fácil definir melodia, muito menos fácil é dis-
tinguir as características que definem uma bela melo-
dia. A apreciação de um valor é, em si mesma, s~jeita à
apreciação. O único padrão que possuímos nesse ter-
reno depende de um refinamento de cultura que pres-
supõe a perfeição do gosto. Nada, aqui, é absoluto,
exceto o relativo.
Um sistema de centros tonais ou polares só nos é dado
com o objetivo de alcançar uma certa ordem - o que
significa, para ser mais preciso, forma, a fonna em que
culmina o esforço. criativo.
De todas as formas musicais, a considerada mais rica
sob o ponto de vista do desenvolvimento é a sinfonia.
Normalmente atribuímos esse nome a uma composição
em vários movimentos, um dos quais confere a toda a
obra sua qualidade sinfônica - a saber, o alkgro sinfôni--
co, usualmente colocado na abertura da obra e que
procura fazer jus ao seu nome preenchendo os requisitos
de uma certa dialética musical. A parte e~encia) dessa,,
dialética está no segmento central, o desenvolvimento. E
exatamente esse allegm sinfônico que determina a forma
sobre a qual, como sabemos, se constrói toda a música
instrumenta] - da sonata para instrumento solo, p~an--
do pelos vários conjuntos de câmara ( trios, quartetos etc.)
======-.Jl11111.a.1. . .JI
LI..:.:46:...tl poética n,usical

a caminho das composições mais amplas para grandes


ma~ orquestrais. Mas não quero incomodar vocês mais
que o necessário com um curso de morfologia qt1e não
corresponde exatamente ao objetivo dc~as lições, e só
menciono o tema de passagem para lembrar que existe
em música, assim como em todas as outras artes, uma
espécie de hierarquia das formas.
--,
. E costume distinguir formas instrumentais de formas
vocais. O elemento instrumental dispõe de uma attton<>-
mia que o elemento vocal não possui, por estar preso às
palavras. Através do curso da história, cada um desses
meios deixou sua marca nas formas a que deu origem.
Basicamente, essas distinções constituem apenas catego-
rias artificiais. A forma nasce do meio sonoro; mas cada
meio assimila tão facilmente formas desenvolvidas por
outros meios que a mistura_ de eslilo é constante, e Lama
a discriminação impossível.
Grandes centros de culturc1, como a Igreja, acolheram
e desenvolveram, no passado, a arte vocal. Em nossa
época, as sociedades corais já não conseguem exercer a
mesma função. Reduzidas a preservar e apresentar as
obras do pas.~do, já não podem reivindicar o mesmo
pape], p<>rqu~ a evolução da polifonia vocal estancou por
longo tempo., A canção, mais ou menos ligada à palavra,
acabou por tomar-se uma espécie de complemento, eviden-
ciando assim sua decadência. No momento cm que a can-
ção é usada apenas para dar expre~ão a um discurso, ela
deixa
-..__
o dommio da música, e nada mais tem a ver com ele.
'-'
\ Nada mostra mais claramente o poder de Wagner, e
do tipo de Slunn und Drang (tempestade e ímpeto) por
ele desencadeado, do que essa decadência que a sua obra,
na verdade, consagrou, e que desde então vem se desen-
volvendo rapidamente. Como deve ter sido poderoso esse
homem. para destruir 1=1ma forma essencialmente musical
com tal energia que, cinqüenta anos depois de sua morte,
ainda cambaleamos sob o entulho e a confusão do drama
musical! Pois o prestígio da Gesamlkunstwerk (a "obra de
arte total,,) ainda está vivo.\
o fenômeno da música :jBt:il:111==-----LI_::4:.,7..,JI
t:I

,
E isto o que se chama de progresso? Talvez. A menos
que os compositores encontrem força para sacudir essa
pesada herança obedecendo ao admirável conselho de
Verdi: "Vamos voltar aos velhos tempos; isso será um
progresso."
a composição da música
IVF-\fOS UM PERÍODO L\f que a condição humana
passa por profundas transformações. O homem
moderno vem perdendo progressivamente a sua
compreensão dos valores e o seu senso de proporções.
Es.sa inaptidão para entender realidades essenciais é ex-
tremamente séria, levando de modo infalível à violação
das leis fundamentais do equilíbrio humano. No domíRio
da música,,-....
as conseqüências desse equívoco são as se-
guintcsf por um lado, existe a tendência de afastar o
espírito.do que chamarei de alta matemática da müsica, de
modo a dcgrJdá-la a uma utilização servil, de vulga~µ-la
adaptando-a às exigências de um utilitarismo elementa~ -
.como logo veremos ao examinar a música soviética. Por
outro lado, como o próprio espírito está enfermo, a música
de nosso tempo, especialmente a música que advém de si
mesma e que se crê pura, traz com ela os sintomas de um
defeito patológico, e espalha os germes de um novo pecado
original. :'õ. velho pecado original era sobretudo um pe-
cado de conhecimento; o novo, se pooso falar n ~ termos,
é antes e sobretudo um pecado de não reconhecimento -
a recusa em reconhecer a verdade e as leis que daí proce-
dem, leis que chamamos de fundamen~J Qual é, então,
essa verdade no domínio da música? E quais são suas
repercussões sobre a atividade criadora?
Vamos lembrar o que está escrito: Spiritus ubi vult sfrirat
(São João 3,8); "O Espírito sopra onde quer". O que é
preciso reter nessa proposição é sobretudo a palavra
QUER. O Espírito está, ~im, dotado da capacidade de
querer. O Jlrincípio da volição especulativa é um fato.
,::;S2~1======-..1ILLI
LI ILJI poética musical

Ora, é justamente ~e falo que se pretende agora


contestar. As peswas questionam a direção que o vento
do Espírito está tomando, não a correção do trabalho do
artista. Assim fazendo, sejam quais forem os seus senti-
mentos para com a ontologia, sejam quais forem a filoso-
fia e as crenças que abracem, vocês devem admitir que
estão realizand<> um ataque à própria liberdade do cs--
pírito - quer vocês escrevam essa grande palavra com
letra maiúscula ou não. Se adeptos de uma filosofia cristã,
vocês teriam então de recusar a idéia de um Espírilo
Santo. Se agnósticos ou ateus, teriam simplesmente de
recusar a condição de livres-pensadores ...
Seria bom observar que nunca há qualquer disc~ão
quando o ouvinte extrai prazer da obra que está ouvindo.
O menos informado dos melômanos apega-se de bom
grado à periferia de uma obra; ela lhe agrada por motivos
que, na maioria das vezes, são totalmente alheios à e~
sência da música. Esse prazer lhe basta, e não demanda
qualquer explicação. Mas caso aconteça de a música lhe
causar desprazer, nosso melômano lhe pedirá uma expli-
cação para o seu desconforlo. Pedirá que expliquemos
algo que é, em ~ua essência, inefável.
Pelo fruto nós julgamos a árvore. Julguem, então, a
árvore por seus frutos, e ignorem as raízes. A função
justifica o órgão, por estranho que o órgão po~a parecer
aos olhos dos que não estão acostumados a vê-lo funci~
nar. Os círculos e!lnobes estão recheados de pessoas que,
como um dos personagens de Montesquieu, se admiram
de que alguém ~~ ser persa. Eles sempre me fazem
pensar na história do camponês que, vendo um drome-
dário no zoológico pela primeira vez, examina-0 cuidad~
sarnente, balança a cabeça e,já a ponto de sair, diz, para
grande diversão dos presentes: "Não é verdadeiro".
, ··-
E a~im, através do pleno ·jexercíc)í> de suas funçõest
que uma obra se revela e se justificft,~tamos livres para
. . . , . . ~

aceitar ou reJe1tar esse exerc1c10, mas n1nguem tem o


direito de questionar o fato de sua existência. Julgar.
questionar e criticar o princípio da vontade especulativa
a composição da música ::1Bttl•ll==------11..::S:.::l~I
t:I

que está na origem de toda criação é, ~im, definitiva-


mente inútil. Em seu estado puro, música é especulação
livre. Artistas de todas as épocas fornecem um testemu-
nho incessante a esse respeito. De minha parte, não tenho
por que não tentar fazer o que eles fizeram. Eu próprio
tendo sido criado, não posso deixar de ter o desejo de
cri~JO que põe esse desejo em movimento, e o que po~o
fazer para torná-lo fecun~o?
O estudo do processo criativo é algo de extremamente
delicado. Na verdade, é impo~ível observar ,,
de fora os
movimentos internos desse procesw. E uma tentativa vã,
assim como ,
seguir suas sucessivas fases na obra de outra
pessoa. E igualmente dificil observar o que você mesmo
faz. E no entanto, só pedindo a ajuda da introspecção é
que tenho a1guma chance de guiá-los nessa matéria es-
sencialmente flutuante.
,A maioria dos amantes de música acredita que o que
põe em movimento a imaginação criadora de um compo-
sitor é um certo distúrbio emotivo geralmente designado
pelo
~... .
.
nome de inspiração.\
..._
.........

Não pretendo negar à inspiração o papel de destaque


que lhe cabe no processo gerador que estamos estudan-
do. Apenas, sustento que a inspiração não é de fonna
alguma condição prévia do ato criativo, e sim uma ma-
nifestação cronologicamente secundária.\
Inspiração, arte, artista - tantas palavras, no mínimo
nebulosas, que nos impedem de ver claramente num
terreno onde tudo é equilíbrio e cálculo,, através dos quais
sopra o hálito do espírito especulativo. E posteriormente,
e não anteriormente, que o distúrbio emotivo cmociado
à inspiração pode se manifestar - um distúrbio e1notivo
a respeito do qual as pessoas falam indelicadamente,
atribuindo-lhe um sentido que nos choca, e que compro-
mete o próprio termo. Não estará claro que ral emoção é
apenas uma reação da parte do criador às voltas com essa
entidade desconhecida que ainda é apenas o objeto de sua
~nção criativa. e que deverá tornar-se uma obra de ane?
1Passo .a passo, elo a elo, ele tera a oportunidade de
======-..11IJ.JInlL....JI
LI,:::S4!...t:I poética musica 1

,
descobrir a obra. E essa cadeia de descobertas, bem como
cada descoberta individual, que provoca a ernoção -
quase um reflexo fisiológico, como o apetite que provoca
um fluxo de saliva - essa emoção que invariavelmente
seg~e de perto as fJ.Ses do proce~o criativ~'
'1Toda criação pressupõe, em sua origem, uma espécie
de apetite provocado pela antevisão da descoberta. Esse
gosto antecipado do ato criativo acompanha a captação
intuitiva de uma entidade desconhecida já possuída mas
ainda não inteligível, uma entidade que só tomará forma
definitivd
,
pela ação de uma técnica constantemente vigi-
lante.:
Esse apetite despertado em mim pela simples idéia de
colocar cm ord~m elementos musicais que atraíram a
minha atenção não é absolutamente uma coisa fortuita
como a inspiração, mas algo de tão habitual e periódico,
mesmo não sendo tão constante, quanto uma neces-
sidade natural
Essa intuição de uma obrigação, esse gosto antecipado
de um prazer, esse reflexo condicionado, como diria um
moderno fisiologista, mostra claramente que é a idéia da
descoberta e do trabalho difícil o que me atrai.
O próprio ato de colocar a minha obra no papel, ou,
como dizemos, de trabalhar a ma~, é para mim insepa-
~vel do prazer da criação. No que me diz respeito, não
consigo separar o esforço espiritual do esforço físico e
fisiológico; eles me aparecem no mesmo nível, e não se
apresentam numa hierarquia.
fÃ. palavra artista, que, bastante incompreendida h~c,
confere ao que a carrega o imenso prestígio intelectual,
o privilégio de ser aceito como puro espírito- esse termo
pretensioso é, a meu ver, inteiramente incompatível com
a fEnção do homo f abef_}
i -.

I Nesse ponto deveria ser lembrado que, seja qual for o


campo de realização a nós atribuído, e se é verdade que
somos intelectuais, somos convocados não a especular,
mas a executar;
a composição da música lt::::::tlt:tl:ttl=::::::::.._ _ _ _......1.l...:S~S...JI

O filósofo Jacques Maritain nos lembra que, na im~


nente estrutura da civilização medieval, o artista pertencia
apenas ao nível de um artesão. "E à sua individualidade
não se permitia qualquer tipo de desenvolvimento anár-
quico, porque uma disciplina social natural impunha-lhe
de fora algumas condições limitativas." Foi a Renascença
que inventou o artist2, separou-o do artesão e começou a
exaltar o primeiro em detrimento do segundo.
No início, o nome de artista era atribuído apenas aos
Mestres das Artes: filósofos, alquimistas, mágicos; mas a
pintores, escultores, músicos e poetas cabia o direito de
serem chamados exclusivamente artesãos.

Manejando diversos uteruíliru


O anesão sutil implanta a vida
No mámwre, no cobre e no bronze,
diz o poeta Du Bellay. E Montaigne enumera, em seus
Ensaios, os "pintores, poetas e outros artesãos". Mesmo no
século XVII, La Fontaine adorna uni pinlor com o nome
de artesão, recebendo resposta azeda de um crítico des--
temperado que podia muito bem ter sido o ancestral de
nossos críticos de hoje.
A idéia de um trabalho a ser feito está, para mim, tão
estreitamente ligada à idéia do arranjo dos materiais e do
prazer que a confecção concreta da obra proporciona
que, se o impossível acontece~, e a obra de repente me
fo~ dada numa forma perfeita e completa, eu ficaria
embaraçado e perplexo com isso, como ficaria com uma
fraude.
Temos um dever em relação à música, que é inventá-la.
Lembr~me de que certa vez, durante a guerra, quando
eu estava cruzando a fronteira da França, um soldado
perguntou qual era minha profis.,ão. Disse-lhe, muito
naturalmente, que era um inventor de música. O soldado,
verificando o meu pas.,aporte, perguntou por que eu
estava classificado como C?~-~~to_r. Respondi-lhe que a
expre~o "inventor de --m~sica"_ me parecia descrever
minha profissão mais exatamente do que o termo que
~56:....t:I======--..1llLIIIL.JI poética musical
LI

constava dos documentos autorizando minha p~agem


i,_I~ fronteira.
! Invenção pres.,upõe imaginação, mas não deveria ser
confundida com ela. Pois o ato de inventar implica a
necessidade de uma descoberta feliz, e de obter a plena
realização de~a descoberta. O que imaginamos não as--
sume neces.,ariamente uma forma concreta, e pode per--
manecer em estado virtual, enquanto a invenção não
pode ser concebida à parte da obra que está sendo
11
forjada.--..
~~

~im, o que nos interessa aqui não é a imaginação em


si mesma, mas antes a imaginação criativa: a faculdade
que nos ajuda a pasgr do nível da concepção para o da
realização.
Ao longo de meus trabalhos, muitas vezes esbarro em
algo inesperado. E~ elemento inesperado me atinge.
Tomo.nota do que ocorreu, e, no devido tempo, tran~
formo WO em alguma coisa de útil. O dom do acaso não
deve ser confundido com aquele lado caprichoso da
imaginação que em geral chamamos fantasia. A fantasia
implica o desejo prévio de nos abandonarmos a um
capricho. Mas a ajuda do inesperado a, que acabo de fazer
-

alusãq é algo de bastante diferente/ E uma colaboração


intimamente ligada à inércia do processo criativo, e está
repleta de pos.,ibilidades que não foram solicitadas e que
vêm apropriadamente temperar o inevitável excesso da
vontade pura. E é bom que seja assim.
"Em tudo o que cede com algum-a-graça", diz em um
de seus livros G.K. Chesterton, "deve haver resistência. Os
arcos são belos quando se curvam porque, de si mesmos,
procuram ficar rígidos. A rigidez que cede imperceptivel-
mente, como ajustiça temperada pela Piedade, é toda a
beleza da terra. Todas as coisas procuram crescer retas, e,
felizmente, não há nada que consiga crescer assim. Tente
crescer reto, e a vida cuivará você."
A.facn)dade.~e criar nunca nos é dada com exclusivi-
dade.\Vem sempre acompanhada pelo dom da observa-
ção. E o verdadeiro criador pode ser reconhecido por sua
a composição da música lt:::::1llt:1l11:l==-----.....LI..::S:.:..7.JI

capacidade de sempre encontrar à sua volta, nas coisas


mais simples e humildes, detalhes dignos de no~~ Ele não
tem de preocupar-se com uma bela paisage1n, não precisa
cercar-se de o~jetos raros e preciosos.')Jão tem de se pôr
a caminho em busca de descobertas: elas estão sempre ao
1
seu alcance. Ele só tem de olliar em volta. Coisas fami-
liares, coisas que estão por toda a parte;· atraem sua
atenção. O menor incidente prende seu interesse e guia
suas operações. Caso seu dedo escorregue, ele perceberá;
em determinado momento, pode extrair vantagem de
algo imprevisto que um lapso momentâneo lhe revelou ..
Não se pode provocar o que é acidental: pode-se ob-
servar e daí extrair inspiração. O acidental é talvez a única
coisa que nos inspira. Um compositor improvisa sem
direção da mesma maneira como um animal escava o
terreno. Ambos vão escavando porque cedem à compul-
são de procurar coisas. Que necessidade do compositor
é atendida por e~a investigação? A das regras que ele
carrega como um penitente? Não: ele está em busca de
seu prazer. Ele procura uma satisfação sabendo perfeita-
mente que não a encontrará se não brigar por ela. Não
se pode obrigar a própria personalidade ao amor; mas o
amor pressupõe entendimento e, para entender, é preci-
so exercer a própria personalidade.
.,.
E o mesmo problema colocado na Idade Média pelos
teólogos do puro amor. Entender para poder amar; amar
para poder entender: não se está aqui andand,o num
círculo vicioso, e sim subindo em espiral, contanto· que,se
faça o esforço inicial, ou que se submeta a um exercício
de rotina.
Pascal tem exatamente is..'Kl em mente quando escreve
que o costume "controla o autômato, que, por sua vez,
sem mesmo pensar, controla a mente. Pois não deve
haver engano". Continua Pascal: "somos tão autômatos
quanto somos mentes... "
Assim vamos escavando naexpectativade nosso prazer,
guiados pelo nosw faro, e de súbito esbarramos com um
~SB~I======-..1ILLJInlL.JI
LI poética musical

obstáculo desconhecido. 1~ nos provoca um tremor, um


choque, e esse choque fecunda nosso poder de criação.
A faculdad~ de observar e de fabricar algo a partir do
que é observado pertence apenas à pessoa que possui,
nesse terreno peculiar de empreendimento, uma cultura
adquirida e um gosto inato. Um marchand., um amante da
arte que é o primeiro a comprar telas de um pintor
desconhecido que se tornará famoso vinte e cinco anos
depois com o nome de Cézanne - essa pessoa não nos
dá um exemplo claro desse gosto inato? O que mais
poderia guiá-lo cm sua escolha? Um faro, um instinto de
que e~c gosto se origina, uma faculdade completamente
espontânea que é anterior à reflexão.
Quanto à cultura, é uma espécie de formação que, na
esfera social, dá polimento à educação, sustenta e com-
pleta a instrução acadêmica. Essa formação é igualmente
importante na esfera do gosto, e é essencial ao criador
que deve, sem ce~r, refinar seu gosto, ou correr o risco
de perder a perspicácia. Nossa mente, assim como nosso
corpo, pede exercício contínuo. Ela se atrofia caso não a
cultivemos.
,;

E a cultura que põe em evidência o pleno valor do


gosto, dando-lhe chance de provar sua importância sim-
plesmente exercendo-o. O artista impõe uma ,
cultura a si
mesmo e acaba impondo-a aos outros. E ~im que a
tradição se estabelece.
1·A tradição é inteiramente d~tinta do hábi~J mesmo
de um excelente hábito,já que(O hábito é por definição
uma aquisição inconsciente, e tende a tornar-se mecâni-
co, ao p ~ que a tradição resulta de uma aceitação
consciente e deliberada. A tradição autêntica não é a
relíquia de um passado irremediavelmente transcorrido;
é uma força viva que anima e condiciona o presente.
Nesse sentido, o paradoxo segundo o qual tudo o que não
é tradição é plágio tem sua razão de ser... \
~.-! ... ~

Longe de implicar a repetição do que já foir a tradição


pressupõe a realidade do que permanece. Ela aparece
a composição da música ==------''.i.1..:S:.!9...JI
:::l~t:tl:11:II
t:I

como uma herança, um patrimônio legado à condição de


fazê-lo dar fruto antes de pas.sá-Jo a nossos descendent~~-J
-~
Brahms nasceu sessenta anos depois de Beethoven. De
um a outro, e sob diversos aspectos, a distância é grande;
eles não se vestem da mesma maneira. Mas Brahms segue
a tradição de Beethoven sem tomar emprestadas suas
camisas. Pois\iÕmar emprestado um método nada tem a
ver com observar a tradição. "'Um método se substitui:
uma tradição é levada adiante de modo- a produzir algo
de novo.::~ tradição a~egura, ~im, a continuida~e da
criação. O exen1plo que citei não constitt1i uma exceção,
mas é uma entre muitas provas de uma lei constante. Esse
senso da tradição, que é uma necessidade nat~ral, não
deve ser confundido com o desejo plausível do composi-
tor de afirmar o parentesco que sente, através dos séculos,
com algum mestre do passado.
~inha ópera Mavra nasceu de uma simpatia natural
pelo corpo de tendências melódicas, pelo estilo vocal e
linguagem convencion~l que vim a admirar cada vez mais
na velha ópera russo-italiana. Essa simpatia guiou-me
muito naturalmente pelo caminho de uma tradição que
parecia perdida quando a atenção dos círculos musicais
voltou-se inteiramente para o drama musical, que não
representava nenhuma tradição, do ponto de vista his-
tórico, e que não atendia a nenhuma necessidade do
ponto de vista musical. A voga do drama musical teve uma
origem patológica. Infelizmente, mesmo a admirável mú-
sica de Péllias et Mélisande, tão original em sua modéstia,
foi incapaz de levar-nos de volta ao espaço aberto, apesar
de tantas características com que ela abalou a tirania do
sistema wagneriano.
A música de Mauro pertence à tradição de Glinka e
Dargomijsky. Não tive a menor intenção de restabelecer
essa tradição. Simplesmente achava que era a minha vez
de tentar a mão na forma viva da ópera-bufa, tão apro-
priada à história de Puchkin que me fornecia o assunto.
Mavra é dedicada à memória de compositores dos quais
nenhum, estou certo, teria reconhecido como válida es.sa
======-..111~1IL.JI
LI.::60:....t:I poética musical

manifestação de uma tradição que eles criaram: devido à


sua linguagem nova, minha música fala um século depois
que seus modelos floresceram. Mas eu queria renovar o
estilo desses diálogos-cm-música, cujas vozes haviam sido
degradadas e afogadas pelo barulho e pelo tumulto do
drama musical. ~im, cem anos tinham de se passar até
que a originalidade da tradição russo-italiana pude~ ser
novamente apreciada; uma tradição que continuava viva
à margem da principal tendência do momento, e pela
qual circulava um ar tonificante, capaz de livrar-nos dos
vapores e miasmas do drama musical, cuja .arrogância
enfatuada não podia esconder sua vacuidade. ;
\ Não é sem motivo que 1ne lanço à polêmica com a
famosa "obra de arte total". Não a condeno apenas por
sua falta de tradição, por sua autocomplacência de n01~
veau riche. O que toma o caso muito pior é o fato de que
a aplicação de suas teorias infligiu um golpe terrível
contra a própria música. A cada período de anarquia
espiritual, quando a humanidade, perdendo a intuição e
o gosto pela ontologia, passa a temer a si mesma e a seu
destino, sempre aparece um desses gnosticismos que
servem como religião para os que já não têm uma, assim
como, em períodos de crises internacionais, um exército
de videntes, faquires e adivinhos monopoliza a publici-
dade jornalística. Podemos falar dessas coisas com mais
liberdade tendo em vista que os dias idílicos do wagneris-
mo já passaram, e que a distância que nos separa deles
permite colocar as coisas em seus lugares. Mentes sólidas,
além di~o, nunca acreditaram no paraíso da "obra de
arte total", e sempre reconheceram seus encantos pelo
. \
que va11am.· 1

:~enho dito que nunca vi qualquer necessidade, mu-


sicalmente falando, de adotar e~e sistema dramático.
Acrescentarei algo: sustento que esse sistema, longe de
elevar o nível da cultura musical, nunca cessou de solapá-
lo e, finalmente, de denegri-lo do modo mais paradoxal.
Em outros tempos, ia-se à ópera pela diversão oferecida
por uma música fácil. Mais tarde, as pe~as passaram a ir
a composição da música :::1lttl:1:l==-----JI..:;6:.!1...JI
t:I

para bocejar diante de dramas em que a música, arbitra-


riamente paralisada por restrições estranhas à sua naru-
re~ não podia deixar de cansar a platéia mais atenta, em
que pese o grande talento demonstrado por Wagner j
(Assim, de música considerada sem nenhum pudor
como puro deleite sensual, pa~amos sem transição ao
vácuo obscuro da Arte-Religião, com suas heróicas arma-
duras, seu arscna] de misticismo guerreiro e seu vocabu-
lário eivado de religiosidade adulterada. De modo que,
mal a música deixou de ser o~ietivo de chacota, ela
própria viu-se ·sufocada debaixo de flores literárias. Con-
seguiu obter audiência no público educado graças a um
equívoco que tendia a transformar o drama em uma
mistura de símlx>los, e .a própria música cm objeto de
especulação filosófica. Assim é que o espírito especulativo
veio a perder o seu rumo, chegando a trair a música
enquanto,
í.. . . . .
ostensivamente, tentava servi-la melhor. t .....J

Uma música baseada cm princípios opostos, -infeliz-


1
1

mente, ainda não deu prova de seu valor em nosso tempo.


~

E curioso observar que foi um músico que se proclamava


,vagneriano, o francês Chabrier, quem conseguiu manter
a tradição sonora da arte dramática nesses tempos difi-
ceis, e que se destacou na opéra comique francesa ao lado
de alguns compatriotas, no auge da voga wagneriana. Não
será essa a tradição que tem continuidade no grupo de
obras--primas que são Le Médecin malgré lui, La Colombe,
Philémun et Baucis, de Gounod; Lalimé, Coppélia, Sylvia, de ,#

Leo Delibes; Cannen, de Bizet; ú Roi malgré lui e L 'Etoile,


de Chabrier; La Béamaise e Véronique, de Me~ager - a
que se pode acrescentar recentemente La Chartrewe de
Pa,,.,,,,,, do jovem Henri Sauguct? 1
r- ---·
/ Pensem como é sutil e insidioso o veneno do drama
musical, que conseguiu insinuar-se até mesmo nas veias
do colosso Verdi.
Como não lamentar que esse mestre da ópera tradici<>-
nal, ao fim de uma longa vida rep]eta de obras--primas
autênticas, tenha encerrado sua carreira com Falstaff.
-,-,2-,-----------...-11;1n~~I poética musical

que, se não é a melhor obra de Wagner, também não é a


melhor de Verdi?
Sei que estou indo contra a opinião geral que enxerga
as melhores obras de Verdi na deterioração do gênio que
nos deu Rigolello, ll Trovalore, Aída e La 1raviata. Sei que
estou defendendo exatamente o que a elite do passado
recente minimizava nas obras desse grande compositor.
Lamento ter de dizer isso; mas sustento que há mais
substância e verdadeira invenção numa ária como l.,a
tlonna em,obi,le, por exemplo, em que essa elite nada via
senão deplorável facilidade, do que na retórica e nas
vociferações do Anel
Quer admitamos ou nãot o drama wagneriano é inter-
mitentemente bombástico. Suas improvisações brilhan-
tes exacerbam a sinfonia para além de qualquer propor-
ção, e lhe dão menos substância real do que a invenção,
simultaneamente modesta e aristocrática, que floresce
em cada página de Verdi.
No início de meu curso, avisei que voltaria constante--
mente à nece~idade de ordem e disciplina; e aqui po~
cansá-los voltando ao mesmo tema.
A música de Richard Wagner é mais improvisada do
que construída, no sentido especificamente musical.
Aria.s, ensembl.es e sua relação recíproca na estrutura de
uma ópera conferem ao todo uma coerência que é ape-
nas a manifestação externa e visível de uma profunda
ordem interior.
O antagonismo de Verdi e Wagner ilustra muito clara-
mente minhas idéias sobre es.5e assunto.
Enquanto Verdi estava sendo relegado ao repertório
do realejo, era moda saudar em Wagner o revolucionário
típico. No momento em que era considerado sublime o
culto da desordem, nada mais significativo do que relegar
a ordem a musa das esquinas.
A obra de Wagner corresponde a uma tendência que
não é propriamente uma desordem, mas que tenta com-
pensar uma falta de ordem. O princípio da., melodia
infinita ilustra perfeitamente essa tendência. E o perpé-
a composição da música ::1D1::1lt:111~=-----·l.l.::6:.::3.JI
t:J

tuo devir de uma música que jamais teve qualquer motivo


para começar, assim como não tem qualquer razão para
terminar. A melodia infinita aparece, assim, como um
insulto à dignidade e à própria função da melodia, que,
como di~emos, é a entoação musical de uma frase caden-
ciada. Sob a influência de Wagner, as leis que garantem
a vida da canção foram violadas, e a música perdeu o seu
sorriso melódico. Pode ser que essa maneira de fazer as
coisas atendesse a uma nece~idade; mas essa necessidade
não era compatível com as possibilidades da arte musical,
pois a arte musical é limitada em sua expressão de um
modo que corresponde exatamente às limitações do ór-
gão que a percebe. Um modo de composição que não
estabelece limites a si mesmo torna-se pura fantasia. Os
efeitos que ele produz podem, eventualmente, divertir,
mas não são capazes de ser repetidos. Não posso imaginar
uma fantasia repetida, pois ela se repete cm seu próprio
detrimento.
Vamos chegar a um acordo quanto a e~a palavra
fantasia. Não pretendo usá-la no sentido a~ociado a uma
forma musical definida, mas na acepção que pressupõe
um abandono do próprio eu aos caprichos da imagina-
ção. E isso pressupõe que a vontade do compositor esteja
voluntariamente paralisada. Pois a imaginação é não ape-
nas a mãe do capricho, como também a serva da vontade
criativa.
A função do criador é selecionar os elementos que ele
recebe daí, pois a atividade humana deve impor limites a
si mesma. Quanto mais a arte é controlada, limitada,
trabalhada, mais ela é livre. ·
; Quanto a mim, sinto uma espécie de terror quando,
no momento de começar a trabalhar e de encontrar-me
ante as possibilidades infinitas que se me apresentam,
tenho a sensação de que tudo é possível. Se tudo é possível
para mim, o melhor e o pior. se nada me oferece qualquer
resistência, então qualquer esforço é inconcebível, não
posso usar coisa alguma como base, e conseqüentemente
todo empreendimento se torna fútil.
LI ======-.1llLIIILJI
=:64::....t:I poética musical

Devo então perder-me a mim mesmo nesse abismo de


liberdade? A que posso me agarrar para fugir da vertigem
que me acomete ante a possibilidade dessa infinitude?
Não pretendo sucumbir a ela. Superarei e~ terror, e
encontrarei segurança no pensamento de que tenho à
minha disposição as sete notas da escala e seus intervalos
cromáticos, que tempos fortes e fracos estão a meu al-
cance, e que em tudo i~o eu possuo elementos sólidos e
concretos que me oferecem um campo de experiência
tão vasto quan\~Jl perturbação e a vertigem infinita que
me assustavamJi nesse terreno que aprofundarei minhas
raízes, plenamente convencido de que combinações que
têm a seu dispor doze sons cm cada oitava e todas as
possibilidades rítmicas me prometem riquei.as que toda a
atividade do gênio humano jamais será capaz de exaurir~ ...
-
\
O que me liberta da angústia a que me lançara unia
liberdade irrrestrita é o fato de que sou sempre capaz de
sintonizar imediatamente com as coisas concretas que
estão ªC\':1--~em questão. Não tenho uso para uma liberdade
teórica.f Dêem-me algo de finito, definido - matéria que
pode prestar-se à minha operação apenas na medida em
que é proporcional às minhas po~ibilidades. E essa ma-
téria se apresenta a meu exame acompanhada de suas
limitações. Devo, de minha parte, impor minhas próprias
regras. E assim chegamos, querendo ou não, ao terreno
tla necessidade. No entanto, quem de nós ouviu falar de
arte como outra coisa senão o reino da liberdade? Essa
espécie de heresia está uniformemente difundida, por-
que se imagina que a arte está fora dos limites da atividade
ordinária. Bem, emane, como em tudo o mais, só se pode
construir sobre uma fundação resistente: aquilo que cede
constantemente à pressão acaba por tomar o movimento
im possív«:!J
Minha liberdade, portanto, consiste em mover-me
dentro da estreita moldura que estabeleci para mim
mesmo em cada um de meus empreendimentos.
Irei ainda mais longe: minha liberdade será tanto
maior e mais significativa quanto mais estritamente eu
a composição d a música ::::tlt:11:m:1==-----......l.l~6:.::::S..JI
t:I

estabelecer [l:l~U campo de atuação, e mais me cercar de


obstáculos. /tudo o que diminui a restriçao diminui a
força. Quanto mais restrições nos impusermos, mais liber-
tamos nossa personalidade dos grilhões que aprisionam
o espírito.
"' ,
A voz..que me ordena criar respondo primeiro com
temor; depois me reconforto assumindo como armas
aquelas coisas qt1e participam da criação, mas que ainda
estão fora dela; e o caráter arbitrário das restrições serve
apenas para produzir precisão de execução.
De tudo isso concluímos pela necessidade de dogma-
tizar sob pena de perder o nosso objetivo. Se essas palavras
nos incomodam e parecem duras, podemos abster-nos de
pronunciá-las.
,
Apesar disso, elas contêm o segredo da
salvação. "E evidente" - escreve Baudelaire - "que a
retórica e a prosódia não são tiranias inventadas arbitra-
riamente, mas uma coleção de regras exigidas pela pró-
pria organização da realidade do espírito, e jamais a
prosódia e a retórica impediram a originalidade de ma-
nifestar-se plenamente. O contrário, isto é, que contribuí-
ram para o florescimento da originalidade, seria infinita-
men tc mais verdadeiro".
4
tipologia musical
ODA ARTE PRE~UPÕE um trabalho de seleção.,
Normalmente, quando eu corneço a trd.balhar,·
meu objetivo ainda não está definido. Se me
perguntassem o que eu quero ne~e estágio do processo
criativo, teria dificuldade em responder. Mas sempre
daria t1ma resposta exata se me perguntassem o que eu
-
naoquena. .
:_ Proceder por eliminação - saber como descartar,
como diz o jogador, esta é a grande técnica de seleção.' E
aqui, mais t1ma vez, encontramos a busca pelo Um a partir
do Múltiplo a que me refe1i em nos.sa segunda lição.
Eu teria dificuldade em mostrar de que maneira esse
princípio se corporifica na minha música. Tentarei expli-
car isso a vocês enumerando tendências gerais, em vez de
citar fatos particulares como exemplos: se trabalho com
a justaposição de sons que se chocam violentamente,
posso produzir uma sensação imediata e poderosa. Se,
por outro lado, consigo aproximar cores que se relacio-
nam estreitamente, chego a esse obje_~vo de maneira
menos direta mas muito mais segura. O princípio ine-
rente a e~e método revela a atividade subconsciente que
nos faz pender para a uni~«;!~; pois, instintivamente,
preferimos a coerência e sua força tranqüila aos inquietos
poderes da dispersão - isto é, preferimos o reino da
ordem ao reino da dessemelhança.. 1
.
, ./

Já que minha experiência me mostra a necessidade de


;descartar de modo a selecionar, e a necessidade de dife-
renciar de maneira a unir,'parece-me que, por extensão,
po~o aplicar e~e princípio ao conjunto da música, a fim
=====:.......JIILLIIJLII_JI
!.=70~j
LI poética musical

de estabelecer uma pintura em perspectivd, uma visão


estercoscópica da história de minha arte, e também para
descobrir o que constitui a verdadeira fisionomia de um
compositor ou de uma escola.
Esta será no~a contribuição ao estudo dos tipos musi-
cais - à tipologia - e ao exame dos problemas de estilo.
~9 estilo é o modo particular com que urn compositor
organiza suas concepções e fala a linguagem de sua arte-~~
Essa linguagem musical é o elemento comum a composi~
tores de uma determinada escola ou época. Certa1nente
as fisionomias musicais de Mozart e Haydn são bem
conhecidas de vocês, e certamente não deixaram de notar
que esses compositores estão obviamente vinculados um
ao outro, embora seja fácil aos que estão familiariza.dos
com a linguagem do período distingui-los.
A indumentária que a moda prescreve aos indivíduos
de uma mesma geração impõe a seus usuários um modelo
especial de gestos e uma determinada postura que são
condici<>nados pelo corte das roupas. Da mesma maneira,
,a indumentária musical utilizada por uma época deixa
sua marca na linguagem e, em sentido figurado, no
gestual dessa música, assim como na atitude do composi-
tor em relação ao material sonoro. Esses elemenLos são
os fatores imediatos na massa de detalhes que nos ajudam
a determinar como se formam o estilo e a linguagem
n1usical.
' -·
Não··e preciso dizer-lhes que\o que se denomina estilo
de uma época resulta de uma combinação de estilos
individuais, uma combinação dominada pelos métodos
dos compositores que exerceram influência preponde-
rante em seu temp~:.
Podemos notar, voltando ao exemplo de Mozart e
Haydn, que eles se beneficiaram da mesma cttltura, bebe-
ram nas mesmas fontes, e aproveitaram cada um as des-
cobertas do outro. e.ada um deles, entretanto, efetua um
milagre
,,.
totalmente pessoal.
14: ~ível dizer que ·o s mestres, superando em toda a
\

sua grandeza a generalidade de seus contemporâneos,


tipologia musical ::::2lt:2l:al==------1l...!.7...!1.J)
t:I

irradiaram os raios de seu gênio bem para além de sua


própria época. 1 De~ modo, são como poderosos faróis,
para usar a e,tjl~o de Baudelaire, a cuja luz e calor
desenvolve-se uma soma de tendências que serão parti-
lhadas pela maioria de seus suceSM>res, e que contribuem
para formar a parcela de tradições que geram uma cultura.
Esses grandes faróis, que brilham a distâncias bem
espaçadas no terreno da história da arte, promovem a
continuidade que dá sentido legítimo e verdaoeiroa uma
palavra de que já se abusou muito, ao tipo de evolução
que já foi reverenciada como uma deusa - deusa que
acabou se revelando uma ilusão, seja dito de passagem, e
tendo dado n_ascimen to a um pequeno mito bastardo que
muito se lhe assemelha, e que tem sido chamado. -~e
Progressp,
. _.-
com um P maiúsculo ...
Para os devotos da religião do Progre~o, -O hoje é
sempre e nece~ariamente mais valioso que o ontem,1 do
que se deduz necessariamente que, no campo da m~ca,
a opulenta orquestra contemporânea representa um
avanço sobre os modestos conjuntos instrumentais de
1

outrora - que a orquestra wagnenana representa um


avanço sobre a de Beethoven. Cabe a vocês julgar o que
vale essa preferência ...
A bela continuidade que toma possível o desenvolvi-
mento da cultura aparece como uma regra geral que
admite poucas exceções, as quais, pode-se dizer, fora1n
expressamente criadas para confirmá-la.
De fato, a intervalos bem alternados, vemos um bloco
errático surgir em silhueta no horizonte da arte, um
bloco cuja origem é desconhecida e cuja existência é
incompreensível. E.5.§es monolitos parecem enviados pelo
céu para afirmar a existência e, em certo sentido, a
legitimidade do acidental. Esses elementos de desconti-
nuidade, esses esportes da naturei.a, recebem vários no-
mes em nossa arte. O mais curioso chama-se Hector
Berlioz. Seu prestígio é grande e pode ser atribuído acima
de tudo ao brio de uma orquestra que mostra a mais
inquietante originalidade, uma originalidade inteira-
LI =====~lu.;InlL..JI
,:,.;.72~1=· poética musical

mente gratuita, sem fundamento, e que é insuficiente


para disfarçar a pobreza de invenção. E caso se pretenda
sustentar que Berlioz é um dos criadores do poema
sinfônico, responderei que e~ tipo de composição -
que teve, aliás, vida curta - não pode ser posto em pé de
igualdade com as grandes formas sinfônicac;,já que insiste
em mostrar-se totalmente dependente de elementos estra-
nhos à música Nesse JX>nto, a influênci~ de Berlioz é maior
no campo da estética do que no da música; quando essa
influência se faz sentir em Liszt, Balakirev e no Rimsky.Kor--
sakov das primeiras obras, ela deixa intocada a e&,ência
d ~ produções.
Os grandes faróis de que falamos anteriormente nun-
ca emitem seus raios sem causar profundos distúrbios no
mundo da música. Posteriormente, as coisas voltan1 a
estabilizar-se. A irradiação do fogo torna-se mais e mais
atenuada, até o momento
,
em que já não aquece senão
aos pedagogos. E nesse ponto que nasce o academici~
mo. Mas um novo farol aparece, e a história prossegue
- o que não significa q_ue evolua sem choques ou aci-
dentes. Acontece que a1cra contemporânea nos oferece
o exemplo de uma cultura musical que vai perdendo dia
a dia o sentido da continuidade e o gosto por uma
linguagem comum.\ __ _,

· O capricho individual e a anarquia intelectual, que


tendem a controlar o mundo cm que vivemos, isolam o
artista de sew companheiros de oficio e o condenam a
aparecer como um monstro aos oll:ios do público; um
monstro de originalidade, inventor de sua própria lingua-
gem, de seu próprio vocabulário, do instrumental de sua
arte. O uso de materiais já utilii.ados e de formas es-
tabelecidas lhe é, em geral, proibido. E assim ele chega
ao ponto de falar um idioma sem relação com o mundo
que irá ouvi-lo. Sua arte toma-se realmente única, no
sentido em que é incomunicávelJ fechada por todos os
lados. O bloco errático já não é uma curiosidade que
funciona como uma exceção; passa a ser o único modelo
oferecido aos neófitos para emulação~.
: 111~1lm::=:._____Jl~7~l~I
tipologia musicallt::

A aparição de uma série de tendências anárquicas,


incompatíveis e contraditória~ no terreno da história
corresponde a e~a completa ruptura com a tradição. Os
tempos mudaram desde os dias em que Bach, Haendel e
Vivaldi evidentemente falavam a mesma língua, que seus
discípulos repetiam depois deles, transformando espon-
taneamen tc e~ linguagem de acordo com as respectivas
personalidades.· Dias em que Haydn, Mozart e Cimarosa
ecoavam uns aos outr~ em obras que seIViam a seus
sucessores de modelos, suce~ores como Rossini, que
gostava de dizer- de maneira tocante - que Mozart fora
o deleite de sua juventude, o desespero de sua maturi-
dade e a consolação de sua velhice.
;:· E~es tempos deram lugar a uma idade nova que
procura reduzir tudo à uniformidade no terreno da
matéria, enquanto tende a destruir toda universalidade
no terreno do espírito em deferência a um individt1a-
lismo anárquico. Ocorreu então que centros universais
de cultura se tornaram isolados, passando a se enqua-
drar em uma moldura nacional e mesmo regional,
moldura que, por sua vez, se fragmenta até virtual-
mente desaparecer.\
_..,,
Querendo ou não, o artista contemporâneo é absor-
vido por essa maquinação infernal. Há almas simples
que se alegram com esse estado de coisas. Há crin1ino-
sos que o aprovam. Só uns poucos ficam horrorizados
com uma solidão que os obriga a se volt.ar para si mes--
mos, quando tudo os convidaria a participar da vida
social.
\-A
\
universalidade cttios beneficios vamos gradualmente
perdendo é uma coisa inteiramente diferente do cosmo-
politismo que vai se apossando de nós. A universalidade
pressupõe a fecundidade de uma cultura que se espalha
e se comunica por toda parte, enquanto o cosmopolitis-
mo não oferece nem ação nem doutrina, e leva à pas-
sividade indiferente de um ecletismo estéril.;
....-.. ....
__ 1

A universalidade neces.,ariamente pressupõe a submis-


são a uma ordem estabelecida. E suas razões para e~e
=====:,_JffllUI.JL.I1_,1I
!.:.74!...t:)
LI poética musical

pressuposto são convincentes. Aceitamos essa ordem por


simpatia ou prudência. Em qualquer caso, os benefícios
da submi~o não tardam em aparecer.
Em uma sociedade como a da Idade Média, que rec~
nhecia e preservava o primado do terreno espiritual e a
dignidade da pessoa humana (que não deve ser confun-
dida com o indivíduo) -~ em tal sociedade o reconheci-
mento geral de uma hierarquia de valores e de um corpo
de princípios morais estabelecia uma ordem que deixava
todos de acordo em relação a alguns conceitos funda-
mentais de ben1 e mal, verdade e erro. Não vou falar de
beleza e feiúra, porque é totalmente fútil dogmatiur em
terreno tão subjetivo.
Não deveria surpreender-nos. então, que a ordem
social nunca tenl1a governado diretamente essas maté-
rias. A verdade é que não é promulgando uma estética
mas melhorando a condição do homem, e exaltando o
competente artesão no artista, que uma civiliz.ação comu-
nica algo de sua ordem às obras de arte e à especulação.
Por sua vez, o bom artesão, naqueles tempos felizest sonha
em alcançar o belo através das categorias do útil. Sua
primeira preocupação vai para a propriedade de uma
operação que é bem realizada, em harmonia com tima
ordem verdadeira. A impressão estética que emana dessa
correção não será legitimamente atingida a não ser na
medida em que não for calculada. Poussin afirmava cor-
retamente que "o objetivo da arte é o deleite". Não di~
que tal deleite dev~ ser o o~jetivo do artista, que deve
sempre submeter-se, e exclusivamente, às exigências da
obra que está sendo forjada.
,
E um fato da experiência, paradoxal apenas em apa-
rência, que encontramos a liberdade em estrita submis-
são ao objeto. "Não é a sabedoria, mas a tolice que é
teimosa", diz Sófocles na magnífica tradução da Antígona
feita por André Bonnard. "Olhem as árvores. Acompan-
hando o movimento da tempestade, elas preservam seus
ramos tenros. Se quiserem erguer-se contra o vento, são
carregadas, com raiz e tudo."
tipologia musical ==-----__Jl~7~S~I
:::1tll:ttll1:I
t::I

:Tomemos o melhor exernplo: a fuga, uma forma


pura em que a música não significa nada fora de si
mesma. Não significa a fuga uma submissão do compo-
sitor às regras? E não é dentro desses rigores que ele vê
o pleno florescimento da sua liberdade como criador?
A força, diz Leonardo da Vinci, nasce da restrição e
morre na liberdade.
A insubordinação proclama exatamente o contrário, e
dispensa os constrangimentos na esperança sempre desa-
pontada de encontrar na liberdade o princípio da força.
En1 lugar di~o, só encontra na liberdade o lado arbitrá.rio
do capricho e as desordens da fantasia. Assim, perde
qualquer vestígio de controle, perde a autocrítica e acaba
por pedir da música coisas fora de seu âmbito e compe-
tência. Não estaríamos, na verdade, pedindo o impossível
à música quando esperamos que ela expresse sentimen-
tos, traduza situaçõ.es dramáticas e mesmo imite a natu-
rez.a? E, como se não bastasse condenar a música ao papel
de ilustrador. o século a que devemos o que se chama
"progres..'io através do esclarecimento" inventou ainda o
monumental absurdo que consiste em mimosear cada
acessório, bem como cada sentim_ento e cada persona-
gem do drama lírico, com uma espécie de número de
identificação chamado um Leil'motiv-sistema·que levou
Debussy a dizer que o Anel lhe parecia um vasto guia
musical da cidade. \
.... _J

Há dois tipos de Leitmotiv em Wagner: um simboliza


idéias abstratas (o tema do Destino, o tema da Vingança,
e assim por diante); o outro tem a pretensão de repre-
sentar objetos ou personagens concretos: a espada, por
exemplo, ou a curiosa família Nibelungo.
;

E estranho que céticos sempre exigindo novas provas


para tudo, e que costumam extrair delícias na denúncia
de tudo o que é puramente convencional nas formas
estabelecidas, nunca solicitem qualquer prova da neces-
sidade ou apenas da conveniência de qualquer frase
musical que pretenda identificar-se a uma idéia, um ob-
jeto, um caráter. Se me dizem que o poder do gênio é
.!..76~l======~lu.l
LI LI....Jj poética musical

aqui suficientemente grande para justificar e~ identifica-


ção, pergunto então qual a utilidade desses pequenos guias,
de ampla circulação, qt1c são a prova material do "guia da
cidade" que Debussy tinha em mente - pequenos guias
que fazem o neófito à espera de uma representação do
CfP.fnt.SCUlo dns deuses semelhante a tlffi desses turistas que se
vê no alto do Empire State Building tentando orientar-se
enquanto abre um mapa de Nova York. E nunca se diga que
a~ pequenos mementos são um insulto a Wagner e uma
traição de seu pensamento: ba4,ta sua ampla circulação para
p~o.var que respondem a uma neces..~dade real.
·:_ Basicamente, o que mais irrita nesses artistas rebeldes,
dos quais Wagner nos oferece o tipo mais consumado, é
o espírito de sistematização que, sob o pretexto de abolir
as convenções, estabelece um novo repertório, tão arbi-
trário e muito mais incôm<>do que o antigo. Destarte, é
menos a arbitrariedade - afinal de contas, inofensiva -
que desafia nossa paciência do que o sistema que essa
arbitrariedade estabelece como princípio. Me vem à men-
te um exemplo. Dissemos que o objetivo da música não
é e não pode ser a imitação. Mas se por acaso, e por
motivos puramente acidentais, a música quiser fazer uma
exceção a e~ regra, essa exceção pode, por sua vez,
tornar-se a origem de uma convenção. Ela assim oferece
ao n1úsico a possibilidade de usá-la como um lugar<o-
mum. Verdi, na famosa tempestade do RigoleUo, não
hesitou em fazer uso de uma fórmula que muitos compo-
sitores tinham empregado antes dele. Verdi aplica a is.,o
sua própria inventividade, e, sem abandonar a tradição,
faz de um lugar-comum uma página perfeitamente origi-
nal, de marca inconfundfvel. Vocês concordarão que,
aqui, estamos muito longe do sistema wagneriano, exal-
tado por seus arautos em detrimento do italianismo -
tratado com desdém por tantos pensadores sutis que se
perderam no sinfonismo, em que enxergam um pretexto
interminável para glosas literárias.!
\Õ pe;igo, p<)rtanto, não reslde em copiar clichês.
Reside, sim, em fabricá-los e atribuir-lhes força de lei,
tipologia musical l__l...,1_11_ _ _ _ _ _ _(_7_7_1

uma tirania q~e é simples manifestação de um romantis-


mo decrépito.:!
.___.
Romantismo e classicismo são terrr10s carregados de
tantos sentidos diversos, que vocês não devem esperar
ver-me tomar partido numa discussão interminável, u1na
discussão cada vez mais cm torno de palavras. Isso não
altera o fato de que, num sentido bem genérico, os
princípios de submisgo e insubordinação que defmimos
caracterizam aproximadamente a atitude do clássico e do
romântico diante de uma obra de arte; divisão puramente
teórica, aliá-., pois sempre encontraremos na origem da
invenção um elemento irracional sobre o qual o espírito
de submissão nã<l tem poder, e que escapa a toda re~
trição. O que André Gidc expressou tão bem ao declarar
que as obras clássicas são belas apenas en1 virtude de seu
romantismo subjugado. O que se destaca ne~e alarismo
é a necessidade de subjugar. Examinemos, por exemplo,
a obra de Tchaikovsky. De que é feita? E onde o compo-
sitor foi encontrar suas fontes senão no arsenal que
costumava ser utilizado pelos românticos? Seus temas são
predominantemente românticos- e assim é seu impulso
motor. O que não é nem um pouco romântica é sua
atitude diante do problen1a de como incorporá-los cm
seu trabalho musical O que poderia ser mais satisfatório
para o n()SK) gosto do que o corte de suas frases e o modo
como são arrumadas? Por favor, não pensem que estou
procurando pretexto para elogiar um dos pottC<>S composi-
tores ~os de que realmente gosto. It:u o tom<> como
exemplo apenas JX>rque o exemplo é altamente expressivo,
assim como expressiva é a música de outro romântico bem
mais distante de nós. Estou falando de Carl Maria von
Weber. Penso em suas sonatas, de uma postura instn1mental
tão formal que os pouc~ rubatos ali permitidos eventual-
mente não conseguem esconder o controle constante e
alerta do subjugador. Que diferença entre Der J,reischutz.,
Euryanthe e Oberon, de um lado, e O navio Janlasma, 1àn-
nhãuser e Lohengrin, com sua complacência, de outro. O
contrdSte é marcante. Não é apenas por acaso, infeli1mente,
L.( ======-..111~1IL.JI
:.:,78~1 poética musical

que estas últimas estão com muito mais freqüência nos


cartazes dos teatros do que as óperas maravilhosas de
Weber.
Em resumo: o importante para a lúcida ordenação de
uma obra - para sua cristaliz.ação - é que todos os
elementos dionisíacos que põem em movimento a imagi-
nação do artista e que fazem brotar a seiva da vida devem
estar devidamente subjugados antes que nos intoxiquem,
e devem ser finalmente submetidos a uma lei: é isto o que
pede Apolo.
Não me agrada, e tampouco pretendo, prolongar ain--
da mais o interminável debate sobre classicismo e roman-
tismo. Já disse com margem razoável o que tinha a dizer
para tornar clara minha atitude a esse respeito; mas meu
trabalho estaria incompleto se eu não chamasse rapida-
mente a atenção de vocês para uma questão bem próxi--
ma, e que trata de outros dois antagonistas: modernismo
e academicismo.
Antes de mais nada, qt1e neologismo estéril essa pala-
vra modernisrno! Exatamente, o que quer dizer? Em seu
sentido mais estrito, indica t1ma forma de liberalismo
teológico que corresponde a uma falácia condenada pe]a
Igreja de Roma. Aplicado às artes, estaria o modernismo
aberto a uma condenação __ ~náloga? Inclino-me fort~
1 .

mente a pensar que sim ... _!Moderno é o que é repre-


sentativo de seu próprio tempo, e deve estar afinado com
e ao alcance de seu próprio tempC?~_~Volta e meia artistas
são censurados por serem demasiado modernos, ou não
suficientemente modernos. Uma recente pesquisa de
opinião mostrou que, segundo tudo indica, Beethoven é
o compositor mais solicitado nos Estados Unidos. Por esse
critério seria possível dizer que Beethoven é modernís-
simo, e que um compositor tão importante como Paul
Hindemith não é nem um pouco moderno,já que a lista
de vencedores nem mesmo menciona seu nome.
Em si mesmo, o termo modernismo não implica elogio
ou censura, e não implica qualquer obrigação. Esta é
justarncntc a sua fraqueza. A palavra nos escapa, cscon-
tipologia musical _U_ll_l_______1_7_9_1
_I

dcndo-se,,,
sob qualquer aplicação que dela se quiser fa-
zer. E verdade que, segundo se diz, cada um de nós deve
viver em seu próprio tempo. O conselho é supérfluo:
como poderia alguém fazer de outro modo? Mesmo se eu
quisesse reviver o passado, as mais enérgicas tentativas de
uma vontade desgarrada seriam fúteis.
Segue-se daí que todos tiraram vantagem da flexibili-
dade desse termo vazio para tentar dar--lhe forma e cor.
Porém, insisto, o que entendemos pelo termo modernis-
mo? No passado, ele nunca foi usado, e era até desconhe-
cido. No entanto, os que nos antecederam não eram mais
estúpidos que nós.f,rerá sido este termo uma verdadeira
descoberta? Já mostramos que não foi nada disso. Não
poderia ele, antes, ser o sinal de uma decadência na
moralidade e no gosto? Aqui, acredito fortemente que
podemos responder pela afirmativa.
Minha grande esperança, para concluir, é que vocês se
sintam tão embaraçados como cu com essa expressão.
Seria bem mais simples abandonar a mentira e admitir de
uma vez por todas que cham~mos de moderno tudo o
que lisonjeia nosso esnobismo.\~1as será que vale a pena
lisonjear nosso esnobismo? ~--
0 termo modernismo é ainda mais ofensivo quando
normalmente acoplado a um outro cujo sentido é perfei-
tamente
--- claro. Falo do academicismo.
i, Uma obra é considerada acadêmica quando composta
estritamente de acordo com os preceitos do conservató-
rio. Segue-se daí que o academicismo, tomado como um
exercício escolástico baseado na imitação, é em si mesmo
algo de muito útil, e mesmo indispensável para iniciantes
que se adestram estudando modelos. Segue-se da mesma
maneira que o academicismo não deveria encontrar es-
paço fora do conservatório, e que os que esposam um
ideal acadêmico depois de completarem seus estudos
produzem obras a rigor correras, mas secas e desprovidas
de sangue. 1
· Os que escrevem atualmente sobre música adquiriram
ri hábito de tudo avaliar em termos de modernismo, isto
80 ~1======-..1lwlILJI
L I. : : poélica musical

é, cm termos de uma escala não existente, e condenam


prontamente à categoria de "acadêmico" - que conside-
ram o oposto do moderno - tudo o que não está de
acordo com as extravagâncias que constituem, a seus
olhos, a quintessência três vezes destilada do modernis-
mo. Para esses críticos, tudo o que parece dissonante e
confuso é automaticamente relegado ao escaninho do
modernismo. Tudo o que não podem deixar de conside-
rar claro e bem ordenado, desprovido de ambigüidades
que lhes forncçam uma brechª-, é, por sua vez, encaixado
no nicho do academicismo. Ora, podemos fazer uso de
formas acadêmicas sem correr o risco de nos tomarmos,
por isso, acadêmicos. Aquele que tem medo de tomar
emprestada uma forma quando dela tem necessidade
está acusando sua fraquc7:~.\ Quantas e quantas vezes já
registrei essa estranha incompreensão da parte dos que
se consideram bons juízes da música e de seu futuro! ()
que torna t.udo mais difícil de entender é o fato de que
es..._cs mesmos críticos admitem como nan1ral e legítimo
o uso de velhas melodias popttlares ou religiosas, harm<,
nizadas de maneira incompatível com sua essência. Não
se consideram chocados com o artifício ridículo do Leit-
motiv, e deixam-se arregimentar para tournées musicais
conduzidas pela agência Cook de Bayreuth. l~vam-se
extremamente a sério quando aplaudem até os compas-
sos introdutórios de uma sinfonia que emprega esca]~
exóticas, instn1mentos obsoletos e 1nétodos criados para
finalidades totalmente diversas. Aterrados ante a possibili-
dade de se mostrarem tal como realmente são, saem à caça
do pobre academicismo, pois lêm o mesmo horror às
formas consagradas por um longo uso que os sem compo-
sitores preferidos, os quais têm medo de tocar nelas.
Já que eu mesmo tantas vezes tomei emprestadas ati-
tudes acadêmicas sem o menor intuito de esconder o
prazer que encontrava nelas, não deixei de me tornar a
vílima preferida desses senhores com sua palmatória.
Meus maiores inimigos sempre me deram a honra de
reconhecer que tenho plena consciência do que estou
tipologia musical l1::=:.....____-J.l~e~1.JI
t:I::1U~l

fazendo. O temperamento acadêmico não pode ser ad-


quirido. Não se pode adquirir um temperamento. Ora,
eu não tenho um temperamento apropriado ao academi-
cismo; de modo que sempre uso fórmulas acadêmicas
consciente e voluntariamente. Uso-as tão conscientemen-
te quanto usaria o folclore. São matérias-primas para
minha obra. E acho bastante cômico que meus críticos
adotem uma atitude que ~ivelmente eles não podem
manter. Pois um dia desses, querendo ou não, terão de
conceder•me o que, a partir de noções preconcebidas,
eles próprios me negaram. '
Não sou mais acadêmico do que moderno, nem mais
moderno do que conseIVador. Pulcinella bastaria para
provar isso. Então vocês me perguntam exatamente o que
sou. Recuso-me a discorrer sobre o tema da minha.pró-
pria pessoa, que foge ao objetivo de meu curso. E se me
permiti lhes falar um pouco sobre minha própria obra.
foi apenas para ilustrar meu pensamento com um exem-
plo simultaneamente pessoal e concreto. Posso usar ou-
tros exemplos que compensarão meu silêncio e minha
recusa em colocar a mim mesmo em destaque. Eles
mostrarão a vocês ainda mais claramente de que modo o
enfoque crítico, ao longo do tempo, cumpriu o seu papel
de informante.
Em 1737, o escritor alemão Scheibe, que tratava de
música, escreveu sobre Bach: "'Esse grande homem seria
o objeto da admiração universal se fosse mais agradável e
não estraga~ suas composições com coisas bombásticas
e confusas, e se, por um excesso de arte, não obscurecesse
a beleza dessas peças."
Vocês gostariam de saber o que Schiller - o ilustre
Schiller - escreveu sobre a Cri.ação de Haydn,
,,, relatando
uma noitada em que ele estava presente? ..E uma mixór►
dia sem caráter. Haydn é um artista lúcido, mas lhe falta
inspiração (sic). A coisa toda é fria."
Ludwig Spohr, compositor famoso~ ouve a Nona Sin-
fonia trinta anos depois da morte de Beethoven, e desco-
bre nela um novo argumento em favor do que sempre
IL:::82~1======-JIDJ.1.a.1-.JI poética musical

afirmara, isto é, que faltava a Beethoven uma educação


em estética e também "um senso de beleza". Isso real-
mente não é mau, mas eis aqui algo ainda melhor:
selecionamos a opinião do poeta Grillparzer sobre a
Euryanthe de Weber. "Completa falta de ordem e de
cor. Essa música é hedionda. Uma tal perversão da
eufonia, um tal estupro da beleza seriam punidos com
a lei na grande época dos gregos. Essa J!lÚsica é um caso
de polícia ... n
Essas citações me presenram da loucura de tentar de-
fender-me da incompetência de rneus críticos, e de quei-
,xar-me do pouco interesse que mostram em relação a
meus esforços.
Não pretendo questionar os direitos dos críticos. Ao
contrário, o que lamento é que eles os exerçam tão
pouco. e muitas vezes de modo tão inapropriado.
Crítica - diz o dicionário - é a arte de julgar pro-
duções literárias e obras de arte. Podemos adotar tranqüi-
lamente e~ definição. Sendo assim, e já que a crítica é
uma arte, ela não fica imune à nossa própria crítica. O
que pedimos dela? Que limite estabeleceremos para seu
domínio? Na verdade, queremos que ela seja inteira-
mente livre em seu terreno próprio, que consiste em
julgar obras existentes, e não em divagar sobre a legitimi-
dade de suas origens ou intenções.
Um·compositor tem o direito de esperar que a crítica
reconhecerá ao menos a oportunidade, que ele for-
nece, de julgar uma obra pelo que ela é. Que sentido
há em um infindável questionamento sobre o próprio
princípio da operação? Qual a utilidade de cansar um
compositor com questões supérfluas, perguntando-lhe
·por que escolheu determinado tema, determinado as-
sunto, esta ou aquela voz, uma forma instrumental
específica? Qual a utilidade, em suma, de atormentá-lo
com o pcw que em vez de procurar por si mesmo o como,
e assim estabelecer as razões de seu sucesso ou de seu
fracasso?
tipologia musical ==-----_Jf.....!B~J~(
t : I::::11:1:1111:I

Obviamente, é muito
,,
mais fácil colocar perguntas do
que dar respostas. E mais fácil questionar do que expli--
car.
Minha convicção é que o público sempre se mostra
mais honesto em sua espontaneidade do que aqueles que
se estabelecem oficialmente como juízes das obras de
arte. Vocês podem acreditar em alguém que, ao longo de
sua carreira, teve a oportunidade de tomar contato com
os mais diversos tipos de público. Tenl10 observado, em
meu duplo papel de compositor e intérprete, que quanto
menos o público estava predisposto favorável ou desfavo-
ravelmente em relação a,uma obra musical, mais saudá--.
veis eram suas reações à obra, e mais propícias ao desen--
volvimen to da arte musical.
\ Depois do fracasso de sua peça mais recente, 11m ho-
mem de espírito declarou que o público tinha decidida-
mente cada vez menos talenlo ...Já eu penso, em vez dis.5o,
que são os compositores que algumas vezes mostram
pouco talento, e que o público sempre tem, se não talento
(o que dificilmente se poderia aplicar a uma coletivi-
dade), pelo menos, quando en_tregue a si mesmo, uma
espontaneidade que confere grande valor a suas reações.
Desde que não tenha sido contaminado e]e mesmo com
o vírus do esnobismo,_!. ,,

Tenho ouvido os artistas dizerem muitas vezes: "Por


que você se queixa dos esnobes? Eles são os mais úteis
servidores das novas tendências. Se não as servem por
convicção, ao menos o fazem em sua condição de es-
nobes. Eles são os nossos melhores clientes." Respondo
que são maus clientes, falsos clientes,já que estão prontos
tanto ao serviço do erro como ao da verdade. Servindo a
todas as causas, eles viciam completamente as melhores,
porque as confundem com as piores.
Tudo bem considerado, prefiro a invectiva direta do
ouvinte comum que não entendeu nada dos elogios ocos,
ttio sem sentido para os que os proferem como para os
que os recehem.
======-.11lwlIL.JI
.=!:84::....t:I
1...I poética musical

C.Omo toda espécie de mal, o esnobismo tende a susci-


tar um outro mal que é o seu oposto: o pomp'ieris11U!. Afinal
de contas, o esnobe não é senão uma espécie de pcnnpier*
- um pompier de vanguarda
Os pomp'iers de vanguarda ficam tagarelando sobre
música, ~im como ...
o fazem a respeito do freudismo ou
do marxismo. A menor provocação, recorrem aos com-
p"1~os da psicanálise, e hoje em dia vão tão longe a ponto
de familiarizar-se, ainda que relutantemente (mas sno-
his'IM obli~), com o grande São Tomás de Aquino ... Tudo
isso bem considerado,\a· essa espécie de pompier prefiro
o puro e simples pompier que fala sobre melodia e, mão
ao coração, defende os incontestáveis direitos do senti-
mento, o primado da emoção, manifesta preocupação
com o que é nobre, eventualmente cede à aventura ou ao
pitoresco oriental, e chega a elogiar meu Pássaro ~ fogo.
Vocês entenderão sem dificuldade que não é en1 ,
virtude
disso que o prefiro à outra espécie de potnpier... E simples-
mente porque o considero menos perigoso. Os pompiers
de vanguarda, além d~, cometem o erro de ser sarcás-
ticos, além de toda medida, com seus colegas do ano
anteri(?r. Todos eles pem1anecerão pompiJ!'rs por toda a
vida, e os de molde revolucionário saird.o de moda mais
,
cedo que os outros: o tempo é uma ameaça maior para
ele!.!
.--· ,,
O verdadeiro amante de música, como o verdadeiro
mecenas, não se enquadra nessas categorias; mas como
tudo o que é autêntico e tem valor, ambos são raros. O
falso mecenas emerge habitualmente das fi1eiras dos es-
nobes, cmim como o pompier ao velho estilo costuma ser
recrutado nas fileiras da bu,gtu!Sia.
Por motivos que já mencionei, o burguês me irrita
muito menos que o esnobe. E não estou defendendo o
burguês quando digo que é realmente muito fácil atacá-
lo. Deixaremos esses ataques para os grandes especialistas

• Cf. nota à p.22


-,-,-,------------------=--=--=-.:r1-a_s_)
tipologia musical -,

na matéria - os comunistas. Do ponto de vista do huma-


nismo e do desenvolvimento do espírito, não é preciso
dizer que o burguês constitui um obstáculo e um perigo.
Esse perigo, no entanto, é demasiado conhecido para
inquietar-nos, na mesma medida que o perigo nunca
denunciado como tal: o esnobismo.
Concluindo, é impossível não dizer uma ou duas pala-
vras a respeito do mecenas, que desempenhou papel de
vital importância no desenvolvimento das artes. A dureza
dos tempos e a avaSRladora demagogia, que tendem a
transformar o estado num mecenas anônimo e insensa-
tamente nivelador, nos faz ter saudade do Margrave de
Brandenburgo que ajudou a Johann Sebastian Bach, do
príncipe Esterhazy que cuidou de Haydn, ou de Luís II
da Baviera que protegeu Wagner. Embora o mecenato
das artes enfraqueça dia a dia, devemos honrar os poucos
mecenas que nos restam, desde o mais modesto, que julga
ter feito o bastante pelo artista oferecendo-lhe uma taça
de chá por sua gentil contribuição, até o anônimo Dives•
que, ao delegar a tarefa de distribuir verbas ao secretaria-
do do depanamento de filantropia, torna-se um mecenas
sem o saber.

• Dives-. .. rico.., em latim. (N.T.)


os avatares da
.
~

musica russa
,1 •

OR QUE SEMPRE FALAMOS na musica russa em termos


de seu carcÍter ~o, em vez de simplesmente em
termos de música? Porque é sempre o pitoresco -
os ritmos estranhos, os timbres da orquestra, o orientalis--
mo, em suma, a cor ]ocal - o que atrai a atenção; porque
as pe~oas est.ão interessadas em tudo o que pa~a compor
aquilo que se imagina ser o contexto russo: troikn., vodka,
isba, balalaika, pape, boiardo, samovar, nitchevo, e até bolche-
vismo. Pois o bolchevismo também ofeTece essas demons-
trações que, entretanto, levam nomes que se conformam
mais às exigências de suas doutrinas.
Espero que sejam suficientemente gentis para permi-
tir que eu considere a Rússia de outro ponto de vista...
Meu objetivo expresso é ajudar a esclarecer um equívoco
duradouro, e corrigir algumas distorções de perspectiva.
Se considerei apropriado dedicar uma seção de meu
curso à música russa, não é porque a aprecie especial-
mente devido a minhas origens; é, sobretudo, porque a
música da Rússia, em especial nos seus últimos desenvol-
vimentos, ilustra de um modo característico e muito
significativo as principais teses que desejo apresentar a
vocês. Assim, dedicarei menos tempo a uma visão his-
tórica da música russa do que ao que tenho chamado de
seus avatares - suas transformações durante o breve
período que abrange toda a sua existência. Pois os seus
primórdios como arte consciente de si mesma não re-
montam a mais de cento e poucos anos, e em gera)
considera-se que esse despontar coincide com as primei-
ras obras de Glin){a.
LI.!!90~1======-.JfflulJln_JI poética musical

i De Glinka em diante, podemos apreciar o uso do


folclore na música russa. E na ópera Uma vida pelo cz.ar
que o -meios de nosso povo incorpora-se muito natural-
1
mente à arte musi~al.
...
_ ~. -~-Glinka, ali, não está obedecendo à
1

força do hábito~ Ele não pensa em estabelecer os alicerces


de um vasto empreendimento para fins de exportação:
toma o motivo popular como matéria-prima e o traba]ha
instintivamente de acordo com os usos da música italiana
então em voga.· Glinka não precisa misturar-se ao homem
comum, como fizeram alguns de seus sucessores, para
reforçar o seu vigor através do contato com a verdade nua
e crua. Está simplesmente em busca de elementos que
levem ao prazer da música. A partir de uma cultura
adquirida ao contato com os italianos, ele sempre conser-
vou um gosto natural pela música italiana, e foi sem desejo
algum de estabelecer um sistema que introduziu em suas
obras melodias de origem ou sentimento popular.
Dargomijsky, um talento menos pujante, menos origi-
nal, mas da melhor espécie, revela gostos similares. Sua
encantadora ópera Russalka, suas deliciosas romanzas e
canções misturam do mesmo_modo o mel.os do povo russo
e o italianismo então predominante com a mais despreo-
cupada e cativante facilidade.
Os Cinco, eslavó.filos da vertente populista, iriam trans-
formar em sistema essa utilização inconsciente do fol-
clore. Suas idéias e preferências os inclinaram a uma
espécie de devoção pela causa do povo, urna tendência
que, naturalmente, ainda não atingira as vastas propor-
ções então estabelecidas segundo as instruções da Tercei-
ra Internacional.
~J~~r.ey._Mussor~,-Boroàinr- · QA-P'lftl~MI.A9y, aos
quais devemos acrescentar a personalidade menos pecu-
liar de Ç~c1r...Qui. todos tirc1m partido de melodias popu-
lares e cantos litúrgicos.
Assim, com a melhor das intenções - e com níveis
variados de talento-, ios Cinco procuraram enxertar a
veia popular na arte musical. No início, o frescor de suas
idéias compensava a inadequação de sua técnica. Mas essa
os avatares da música russa l__l_l_ll________l _9_1_J

espécie de frescor não se reproduz facilmente. Chegou o


momento em que veio a necessidade de consolidar reali-
zações, e, com e~e objetivo, de aperfeiçoar a técnica. De
amadores, que eram todos quando o movimento come-
çou, eles se transfornaram em profi~ionais, perdendo
aquele despreocupado êxtase dajuventude que, no int-
cio, era seu grande atrativ9J
Foi assim que Rimski-Korsakov passou a empenhar-se
no estudo metódico da composição, rompendo com o
amadorismo de seus colegas até ttansfonnar-se ele pró-
prio num eminente professor.
Nessa condição, estabeleceu um ativo núcleo de com-
positores genuinamente profissionais, lançando assim as
bases para a mais sólida e apreciável instrução acadêmica.
Eu mesmo tive oportunidade de tirar partido dos benefi-
cias desse sóbrio e poderoso dom pedagógico.
,P~r volta dos anos 1880, um rico diletante, Beliaev,
que se tornara editor a partir de seu amor pela música
ru~a, reuniu um pequeno círculo de músicos que incluía
Rimski-Korsakov, seu jovem e brilhante aluno Glazunov,
Liadov e alguns outros compositores. Sob o pretexto de
uma preocupação com as mais sérias técnicas de compo-
sição, suas obras começaram a revelar sintomas alar-
mantes de um novo academicismo. O círculo Beliaev,
assim, voltou-se cada vez mais na direção do academicis-
mo. O italianismo, renegado e vilipendiado, deu lugar a
um entusiasmo cada vez maior pela técnica germânica, e
não é sem razão que Glazunov chegou a ser chamado de
o Brahms rusSQJ
10 núcleo formado pelo Grupo dos Cinco encontrou
1

oposição de um outro lado, onde, simplesmente em


virtude do poderoso brilho de seu talento, a personali-
dade de Tchaikovsky brilhava sozinh~Tchaikovsky, co-
mo Rimski-Korsakov, tinha consciência da necessidade de
adquirir uma sólida técnica. Ambos foram professores de
conservatório; Rimski em São Petersburgo, Tchaikovsky
em Moscou. Mas a linguagem musical de Tchaikovsky está
tão longe dos preconceitos que caracterii.aram o Grupo
=====:.......Jlu.l.1.I...JI
!..:92:....t::I
LI poética musical

dos Cinco quanto estava a de Glinka. Enq~anto Glinka


viveu durante o reinado da ópera e da canção italiana,
Te ha_ikovsky, que despontou no final desse reinado, e cuja
formação tinha sido por ele determinada. não mostrava
uma admiração exclusiva pela música italianaTsua edu-
cação formal havia sido conduzida segundo os princípios
das academias alemãsjMas se ele não tinha vergonha de
gostar de Schumann e Mendelssohn, cuja música influen-
ciou claramente su~ obras sinfônicas, fsllaS simpatias
caminhavam na direção de Gounod, Bizet e Delibes, seus
contemporâneos na França. Não obstante, por mais aten-
to e sensível que fo~ para o que acontecia fora da Rússia,
pode-se dizer que ele se mostravd, de um modo geral, se
não nacionalista e populista como os Cinco, pelo menos
profundamente nacional no carJter de seus temas, no
corte de suas frases, na fisionomia rítmica de sua obra.\
-- ,...;•..,

Falei a vocês do ru~ Glinka que adotou a Itália, dos


Cinco russos que casaram o folclore com o realis1no
naturalista então cm moda, do russo Tchaikovsky, que
encontrou sua verdadeira expreS&io voltando-se, de bra-
ços abertos, para a cultura ocidental.
Seja lá o que se possa pensar dessas tendências. elas
eram compreensíveis e legítimas. Obedeciam a uma de--
terminada ordem. Ocuparam seu lugar no contexto da
história russa. Infelizmente, o academicismo que mos-
trara seus primeiros sinais na atividade do círct1lo Beliaev
não demoraria muito a produzir epígonos, enq11anto os
imitador:c.~_pe "fchaikovsky descambavam para um lirismo
insípida\ Mas justamente quando se podia pensar que
assistíamos ao iníci<> de uma ditadura conservadora, uma
nova desordem irrompera dentro do pensamento russo,
uma desordem cujas sementes foram éminaladas pelo
suces.ro da teosofia; uma desordem ideológica, psicológi-
ca e sociológica que se apoderou da música com impu-
dente desenvoltura. Pois, para falar francamente, é pos-
sível estabelecer a ligação de um músico como Scriabin
com qualquer tradição? De onde vem ele? Quais são os
seus ancestra~
os avatares da música russa ::::1lclt111==-----.1.l..;;:9:::.3..J)
cl

Somos levados, portanto, a considerar duas Rú~ias,


uma R~ia da direita e uma Rússia da esquerda, que
representam duas espécies de desordem: a desordem
conservadora e a desordem revolucionária. Qual foi o
resultado dessas duas desordens? Deixo que a hisLória dos
últimos vinte anos responda por nós.•
Veremos a desordem revolucionária devorar a desor-
dem conservadora, e, ao devorá-la, desenvolver tal apetite
pelo prato que passarei a pedir sempre mais, sempre mais
- até morrer de indigestão.
E isso me leva à segunda parte de minha lição. A música
da Rússia soviética será o seu tema.
Antes de mais nada, devo c<)nfe~r que só a conheço
à distância. Ma4i não disse Gogol que, de uma terrra
distante (ne~e caso, ·a Itália, seu país de adoção), "era
mais fácil para ele abraçar a Rú~ia em toda a sua vas-
tidão"? Também cu acredito que tenho algum direito de
julgá-la com a vantagem de um ponto de vista europeu-
ocidental ou norte-americano. Além disso, a Rú~ia, neste
momento, está lutando com processos tão contraditórios,
que é quase impossível examiná-los sem alguma pers-
pectiva, e conseqüentemente, mais dificil analisá--los vi-
vendo,
no país.
E sobre música que pretendo falar, mas antes de fazê-
lo, é absolutamente essencial, para que e~ problema
particular possa ser melhor delimitado e colocado, que
eu diga algumas poucas palavvras a vocês, em termos
muito gerais, sobre a Revolução Russa.
O que mais chamá a atenção em tudo isso é que a
Revolução veio num momento cm que a Rússia parecia
ter-se livrado de uma vez por todas (ao menos em princí-
pio) tanto da psicose do materialismo como das idéias
revolucionárias que a escravizaram desde meados do
século XIX até a primeira revolução de 1905. Na verdade,
o niilismo, o culto revolucionário do homem comum, o

• Estascorucrênciaaforam pmnunciadascm Harvard noanoleú\'O 1939-40.


(N.T.)
-,-94-,-----------...--,;;;,n;:::;I poética musical

materialismo rudimentar, bem como os sombrios com-


plôs arquitetados no submundo do terrorismo, tinham
pouco a pouco desaparecido. Naquele momento, a Rús-
sia já se enriquecera com novas idéias filosóficas. Havia
realizado pesquisas sobre sua própria experiência his--
tórica e religiosa, pesquisas desenvolvidas principalmente
por Leontiev, Soloviev, Rosanov, Berdiaev, Fedorov e
Nesmelov. Por outro lado, o simbolismo literário a que
associamos os nomes de Blok, Z. Guippius, e Bely, bem
como o movimento artístico Mir Iskoustva, de Diaghilev,
muito contribuíram para esse enriquecimento. Isso sem
mencionar o que então se chamava o "marxismo legalis-
ta .. , que suplantarei o marxismo revolucionário de Lenin
e dos exilados que se agrupavam à volta deles.
Certamente, es.."3. "Renascença Russatt parecia inorgâ-
nica e impotente em muitos aspectos; temos ainda mais
razão parajulgá-la assim atualmente.
Basta lembrar o movimento grotesco dirigido por
Tcl1oulkov que era chamado "Movimento dos Anarquis-
tas Místicos" - um misticismo totalmente suspeito, a
propósito - e lembrar Merejkowski e o significativo
sucesso de Andreiev e Artzibasheff, romancistas do pior
gosto possível. E no entanto, comparado ao sombrio
período dos anos 1860 a 1880, o período dos Chemiche-
vskis, Dobroliubovs, Pissarevs, quando uma onda insidi~
sa que contestava as próprias fundações da cultura e do
estado emanava do ambiente de fa)sos intelecruais, me>
ralmente deserdados e socialmente desenraizados, e dos
centros de seminaristas ateus e estudantes reprovados -
comparados a esse período, os vinte anos que precede-
rama Revolução parecem-nos justificadamente um curto
período de convalescença e renovação.
Infelizmente, essa renascença cultural não encontrou
expressão compatível na esfera das reformas governa-
mentais, nem no terreno da iniciativa econômica e dos
problemas sociais - de modo que, no início da Grande
Guerra, a sociedade russa ainda era composta de elemen-
tos paradoxalmente díspares como a ordem feudal (ain-
os avatares da música russa lt::::::tAt:11~11==-----l..l~g~s.. JI

da vigente naquele momento), capitalismo ocidental e


comunismo primitivo (sob a forma de comunidades ru-
rais). Não é surpreendente, a~im, que ao primeiro cho-
que (no caso, a Grande Guerra) esse sistema, se se pode
chamar isto de sistema, não pudesse suportar a pressão
interna e externa. De~ modo, a Revolução nascente,
que unia o marxismo radical dos exilados aos "pogroms"
rurais e à confisc.ação da propriedade privada, ia subver-
ter e esmagar todas as superestruturas da cultura do
pré-guerra, nesse mesmo ato reduzindo a Rússia ao nível
mais baixo dos Possessru de Dostoievski e mergulhando-a
de novo no ateísmo militante e num materialismo rudi-
mentar.
Seria possível dizer que, naquele momento,
...
ocorreu
uma trágica colisão de duas desordens. A desordem revo-
lucionária um governo fraco só podia opor uma outra
desordem, a reacionária. Nem as autoridades nem a
consciência social estavam à altura da tarefa de concreti-
zar ou mesmo de formular um sistema vivo e construtivo
de reação capaz de enfrentar e desarmar a pressão das
forças revolucionárias que, não obstante. haviam enfra-
quecido consideravelmente por volta de 191 O, tendo
perdido um bom terreno cm razão de sua propaganda
subversiva. Na verdade, parece impossível explicar uma
tal atrofia do Estado russo quando, de acordo com uma
antiga tradição, ele tendia basicamente a realizar a idéia
de uma Terceira Roma. Como diz a imagem feliz de
Rosanov, "a Rússia perdeu suas cores em três dias, senão
em dois" .
.,.
E mais que tempo de abandonar o ponto de vista banal
e errôneo (e tantas vezes desmentido pelos fatos) que
atribui à personalidade russa um elemento de irraciona-
lidade inata, pretendendo encontrar nisto uma explica-
ção para a predisposição russa ao misticismo e à devoção
religiosa. Mesmo conferindo aos russos essa peculiari-
dade, nãp se pode, sem temeridade, parar aí e negligen-
ciar um outro aspecto dessa mesma natureza, que é a
tendência a um racionalismo rudimentar e quase infantil
,.:::96~1======-..1ILLI
LI ILJI poélica musical

que facilmente degenera numa procura de culpas e numa


discussão estéril. &ta também é uma característica bem
russa ..
No terreno ·espiritual, esse outro lado produziu um
ate&mo militante, bem como doutrinas racionalistas de
seitas religiosas, seitas que, aliás, ainda coexistem hoje ao
lado do ateísmo oficial dos comunistas. ~ racionalismo
e seu espírito pseudocrítico envenenaram e continuam a
envenenar todo o campo da ane na Rússia, com as famo-
sas discussões sc>bre o "sentido da Arte" e sobre "o que é
Arte e qual a sua missão?"
Foi logo após a morte de Puchkin, e _basicamente
através de Gogol, que e~as especulações infiltraram-se no
espírito russo. A arte ntssa tem sofrido muito com isso.
Alguns viam a função intrínseca da arte como abandono
e desprezo dos hábitos e costumes da vida. Nesse sentido,
chamo a atenção de vocês para o famoso movimento dos
Peredvijniki, com suas exibições ambulantes, um movi-
mento que precedeu a empreitada de Diaghilev.
Outros negavam à arte qualquer direito a ser um fim
em si mesma. Testemunho disso é a famosa discussão
levada tão a sério na década de 1860: "O que é mais
importante, Shakespeare ot1 um par de botas?" Mesmo
Tolstoi, em suas divagações estéticas, perdeu-se no impas-
se da moral e seus imperativos categóricos. o que se
devem à sua total incompreensão da gênese de qualquer
tipo de criação. Finalmente, a teoria marxista, ao sus-
tentar que a arte é apenas "uma superestrutura baseada
no modo de produção," tornou-a, na Rússia, um mero
instrumento de propaganda política a serviço do Partido
Comunista e do governo. Naturalmente, essa corrupção
do espírito crítico russo não poupou a música. No perío-
do que vai até os primeiros dez anos do século XX, os
suceswres de Glinka, à exceção de Tchaikovsky, todos
pagaram tributo, em graus variáveis, a idéias populistas
ou revolucionárias, ou, finalmente, ao folclore, e todos
eles atribuíram à música problemas e objetivos que lhe
são estranhos. Citarei, como curiosidade, este fato simples
os avalares da música russa _.1... l_______
._I 1. . _9_7_1
..._l

e conhecido: o de que Scriabin quisera colocar uma


epígrafe na partitura erótico-mística de seu Poemadoêx~
epígrafe que não era senão o "Acordai, ó malditos da terra'',
primeira frase da versão frc1ncesa da Internacional
Só uns poucos anos antes da guerra é que a música
n1ssa tentou emancipar-se em algu1na n~dida. Ela tendia
a romper a tl1telagem do Grupo dos Cinco e, especial-
mente, da escola de Rimski-Korsakov, qt1e naquele m<r
mento, como já dissemos, nada representava senão um
rígido academicismo. A guerra aniquilaria e~es esforços,
e os eventos seguintes acabaram com seus últimos ves-
tígios. ~-;im, a Revolução encontrou a música russa com-
pletamcn te desorientada, dentro de seu próprio país, de
modo que os bolcheviques não tiveram qualquer proble-
rna em guiar o seu desenvo]vimcnto de acordo com suas
preferências e conveniências.
A bem da verdade, a arte russa antes da Revolução de
Outubro havia-se mantido à margem do marxismo revo-
lucionário. Os ·últimos representantes do simbolismo,
bem como os imitadores mais jovens reunidos em torno
deles, aceitaram a revolução sem, por i~o, empunhar suas
tochas. Górki, amigo pessoal de alguns dos líderes C'.>mu-
nistas, partiu para o exi1io em Sorrento poucos anos
depois do estabc]ecimento do comunismo, onde ficou
por um bom tempo, retornando à Rússia só quando
prestes a morrer, o que ocorreu em 1936. Essa longa
ausência provocou inclusive uma ácida diatribe endere-
çada a Górki pelo poeta futurista Maiakovski, por volta de
1926, sob a forma de uma carta em versos - "Pena,
camarada Górki", dizia ele, "que nunca ovemos pore~s
dias nas oficinas de trabalho. Talvez você ache que pode
ver as coisas com mais clareza das colinas de Capri?"
Estranho que possa parecer, nos primeiros tempos só
o futurismo abraçou as perspectivas do comunismo, mes-
mo recebendo uma censura do próprio Lenin. Maiako-
vski, na poesia, e Meyerhold, no teatro, foram seus prin-
cipais protagonistas. Quanto à música, não encontrou
representantes desse calibre. Ao mesmo tempo, durante
======-.mll..JInlL.JI
.::,:.98:.....t:I
LI poélica musical

os primeiros anos da Revolução, a política para a música


restringia-se a decretos rudimentares sancionando esta
ou aquela obra de compositores burgueses (era este o
termo consagrado). Foi assim que as coisas aconteceram:
o Kilesh de Rimski-Korsakov, considerado muit<> místico,
foi posto no índex, enquanto o l!'ugen Onegin de Tchai-
kovski, reconhecida como uma ópera que descrevia rea-
listicamente os costumes, recebeu a honra ele ser levada
aos palcos. Um pouco mais tarde aconteceujustamente
o oposto: Kite.sh passou a ser considerado um drama
popular. Quanto a Eugen Onegin, exalava um perfun1c de
nobreza feudal, de modo que foi banido do repertório ...
Citarei ainda um fato curioso desse período: a fun-
dação da orquestra sem regente Persimfans (primeiro
co~junto sinfônico), que de um modo algo ingênuo
simbolizava o princípio co]etivo en1 oposição ao princípio
consi_derado a11toritário e ditatorial que exige a presença
de um regente. Desde então, como vocês entenderão
facilmente, muitas coisas mudaram na vida russa.
Durante o primeiro período do bolchevismo, as auto-
ridades estavam ocupadas com outras coisas para pode--
rem preocupar-se com a arte de um modo sistemático. E
a própria arte estava às voltas com as mais diversas e
contraditórias teorias. ~sas teoria.~, na verdade, vinham
do terreno de uma fantasia extravagante, ou mesmo do
ridículo. Foi assim que a ópera, de um modo geral, viu-se
denunciada corno inútil. Os autores de~a afirmativa ex-
traíram set1s argumentos de t1ma suposta origem religiosa
ou feudal do gênero operístico (sic) e de seu caráter
convencional. Além disso, a ópera como forma parecia
desafiar o realismo artístico: a lentidão de sua ação não
correspondia, de forma alguma, ao ritmo do novo modo
socialista de viver. Alguns sustentavam que só as massas
poderiam ser o principal personagem, o herói da ópera,
ou que a ópera revolucionária não deveria preocupar-se
com enredos de qualquer nattireza. Essas teorias, além
disso, gozavam de certo sucesso - um fato demonstrado
pela composição de uma série de óperci..~ de acordo com
os avatares da música russa =tlttl~ll==-----l.l~99~} ·
cl

os princípios da ópera de massas e da ópera sern enredo.


Por exen1plo, Aço e gelo, de Dechcvov, ou A vanguarda e a
retaguard~ de Gladk(),vski. Independente dessas ideolo-
gias regionais e provincianas, tão tipicamente russas, um
culto rcvo)ucionário e romântico era dedicado a Beetho-
ven. Em concertos, o final da Nona Sinfonia foi muitas
vezes executado em conjunção com a /nternaciona~ com-
posta, C<>mo sabem, pelo belga Degeyter. Lenin, por
alguma razão desconhecida, considerava a A-ppassionala
"música sobre-humana". Beethoven era abordad<> à luz
das idéias de Romain RoJland, que, como sabem, ouvia o
''tinir de sabres", o barulho da batalha e as ]amentações
dos vencidos na sinfonia Heróic<L
Aqui está, escrita por 11m dos mais celebrados críticos
soviéticos, uma análise desta mesma Terceira Sinfonia.
Os violinos, e,n surdina, entoam sua canção son1L>ria e dolorosa.
A voz do oboé, 1ncrgulhada na tristeza, eleva-se fim1cmente.
Então os guerreiros, e1n austero silêncio (?), acompanha1n seu
líder para o seu lugar de descanso. ~ias aqui não existe deses-
pero. Beethoven, o otimista, o grande an1antc da Vida. tinha
uma idéia muito elevada do homem para repetir as palavras
desdenhosas (?) da Igreja crislã: "Tu és pó e ao pó retomar.JS!,,
No .fcheno e no _finaú; Beethoven grita com voz de trovão:
ºNão, tu não és pó, 1nas, na verdade, o Senhor da ]'erra!'' E,
de novo, a imagetn fulgurante do herói revive no espirituoso
.fdteno, bem conto no tempestuoso e avassalador _fina/e.
Qualquer comentário sobre comentários desse tipo
seria supérfluo.
Em um de seus artigos, um outro crítico e musicólogo,
ainda mais proen1incnte e famoso do que o recém-citado,
nos garante que "Beethoven c.ombatcu para defender os
direitos civis da música como arte, e suas obras não
mostram a menc>r tendência ao aristocratismo".
C:Omo podem ver, tudo~> nada tem a ver com Beeth~
ven, ou com a música, ou com a verdadeira crítica musical.
Hoje, então, assim como no passado, nos tempos de
Stasov e Mt1ssorhrsky (um músico de gênio, certamente,
mas sempre conftt~o cm suas idéia.li), a "intcl1igentsia"
pensante procura atribuir un1 papel à rnúsica e conferir-
======-..1lu..l
L;I1:.:00:.::....t:I LI...JI poética musical

lhe um sentido totalmente estranho à sua verdadeira


missão. Um sentido do qual a música, na verdade, está
infinitamente distante.
Toda e~a grandiloqüência e exagerada ambição não
alteram o fato de que Eugen Onegin é ainda a ópera que
o público mais aprecia, aquela que engorda a bilheteria
(mesmo existindo subsídios estatais). Foi necessário, en-
tretanto, para que a ópera fosse reabilitada, que Luna-
chanki (Comissário das Belas--Artes e da Instrução Públi-
ca) declarasse (e isso é bastante cômico) que o conflito
de dois amores não contradiz de forma alguma as idéias
do comunismo.
Estou tentando dar--lhes u1na idéia sucinta da at11al
situação da música soviética e das teorias e tendências que
tomaram forma em torno dela - mas devo fazer uma
pausa, novamente, para examinar dois falos.
Por duas vezes Stalin assumiu pes.roalmente e aberta-
mente uma atitude cm relação à arte soviética. A primeira
vez, em relação a Maiakovski. Todos sabem que o suicídio
do poeta, em 1930, perturbara profundamente e deixara
perplexos os comunistas mais ortodoxos, provocando
uma verdadeira revolução em seu nome - pois a perse-
guição de Maiakovski começara vários anos antes de sua
morte, apoiada na reprovação de todas as tendências
"esqaerdistas" da literan1ra de um modo geral. De modo
a restabelecer o prestígio e a plena significação do nome
de Maiakovski, seria necessária nada menos do que a
intervenção pe~oal de Stalin. ºMaiakovski" - ele decla-
rou - "é o maior e melhor (sic) poeta da era soviética."
O epíteto, naturalmente, tornou-se clássico, e passou de
boca em boca. Se me detive momentaneamente nesse
incidente literário, faço-o, antes de tudo, porque a cáte-
dra de Poética que ocupo neste instante me dá poder para
isso, acho eu; em segundo lugar porque, comparada à
vida tumultuosa da literatura soviética, a música perma-
neceu à sombra, no fundo do cenário.
Não obstante, a segunda intervenção de Stalin re]acio-
na-se precisa.mente com a música. Ela foi provocada pelo
os avatares da música russa 1111 1101 1

escândalo que acompanhou a ópera de Shostakovich


Lady Macbeth de Mtsensk, sobre tema de Leskov, e pelo seu
balé O regalo cristalino, baseado em temas dos ko/Jwses
(fazendas coletivas). A música de Shostakovich e o as-
sunto de suas composições foram severamente censura-
dos, talvez não erradamente dessa vez. Foram, além disso,
. atacados por revelarem "formalismo decrépito''. A execu-
ção dessa música foi proibida, o que a punha em compa-
nhia da música de Hindemilh, Schoenberg, Alban Berg
e outros compositores europeus.
Devo dizer a vocês que havia razões para e~a guerra
contra uma música considerada dificil.
Depoi~ que os períodos de romantismo, construti-
vismo e futurismo tinham esgotado o seu curso, e depois
de discussões intermináveis sobre temas como "Jazz ou
sinfonia?", e também em conseqüência da mania de
que tudo fosse grandioso, a consciência artística rompeu
abruptamente com as fórmulas esquerdistas, por motivos
claramente políticos e sociais, e seguiu os caminhos da
"simplificação", do 11ovo populismo e do folclore.
A voga de um compositor como Dzerjinski, abençoado
com a ap~ovação pessoal de Stalin, bem como pelo suces--
so de suas óperas sobre temas extraídos dos romances de
Sholokov - O Don Sil.encioso e Sementes do a1nanhã - ,
revelou essas "novas" tendências na direção do folclore
popular, uma tendência na verdade muito familiar à
música russa, e em que ela persiste até hoje.
Propositalmente, não estou dedicando muito tempo
às obras e à atividade dos compositores já formados e
conhecidos antes da Revolução, e que desde então não
mostraram desenvolvimento notável (por exemplo, Mi~
kovski, Steinberg e outros. Que são simplesmente os
seguidores das escolas de Rimski-Korsakov e Glazunov).
O que se diz na Rússia de hoje é que o novo ouvinte
das m~as requer uma música simples e compreensível.
A ordem do dia para todas as artes é o "realismo socialis-
ta". Por outro lado, a política nacional da União Soviética
encoraja de todas as maneiras a produção artística rcgio-
11021 11111 poética musica 1

nal das <>nze repúblicas incluídas no sistema da União.


Esses dois fatos isolad<>s determinaram o estilo, a forma e
as tendências da música contemporânea soviética.
No decurso de poucos anos, surgiu uma quantidade
de coletâneas incluindo as mais variadas canções folclóri-
cas ( da Ucrânia, Geórgia, Armênia, Azerbaijão, Abkhsia,
Burialo-Mongólia, dos tártaros, kalmuks, turcomenos,
quirguizes, canções hebraicas etc.). Por mais interessante
e importante que esse trabalho de etnografia e taxiono-
mia possa ser em si mesmo, ele não deveria ser confun-
dido, como é o caso na Rússia soviética, com problemas
de cultura e criaçà<> musical, pois estes Lêrn muito pouco
a ver com expedições etnográficas. Ainda rnais que essas
expediçôcs tên1 como objetivo prescrito anolar e coletar
milhares de canções sobre Stalin, Voroshilov e os ouLros
líderes. Uma razão extra pela qual a criatividade musical
não encontra lugar nas harmonizações infalivelmente
convencionais e n1uitas vezes suspeitas dessas canções
folclóricas.
Ao mesmo tempo, é dib'llO ·de nota que os interesses
claramente políticos que são canalizados para essa música
folclórica ande1n de mãos dadas. como é sempre o caso
na Rússia, com uma teoria confusa e complicada enfati-
zando expressamente que "as diferentes culturas regio-
nais estão se desenvolvendo e ampliando numa cultura
musical de todo o grande país socialista".
Eis o que escreve um dos mais ,,destacados críticos e
musicólogos da União Soviética: "E mais que tempo de
abandonarmos a distinção - inteiramente feudal, bur-
guesa e pretensiosa - entre música folc]órica e música
artística. Como se a qualidade da coisa estética fos.';e
privilégio exclusivo da invenção individual e da criação
pessoal do con1positor." Se o crescente interesse pela
etnografia musical for adquirido ao preço de tais heresias,
seria talvez preferível que esse interesse fosse exercitado
nas primitivas formas musicais pré-revolucionárias; de
outr.i maneira, o risco é trazer apenas dano e confusão à
~ .
musica russa.
os avatares da música russa l__,_l_l________l O_J_I
_1

Essa mania de folclore deu origem, de qualquer modo,


a toda uma série de composições, grandes e pequenas,
tais como as óperas Schah-~ Guisara, Daissi, Absalão e
~ieri, Aitchourek, Adjal-Ordu~ Altine-Kb., 1aras-Bulba, e
assim por diante. Todas e ~ composições pertencem ao
tipo convencional de ópera. Naturalmente, elas não re--
solvem nenhum problema criativo, pois pertencem à
categoria da arte "oficial" e exibem um idioma pseudo--
popular. Pode-se mencionar também nesse contexto a
recente moda da opereta ucraniana, que antigamente era
chamada de opereta Mpequenerrussa".
Se os supervisores da música soviética corúundem, de
propósito ou talvez por ignorância, os pr<,blemas da
ctnogrJ.fia com os da criatividade, eles cometem o mesmo
erro em matéria de performance, pois a elevam, por
questões tendenciosas, ao nível de um fenômeno criativo
e da verdadeira cultura musical. O mesmo é verdade para
esses grupos de amadores de toda espécie que formam
orquestras, coros e co11juntos populares, sempre citados
como um argumento para provar o desenvolvimento dos
dotes artísticos dos povos da União Soviética. Certamente
é muito bom que pianistas e violinistas soviéticos conquis-

tem pr1me1ros prem10s em compeuçoes 1nternac1ona1s


4 • A 11 • - • •

( na medida em que essas competições tenham tido algum


valor ou contribuído de algum modo para a música).
Certan1ente é muito bom que a Rús.~ia cultive suas danças
folclóricas e interprete canções dos ko/Jroses. Mas será
possível ater-se a assuntos secundários na esperança de
encontrar nesses fatores quantitativos os sinais de uma
verdadeira e genuína cultura, cujas fontes e condições,
assim como em todos os outros campos da criação, não
estão de forma alguma contidas nesse consumo de m~,
que parece mais o resultado de uma ordem unida? Não
se encontram esses sinais em terrenos totalmente dife-
rentes, algo de que a Rú~ia soviética parece completa-
mente esquecida, ou cttia linguagem ela desaprendeu?
Devo finalmente dirigir a atenção de vocês para duas
tendências que, a meu ver, esclarecem os rumos da mú-
L!I1~0::.,4.t:I=====~lull.JLff_JI poética musical

sica na Rússia contemporânea, ainda mais na medida em


que estão se tomando cada vez mais pronunciadas com
o passar do tempo. Essas tendências são, de um lado, o
reforço da Temática da Revolução, a nece~idade de
temas revolucionários de interesse imediato para o mf>-
mento; de outro lado, a adaptação bastante específica de
obras clássicas - algo de até agora inédito - às exigên-
cias da vida contemporânea. Depois de utilizar os ro-
mances de Sholokov como tema para libretos de ópera,
eles se voltaram para Górki e para assuntos da guerra civil.
Em uma nova ópera, Na tmip,,stade, chegaram ao ponto
de fazer l..1enin aparecer no palco. Quanto às famosas
adaptações que acabo de mencionar, posso dizer-lhes
que, recentemente, o Quebra-Nous de Tchaikovski foi
devolvido ao repertório do balé, não sem n1odificações
em seu tema e libreto, considerados de colorido muito
místico, e assim perigosos, bem como estranhos, ao es-
pectador soviético. Da 1nesma maneira, depois de infinita
hesitação e numerosas revisões, a famosa ópera de Glinka
Uma vida pelo a.ar voltou ao repertório, agora com o títu]o
Ivan Swanin. A palavra "czar" foi substituída, quando a
ocasião exigia, pelas palavras "país'\ "pátria" e upovo".
Quanto à apoteose, a montagem original foi mantida,
com os tradicionais sinos e as procissões do clero em suas
casulas douradas. Não se deve buscar uma explicação
para esse contexto patriótico na m(1sica de Glinka, mas
antes na propaganda de defesa nacional. Não dispondo
de qualquer forma própria e autêntica de expressão. o
patriotismo comunista imposto ao governo soviético
pela pressão dos acontecimentos ("Você imaginava
pressionar, e está sendo pressionado") expressou-se a
si mesmo, subversivamente, através de uma das mais
puras obras-primas da música clássica russa, uma obra-
prima que tinha sido concebida e composta em circuns-
tâncias totalmente diferentes, e incorporava um senti-
do totalmente diverso.
Se a cultura musical da R~ia cgntemporânea fosse
tão próspera como se costuma dizer, que nec~idade
os .1vatares d a música russa t:I::::tlt:1II~11:=-----l.l~10~5:JI

havia de recorrer a esse cmprésti1no, cu poderia mesmo


dizer a essa fa]sificação, de Glinka?
O atual problema da Rú~ia comunista, como vocês
certamente compreendem, é acima <lc tudo um proble-
ma de conceitos genéricos,,, isto é, de um sistema de
.

abranger e pesar valores. E o problema de escolher e


separar o admissível do inadmissível; uma síntese de ex-
periência C<>m suas conseqüências, cm outras palavras,
com suas conclusões, que determina o gosto e o estilo da
vida, e de toda ação. Do que eu concluo que um conceito
genérico, na verdade, não é capaz de evoluir, sendo em
si mesmo um circuito fechado. Só se pode ficar dentro ou
for~ dele. Este é exatamente o caso do conceito de comu-
nismo. Para os que estão dentro do círculo, toda pergunta
e toda resposta já estão determinadas por antecipação.
Para concluir, eis o que cu gostaria de dizer. De ac<)rdo
com a atual mentalidade russa, existem basicamente duas
fórmulas que explicam o que é a música. Um tipo de
música seria de estilo mais ou menos profano; um outro
de estilo elevado e grandiloqüente. Kolkosianos cercados
de tratores e automáquinas (este é o termo) dançando
com razoável animação (de acordo com as exigências da
dignidade comu11ista) e acompanl1ados por um coro
popular: isto dá urna imagem adequada do primeiro tipo.
Fazer isso para o outro tipo, em estilo elevado, é bem mais
complicado. Aqui, a música é chamada a "contribuir para
a formação da personalidade humana imbuída do am-
biente desta grande época".
Um dos escritores mais apreciados pelos soviéticos,
Alexei Tolstoy, não hesita em escrever com a maior serie-
dade, referindo-se à Quinta Sinfonia de Shostakovich:
"A mtísica deve apresentar afónnula consurnada das tribulações
psicológicas da humanidade, deveria acumular a energia do
homem.
Aqui nós tentos a ..Sinfonia do Socialismo,.. Ela começa co1n o
largo das massas trabalhando no subterrâneo; um accelleranoo
corresponde ao sistema do metrô; o allegro, por sua vez, simbo-
lii.a uma gigantesca maquinaria de fábrica e sua vitória sobre a
nature1.a. O adagio representa a síntese da cultura, ciência e arte
L.:1~0:!:.6zl
I ======-..1111~1nLJI poética musical

soviéticas. O 1·chrno reflete a vida atlética dos felizes habitantes


da União. Quanto ao _fina/e, é a i1nagem da gr.itidão e do
entusiasmo das massas."
O que acabei de ,,.ler não é uma brincadeira que eu
mesmo engendrei. E citação literal de um musicólogo
considerado, publicada ,
recentemente cm uma publica•
ção oficial comunista. E, em seu gênero, uma consumada
obra-prima de mau gosto, enfermidade mental e comple-
ta desorientação no reconhecimento dos ,alores fun-
damentais da vida. Não deixa de ser o resultado (senão a
conseqüência) de um conceito estúpido. Para enxergar
claramente, a pessoa teria de livrar--se dele.
Quanto a mim, vocês entenderão facilmente, conside-
ro e~as duas fórmulas, essas duas imagens, igualmente
inadmissíveis, o mesmo que um pesadelo. A música não
é "um kolkosiano que dançaº, assim como não é a "Sin-
fonia do Socialismo". O que ela realmente é, tenho len-
tado dizer a vocês ao ]ongo de minha~ lições precedenles4
Talvez essas considerações
.,,.
lhes pareçam cheias de
dureza e amargura. E verdade. Mas o que ultrapassa tudo
é o espanto, eu poderia mesmo dizer a estupefação, em
que sempre me mergulha o problema do destino hir
tórico da Rússia, um problema que tem permanecido um
mistério por séculos.
A grande controvérsia dos "eslavófilos" e dos "ociden-
talistas", que se tomou o tema principal de toda a filosofia
e culrura r1 issa~, afinal não levou a nada.
Esses dois sistemas opostos falharam da mesma forma
no cataclismo da Revolução.
Apesar de todas as profecias messiânicas dos eslavófilos
- que enxergavam para a Rússia um caminho hi'itórico
inteiramente novo e independente da velha · Europa,
diante da qual esses eslavófilos só se curvavam como
diante de um túmulo sagrado-, a revolução comunista
jogou a Rú~ia nos braços do marxismo, um sistema
ocidental e europeu par excellena. Mas o que nos confun--
de totalmente é que esse sistema hiperintemacional está,
ele mesmot sofrendo uma rápida trdnsfclrmação, e vemos
os avc1tares da música russa cl=1I1::1I1~1==-----l.l.!.:10~7...11

a Rtís.~ia recaindo numa atitude da pior espécie de nacier


nalismo e chauvinismo popular, que mais uma vez a
separa radicalmente da cultura européia.
Isso significa que, depois de vinte e um anos de cata~
trófica revolução, a Rüs.1iia não pôde e não vai resolver o
seu grande problema histórico. Além disso, como chega-
ria ela algum dia a esse resultado se nunca foi capaz de
estabilizar sua cult11ra oude consolidar sua~ tradições? Ela
se encontra, como sempre se encontrou, numa encruzi-
lhada, encarando a Europa e, ao mesmo tempo, voltan-
derlhe ~ costas.
Nos diferentes ciclos de seu desenvolvimento e mcta-
niorfose histórica, a Rússia tem sido sempre infiel a ela
mesrna, tem sempre solapado as fundações de sua própria
cultura e profanado os valores dos períôdos que ficaram
,,.
para tras.
E agora qt1e, por necessidade> está tnais uma vez as-
sumindo suas tradições, ela se contenta com tun mero
simulacro, sem entender que o seu valor intrínseco, a sua
própria vida, desapareceu totalmente. Este é o fulcro
dessa grande tragédia.
Uma renov~ão só é frutífera quando anda de mãos
dadas com a tradição. A dialética viva requer que a reno-
vação e a tradição se desenvolvam e se ajudem mutua-
mcn te num processo simultâneo. Mas a Rú~ia tem visto
apenas conservadorismo sem renovação, o~ revolução sem
tradição, do que resulta esse assustador turbilhão sobre o
vácuo que sempre fez minha cabeça girar.
Não se surpreendam ao me ver terminar essa lição com
essas considerações gerais; mas, seja qual for o caso, a arte
não é e não pode ser "uma superestrutura baseada em
relações de produção/' de acordo com os desejos d<>s
marxistas. A arte é uma realidade ontológica, e, tentando
entender o fenômeno da música ru~a, cu não podia
deixar de fazer uma análise mais abrangente.
Sem dúvida, o povo russo está entre os mais dotados
para a música. Infelizmente, embora o russo possa saber
como raciocinar, a especulação não é certamente um de
..t=I======--..111.l.JIIL.JI poética musical
1:_:::0:=_8
L...:(

seus pontos fortes. Ora, sem um sistema especulativo, e


uma ordem de pensamento bem definida, a música não
tem valor ou mesmo existência como arte.
Se as oscilações da Rússia ao longo de sua história
me desorientam a ponto de fazer minha cabeça girar,
as perspectivas da arte musical russa não me desconcer-
tam menos. Pois a arte pressupõe uma cultura, uma
formação, uma estabilidade integral do intelecto, e a
Rússia de hoje nunca foi mais completamente des-
provida dessas coisas.
6
a performance musical
NECE.'iSÁRIO DISTINGUIR T>OIS momentos, ou melhor,
dois estados da música: música potencial e música
rea~._-~Tcndo sido fixada no papel ou retida na me-
mória, a música já existe antes de sua perf<)rmance efeti-
va, distinguindo-se nesse ponto de todas as outras artes,
assim como difere delas, como já vimos, nas categorias
que determinam sua percepção.
A entidade musical apresenta assim a notável singula-
ridade de englobar dois aspectos, de existir sucessiva e
distintamente em dt1as formas separadas uma da outra
pelo hiato do silêncio. Essa natureza peculiar da música
determina sua própria vida, bem como suas repercussões
no mundo social, já que ela pressupõe dois tipos de
músico: o criador e o executante.
. Observemos de passagem que a arte teatral, exigindo
a composição de um texto e sua realização em termos
orais e visuais, coloca um problema semelhante, senão
absolutamente idêntico; po~ há uma distinção que não
pode ser ignorada: o teatro apc]a para o nosso enten-
dimento dirigind<>-5e simultaneamente à visão e à audição.
Ürd, de todos os nos.4i05 sentidos, a visão é o que está mais
cstreitan1e11Le ligado ao intelecto, a audição sendo convoca-
da nes.5e caso através da linguagem articulada, veículo de
imagens e conceitos. Portanto, o leitor de uma obr~ dramá-
tica pode imaginar mais facilmente o que seria sua apre-
sentação efetiva do que o leitor de uma partilura ao
imaginar como soaria a realização concreta dessa partitu-
ra. E é fácil entender por que há muito menos leitores de
partituras orquestrais do qtte de livros sobre música.
-[1_1_2...,.l-----====-m~I;:~==i) poética musica 1

Ao lado dis.~>, a linguagem musical está estritamente


limitada pela notação. O ator dramático descobre, a~im,
que tem muito maior liberdade em relação ao cronos e à
entonaçãsl do que o cantor qtte está rigidamenLe preso
ao andamento e ao mel.os.\
Essa stüeição, que às vezes parece tão árdua ao exibi-
cionismo de certos solistas, está no próprio cerne da
questão que nos propon10s abordar agora: a queslão do
executante e do intérprete.
A idéia da interpretação implica as limitações impostas
ao músico, ou aquelas que este se impõe a si mesmo cn1 sua
fu~_ção própria, que é a de trans1nitir música ao ouvinte.
:A idéia de execução implica a estrita realização de um
desejo explícito, que não conté~ nada além do que ele
ordena
,
especificamente.
E o conflito desses dois princípios - execução e inter-
pretação - que está na raiz de todos os erros, de todos
os pecados, de todas as incon1preensões que se interpõem
entre a obra musical e o ouvinte, impedindo uma trans-
missão fiel da sua mensagem.'·
Todo intérprete é também·, necessariamente, um exe-
cutante. O inverso não é verdadeiro. Seguindo a ordem
de suce~ão mais que a da precedênciat examinaremos
primeiro o executante.
Costuma-se achar que o que é colocado diante do
músico é a música escrita onde a vontade do compositor
está explícita e facilmente discernível a partir de um texto
corretamente estabelecido. Porém. ·'~por mais que seja
escrupulosa a notação de uma peça musical;, por mais
cuidado que se tome contra qt1alquer ambiguídade pos-
sível, utilizando as indicações de andamento, nuances,
fraseado, acentuação e a~im por diantc,fela sempre con-
tém elementos ocultos que escapam a uma definição
precisa, pois a dialética verbal é impotente para definir a
dialética musical em sua totalidade. A realização desses
elementos é, assim, uma questão de experiência e intui..
ção; em suma, do talento daquele a quem cabe apresentar
uma obra.·
/ a performance musical l_l_l_l________l_11_3_)

P~r conseguinte, em contraste com o artesão das artes


plásticas, cuja obra acabada é apresentada à visão do
público de um modo sempre idêntico, o compositor
corre um risco inegável a cada vez que sua música é
tocada,já que, a cada vez, uma competente apresentação
de sua obra depende de fatores imprevisíveis e impon-
deráveis~ que se combinam para produzir as qualidades
de fidelidade e simpatia sem as quais a obra será irreco-
nhecível em determinada ocasião, inerte em outra, e, em
qualquer si tuac;ão, traída.
! Entre o simples executante e o intérprete no sentido
estrito da palavra existe uma diferença essencial que é a
de um caráter ético mais do que estético, uma diferença
que traz à tona uma questão de consciência: teorica--
men te, só se pode exigir do executante a tradução em
sons de uma determinada partitura, o que ele pode fitzer
de boa vontade ou com relutância, ao passo que se tem
o direito de pedir do intérprete, além da perfeição de
sua transposição sonora, um amoroso cuidado - o que
não significa, aberta ou sub-repticiamente, uma recom-
. -
pos1çao.i
.• J

O pecado contra o espírito da obra sempre começa


com um pecado contra sua literalidade, e leva às intermi-
náveis loucuras que uma literatura sempre florescente,
do pior mau gosto, faz o po~ível para sancionar. Segue-se
daí que um crescendo, como todos sabemos, é sempre
acompanhado de uma aceleração do movimento, en-
quanto um raumtando nunca deixa de ser acompanhado
por um diminuendo. O supérfluo é continuamente refina-
do; procura-se delicadamente um piano, piano piani..uimu,
grande orgulho é posto em aperfeiçoar nuances irrele-
vantes - uma preocupação que, em geral, anda lado a
lado com o ritmo impreciso...
Estas são algumas entre várias práticas apreciadas por
espíritos superficiais sempre ávidos por, e satisfeitos com,
um sucesso imediato e fácil que 1isonjeia a vaidade de
quem o obtém e perverte o gosto dos que o aplaudem.
Quantas carreiras rendosas foram iniciadas com essas
J:I======-..JllfwlIILJI
1:..!1.:.4
LI poética musical

práticas! Quantas vezes eu próprio não fui a vítima dessa


atenção equivocada de amantes de quintessências, que
queimam a pestana sobre um pianissimo sem nem mesmo
perceber erros colossais de expressão! Exceções, dirão
vocês. Os maus intérpretes não deveriam fazer com que
esquecêssemos os bons. Eu concordo obsenrando, entre-
tanto, que os maus são a maioria, e que os virtuoses que
servem a música com fidelidade e lealdade são muito mais
raros do que aqueles que, de modo a instalar-se confor..
tavelmentc no regaço de uma carreira, fazem com que a
, . .
mus1ca os snva.
Os princípios genéricos que governam a interpretação
dos mestres românticos, de modo especial, fazem desses
compositores as vítimas predestinadas das agressões crimi-
nosas de que estamos falando. A interpretação de~s
obras é governada por considerações extramusicais ba~ea-
das nos amores e infortúnios das vítimas. O título de uma
peça torna-■sc uma desculpa para arbitrariedades gratuitas.
Se a peça não tem título, logo se arranja um, a pari.ir dos
motivos mais fantasiosos. Estou pensando na sonata de
Beethoven que nunca recebe outro nome que não seja
"Ao luar", sem ninguém saber por quê; ou na valsa cm que
é obrigatório enxergar o "Adeus" de Chopin.
\Obviamente, não é sem razão que os piores intérpretes
normalmente se agarram aos românticos. Os elementos
extramusicais espalhados através dessas obras são um
convite à traição, ao passo que uma partirura na qual a
música parece não expressar nada além de si mesma
... _Não
resiste melhor a tentativas de deformações literárias.)
. é fácil conceber como um pianista poderia estabelecer a
sua reputação adotando Haydn como seu cavalo-de-bata-
lha. Esta é certamente a razão ~la qual esse grande
músico não obteve, entre nos.sos intérpretes, uma fama
condizente com seu verdadeiro valor.
Em termos de interpretação, o século passado nos
deixou como herança uma espécie curiosa e peculiar de
solista sem antecedentes no passado distante - um solista
chamado chefd 'orchestre ou spalia.
a performance musical _l_l_ll_ll________l _11_s_l

Foi a música romântica que dilatou indevidamente a


personalidade do Kappellmeister, a ponto de conferir-lhe
- ao lado do prestígio de que hoje goza no pódio, o que
já basta para concentrar a atenção sobre ele - o poder
discricionário que ele exerce sobre a música que lhe é
confiada. Empoleirado cm seu cstrddo, ele impõe seus
próprios n1ovin1entos, suas inflexões pessoais sobre a
obra que rege, e chega ao ponlo de falar com ingênua
falta de pudor sobre suas especialidades, de sua quinta,
de sua sétima, assim como um cozinheiro se gaba dos
pratos que ele mesmo prepara. Ouvindo-o falar, lembra-
rno-nos dos cartazes que recomendam locais de refeição
para os motoristas: "Neste ou naquele restaurante, seus
vinhos, seus pratos especiais".
Nunca houve coisa parecida no passado, em tempos
que, não obstantc,jásabiam bastante coisasobrevirluoscs
tirânicos, fossem eles instrurnentistas <>U prima-don~.
Mas esses tempos ainda não conheciam a competição e a
pletora de regentes que, quase sem exceção, aspiram a
estabelecer uma ditadura sobre a música.
Não pensem que exagero. Uma história que me conta-
ram há alguns anos mostra claramente a importância que
o regente vci<> a assumir nas preocupações do mundo
musical. Certo dia, uma pessoa que dirige uma grande
agência de concertos foi informada do sucesso obtido na
Rússia soviética por aquela famosa orquestrc1 sem regente
de quejá falamos antes. "Isso não faz muito sentido", disse
ela, "e na verdade não me interessa. O que cu realmente
gostaria de ver não era uma orquestra sem regente, n1as
um regente sem orquestra."
Falar de u1n inLérpretc é o mesmo que falar de um
tradutor. E não é sem raz.ão que um conhecido provérbio
italiano, fazendc> um jogo de palavras, compard a tradu-
._. ' . ..
çao a tra1çao.
~-Regentes, cantores, pianistas, todos os virtuoses deve-
riam saber ot1 lembrar que a primeira condição a ser
preenchida por quem aspire ao imponente título de
intérprete é a de que seja, antes de tudo, um executante
LI ======-..11ll1..IIL.JI
1!.!1~6.t:I poética musical

impecável. O segredo da perfeição reside antes de tudo


nessa consciência da lei que lhe é imposta pela obra que
está executando. E aqui estamos de volta ao grande prin-
cípio da submissão que invocamos tantas vezes, ao longo
dessas lições. ~a submissão exige uma flexibilidade que,
por sua vez, implica, ao lado do domínio técnico, um
sentido da tradição e, coroando tudo isso, uma cultura
aristocrática que não é apenas uma questão de conhe-
cimento adquirido. t
.-_J
Essa submissão e e~a cultura que exigimos do criador
deveríamos, muito justa e naturalmente, exigir também
do intérprete. Ambos encontrarão ali a liberdade no
extremo rigor, e, em última instância, se não em primei-
ra instância, sucesso - o suce~o verdadeiro, a legítima
recompensa dos intérpretes que, na expressão de seu
mais brilhante virtuosismo, preservam aquela modéstia
de movimentos e a sobriedade de expressão que é a marca
dos artistas de raça.
Eu disse em algum lugar que não era bastante ouvir
música, mas que ela também devia ser vista. O que dire-
mos do mau gosto desses pernósticos que, freqüente-
mente, propõem-se a traduzir o "sentido íntimo" da mú--
sica desfigurando-a com seus ares afetados? Pois, volto a
dizer, a música pode ser vista. Um olho experiente segue
e julga, às vezes de maneira inconsciente, os menores
gestos do músico. De~ ponto de vista seria ~ível conce-
ber o proc~ da execução musical como a criação de novos
valores que implicam a solução de problemas semelhantes
aos que se manifestam no plano da coreografia. Em ambos
os casos, damos especial atenção ao ~ontrole dos ge.stoo. O
dançarino é um orador que fala uma linguagem muda.
O instrumentista é um orador que fala uma linguagem não
articulada. A um, como a outro, a música impõe um com-
portamento estrito. Pois a música não se move no abstrato.
Sua tradução em termos prátic~ exige precisão e beleza: os
exibicionistas sabem disso muito bem.
A bela apresentação que faz a harmonia do que é visto
corresponder ao jogo dos sons exige não apenas boa
a performance musical ==---_;___.Jl~1~17::..JI
::11lt:tl1:I
t:I

instrução musical por parte do músico, mas também


supõe nele uma completa familiaridade, quer se trate de
cantores, instrumentistas ou regentes, com o estilo das
• a..11: • .,. _,__..-..

obras que lhes foram confiadas; um gosto seguro para os


valores expressivos e suas limitações, um sentido acurado
para aquilo que não pode ser subentendido - em uma
palavra, educação não apenas do ouvido, mas também do
espírito.
~ educação não pode ser adquirida nas escolas de
música e nos conservatórios, pois ensinar boas maneiras
não é o seu objetivo: muito raramente um professor de
violino chegará a sugerir a seus alunos que não é de
bom-tom, quando se toca, afastar demais uma perna da
outra.
Mesmo assim, é estranho que esse programa educacio-
nal não seja implantado em parte alguma. Enquanto
todas as atividades sociais são reguladas por normas de
etiqueta e boa educação, os músicos, na maioria dos casos,
continuam totalmente ignorantes dos preceitos elemen-
tares do bom comportamento musical, isto é, da boa
educação musical- uma questão de educação básica que
até uma criança deve aprender...
APaixãosegundoS&JMatew, dejohann Sebastian Bach,
foi escrita para um conjunto de câmara. Sua primeira
performance, em vida de Bach, foi perfeitamente reali~
da por um conjunto de trinta e quatro músicos, incluindo
os solistas e o coro. I~o é bem sabido. Apesar disso, em
nossos dias, não se hesita em apresentar a obra, em total
discordância com os desejos do compositor, com cente-
nas de executantes, algumas vezes quase mil. Essa falta de
entendimento das obrigações do intérprete, esm vaidade
arrogante em números, essa concupiscência da quanti-
dade denunciam uma completa falta de educação musi-
cal.
O absurdo de~ prática é escandaloso em todos os
sentidos, e acima de tudo do ponto de vista acústico. Pois
não basta que o som atinja o ouvido do público; também
se deve considerar em que condições, em que estado esse
. t: I======-.Jlull
1~1~8
LI _JI
.Ln poética musical

som é recebido. Quando a música não foi concebida para


uma grande massa de instrumentistas, quando o cornpo-
sitor não pretendeu produzir efeitos dinâmicos maciços,
quando o arcabouço está fora de proporção co1n as
dimensões da obra, a multip1icação do número de músi-
cos só pode produzir efeitos desastrosos.
O som, assim como a luz, atua de maneira diferente de
acordo com a distância que separa o pont<l de emissão do
ponto de recepção. Uma massa de músicos instalada
numa plataforma ocupa um espaço que se torna propor-
cionalmente maior à medida que aumenta sct1 número.
Aumentando o número de pontos de emissão, aumenta-
se a distância que separa esses pontos uns dos outros, e
do ouvinte. De modo que quanto mais se n1ultiplicar os
pontos de emissão, mais difusa será a recepção.
1t:m qualquer caso, o dobramento da~ partes aumenta
o peso da música, e constitui um perigo que só pode ser
evitado através de um cuidaclo infinito. Essas adições
exigem u1na proporção sutil e delicada que, por sua vez,
pressupõe segurança de gosto e discernimento cultural.
Acredita-se 1nuitas vezes que uma sensação de poder
pode ser ampliada indefinidamente multiplicando-se o
dobramento de partes orquestrais - uma crença total-
mente falsa: tornar mais espesso não é tornar mais pode-
roso. Numa certa medida, e até certo ponto, o dobramen-
to pode dar a ilusão da força efetuando uma reação de
ordem psicológica no ouvinte. A sensação de chc>que
simula um efeito de p<lder, e ~juda a estabelecer uma
ilusão de equilíbri~ entre as massas sonoras. Muita coisa
pôderia ser dita a es.~ respeito sobre o equilíbrio de forças
na orquestra moderna, um equilíbrio que pode ser mais
facilmente explicado por nossos hábitos auditivos do que
justificado
,,.
por uma proporção exata.
E um fato concreto que, para além de um certo grau
de intensidade, a ilusão de força diminui em vez de
aumentar, e só consegue embotar a sensação.
Os músicos deverian1 con1eçar a perceber que vale
para sua arte o mesn10 que para os outdoors: que ex-
a performance musical t:I:::1lt:tl:11:I==--------1.l.!11!.:9~1

plosões sonoras não mantêm a atenção do ouvido -


assim como os técnicos em propaganda sabem que letras
grandes demais não atraem a vista.
Uma obra de arte não pode bastar..se a si mesma. Uma
vez concluída sua obra, o criador sente necessidade de
partilhar sua alegria. Ele procura naturalmente estabe-
lecer contato com seu semelhante, que, nesse caso, pas.5a
a ser o ouvinte. O ouvinte responde e torna--se parceiro
no jogo iniciado pelo criador. Nada menos e nada mais
elo que isso. O fato de que o parceiro está livre para aceitar
ou recusar sua panicipação no jogo não o investe auto-
maticamente da at1toridade de umjuiz.
A função de juiz pressupõe um código d~_~?JlÇÕes que
não está à disposição da sin1ples opinião. 1E é bastante
ilícito, a meu ver, estabelecer o público como un1 júri,
confiand~lhe a tarefa de emitir um veredicto sobre o
valor da obra.Já é bastante que o público seja chamado
a decidir sobre seu destino final.
O destino de uma obra, naturalmente, depende cm
última análise do gosto do público, de suas variações de
humor e de hábito; em st1ma, de suas preferências. Mas
o destin<> de uma obra não depende do julgamento do
público como se fosse uma sentença sem apelação./
Chamo a atenção de vocês para esse ponto-·éa-pital:
considerem de um lado o esforço consciente e a organi-
zação paciente que exige a composição de uma obra de
arte, e por outro lado o julgamento - que é no mínimo
apressado e necessariamente improvisado- que se segue
à apresentação da obra. A desproporção entre os deveres
daquele que compõe e os direitos dos que a julgam é
clamorosa, já que a obra apresentada ao público, seja
qual for o seu valor, é sempre fruto de estudo, raciocínio
e cálculo, o que implica exatamente o contrário da im-
. -
proV1zaçao.
Permiti-me demorar um pouco nesse tema de modo a
explicar-lhes com mais clarezaíonde reside a verdadeira
relação entre o compositor e o público, o intérprete
agindo aí como intermediárig~ Assim vocês podem per-
======-..11lwlILJI
~(1~2:.:=_0..t:I poética musical

ceber mais plenamente a responsahilidade moral do in-


té_J]>rete.
Í Pois só através do músico é que o ouvinte pode entrar
em contato com a obra musical. A fim de que o público
pos.,a saber o que é uma obra e qual o seu valor, esse
público deve primeiro ter certeza do mérito daquele que
apresenta a obra, e da conformidade dessa interpretação
com a vontade do composito~J
... A tarefa do ouvinte toma-se especialmente árdtta
quando se trata de uma primeira audição; pois o ouvinte 1

n~e caso, não tem pontos de referência, nem possui


uma base para comparaçõe_~: :
Daí a primeira impressão, sempre tão importante, e o
primeiro contato da obra recém--nascida com o público
ficarem totalmente dependentes da validade de uma
apresentação que foge a qualquer controle.
Esta é portanto a nossa situação diante de uma obra
não public.ada, quando a qualidade dos intérpretes que
estão diante de nós não garante que o compositor não
será traído, e que nós mesmos não seremos enganados.
Em cada período, a formação de um':' elite nos deu essa
garantia antecipada em matéria de relações sociais, per-
mitindo plena confiança nos músicos desconhecidos que
se nos apresentam sob a égide daquele comportamento
sem falhas que a educação proporciona. Quando falta
uma garantia des.,e tipo, no~as relações com a música são
sempre insatisfatórias. Vocês entenderão, sendo a situa-
ção o que é, por que colocamos tanta ênfase na impor-.
tância da educação quando se trata de música.
p
1 ,·-·

Dissemos, anteriormente, que ouvinte era chama-


do, de certo modo, a ser o parceiro do compositor. Isso
pressupõe que a instrução musical e a educação do ou-
vinte sejam suficientemente amplas para que ele possa
não apen~ captar as principais características de uma
obra à medida que elas emergem, mas também que possa
seguir, até um certo ponto, os aspectos mutáveis de seu
desenvolvimento.:
a performance musical 11::::=:______JIL!l.:.21!.J)
t:I::::1llt:::tl

Na verdade, essa participação ativa é uma coisa in-


discutivelmente rara, ~im como o criador é um fenôme-
no raro dentro da m~a da humanidade. Essa participa-
ção excepcional dá ao parceiro tanto prazer vital que ele
se vê unido, em certa medida, ao espírito que concebeu
e realizou a obra que ele está ouvindo, dando-lhe a ilusão
de identificar-se com o próprio criador. Este é o sentido
da famosa frase de Rafael: compreender é igualar.
1,-.. . .
Esse entendimento, porém, é exceção;( a massa co-
mum dos ouvintes, por mais atenta que se possa imaginar
que esteja ao processo musical, apreciará a música apenas
\

de um modo passive>. ) ·
~~~

Infelizmente, ainda existe uma outra atitude em rela-


ção à música, que difere tanto da do ouvinte que se
entrega à cerelaboração da música - participando do
processo de criação e seguindo-o passo a pas.so - quan lo
da atitude do ouvinte que tenta docilmente caminhar
junto à música: pois agora precisamos falar da apatia ou
da indiferença. Esta é a atitude dos esnobes, dos falsos
• A •

entusiastas que veem num concerto ou numa interpreta-


ção exclusivamente uma oportunidade de aplaudir um
grande regente ot1 um famoso virtuose. Temos apenas de
olhar um momento para aqueles rostos "cinzentos de
tédion, segundo a expressão de Debussy, para medir o
poder que tem a música de induzir a uma espécie de
idiotia aqueles infelizes que escutam sem ouvir. Aqueles
de vocês que me deram a honra de ler as Chroniqu.es de ma
vi.e talvez se lembrem de que acentuo esse aspecto em
relação à música mecanicamente reproduzida.
\ Ã difusão da música por todos os meios possíveis é,
em si mesma, uma coisa excelente; mas espalhando-a em
todas as direções sem tomar certas precauções, ofere-
cendo-a displicentemente a um público que não está pre-
parado para i~, deixa-se esse público exposto a uma
saturação mortal.
Já se foi o tempo em que Johann Sebastian Bach fazia
uma longa viagem a pé para ouvir Buxtehude. Hoje, o
rádio faz a música invadir os lares a todas as horas do dia
. t:I======-..11lwlnL.J1
1~1~2~2 poética musica,

ou da noite. Poupa o ouvinte de qualqt1er esforço que


não seja o de girar um botão. Ora, o sentido musical não
pode ser adquirido ou desenvolvido sem exercício. Em
música, como em tudo o mais, a inatividade leva pouco a
pot1co à paralisia, à atrofia das faculdades. Entendida
de~a maneira, a música se transforma numa espécie de
droga que, longe de estimular a mente, só consegue pa-
ralisá-la e embotá-la. Assim, ocorre que o próprio esforço
de fazer as pe~oas gostarem de música, proporcionando-
lhes uma oferta cada vez mais vasta, muitas vezes não faz
senão essas pessoas perderem o seu apetite pela música
para a qual se pretendia despertar o interesse e o gosto.
~.
:,_~
epílogo
HEC:OA.~IMAOFlNAL de meu trabalho. Permitam-me,
antes de concluir, expres.~r a grande satisfação que
sinto quando penso na atenção que meus ouvintes
me dedicaram, atenção que eu gostaria de considerar o
sinal exterior da comunhão que tão ardentemente dese-
jei estabelecer entre nós.
Essa comunhão será, à maneira de um epílogo, o tema
das poucas palavras que eu gostaria de dizer a respeito do
significado da música.
Estabelecemos entre nós um contato recíproco sob os
severos auspícios da ordem e da disciplina. Afirmamos o
princípio da vontade especulativa que está na raiz do ato
criador. Estudamos o fenômeno da música como uma
forma de especulação em termos de som e tempo. Pas-
samos em revista os objetivos formais do artesanato mu-
sical. Abordamos o problema do estilo e examinamos a
biografia da música. Nesse contexto, a título de exemplo,
acompanhamos os avatares da música russa. f'inalmente,
examinamos os diferentes problemas suscitados pela in-
terpretação da música.
Ao longo dessas lições, referi--me em diferentes oca-
siões à questão essencia] que preocupa o músico, assim
como ela atrai a atenção de todas as pessoas movidas por
um impulso espiritual. Essa questão, como vimos, acaba
sempre remetendo à procura do Um entre as vastidões
do Múltiplo.
Assim, para concluir, vejo-me mais uma vez diante do
eterno problema implícito em toda pesquisa de caráter
ontológico, um problema para o qual todo homem que
L:1~2:::.6..t:I
l ======-..1111~1111-I_.I poética musical

abre seu caminho pelo reino da dessemelhança - seja


ele tun artista, um f'isico, um filósofo ou um teólogo - é
inevitavelmente atraído por força da própria estn1tura de
seu entendimento.
Oscar Wilde afirmou que todo autor sempre pinta seu
próprio retrato: o que eu obseivo nos outros deve, da
mesma maneira, serobscnráve1 em mim. Tem-se a impres-
são de que a unidade que estamos buscando é forjada sem
que percebamos como, e se estabelece dentro do&.Jjmites
que impomos ao nosso trabalho. Quanto a mim, 11ma \w.
inclinação natural me leva à busca da sensação em todo
o seu frescor, descartando o que é de segunda mão, o que
é batido - em uma palavra, o inautêntico - , estou
apesar disso convencido de que se ficannos mudando
incessantemente de caminho, acabaremos apenas numa
curiosidade fútil. Eis pc>r que considero sem sentido e
perigoso o contínuo refinamento de técnicas de desco-
berta. Uma curiosidade que é atraída por tudo denuncia
um desejo de estabilidade na multiplicid~'Mas esse
desejo nunca pode encontrar verdadeiro ahmcÍlto numa
variedade interminável. A persistir nesse caminho, adqui-
rimos apenas uma falsa fome, uma (é:l_l!a sede; falsas, na
verdade, porque nada pode saciá-las.\ E tão mais natural
e salutar esforçar-se na direção de u~a realidade
, única,
limitada, do que na de uma divisão infinita ... r
Dirão vocês que isso equivale a fazer o elogio da mono-
tonia?
Dionísio Arcopagita sustenta que quanto maior a dig-
nidade dos anjos na hierarquia celeste, menos palavras
eles pronunciam; de modo que o mais elevado de todos
pronuncia .uma única sílaba. Seria este um exemplo da
monotonia
..
,,- -·
contra a qual temos de nos proLeger?
}Na verdade, não há confusão po~ível entre a monoto-
nia que nasce de uma falt:'l de variedade e a unidade que
é a harmonia das variedades, uma ordenação do Múlti-
1

pi?=-:
"A música", diz o sábio chinês Tchen-ma-tsen em suas
memórias, "é o que unifica". Esse laço de unidade nunca
,-===========i,-1-27-)
epílogo -,-,--,

é obtido sem uma árdua busca. Mas a necessidade de criar


deve eliminar todos os obstáculos. Penso, nes.se contexto,
na parábola do Evangelho que fala da mulher em traba-
lho de parto, "sofrendo porque sua hora chegou; mas
assim que está livre da criança, ela já não se lembra da
angústia, pela alegria de ter posto no mundo uma nova
criatura" Como deixar de sucumbir à necessidade irresis-
tível de partilhar com os nossos semelhantes essa alegria
que sentimos quando vemos nascer algo que tomou for-
ma através de n ~ própria ação?
Pois a unidade da obra tem uma ressonância toda pr&
pria. Seu eco, captado pela nossa alma, soa cada vez mais
próximo. E assim a obra acabada flui para ser comunicada,
até, mais adiante, refluir para sua fonte. O ciclo se fecha. E
a5Sim a música revela-se como urna forma de comunhão
com no~o semelhante - e com o Ser Supremo.
Este livro túi <:otnposto pela ·r<-·xto.s & For-
mas e itnprc.~so, crn agosto de 1996. p<·la
Folha Carioca, sohn~ papel pólen 70 g/n1'l
fahricado pela Cia. Suzano de Papel e t-:Clu-
lose e fornecido por Pa~i!I; Mil e lJ n1 Ltda.

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