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A ruína e a flor da Cidade Alta

(Distopia)

O laptop processava os arquivos descarregados. Davi olhou o céu através da


janela do comboio em movimento. As miríades de astros seguiam seus percursos,
eternos e iguais, como se houvesse um objetivo naquela repetição, guiando as
gerações dos homens. Algo que permanece enquanto as coisas morrem e são
esquecidas.

Ele observava o céu quando garoto, fantasiando eventos possíveis e


impossíveis; uma existência em seu coração que jamais viveria. Voltando a si, era
testemunha da aflição de um mundo decadente. Na favela onde morava, casebres
arruinados no chão de barro e pessoas rastejando sob o efeito de alucinógenos.
Quando ia à escola técnica aprender eletrônica, passava por trechos inteiros de
calçada com gente caída no meio fio, e muros pichados com palavras e siglas de
significados incompreensíveis. Várias vezes ouviu o irmão dizer que os viciados
eram a parte da população marginal mantida sob controle. Um dia, seu irmão saiu
de casa e não voltou mais.

Apenas as estrelas misericordiosas no céu traziam-lhe alguma beleza. Certa


vez ele viu um veículo aéreo policial pousar no meio daquela favela, e os tripulantes
prenderam criminosos tomados pelo frenesi da bestialidade. Sonhou vestir as
roupas, manobrar o veículo e atirar com as armas, e decidiu tornar-se um daqueles
homens fardados.

Seu pai levou-o até o centro de recrutamento da polícia, formou-se soldado e


aprendeu que nunca chegaria aos postos mais altos e jamais pilotaria um carro
aéreo como aquele. Foi designado para servir longe de casa; nunca mais veria seu
pai. Quando saía do serviço, ia às bodegas nos subúrbios e lutava com os bêbados
e os indigentes; tinha apenas 19 anos. No trabalho, os colegas perguntavam a
origem das cicatrizes, e os superiores fingiam não percebê-las.

Numa dessas noites de violência, viu um homem vestido distintamente, com


trajes que pareciam de outro tempo. Era uma túnica completamente branca,
imaculada. Utilizava um pano vermelho na cabeça com duas faixas pretas
amarrando-o na testa.

“Ei, quem é você?”

“Pode sentar aqui. Pago tuas bebidas.”

“O que eu poderia querer contigo, senhor fantasia?”

O homem apontou para alguns cantos escuros daquela pocilga. Havia


homens armados nas sombras. Retirou cédulas de uma carteira e colocou em cima
da mesa. Fazia tempo que ele não via o papel. Quase todas as transações
financeiras eram feitas por transferências eletrônicas. Sentou-se e olhou nos olhos
do sujeito.

“Chamo-me Hamraj e sei por que és insatisfeito. Procuras a violência nesses


lugares por conta do desejo de sentir a potência de controle onde tudo parece
descontrolado. Eu vim aqui pra te encontrar, e dar a oportunidade de lutar por algo
maior. E eu pago bem.”

“O que é maior do que viver e sentir prazer? Nada tem sentido.”

Hamraj sorriu. “Você é jovem. Deve ter ouvido isso de alguém mais velho e
sabe que é mentira. Os jovens tem um impulso dentro de si para alcançar a
grandeza. Não se engane com gente que quer te privar da verdade com uma vida
sem dor. Você procura briga nesses lugares imundos, em um raciocínio mais ou
menos louco e inconsciente, porque sabe que a dor tem um propósito na vida de
todos. Tome este dinheiro e compareça neste lugar.”

Ele olhou novamente para o computador diante de si. Tem 25 anos. Os


arquivos eram lentamente processados; pensou no trabalho que teria à frente. Ao
seu redor, naquele vagão, alguns companheiros dormiam, outros fumavam e
conversavam. Levantou-se e foi até eles.

“... estou dizendo, a palavra apocalipse é suscetível a algum significado


psicológico para aqueles que não acreditam em nenhum dogma religioso. Você
pode não acreditar em religião, mas sabe que vai morrer, então, você acredita em
uma espécie de apocalipse de uma forma ou de outra. Olha pra nossa sociedade
hoje, quem não vê um apocalipse nesse lugar deve viver em outro mundo, como os
moradores dos Jardins Celestes”, disse José, enquanto pegava um amassador pra
compactar o tabaco no cachimbo.

“José, alguma vez você pegou uma mulher com essa conversa?”

Todos riram, e José pitava o cachimbo sardonicamente. Ele era um ex-


pregador, e se unira àquele grupo por razões tão incompreensíveis quanto eram as
razões de uns para os outros. Ainda assim, sentiam-se conectados por alguma
razão universal, apóstolos de uma nova existência.

Olhando para baixo da janela do comboio, era possível ver a estrada maglev
aérea, e o solo distante, com os pontos de luz lá embaixo. Ao longe eram visíveis
também as aeronaves policiais. Estavam saindo da Cidade Média e adentrando a
Cidade Alta. Ali não havia prédios altíssimos como os da Cidade Média, nem os
casebres imundos e as ruínas das favelas. Era uma arquitetura harmoniosa e bela,
como se fosse impossível alguém sujar aquele lugar. Ele se perguntava se os
Jardins Celestes eram ainda mais belos. A vibração da desaceleração do trem
acordava os adormecidos, que resmungavam ao levantar. Todos se esconderam
debaixo das mantas de carga.

As luzes dos vagões acenderam, e policiais subiram revistando a carga e a


identificação. “É o comboio de suprimentos da ala leste 3”, um deles disse.

“Amanhã vou ver a luta do Macer contra esse cara que tem células sintéticas
nos braços”.

“Não dá pra um natural ganhar desses caras, vai ser outra surra. É uma grana
ganha só pra apanhar”.

“Ei sargento, nosso turno tá acabando, vou liberar aqui. Pede nosso agrado lá
na frigorífica.”

Continuaram por ali conversando e trabalhando displicentemente por mais um


tempo. Logo saíram. O trem começou a vibrar e acelerou novamente, e as luzes
apagaram-se.
Na próxima parada, em uma estação de transbordo, o robô central de
descarga estava com defeito. Alguns técnicos vinham consertá-lo, e um gerente
desesperado gritava com os empilhadores para adiantarem o serviço. Dezenas de
homens entravam nos vagões para arrumar as caixas em cima dos garfos das
empilhadeiras, e outros passavam um leitor digital nos códigos das caixas. O grupo
saía de debaixo das mantas e eles arrumavam as caixas nos garfos e desciam dos
vagões, misturando-se naquele caos.

Não se falavam e agiam conforme o plano ensaiado. Um dos membros do


grupo acenava para alguns outros fazendo o número 3 com os dedos. José e Davi
subiram num caminhão levando algumas caixas fechadas e revestidas com chumbo.
José ligou o veículo e dirigiu para fora da estação.

Davi conectou o laptop em um dispositivo dentro do caminhão, fazendo a


interação com a interface eletrônica no veículo. Abriu uma tela com um prompt de
comando, e curvou-se, digitando caracteres e números pelas linhas, como se
estivesse interligado a alguma entidade sobrenatural, concentrado em sua tarefa
como um mago empenhado em unir as dimensões entre o mundo que será e o
mundo que é.

Quando acabou, soltou um suspiro. O ex-pregador dirigia o caminhão


assobiando uma melodia folclórica e ele começou a observar a madrugada pelas
ruas da Cidade Alta; eram silenciosas, com muitos prédios baixos e praças amplas;
algumas casas pareciam ter sido transportadas de um passado longínquo. Ao longe,
outra viatura os seguia. Saíram da zona urbana e dirigiam por um ermo florestal com
árvores exuberantes. A madrugada clareava e o céu distante era azul-avermelhado;
parecia que José desacelerava o caminhão propositalmente, como se estivesse
homenageando a sacralidade daquele amanhecer.

“Iniciando a sondagem do veículo, favor direcionar os olhos aos pontos de luz


correspondentes”, disse uma voz vinda de um autofalante dentro do caminhão. José
parou, e eles desceram. Após algum tempo, ouviram o autofalante dizer
“prossigam”. O caminhão partiu lentamente, automático, sem motorista ou
passageiro.
“Você é realmente um gênio, garoto”. Disse José. “Será que a explosão
alcança o reator da usina?”

Davi meneou a cabeça. Ele não saberia dizer com certeza. Voltavam
caminhando calados. A leve brisa, as folhas e o cheiro de mato envolviam-no em
melancolia. Ele contemplava o sol penetrar pelas copas das árvores. Cada passo ali
dado ele não daria novamente. Chegaram até o carro que os acompanhava de
longe, e entraram fazendo um sinal positivo com os dedos.

O carro voltava vagarosamente à zona urbana. Um leve tráfego naquela


manhã. Ele viu uma garota com um vestido e uma fita branca amarrando os cabelos.
Ela tentava arrancar uma flor de um canteiro desde a raiz, uma peônia vermelha; a
flor resistia como se não quisesse pertencer ao mundo fora do canteiro. Ela levantou
o olhar, e viu Davi a observando. Acenou com a mão e sorriu. Ela finalmente
arrancou a peônia pela raiz, e Davi notou que a flor não parecia mais viçosa e
bonita.

Ele olhou para cima e viu o céu claro e pensou que aquele dia estava bonito
como todos os dias que foram e como todos os dias que serão. Ele havia adentrado
aquele grupo e prosseguia porque não podia mais voltar atrás. Poucos anos de vida
e todos tão próximos da morte. Procurou novamente a garota, buscando enxergar o
que não era visível, mas o carro já se afastara e ele não podia mais vê-la.

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