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POEMAS

Sete anos de pastor, Jacó servia


Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela
E a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia


Passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo triste pastor que com enganos


Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,


Dizendo: - Mais servira, se  não fora
Para tão longo amor tão curta a vida.

( Camões)
Língua  
1
no princípio
toda língua é estrangeira
 
acerca-se do seu corpo como de uma cidade
até tomá-lo
fazê-lo chamar-se a si mesmo pelos nomes
que lhe dá
pé perna barriga dentes
fazer a língua chamar-se língua
chamar-se a si mesma pelo nome dela
língua
acerca-se até domá-la
para ensinar-lhe uma coreografia sua
que ela, língua, por sua vez
ensina ao pensamento
cantando
 
estar na língua como numa
casa louca
que obriga ao abrigar
 
ela pensa o seu sexo
ela pensa o seu coração
abrindo-o
 
ela é música
e combate
 
ela fala na sua boca
com a boca dos mortos
 
ela é a eletricidade
dos cadáveres
 
daqueles cuja boca ela encheu
antes da terra
 
ela cria raízes no seu corpo
dela não é possível se livrar
 
você é livro
dela
 
e se aprende outra
é contra ela
contra sua memória
excessiva
e em viagem
com ela
que te cobra e cobre
como um mar
Ana Martins Marques

O pássaro azul
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei
que ninguém o veja.

há um pássaro azul em meu peito que


quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.

há um pássaro azul em meu peito que


quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí, quer acabar
comigo?
quer foder com minha
escrita?
quer arruinar a venda dos meus livros na
Europa?

há um pássaro azul em meu peito que


quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo, sei que você está aí,
então não fique
triste.
depois o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
com nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar, mas eu não
choro, e
você?

(Tradução: Paulo Gonzaga)

amortemor

Augusto de Campos

O apanhador de desperdícios
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

( Manoel de Barros)

Poema de Sete Faces


Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens


que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:


pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode


é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste


se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,


se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,


desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

( Adélia Prado)
Visitas ao lugar-comum

( Ana Martins Marques)

Quebrar o silêncio

e depois recolher

os pedaços

testar-lhes o corte

o brilho

cego

2
Pagar para ver

e receber

em troca

vistas parciais

uns cobres

de paisagem

Dobrar a língua

e ao desdobrá-la

deixar cair

uma a uma

palavras

não ditas

Perder a hora

e encontrá-la depois

num intervalo

de teatro

nos cantos empoeirados

do domingo

entre um telefonema e outro

dentro do táxi

Dar à luz
e então sondar

num átimo

de abismo

– como um espeleólogo

um cosmólogo

um cenógrafo

um guarda-noturno –

a própria

escuridão

Perder a cabeça

e então buscá-la

nos últimos lugares

em que esteve

dentro da touca

de banho

sobre o travesseiro

entre os joelhos

entre as mãos

na casa demolida

da infância

sobre suas coxas

mornas

ainda
7

Tirar fotografias

e depois devolvê-las

àqueles de quem as tiramos

à mulher fora de foco

em seu vestido violeta

à casa de janelas verdes

às paisagens

tomadas emprestadas

à casca

de cada coisa

aos vários ângulos

da Torre Eiffel

ao cachorro morto

na praia

Cortar relações

e depois voltar-se

verificar se o que restou

suporta

remendo

demorar-se

sobre a cicatriz

do corte
(guardar

por precaução

a tesourinha

para mais tarde)

Esperar

horas a fio

e então

desvencilhar-se

das coisas tecidas

na espera

dos ponteiros do relógio

cada um mais lento

que o outro

dos pelo menos

dez cigarros

das poltronas de mogno

uma delas

vazia

10

Quebrar promessas

e ao recolher os cacos

discerni-los

entre aqueles
do silêncio

quebrado

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