Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
( Camões)
Língua
1
no princípio
toda língua é estrangeira
acerca-se do seu corpo como de uma cidade
até tomá-lo
fazê-lo chamar-se a si mesmo pelos nomes
que lhe dá
pé perna barriga dentes
fazer a língua chamar-se língua
chamar-se a si mesma pelo nome dela
língua
acerca-se até domá-la
para ensinar-lhe uma coreografia sua
que ela, língua, por sua vez
ensina ao pensamento
cantando
estar na língua como numa
casa louca
que obriga ao abrigar
ela pensa o seu sexo
ela pensa o seu coração
abrindo-o
ela é música
e combate
ela fala na sua boca
com a boca dos mortos
ela é a eletricidade
dos cadáveres
daqueles cuja boca ela encheu
antes da terra
ela cria raízes no seu corpo
dela não é possível se livrar
você é livro
dela
e se aprende outra
é contra ela
contra sua memória
excessiva
e em viagem
com ela
que te cobra e cobre
como um mar
Ana Martins Marques
O pássaro azul
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei
que ninguém o veja.
amortemor
Augusto de Campos
O apanhador de desperdícios
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
( Manoel de Barros)
( Adélia Prado)
Visitas ao lugar-comum
Quebrar o silêncio
e depois recolher
os pedaços
testar-lhes o corte
o brilho
cego
2
Pagar para ver
e receber
em troca
vistas parciais
uns cobres
de paisagem
Dobrar a língua
e ao desdobrá-la
deixar cair
uma a uma
palavras
não ditas
Perder a hora
e encontrá-la depois
num intervalo
de teatro
do domingo
dentro do táxi
Dar à luz
e então sondar
num átimo
de abismo
– como um espeleólogo
um cosmólogo
um cenógrafo
um guarda-noturno –
a própria
escuridão
Perder a cabeça
e então buscá-la
em que esteve
dentro da touca
de banho
sobre o travesseiro
entre os joelhos
entre as mãos
na casa demolida
da infância
mornas
ainda
7
Tirar fotografias
e depois devolvê-las
às paisagens
tomadas emprestadas
à casca
de cada coisa
da Torre Eiffel
ao cachorro morto
na praia
Cortar relações
e depois voltar-se
suporta
remendo
demorar-se
sobre a cicatriz
do corte
(guardar
por precaução
a tesourinha
Esperar
horas a fio
e então
desvencilhar-se
na espera
que o outro
dez cigarros
uma delas
vazia
10
Quebrar promessas
e ao recolher os cacos
discerni-los
entre aqueles
do silêncio
quebrado