Centro d~ Investigação e Divulgação

Publicações CIO
Exegese/ 3
A MESA DA PALAVRA
Ano B
Coordenadores :
Arcãngelo R. Buzzi
Leonardo Boff O>mentário Bíblico-Litúrgico

[!]
Petrópolis
1983
© 1982, Editora Vozes Lida SUMÃRIO
Rua Frei Luís, 100 ·
25600 Petrópolis, RJ
Brasil

Apresentação .................................................. . 7
8
1ntrodução .......................... · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · ·
Primeiro Domingo do Advento .................................. . 11
Segundo Domingo do Advento ................................. . 19
Terceiro Domingo do Advento .................................. . 26
Quarto Domingo do Advento ................................... . 34
Natal: Vigília ................................................. . 41
Natal: Terceira Missa ......................................... . 50
Festa da Sagrada Familia ...................................... . 53
Ano Novo: Oitava do Natal .................................... . 57
Epifania do Senhor ............................................ . 62
Batismo do Senhor ............................................ . 67
Quarta-feira de Cinzas ......................................... . 73
Primeiro Domingo da Quaresma ................................ . 76
Segundo Domingo da Quaresma ................................ . 84
Terceiro Domingo da Quaresma ................................ . 94
Quarto Domingo da Quaresma .................................. . 102
Quinto Domingo da Quaresma .................................. . 110
Domingo de Ramos ou da Paixão .............................. . 117
Quinta-feira Santa ............................................. . 128
Sexta-feira Santa .............................................. . 134
Sábado Santo: Vigília ......................................... . 141
Domingo da Páscoa ........................................... . 146
Segundo Domingo da Páscoa .......................•............ 153
Terceiro Domingo da Páscoa ................................... . 162
Quarto Domingo da Páscoa .................................... . 173
Quinto Domingo da Páscoa .................................... . 185
Sexto Domingo da Páscoa ..................................... . 194
Sétimo Domingo da Páscoa: Ascensão do Senhor ............. : .. . 206
Domingo de Pentecostes ....................................... . 213
Solenidade da Santíssima Trindade ............................. . 217
Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo .............. . 226
Segundo Domingo do Tempo Comum ............................ . 235
Terceiro Domingo do T·empo Comum ........................... . 245
Quarto Domingo do Tempo Comum ............................ . 254
Quinto Domingo do Tempo Comum ............................ . 262
Sexto Domingo do Tempo Comum ............................. . 271
Sétimo Domingo do Tempo Comum ............................ . 279
Oitavo Domingo do Tempo Comum ............................. . 287
Nono Domingo do Tempo Comum ............................. . 294
Décimo Domingo do Tempo Comum ............................ . 305
Décimo Primeiro Domingo do Tempo Comum .................... . 317
Décimo Segundo Domingo do Tempo Comum .................... . 326
Décimo Terceiro Domingo do Tempo Comum .................... . 333
Décimo Quarto Domingo do Tempo Comum ..................... . 342
Décimo Quinto Domingo do T·empo Comum ..................... .
Décimo Sexto Domingo do Tempo Comum ...................... .
352
359
366
•
Décimo Sétimo Domingo do Tempo Comum ..................... .
 J
o

Décimo Oitavo Domingo do· Tempo Comum ..................... . 374

~~c!~º Nono ~omingo do Tempo Comum ...•................... 383
~g~s~mo D'?nu~go do Tempo Comum .......................... . 391
V~ges~mo Prime.iro Donúngo do Tempo Comum .................. . 397
V!gés~mo Segundo Domingo do T~mpo Comum .................. . 405
V~gés1mo Terceiro Domingo do Tempo Comum ...•..•............ 413
V!g~"!mo Qu~rto Domingo do Tempo Comum ................... . 420
V!ges~o Quinto Domingo do Tempo Comum ................... . 430
Vigésimo Sexto Domingo do Tempo Comum ................•..... 439
Vigésimo Sétimo Domingo do Tempo Comum .................... . 446
V!gés~mo Oitavo Domingo do Tempo Comum .................... . 453
Vigésimo Nono Domingo do Tempo Comum .•.................... 462
Trjgéslmo Domingo do Tempo Comum .......................... . 469
Tr~g~s~mo Primeiro Domingo do Tempo Comum ................. . 477
Tr1gesimo Segundo Domingo do Tempo Comum ............•..... 487
Trigésimo Terceiro Domingo do Tempo Comum ................. . 4.95
Solenidade de Cristo, Rei do Universo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 503
Principais Festas e Solenidades Durante o Ano .............. : .. : : 511
Apresentação do Senhor (2 de Fevereiro) ....................... . 511
!ão J~sé~ Esposo da Virgem .Maria (19 de Março) ............... . 517
nunCJaçao do Senhor (25 de março) ........................... . 522
Sagrado Coração de Jesus (Anos, A, B e C) .................... . 524
~ativid:'de de São João Batista (24 de junho) ................. . 540
T ssunçao de Nossa Senhora .......... , ........................ . 547
odos os Santos ........................................ . 547
Santos Apóstolos P•dro e Paulo (29 de Junho) ............. : : : : : 548
Transfiguração do Senhor (6 de Agosto) .................... . 557
Exaltação da Santa Cruz (14 de Setembro) ................... : : : 568
Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Padroeira prlncipal do Brasil
. (12 de Outubro) .......................................... . 572
Dia de Finados (2 de Novembro) .............................. . 580
Dedicação da Basílica do Latrão (9 de Novembro) .............. . 590
lmacu~ada Conceição de Maria Santíssima (8 de Dezembro) ..... . 596
Abreviaturas dos livros da Bíblia ......................... . 505
Outras Abreviaturas ...................................... · · · · · · 006
Jndice de pericopes bíblicas ............................... · · · · · · 607
lndice de colaboradores ........................................ . 513
Apresentação
A iWesa da Palavra: Subsídios para a pregação e a liturgia. era o
nome de uma secção da Revista EcJesiástica Brasileira, publicada nos
anos de 1977 a 1980. Foi idealizada 'e coordenada por Frei Raul Ruij~
de saudosa memória {t 19-01-1980), no intuito de tornar acessíveis os
frutos da nova exegese a camadas mais vastas do Povo de Deus. O
projeto inicial incluía três tipos de suQsídios: pistas exegéticas, sugestões
para borniJia e orações. Com o tempo> por falta de espaço físico, as
orações foram omitidas. ~
Concluído o ciclo trienal dos comentários exegéticos e das sugestões
para a homilia, previa-se a pu blicaçãO de todo ess"t? imenso, variado e
precioso material em três volumes~ para os Anos A, B e C~ respectiva-
mente. Pois somente em volumes dotados de bons índices as valiosas
contribuições dos quase trinta colaboradores, -entre . exegetas, teólogos
sacerdotes e leigos, poderiam ser manuseadas com proveito e continuar
prestando um serviço à pregação. N:este sentido, o novo subtítulo da
obra, <?Da exegese para a pregação»,, quer lembrar que a pregação se
renova, vottando à fonte da n::velaçã~ bíblica, sempre de novo estudada
e meditada. ~
No presente volume foram jncluiâas todas as festas e solenidades
de Cristo, de Maria -e dos Santos. As solenidades da Assunção de Nossa
Senhora e Todos os Santos, no Brasil sempre celebradas nam domingo,
já estão incluídas no volume do Ano A.
Para o Ano B, foram preparados novos comentários exegéticos e su-
gestões para homilia ainda inéditos~ pois vários domingos, que em 1978-
1979 coincidiram com festas e solenidades, não tinham sido comentados.
Para o manuseio mais frutuoso da obra recomendamos o sumário
inicial e os índices finais. O sumário, além de uma breve introdução
ao ciclo litúrgico trienal~ apresenta ps domingos e festas segundo a
ordem do ano lihírgjco: Advento, Natal. Quaresma, Semana Santa, Pás-
coa e Domingos do _Tempo Comum; em apêndice vêm as festas que no
Brasil são automaticamente deslocadas para o domingo seguinte. Os
índices incluem um índice de siglas e abre.viaturas, um índic-e de cola-
boradores e um índice de perícopes \líblicas. O índice de colaboradores
especifica por meio de siglas o tipo de colaboração (homiJia ou pista
exegética) e as páginas onde encontrá-la. O índice de pericopes bíblicas,
disposto segundo a ordem dos livros bíblicos e respectivos capítulos,
indica o domingo ou a lesta em que ~o utilizadas.

• Ludovico Garmus, O.F.M.

..
 Os dois critérios são usados conforme os diversos tempos do ano e as
Intródução características peculiares de cada tempo litúrgico.
Assim, se verifica uma ótima composição harmônica entre as leitu-
sua !i:~sa da Palavra pretende prestar um auxilio aos sacerdotes em ras do Antigo e do Novo Testamento, quando ela é sugerida pela
Esta sua ºmi~:ã~r~~:r :e
Palavra de Deus n~ Celebrações Eucarísticas.
própria Escritura, ou seja, quando a f doutrina e os fatos expostos nos
textos do Novo Testamento possuem uma relação mais ou menos explí-
de .um Presbite~o:«Deve:s e~~::;;i~ :~ ~~~~a
ensmar. Transmite a t d p 1
J::osta
tna 0
1 rde_nação
e a ua unçao de
cita com a doutrina e os fatos do Antigo Testamento. No presente Ordo
Lectionum os textos do Antigo Testamento são escolhidos principalmente
Meditando na lei do ~e~~o~ a avra de Deus, que recebeste com alegria. em razão de sua correspondência com os textos do Novo Testamento,
creres, praticar o que ensinâre~rog~!ª crer no que ~res, ensinar o que lidos na mesma Missa, sobretudo com os textos do Evangelho.
para o Povo de Deus e tu . 'd JR, P.ortfnto. a tua pregação alimento A _composição harmônica dos textós de cada Missa a partir do tema
edificares a . a ~1 a estirou o para os fiéis de modo a
E na h~~ ~e ~eusÍ isto e, a Igreja, peta palavra e pelo exempfo. encontra-se patente no tempo do Advento, da Quaresma e da Páscoa,
é uma parte dar~ftur ~~a so~re o M1ssal Romano se diz: «A homilia
isto é, naqueles tempos que possuem um colorido ou característica
para nutrir a vida c~stã.e 2'~~~~~nte reco~endada, se~do _indispensável peculiar.
Nos domingos do Tempo Comum que não apresentam característica
asp~ct!1. das leituras da Sagrada Eic~~tu~!Jªa:m~e exphcaç~o de algum especial, os textos das Epistolas e dos Evangelhos foram dispostos
Ord1nar10 ou do Próprio da Missà d0 d" l d um ou ro texto do segundo o critério da leitura semicontinua-; de tal modo que a leitura
mistério celeb ado ia, evan o em conta tanto o
=. •
do Antigo Testamento se harmonizà com o Evangelho (Cf. Ordo
41) «Ao dr . , como f as neces,~ndades particulares dos ouvintes» (n
Mis~as ce~ebr~~~~gco:rn epar~f:::,Saç:~ J1:ec~~~ ha~ia
homilia e~ toda~ ~~ Lectiorium, lntr.• n. 3).
celebra~te qu~m profere a homiliai. 42).". (n:de regra e o pro-pno
Desta forma. são proclamados os· quatro Evangelhos no curso de
três anos. Mateus, no Ano A; MarcoS, no Ano B; Lucas, no Ano C e
Hoje, mais do que em tempós pass d f • . João, cada ano nos tempos fortes da Quaresma e da Páscoa e no Afio
necessários subsídios para a preiação :o:~iét~~ azegi ::it~1s e mesmo B, após o XVI Domingo do Tempo Comum. complementando o Evan-
de o Lecionário do Missal Romano a, so re o pelo fato gelho de São Marcos com 5 leituras sobre o pão da vida.
pr~funda . na reforma litúrgica i)Ds-~:~cfi~:ad~s P~~·t urna rternodelação Quanto à harmonia entre as leituras, podemos encontrá-la entre as
muito mais abundantes. · t uras ornaram-se tr~s, nas Solenidades e Festas e nos ~domingos dos tempos fortes. Nos
domingos durante o Tempo Comum existe harmonia entre o Evangelho
e a leitura do Antigo Testamento. A Epístola estará ou não em harmonia
1. A reforma do Lecionário com o Evangelho, pois sua escolha _obedeceu também ao critério da
leitura semicontínua. Neste tempo são lidas as Epístolas de Paulo e de
refor~: ~~~~tit~!çã~li~~fs~ó~~a Missa/e Romanum escreve Paulo VI: «A Tiago, enquanto as de Pedro e de joão se lêem no tempo de Páscoa
na Constituição Sacrosanctuman~o~~fi:~ga~:t be~o Concílio Vaticano li, e do Natal.
para os fiéis uma mesa mais abundante d~ a e eceu «que se prepare
largamente os tesouros biblicoS> (Cl SC Pala".:1) de Deus•. abrindo-lhes
pre~crição do Concílio Vaticano II que. ma~dan.Jer a~ P«!!;:1bdee~t' sedgundo 3. A Liturgia da Palavra
per1odo determinado de a rt . ro e um
Escritura» (SC n 5J nos as .Pª .es mais importantes da Sagrada Diz a Instrução Geral sobre o Missal Romano: «Nas leituras expla-
distribuído num' pe~íodj' deto~~s ~n~~nJ~~!º ~:15 leituras d?minicais foi nadas pela homilia Deus fala ao seu povo, revela o mistério da redenção
de festa as leituras da Epístola e do. Ev:~el~~º;~ nos do~~~gos e dias e da salvação, e oferece alimento espiritual; e o próprio Cristo, por
outra do Antigo Testamento ou, no Tempo Pasca1ªºd~:e~~o~ ªJo:e ui:na sua palavra, se acha presente no meio dos fiéis. Alimentado por essa
!~~~~· ~esta ~or~a aparece. mais claramente o de~envolvimento A~~!:
do
palavra; reza na oração universal pelas necessidades de toda . a Igreja
e pela, salvação do mundo inteiro» (n. 33). E continua: «Mediante as
.''' P
riirtueezamd·esal~~~~::t~ b~b1Fc~;1r q::s a:r~~e':t~s a~~veJ~~:s~o~s~~astãf~stf:~~dae
'1 leituras. é preparada para os fiéis a mesa da palavra de Deus e abrem-se
'
ais impor ante da Sagrada E 't . para eles os tesouros da Bíblia> (n. 34).
partes dos Livros lidos em dias n~o f~~vu::.· e completada por outras A . assemblêia litúrgica é fundamentalmente a reunião de fiéis para
ouvir a Palavra de Deus e dar uma _.resposta a ela. Pela proclamação
de sua_ Palavra, Deus continua a fa~11r aos homens, a transmitir-lhes
• 2. Os critérios da disposição das leituras

e fe~~uzOd~ss~s ~r~ncipios foi disposto o novo Lecionário dos domingos

sua mensagem, a reunir o seu povo disperso, propondo sempre de novo
uma aliança à assembléia reunida.
Assim, a assembléia litúrgica constitui o lugar mais comum e ideal
do uso da Sagrada Escritura e é nela que a Palavra de Deus adquire
B e C ºsendo e~1o~nr10Cse desldobra~ n}lm. ~li~lo de três anos. Os Anos A sentido pleno. O objeto central da Sagrada Escritura é o mesmo da
S -· d . 0 • • ~que e que e d1v1s1vel por três. '
• ao ois os princ1p1os que regem a d" . - . Liturgia: o mistério de Cristo: Tendo como sentido responder à reve-
domingos e festas: A harmonização t •t' tspos1çao. das leituras dos lação do mistério do amor gratuito de Deus, que se continua fazendo
ema ica e a leitura semicontínua
8 9
 "··----
Primeiro Domingo do Advento
Pistas Exegéticas
Prlmelra Leitura: Is 63,16b·17; 64,1.3b·B
4. A Homilia «Vós, Senhor, sois nosso Pai>

No contexto de fé em que 'p 1 . O trecho proposto para a leitura do I' domingo do Advento faz
é. uma explanação da mesma. Q~~r ªaiª:~:r de Deus e ouvida, a homilia parte integrante de um conjunto maior que abrange Is 63,7-64,11. É
vida. C,9m a Palavra, favorecendo. a . os fiéis a confrontarem sua uma oração muito comovente feita num momento particularmente delicado
prof1ssao de fé, na oração univerSaJ conve_rsão, que se expressará na da história de Israel. A mai0r parle dos especialilitas situa esta oração
de caridade. • na Liturgia Eucarística e ria vida pelo fim do exllio, provavelmente depois mesmo do "edito de Ciro (538
aC.) que permitia aos hebreus retornarem à sua pâtria. Deve ter sido
Mor~ ~~rn~:egr:!.~ ~~erm::: um tratado de Teologia Sistemática, de composta antes da reconstrução do Templo (52D-515) porque supõe
do mi'stério de Cristo. Catequese, mas antes urna contemplação que o mesmo esteja ainda em ruínas (Is 64,11).
A homilia terá que ser com.o a · · E · A oração é um misto de lamentação, de súplica ardente e de ato
viva para uma comunidade ~iva Conv· propr1a scritura, uma mensagem penitencial. O longo exllio com seus sofrimentos e humilhações, as ma-
impi°'tante será, pois, enuclear ~s co~~~d;0: .~~~ili~~." ~j~~~~o vivad O ravilhosas promessas de Ezequiel e do Dêutero-lsafas (Is 40-55) e de
per ar urna resposta viva à mensa.gem proclamada. ' ª es- cuja reali2ação não havia quase sinal, tudo isto fazia a 11lma dos pios
judeus prorromper nesta patética súplica.
5. A lmportância da reflexão exegética O conjunto é considerado uma jóia literária, um dos mais belos
trechos da literatura hebraica. O apelo à paternidade divina dã à perf-
e n_A Liturgia não interessa propriamente a Bíblia como Jivro histórico cope um tom Intimo e familiar e permite que o autor, para expressar
fun:~m::1~o~e~t·ª1 co.m u!11a exegese histórico-cientifica. Esta servirá de os sentimentos de dor e angústia ante o prolongamento da triste situa-
. · i urgia da um passo à frente e faz 11• .
~fs\~:i':;'l d~u C~s:ica, Anuma v!são · unitária da históriau~: :~~;.e;:0 f'~ª~ ção, prorrompa em interrogações a Deus e exclamações. Deus é pai e
só dele pode vir a salvação. Mas então, por que permite Deus que os
. • . ris o. maneira de conhecer é antes d f• d
rn1ster10 q?e se reve1a_ e não tanto a do raciocinio discu~siv~ e, a o corações de seus filhos continuem insensíveis ao seu temor?
Mas a base da interpretação litúrgica da Bíblia estar·· Depois de reconhecer a Deus como pai e único capaz de salvar seu
~entido dos contemporâneos ou o sentid rt 1 E ª. sempre. o povo, exclama o profeta num tom patético: cOh, se rasgásseis os céus
~e~~a'::fj~!~d~ i" aprofu~dado pela comp~ee~s~~a ·do."t~ex~~:t•~o~ ~%~;~ e descêsseis .• .> l'i como a explosão da confiança e ao mesmo tempo
escatológica. E:. d:
Por isso o que mais im or n 1
;ri!t~~eh~ª Ji~~~itreenJão eclesi~l hoje, na dimensão
c~ . e. er e interpretar a Biblia.
da impaciência para que J;>eus manifeste seu poder e seu amor li-
bertador, assim como se manifestou outrora na teofania do monte Sina]
(Ex 19,16-19). A liturgia do Advento, assumindo essas palavras, ex-
é descobrir as situaçõei ~:ma~~so htu!gico das Sagradas Escrituras pressa em nome de toda a humanidade os anseios profundos e vee-
circunstâncias da vida dos cristãos h~j:~ntas pelos textos dentro das mentes para que Deus apresse sua intervenção libertadora.
Ninguém jamais viu nem ouviu alguém intervir e salvar seu povo
6. Sugestões para a homilia como o fez Javé no passado. No pensamento do profeta estão pre-
sentes todas as maravilhas que Deus operou ao longo da história do
As sugestões e esquemas para a h 11 ·1 · - povo escolhido, especialmente a libertação do Egito e a conquista da
Nunca serão copiados pois têm . ca át º1!-1 ~ s~rao sempre relativos. Terra Prometida. Esta mesma expressão é usada por S. Paulo na !Cor
terão que tomar em ~onta o cabedaf cer 1nspirac1on_a!. Necessariamente 2,9, mas de uma forma adaptada e para outra realidade superior. De
a mensagem desvelada pela reflexão exe;l~~ral e esp1r1!uaJ do pregador, qualquer maneira é uma profissão de fé nas intervenções divinas ao
assembléia. Passarão por um prOce ed ca e ~ !ea~dade concreta da longo da história e que fundamenta a certeza de uma nova intervenção
pregador que há de elaborar sua sso e assimllaçao por parte do
experiência de fé e de oração reaJiz :~tese; serão banhadas por sua na dolorosa situação presente.
Ordenação: «Procura crer no' ue 1 a o a .recomendação do Ritual da Nos vv. 5-7 o autor faz uma ~onfissão pública dos pecados do
o que ensinares» A Mesa daq Pa;:es, ensi?ar o que creres, praticar povo. E o reconhecimento duma situação de impureza, de indignidade
auxilio nessa irnp~rtante missão sacer~~~al~era sem dúvida um valioso
diante de Deus, por causa dos inúmeros pecados e infidelidades do
povo. As próprias ações boas, mesmo a prática da justiça, assemelharn-
se a panos manchados pelo sangue da menstruação 1 Imagem !orle to-
Frei Alberto Beci<hãuser, OFM mada da impureza higiênica e legal (Lv 15,19-26), para expressar a
situação do homem diante de Deus. Só Deus pode sanar essa situação!
11
10
 O v. 8 retorna ao pensamento inicial, completando-o com a tão - no dia do retorno glorioso
conhecida imagem do oleiro e da- argila (Is 29,6; jr 18,2ss; Gn 2,7). A fidelidade divina é fa~r dde sa1':':,~o final e à vitória dos bons,
A súplica retoma o tom afetuoso e confiante. Verdade é que os peca- de Cristo (vv. 7-~). Paulo. t ~ e 0 ª~ri!tão deveriam esperar confiantes,
dos cavaram um abismo entre o p,evo e Deus, mas Deus continua sendo quando os Coríntios, como o o Ele o~ chamou à fé e os favoreceu

=
Pai, aquele que plasmou o seu povo, como o oleiro moilela um vaso. jâ que Deus é fiel e, uma vez que · sua obra levando-os à
Deus não pode abandonar a obra ile suas mãos. com tantos benellcios, certamente C0'1!f~:::ªo Cristo. ó Apóstolo evo-
glorificação final (vv. 7-9), ao se maru e - (cf Rm 1311-22), como
Blbll.ogr11/la: P e n na, Jsala, MarJettl; Cor d e r o, em "'Blblla Comentada" da ca freqüentemente a parusia em «f~~~~e~~veis; (Fl 1,ÍO; lTs 3,13;
BAC; Pi r o t·C J·a m e r, La Sainte BlbJe, tome VII; S te 1 n m a n n, O livro da também insiste em que permaneç. . lTs 5,24; 2Ts 3,3). A
5 23), advertindo que J?e~ é fiel (cf. 1 ~~ 3 ~chamado à comunhão de
Consolação, Hdfções PauUnas.

Pe. Aguinelo Burin, S.A.C. ~elhor definição de «cnstao> estâ no v. ·~ é chamado a participar
Santa Maria, RS seu Filho Jesus Cristo, n~ss? Senhor> h-:- Ideº vida com Ele, como seu
da filiação do Filho em mtima ~~~~n ª1qui estâ a base, o centro da
membro (Rm 6,3-ll; 8,17; 01 ~d d )Tudo isto graças à união com
vida cristã: fé, esperança, car1 a e. ;
Segunda Leitura: lCor 1,3·9 Cristo (koinonia).
e mentada Vl BAC/Madrld 1965. p.
«Jesus vos confirmará até ao flllJ» BibUografla: TEu r r a dAº'p~::t;!º·E~~~~fa aºos CorlÔtios ·, (tracd. ln~;••E.:_ BJ;.de~l·
315s• Walter, u_gen, Pi era Carta a os or"
T gl·c- r:nm
vozês Petrópolis 19'73, p. 20s~ e a
j
e 'r m 1 J!pltre aux CorlntbJens. XIiJi' '
p.
Paulo, de Éfeso, escreve sua Primeira carta à comunidade cristã de BAC/Áladrld 1962, p. 34lsW; V r Dei IV• Herder 1959 (Barcelona), P· s.
115s, Paris 1951; R e e s, " er um • •
Corinto, fundada por ele no final - da segunda viagem. Faz questão de
firmar-se como «Apóstolo de Cristo por vontade de Deus> - resposta Matbeus F. Giuliani, S-A.C.
tácita a seus opositores. Deseja-lhes bens espirituais: a graça e a paz Santa Maria, RS
de Deus Pai e de jesus Cristo. A «graça. é a benevolência divina, ao
passo que a «Paz» encerra o conjunto dos bens cristãos~ Podem ser
sinônimos, como saudação cristã grega (cháirel) e hebraica (shalôm!), Terceira Leitura: Me 13,33·37
como voto de bênçãos1 desejando uma euforia geral de vida psicossomá-
tica. É uma saudação com dimenSão ecumênica da salvação. A graça
pode também indicar a bondade divina, como causa da paz, ou os dons «Vigiai, pois não sabeis quando o senhor voltará»
messiânicos, cuja fonte última é Deus Pai e jesus Cristo. O possessivo . . . três camadas de tradição e
«meU> Deus jndica devoção e carhJho. A fé cristã associou a Deus Pai Nestes cinco vers1culos distinguem~ . de jesus· a combinação e
o nome de Jesus Cristo, na mesma linha divina. O titulo cSenhor:> in- interpretação, a saber: ~~ )ará~ol"';,a~f!g'~:C.~) comunidade(s) cristã(s);
dica ser jesus Cristo Deus, como o Pai, visto que no AT «K:Yrios> se
atribuía somente a Javé. Além dis$o, «Senhor» considera Jesus em seu
t interpretação destas para o .ru: pa etação das mesmas da parte do evan..
e, por fim, a montagem e tn er r
estado de glória, devida à ressurreição, em oposição ao estado de gelista, no caso Marcos. . . 37 versículos atribuem-se ao
«kênose» (= humilhação, esvaziamento) em que viveu desde a encar..
nação até à morte (FI 2,5-11). o primeiro (v. 33) e 0 ulti~~ (~~ q~e precede para o que se-
evangelista. V. 33 serve de ~'::'"'ç:o Filho do homem ou da volta de
Paulo, feita a saudação, passa a render graças a Deus pelos bene- gue. A cer!eza (v. 31) da vm a : a incerteza quanto ao tempo da
Jesus no( f1~ )d~bri':,:'d~s ~~lst~j. à vigilância perpétua (vv. 33 e :7).
2
fícios sobrenaturais concedidos aos coríntios em abundância, na medida
em que estes cresceram e perseveram na fé. É a maneira de Paulo:
mesma v. . t d om que originalmente errun uas
captar as boas graças dos destinatários. Começa otimista face ao con- Esta vigilância perpétua é .'1us rad a ;. tentos
0
e a Parábola do Porteir_o.
teúdo por vezes desagradável que segue. Nem perde tempo em ·Jouvo- parábolas, a saber' a Parabola ?s a encontram-se combinadas e m1s-
res puramente humanos. Sugere que não se ponha a confiança na su- No texto de Marcos as du'!" P:fábol:"confusão Não tem muito sentido
ficiência humana, mas nos dons de Deus, conferidos em Cristo Jesus toradas, o que causa lambem. gum rando di~ e noite (e!. v. 35c) o
(v. 4), graças aos seus méritos, 'em virtude de nossa incorporação a . que 0 porteiro houvesse de fi~ar es~ d ( J4a). Isto dá mais sen-
Ele (Rm 3,24s; 6,2-11). Semelhantes dons se reduzem aos da «palavra. patrão que viajou por tempo indetertrunasi~o vde uma festa, como é ·o
e aos da «ciência». A «palavra» seria a doutrina, a pregação evangé- tido se ele se tiver ausentadol2 §~40oc~ra também não faz muito sen-
lica (cf. OI 6,6; Ef 1,13; lTs 1,6), enquanto o «conhecimento> re- caso no texto paralelo de Lc ' · ' ·• 0 de uma festa de-
presentaria o conteúdo, urna compreensão mais profunda do Evangelho. - só saía de casa por ocas1a ' f
tido que o patrao, que t .d d e distribua entre eles as tare as
Outros exegetas preferem ver nos dois termos os carismas de cunho leaue aos seus servos a sua au or1 a e ên . Isto dá mais sentido se
literário e intelectual (12,8) de que os Coríntios foram favorecidos na º "das durante a sua aus eia.
proporção de sua fé e adesão ao Evangelho (v, 6), testemunhados pelos a serem cumpri ..: . . por tempo indeterminado e toma, en..
se tratar de um patrao que. ~1a1a . o caso nos textos paralelos
apóstolos. Estes versos são um espelho fiel da oração pessoal do Após- tão as providências necessar1as, co1!1o e )
tolo. útimo expediente que é facilmente esquecido em nosso .relaciomento. de 'Mt 25,14-30 e Lc' 19,11-27 (e!. ainda Mt 24,45 .
12 13

--~·- ..
 Marcos lançou mão desta conflação de parábolas para encerrar o D · do no ponto e Rdeixar
Também eles podem estar dormm . passru
discurso escatológico de Jesus sobre a parusia e o fim dos tempos in;~~veltada a hora da chegada do Senhor e do seu em0 .
(13,1-37). A última frase do mesmo: •O que. digo a vocês, digo a todos:
eizer e V. Taylor; J. Luat, em:
Fiquem vigiando I> (v. 37), mostra bem que, na mente de Marcos, o
discurso já não se dirige somente aos discípulos de Jesus mortal ou Oet 14 (1969-1970) 4-5, H. a e
!b
BlbUograJla: Comen'!31"1os Kde hBi ~ 1 J!B. B .3 1 t se b, em: EuB f (1969) 13-22.

aos quatro deles mencionados em 13,3, mas a todos os cristãos. Esta Raul Ruijs, O.F.M.
nova orientação transparece também já em v. 35, onde se exige vigi- Petrópolis, RJ
lância de todo mundo, e não somente do porteiro da parábola.
Qual era a intenção original destas parábolas?
Os ouvintes de Jesus devem ter tido a impressão de que Ele se Tema Principal
referiu aos Jideres espirituais do povo. Todos estes ouvintes estavam
acostumados com certas expressões que jesus usava nestas parãbolijS: TO RELIGIOSO QUE EXASPERA
a nação deles era chamada ca casa» de Israel e os lideres do povo e O CRISTIANlSMO COMHOUMMOAVN~1iN CONVlDA AO HEROISMO
os profetas chamavam-se «Servos do Senhor>. A figura do porteiro eles A ESPERANÇA
podem tê-Ia associado com os fariseus que reivindicavam para si o poder
das chaves como se deduz também de Mt 23,13: <Ai de vocês, profes-
sores da Lei e fariseus, hipócritas! Fecham a porta do Reino do céu aos Sugestões para a Homilia
homens: vocês mesmos não entram e nem deixam entrar os que estão
querendo». Propondo-lhes a parábola do porteiro, Jesus queria chamar
a atenção deles. Deviam ficar de sobreaviso, tão a1ertas como um em- Introdução
pregado ou porteiro que espera a chegada de seu senhor. Somente nesta
hipótese estariam preparados para perceberem a chegada dos tempos t Começo de mais um ano
messiânicos. Em outras palavras, jesus queria lhes dizer: «Vocês, fari .. É o primeiro domingo do Adven o. . M . um Natal
seus e líderes do povo, não estão bastante atentos. Vocês não estão . d ·
um ciclo de leituras. ais
enxergando que já chegaram os tempos messiânicos em que Deus - litúrgico. In!c10 e 1~ais E para bem eelebrá-lo somos convi-
por meio de Mim - leva a história de vocês e do povo à sua plenitude. que nos é dado ce e rar · _ . , . deste periodo, a uma
Vocês estão dormindo no ponto!» (cf. Jo 9,39-41). Os cristãos poste- dados, através das celebraçoes htú1icas Tudo isto envolve um
riores aplicaram esta mesma parábola à sua própria condição e à se- preparação séria, fecund~ e re~ov~l~~ª·de grandioso. TudQ isto
gunda vinda do Senhor. Esta segunda vinda vai completar a obra ini-
ciada por ocasião da primeira vinda. desejo de M~~do;~:~· d:s~:per~nça que sustenta o nosso vi-
A combinação da Pardbola do Porteiro com a dos Talentos prova- ~e~~t;;;a:~ s~~er por algo. maior do que conseguimos até en-
velmente foi feita quando já começou a amadurecer a consciência da tão: o Reino de Deus.
protelação da parusia. Constatando-se que o dia do Senhor não vlria
logo, aproveitou-se da Parábola dos Talentos para dar sentido ao in- Corpo
tervalo enlre a primeira e a segunda vinda do Senhor. Esle intervalo
é a hislória da Igreja e coincide com a viagem do patrão. Antes dela, l. Vós, Senhor, sois nosso Pai
ele delega sua autoridade e distribui as tarefas.
A nova admoestação veic1~ada pela combinação das duas parábolas ito comovente em forma de oração, feito nu~ mo-
pçide ser resumida desta maneira: «Fiquem vigiando, não somente espe..
rando, mas lrabalhando! Vigiem, não porém esperando a volta do Se- ment~s~~fi~I e delicado rÍa história de Israel {Um do e-;; Exil~
nhor de braços cruzados, permanecendo à-toa (cf. 2Ts 3,6-12), mas retorno à pátria. - reconstrução do ~:~º~~é ~~~~ê~~fa par;
trabalhando e valendo-se da «autoridade» que o Senhor delegou aos
seus servos e desincumbindo-se das tarefas confiadas a cada um~ (v.
plosão da con!1ança e ao dmesem~eu amor libertador, assim co-
34b). A mudança dos <bens» ou «!alentos» das parábolas paralelas que Deus mamfeste seu P:
e~ e na conquista da Terra Pro-
Mt 25,14-30 e Lc 19,11-27 em «autoridade» (v. 34) é para vários au-
•' mo o iizera outrora no . x~ ºcéus e descêsseis ..• » Esta mes-

~-
tores sinal de que Marcos, na admoestação com que ele encerra o metida. «Oh, se rasgãsseis s "to de expectativa encontra-
discurso escatológico, pensou em primeiro lugar nos líderes ou ministros ma tônica-esperança, este mdes~~t;:~ de hoje: «Assim, enquauto
da(s) comunidade(s) cristã(s).
mos em S. Paulo! na s:gun ª S nhor Jesus Cristo não vos
Parece, portanto, que as parábolas originais que Jesus dirigiu aos aguardais a mamfestaçao de nosso e t d .nda do Filho
falte dom algum». Já nodEvJangelho~ :i~e~:~unªd~ e a incerteza
fariseus e demais líderes do antigo povo de Deus, em círculos cris,tãos 1

foram aplicadas à lgreja e aos lideres espirituais do novo povo' de do Homem ou da volta e esus n
14 15
quanto ao tempo da mesma colocam o cristão numa situação de
vigilância. Não numa vigilância estéril; ociosa; ao contrãrio,
atuante e fecunda de novidade, preµhe de manifestações históri-
cas e concretas dasta Libertação, deste Reino, do qual Ele tanto
falou e foi sua inauguração e concreção entre nós, entre os ho-
mens. Resumindo poderíamos afirmar que a Liturgia do Advento
está carregada desta esperança; vem de encontro a estes an-
seios profundos e veementes de Libertação, de Re.denção, de
Mundo-Novo, de Nova Criação, de Reino de Deus de que tanto
falou Jesus. Não só falou, explicitou, concretizou, mediatizou
através de sua pessoa, seus gestos (milagres), vida, morte e
ressurreição.
Diria até mais: este tempo atiça, acende este princípio-es-
perança que atormenta o homem, a humanida.de e os torna eter-
nos insatisfeitos, por vezes, até impacientes: «Venha a nós o
vosso Reino; seja feita a vossa vontade».
2. O Reino de Deus: o forte na.pregação de jesus Crlslo
«Vontade do pai», o seu
.
«Reino» constituem como que o
.
pano de fundo, a força-motora, a ·intenção fundamental de Je-
sus Cristo. A «Vontade do Pai» é o bem do Homem, de todos
os homens. Portanto este Reino apresenta um caráter de totali-
dade, de universalidade. É um pr$>jeto de total libertação de
tudo aquilo que oprime, aliena, diminui, nega o homem, os ho-
mens. Tem assim uma dimensão de absoluto, definitivo, com-
pleto e acabado. Preenche uma exigência de totalidade, de sal-
vação plena, de libertação integral. Este «Reino de Deus» apre-
senta-se primeiramente como uma proposição de um projeto de
total libertação. É o que deixa entrever jesus na sinagoga de
Nazaré quando faz seu discurso-programa, apresentando sua
plataforma de trabalho. Aí Ele adianta aquilo que pretende fa-
zer: Ele fala da utopia do ano da graça do Senhor. Em seguida
pode-se perguntar como esta utopia, como este ano de graça
acontece, se verifica? É através de. gestos bem reais, bem con-
cretos de libertação em prol dos oprimidos e cativos; em favor
dos pobres, dos que sofrem, dos que têm fome e dos que são
injustiçados e perseguidos. É neles, que a «Vontade de Deus»
vai-se revelar. Esta situação de injustiça constitui uma negação
deste Reino. A superação destas sitl!ações no «aqui» e no «ago-
ra» da vida do homem são concretizações deste futuro absoluto,
desta plenitude de libertação, desta .utopia do «ano da graça do
Senhor».
16
Duas conclusões importantes:
- Este projeto de total libertação que Jesus apresenta co-
mo fundamental em sua pregação e maneira de ser, por Ele
chamado Reino de Deus, é algo de utópico, escatológico, de
futuro; em última análise: dom, obra do Pai. Mas este abso-
luto se mediatiza no «aqui» e no «agora» da história dos ho-
mens. Ele se concretiza na história e no modo de como os
homens vivem entre si, numa determinada formação social. Ele
é história também! Ou, melhor dizendo, é um processo e se tor-
na visivel, portanto digno de credibilidade, através de liber~a­
ções parciais; é obra e fruto também da luta e esforço dos cns-
tãos conscientes e de todos os homens de boa vontade.
- Viver o Advento, celebrar o Natal é alimentar e~te
«espírito», é reavivar esta «inspiração», é reacen~er _este ~pi;i~­
cípio-esperança», é concretizar através das mediaçoes h1stor1-
cas estes anseios e apelos profundos tão vivos nos homens, na
humanidade.
Conclusão
Eis alguns exemplos de como este Reino se mediatiza no
momento histórico como exigência de compromisso do ser-
cristão:
Haverá mais Reino de Deus entre nós na medida em que:
- os lucros sejam repartidos para todos os que trabalhem;
- os salários possam atender às necessidades de alimenta-
ção, habitação, condução, diversão, escola, vestuário, atendimen-
to médico de nosso povo;
- haja mais solidariedade, participação, companheirismo
entre todos, particularmente entre os operários, entre os pobres;
- haja mais segurança no trabalho, cuidado com o corpo
e com a saúde;
- haja locais de trabalho e de moradia mais limpos, sem
poluição e risco de vida;
- haja trabalho para todos: jovens e adultos, mulheres e
homens;
- haja menos horas extras, conseqüentemente menos can-
saço, fadiga, doença dos nervos, acidentes de trabalho e de-
sintegração da família;
- haja bairros mais limpos, com água, luz, esgoto, escola~.
E por isto mesmo: mais vida feliz, alegria, união, amor, feli-
cidade.
Numa palavra: Reino de Deus no meio dos homens.
17
 Cada um poderã concretizar estas mediações segundo o seu
contexto e ambiente.
Ora, quem crê e Juta para to1nar realidade tudo isto é um
grande, um herói, um cristão consciente e comprometido.
Frei Cristóvão Pereira, O.F.M.
Vale do jatobá, Belo Horizonte, MO
18
Segundo Domfugo do Advento
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Is 40,1-5.9·11
«Elevai com força a voz para anunciar a Boa-Nova»
Esses versículos, corno todo o capítulo 40, devem ter sido escritos
pelo fim do exílio. Quando os profetas !salas, jeremias e Ezequiel nos
falam de seu chamamento profético, mencionam uma visão em que rece-
bem a missão de anunciar urna mensagem de Deus a seu povo. Diver-
samente destes, o autor de Is 40 começa logo a anunciar a pa1avra de
Javé. Não se apresenta, não justifica sua missão. E a palavra de or-
dem de Deus é: consolai! Quem está habituado ao linguajar dos pro-
fetas anteriores: Arnós, Oséias, Isaías, jeremias, etc., em que a pa-
lavra de ordem é a denúncia dos pecados e o anúncio dos castigos,
poderá achar estranha esta linguagem: consolai 1 Aqui Deus ordena ao
profeta que console seu povo porque o castigo que havia merecido por
seu pecado tinha sido descontado. E não só. Mas havia sido pago em
dobro daquilo que merecera. Certamente que há aqui uma hipérbole;
mas podemos ver também a expressão antropomórfica do sentimento de
Deus que se compadece ao extremo diante dos sofrimentos de seu povo.
Nos vv. 3 e 4 é uma outra pessoa que laia. Provavelmente trata-se
de um anjo que grita em nome de Deus. Naquela época os governos
não se preocupavam muito com as estradas. Por ocasião de expedições
militares os habitantes da região eram convidados a consertar pelo menos
sumariamente a estrada para que o exército pudesse passar.
Aqui a -estrada deve atravessar o deserto, ligar Babilônia com jeru-
salém. E o seu conserto não deve ser apenas sumário, mas devem ser
removidos todos os obstáculos a fim de que se torne um caminho reto
e plano e ofereça ao povo de Deus um retorno fácil, rápido e sem
1
perigos. Deus mesmo irá à sua frente e repetirá as maravilhas que
operou na salda do Egito. Ê a maneira mais fácil de suscitar a espe-
rança nas maravilhas que Deus vai operar em favor de seu povo, pelo
grande amor que lhe tem.
Nos vv. 9 a 11 a cena muda repentinamente. Agora o anunciador
está em Jerusalém e ai deve anunciar com voz forte: «Eis o vosso
Deus ... > A experiência dolorosa e triste do exílio fizera vacilar a fé
no Deus de bondade que tantas maravilhas no passado havia feito em
lavor de Israel. Agora se anuncia com júbilo incontido que este Deus
retorna com todo o seu poder e com os frutos de sua vitória. E mais:
ele vem com as demonstrações mais belas e tocantes de seu amor. Será
como um pastor que reúne os animais dispersos carrega ao colo os
1
cordeiros e conduz lentamente as ovelhas com crias: expressões mara-
vilhosas do amor e da ternura de Deus para com seu povo.
Sente:-se a vibração e o entusiasmo do profeta diante da surpresa
do amor de Deus que irrompe nessa nova fase da Revelação.
As palavras do profeta adaptam-se magistralmente ao tempo do Ad-
vento, tempo de uma impaciente e incontida espera, e, simultaneamente,
tempo de consolação e júbilo pela proximidade da libertação que Deus
irá operar.
Bibliografia: Pen na, Jsaia, Marletti; Piro t-C 1 ame r, La Sainte Blbte, t.
Vlll.Letouzey et Ané; Cor d e r o, La Biblia Comentada, t. UI, BAC; S te 1 n ma n n,
O ivro da Consolação, Edições Paulinas.
Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
Santa Maria, RS
19
 Segunda Leitura: 2Pd 3,8-14
«Esperamos uma nova terra, onde habitará a jusfiç{l';t
A 2Pd aborda o problema escatológico. Deixando de lado os fal-
sos doutores (2-3,7), sugere que a demora da parusia faz parte do
plano de Deus e justifica-se por três razões: - a medida do tempo é
diversa para os homens e para Deus (3,8: «... um dia diante do Se-
nhor é como mil anos, e mil anos como um só dia>, evocando o SI 89
4); - Deus se guia pela misericórdia (3,9: «0 Senhor não retard~
a promessa, como alguns pensam, mas usa de misericórdia para con-
vosco. . . não quer que alguém pereça, ao contrário quer que todos se
arrependam»); - a demora de Deus não deve ser motivo para levian...
dades, como se Ele não viesse mais (3, 1O). Com efeito, uma é a medida
divina do tempo, outra é a humana. Deus está acima do tempo. Nossa
esperança foge às categorias naturais de tempo. A «proximidade» da
parusia deve ser vista sob perspectiva divina: um ~dia é como mil anos.
Nossa imaginação revela-se incapaz de representar este acontecimento.
Hereges parecem censurar a Deus pela demora em cumprir a pro-
messa (3,9). Melhor dizer que estão em equivoco quando esperam para
tão logo a yinda de Cristo. Como os preconceitos humanos perturbam
a compreensão da revelação! Se a parusia tarda, não é fraqueza ou in-
fidelidade divina, mas paciência, misericórdia (cf. Eclo 35,19-26). Ele
quer que topos - inclusive os hereges - se salvem e ninguém se
perca (cf. Ex 34,6; Rm 11,32; lTm 2,4; lJo 2,2). Aliás, aqui o acento
recai não tanto sobre a iminência, senão sobre o inesperado da paru-
sia. Como ~ segunda vinda de jesus tardasse, certos cristãos, mesmo
acreditando algo na parusia, passaram a viver como se o Senhor já
não viesse, não estando mais em seus cálculos (3,.2--7). Diante desta
situação, a 2Pd insinua a certeza e o caráter de surpresa desta vinda
recordando a advertência de jesus: «Virá como ladrão» (Lc 12,39.42-46~
17,24-30.34s; MI 24,43s; 25,1-12; At 2,20), quando ninguém o espera.
O fim do mundo vem assim explicitado. como o fim do firmamento
com sua estrutura, como o fim dos «elementos» (astros), como fim da
terra com as obras de sua cultura. Tudo em estilo apocalíptico. Após
haver prenunciado o fim do mundo - juízo e condenação -, passa 0
autor a uma exortação: portanto, deve-se andar vigilante e preparado
sem se deix~r desviar da reta doutrina, porquanto tudo isto se reali~
zará. Se há demora, é desígnio divino. A caducidade do mundo e a
certeza da parusia motivam-nos para a santidade. O mundo e os ho-
mens serão ,transformados. Serão salvos os que temem a Deus como
outrora ~o ~ilúvio. Tal visão futura deve excitar-nos à santidad~ (lTs
3,13) e a piedade, porque estamos a caminho do juízo quando sere-
m?s separados e ~té condenados (Mt 22,14). Devemos ~er irrepreensí-
veis (lCor 1,8), vivendo segundo a reta consciência (Fl 1,10).
A relatividade do tempo e a incerteza da hora parusíaca não dis-
pensam o cristão de orientar-se ativamente para o futuro moral de sua
vida (3,12). A vinda do Senhor e o fim do mundo não precisam ater-
rorizar-nos, mas despertar em ~ós a esperança e a expectativa alegre,
como fossem um banquete festivo (cf. Ap 20-22; At 2,15ss; 3,24ss; 4,
3~ss). Recorde-se o «Maranatha» (Vinde, Senhor!) dos primeiros cris-
taos (Ap 22,20; !Cor 16,22), com o que passavam para segundo plano
os valores da terra a fim de viverem «com Cristo». Santificando-se o
' Na Bíblia a boa-nova é reservada para aqueles arautos que têm
cristão apressa a vinda do dia do Senhor: pela penitência são aPa-
20
gados os pecados, v1rao dias melhores, Deus enviarâ Jesus aos predes-
tinados (AI 3,19s). Os pecados retardam a vinda de Jesus, em virtude
da paciência divina. A parusia atrasa porque o Povo de Deus ainda
não é santo. O fim do mundo não é simples destruição, mas visa
manifestar o poder e a glória de Deus em Jesus Cristo (Mt 24,29ss) e
a salvação dos homens.
Com o fim deste século, esperam-se um novo mundo, um novo céu,
uma nova terra (Is 51,6; 65,17ss; 66,22; Mt 19,28; Ap 21,l; Rm 8,
19ss), quando se beberá vinho novo (Me 14,25), ter-se-á um nome no-
vo (Ap 2,17), cantar-se-á um cântico novo (Ap 5,9), habitar-se-á na
Jerusalém nova (Ap 21,2). Com esta cnovidade> exprime-se o desejo
de que tudo seja bem diverso de agora e de que o divino absorva o
terreno. Reinará então a justiça, far-se-â integralmente a vontade divi·
na (MI 6,10), sem nada de profano. Não é descrição de um paraíso
terrestre, mas de uma realidade onde Deus é tudo. Diante do que virá,
esforcemo-nos na esperança (o «caríssimos> repetido implica em insis-
tência) para sermos já agora justos, imaculados (IPd 1,19) e irrepreen-
síveis (IPd l,19; Ef 1,4; Cl 2,22) no dia-a-dia, qual vitima sem mácula
nem defeito, oferecida a Deus na «paz», isto é, no estado de salvação
(1,2), na graça de Deus, como quem possui meta elevada e dominou
suas paixões. Para participar deste «mundo novo» é preciso ser santo,
zelar pela justiça com a graça e a paz de Deus.
Blbl/ografla: S t õ g e r, AJois, A segunda Carta de Pedro Apóstolo (trad. de V.
do Amaral), Vozes, Petrópolis 19'11; F r a n e o, Ricardo, Cartas de S. Pedro (La
Sagrada Escritura, NT, Ili, BAC/Madrld 1962il· Salgue r o, José, Cartas de San
Pedro, BlblJa de Salamanca, VII, BAC/Madrl 1965.
Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Terceira Leitura: Me 1,1-8
cln/cio da Boa-Nuva de jesus Cristo>
Conforme a crítica literária, Me é o mais antigo evangelho. Ele
foi utilizado por MI e Lc. Isto significa que o autor de Me é o idealiza-
dor e criador do gênero literário que hoje se indica com a palavra
<evangelho>. É claro que ele não criou do nada. Dispôs de muitas
tradições orais e escritas, quando começou a idealizar o seu livrinho
sobre Jesus. E nem todas aquelas tradições consistiam em trechos muito
.pequenos e isolados. já houve, antes de Marcos começar a escrever,
tradições de fatos e ditos de jesus, inseridos em um contexto maior..
Lucas sugere isto muito claramente no prólogo de seu evangelho (Lc
l,l-4) e nos discursos querigmáticos dos Atos dos Apóstolos, especial-
mente em AI 10,34-43. Este trecho representa um pequeno resumo tanto
do conteúdo como da cmontagem> dos tres evangelhos sinólicos.
No cabeçalho de seu livrinho Marcos colocou, quase a modo de
titulo, a expressão «Evangelho de Jesus Cristo (Filho de Deus)>. Deve·
se dar a esta expressão todo o seu valor origina], que se gastou demais
no decorrer dos séculos, a saber: boa-nova. Boa-nova era, naquele tem-
po do império romano, a noticia de uma grande vitória, ou do nasciª
men!o ou da tomada de posse de um imperador. Tal boa-nova era,
por arautos especiais, levada aos mais remotos cantos do império.
a fe]iz incumbência de anunciar que Deus vem salvar o seu povo de
21
sua huniilhação, opressão e exploração, como outrora, nos tempos de
Moisés, salvou o seu povo da humilhação, opressão e exploração decor-
rentes da escravidão no Egito (cf. Is 40,9; 41,27; 52,7; 61,1). Espe-
cialmente o texto de Is 40,9 é importante, porque Me 1,3 cita explici-
tamente Is 40,31
Para Marcos coube a João Batista ser o arauto que recebeu a feliz
incumbência de anunciar que Deus estava chegando para salvar. A
sua pregação é, por isso, o «início da Boa-Nov~ (t,la). Sempre con-
forme Marcos, a pregação da Boa-Nova começa com João Batista (1,
lss), ressoa na pregação de Jesus (l,14s) e pela pregação da Igreja
se espalha sobre o mundo inteiro (13,10; 14,19). «Pregadores> ou
«arautos> desta Boa-Nova são, conforme ele, joão Batista (1,4.7), Je-
sus (1,14.38), os doze (3,14; 6,12) e os missionários e pregadores da
Igreja (13,10; 14,9). A atuação de todos eles faz de todo o período
a partir de joão Batista até a Igreja espalhada sobre a face da terra,
tempo de salvação (E. Schweizer).
«]esuS" Cristo» é para alguns o objeto, para outros o sujeito desta
Boa-Nova, porque Deus opera a salvação através d'Ele.
Parece que a caracterização da atuação de joão Batista como o
«Início da Boa-Nova de jesus Cristo» determinou a versão que Marcos
dá das tradições preexistentes a respeito desta atuação. Este. «Início
da Boa--Nova> não se enquadra bem com aquelas tradições que apre-
sentavam joão Batista como uma figura muito austera e severa, que xin-
gava os fariseus e saduceus (Mt) ou o povo (Lc) de «bando de co-
bras venenosas» e, em tons de ameaças apocalípticas, predisse o pró-
ximo fim do mundo pelo fogo, da parte de um Deus irado. Omitindo
todos estes tr.aços da apresentação jâ «tradicional» da figura de João
Batista, o evangelista Marcos transforma as associações apoca1fpticas
ligadas a ela em uma mensagem que realmente merece o nome de
«Boa-Nova>. Os <moradores da região da judéia e da cidade de je-
rusalém» (v. 5), que procuravam joão Batista para ouvir a sua mensa-
gem e receber a graça do arrependimento e do perdão, parecem agora
atender àquela «voz do deserto> (v. 3 e Is 40,3), escolhida por Deus
«para anunciar a Boa-Nova a Jerusalém» e cpara dizer às cidades de
Judá: 'Eis vosso Deus!'» (Is 40,9).
Também a «pregação do batismo de conversão para a remissão dos
pecados» aparece na apresentação de Marcos como cumprimento daque-
la Boa-Nova, prevista por Is 40,2: «Animai jerusalém, dizei-lhe bem al-
to... que sua falta está expiada». Aquele cuja vinda João Batista
anuncia não é o Juiz do mundo que batizará com fogo (e!. Mt e Lc),
mas o salvador Jesus Cristo, que batizará com o Esplrito Santo (v. 8).
Também na versão de Marcos João Batista permanece uma grande
figura. Merece ser comparado com o anjo do Senhor que acompanhava
o povo de Deus no deserto (cf. Ex 23,20) ou com E~as (compare-se
v. 6 com 2Rs 1,8). Em comparação, porém, com Aquele cujo caminho
preparava, ele não passa de um simples escravo, que nem é digno de
prestar aquele serviço de escravo, a que não se podia obrigar um es-
cravo hebreu, conforme a tradição da Mishná.
Blbllografla: Os comentãrlos de E. Schwelzer e V. Tatylor; H. Kable-
f e 1 d-J. Ou n t b e r, em: EuE 1 (1969) 23-30; P. T e r na n t, Le minlstêre de jean,
&ommencement de l'âvanglle (Me 1,1-8), em: AdS 11/6 (1969) 41-53; B. van 1erse1,
TeologJa e o trabalho exegético dos detalhes. Um exegeta e teólogo sobre Marcos
1,1-IS: em: Concl1fum 70 (1971/10) 1242-1249.
Raul Ruijs, 0.F.M.
Petrópolis, RJ
22
__ e
Tema Principal
Fala-se muito da missão profética da Igreja, inclusive dos cristãos
leigos. Ela inspira-se na espe_rança de uma nova terra ~nde h~i~â
a justiça (2' leitura). Encammha-se esta nova terra cheia de JUS~ça
mediante a proclamação profética da Boa-Nova da chegada do Remo
de Deus (1• leitura) em Jesus Cristo (3' leitura). Por isso escolheu-se
como tema principal:
JESUS E OS CRISTÃOS: PROFETAS DO REINO
Sugestões para a Homilia
Introdução
Unia das principais características dos profetas, que fre-
qüentemente encontramos na Sagrada Escritura, é qlje eles nun-
ca falam por autoridade própria nem se dirigem aos seus
ouvintes por meio de um «Motu próprio». Todos eles declaram
que sua mensagem é no fundo a palavra de Deus. Constante-
mente volta nas profecias a expressão: «Assim fala o Senhor».
Atrás das palavras de todos eles está o Senhor. E próprio de
um profeta não chamar a atenção para si mas para a men-
sagem do Senhor. E onde o Senhor não entra no jogo, onde a
palavra humana soa mais que a palavra de Deus, aí aparecem
os falsos profetas.
Corpo
1. Inicio Profético do Evangelho
No inicio da Boa-Nova, narrada por Marcos, nos é apre-
sentado um profeia muito especial, joão Batista. Para o povo
de lsrael ele tinha os traços de Elias. Andava com roupa es-
tranha. Não se preocupava com a comida e a bebida. Alimen-
tava-se com aquilo que encontrava no mato.
A reação do povo, que esperava a volta de Elias para o
fim dos tempos, deve ter sido: «Será que é Elias, o profeta
que voltou?» No entanto, Marcos não parece ter tanto interesse
em joão Batista. Nós o vemos no evangelho de hoje apenas
na sua função de anunciar um outro, alguém que ele mesmo ca-
racteriza como mais forte. Diante dele joão é nada, totalmente
insignificante.
E claro que um tal profeta impressionou muito ao povo.
Mas joão diz: «Vocês vão ver outra coisa. Aquele que há de
vir, fará coisas muito mais impressionantes que em>.
23
\
L
 2. /wus, o Profeta do Reino de Deus
Jesus, anuuciado por João, continua na linha dos profetas.
Foi assim também que o povo o considerou: «um grande pro-
feta veio entre nós». No entanto, Jesus também era diferente
dos demais profetas da história de Israel. Falava de um jeito
que não encontramos nos outros profetas: «Ouvistes o que foi
dito aos antigos ... Eu, porém, vos digo •.. » Foi justamente este
seu jeito que causava tanta admiração e ao mesmo tempo tanta
revolta. Por isso não podia escapar da sorte dos profetas, mor-
rendo uma morte cruel. Jesus mesmo reconheceu isto claramente.
Mas, apesar de Jesus falar com uma autoridade extraordi-
nária, Ele sempre está numa atitude de escuta de Deus com
quem mantém uma relação intima de filho ao pai. Ele se vê
como um enviado do Pai e só faz o que Este lhe manda.
Mais do. qúe qualquer outro profeta Ele está cheio do Espírito
de Deus. "1
Estamos aqui diante de um dos grandes mistérios na vida
de Jesus, o mistério do Pai que O envia e nele fala. Podería-
mos ter aqui a mesma curiosidade ou o mesmo interesse de
Filipe quando pediu a Jesus: «Mostra-nos o Pai». Mas, parece
que para Jesus este pedido é meio absurdo, respondendo: «Quem
me vê, vê o Pai». O que se pode saber do Pai, revela-se neste
homem Jesús, o protótipo dos profetas, este que está cheio do
Espírito Santo.
Se o cristão está cheio do Espírito Santo, vêmo-lo na medi.da
em que ele tealiza uma ação profética a exemplo de ]esns. Não
precisa ir longe para procurar onde atuar profeticamente. A
nossa sociedade é um desafio constante para uma tal ação
profética.
Alguém poderia dizer: «Mas, o que em dois mil anos os
cristãos não conseguiram, será que um grupinho de cristãos
proféticos ou eventualmente uma Igreja profétíca vai conseguir?»
Quem quer animar pessoas para dedicar-se a um ideal não faz
isto com uma exposição científica. Viver, falar e agir profetica-
mente sempre tem algo de ir atrás de uma utopia. É um jeito
que contamina os outros.
Se em torno dos cristãos e no meio da Igreja aparecem
certos traços do Reino, onde há vez para o pecador, para o
marginalizado e injustiçado, então poderemos estar certos de que
o Batismo com o Espírito Santo se realizou. Se os cristãos con-
seguirem assim engajar-se e contaminar igualmente os outros
para ir atrás desta utopia e assumi-la, então o Reino está no
meio de nós.
Geraldo van Buul, O.F.M.
Santos Dumont, MO

3. Vocação e missão profética dos cristãos

Ê desté Jesus que João Batista diz na sua pregação: «Eu

batizei com "água, mas Ele batizará com Espíri1o Santo». Como
a água do rio Jordão envolvia todos que nela eram submersos
após ouvir a palavra do profeta, assim aqueles que atenderem
à Palavra de Jesus serão envolvidos totalmente pelo Espírito
Santo, o mesmo espírito que envolvia Jesus. Todos que aceita-
rem a palavra de Jesus terão algo daquele jeito profético de
Jesus. A missão deles é, na escuta do Pai, ou em obediência
a Ele, anunciar e realizar, como Jesus, o Reino.
A concretização deste Reino, Jesus realizou-a de uma maneira
especial por seu jeito profético de escolher o lado dos margina-
lizados e menos favorecidos tanto no plano religioso quanto so-
cial. Assim Ele tornava-se realmente instrumento de perdão
para os pecadores; distribuía pão aos famintos; defendia os
injustiçados.
24
25
 Terceiro Domingo do Advento
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Is 61,1-2a.10-11
cO Senhor Deus fará germinar a justiçU>
O Profeta se apresenta abruptamente com a missão de anunciar
uma mensagem de libertação aos mais necessitados. E isto como con-
seqüência de uma unção especial do Esp!rito. Usava-se a cerimônia da
unção especia}mente na _entronização dos reis (ISm 9,16; 16,1.12; !Rs
1>39). O sentido desse rito era marcar com um sinal externo no caso
com o óleo, a estes homens como eleitos e separados por Deus para
o governo do povo. Pela unção o Esp!rito de Deus descia sobre o
ungido (JSm 16,13) dando-lhe assim as condições de exercer sua missão.
~a nossa perícope a presença do Esp!rito de Javé é tão forte que o
r·1to do óleo passa para um segundo plano. A consagração a Deus con-
fere ao Profeta a missão de ser mensageiro de uma boa-nova. Esta
novidade dirige-se em primeiro lugar aos pobres os «anawim»: pes-
soas humildes, fié!s _ a Deus. que sofrem por caus~ de doenças, da po-
breza, de perseguiçoes e prisões. A estes todos é anunciado o fim de
seus sofr}mentos, a libertação de sua situação de misér·ia e escravização.
:B anunciado um ano de graça, um ano de libertação. Há aqui uma
alu~ão ao ano sabático, ou ano jubilar (Lv 25,!0ss) em que cada fa-
míha retornava a recuperar a posse d~ sua terra que, por acaso, ti-
vesse vendido, ano em que os escravos recuperavam a liberdade e as
dívidas eram canceladas.
O sentido desses versfcu1os aplica-se perfeitamente ao Novo Tes-
tamento. ~risto _mesmo os aplicou a s~ ao apresentar-se na sinanoga
de Nazare: «Ho1e se cumpriu este oráculo que acabais de ouvir> (Lc
4,16-21). No tempo do Advento a mesma mensagem é dirigida, com
toda sua carga de esperança, para libertar os homens sofredores de
nosso tempo de toda espécie de sofrimento e opressão.
~ conseqüência d~ssa boa notícia é um hino de júbilo e alegria
que rrrompe no coraçao dos pobres. Apesar de predominar no Antigo
Testamento as perspectivas e promessas de ordem materia1 nesses vv.
10-11 o motivo da alegria é totalmente espiritual, é Deus ~esmo. Usa-
se a metáfora, bastante comum, da veste: vestimenta de justiça, manto
de salvação, para significar uma atitude interna de júbilo e festa. Am-
bas as expressões querem dizer a mesma coisa. Jndicam a plena liber-
tação da penosa situação de outrora. O júbilo e a alegria de que vai
gozar o povo eleito são comparados aos que têm os jovens esposos
ao vestirem seus trajes de festa para o encontro de amor. E tudo
isto não é uma coisa longínqua, imprecisa, duvidosa. O profeta insiste
na certeza da realização de tais promessas. Com a mesma certeza com
que o sol faz germinar os grãos, brotar e reverdecer o jardim, Deus
!arâ desabrochar toda a riqueza de sua salvação.
Para nosso povo, sobretudo para a grande massa dos pobres e
sofredores, esmagados pelas engrenagens de uma ordem injusta e es-
26
eravizadora, as palavras do Profeta soam como um grito de esperança
da próxima vinda do Deus que liberta.
Blbllograjla: Pen na, Jsata, Marletti; Piro t-C J ame r, La Sainte Bible, t.
VII, Letouzey et Anê; C o r d e r o, La Biblla Comentada, t. Ill, BAC.
Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
Santa Maria, RS
Segunda Leitura: 1Ts 5,16-24
«Examinai tudo. Retende o que for bom>
Na parte conclusiva da Primeira carta aos Tessalonicenses, Paulo
exorta quanto à vida comunitária, explicando o v. llb: «edificai-vos mu-
tuamente». Para tanto é necessária solicitude fraternal, oração, ação de
g.raças e alegria de viver, como também o uso correto dos carismas
dados pelo Espírito a cada um dos membros da comunidade.
O texto pode facilmente ser dividido em três partes, onde cada uma
sublinha uma realidade da vida em comum. A primeira mostra as qua-:-
lidades pessoais do fiel, a segunda o discernimento quanto às doutri-
nas, e a terceira a atitude para com Deus. Os vv. 16-18 mostram as
três atitudes do homem diante de Deus e sua vontade. Nenhum sofri-
mento destrói a fonte da nossa alegria, que é a certeza da salvação
em Cristo, ao qual nos unimos pela oração, e a quem devemos render
graças, também pelas provações e sacrifícios. Só no cristão podem estar
presentes e são possíveis estas atitudes, frutos de privilégios extraor-
dinários concedidos por Cristo, morto e ressuscitado, exemplo e fonte
de aceitação da vontade de Deus.
Na segunda parte, Paulo exorta a não criar obstáculos às mani-
festações do Espirita que, como um fogo, abrasa, aquece e não deve
ser extinto na comunidade. Fazer isso seria opor-se à graça. Sobretudo
deve-se aceitar as legítimas interpretações dos «Sinais dos tempos>, as
profecias. Elas são - exortação, edificação e consolação (lCor 14,3)
- inspiradas pelo Espírito, embora possam introduzir-se eJementos hu-
manos que o discernimento deve saber identificar e afastar (lCor 12,10;
14,29). Discernir é essencial à comunidade, pois a conduz à maturi-
dade, pela qual ela é capaz de perceber o que mais lhe convém. Dis-
cernir é criar uma sensibilidade comum, que inspira, nas situações con-
cretas, posicionamentos precisos, concordes, exatos e comuns em prol
da edificação dos irmãos (Fl 1,9-11), pelo serviço da Igreja, forta-
lecimento da sua unidade (cl. !Cor 12) e submissão à lei mâxima da
caridade (e!. !Cor 13).
Em vários momentos da Igreja a ação do Espírito inquietou seus
dirigentes (ci. !Cor 12-14). Entretanto, Paulo exorta, não a extinguir
a ação do Espírito, mas a discernir sua presença. Desprezar a profe-
cia, seria um risco demasiado grande, seria empobrecer a Igreja. O
Esplrito é livre, sopra onde e quando quer (cl. jo 3,8), sem ele a Igreja
não existiria, perderia seu dinamismo, sua criatividade. Convém, no en-
tanto, lembrar que os «dons» não é o todo do cristianismo.
A parte conclusiva do texto, w. 23-24, é uma oração paralela à
de 3,11-13, que conclui a primeira parte da carta. O homem é obje-
to do beneplácito divino, e deve-se conservar sem defeito para o Dia
do Senhor.
27
 O problema suscitado pelo v. 23 é quanto aos três termos que
Paulo usa para descrever o homem. Não se pode dizer que Paulo
adote a tricotomia grega, pois só neste versículo tais termos são usados
juntos. Deve-se dizer que espírito e alma são uma úni-ca e mesma rea-
lidade, sem necessidade de se apelar para uma parte inferior e outra
superior do homem, para a identificação semântica entre cvosso es-
pírito» e «convosco» (Masson), ou dizer que se trata do Espírito de
Deus no homem (BJ). Paulo não pretende formular nenhuma doutrina
antropológica com um só vers!culo, e para ele são duas palavras que
indicam uma única realidade. Ele, de fato, usa indiferentemente os dois
termos (cf. lCor 16,lBi 2Cor 7,13), assim tudo o mais que se con-
clui vai além do texto. O que Paulo quer afirmar é que a bondade
de Deus invade o homem todo (TOB).
O Deus da paz, invocação freqüente em Paulo (Rm 15,33; 16,20;
Fl 4,9; 2Cor 13,11), é a fonte da santidade. Ele escolhe, santifica, con-
sagra, separa os homens que deverão se conservar irrepreensíveis para
o Dia do Senhor. O homem recebe de Deus um dom - a santificação
- e deverá. conservá-lo até o fim. No homem, Deus levará a termo a
sua obra, basta que o homem não crie obstáculos. Ele mantém sua
palavra, cumpre sua promessa, é misericordioso, é fiel.
Bibliografia: C a n t 1 na n t, J.,, Les :Epltres de St. Paul expliquées, Paris 11>'70;
Sta -a b, K., Le lettere .ai tessa1onlcesl Brescla 1961; .M. as s o n, e., Les deux
épltr-es de Saint Paul aux ThessaloniclenS, Paris 1957.
Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
Paulista, PE
Terceira Leitura: Jo 1,6-8.19-25
«Veio para dar teslemunhU»
1. Explicação
Jo 1,6-~ forma um parêntese no Prólogo de João; interrompe a
seqüência dos vv. 1-5 e 9-14. Alguns exegetas vêem em jo 1,6-8.15 res-
tos de um outro texto, que teria sido intercalado no Prólogo original;
este texto teria sido um começo de evangelho, semelhante a Me l,lss,
e continuaria, depois de 1,6-8.15 (introdução do testemunho de joão)
com jo 1,19ss (o testemunho propriamente). ~ nesta teoria que se ba-
seia a delimitação da leitura evangélica do 3• Domingo do Advento.
Fica, porém, muito hipotética.
Os vv. 6-8 explicam que João Batista não é a Luz verdadeira, mas
testemunha da Luz. Suspeita-se que esta afirmação enfática responda à
opinião de certas seitas, de que João seria o Messias (cf. o testemunho
a respeito da. sobrevivência de tais seitas, vários decênios depois da
morte de Cristo, em AI 18,25; 19,3-4). A própria tradição sinótica atesta
o alto conceito do qual gozou o Batista, junto ao povo, a Herodes e ao
próprio Jesus (Mt 11,11 par; 14,5-9 par; 16,4 par; 17,13; 21,26). Sem
dúvida, a figura de joão marcou sua época. O Quarto Evangelista pa-
rece querer -definir claramente o lugar de joão. Ele não é a Luz, mas
testemunha da Luz. A Luz é o Logos, jesus. João é apenas uma lâmpada
provisória (Jo 5,33-35). Isto, os judeus o aprenderam de seu próprio
testemunho, narrado no evangelho de hoje (jo 1,19ss).
28
A primeira parte do testemunho de João (vv. 19-23) apresenta joão
como «mera voz>, anunciando o Messias. Vem a ele uma delegação de
peso: sacerdotes e levitas de Jerusalém: os dignitários do Templo, em-
bora as verdadeiras autoridadesJ por enquanto, fiquem ainda nos bas-
tidores. O estilo da delegação jã tem características judiciais. O Quarto
Evangelho é, todo ele, desde o começo, uma evocação do processo contra
jesus. Neste processo, o Batista é urna das testemunhas. Por isso a
solene fórmula judicial ao pronunciar seu depoimento, dizendo o que
ele não é: cEle confessou e não negou; confessou ... » (v. 20). Por
isso também a menção deste depoimento no próprio Prólogo (vv. 6-8.
15). João não é, em primeiro lugar, o «Cristo», o Messias, o Ungido,
o Enviado de Deus para libertar o povo e instaurar o Reino de Deus.
Mais ainda, ele não é Elias, que, conforme MI 3,1.23-24, devia voltar
para preparar a visita de Javé a seu Templo - embora a tradição si-
nótica o tenha apresentado como 1al (MI 17,12s; e!. Me 9,12; e a
descrição do Batista como profeta no deserto [Me 1,2--6], precursor
[7-8], até na sua perseguição por uma princesa [Me 6,17-29] seme-
lhante ao profeta de Tishbe). Jo não menciona o dito que identifica o
Batista com o precursor apocal!ptico de MI 3,1 (Me 1,2; MI 11,10 par).
Cita apenas o texto de Is 40,3 (e!. Me 1,3 par), sobre a voz que manda
aplainar um caminho para o Senhor no deserto (Jo 1,23). Esta notá-
vel diferença com a tradição sinótica pede explicação. Talvez o quarto
Evangelho represente a tradição de uma comunidade onde não foi rea-
lizada a identificação do Batista com o precursor apoca1íptico, o Elias
redivindo. Mais provável, porém, é que jo quer recusar qualquer título
de teor messiânico ao Batista, mesmo o de precursor, embora seria
a conseqüência natural do dito de jo 1,27 (d. Me 1,7 par). Também
o título de profeta é negado ao Batista (1,21), embora os Sinóticos
implicitamente, lho outorgaram (e!. Mt 11,13; 21,16 par). Observe-se,
porém, que se trata do título «0 Profeta», maneira messiânica de en-
tender o texto sobre o surgimento de novos profetas como Moisés, Dt
18,15. Pois o judaísmo do tempo de jesus interpretava este texto como
!alando não de profetas em geral, mas de um Profeta-Messias (em
jo 6,14 esta figura é aplicada ao próprio jesus). Portanto: o Batista
não é uma figura messiânica.
Vem, depois, o lado positivo de seu depoimento. João testemunha
de si mesmo que ele é meramente a voz anunciando a glória do Se-
nhor presente, se se pbde interpretar o v. 23 através da chave dada
no Prólogo, no v. 15, que relaciona o testemunho de joão com a apari-
ção da glória de Deus em jesus Cristo.
Na segunda etapa do inquérito, os mandantes da deleg~ção são
identificados como sendo os fariseus (v. 24). Historicamente, isto é
pouco provável, porque, no tempo de Jesus, as autoridades do Templo
eram os saduceus, sendo que os Sumos Sacerdotes pertenciam a esta
classe. Jo nunca os menciona. Pois não é ptopriamente historiador, mas
evangelista, o que é outra coisa. Escreve para seu tempo, e em seu
tempo, no fim do século 1, quem manda no judaísmo são os fariseus.
Jo projeta na narração evangélica a situação do fim do primeiro sé-
culo, quando, depois da destruição do Templo (70 dC), não mais a
aristocracia sacerdotal (os saduceus) e sim os fariseus (chefes das si-
nagogas, rabinos, escribas) assumiram a hegemonia do judaísmo* Tais
projeções aparecem também, em jo 9,22; 12,42s etc. Por isso devemos
suspeitar que a pergunta que os enviados dos fariseus, colocam ao
29
 Batista reflita alguma atualidade para os leitores de Jo também: por
que batiza ele, se ele não tem valor messiânico? Pois o batismo é
uma realidade messiânica, pelo menos o batismo pelo Espírito (Jl 3,
lss; cf. At 2,14ss). O quarto Evangelista encena aqui dramaticamente
a palavra de João, comparando seu batismo em água com o batismo
em espírito que Jesus realiza. Há duas cenas, vv. 24-27 e 29-34, sepa-
radas pela transição no v. 28. A primeira fala do batismo em água,
como anúncio daquele que vem depois: é o batismo que João adminis-
trava em Betãnia além do Jordão (25-27 e 28). A segunda (vv. 29-34,
que não deveriam ser separados de 1,19-28) revela jesus como o Cor-
deiro que tira o pecado do mundo (29) exatamente nisto, que ele
batiza com o Espírito que permanece sobre ele (v. 33, peculiaridade
de Jo). Enquanto em Me 1,4 par o batismo de joão é caracterizado
como batismo de perdão, em Jo 1,26-27 nem mesmo este sentido lhe é
dado; pois só Jesus tira o pecado do mundo (v. 29). O batismo de
João é mero testemunho daquele que vem e que jâ estã, incógnito, no
meio do povo. Isto também é de atualidade no fim do século 1, pois,
na comunidade cristã o Messias está no meio do povo, e o povo não
o conhece (cf. 1,10).
Em 1,24-34, Jo divide em duas cenas as palavras de Me 1,7-8.
Fazendo assim, valoriza muito mais seu sentido. Aparece com maior
clareza, sobretudo nos vv. 32-34, o específico de jesus. Em Me (1,9-11),
a descida do Espírito sobre Jesus fica ainda separada da pallvra sobre
o batismo no Espírito (Me 1,8). Em Jo (1,32-34) é dito que Jesus
batiza no Espírito somente depois, e em conexão direta com o teste-
munho do Batista a respeito da descida do Espírito (e a sua perma-
nência) sobre Jesus. Por outro lado, a palavra sobre o carãter provi-
sório da atividade do Batista (cf. Me 1,7) recebe em Jo (1,26-27) um
tratamento à parte, destacando assim a figura do humilde servo, que
não se importa com a concorrência que o batismo de Jesus lhe faz
(jo 3,25-28, referindo-se expressamente a l,21ss), mas pelo contrário,
se alegra com isto, porque assim se rea1iza sua missão (3,29-30).
Resumindo podemos dizer: 1) João era, depois do próprio Deus e
a Escritura, a testemunha por excelência de Jesus Cristo. 2) Ele não
possui nenhum valor messiânico em si mesmo, apesar das aparências,
pois «a graça e a verdade vieram em Jesus Cristo> (1,17) e é só
acreditando em Jesus que temos a vida eterna (e!. 17,3; 20,31). 3) O
batismo de Jesus é diferente de todos os outros (batismo dos proséli-
tos, batismo de João); mas o batismo de João é um testemunho: dele
saem os primeiros discípulos de Jesus (Jo 1,35ss; e!. At 18,25).
Nós fomos batizados no batismo de jesus. Testemunhamos do valor
único da realidade que Cristo traz presente, por uma vida Wgna deste
batismo?
2. Lugar na liturgia
O 3° Domingo do Advento é o domingo da alegria pela prox1m1-
dade do Salvador, o antigo domingo de cGaudete>. A 1• leitura insiste
no Mensageiro da Libertação (do Exílio); o evangelho apresenta João
Batista como mensageiro, dentro dos limites que a exegese apontou.
Ele não tem valor messiânico em si. Seu testemunho nos leva ao Sal-
vadorª O presente evangelho cria um certo «suspense» no conjunto da
liturgia do Advento: anúncio do «desconhecido» que está no meio da
30
t
gente, preparação da revelação do Natal. Este suspense provoca uma
alegria «ritenuta», discreta e misteriosa, prenhe de promessa. Por isso
talvez seja interrompida a leitura (que deveria continuar até o v. 34,
cf. supra) antes de chegar a completar sua mensagem.
Johan Konings
Porto Alegre, RS
Tema Principal
OS POBRES AGUARDAM UMA NOTICIA DE LIBERTAÇÃO
Sugestões para a Homilia
Introdução
Dentro de alguns dias estaremos vivendo a alegria da fes-
ta do Natal. Há já sinais de festa no ar e nos corações dos
homens. Alguém está para chegar. João Batista nos diz que Ele
já está no meio dos homens e Isaías falará desse Alguém como
anunciador de uma boa noticia aos pobres e aos oprimidos. Não
chegou ainda. Mas quem é esse Salvador que está para chegar
e que vem trazer uma mensagem de alegria para esse velho
e cansado mundo?
Corpo
1. O Deus que vem liberlar
Viver é construir sua história. Viver é sair de uma terra
de limitações e buscar espaços grandes e largos de liberdade.
É catar· o Absoluto no traço das coisas que passam e que nos
amarram ao fugidio. Israel fez essa experiência de catar o Ab-
soluto de muitas maneiras. Um modo particnlarmente especial
de encontrar-se com Deus foi através da experiência de escra-
vidão-libertação. Há muitos tipos de escravidão descritos nas
páginas da Bíblia. Há o Egito com suas falsas seguranças. Há
Babilônia, resultado do pecado e da miséria espiritnal. Há a
escravidão interior desse mesmo povo denunciada pelos profetas.
Todas as vezes em que o povo experimentou a libertação ex-
terior ou interior soube atribuir esse fato ao braço forte de
Dens. Entregue a si mesmo o povo não poderia empreender sua
viagem através do tempo. Deus se lhes apresenta como o Li-
31
bertador que não quer ver o povo errar e arruinar-se. O homem
entregue a si mesmo e levado pelo empenho de buscar-se a
si mesmo escraviza-se. Somente quando Deus é acolhido pelo
coração dos homens e quando Ele mesmo intervém começa-se
a realizar a libertação. Esta é a convicção de todos os pobres
de Javé na linha dos quais se insere Maria, a Mãe do Senhor.
Nessa mesma linha situa-se João, o Batista, o grande «abri-
dor» de caminhos para a vinda do Senhor. Somente quando
Deus se tornar homem e se vestir da carne perecível é que
processarã a mais total e a mais autêntica libertação.
2. Os pobres são evangelizados
Esse Menino que vai nascer se farã o anunciador de uma
boa-nova para o mundo. Um dia, numa sinagoga de sua terra,
ele se annnciarã Ungido para a missão de abrir os olhos aos
cegos, os ouvidos aos surdos e curar as feridas de todos. Es-
perar o Natal é esperar a chegada de Alguém que vem annn-
ciar uma possibilidade de sairmos do mundo estreito e taca-
nho de nosso pequeno universo pessoal. Ele pedirã que arrega-
lemos os olhos para ver mais além da vingança e do espírito
de competição. Ele descerrarã, cortinas e horizontes que encanta-
rão nossos olhos nos serão mostrados. Somente aqueles que
reconhecem fundamental e radicalmente sua impotência e aque-
les que reconhecerem a escravidão e as trevas em que vivem
quando entregues a si mesmos poderão acolher a chegada do
Menino. Terminarão para estes as preocupações fundamentais
e as angústias sem respostas. Deus mesmo vem para visitar as
estalagens dos homens e proporcionar-lhes a libertação. Liber-
tar-se é abrir-se interior e exteriormente para acolher Deus em
nós e nas engrenagens do mundo. Nessa Igreja que é a nossa
homens pequenos que cantam a cantigà da verdade sentirão que
suas algemas se quebram. Mulheres rétas e pobres por dentro
podem dançar de alegria. E o Sermão das Bem-aventuranças é
vivido. Os fqne choram, os famintos, ()S sedentos, os persegui-
dos por cansa da justiça, os puros verão a chegada da salva-
ção que vem no rosto de um menino que nasce na pobreza de
uma gruta. · que o Messias jã veio e estã entre nós e que continua atuando
3. As engrenagens da libertação
Os cristãos são portadores de uma mensagem de liberta-
ção para os pobres da terra. Não somente os pobres espiri-
32
tuais mas também toda essa multidão de famintos do saber e
do alimento, esses algemados pela dominação de uns e de ou-
tros, esses sem terra, sem nome, sem amanhã, sem esperança.
Não podemos fechar nossos olhos à dura realidade da vida de
muitos de nossos contemporâneos. Homens da Igreja, leigos con-
victos e corajosos têm procurado colocar em destaque certas situa-
ções dràsticas nas quais vivem operãrios, empregados, homens do
interior, trabalhadores em construções, vendedores de supermer-
cados. Hã uma opressão que é resultado da conjugação de in-
teresses de muitos e que não aparece claramente. A vinda de
Cristo, a chegada de Deus no humano deve provocar nesses
corações um movimento de alegria e de esperança. A ação e
a atuação de muitos cristãos convictos em prol dos direitos do
homem, da divulgação de toda uma série intentos e projetos
internacionais de exploração do pequeno chegam como anún-
cio de libertação. Uma certa Igreja se coloca ao lado dos mem-
bros das comunidades de base e leva-os a questionar suas
existências e buscar as razões por não serem ainda agentes da
história. Muitos desses pobres começam a se levantar. Fazem-
me lembrar o campo de ossos secos descrito no livro do pro-
feta Ezequiel. Essa multidão quase seca se levanta na força do
espírito e da presença de Deus. Os marginalizados, os peca-
dores, os pobres deverão sentir nos próximos anos a força da
Igreja que se encarrega de ser portadora de uma mensagem
de libertação. ·
E todos os satisfeitos exteriormente, os que não questio-
nam sua maneira de viver e de construir seu projeto de exis-
tência, os que contam com o valor das cifras e com o peso
do dinheiro, os que dominam pisando deveriam também tornar-
se pobres por dentro com a chegada de Deus no humano. De-
veriam abrir seus corações porque de outra forma não poderão
acolher a boa notícia. ·
Hã uma alegria no ar. É tempo de preparação do Natal.
Não bastarã fazer uma sacola de presentes que serã dada aos
pobres. Não serã suficiente fazer um presépio. Essa alegria que
estamos vivendo antecipadamente com i próxima chegada de
Deus no humano faz com que tenhamos a coragem de saber
pelo seu Espírito e pelos braços e empenhos dos cristãos.
Almir R. Guimarães, O.F.M.
Petrópolis, RJ
33

Quarto Domingo do Advento
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: 2Sm 7,1·5.8b·11.16/1
cSeu trono está firme para sempre>
Toda a passagem (7,1-16) está moldada em um jogo de palavras.
V. 5: «Eis o que diz o Senhor: Não és Tu quem me edificará uma
casa para eu habitar>; v. 11: •O Senhor anuncia-te que Ele quer fazer-
te uma casaJ>; v~ 16: cTua casa e teu reino estão estabelecidos para
sempre diante de Mim>. Casa significa alternadamente templo, descen-
dência e dinastia. Todo este jogo de palavras é usado para ensinar,
de um lado, que Deus é totalmente independente da dinastia davldica e,
de outro lado, que a dinastia davídica, a partir de seu fundador (cf.
vv. 8-91), é totalmente deptndente de Deus. Deus não precisa de uma
casa ou de um templo para estar presente entre seu povo ou para
manifestar esta presença.· Sua ação na história não está ligada a um
lugar santo e não é de nenhum modo geograficamente limitada. Um
templo não servirã a titulo nenhum de garantia da presença de Deus,
nem de meio de pressão para obrigá-lo a agir (cf. !Rs 8,27; Is 66,lss;
At 7,48). Para tirar qualquer dúvida ou equivoco a respeito alegam-
se alguns fatos da história de salvação que possam evidenciar esta
doutrina: a libertação do Egito (v. 6), a posse da terra prometida (v.
10), o tempo dos juízes (v. 11) e, ultimamente, a promoção ao poder
do próprio Davi. A intenção das referências ao passado desvenda-se
nesta frase, que diz respeito à ascensão de Davi: <Eis o que diz o
Senhor todo-poderoso: Eu tirei-te das pastagens onde guardavas tuas
ovelhas, para fazer de ti o chefe do meu povo Jsrael::t>. Em outras pa-
lavras: Davi chegou ao poder por pura graça divina. E para sublinhar
mais, que a construção de um templo não diminui em nada a inde-
pendência ou transcendência de Deus, nem o caráter gratuito de sua
presença e a liberalidade de sua ação salvífica, nega-se a proposta
de Davi e comuta-se a mesma em uma nova prova da graça divina:
a de fazer para Davi uma casa, isto é, de estabelecer a dinastia da-
vídica.. Para este fim Deus «compromete-se~ por o que se chama a
«aliança davldica. (cf. 2SJD 23,5; SI 88,35). Esta aliança representa um
ponto muito importante na história de salvação. Esta é, em grande par-
te, , uma história de eleições, confirmadas por alianças. Conhecem-se a
eleição e a aliança com Abraão, que marca o início da história de
salvação. A libertação do Egito e a aliança com as tribos de Israel
no Sinai é_ o segundo grande evento da história de salvação. O ter-
ceiro, que marcará profundamente o futuro modo de agir de Deus na
história humana, é a eleição e a aliança com a easa de Davi. Nesta
ocasião, a fórmula da aliança cEu serei o vosso Deus e vós sereis o
meu povo> (cf. Ex 6,7; Lv 26,12; 2Sm 7,24; Jr 7,23; 24,7; 31,33; 32,
38; Ez 34,24.30; 36,28; :>1,27; Os 1,9; 2,25; . Zc 13,9; !Pd 2,10; Ap
21,3) é modificada e especificada em favor de Davi e da dinastia da-
vfdica, tornando-se: «Eu serei para ele um pai, e ele será para mim
um filho> (v. 14). Esta «aliança davldica. é uma das fontes da pos-
terior esperança messiânica como ela se expressa em 1Cor 17,13; SI
2,7; 88,27-30, textos onde se usa a fórmula da aliança especificada (cf.
34
Hb 1,5; Ap 21,7) e em textos como Is 16,5; 37,35; 55,3; jr 33,14-lô.
22-26; Ez 34,24; Zc 6,12). ,
Estas intuições teológicas chegam ao seu auge· em textos do Novo
Testamento como jo 1,14: «0 Verbo se fez carne e armou a sua tend.a
entre nós>; jo 2,21: <0 templo do qual jesus falava era o seu pro-
prio corpo (ressuscitado)»; cf. ]o 4,20-26; !Cor 3,16-17. Em Cristo
todos são assumidos na aliança filial entr7 Deus e os ho1:11ens, . que
n'Ele o descendente de Davi por excelência, se tornam Pai e filhos
e m~rada de Deus viva.
Bibllografla: Os comentários rle van den B o r n e T u r r o (em: JBC); ]. de
v 1 Maison de Davld Malson de Dleu em: A'dS IJ,{,8 (1912) 28-33; X., em:
Oe~ u14x, (1969-1910) 14--17{ H. A. H o f ir{ e r, artigo bajit", em: TbWzAT, 1
(1972) 629-638.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Segunda Leitura: Rm 16,25·27
cO mistério agora manifestado»
\ O texto é urna doxologia, isto é, uma concl~o litúrgica, e i;or
isso considerado por muitos como não sendo paubno, mas. tendo sido
acrescentado depois de escrita a carta. De qualquer maneira o texto
reflete o pensamento paulino expresso na missiva, retomando os temas
essenciais e como tal deve ser considerado. ,
Num~ frase solene, mas de ritmo quebr.ad.!' e conteúdo. complexo,
Paulo louva a Deus que confirmará os cr1staos na doutr~na - no
Evangelho mensagem de Cristo - anunciada a todas as na_çoes. O que
Deus tinh~ a comunicar aos homens já fora reve1a~o parcialmente pe-
los profetas, mas só em Cristo tornou-se revelaçao total (Ef 3,5~;
Hb 1 J-2). Trata-se de uma revelação nova, enquanto completa e mais
prof~da, mas não de ruptura no plano divino. O desígnio ~e Deus
é sempre o mesmo, salvar todos os homens (cf.!Tm 2,4), pms Deus
é fiel Essa realidade Paulo chama de MISTÉRIO. O termo é comum
à filo~ofia popular, n~ entanto a terminologia paulina encont~a respaldo
na apocalíptica judaica (B]). Mistério corresponde à Sabedoria de Deus
(v. 27; JCor 2,7; Ef 3,9; CI 2,2-3) escondida e agora revelada (v. 25;
!Cor 2,7.IO; Ef 3,5.9s; CI 1,26). .
Agora, este mistério de Deus, isto é, sua vo~tade salvífica pa~a
com judeus e gentios, que sendo revelada e comu~1cada revela a pro-
pria pessoa de Deus em Cri~to, tornou-s~ .c?nhec1do dos homens. Os
homens poderão então andar a luz do rn1steno revelado por Deus em.
Cristo, isto é, viver na esperança-certeza de que Deus quer salv~
todos os homens, viver na fé, que sendo res_posta ao i::van.gelho enga1:i
0 homem todo e por isso é sempre obediente, obed1ênc1a 9ue é fe.
Ela exige que o homem se submeta e confo.rm~ su~ vontad~ a vontad~
de Deus que se revela como verdadeiro, m1ser1cord1oso e fiel. É a fe
que, renovando o homem, o faz obedecer à vontade de Deus (cf.
Rm 6,15-20 e 10,9). . .
Os homens vivem um momento de decisão. Agora Deus se man1..
festa e exige a obediência da fé. O agora do v. 26 é do mesmo teor
do de AI 17,30, onde Paulo convida os habit~tes_ de Atei!ª~ _à co!'·
versão. Diante do mistério revelado, só há acedaçao ou re1e1çao, nao
35
i
hã meio-termo. E a decisão deve ser tomada agora, não pode ser
deixada para amanhã. Cristo, chave da história e do destino dos ho-
mens, coloca todo e cada homem -em crise, quando se tem de se de-
cidir a favor ou contra _ele. Na comunidade vive-se um momento de
decisão, mas também de alegria por saber-se que nela, naquele mo-
mento - agora - Deus salva. A comunidade sente-se como um sinal
de salvação entre os homens.
Na conclusão da doxologia, em paralelismo com o hino à Sabe-
doria de Deus de 11,33-36, rende-se glória a Deus como sabedoria su-
prema e fonte de toda a sabedoria. A comunidade adota assim o estilo
de bênçãos e doxologias do Antigo Testamento, chamando, porém, Deus
de Pai e colocando Jesus Cristo como único mediador da glória e ação
de graças dadas pelos homens a Deus.
Bibliografia:. C a n t 1 n a n t J., Les Epitres de St. Paul expliquées, Paris 1970;
B ar t h K., The Epistle to the romans, London 1968.
Carlos Alberto da Costa Silva, S. C.J.
Paulista, PE
Terceira Leitura: Lc 1,26-38
«Eis aqui a serva do Senhor»
1. O evento narrado em Lc 1,26-38 é proposto como a realização
perfeita e definitiva da promessa feita a Davi em 2Sm 7 e de muitas
outras profecias messiânicas. Esta ligação entre a promessa e sua rea-
lização é sugerida por muitas citações implícitas e alusões a textos do
Antigo Testamento. Alguns deles aparecem no comentário que se segue.
2. Parece-nos .que Lucas, em 1,26-58, segillu também a estrutura
literária de 2Sm 7,1-29. Existe nos dois textos uma subdivisão quase
igual em duas partes. - 2Sm 2,1-17 contém a promessa do prufeia
Nalan a Davi, Lc 1,26-38 a anunciação do anjo Gabriel a Maria (com-
parem-se especialmente 2Sm 7,12s.16 e Lc 1,32-33). - 2Sm 7,18-29
relata a reação de Davi à promessa, Lc 1,39-56 a reação de Maria à
anunciação. - Ambas as reações têm a forma literária de uma ação
de gratas e J.oJIVação em que se -celebram as grandes coisas ou mara-
vilhas que Deus fez seja a Davi (2Sm 7,18b-21.25-29), seja a Maria
(Lc 1,46-49), seja ao Povo e/eito (2Sm 7,23-24; Lc 1,54-55).
3. A afirmação básica das duas partes, tanto de 2Sm 7 como de
Lc 1,26-56, diz respeito 'à gratuidade absoluta da ação de Deus ao
escolher seu servo Davi e sua serva Maria e em realizar suas ma-
ravilhas. N-a promessa de Natan, Davi é lembrado de que Deus o ti-
rou das pastagens onde cuidou do rebanho (2Sm 7,8). Davi começa
sua prece reconhecendo:· «Quem sou eu, Senhor, e quem é a minha
familia, para que me tenhais trazido até aqui?» (2Sm 7,18). O anjo
Gabriel é enviado a Nazaré, aldeia ·sem importância no interior da Ga-
liléia (cf. Jo 1,48; Me 6,lss), a uma moça que se admira demais da
escolha de Deus. Por isso ela diz na sua prece: «porque Ele se lem-
brou de mim, Sua humilde serva» (Lc 1,48).
4. Natan e Gabriel situam as suas mensagens nas grandes pers-
pectivas da história da salvação. Davi e Maria fazem o mesmo nas
suas preces. Este contexto da história da Salvação revela a importância da
promessa a Davi e da concepção virginal de Maria. Faz-se uma re-
ferência às promessas feitas aos patriarcas (Lc 1,55), à misericórdia
36
de Deus para com Israel, Seu servo (Lc 1,54) e Seu povo, que Ele
libertou do Egito e conduziu à Terra Prometida (2Sm 7,6.23). A pre-
sença de Deus no meio do Seu povo sob a tenda e sob um taberná-
culo (2Sm 7,6) é agora ultrapassada pela presença de Deus em Maria,
indicada nas palavras: <0 Senhor está contigo» (1,28) e «a força do
Altíssimo te cobrirá com a Sua sombra» (l,35; vê-se, nesta formula-
ção da presença divina, uma alusão à tradução grega .de textos como
Ex 40,34-35; Nm 9,18-22; 2Cr 7,2).
5. A saudação a Maria <Alegra-te, cheia de graça> (Lc 1,28) é
interpretada como alusão ao início das profecias messiânicas de Sf
3,14-17; Jl 2,21-27 e Zc 9,9-10. A saudação <O Senhor estâ contigo>
(Lc 1,28) parece o eco e o cumprimento das expectativas da pre-
sença messiânica de Deus entre Seu povo, expressas nestas mesmas
profecias: <0 rei de Israel que é o Senhor estâ no meio de ti> (SI
3,15); cSabereis, então, que estou no meio de Israel> (Jl 2,27); «Eis
que vem a ti o teu rei» (Zc 9,9).
6. A questão da historicidade da narração da anunciação é hoje
em dia muito discutida. Tenta-se resolver esta questão difícil pelo es-
tudo do gênero literârio. A solução haverei de respeitar um princípio
básico do modo de agir de Deus, expresso em palavras como esta: «0
Senhor Javé nada faz sem revelar o seu segredo aos seus servos> (Am
3,7). O fato da concepção virginal supõe que Maria tenha sido inicia-
da no mistério do fato de um modo e em uma linguagem acessíveis
a ela. A linguagem mais adequada tem sido, sem dúvida, a do An-
tigo Testamento, isto é, aquela que também Lucas usou para relatar
e interpretar o fato.
O modo de comunicação deve ter sido o de um diâlogo com pro- .,
posta e resposta, que deixasse margem ·para uma resposta livre, para
urna atitude de fé e de entrega, porque Deus não age na história de
salvação senão por meio de seres humanos livres que n'Ele crêem e se
colocam confiadamente a Seu serviço.
Bibliografia: A mesma de A 1\Jesa da Palavra, Ano B, p. liOI; R. L a u r e n ti n,
Structure et Thiiologie de Luc 1-11, 1964; G. Lo h 1 i n k, A Anunciação do Nascimento
de jesus, em: ld., Agora enteni.lo a Bíblia. Para você enteni.ler a Critica das Formas,
S. Paulo 1978, p. 110-121.
Raul Ruijs, 0.F.M.
Petrópolis, RJ 1
J-i
Tema Principal !
MARIA, MODELO DE FÉ, MODELO PARA TODO CRISTÃO
Sugestões para a Homilia
Introdução
O evangelho da anunciação (Lc 1,26-38) nos permite dois
tipos de reflexão: um acentuando as grandezas de Maria, a
cheia de graça, a mãe de Deus, a esposa do Espírito Santo,
a figura feminina central na história da Salvação: outro su-
blinhando a pequenez de Maria, a serva do Senhor, a mulher
37
que se perturba, que tem de crer. Ambas as perspectivas são
verdadeiras à condição de serem sempre pensadas juntas: aque-
la que é a serva humilde, mulher simples do povo é também
aquela que é a plena de graça, a bendita entre as mulheres e
a mãe do Altíssimo. Hoje em dia somos mais sensiveis aos
traços simples e humanos de Maria porque estamos interessados
numa piedade mariana baseada não tanto na exaltação e no
culto mas na imitação e seguimento. Nesta perspectiva quere-
mos meditar na fé de Maria. Aqui ela aparece como compa-
nheira em nossa caminhada e nos serve de modelo luminoso.
Corpo
t. Maria primeiro concebeu no espirito, depois no corpo
Ao contemplarmos Maria, corremos o risco de imaginar que
nela tudo era fácil e transpareute. Ela sabia de tudo, de ser a
Mãe de Deus, de que o Menino Jesus era o Messias e o Filho
do Altíssimo, de que ela era a bendita entre todas as mulhe-
res. Os evangelhos não nos transmitem semelhante idilio. An-
tes pelo contrário, mostram-nos Maria, andando na obscuridade
da fé, nem sempr~ entendendo os caminhos misteriosos de
Deus. São Lucas nos conserva o testemunho de Isabel acerca
de Maria: «feliz aquela que creu» (Lc 1,45) e aquele dele
mesmo ao comentar as palavras de Jesus após o reencontro,
por ocasião da perda na peregrinação a Jerusalém - «Não
devo tomar conta das coisas que são do meu Pai?» (Lc 2,49)
- : «José e Maria não compreenderam o que ele lhes dissera»
(Lc 2,50). Estes testemunhos nos revelam a real grandeza de
Maria: sua vida de fé, de entrega humilde e confiante aos
designios de Deus. Esta atitude de Maria aproxima-a de nos-
sa própria vida que é um andar no sofrimento da obscuridade
que se desfaz somente mediante a fé. Duas coisas transparecem
de Maria nos evangelhos: sua vida de fé que não entende tudo
mas confia (Lc 1,38) e sua fé que cresce mediante a reflexão
e a meditação (Lc 1,29; 2,19). O evangelho de hoje é explí-
cito: «Maria refletia no que poderia significar a saudação (do
anjo)» (Lc 1,29). E após esta reflexão, depois de ter ouvido
as palavras (Lc 1,29), ela superou a perturbação inicial e dis-
se: faça-se! .Como diziam os Santos Padres: primeiro Maria
concebeu em .seu coração, depois em seu seio; primeiro con-
cebeu no espírito mediante a fé, depois no corpo.
A anunciação mostra a dinâmica de fé em Maria. O anjo
comunica coisas inauditas: ela é cheia de graça; embora vir•
38
gem conceberá; a força geradora será o Espírito Santo; o filho
que nascer, Jesus, será por um lado seu filho, mas também
Filho do Altíssimo; será o Messias cujo reino não terá fim.
Como crer em tudo isto? Não seria alucinação? Onde estão os
sinais que tiram a dúvida? Poderá Deus fazer tais e tantas ma-
ravilhas numa simples mulher do povo, vivendo na província,
no anonimato de toda a história? Maria se perturba (Lc 1,29)
e tem medo (v. 30). Mas não duvida. Apenas pergunta pelo
como se fará isso (Lc 1,34). Ela ouve promessas, escuta a
linguagem do futuro, aceita coisas que não se vêem. E ela creu,
pois para Deus nada é impossível (Lc 1,37). Não consiste exa-
tamente nisto a fé, como a epístola aos Hebreus o explica tão
bem? (Hb 11, 1) : "ª fé é a antecipação das coisas que se es-
peram, a prova das realidades que não se vêem».
Maria creu sem dar-se conta de toda a profundidade da-
quilo que ouvia; certamente possui uma consciência real de sua
maternidade ligada ao Espírito Santo, dá-se conta de que a sal-
vação dos homens está vinculada ao filho que começa a nascer
em seu seio, mas de forma imprecisa e obscura. A vida vai
tornando manifesto aquilo que lhe era confuso. É próprio da
fé viver no lusco-fusco, criar luz na medida em que acolhe e
se entrega ao plano de Deus. Este foi o caminho de Maria;
é o caminho de todos os homens de fé. A fé convive com a
perplexidade mas não pode subsistir com a dúvida. Deve-se su-
perar a dúvida. Zacarias duvidou da palavra do anjo: «Como
terei certeza de que Isabel, já velha, vai conceber?» (Lc 1,18).
É punido, pois o anjo lhe diz: «Porque não creste, ficarás mu-
do» (Lc 1,20). Maria creu e recebeu o louvor de Isabel quando
foi visitada por Maria: «Feliz porque tiveste fé .. "' (Lc 1,45).
2. Crer é dizer: Eis-me aqui, faça-se/
Que significa crer? Olhando para o exemplo de Maria po-
demos discernir três pontos fundamentais. Em primeiro lugar,
crer é um confiar e um confiar-se a um outro. Quem sabe, vê,
conhece e anda na luz não precisa crer. Crer significa confiar
apesar da obscuridade; acolher apesar de não ver claro por-
que é Deus quem está falando; entregar-se e arriscar na espe-
rança de não ser defraudado pelo outro. É uma atitude que
exige pobreza interior, desapego das próprias seguranças, li-
berdade para o novo e o inaudito. Em segundo lugar, crer sig-
nifica um abrir-se aos planos e à verdade de um outro. Não
basta confiar. Importa assumir a mensagem do outro, embora
não se veja a lógica e a transparência desta mensagem. Maria,
39
i·'
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1l.. ~~j
 por exemplo, acolhe o conteúdo das palavras do anjo: de ser
virgem e mãe, de o Filho ser Deus, Messias e Salvador. A fé
implica um abrir-se a um Maior que_ tem os segredos de todos
os caminhos e sabe melhor o sentido impenetrável que Deus
' confere ao caminhar humano. Crer é poder dizer fiai/ faça-se!
não conforme a minha compreensão e os meus desejos, mas
1
conforme a palavra e os desígnios do Altíssimo.
Por fim, crer significa obedecer. Obedecer é oferecer-se para
realizar os planos do outro; obedecer é ouvir a palavra do outro,
acatá-la e cumpri-la. Foi o que fez Maria. Ela simplesmente
diz: Eis-me aqui (Lc 1,38) ! Crer e obedecer é aceitar entrar
no des!gnio de Deus, estar pronto para realizá-lo, embora não
se vejam todos os seus passos. É ser servo do Senhor, como o ex-
• primiu excelentemente Maria (Lc 1,38). Ser servo de Deus não
" significa ser escravo; Deus não quer escravos, mas livres. Por
isso, não invadiu o seio de Maria; pediu licença e ofereceu sua
proposta de salvação. Maria responde na liberdade. Ser servo
significa prontificar-se a realizar úma missão que é de grandeza
!'
i e dignidade. Maria fez-se serva, no sentido de assumir a dig-
nificante tarefa de oferecer a carne humana ao Verbo eterno;
1
. de ser o h1gar onde Ele se enraizou no meio de nós e começou
' a nos libertar.
Maria, por sua palavra e por suas atifüdes, fez-se modelo
para todos os que crêem. O Antigo Testamento começa com a
fé de Abraão (Gn 15,6): «esperando contra toda esperança,
ele creu e tornou-se assim pai de uma multidão de povos» (Rm
4, 18). O Novo Testamento começa com a fé de Maria. Ela é
a mãe e o exemplo de todos os membros da Nova Aliança,
assim como Abraão foi pai e exemplo dos crentes de Israel.
Somente nela a Igreja, comunidade dos fiéis, se realiza plena-
mente, porque sua fé foi completa e perfeita. Crendo como ela,
se constrói a Igreja e a fé traz novamente o Verbo entre os
homens para iluminar e libertar.
Leonardo Boi!, O.F.M.
Petrõpolis, RJ
' crita em v. 8 com os acréscimos: louvando o Senhor / no dtrio do meu
1
1 40
'1
Natal: Vigília
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Is 62,1·5
cNão me ralarei. . . até que a justiça brilhe como a aurora>
A unidade literária a que pertencem vv. 1-5 vai até v. 9 inclusive.
Não seria totalmente sem sentido ler toda a profecia. Pois o que a
primeira parte (vv. 1-7) diz em termos abstratos (justiça; salvação; vitó-
ria), poéticos (as esponsálias entre Deus e Seu pr>Vo) e simbólicos ( co-
roa; diadema) e em imagens bonitas e até comoventes (noivado), a
segunda parte (vv. 8-9) transpõe em termos diretos. Lendo a primeira
parte (vv. 1·7) pergunta-se: o que é que significa justiça, salvação, vi-
tória (vv. 1-2), felicidade (v. 5), glória (v. 7) em concreto? O que
corresponde na realidade a esta linguagem abstrata e poética? Ou, pior
ainda, não se pergunta isto, pensando que já se saiba o que aqueles
termos e aquela linguagem poética significam. Neste caso, em vez de
interpretar devidamente o texto, começa-se - na exegese, na homi-
lia ou no circulo bíblico - a expor, desenvolver e remastigar idéias
e conceitos próprios - pré-conceitos - de justiça, salvação, felicidade,
etc., que talvez reflitam uma certa carga de conceitos tradicionais aéreos,
mas não têm contato com o texto bíblico nem com a realidade que
este interpreta.
É importante prestar atenção àqueles detalhes no texto bíblico em
que transparece a realidade e através dos quais se tem contato com
ela. Pode-se dizer que, no caso de Is 62,1·9, encontram-se estes deta-
lhes em vv. 4a.8-9:
e. . . não mais serás chamada a desamparada,
nem tua terra a abandonada ... > (v. 4a)
cNão deixarei mais teus inimigos alimentarem..se de teu trigo,
nem os estrangeiros beberem o vinho, produto de teu trabalho.
Aqueles que colherem o trigo o comerão / louvando o Senhor
aqueles que vindimarem beberão o vinho / no átrio do meu san-
tnário> (vv. 8-9).
Em v. 4a - a parle negativa dos contrastes que segnem em v.
4b - escuta-se ainda um eco do gênero literário das lamentações so·
bre a jerusalém destruída e sua população desterrada pelos babilô-
nios. O profeta deduziu dos sinais dos tempos, isto é, do soerguimento
de Ciro, rei da Pérsia, em detrimento do império babilônico, que para
o povo de Deus as coisas iriam mudar. Vv. 1-7 são a verbalização
poética ou a transposição Jingü!stica da certeza desta esperança; vv.
8-9 são a transposição Jingillstica do conteúdo ou do objeto desta es-
perança, em v. 8 - como em v. 4a - em forma negativa e em v. 9
- como em v, 4b - em forma positiva. A injustiça, percebe-se aqui,
é o roubo do produto do trabalho pelos imperialistas estrangeiros. A
justiça, a salvação, a vitória, a fellcldude ou a concretização histõriea
do amor de Deus pelo Seu povo consiste e se revela no pleno gozo
do produto do trabalho.
Em termos de análise estillstica, é muito significativo que o au-
tor. enriquece a repetição positiva (em v. 9) da situação negativa des-
41

santuário. A euforia sobre a felicidade jã prevalece tanto na mente do
autor que em v. 8 já não se lembra do gemido do povo sob o jugo
da opressão (em v. 4a ainda escuta-se um eco desta lamentação!). Em
?· 9 _o Io.uvor. do Senhor no Seu santuário é o eco da reação do povo
!' açao s,'.'1vlflca .de .Deus. Es!e louvor supõe a salvação do povo e a
1mplantaçao da JUStiça. Convidar o povo castigado pelas injustiças e
pelo roub? . do pro.dut~ de seu trabalh~ a _celebrações litúrgicas solenes
em santuar1os nac1onrus certamente teria sido para os hagiógrafos um
contr'!-senso de mau gosto. Exaltar o matrimônio perfeito como reflexo
da ahança de De1;15_ com ~ Seu poyo, a partir de v. 5, esquecendo-se
d~. qu~ es~a perfeiçao supoe o mínimo necessário para sobreviver, sig-
n1f1car1a distorcer o texto sagrado.
Raul Ruijs, O.F.M.
. Petrópolis, RJ
l
Seguoda Leitura: At 13,16-17.22-25
«Da descendência de Davi Deus fez sair o Salvador fe=
. Paulo es!â _em Antioquia de Pisidia, na sinagoga judaica, onde ou-
vm,_ como cnstao, as leituras da Lei (parashá) e dos Profetas (haph-
tara) daquele sábado, quando lhe foi oferecida a palavra (vv. 14s).
Pr~ocupava-o so~remaneira a salvação de seu povo, mais do que a
s_ohdanedade n_ac1onal. Sabia como, por experiência, no passado resis-
tira ao .c~nhectmento e à f.é em jesus ·Cristo, extremamente zeloso pe-
las trad1~oes pater.nas (Gl 1,14). Agora, porém, testemunha aos judeus
a salvaçao em Cristo jesus, entende as Escrituras de outro modo (cf.
2Cor 3,6ss). Apesar do ambiente externo israelita, o Apóstolo interior-
~e!lte sente bem outra realidade. Aproveitou a oportunidade para di-
rigir-lhes alguma exortação (v. 16). O «sinal ~om a mão (erguida)~
1 era metáfora hebraica para denominar o poder de Deus. Pelo contexto
s~be:-se que havia .ouvintes israelitas, prosélitos (já circuncidados) ~
" ~ª?:JU~eus;_ estes cnam no verdadeiro Deus e simpatizavam com a re-
bg1ao 1uda1ca, aguardando a salvação. O auditório não podia ser me-
lhor, já que. J".a?lo sentia-se_ enviado para os gentios (At 13,46s). Exa-
r«;>u _?reve h~stona da salvaçao em três seções, balizadas pelos vocativos
«Irmaos», «filhos de 1sraeb e «tementes a Deus~ - corno o haviam feito
Estêvão diante do Sinédrio (At 7,2-53; 1' seção) e Pedro no dia de
Pentecostes (At 2,14ss; 2' e 3• seção).
É o primeiro discurso de Paulo que Lucas nos eonservou · bas-
tant~ extenso, pareceria ser um discurso-modelo, resumido, da pr~gação
pauhna aos judeus. O exórdio só podia agradar aos ouvintes ainda
mais que o Apóstolo omitira de acusá-los de ingratidão com~ o fez
Estêvão (At 7,5lss). A leitura litúrgica aduz apenas a Primeira parte,
onde ele fez um retrospecto dos fatos salvíficos em favor do Povo
E_Jei:o~ libert?do da escravidão do Egito (cf. Ex). Apresentou a linha
histor1co-~alvd1ca qu~ conduz ao verdadeiro salvador, jesus, passando
por Abraao, por Moisés, por Josué, pelos Juízes por Saul e Davi ehe-
gando até João Batista: Saul, _rej~itado por su; infidelidade, é ~agem
do Israel de dura ce~iz. Dav1, fiel, chamem segundo o meu coração,
que fará todas as mmhas vontades» (v. 22) é figura típica do Mes-
sias (cf. JSm 13,14; SI 88,21; Is 44,28).
1 A história ·pré-cristã patenteia-se como passageira e mutável. A Pro-
messa do Salvador, descendente de Davi (v. 23), é apresentada aos
" 42
l'
judeus de caso pensado. O verbo grego <égagen» é suscetível de duas
significações: «suscitou» e «ressuscitoU». Paulo serve-se da anfibologia
na sua argumentação: a Promessa se realiza na ressurreição de Je-
sus (v. 32s), quando se constituiu Salvador (cf. Rm 5,9s; Fl 3,20; Gl
3,29). No v. 22 o verbo tem senHdo de «suscitar», ao passo que no
v. 30 significa «ressuscitar». Entretanto, no v. 23 assume os dois sen-
tidos. Davi é o tipo do .Messias e sua elevação ao trono antecipa ou
prefigura a ressurreição de jesus e sua ascensão ao céu... Os prosé-
litos e pagãos presentes encheram-se de alegria, glorificando a Pala-
vra de Deus, que lhes oferecia salvação, e fazendo um ato de fé (At
13,48).
Pauto explicitou que o Deus de Israel se revelou como quem dirige
a história e, não obstante as limitações humanas, o conduz ao portador
da salvação, Jesus Cristo. Abertamente coloca-se Paulo na história da
salvação, dentro da qual sente-se ligado a seus ouvintes judeus. Partindo
desta comunhão, procura despertar a atenção deles para o «salvador
Jesus», realizador da Promessa. No contexto subseqüente, Paulo demons-
tra a rnessianidade de Jesus Cristo pela sua ressurreição, predita pela
Escritura (Sl 2,7; 15,10; Is 55,3) e atestada pelos Apóstolos. Como
conseqüência, surge séria advertência: faz-se mister crer n'Ele para ser
justificado (Hab 1,5; Rm 3,21-26; 11,7-27; Gl 3,11; lTs 2,16).
Observe-se que Paulo, nas Cartas, nunca alude a João Batista com
seu batismo de penitência. Lucas, como João, dá-lhe grande realce.
Imitando Estêvão, omite ao longo dos séculos o que não vem ao caso.
Apressa-se em chegar à realização da promessa, passando de Davi,
tipo do Messias, a João Batista, seu precurso,r, cuja fama já havia
atravessado as fronteiras. Aduz o testemunho joanino relativo ao Cristo,
por sinal semelhante ao dos Evangelhos (cf. Jo 1,27ss; Lc 3,16; Me
1,7; Mt 3,11), como um argumento de peso: <não sou eu o Messias .. .
virá depois de mim ... será muito maior ... batizará no Espírito .. .
fará justiça e salvará (Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do
mundo) ... importa que Ele eresça e eu diminua ... ».
Blbllograjla: K fi r z 1 n g e r, Josef, Atos dos Apóstolos (trad. de Irene e José
Któh), Vo-zes. Petrópolis 1973: Turra d o, Loren-zo, Hechos de tos Apóstoles (Bi·
biia de Sa.lamaoca. VI), BAC/Madrld 1965; L e a 1, Juan, Hechos de Jos Apóstoles
(La Sagrada BscrJtura, NT. JJ), BAC/Madrid 1963.
Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Terceira Leitura: Mt 1,1-25
«]osé, filho de Davi, não temas receber Maria, tua mulher,
pois o que nela foi gerado vem do E~pirito Santo»
Mateus inicia o seu evangelho com a apresentação da genealogia
(1,1-17) e do nascimento de Jesus (1,18-25), passagens que fazem par-
te de um contexto mais vasto, o assim chamado «Evangelho da Infân-
cia» (Mt 1-2 com seu paralelo em Lc 1-2). Tal titulo conferido a estes
dois capítulos (por J. Daniélou, P. Benoit, X. Léon-Dufour, D. Stanley)
se deve ao fato de encontrarmos aqui a síntese de todo o Evangelho,
uma antevisão da rejeição de Jesus pelos judeus e da admissão dos
gentios no Reino, um pré-anúncio da paixão e morte de Cristo.
O primeiro evangelista, conformando·se ao uso oriental,. começa a
sua história pela genealogia do personagem principal. Genealogia seme-
lhante se encontra em Lc 3,23-38, com as seguintes diferenças: Mateus
43
,.
cita 42 nomes, Lucas 77; Mateus remonta a sua genealogia até Abraão,
o pai dos crentes, Lucas a remonta até Adão, o primeiro homem; o
primeiro evangelista apresenta a sua lista de nomes em ordem descen-
dente (de Abraão até o Cristo), o terceiro evangelista em ordem as-
cendente (de Jesus até Adão).
1 O autor do primeiro evangelho divide a sua genealogia em três
ciclos de quatorze gerações correspondentes a -três etapas importantes
.1 da história de Israel: de Abraão até Davi, de Salomão até o exifo, do
1 exilio até o Cristo.
A primeira vista, a leitura desta 011 outras genealogias parece árida
e pouco instrutiva. E no entanto, quanta riqueza elas contêm. Atra-
i vés dela, Mateus vincula o Cristo com toda a tradição histórica véte-
. ro-testamentária. O Cristo é o ponto rlefinitivo de toda a história da
'
salvação que inicia exatamente com Abraão (Gn 12-25). No Cristo o
passado se realiza e o plano divino chega à sua plenitude. No Cristo,
a história do povo eleito encontra o seu sentido e coroação.
Com efeito, a partir de Abraão a história, ioda ela, se volta para o
futuro, para a realização das promessas. Ela obtém um objetivo, uma
finalidade: a posteridade, a terra, a descendência. Mateus, escrevendo
1 1
;.1
como o faz para judeu-cristãos, quer sublinhar esta continuidade e di..
i reção. O Cristo é para ele o princípio e o fim da história. Nele o pas-
sado recebe o seu significado. Ele é o ponto para o qual marcha toda
'' a história do povo eleito. E mais, para o autor do primeiro evangeJho,
" o Deus bíblico não é o Deus dos filósofos, a força primordial ou a
causa primeira das coisas, mas o Deus de Abraão, Isaac e jacó, o
Deus que irrompe na história e a conduz ao seu destino, aquele que
realiza a salvação por meios desconcertantes à mente humana.
Esta continuidade com todo o Antigo Testamento é uma das ten-
dências marcantes do primeiro evangelho. Entre os evangelistas é Ma-
teus quem mais freqüentemente cita o Antigo Testamento (43 vezes)
ou alude a ele (130 vezes). Para exprimir este tema dil continuidade,
ele emprega Onze vezes a fórmula introdutória «a fim de que se cum-
prisse ... » (1,22; 2,5; 2,15; 2,17; 2,23; etc.). Para Mateus, Jesus é o
Novo Moisés e a comunidade por ele fundada é o Novo Israel.
. Em Mateus, porém, o Cristo não é apenas o cumprimento das Es-
crituras. Ele mar~a também um novo começo. As palavras iniciais do
evangelho <livro da gênese de Jesus Cristo» aludem a Gn 5,1 («Este é
o livro da gênese de Adão»). Desta forma, o primeiro evangelista es-
tabelece implicitamente um paralelismo entre a criação de Adão e a
origem de Jesus (Lc 3,38). O Cristo é o Novo Adão. Como Adão
marcou o começo da humanidade, assim o Cristo é o inicio de uma
nova humanidade. Como Adão foi obra direta de Deus, assim o Cristo
não possui outro Pai a não ser Deus. Esta afirmação é explicitada no
versículo 16 em que Mateus diz: «]acó gerou José, o esposo de Maria,
da qual nasceu - note-se o emprego do passivo - jesus, chamado
o Cristo>.
Um terceiro tema presente na genealogia mateana é o universa-
lismo da mensagem evangélica. Mateus acentua este universalismo men-
cionando em sua Jista três mulheres estrangeiras: ~ute, a rnoabita (veja
o livro de Rute), Raab, a cananéia (Js 2) e Betsabé, a hitita (2Sm
11-12). Este universalismo, já presente na ascendência do Messias, ior-
nar-se-ã uma das notas dominantes do evangelho, expressa especial-
mente no mandato final: «Ide, portanto, fazei que todas as nações se
tornem discípulos» (Mt 28,19).
"" 44
As listas genealógicas, tão freqüentes na Bíblia C,Gn ~; 10; 36; l~r
1-9) contêm ainda um outro ensinamento: a predominância do conceito
da ~ornunidade sobre o conceito do indivíduo. O indivíduo conta apenas
corno um elo na totalidade do povo. Ele entra em contat~ .com Deus
tornando-se membro do povo da aliança. Ele se faz participante das
promessas divinas se inserindo na totalidade 1 do grupo .. E. Deus, por
sua vez, estabelece a sua aliança com um povo, pro~ete f1~el1?~de a ~m
povo, guia e defende o seu povo. No mundo bíblico, o md1v1duo. i:1~e
firmemente enquadrado em seu povo. Quando ele se torna sohtar10
(exceção feita de um caso de eleição), ~lgo anormal o~ m_esn;~ amea-
çador acontece, tanto assim que no hebra.1co ? termo ~so». s1gn1f1ca nor-
malmente miséria ou calamidade. Este pr-1n.cíp10 de sol.1dar1edade se ma-
nifesta em cada página da Sagrada Escr_itura, em viyo .contraste com
0 individualismo, o egocentrismo ou. o_:; s:stemas total1tá~1os do mundo
ocidental. Através do batismo, o cr1stao se torna tambe~ membro _de
uma comunidade, a Igreja. Somente enquadrado na comun1dad~ . e apoia-
do e inspirado por ela, poderá ele viver a mensa~~~ evangel1ca. _
O relato do nascimento de jesus (1,18-25) m1cia com expres~ao
idêntica ao da lista genealógica: «A gênese de Jesus aconte~eu asstm»-
(2 18) Isto significa que o evangelista estabelece um paralehsmo entri;
1 l-17 · e 1,18-25. Como notou A. Voegtle nós nos confrontamos aqui
c~m duas partes da mesma argumentação. Mateus desenvolve os mes-
mos temas que já apresentara em 1,1-~7. . .
Observa-se, de imediato, que a figura pr1nc1pal do rel~to nao ~
_ •
Maria (como em Lc 1,26-38), mas José, descendente de Abraao e Davi.
É a ele que o anjo aparece quatro vezes (qiO; 2,13; _2,19 e 2,~). O
anúncio do nascimento é feito a José (1,20.:21)! e nao a M~ria (Lc
1 3()..33). Este anúncio tem lugar após a concepçao (1,18~, e nao antes
dela (Lc 1,31). O que significa esta mudança ~e perspectivas?
Mateus acentua a continuidade entre o Ant.1go e o No_vo Testa1!1e~t?,
continuidade garantida através de José. A inserção do Cristo na h1stor1a
de seu povo é assegurada por José, muit~. embora ele nada t~nha a ver
com 0 fato da encarnação, pensamento Jª express~ no yers1culo 16 e
retomado no versículo 25: «Ele não a conheceu ate. o dia. em que ela
deu à luz um filho». Ao mesmo tempo, o evan~elista afirma tem:i º.
da descontinuidade: Jesus nasce por intervenção direta .de Deus, isto e,
por obra do Espírito Santo (1,20: <pois ~ que !'".!~ f01 gerado vem do
Espírito Santo»). O Cristo é o Novo Adao, o 1n1c10 de uma nova hu-
manidade. Em resumo, Jesus é relaci?nado. _com todo o passado do
povo eleito e, ao mesmo tem~o, Ele e o. F·d~o de Deus. . .._
Esta breve exposição exclui a tese rac~onahsta que nega ~ p_oss1b1li
dade de uma intervenção divina na hist?r1.a: .Tal tipo ~e ob3e~ao con-
traria todo o conjunto da mensagem b1bhca. Ela exclm lambem q~al­
quer tipo de exegese comparativista do texto, como se o evangelista
estivesse sob o influxo de lendas orientais . ou helenistas co!1cern:_ntes a
c:nascimentos virginais»: Nada há de maIB estranho às mtençoes de
Mateus.
fi . J o a n 1 ê 1 0 u Os Evangelhos da Jnfãncla, Etl. Vo2es, 1969;
X flfl~o:~fj uªf o Ü r, Etudes d'E;angi1e (Parole
L·a u r e n ti n, Structu~; et Tbêologle ~~.Lu~eJ~e'
te PDJ~), Jf! 1 5c 1 ~ I g·q 41; 8~~ep~·
1
1 Bi1:;1'1Jque 1i (1004) 206-214; A:1
V3~ e ~~1 ~'e eM:stslaJu:tf1gU~~l J1·~ lStudl Biblicl 35), BrescJpa 1976;J3ar~s ~e r{tº 1;
9
Les rêcits 'de l'enfance de Jêsus (Cahiers Evanglle 18), arf~s1 ; •
w 0 J f f, Antropologia do Antlgo Testamento, Ed. Loyo1a, •
ª e
Pe. Gabriel Selong, S.V.D.
Rio de janeiro, RJ
45
 Tema Principal
~a Missa da Vigília lê-se a genealogia de Jesus. Por Sua ascen-
dência carnal o nosso salvador é realmente homem como nós filho de
Abraão (Mt I,!) ~ de Adão (Lc 3,38), <tornando-se em t~do seme-
lhante ª.Seus umao5'> (~b 2,17). Reconhecemos no menino Jesus re-
cé~-nasc1do a ~ossa fragilidade. Por Sua ascendência espiritual - con-
cebido do Espinto Santo nasceu da Virgem Maria - o mesmo menino
Jesus é ta~bém sfmbolo, penhor e princípio vital de todas as forças
boas que Vtvem em todos nós, mas numa condição precária e frágil.
Estas forças frágeis hão de ser liberadas e dadas à luz. No menino-
Deus reconhecemos um salvador capaz de salvar estas forças frágeis
por um nascimento novo que nos torne crianças, aptas para o reino
dos céus.
Sugestões para a Homilia
Introdução
Comemorar
Quem conhece um pouco a Bíblia sabe que o povo de Deus
cada ano celebrava várias festas: Páscoa, Pentecostes, a Festa
dos Tabernáculos. . . Cada festa tinha o seu ritual e o seu sen-
tido próprios, comemorando-se nelas a libertação do Egito, a
Aliança de Deus no monte Sinai com a entrega dos dez man-
damentos escritos nas tábuas da Lei, a posse da Terra Pro-
metida, a inauguração do templo de Jerusalém. . . Deus quis
que Seu povo celebrasse estas festas para que não se esquecesse
d'Ele e de Seus feitos em favor do povo. Deu a ordem: «Con-
servareis a memória deste dia, celebrando-o como uma festa em
~on_ra. d_? Senhor: fareis . isto de geração em geração, pois é uma
mstitmçao perpétua» (cf. Ex 12,14.17.24). No dia da festa os
filhos deviam perguntar ao pai a explicação do ritual e o sen-
tido da festa: «Por que a gente faz hoje isto ou aquilo?» ( cf.
Ex 12,26; 13,14). O pai de familia respondia a esta pergunta
explicando a seus filhos e filhas os pormenores da festa, con~
tando de novo a antiga história de como o povo foi libertado
da escravidão do Egito, passou a pé enxuto pelo mar, foi ali-
mentado no deserto ... (cf. Ex 12,27; 13,3.8.14). Grande par-
te da Bíblia devemos a estas narrações contadas nas casas de
família, transmitidas de uma geração para outra (cf. SI 77,
1-8), e posteriormente anotadas por escrito em algum santuá-
rio do país.
Corpo
J. Os Santos Evangelhos
O que fez o povo de Deus do Antigo Testamento desde a
libertação do Egito e a primeira Páscoa anualmente comemo-
46
radas, nós cristãos estamos fazendo também. Cada ano come-
moramos com várias festas os principais fatos da história de
Jesus de Nazaré. Na festa de Natal, o Seu nascimento; nos
domingos durante o ano, a Sua vida pública de pregador da
Boa-Nova e salvador dos necessitados; na Semana Santa, Pás-
coa e Pentecostes, a Sua paixão, morte e ressurreição e o dom
do Espírito. Nestas festas os primeiros cristãos narravam estes
fatos e explicavam o sentido dos mesmos aos seus filhos e
aos judeus e pagãos que queriam ser cristãos. Também estas
narrações e explicações foram posteriormente anotadas por es-
crito em algumas comunidades. E assim surgiram os Santos
Evangelhos.
2. Os Evangelhos da Infância
A Festa de Natal e a Semana Santa sempre atraem mais
gente do que as outras festas, - para nem falar dos domingos.
Qual será a razão disso? Por que tanta gente e por que nós
mesmos viemos hoje aqui para celebrarmos a Festa de Natal
e para ouvirmos mais uma vez a narração do nascimento de
Jesus de Nazaré? Por que deste homem de Nazaré, e não de
um outro homem ou de um outro deus? Por que não de um
herói que venceu na vida, em vez de uma criança que morreu
na cruz? Nós nos colocamos hoje estas questões. Amanhã se-
remos interrogados a respeito por nossos filhos e filhas e por
todos para quem a nossa fé ou deve ser absurda ou ter um
sentido muito profundo. Por quê? Para quê?
3. São Mateus e São Lucas
Somente São Mateus e São Lucas nos narram o nascimen-
to de Jesus. Os dois evangelistas dão uma genealogia de Jesus.
A genealogia de Mateus começa com Abraão e atravessa todas
as gerações do povo de Deus, até chegar a Jesus. A genealogia
de Lucas não pára em Abraão, o pai do povo de Deus, mas
regressa até Adão, o pai da humanidade. Os primeiros cris-
tãos usaram estas genealogias para mostrar que Jesus é ho-
mem mesmo, membro da humanidade e do povo de Deus, que
carrega na Sua pessoa a história de todos e de cada um. Não
somente carrega, mas também recapitula, refaz e corrige a his-
tória de todos nós. Porque Jesus não é somente apresentado
como filho de Adão e Abraão e como descendente de Davi e
Salomão ... , Ele é também visto e apresentado como novo Adão
em que se realizam as promessas feitas a Abraão e à casa de
47
' Davi. Ele é, pois, filho do antigo Adão e habitante do paraíso 1,23), porque «ficará conosco todos os dias até o fim deste
" perdido; mas também é o novo Adão de quem surge uma hu-
manidade renovada e que do alto da cruz declara: «Hoje estareis
mundo» e o início do mundo novo (Mt 28,20).
comigo no paraíso». Jesus é descendente do antigo rei Davi,
mas ao mesmo tempo é o novo Davi de quem Deus diz: «Eu Conclusão
hoje te gerei».
Diante do presépio, contemplando com os olhos da fé o
4. jesus, um de nós menino-Deus, não é difícil reconhecer a nossa duplicidade de
coração, nem entregar-nos a Ele como ao nosso salvador.
Este corte entre o antigo e o novo, entre a queda e o É certamente por isso que esta Festa de Natal reúne um maior
soerguimento, entre a Lei que escraviza e a graça que liberta, número de fiéis. Que não seja somente para matar sauda-
encontra sua expressão perfeita na concepção virginal do Espí- des de uma inocência perdida, mas para iniciar uma vida no-
rito Santo. Esta duplicidade em Jesus o faz um de nós. Nós va, renascida, e alimentada pela prâtica da fé. O menino-Deus
nos sabemos fracos, frustrados, iludidos, cheios de saudades de no presépio é um espelho de todos nós: de nossa fragilidade
i chances perdidas, saudades da inocência que se foi. . . Carrega-
1· e de nossa inclinação para o bem. Ora, olhar neste espelho de
mos conosco o nosso passado que pesa e que nos paralisa e maneira fugidia, somente para matar saudades, não adianta mui-
arrasta para a morte, o fim da vida e do mundo, o nosso e o to. Lembremo-nos da palavra de São Tiago: «Sede cumpri-
de todos. . . Mas sabemos também que somos mais do que isso. ilores da palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós
Não somos somente vítimas de nosso passado. Carregamos co- mesmos. Pois quem ouve a palavra e não a pratica é seme-
nosco também esperanças, abertas para um futuro melhor. Es- lhante a alguém que olha num espelho seu rosto e, mal se viu,
tamos cheios de anseios, de sonhos, de expectativas, de planos, vai-se embora para logo esquecer como era. Quem se aplica em
de boa vontade. . . Não nos damos por vencidos. . . Experi- meditar a lei perfeita da liberdade e nela persevera, não como
mentamos, porém, que o que dentro de nós nos puxa para o ouvinte que facilmente esquece, mas como cumpridor, este será
bem é muito frágil, muito vulnerável. Sabemos perfeitamente que feliz em seu proceder» (Tg 1,22-25). É neste espírito que ofe-
estas forças frágeis e vulneráveis que nos atraem para o bem recemos a todos os nossos votos de um Feliz Natal.
dos outros seriam esmagadas por um tratamento indelicado,
duro, sem respeito e tirânico. Para poderem crescer e se desen- Raul Ruijs, O.F.M.
volver dentro de nós e darem frutos através de nossa vida, es- Petrópolis, RJ
: tas forças frágeis e vulneráveis que em nós experimentamos
!.
hão de ser respeitadas, liberadas e dadas à luz por um espí-
rito novo, manso e humilde, suave e leve. Sabemos perfeita-
mente que somos tão frágeis e vulneráveis que precisamos de
um salvador como Deus nos deu em Jesus de Nazaré. Um sal-
vador que não disputa, não eleva a sua voz nem grita em pra-
ça pública; não quebra o caniço rachado nem apaga a mecha
que ainda fumega (cf. Mt 12,19s). Precisamos de um salvador
que compreende, que perdoa, que é manso e humilde de co-
ração, cujo jugo é suave e cujo peso é leve. Um salvador que
nos alivie, libertando-nos de nosso passado e abrindo-nos para Natal: Primeira Missa
um futuro novo (cf. MI 11,25-30). Um salvador, pois, que nos Tudo como na Mesa da Palal'ra, Ann A. p. 52-56.
faz nascer de novo.
Um tal salvador somente poderia ser um recém-nascido, a Natal: Segunda Missa
quem se daria o nome de Jesus «porque salva o seu povo de
seus pecados» (Mt 1,21) e 4e Emanuel, «Deus-conosco> (Mt Pistas Exeg1'ticas como na Mesa da Palavra, Ann A, p. 57-60.

48 49

1
i.
--------------- - - -~
Natal: Terceira Missa
Pistas Exe~éticas da l' e da 2' Leitma como na Mesa da
Palavra do Ano A. p. 64-66.
Terceira Leitura: ]o 1,1·18
«E o Verbo .se fez carne e ergueu sua tenda entre nóS>
Autores antigos' e modernos exaltam a sublimidade do prólogo do
quarto evangelho. Já Santo Agostinh? afirmava . q~e o homem_ entregue
às suas próprias forças não poderia se exprimir como Joao o faz
nesta passagem. E se o quarto evangeJista é simbo~izado pela cá~ia
em vôo» (Ap 4,7) e é qualificado como o contemplat1vo por excelência,
isto se deve em parte, às palavras iniciais de seu livro. Com efeito,
estes dezoito' versículos são considerados «a página mais preciosa jamais
escrita> (A. Durand) «D mais belo dos hinos cristãoS:;. (L. Bouyer), «a
pérola do Evangelbo':P (R. E. Brown). Recitado nos primeiros séculos
como bênção sobre as crianças recém-nascidas, a partir de 1570, por
prescrição do Papa Pio VJ foi lido no final de cada celebração eucarística.
O início do quarto evanuelho não é propriamente um prólogo, mas
pode ser comparado à abe;tura de uma sinfonia (]. Konings), pois
apresenta os temas que serão desenvolvidos através de todo o Evan-
gelho. Assim, ele afirma a preexistência de Cristo (1,1; 17,5); o Cristo
• como a vida (1,4; 11,25 e 14,6), como a luz dos homens (1,4.9; 8!12;
9,5; 12,46), como o Unigênito (l,14.18; 3,16.18). Pode-se mesmo d1~er
que Jo 1,11 (<Veio para os seus, mas os seus não o receberam>) sm-
tetiza a primeira parte do evangelho (1,1!1-12,50) que nos fala da
rejeição de jesus pelos judeus, enquanto que Jo 1,12 (<111as a todos os
que o receberam, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus: os
que crêem em seu nome ... ») resume a segunda parte do Evangelho
(13,1-20,29) na qual o Cristo se dirige especialmente aos seus discípulos.
Começando o seu evangelho com as palavras «No principio era
o Verbo» o autor estabelece um paralelismo entre o seu livro e o Gê-
nesis («No princípio Deus criou o céu e a terra»}. Est~ paralelisJ?lO
se' torna mais evidente nos temas que aparecem nos vers1culos seguin-
tes: a criação (1,3), a luz (1,4.9), a oposição entre a luz e as trevas
(1,5) e a apresentação dos seis dias da criação (1,29.35.43 e 2,1). Para
João, com o Cristo inicia um novo Gênesis, uma nova criação, uma
nova humanidade. O cristão vive porque nele vive o Cristo. O Cristo
é doravante «a nossa vida» (Cl 3,4) ou na formulação paulina.: «Não
vivo mais eu mas o Cristo vive em mim~ (Gl 2,20). Este homem novo,
o ser-em-Cri;to, deve tornar-se o objetivo e ideal da vida cristã.
O termo cVerbo» aplicado a Jesus é exclusivo da literatura joani-
na. Aparece apenas no quarto evangelho (Jo 1,1.14)" na primeira carta
de João (1,1) e no Apocalipse (19,13). A origem. do termo d~ve ser
buscada provavelmente no Antigo Testamento. No livro do Oênes1s (1,3.
6.9.ll), a palavra de Deus é criativa e dinâmica; o mesmo sucede no
SI 32,6 (<Pela palavra de Deus foram feitos os céus~): .Em jo 1,3 s~
lê: <Tudo foi feito por meio d'Ele e sem Ele nada f01 feito do que foi
feito>. Também no Antigo Testamento, a palavra de Deus é reveladora
e ativa (Jr 1,4; Ez 1,3; Am 3,1): No quarto evangelho, o Cristo é
50
a revelação plena e definitiva do Pai. Ele é a palavra que Deus nos
dirige. Ele é o Verbo, a Boa-Nova, o Evangelho. Através d'Ele, Deus
nos mostra a sua verdadeira face ccheia de misericórdia e fidelidade:i>
(Jo 1,14), de tal forma que Jesus poderá responder a Filipe: «Quem
me viu, viu o Pai> (Jo 14,9).
No primeiro versículo, o evangelista ajirma não apenas que Jesus
é o Verbo, mas também indica a relação de comuphão existente entre
o Verbo e o Pai («e o Verbo estava junto de Deus>), idéia retomada
no versículo 18 (<O Unigênito que está no seio do Pai ... >), tema este
que se torna central através do livro. Nenhum evWgelista afirma tão
incisivamente a intimidade entre o Pai e Filho como o qq,arto evan..
gelista. No quarto evangelho, Jesus se dirige a Deus com o tiiulo «Pai>
117 vezes (apenas 67 vezes nos três primeiros evangelhos). Apenas no
quarto evangelho, Jesus é designado como o «Unigêµito>, isto é, o filho
único e bem-amado (Jo 1,14.18; 3,16.18). E esta união entre Pai e Filho
tão claramente expressa na oração sacerdotal (Jo 17) torna-se o modelo
da comunhão que deve existir entre o Cristo e o cristão e os cristãos
entre si. Para joão, o disclpulo é aquele que permanece no Cristo,
verbo este empregado 40 vezes no quarto evangelho, de forma especial
através de todo o capitulo 15. Somente esta permanência no Cristo e
esta comunhão com a sua pessoa poderá transformar a nossa vida, fa-
zer-nos verdadeiros discípulos de Cristo e modelar a nossa convivên-
cia fraterna.
Ainda no primeiro versículo do prólogo, joão afirma claramente a
divindade de Jesus: ce o Verbo era Deus>, o termo cDe~ sendo usado
aqui como predicativo, indicando a natureza divina de Jesus. E con-
tudo, no versículo 14, ele escreve que este Deus se fez carne, isto é,
assumiu plenamente a nossa natureza humana com toda a sua fragi-
lidade e perecibilidade~ Tal afirmação, tão óbvia para nós, soava como
um absurdo para os filósofos gregos e seus seguidores. Estes con..
sideravam o corpo o cárcere da alma e, por conseguinte, jamais pode-
riam admitir a encarnação de Deus. Através de todo o evangelho, João
insiste na corporeidade do Cristo (4,6; 11133-35; 13,21; 19,17; 19,34): O
Jesus humano do '.quarto evangelista sente sede, fome, fica emocionado e
perturbado, chora, carrega sozinho a sua cruz (a figura de Simão Ci-
reneu é eliminada), do seu 1ado jorra sangue e água. E nas duas pri-
meiras cartas joaninas, o autor polemiza aqueles que negam que o
Cristo veio na carne, chamando-os de «sedutores e anticristos» (l]o
4,1·3 e 2Jo 7-11).
Através da encarnação, Deus, que tantas vezes se manifestara na
história do povo eleito, tomou a condição humana e se fez semelhante
a nós em tudo, exceto no pecado. Fez-se homem, o homem perfeito no
qua1 não existem ambigüidades ou al:enações, tornando-se assim o in-
centivo e a orientação do esforço daqueles que lutam pela humaniza-
ção sua e dos outros. O fato da encarnação é também um convite a
encarnarmos em nossa vida a mensagem de Cristo~ Um cristão que
não assume o seu compromisso no cumprimento das tarefas terrestres
e na humanização do mundo ou restringe a sua religião a fórmulas
vazias nega na prática a realidade da encarnação. A vida de Deus
feito homem é uma crítica de todas as situações que não se harmo-
nizam com a medida em que Cristo viveu e nos deve levar a um
esforço contínuo contra tudo que faz do homem menos homem. O
Cristo é o modelo do homem, meta e inspiração de todo o movimento
que busca a realização do homem.
51
 O evangelista ainda afirma no versículo 14: <E o Verbo... er-
gueu sua tenda entre nós». Aqui, o autor translitera um verbo hebraico
do qual provém o substantivo Shekina que designa a presença de Deus
no Antigo Testamento. Durante a peregrinação pelo deserto, Deus, fiel
às suas promessas.. de acompanhar o seu povo, ordenou a Moisés que
construisse urna tenda que seria sua casa no meio do povo eleito. Deus
permanecia com o povo, morando com ele, sob uma tenda. Daí por que
a expressão «habitar sob urna tenda» tornou-se o termo habitual para
indicar a presença divina em Israel (Nm 12,5; SI 78,16). Mais tarde,
o rei Salomão colocou a tenda da aliança no templo em jerusalém
(lRs 6,8). Desta forma, o templo tornou-se o lugar privilegiado de
presença de Deus para onde acorriam os judeus três vezes ao ano. Após
a destruição de Jerusalém e do templo no ano de 587, os profetas pos-
teriores anunciavam que Deus viria de novo erguer sua tenda no meio
de seu povo (Zc 2,14; JI 4,17-21).
;
Em Jo 2,14, o evangelista afirma que estas profecias se cumprem:
A humanidade do Cristo é a tenda de Deus entre nós, o lugar por
excelência da presença de Deus. Jesus é Deus presente entre nós, «Deus
conosco:.1>. Ele é o novo templo (Jo 2,21 : «Ele, porém, falava do tem-
plo do seu corpo»). Doravante, Deus será adorado «nem neste monte
(Garizim), nem em jerusalém», mas «em espírito e verdade» (jo 4,
21-24). A humanidade de Cristo é a manifestação permanente da pre-
sença de Deus e o centro do culto cristão.
O acontecimento da encarnação, fato central na história da hu-
manidade, diz o evangelista, é o fruto da «graça e verdade» de Deus,
isto é, conseqüência de sua misericórdia e fidelidade. Deus se m~nteve
fiel às suas promessas a despeito das fraquezas humanas. Ele nao se
desmente. Suas promessas são para sempre. O Cristo encarnado é a
mais perfeita manifestação deste amor e fidelidade de Deus, ou como
diz joão: .::Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigê-
nito para que todo aquele que nele crer não pereça, mas tenha a vida
'' eterna> ()o 3,16).
Bibliografia: A. F e u 1 t J e t, O prólogo do quarto evangelho, Ed. Paulinas,
1971; M.. -É. B o 1 s mar d, Le prologue tlu quatriême évanglle, Paris 1953; J.
K o n 1 n g s, Encontro com o quarto evangelho, Ed. Vozes, 1975. Confira os co-
mentârios sobre o quarto evangelho de R. H. L l g h t f o o t, J. i\'l ar s h, A.
Durand, L. Buuyer, J. N. San ders, R. E. Brown e R. Schnacken-
b ur g.
Pe. Gabriel Selong, S.V.D.
Rio de janeiro, RJ
1 número indica o significado da apresentação de Jesus no templo. Neste
' momento completaram-se as 70 semanas de anos até a unção do Santo
52
Festa da Sagrada Família
Pistas Exegéticas
Primeira e Segunda leituras, ver A J\'Iesa da Palavra, Ano A, p. 69.
Terceira Leitura: Lc 2,22·40
«Os pais levaram o menino jesus ao tempio'il-
A passagem divide-se em quatro partes: a apresentação de jesus
no templo de jerusalém (vv. 22-28); o cântico de Simeão (vv. 29-32);
as profecias de Simeão e Ana (vv. 33-38) e uma breve indicação sobre
a vida de jesus em Nazaré (vv. 39-40).
Jerusalém desempenha um papel muito importante no terceiro Evan-
gelho. Lucas propositalmente vela todas as precisões topográficas, exceto
as que se referem a jerusalém. Em 5,17 e 9,46 Lucas não menciona
Cafarnaum (cf. Me 2,1; 9,33); em 5,Tl; 6,17; 9,43b não informa que
os fatos se situam na Galiléia (e!. Me 9,30); em 8,39 não laia da De-
cápole (cf. M:: 5,20). Do mesmo modo não tem, como Marcos, o cui-
dado de locahzar cada uma das narrações: na Cesaréia de Filipe (Me
8,27), no monte das Oliveiras (Me 13,3), em Getsêmani (Me 14,32).
Além destas supressões de dados topográficos, constatam-se modifica-
ções. As tentações de jesus não culminam sobre a montanha, -como em
Mateus, mas em jerusalém (4,9-12). O encontro na Galiléia, marcado
por Jesus para depois da ressurreição (Me 14,28; Mt 26,32) e recor-
dado pelo anjo (Me 16,7; Mt 28,7), é assim transformado em Lc 24,6-7:
«Lembrai-vos de como Ele vos disse, quando ainda estava na Gali-
léia~. e o encontro realiza-se em Jerusalém (diferentemente de Mt 28,
16-201)~ Por outro lado, Lucas menciona não menos de trinta vezes o
nome de jerusalém. A narração da infância começa em Jerusalém (Lc
1,8-22) e culmina em duas idas do menino jesus a jerusalém (2,22-38;
2,41-50). E aquela parte que Lucas tem própria em comparação com
Mt e Me (Lc 9,51-19,27) apresenta-se como uma decidida subida de
jesus a Jerusalém (cf. Lc 9,51.53; 13,22.33; 17,11; 18,31; 19,11.28). Si-
tua-se em Jerusalém a principal aparição de Jesus ressuscitado (Lc
24,33-49). E o Evangelho de Lucas termina onde começou: no templo
de jerusalém (Lc 24,53; cf. 1,8-22).
A primeira ida de Jesus a Jerusalém é de grande importância teo-
lógica para o evangelista Lucas. Nela culmina o Evangelho da Jnflincia.
Isto conclui-se da cronologia que une as diversas etapas deste Evange-
lho. Desde a aparição do anjo Gabriel no templo para a anunciação do
nascimento de João Batista até a concepção de jesus por ocasião da
Anunciação a Nossa Senhora decorrem seis meses ou 180 dias (Lc
1,26); da concepção de jesus até o nascimento passam nove meses ou
270 dias. Do nascimento de Jesus até a purificação de Maria, conforme
Lv 12,2ss, mais quarenta dias. Isto faz um total de 490 dias. Este
(oo Stllltuário?) por excelência, mencionadas por Daniel (Dn 9,20-27).
Realiza-se também a profecia de MI 3,1: O próprio Senhor vem ao
Seu templo.
53
 Que o autor interpretou assim o evento à luz do Antigo Testamento
é confirmado por várias outras alusões. Por exemplo, a menção do
anjo Gabriel, como em Dn 9,21; do sacrifício de incenso (Lc 1,9; em
Dn 9,21 fala-se da oblação da noite); a alusão a MI 3,1.23s em Lc 1,17.
A importância atribuída ao evento narrado transparece na circuns-
tância de que o menino jesus é recebido no templo por um profeta
e uma profetisa que respectivamente esperam a consolação de Israel
(v. 25) e a redenção de (ou em?) Jerusalém (v. 38).
A profecia de Simeão sobre o menino Jesus está contida tanto no
Cântico (vv. 29-32) como nas palavras dirigidas à mãe do menino (vv.
33-35). Nela toca-se nos dois eixos da obra da salvação: na sua meta
que é a salvação. Através de altisões implícitas a textos como Is 42,6;
46,13; 49,6; 52,10, esta salvação é desdobrada em «luz das nações» e
«glória de Israel» (v. 32). Esta meta será alcançada pela sorte con-
1 trovertida do salvador, que para uns será causa de salvação, para ou-
tros de desgraça. A atitude a respeito da pessoa do salvador e de
."
i Seu modo de salvar porá às claras os pensamentos e motivos latentes
que dominam os homens. As tentativas para apagar esta luz ferirão
como uma espada afiada o coração da Mãe de que nasceu esta luz.
Ela será testemunha e vitima da hostilidade que a pessoa de seu Filho
provocará. Nisto mostrar-se-á discípula perfeita d' Aquele que dirá mais
tarde a Seus discípulos: «Não pensem que Eu vim trazer paz ao mun-
do. Não vim trazer paz, mas a espada> (Mt 10,34; ci. Lc 12,51). Do
Evangelho de São João sabemos que ela permaneceu fiel a Seu Filho
e estava ao pé da cruz quando «um dos soldados abriu o lado de je-
sus com uma lança> Uo 19,34).
A apresentação de Jesus no templo lembra um costume do povo
de Deus do Antigo Testamento que era praticado uma só vez na vida
de cada familia (no caso de poligamia por ocasião do primeiro filho
de cada mãe), a saber, a consagração do primogênito ao Senhor. Mes-
mo assim é fácil imaginar como este costume, repetido em todas as
famílias, marcou profundamente a mentalidade das famílias do povo
eleito. Também no caso de Maria e josé este acontecimeto deve ter
influenciado demais a educação de seu Filho recém-nascido. Como pais
eles se dirigem ao santuário nacional de jerusalém para observar a
lei de Moisés (v. 22), que para eles é a lei de Deus (vv. 23 e 24).
Chegados ao santuário são recebidos por duas pessoas idosas, Simeão
e Ana, que, graças à sua dedicação a Deus (vv. 25 e 37), lhe servem
i
1 de intermediários junto a Maria e José. As duas esclarecem os pais
a respeito do mistério de seu Filho; isto é, a respeito de sua dig-
nidade - Ele é o messias prometido (v. 26); a respeito de sua vo-
cação - Ele é o libertador de Israel (v. 38); e a respeito de seu
destino - Ele tornar-se-á um sinal de contradição (v. 34).
,.
BlbliogFajia: Os comentârios de Re n g s to r f, Se h mi d; W. K n õ r z e r-W.
,.i· B las l g, em: EuE 1 (1969) 83-90; C. C a 11 ma n, O Projeto Teológico do Evan-
gelista Lucas, em: Atualização 2 0971) 503-515; J. K o d e 11, La Tbéologle de Luc
1
Sugestões para a Homilia
Introdução
A festa da Sagrada Família lembra que o mistério da En-
carnação do Verbo foi vivido na realidade do cotidiano de uma
família. Ainda que adjetivemos com o termo «sagrado», não ti-
ramos a esta família o mundo natural dentro do qual estava
mergulhada, nem a influência do mundo sobre ela, nem dela
sobre o mundo. Porque o papel da família é inserir-se no mun-
do e quem se insere, verdadeiramente, sofre e exerce influên-
cias. Por isso, ao meditar sobre a família deve-se pensar num
apostolado familiar para com a família e o apostolado feito
pela família. Ela não é apenas um núcleo importante com o
qual nos devemos ocupar, mas é também uma extraordinária
fonte de energias espirituais, das quais anda tão necessitado
o nosso mundo.
Corpo
1. Os pais levam jesus ao templo
Levar ao templo significa o primeiro reconhecimento de que
o filho veio de Deus. Do amor abençoado aos pés do Senhor.
Fruto de um desejo a dois. Reconhecimento da missão continua-
dora .da criação. Cada criança que nasce é um primeiro dia
da criação. Apresentar o filho a Deus é dizer, por um gesto,
que assumimos a história, sempre feita por homens, nascidos
de mulher, como fala S. Paulo de Cristo.
Toda iniciação religiosa deve ser provocada pelos pais, con-
tinuada na escola e na igreja e levada à plenitude pelo indi-
víduo. A fase familiar é decisiva: deixa as marcas leves e fá-
ceis de apagar, ou profundas e indeléveis, capazes de superar
as poluições da vida em pleno mundo, quando a materialidade
se planta como um desafio ao homem que deseja conquistar
sua posição ao sol.
A luta não é apenas penosa à criança. Aos pais também,
e por isso, haverá sempre espadas penetrando corações e machu-
cando afetividades, obrigando os pais a possuírem energias ar-

1' et la Recherche Récente, em: BTS 1 {1971) 119-149; J. Na v o n e, Three Aspects

:i of the Lucan Theology oi History, em: BTB 3 (1973) 115-132.
mazenadas, para permanecer, longe ou perto, na vigília amo-
,.
1

Raul Ruijs, 0.F.M. 1 rosa de quem assumiu uma missão que transcende as etapas
1 í
Petrópolis, RJ cronológicas de uma vida humana.

·li1 54 55
'i
11

li
 2. O homem se estrutura no seio familiar
Os pais e o Filho mergulham no silêncio de Nazaré, mas é
como a semente: o silêncio fecundo que faz rebentar a vida
esconilida. Por isso, o evangelista registra que o menino cres-
cia fisicamente, em conhecimentos e em graça. É na família
que o homem atinge a maturidade humana, adquire os conhe-
cimentos fundamentais da comunhão com os outros, descobre
sua vocação e amadurece seu relacionamento com Deus e com
sua manifestação histórica, onde colocou os elementos para o
crescimento espiritual: a Igreja. A família deve oferecer um am-
biente propício: o amor mútuo, a compreensão, a fidelidade, o
trabalho, um horário, a disciplina, a oração, a higiene, o lazer,
o estudo e sobretudo a presença amiga, em todas as horas,
para explicar mistérios da vida, afastar os elementos poluido-
r"es, ajudar cada vez que o relógio da vida bate horas, saber
o que fazer do tempo e das forças que palpitam num homem.
Por isso, cabe aos pais a fidelidade a Deus, a fidelidade
um ao outro, a fidelidade aos filhos. Os pais se doam um ao
outro e juntos se doam aos filhos e esta doação se consuma
quando têm a coragem de doar o filho a Deus. Assim, a fa-
mília é apóstola em seu seio, apóstola em sua vizinhança, após-
tpla na Igreja e com a Igreja.
Conclusão
Como Cristo quis retormar todas as coisas, levando-as ,de
volta ao seu primitivo fulgor, assim agiu assumindo uma famí-
lia, santificando a familia e encarregando-a de uma missão
àpostólica. Os tempos de hoje, tão repletos de visões de desa-
mor e desesperança, esperam ver na familia uma afirmação de
fé, de amor humano, de confiança em Deus, de esperança no
homem. O laboratório extraordinário, onde os seres explodem
no maravilhoso mistério da vida, crescem na configuração hu-
mana, estabelecem os relacionamentos sadios com os homens
e com a estrutura social, amadurecem no contacto com Deus,
assumem sua vocação e marcam presença na história, porque
toda história mergulha suas raízes f111 familia.
. Fr. Hugo D. Baggio, O.F.M.
Rio de janeiro, RJ
56
Ano Novo: Oitava do Natal, Solenidade
da Santa Mãe de Deus, Dia Mundial da Paz
Tudo como na Mesa da Palavra, Ano A, p. 76-82. Dentro
das Sugestões para a Homilia encontra-se uma exegese da bên~
ção aarônica da I • Leitura. Para uma Pista Exegética do Evan-
gelho (Lc 2,16-21), cf. a do Evangelho da 2• Missa de Natal
(Lc 2,15-20).
Recomenda-se uma leitura do número especial da Revistµ
de Liturgia «A Vida em Cristo e na Igreja» 4 (1977/24), todo
ele dedicado às «Bênçãos», entre outros artigos, estes de Pe.
João E. M. Terra, S.J., A Bênção na Sagrada Escritura (p. 9-
19) e de Pe. Francisco Viana Pires, C.S.R., Sociologia da Bên-
ção (p. 20-29). Também os verbetes «Bênção» no Dicionário
Enciclopédico da Biblia e Vtx:abulário de Teologia Bíblica da
Ed. Vozes, «Ano Novo», «Tabernáculos. Festa dos» são muito
interessantes.
Tema Principal
As leituras da Missa convidam a ·:meditar sobre a Plenitude dos
Tempos trazida por jesus (2' Leitura). Ela vem à humanidade como
uma bênção de Deus que encerra uma proposta de paz (!' Leitura).
O homem acolhe esta proposta divina através do Espírito de filiação
que formula em nós a resposta adequada à proposta divina, fazendo-
nos invocar a Deus corno «Abba! Papail:i> Somente seremos capazes de
irradiar a paz divino-humana que nos é dada corno graça, em redor
de nós, quando a conservarmos. cultivando-a dentro de nós e meditan-
do-a no coração (e!. 3• Leitura). Somente assim o Ano Novo serâ um
ANO DO SENHOR, CHEIO. DE PAZ E AMOR
Sugestões para a Homilia
Introdução
Somos seres mortais
Sempre estamos nós, seres mortais, em encruzilhadas de
encontros e desencontros. Encruzilhadas de dia e noite, luz e
trevas, bem .e mal, frio e calor, saítde e doença, fome e fartura,
pobreza e riqueza, juventude e velhice, força e fraqueza, pais
e filhos, homens e mulheres, empregadores e empregados, pro-
prietários e proletários, superiores e súditos, médicos e doentes,
militares e civis, governo e povo. Em última análise toda a
57
 existência humana e todos os caminhos de nós, mortais, estão
marcados pela encruzilhada do encontro ou desencontro da vida
e da morte, do ódio e do amor, do egoísmo e do altruísmo.
~ tudo indica que, mesmo que nesta encruzilhada sempre ven-
cesse a vida, o amor e o altruísmo, estaríamos fatalmente sub-
metidos ao ritmo implacável destas forças hostis e seríamos ví-
timas inevitáveis da lei do '.mais forte que rege a evolução da
natureza, em que uma parte vence porque outra parte perde,
uma parte cresce porque outra definha, uma parte vive porque
a outra está morrendo.
· Corpo
1. Prop{JS/a div.ina - resposta humana
Comemoramos hoje também uma encruzilhada a do ano
findo e do ano novo. Iniciamos este ano dando-Ih~ um nome,
marcando-o como sendo o ano de 1979 depois de Cristo e de-
nominando-o a partir daí como Ano do Senhor. Nesta nossa
assembléia iniciamos este ano com preces, com bênçãos, com
esperanças e votos e, também, prestando atenção à Palavra de
Deus que nos é proposta nas três leituras desta Santa Missa
do ~no Novo e do Dia Mundial da Paz. Proposta divina que
anseia por uma resposta de nossa parte.
2. Somos cristãos
Nesta encruzilhada do ·ano findo e do ano novo fazemos
questão de nos encontrarmos aqui, nesta assembléia de oração.
Por quê? ~ão será porque sabemos que somos mais do que
seres mortais, entregues à fatalidade das forças hostis da na-
!~reza? N~o será porque spmos cris\ãos que acreditamos que
Jª fomos hbertados desta lei do mais forte que nos arrasta ir-
re~istiv~J~ente par~ a morte, sem retorno (cf. Rm 7,21-25)?
Nos cnstaos acreditamos que já não somos meros joguetes sem
apelo das forças internas (imanentes) da natureza. Para nós a
n?ssa existência já não é dominada por um destino cego. Acre-
ditamos que Deus entrou na vida dos homens e transformou
a sorte e o destino humanos em uma história divino-humana
i~trojetan~o nela forças novas que libertam da fatalidade porqu~
sao supenores (transcendenles) às forças naturais. São Paulo
o proclama com toda clareza: chegou a plenitude dos tempos.
Isto. é o mesmo que afirmar que, antes, os tempos estavam
vaz10s, carentes de sentido. A não ser que os tempos antigos
58
1
i'
1.
~ :i
encontrassem o seu sentido na própria esperança de serem um
dia libertados da vaidade e futilidade e de chegarem a esta
plenitude almejada.
3. <Abba! Papai!»
São Paulo liga esta plenitude dos tempos ao homem Jesus
.
de Nazaré nascido de uma mulher humana e nascido sob o
domínio da' lei que rege a sorte dos homens. Mas ao mesmo
.
tempo afirma que neste homem Jesus de Nazaré estourou-se
esta lei e rebentaram as cadeias de seu domínio sobre os ho-
mens e a humanidade. Este estouro expressa-se naquela pala,-
vra que nos Santos Evangelhos e nas Cartas de São Paulo se
conservou na língua materna de Jesus: «Abbal Papai!» Esta
maneira de Jesus invocar a Deus ·é o mais convincente teste-
munho de que a nossa existência humana já não é mais um
beco sem saída, um remar contra a maré, uma Juta sem chance
e uma busca sem objetivo. Em Jesus, Deus - a fonte da luz,
do bem do calor, da saúde, da juventude, da força, da vidà,
do amdr e do altruísmo - tornou-se acessível a todos nós,
porque também a nós deu o Espírito que em nós e através de
nós se dirige a Deus com a mesma palavra, clamando: «Abba !
Papai!»
Esta invocação de Deus como Papai é a resposta humana
à proposta divina. É a resposta perfeita, que «não caiu do céu»,
mas estava sendo preparada há muito tempo na alma do povo
de Deus do Antigo Testamento. Acabamos de ouvir na primeira
leitura a bênção que Deus confiou a Moisés, a Aarão e aos
sacerdotes para, com ela, abençoar o povo. E uma bênção mui-
to bonita e solene, cheia de sentido também para nós cristãos,
apesar de ser mmto. antiga.
. '•·
4. A bênção aarônica
Esta bênção era usada para abençoar o povo to,do, reunido
em assembléia no templo de Jerusalém por ocasião das gran-
des festas, em que se comemoravam os grandes feitos de Deus
em favor de Seu povo. Celebravam-se a libertação do Egito
nos dias da Páscoa, a Aliança no monte Sinai no dia de Pen-
tecostes, a posse da Terra Prometida e a inauguração do Tem-
plo na Festa dos Tabernáculos e também o dia de Ano Novo.
Apesar de ser coletiva, esta bênção dirige-se no singular a ca-
da membro do povo individualmente. Ela é dividida em três
59
 frases que, em um crescendo, expressam o cuidado e o amor
de Deus para com o povo e cada um de seus membros. Ve-
jamos estas três frases mais de perto.
cO Senhor te abençoe e te guardei>
Nesta primeira bênção proclama-se que Deus é o criador
e o protetor de Seu povo. Ela confirma a Aliança para com o
povo todo e cada um de seus membros. Ela atualiza; cada vez
que é pronunciada, a fórm~la da Aliança na sua forma cole-
tiva: «Eu serei o vosso Deus e vós sereis o Meu povo»; e
11ª sua fotma individualizada: «Eu serei para ti um Pai e tu
s,erás para mim um filho».
<0 Senhor te mostre a Sua face e conceda,.te Sua graça!>
Nesta segunda bênção menciona-se a face de Deus. Ela
representa a glória divina que guiava o povo de Deus no de-
serto. Atravessou-se este deserto para percorrer o caminho que
separava a terra da escravidão, Egito, da Terra Prometida.
Nesta caminhada a glória de Deus guiava o povo, tomando a
dianteira; e o protegia, cuidando da retaguarda. Também mais
tarde esta glória divina continuava a acompanhar o povo na
sua história movimentada. Deus faz brilhar a glória de Sua
face para cada fiel e se lembra de cada homem que compar-
tilha da Aliança. Oferece-lhe a Sua graça como um pai que
zela pela felicidade de seu Filho.
«0 Senhor volva o seu- rosto para ti e te. dê a paz!»
Nesta terceira bênção expressa-se a presença e . proximi-
dade de Deus. Deus volve o Seu rosto para quem n'Ele confia.
Deus olha para cada um com carinho. Volver o rosto e olhar
para alguém é a relação mais íntima e acolhedora entre Deus
e o homem. Deus não olha o homem de cima ou de lado. Ele
se entreolha com o homem de uma maneira pessoal e cheia
de carinho e afeto.
Liga-se à bênção toda, mas especialmente ao olhar de Deus
para cada um, a doação da paz. Esta paz é abrangente. En-
cerra o bem-estar do homem, uma vida feliz. É a shâlom das
profecias messiânicas e da promessa do Reino de Deus. Como
tal inclui a felicidade terrestre, mas ao mesmo tempo a ultra-
passa porque emana da fonte da paz e somente é autêntica
quando e à medida que é expre$são de algo muito mais pro-
fundo, a saber, da benevolência e do amor de Deus. O con-
00
teúdo desta paz pode variar conforme a situação em que se
encontra o homem por ela beneficiado. Mas sempre permanece
uma benevolência de Deus em favor do homem.
Esta bênção, sempre repetida nas grandes festas do povo
de Deus, atualizava-lhe a proposta divina, contida nas fórmulas
da Aliança já citadas: «Eu serei o vosso Deus e vós sereis
o Meu povo» e «Eu serei para ti um pai e tu serás para 'Mim
um filho». A resposta adequada a esta proposta divina de amor
e de benevolência, de graça e de paz, é o nome que Jesus deu
a Deus, invocando-O como «Abba! Papai!»
Papa Paulo VI, de grata memória, proclamou o primeiro .
dia do ano Dia Mundial da Paz. Daquela • divina e humana
paz entre os homens que está arraigada na paz que Deus ofe-
rece. Aquel:i paz, portanto, que é resposta humana à propos-
ta divina. Aquela paz que é .capaz de transformar todas as
encruzilhadas da existência humana em encontros de luz que
dissipa as trevas, do bem que vence o mal, do calor que que-
bra o gelo, da saúde que cura as doenças, cja fartura que ali-
menta os famintos, da riqueza eqüitativamente distribuída. . . Se
nós acreditamos realmente nesta paz não ser~ difícil irradiá-la.
Mas para que realmente brilhe em redor de nós através de
nossos gestos, palavras e pensamentos, precisa-se que, primeiro,
a guardemos e meditemos em nosso coração. Senão, ela será
muito fugidia. Ela nos escapará. E cairemos de novo no ritmo
da luta sem chance e sem consideração; da vitória a preço da
destruição do outro; da vida que se conquista, matando. Nós,
cristãos, acreditamos que Deus, em Cristo, parou este combate
sem sentido, porque enviou o Espirito de Seu Filho também
sobre nós. Este Espirito reza agora em nós: «Abba! Papai!»
e nos faz irmãos uns dos outros. Este novo relacionamento de
nós para com Deus e para com os demais homens modifica
tudo. São Paulo: declara isto da seguinte maneira: «Já não há
judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mu-
lher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gl 3,28). Ou
nestas palavras: «Ninguém de vós ponha sua glória nos ho-
mens, pois tudo é vosso: - o mundo, a vida, a morte, o pre-
sente e o futuro: tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo
é de Deus!» (lCor 3,21-23). Hoje queremos incluir neste tudo
também o Ano Novo. Que também ele seja de Cristo e de
Deus, cheio de paz e de amor.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
61
 Epifania do Senhor
Tudo como no Ano A. Veja A Mesa da Palavra, Ano A, p.
83-90. Para uma Pista Exegética do Evangelho, cf. as Sugestões
para a Homilia que seguem e: L. Boff, «Jesus Cristo Libertador»,
Petrópolis 1972 ', p. l 88s e a bibliografia na p. 173.
Tema Principal
Epifania é manifestação, celebração da manifestação de jesus ao
muodo. A apresentação de jesus ao muodo como clibertadol'> dâ nova
relevância à mensagem de sempre. Esta nova relevância não é fruto
da imaginação fértir de alguns teólogos, mas de uma releitura da men-
sagem bíblica e doutrina da Igreja à luz da perguota: cComo a Pa-
lavra de Deus é Palavra de Salva,ão aqui e agora, no Brasil de
hoje?>.. . Transmitir esta nova relevância da revelação de sempre não
é um hobby deste pu daquele bispo, teólogo ou padre, mas um dever
da parte dos prega\lores e um direito da parte do povo de Deus, es-
pecialmente dos que mais precisam desta salvação. Uma • ez que o
Evangelho de hoje ·oferece uma oportuoidade excelente para descorti-
nar a cristologia da, Igreja primitiva como uma cristologia de libertação,
escolheu-se como tema principal:
' sempre foi católico e que não se precisa «ensinar o pai-nosso
JESUS CRISTO LIBERTADOR
Sugestões para a Homilia
Introdução
Palavra de Salvação?
Hoje a Igreja celebra a manifestação de Jesus Salvador
ao mundo. Para este fim lança-se mão de uma antiga narra-
ção, conservada no Evangelho de São Mateus, que acabamos de
ouvir. Terminou-se a leitura desta narração com a frase: «Pa-
lavra da Salvação!» Isto suscita a pergunta: «Aquela narração
antiga pode ter alguma força de salvação para o mundo de
hoje?» A resposta somente pode ser afirmativa à medida que
se percebe que aquilo que acontece nesta narração é represen-
tativo para aquilo que acontece no nosso mundo de hoje.
Corpo
!. Manifestar jesus ao mundo crente e d"1crente
No Evangelho de hoje narra-se a manifestação de Jesus
Salvador ao mundo daquele tempo, a saber, ao mundo dos ju-
62
deus e ao mundo dos pagãos ou então, diríamos nós, ao mundo
dos crentes e ao mundo dos infiéis. O rei Herodes, os príncipes
dos sacerdotes e os escribas que moravam na capital da nação
Jerusalém e se encontravam no palácio do rei, representam o
mundo judeu ou o mundo dos crentes. Alguns magos, que vieram
do Oriente, representam o mundo pagão ou ·dos descrentes. A
estes dois munct'os é apresentado o jesus Salvador.
A Igreja continua a ler esta narração antiga ainda hoje
no ano .de 1979 depois de Cristo, porque a acha válida em
vista de sua missão perpétua de apresentar e manifestar Jesus
como Salvador aos fiéis e infiéis e ao mundo crente e descren-
te de hoje.
2. jesus Cristo Libertador
M:.s como jesus é apresentado a estes dois mundos?
1
( A resposta a esta pergunta é ao mesmo tempo fácil e di-
fícil. E difícil porque muita gente pensa que já sabe quem é
Jesus. Esta gente considera uma explicação a respeito como
tempo perdido ou até como uma humilhação. Responde que
ao vigário». Para eles Jesus é nosso pai; um santo muito gran-
de; um santo milagreiro; o Filho de Deus e de Nossa Senhora;
o nosso redentor que morreu na cruz. Certamente é muita coisa
boa. Mas não é tudo que se pode dizer sobre Jesus. E o Evan-
gelho de hoje diz muito mais! Ele nos ensina que jesus Cristo
é um libertador!
3. jesus, um novo Moisés
Todo povo tem, na sua história, grandes figuras cujos fei-
tos são glorificados e cujas vidas são contadas de geração em
geração. Na história pátria temos Álvares Cabral, Padre An-
chieta, Aleijadinho, Tiradentes, Rui Barbosa.,. . O povo judeu
tinha e tem também as suas grandes figuras históricas: Abraão,
Moisés, Davi, Salomão, os profetas Elias, !saias, Jeremias ...
No tempo de Jesus ·e nos tempos em que se começou a
narrar a vida de jesus, falava-se muito em Moisés. O motivo
disso era que voltaram os tempos da escravidão e da explora-
ção. O país era dominado pelos romanos. As forças armadas
de Roma cuidavam da segurança do império e arrecadavam
pesados impostos para o imperador de Roma. O povo não
63
J
 agüentava mais esta humilhação e começou a pensar em li-
bertar-se daquela dominação. Para animar o povo contaram de
novo a antiga história de Moisés. Moisés era a grande figura
do passado, o grande libertador que libertou o povo da escra-
vidão do Egito. Mas não era somente ele que libertou o seu
povo. Deus estava com ele. E Deus estava com ele desde pe-
queno, desde que nasceu. Contaram que o próprio faraó do
Egito tinha medo das familias numerosas do povo judeu. Ele
queria limitar os !ilhos dos judeus e mandou matar todos os
recém-nascidos. Ora começa a história de Moisés.
O faraó, isto é, o rei do Egito, soube através de magos
que nasceu um menino que seria o futuro libertador de seu po-
vo. Sabendo isso, o faraó e todo o povo do Egito ficaram
preocupados. Corriam perigo de perder esta mão-de-obra ba-
rata de que se serviam como escravos para construir os seus
palácios e palacetes e lavrar os campos. . . Por medo deste fu-
turo pouco atraente, por medo daquele libertador que acabava
de nascer, o faraó mandou matar todas as crianças ri cém-nas-
cidas. O menino Moisés, porém, escapou a esta mata iça. E o
pai de Moisés, contava-se, soube através de um sonho que Deus
destinou o !ilho dele para se tornar, no futuro, o libertador do
povo. Mais tarde Moisés fugiu para longe do faraó. Mas a
mesma história narra que, ·após a morte do rei do Egito, Moisés
foi avisado por Deus que lhe disse: «Volta para o Egito, pois
morreram os que tramavam contra tua vida». A esta revelação
Moisés tomou a sua mulher e seu filho e regressou.
Assim contava-se a antiga história de Moisés nos tempos
de jesus, quando os judeus do primeiro século depois de Cris-
to esperavam a libertação de Roma e do imperador romano.
Ora, os cristãos estavam convencidos de que jesus era este
novo Moisés, o libertador esperado. Ele não somente veio li-
bertar o Seu povo da exploração terrestre mas veio também
trazer o Reino de Deus. Por isso narraram a vida do menino
jesus igualzinh·a à vida do menino Moisés. Agora não é mais o
faraó, o rei do Egito, mas Herodes, o rei de jerusalém que,
através de magos, recebe informações acerca de jesus. Como
outrora o faraó e' o povo do Egito, agora o rei Herodes e o
povo da capital Jerusalém ficam preocupados por causa de seus
poderes e privilégios. E como outrora o faraó do Egito assim
agora o rei Herodes mandou matar todas as crianças recém-
nascidas da cidade de Belém e redondezas. Como o menino
Moisés, também o menino jesus escapou a este morticínio. E
como outrora o pai de Moisés, assim josé sabe através de um
sonho que jesus será o salvador de seu povo (cf. Mt 1,21).
64
Depois da morte do rei Herodes também josé recebe um re-
cado de Deus que, em um sonho e através de um anjo, avisou:
«Levanta, toma o menino e a mãe e volta para a terra de Js-
rael. Pois já morreram os que procuravam matar o menino».
Lançando mão de todas estas comparações, os primeiros
cristãos narraram a vida de Jesus-menino. Não podiam expres-
sar de uma maneira mais clara e sugestiva que, para eles, jesus
era um novo Moisés, um libertador, enviado por Deus para li-
bertar o seu povo.
4. Quem aceita este jesus Libertador?
Há, no entanto, uma coisa muito angustiante na narração
dos Santos Evangelhos. Nesta narração jesus Salvador é apre-
sentado ao mundo dos judeus e ao mundo dos pagãos; ao
mundo dos crentes, que adoravam o Deus único e verdadeiro,
que receberam as Sagradas Escrituras com as profecias; e ao
mundo dos infiéis, que adoravam ídolos, acreditavam em astro-
logia. . . Ora, jesus é mal-entendido, denunciado e perseguido
pelo seu próprio povo, pelo rei, pelos príncipes e pelos escribas,
isto é, pelos poderosos e os letrados de seu povo. E Ele é pro-
curado, encontrado e adorado pelos representantes dos infiéis,
que são os magos. E o pior é que continuou assim, porque du-
rante toda .a sua vida terrestre jesus foi mal-entendido, de-
nunciado e perseguido pelos mesmos príncipes dos sacerdotes,
escribas e herodianos, até ser morto e crucificado ...
E se a gente coloca isto no mundo de hoje? Quem aceita
e quem rejeita jesus como libertador de Seu povo? Não há
nenhuma dúvida de que também agora existe um povo escra-
vizado, explorado, humilhado, privado dos bens materiais e es-
pirituais de nosso mundo moderno. Quando a Jgreja hoje, neste
segundo domingo do ano de 1979, celebra a manifestação de
jesus Salvador ao mundo, é claro que Ela seria muito hipó-
crita se não pregasse jesus como salvador e libertador justa-
mente desta parte do mundo que precisa mais de libertação e
de salvação.
Conclusão
A .história se repete
Quem é sincero não precisa de muita fantasia para reco-
nhecer que a história ainda se repete. Que existem ainda mui-
tos recém-nascidos como os meninos Moisés e jesus. Muitos
65
,--·---
pais de família como o pai de Moisés e São José. Muitas mães,
como Nossa Senhora, preocupadas com a sorte de seus
filhinhos. Que ainda existem faraós do Egito e reis como He-
rodes; matança de muitas crianças inocentes; vítimas de morta-
lidade infantil desnecessária; criminosa retenção de salários ...
Não pensemos que já sabemos quem é Jesus. Justamente os
que pensam que já sabem quem é J~sus e que pertencem aos
grupos da sociedade que na narração evangélica representam
o mundo dos crentes, correm perigo de se enganarem de novo.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
66
Batismo do Senhor
Pistas Exegéticas
Primeira e Segunda Leitura, ver A Jlfesa da Palavra, Ano A, p. 91-95
Terceira leitura: Me 1,7·11
1. Entre ~~ primeiros cristãos, j!1deus de expres~ão grega_. utiliz~v.a-se o term~
pais, que sigmf1ca ao mesmo tempo dbo e servo. Dai o conceito de filho de Deus
ser Inspirado tanto pelos textos que falam de ufilho" fpovo. rei, messias) quanto
pelos que falam de "servo". Em Sb 2, o "filho" ê o justo. Aqui, em i\1.c 1, predomina
a dimensão do rei-messias. combinada, porêm. mediante a citação de Is 42. com a
idéia do servo; esta combinação atravessa de modo misterioso todo o Evangelho d~
Me (por exemplo, a Entrada em jerusalêm).
1. - O batismo de Jesus no inicio do Evangelho de Arfe
Me 1,7-11 faz parte do «início» da Boa-Nova segundo Me. o Evan-
gelho de Me inicia com a atividade de João Batista. Esta não é, como
em Lc por exemplo, um mero prelúdio, o fim do Antigo Testamento.
É a própria hora da salvação, o kairós, que aparece na atuação do
Batista. Me atribui pouca autonomia à tr.adição referente a João Batista.
Falando no Batista, já fala em Jesus. Mesmo o episódio da morte de
João tem seu ensejo na pergunta de Herodes a respeito de jesus, na
ocasião da atuação missionária dos discípulos deste (Me 6,14-29). O
movimento de conversão articulado pelo Batista (Me 1,5-6) é kairó.ç,
tempo de salvação. Sua atuação é cumprimento da escritura (Me 1,2-3),
portanto, tempo da intervenção de Deus. Forma o quadro para o «inicio»,
que é a investidura de jesus como Filho de Deus, ou seja, executivo da
obra escatológica de Deus. Neste quadro, Me resume toda a tradição
profética exortando o povo a «vo1tar::1> (= converter-se) para Deus,
para que Deus se voltasse novamente para ele (cf. Zc 1,3 etc.). A inves-
tidura de Jesus é ao mesmo tempo um ato soherano de Deus e o termo
de uma caminhada histórica de seu povo.
2. - Me 1.7-11
A pericope de hoje é constituída de duas" unidades menores: uma
sentença do Batista, expressando sua relação com o Cristo que vem
depois dele, e a narração do batismo de Jesus, ou melhor, da epifania.
de Deus para Jesus na hora de seu batismo por joão. O laço que une
as duas unidades é de natureza dupla: 1) apologética: procura definir
o lugar certo do Batista no Evento Jesus Cristo; isso era um problema
para os primeiros cristãos (cf. não só Jo 1,6-8, mas também Mt 3,13-14
e Lc 3,21, que nem sequer diz que foi joão que batizou Jesus); 2)
histórico-salvífica: a sentença do Batista prepara a epifania como acon-
tecimento escatológico.
Na sentença do Batista (v. 7-8) delineia-se uma relativa oposição
(relativa,_ porque dentro da oposição existe uma certa continuidade).
João prepara o caminho P.ara um «mais forte», tão forte que ele nem
mesmo é digno de lhe preStar um serviço de discípulo (desamarrar suas
sandáJias). A diferença entre João e o que vem depois riele é dita no
67
 v. 8: João batiza com água, mas o que vem depois dele batiza com o
Espírito Santo. joão realiza a preparação humana, a conversão, enquanto
jesus reaJiza a parte divina, a efusão escatológica do Espírito (cf. jl 3,1-5).
Reconhecemos nestas palavras um reflexo da experiência eclesial. A
piedade antiga, levada à plenitude no batismo de joão, é o <voltar»
humano a Deus; e este, em jesus, se «volta» para seu povo, comuni-
cando-lhe o dom escatológico, o Espírito divino, assinalado pela imagem
da efusão-imersão (batismo), sinal desta realidade na comunidade cristã.
Quando comparamos o texto de Me com Mt e Lc, constatamos que
estes dois transmitem· uma interpretação apocalíptica da obra do <!mais
forte» que vem depois do Batista: ele batizará, não só ·com Espírito
Santo, mas com fogo (Mt 3,llc-12; Lc 3,16c-17). Embora escrevendo
depois de Me, i\'lt e Lc acolhem no seu escrito uma palavra da tradição
mais antiga, descrevendo a obra do Messias em termos de purificação
e juízo, semelhantes a MI 3. Não se sabe se Me conheceu esta palavra,
mas mesmo se a tivesse conhecido, não a precisava transmitir, porque
não lhe interessa descrever o Evento jesus Cristo como evento apoca-
Jíptico e sim anunciar a Boa-Nova de que com Jesus iniciou a efusão
escatológica do Espírito de Deus ( cf. At 2, discurso de Pentecostes e
também At 10, 2' leitura de hoje). Esta nova realidade - o Reino' de
Deus - é, no início, uma realidade escondida e o é ainda no tempo
do 21) evangelho, pois exteriormente o rumo da História não mudou.
jesus porém conhecia o Reino como realidade presente. Trazia-a em si
mesmo. O Reino de Deus estava agindo enquanto as pessoas deitavam
e se levantavam, sem ter consciência do que estava acontecendo (cf.
Me 4,26-29).
Ora, esta presença escondida do Reino na pessoa de Jesus é o que
Me expressa na segunda parte do evangelho de hoje, a narração do
batismo de jesus.
«Naqueles dias» (em que joão proclamava sua mensagem de con~
ver&ão), «aconteceu» (v. 9a): jesus veio de Nazaré da Galiléia e foi
batizado por joão no Jordão. Mas «logo», saindo da água, ele (Jesus,
e nenhum outro) viu os céus se rasgarem (lOa). Conforme Me (não
conforme Mt e Lc) esta visão é exclusiva de Jesus: só ele sabe onde
está o Reino: em si mesmo. Reino que irrompe através dos céus rasga-
dos (cf. Is 63,19). Desce a bath qol, a voz de Deus personificada em
forma. de uma pomba, e lhe revela, de modo estritamente particular (em
Mt se dirige aos circunstantes): <!TU és meu Filho predileto, em quem
e.aloco me~ agrado». Este texto, inspirado em Is 41,1; 44,2; SI 2,7, signi-
fica a eleição de Jesus. 1 O filho predileto não é o queridinho da lingua-
g~m sentimental É o eleito do beneplácito de Deus, responsável pela
R No contexto das leituras de hoje, o lugar de Me l,7ss é claro. As
m1ssao que este lhe confia e herdeiro de sua glória. Assim como Javé
escolheu Israel por filho, assim seu beneplácito determina agora esta
escolha de modo mais preciso: Jesus é, em Israel, o eleito por excelência,
em quem as promessas se encontram cumpridas e com quem Deus estará
para sempre.
Está narração impressiona por sua concisão, característica que marca
também todo o contexto deste «início». Ao ler o 19 cap. de Me, tem-se
a imp.ressão de uma verdadeira irrupção. A narrativa é apressada, quase
frenética. A longa citação anunciando a plenitude do tempo (v. 2-3)
transf?rma-se, sem um momento para respirar, em descrição do Batista
ª!1~nc1ando o «mais forte». Então «acontece» (v. 9). O espírito escato-
log1co vem, de fato, sobre Jesus, que é investido com ele e por ele
levado ao deserto (v. 12-13), exatamente corno Davi foi escolhido por
68
Deus mediante o derramamento de ungüento por Samuel (cf. batismo)
e imediatamente «possuído» pelo Espírito (1Sm 16,13). Jesus é agora
<ungido> (khristos) como Davi, ungido pelo Espírito (cf. Is 61,1). Ele
é o Ungido escatológico. Continuando a narração, Me frisa apenas a esta-
dia de Jesus no deserto, para mostrar que em torno dele Satanás fica
sem poder e se reconstitui o paraíso, como anunciava também a pro-
fecia de Is 11,1-9 a respeito do príncipe sobre quem repousaria o Espírito
do Senhor (Is 11,2). A narrativa chega apenas a um certo descanso em
Me 1,14-15, quando jesus proclama a presença daquilo que o Batista
anunciou corno iminente: o Reino de Deus.
Esta <pressa escatológica», sensível em Me 1,1-15, continua ainda
na vocação dos discípulos e na descrição da atividade de Jesus na região
de Ca!arnaum (1,16s).
Como todo o Evangelho de Me, a pericope de hoje é uma «epifania
velada». O ser filho e eleito de Deus está envolto no véu do «segredo
messiânico». Por isso, inicialJÍ1ente, a voz se dirige só a Jesus. Mas,
depois de que Pedro proclamou sua fé messiânica em Jesus e este a
corrigiu pela predição da Paixão (Me 8,27-33), os discípulos da primeira
h~ra (Pedro, Tiago e joão) podem presenciar a manifestação da proxi-
midade de Deus para jesus (a Transformação) e ouvir, dirigida agora
a eles, a voz proclamando: <Este é meu fiJho muito amado, ouvi_-o»
(9,7). Porém, somente depois de levado a termo o caminho que os
d_i~cipulos trilharam sem o compreender, não os discípulos, mas o centu-
riao romano, prefigurando a Jgreja liberta das categorias judaicas, pode
proclamar: «Verdadeiramente, este homem era filho de Deus» (15,39).
O pleno significado da filiação divina de Jesus e da missão com a qual
ele é investido na hora do batismo, só aparece na hora da cruz.
Embora a investidura de Jesus seja descrita por Me como experiência
pessoal do mesmo, não podemos esquecer que, na primeira parte do
evangelho de hoje (a sentença do Batista), ele foi anunciado como
((~quele que batiza c_ofl! .º Espírito Santo». Isto implica que outros parti-
cipam do mesmo m1ster10 que se revela nele na hora do batismo. Os
que recebem o batismo cristão participam de sua missão de filho de
Deus. Nós também deveremos .passar pelo «segredo messiânico», ou
seja, a revelação do insondável plano de Deus na realização de nossa
missão histórica.
3. - Lugar na Liturgia
duas primeiras leituras oferecem, por assim dizer, as coordenadas para
o evangelho: o conceito de Servo/Filho de Deus conforme o AT (Is 42,
cântico do Servo) e o anúncio apostó1ico da investidura de Jesus como
Filho de Deus e Messias a partir do batismo por João, como inicio da
nova e definitiva fase da econon1ia salvífica (At 10).
Mas devemos observar tambén1 o contexto 1itúrgico mais amplo: a
festa do batismo de Jesus é um corolário da festa da Epifania. Por isso
insist;mos, no comentário acima, no caráter de epifania que reveste ; a
narração do batismo. É urna· manifestação da irrupção do Reino de
Deus em Jesus, porém, descrita do modo característico de Me, ou seja,
como manifestação velada, porque só à luz da cruz seu pleno sentido
fica visível.
Johan Koníngs
Porto Alegre, RS
69
j
 Bibliografia
Bibliografia: E. Se hw e 1 z e r, Das E11angelium nach .uarkus (NTD), Ootlnga u
1968; J. K o n i n g s, Espirita e iUensagem da Liturgia Dominical, Porto AJegre, EST,
1982; p. 74.
Tema principal
O batismo de conversão
Sugestões para a homilia
O Batismo de João é um marco: ele conecta e separa a
Antiga e a Nova Aliança. Vindo como Precursor, João é o anún-
cio vivo de uma nova era: a sua palavra e o seu batismo são o
desvelamento que este anúncio tem por conteúdo. A sua missão,
assim como a sua vida, perde-se na penumbra da história: é
ele vislumbrado apenas através do Novo Testamento que o visa
em seu confronto com o Cristo. A Festa do Batismo de Jesus
é um momento da leitura cristã deste confronto; em si, a Festa
é de jesus, mas, nela, João é um. sinal que o desvela.
O batismo de joão é batismo na água e é batismo de con-
versão. Estas duas determinações o definem. Batismo na água,
é ele a imersão no elemento vital: com freqüência, os intérpretes
minimizam este dado. Batizar na água significa imergir no ele-
mento vital, fazer remontar às origens da vida, restaurá-la em
si ou em alguns de seus aspectos. Com isto, dissipa-se a idéia
segundo a qual o Batismo de joão seria meramente ético: não,
ele é ontogenético na medida em que visa a Vida, ainda que
não se proponha valer o seu dom, mas, nos termos do Novo
Testamento, tão somente o prepare. E ele o faz a um título de
batismo de conversão: em hebraico, esta palavra expressa uma
radical mudança de caminho; em grego, significa uma profunda
transformação do espírito humano. Trata-se de um transcender-se
do homem no que este tem de mais propriamente humano.
Proclamado na iminência da manifestação de jesus, é ele prepa-
ração definitiva e remata a Antiga Aliança. Proclamado como
batismo de conversão, ele impõe ao homem um autotranscen-
der-se que esgota as suas possibilidades imanentes e abre-se
J ao Dom do Absolutamente-Outro. E a este batismo que, com
·1
certo número de seus contemporâneos, jesus acorre.
1
;
O Batismo no. Espírito Santo
jesus veio a joão para ser batizado. Os evangelhos conferem
a este fato distintas conotações, mas preservam todos o seu
70
significado maior. Marcos representa a tradição mais originária
e, nesse sentido, é oportuno circunscrever a ele as presentes
considerações. A narrativa abre-se com a proclamação da supe-
rioridade de jesus em relação a João, o que introduz a superio-
ridade do seu batismo em relação ao deste e a um título de
batismo no Espírito Santo por oposição . à água. A idéia é
simples, lapidar: radicalmente, espirito quer dizer vento, mas
também alento; donde, alento vital, princípio de vida. Este é o
significado pleno que a palavra adquire no Antigo Testament~;
por oposição à carne, basar, e à alma, nephesh, também consti-
tuintes do homem, o ruah designa o prinéípio divino da vida;
no caso do batismo, é ele oposto ao simples elemento, a água.
Eis no que consiste a superioridade do batismo de Jesus.
Evoca-se On 1,2, mas a um titulo de superação. Introduz-se,
em vislumbre, a idéia de uma nova criação.
Ora, Aquele que batiza no .Espírito vem ao que batiza na
água para ser por este batizado. A tradição cristã, certamente
por oposição à dos discípulos do Batista, viu neste gest~ uma
forma de jesus ser fiel à sua missão, ao seu ser em humanidade.
Marcos apenas menciona o fato. No contexto de seu evangelho,
este só pode compreender-se a partir do Batismo de João, visto
este como precursor e profeta da conversão face à iminência do
Reino. Batismo no qual alguém batiza - o que, para o tempo,
era novidade - , a imersão no Jordão era, nesta interpretação,
iniciática: como a circuncisão o iniciara no destino total do povo,
esta o inicia à iminência histórica do Reino e à conversão por
ela exigida. A teofania que se segue à saída das águas o con-
firma: ao sair do elemento vital, jesus vê pairar sobre sua
pessoa o Espírito, o princípio da Vida. O batismo de jesus por
joão era a necessária superação da passagem por ele próprio
representada, era a passagem vital ao batismo no Espíri.to.
Acrescente-se ser esta interpretação coerente com todos os sig-
nificados que se possam atribuir ao simbolismo da pomba:
nuvem luminosa, imagem da esposa, anúncio da Aliança. E a
um título de primogênito e, portanto, na qualidade de povo
escatológico que jesus recebe o Espírito. E o que expressa a
voz que se faz ouvir: o dom da Aliança Nova é o dom da
filiação.
O Espírito paira sobre Jesus como Servo de Javé, como
Povo que, chamado à justiça, é Luz das Nações; paira sobre
Ele como sobre as águas originárias, gerando no homem que
Ele é a filiação como 1iliação do Povo. Com isto, ele está pronto
para a sua missão; com isto, igualmente, cumpre o Evangelho
a sua: anunciar jesus de Nazaré como a Boa-Nova, aquele que
71
j
 instaura o Reino. Isto vale especialmente para Marcos.
Quarta-feira de Cinzas do Ano R
htício da Campanha da Fraternidade
Conclusão
Pistas Exegéticas
A celebração do batismo no Jordão desvela ao homem a
Como na Mesa da Palavra, Ano A, p. 101-104.
sua condição, mostra-lhe o que é chamado a ser. É necessário
que ele passe do batismo de João ao de Jesus; ao ser batizado,
este opera sacramentalmente esta passagem, que subsiste na
conversão inerente a todo bastismo cristão. Os antigos rituais Tema Principal
assinalaram a seu modo esta necessidade, demarcando os suces-
sivos momentos da conversão, desde a apótaxis à syntaxis, tor- QUARESMA, TEMPO DE CONVERSÃO
nando-se, assim, a sua consciência prática. Ruptura e conversão
são, para o homem de hoje, a mais atual questão, tão radical
é a necessidade de uma opção. Convertido, imerso no Espírito, Sugestões para a Homilia
cabe ao cristão ser luz das nações e é este ser luz que é a
universalidade em sua essência histórica, constituindo a antítese Introdução
de toda a relação de poder e dominação, abrindo-se na comu-
nhão ao Homem segundo o Espírito. A Igreja dá ao dia de hoje um significado que não interessa
às agências de publicidade, aos cartazes de propaganda e aos
Francisco Benjamin de Souza Netto valores da sociedade capitalista em que vivemos. A lembrança
São Paulo, fevereiro de 1981 de que somos pó, de que não temos morada certa neste mundo,
de que a morte é a única realidade inevitável no futuro de nossa
existência, é uma lembrança incômoda para quem acredita que
e> presente histórico é absoluto.

\
Corpo
1. O caráter subversivo da vida cristã

O cristão, ao testemunhar o absoluto de Deus em sua vida,

relativiza todas as outras coisas. Por mais que as ditaduras
queiram eternizar-se, às custas de leis de exceção e da força
das armas, o cristão sabe que, no rumo do Reino de Deus, a
história caminha engravidada pelos germes da libertação. Por
não acreditarem no caráter divino do Império Romano, os cristãos
eram chamados de «ateus». Hoje, ao recusarem aceitar que o
Estado está acima da vontade popular, os cristãos são tidos
como «subversivos e comunistas». Ora, as instituições, como o
Estado, a Pátria, a Nação, são posteriores à comunidade humana
e por ela foram criadas. Da mesma forma, por ela devem ser
modificadas, quando já não correspondem às necessidades de um
tempo ou de um povo.
~ 72 73
1

1
 . ••
Sob o sinal das cinzas, os cristãos reafinnam hoje a sua
liberdade de filhos de Deus. Como tal, não têm compromisso
definitivo com nenhum sistema, nenhum regime, nenhum partido.
O compromisso fundamental dos discípulos de Cristo é com aque-
les que mereceram preferencialmente o seu amor: os pobres, os
oprimidos, os condenados da terra.
2. O compromisso cristão com os pobres
O Evangelho de hoje diz que não devemos ficar contando
o que fazemos em benefício dos mais necessitados. Não devemos
ser como esses velhos políticos que fazem coisas para o povo,
em busca do maior número possível de eleitores. Devemos fazer
com o povo, participando de sua caminhada, vivendo os seus
problemas e ajudando-o a encontrar a sua própria alternativa
política. Nem devemos ser como essas elegantes senhoras que
não sabem dar ao pobre sem a compensação de um sortido
chá ou de um variado desfile de modas. O povo não precisa
de quem dê coisas a ele. Está cansado desse paternalismo que
passa mel na boca de quem tem fome. Precisa é de quem se dê
a ele, seja solidário às suas esperanças, participe de suas lutas,
sirva à sua busca de libertação.
l Uma árvore é conhecida pelos seus frutos - e não pela
sua casca. Todavia, para poder dar bons frutos, é preciso que
ela possua boas raízes. Uma das principais raízes da vida cristã,
que nos ajuda a sugar a energia inesgotável do Amor divino,
é a prática da oração. Essa oração, diz o Evangelho, não deve
ser feita com alarde, como esses moços de gravata e cabeça
i raspada que andam pelas ruas com estandartes coloridos, em
1 defesa de uma Igreja que morreu com o fim da Idade Média.
~
Nossa oração deve ser como o nosso serviço aos pobres: dis-
creta, vivida na intimidade de nosso coração, repleta de silên-
cio capaz de perceber as insinuações do Espírito. Mas, assim
i como só se trabalha efetivamente pelos mais pobres, engajando-
se numa atividade concreta, só se cresce na vida de oração,
reservando a ela, diariamente, o mesmo tempo, pelo menos, que
reservamos às refeições que nutrem o nosso corpo.
3. Quaresma, tempo de conversão
Iniciamos hoje a Quaresma, o período de quarenta dias que
antecede à celebração da morte e da ressurreição de jesus Cristo.
Nesse período litúrgico, devemos também aprender a morrer com
i·
74
1
>.
•
Cristo, para renascer com ele. Com a ajuda de sua graça, deve-
mos combater tudo aquilo que, em nossa vida, impede o nasci-
mento do homem novo anunciado pelo Evangelho: nossas ten-
dências burguesas, nossos pequenos apegos, o comodismo ou o
medo que nos impedem uma atuação mais eficaz, nosso fari-
saísmo em só querer fazer aquilo que nos dá vantagem ou pres-
tígio, nossa dependência. da televisão, desperdiçando um tempo
que poderia ser útil em outras coisas.
Muita gente acha que a Quaresma é apenas um tempo em
que não se come carne às sextas-feiras. Ora, em nosso país, a
grande maiória não come carne dia nenhum e, por isso, a Igreja
já nos liberou da obrigatoriedade do jejum e da abstinência
de carne. Mas aqueles que não passam necessidade, devem,
mesmo por uma questão de solidariedade aos necessitados,
privarem-se da carne hoje e às sextas-feiras. E que façam isso
sem essa atitude farisaica de quem, não comendo carne, enche
a mesa de peixes e camarões sem compreender o sentido da
abstinêucia.
Contudo, o jejum que agrada a Deus, diz o profeta Isa.ias,
é quebrar as cadeias injustas, libertar os oprimidos, reahzar
a justiça. A Quaresma, nesse sentido, é o tempo em que reassu-
mimos a nossa vida cristã como um engajamento efetivo de trans-
formação do mundo, em vista do Reino. Para tanto, mantemos
viva a certeza de que Deus é a nossa única segurança: nem
perseguições, nem prisões, nem a morte, poderão. arr~car-~os
desse Amor que inunda o nosso ser e fermenta a h1stóna atra1da
por sua promessa.
Frei Betto •
Belo Horizonte, MO
75
 --.::·.,.-·
•
•
Primeiro Domingo da Quaresma
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: 6n 9,8·15
O redator, ou redatores, do Gênesis certamente tiveram conheci..
mento de mtútas versões de um dilúvio catastrófico. Conhecemos hoje
algumas dessas narrações da antiga Babilônia tm que a lenda se
mistura ao mito e ao politeísmo. '
.. O auto~ bi~lico assume essa história antiga e no-la apresenta des-
m1tizada e Ilummada por outra teologia, de acordo com a compreensão
que ele tem de Deus e da história dos homens. E como a experiência
fundamental da história do povo hebreu com Deus se dá através de
uma Ali~nça, o ~utor bíblico nos apresenta Deus fazendo uma Aliança
com Noe, seus ftlhos e com todos os seres vivos, após o dilúvio.
• A narra_ção do dilúvio de Gn &-9 resulta da fusão de duas tradi·
ç?e~: a ]avista e a Sacerdotal. Este trecho, Gn 9,8-15, pertence à tra-
d1çao sacerdotal (P) e reflete a mentalidade do autor e do grupo
sacerdotal.
É a_ primeira Aliança que a Bíblia apresenta de forma expHcita.
Nela estao presentes alguns elementos sobre os quais será interessante
refletir. Esta Aliança, situada pelo autor sacerdotal no fim do dilúvio
manifesta o amor que Deus tem pelo homem e por todas as demai~
criaturas. A Aliança não é feita só com Noé e seus filhos mas «:com
todos. o~ seres vivos» (v. l_O). É aJgo um tanto estranho, ~o conjunto
1 da B1bha. Fala-se nela mudas vezes de Aliança com os homens mas
aqui é a única vez que se fala de uma A1iança de Deus també~ com
i os animais. Certamente o n1otivo é porque, juntamente com o homem
os animais também foram atingidos pelo castigo do di1úvio. Em tod~
o· caso, a compreensão que o autor bíblico tem do amor de Deus
c?mprensão que ele hauriu sobretudo ao longo das experiências histó~
ricas de seu povo, faz que ele nos mostre Deus inclinando-se com
compaixão, misericórdia e amor para com o homem e os animais E
mais: não ~ó se inclina com amo~1 mas compromete-se com uma Ali~nça
(o que equivale a um juramento) a não mais destruir os homens e os
animais com -outro dilúvio.
E como sinal e garantia desse compromisso de benevolência toma
o arco-íris. Este sinal, que periodicamente aparece no céu, desPertará
nos ho_mens a memória da benevolência divina.
H~bitualm~nte a Ali~nça é ligada a nm sinal externo que serve de
...r memonaJ. Assim na Ahança de Deus com Abraão o sinal é a cir-
cuncisão (Gn 17,1-14); na Aliança entre jacó e L~bão, o sinal é um
~o~te de pedras (Gn. 31,43-54); na Aliança do Sinai, segundo a tra-
d1ç~o sacerdo~a!, o smal é a observância do sábado (Ex 31,12-17).
Assim o arco-1r1s, que era um fenômeno naturfil assume aos olhos dos
hebreus, um valor e um sentido religioso. Qu ando eJ~ aparece, após
1
a tempestade e a chuva, é visto com alegria como anúncio de bom
tempo e sinal da benevolência divina em relação aos homens.
Outr~ elemento a considerar nessa Aliança é a unilatera1idade do
compron:1ss~. Em todas as demais Alianças sempre há uma obrigação
que se tmpoe ao homem. j\qui Deus toma a iniciativa e também assume
i;
76
.:·'
'
1
....
unilateralmente a obrigação de não mais devastar a terra com outro
dilúvio. Mesmo o sinaJ, o arco-íris, depende só de Deus. Manifesta
isto mais uma faceta do conhecimento que o redator bíblico tem de
Deus, de seu amor compassivo e perdoador.
Bibliografia: P l r o t - C 1 a m e r, La Sainte Blble, t. 1, 1, Paris, Letouzey et
Anê; C o r d e r o, Max. G., Bib'.ia Comentada, l\ladrJd, BAC.
Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
Santa Maria, RS
Segunda Leitura: 1Pd S,18-22
No contexto anterior (vv. 1-17) aparecem várias exortações às es-
posas, aos maridos. Os cristãos são intimados à caridade e a serem
constantes, cheios de esperança e brandura, mesmo nas perseguições,
fazendo sempre a vontade de Deus. Os apóstolos em suas cartas, quando
exortam, procuram motivar com o exemplo de Cristo. Aqui (v. 18)
Pedro continua expondo a idéia de sofrimento e seu sentido redentor
em Cristo. Para tanto apela para as atitudes de Jesus e para as pro-
messas do batismo. Cristo, inocente, morreu vítima de nossos pecados.
Como em 2,21-25, alude-se à profecia do Servo de Javé (Is 53). A
morte- de cruz foi um sacrifício pelos pecados dos outros, garantindo
grande descendência e prosperidade no Reino de Deus. Da mesma forma,
os cristãos, quando perseguidos, devem oferecer suas vidas à justiça
divina, qual vítima de pecados pela injustiça dos outros. Assim sendo,
conduzirão homens a Deus e terão descendência. É morrendo que jesus
abre caminho a uma atividade maior - a da ressurreição (v. 18b).
Não se preocupem os cristãos com substitutos, pois, sacrificando a
vida, inauguram uma atividade mais frutuosa. Enquanto desfalecia no
corpo, no espirito Jesus atraia todos a si (Jo 12,32). O mártir e
semente de cristãos. A morte do cristão faz maravilhas no campo do
espírito. Cristo tornou-se o modelo para os mártires: com sua morte
deu a Deus a devida satisfação por nós, inaugurou uma atuação espi-
ritual mais. vital, atingindo, entre a morte e ressurreição, os que esta-
vam no «cárcere» (v. 19; «infernos»), segundo cria a Igreja primitiva.
Naturalmente Pedro emprega imagens do Judaísmo tardio. Tal «cár-
cere» seria talvez um lugar central da terra - o «sheol» (o «limbo»
dos Santos Padres, o «seio de Abraão» do NT), lugar tenebroso, para
onde Jriam as almas dos bons e dos maus. Posteriormente os rabinos
dividiam o sheol em duas seções: uma, de terror e penas para os maus,
- outra, de esperança para os bons. Jesus teria descido para esta
última, a fim de levar noticias de si, de sua morte e ressurreição.
Não transparece com segurança do texto, se o fez para redimir ou para
julgar. O contexto sugere antes a boa-nova da salvação (kerYssein).
Cristo desceu aos 4'.infernos» em sua alma humana, já gloriosa, unida
à divindade, mas separada do corpo, o qual jazia no sepulcro. De tal
figura depreendem-se duas verdades:
- A salvação de Cristo, sacrifício único e suficiente, atinge todas
as esferas do mundo, concretizando o juízo e a graça de Deus;
- Cristo é testemunha fiel que anuncia o fato da. redenção misericor...
diosa de todos, inclusive dos inimigos; é o justo (At 3,14; 7,52; 22,14;
cl. Is 53,11) que nos leva a Deus.
77
 A menção da morte e ressurreição de Cristo deu ensejo a uma
digressijo dogmãtica sobre a sua cdescida- aos infernos» (v. 19) sobre
o sentido típico do dilúvio (v. 20) sobre a ascensão de CrisÍo e a
subord!nação a Ele de todos os e;pfritos bons e maus (v. 22). Hã
paralelismo com Ef 1,20-22.
:; Não s~ trata de anjos decaidos, mas dos homens, porquanto se
alude aos. mcrédulos d?, te!"po de Noé. Pedro passa da situação geral
'I
,,:1
da humamdade para .eptSód10s concretos da História da Salvação, quando
Deus, antes de castigar, espera benignamente: o tempo de descrença
~ue. Prec~~eu u . dilúv!o e no final dos tempos. Naquele, o arauto da
1ust1ça d1vma fo> Noe, - neste, Jesus. Portanto há possibilidades de
",, conversão para quem quiser. Como Noé e Cristo' também aos cristãos
assiste o dever de apregoar a justiça divina. EnÍre os pecadores JPd
discerne o grupo dos que viveram no tempo de Noé (v. 20). 'Fã-lo
para realçar a eficácia da morte redentora de Jesus, a qual abrangeu
tam?~m. os grande~ pecadores de outrora, dignos do maior castigo -
o .diluvio. Com efeito, enquanto Noé fabricava a Arca eles se mostra-
ram tot~Imente incrédulos, - mas ao ver o castiio, já inevitável,
arrependeram-se e pediram perdão, aceitando a morte como expiação
de seus pecados.
A imagem da arca transportada pelas águas na qual se salvou Noé
com sua familia sugere a Pedro um paralelismo com o batismo cristão
que nos salva «passando pela água». Esta, motivo de ruína para
muitos, foi também meio pelo qual Deus salvou a Noé e os seus.
Nas águas do dilúvio o Apóstolo vê uma figura da ãgua do batismo
que salva os que o recebem. «Preparar» a Arca é mais do que «fabricã-
la». .É agir de acordo com um plano sábio. O número 8, como coroação
da semana (7 dias), tornou-se símbolo de duração infinda. Aliás os
batistérios eram antigamente octogonais. ' jejuando (Ex 34,28). No deserto Jesus defronta-se com o grande adver-
A água é instrumento de salvação pela qual os cristãos foram
conduzidos ao Lenho. A «arca> não é tanto símbolo da Igreja, quanto
do Lenho redentor da cm, (2,24). Em IPd 3,21 não se refere direta-
mente ao tempo de Noé, mas à realização do batismo. O importante
não é a semelhança exterior - a aplicação da água. Conta mais o
interior: Os homens obedecerem a Deus. O batismo é sobretudo uma
promessa, um contrato, um «obedecer de coração à regra de doutrina
na qual fostes instruídos» (Rm 6,17). O principal compromisso do ba-
tismo é a promessa de acolher sempre f' em tudo a santa vontade de
Deus e, assim, forjar uma boa consciência.
O v. 22 mostra como Jesus, antes, se submetera às autoridades
humanas, entregando-se à morte. Agora, é glorioso, subiu aos céus
e está junto a Deus Pai. Tudo lhe está sujeito: os Anjos as Potes-
tades e as Virtudes - os espíritos bons e maus. ' reconciliam? Em outras palavras: Deus agiu realmente através de jesus?
BlbUogra/la: S a 1 g u e r o, J., Blblla Ccmentada VII BAC (Madrid) 1965·
Se h w a n k, B., A Primeira Carta de Pedro Apóstolo, tràd de A Well VozesÍ
0 o céu. N'Ele Deus retomou de novo Sua obrà de salvação. Desde então
PetrópoJis 1961; F r a n e o, R., Cartas de S. Pedro, La sâgrada EscrlttÍra NT
111, BAC (Madrid) 1962. ' '
Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa María, RS
78
I'
Terceira Leitura: Me 1,12·15
«Está próximo o reino de DeuS»
1. No inicio de seu evangelho o evangelista fornece logo a chave
para entender o resto do livrinho. Todo ele há de ser entendido a
partir de duas dimensões. Uma dimensão «horizontal» em que aparecem
homens mortais como João Batista, os habitantes de Jerusalém e da
Judéia e Jesus de Nazaré da Galiléia, em um cenário de realidades e
eventos que pertencem ao nível do mundo e da história humanos (Me
1,1-9). E uma dimensão «Vertical» em que aparecem seres de um outro
mundo, não-histórico, sobrenatural: o Espírito Santo, uma voz celeste,
Satanás, anjos (Me 1,10-13). Mais do que por um interesse puramente
histórico, a seqüência em que aparecem estas duas dimensões parece
inspirada por uma teologia e cristologia; ou, então, por uma «crono-
logia» da ordem da História de Salvação que apresenta o conteúdo do
evangelho que segue como a realização escatológica das esperanças
e profecias do Antigo Testamento (cf. Me 1,2-3) na figura histórica
concreta de Jesus de Nazaré da Galiléia. Deus age no mundo através
d'Ele. Por isso chama-se o conteúdo do livrinho que apresenta a ação,
paixão e ressurreição deste homem Jesus de Nazaré «início da Boa-
Nova de Jesus Cristo, Filho de Deus».
2. O Espírito que Jesus recebeu no batismo impeliu-O para o
deserto. Em Me o deserto é o lugar onde a gente se encontra com
Deus (e!. 1,35; 6,31). Na Biblia é o lugar onde se tomam as grandes
decisões. Este aspecto é acentuado pelo número 40. Durante quarenta
anos Israel foi provado no deserto (Dt 8,2s.15s). Quarenta dias e qua-
renta noites Moisés permaneceu na montanha (Ex 24,18), orando e
sário do reino de Deus, Satanás. O detalhe de que «vivia com as feras
e os anjos o serviam» pode ser interpretado como sinal da vitória de
jesus sobre Satanás e da inauguração da era messiânica. Certamente
na medida em que evocam traços da narração do estado paradisíaco
de Adão antes da queda, lembrados em várias profeclas messiânicas
como Is ll,6s; SI 91,11-13 e o Testamento de Neflali (livro apó-
çrifo, n• 8).
E. Schweizer, autor de um comentário de Marcos, muito conceituado,
escreve a respeito da passagem: «Decisivo não é, quantos deta1hes são
históricos e o que se passou na alma de Jesus. Decisiva é a pergunta
que a comunidade e Marcos nos propõem: Em jesus veio realmente o
novo Adão que desfez a queda original? Em Jesus veio realmente o
prometido do Antigo Testamento através de quem o céu e a terra se
Somente a fé pode responder a estas perguntas, como o tentam fazer
Marcos e a comunidade quando proclamam: Em Jesus abriu-se de novo
o Espirito de Deus está agindo de novo. Começou a guerra de Satanãs
e a paz de Deus na terra. Quem se aproxima de jesus, aproxima-se,
pois, do céu aberto e do deserto, onde o impulso do Espírito leva à
luta e à tentação; e expõe-se ao mesmo tempo ao ataque de Satanâs
e à paz de Deus no meío das feras» (p. 22s).
3. Me 1,14-15 é um «Sumário». Marcos lança mão de tais sumários
para marcar o andamento da narração. Outros exemplos de sumários
79
 ~~--
são 1,39; 3,7-12; 6,6b; etc. As vezes servem para introduzir .urna ou
algumas passagens; outras vezes para encerrá-las. Em Me 1,14-15 cul-
mina o prólogo do evangelho de Me e inicia-se a vida pública de jesus.
A prisão de joão Batista era para jesus o sinal para começar a
Sua pregação. O verbo «prender» ou <entregar» (à prisão e à morte)
era usado para criminosos e, especialmente no aml;>iente cristão, para
mártires. No NT muitas vezes é usado para indicar a sorte de Jesus
que foi <traido» por Judas e «entregue> aos chefes do povo, a Pilatos
etc. (9,31; 10,33; 14,IOs.18.21.41s.44; 15,1.10.15). Usando-se este verbo
em 1,14 sugere-se que a sorte de João Batista é semelhante àquela de
jesus, e vice-versa.
4. Apesar desta prisão continua a pregação de uma nova aurora
de ingerência de Deus na história dos homens. A atuação de Jesus
não se reduz, porém, a uma mera continuação daquilo que João Ba-
tista iniciou. Ela traz a plenitude da Boa-Nova. O tempo de prepara-
ção é substituido pelo tempo da plena realização ou da plenitude:
«Comoletaram-se os tempos. chegou o reino de Deus» (l,15a).
O cenário desta realização é Galiléia e não judéia; é o interior
em redor do Lago de Tiberíades e não a capital jerusalém. O evan-
gelista Mateus destaca de maneira mais ·explícita o sentido salvífico
desta circunstância (cf. Mt 4,12-16 e a Mesa da Palavra, Ano A, p.
125*-127*). Mas também para Marcos esta indicação provavelmente já
s~ revestiu de um sentido teológico e não somente geográfico. Gali..
lé1a não é somente o cenário do ministério terrestre de jesus mas tam-
bém o lugar de encontro com o Senhor ressuscitado (cl. 'Me 14 28·
16,7). A grande decisão toma-se longe dos «centros de decisão» e c~m~
s: e~plicita logo na vocação dos primeiros discípulos (Me 1,'16-20),
nao Junto aos que têm .:poder decisório», mas a simples pescadores
(cf. J. Konings no comentário de Me 1,14-20 na Mesa da Palavra
Ano B, p. 82*-84*). ' '
5. Jesus «prega a Boa-Nova». Não há dúvida de que nela se vê
a realização plena do anúncio da Boa-Nova de ls 62,1-2; 40,9; 52.7.
Mas não somente destes determinados versículos de Is, mas também
do contexto todo · em que estão inseridos. Este contexto está cheio de
expressões de expectatjva e de confiança de que Deus se manifestará
de novo e salvará o povo que tanto sofria pela marginalização e
humilhação que se sentia perdido, abandonado e esquecido, até por
Deus mes"!o ~cf. Is 40,27; 49,14). Toda a atuação de Jesus, em palavras
e obras, e vista e apresentada corno a reaHzação tanto destas profe-
cias como da expectativa e da confiança em Deus que o povo vivia.
1 6. Jesus proclama a chegada da plenitude dos tempos e do Reino.
1
A vinda dos mesmos não é proclamada condicionalmente isto é em
! dependência da reação dos homens. Não há dúvida de qu'e os ho'mens
hão de agir e de tomar posição; hão de parar e fazer uma volta com-
pleta. Mas tudo isso é e sempre será reação à ação de Deus em Jesus,
resposta a uma proposta divina. Eles hão de mudar de mentalidade
e ~e vida, não para que venham Deus e o Reino de Deus, mas porque
estao chegando; Co~o uma cidade se preparava, naqueles tempos, para
receber um rei ou imperador, cuja chegada era anunciada como boa-
nova ~través ~e arautos que precediam o cortejo, assim os homens e a
humanidade hao de voltar sua atenção para Deus que vem e hão de
preparar-se para o Reino que está chegando.
80
Depois de Me 1,15 caberiam logo as cenas de 1,2lss, em que se
desenvolve o programa contido no sumário de 1,14-15. Na «doutrina
nova» (l,27) de jesus, «ensinada con1 autoridade» (1,22.27), manifesta-se
que a proclamaçã.o de 1,14-15 não é uma palavra vazia (cf. a expulsão
do demônio de Me 1,23-26 e a interpretação de Lc 11,20: <Se expulso
os demônios pelo dedo de Deus, certamente é chegado a vós o Reino
de Deus»). Mas também as narrações da vocação de Simão e André
(I,16-18) e de Tiago e João (1,19-20) ilustram uma parte desta pro-
clamação. Elas mostrapi o que significa em concreto a resposta ao
apelo ~convertam-se e creiam na Boa-Nova». O chamamento de Jesus
ao discipulado provoca ·a renúncia às posses (cf. 1021.28) e aos laços
familiares (e!. 10,29). '
Bibliografia: Os comentários de Ta y 1 o r, Se h w e i z e r e Ma 1 y. \V.
Tr!lling-Kahlefeid, em EuE l (1969), 116-124; B. van Jersel, Ecn
Beg1n (1973); Met betrekking tot jezus (1974); Teologia e o trabalho exegético dos
detalhes. Um exegeta e teólogo sobre A1arcos 1 1-15 em· Conci:ium 70 {1971/JO),
1242~1249. • ' .
Raul Ruijs, 0.F.M.
Petrópolis, RJ
Tema principal
Conversão como um abrir-se ao imperativo
evangélico da missão
Sugestões para a homilia
A palavra de ordem com que se abre a celebração da Qua-
resma e, com ela, a mais solene celebração da Páscoa, é con-
versão. Por sua origem hebraica, esta palavra indica uma radi-
cal mudança de caminho; por sua forma grega, ela significa
a transformaçãQ interior a mais profunda, uma revolucão da
mente ou do espírito, do que o homem tem de mais próprio.
Na líturgia da palavra deste Primeiro Domingo da Quaresma,
a idéia e o ideal de conversão é proclamada à luz dos sinais
do dilúvio e do deserto, para abrir-se ao imperativo evangélico
que é a missão.
O dilúvio pertence à mais remota simbologia da humanidade.
Na Bíblia ele põe termo a uma idade e é o marco de uma
ruptura entre Deus e esta mesma humanidade, mas desde o seu
anúncio ao seu consumar-se, ele se abre a uma aliança defini-
tiva e cede-lhe lugar, como se ela devesse emergir de suas
águas. Ê a ambivalência da água, símbolo da vida e da morte,
mas, aqui, sinal do primado definitivo da vida. O compromisso
com Noé é uma primeira aliança; é assim que a tradição que
constitui a primeira leitura o compreende. Já então esta aliança
se firma com uma humanidade nascida da fidelidade. A inter-
pretação cristã do dilúvio, feita pela segunda leitura, nele divisa
81
a pr~figuração do Batismo, o seu tipo. O homem imerge na a dinâmica de uma verdadeira m1ssao. A expectativa de uma
água, sinal da vida e da morte, para submeter o que nele é revolução é, muitas vezes, o marco desta carência, particular-
velho e caduco à força capaz de o diluir, à força do elemento mente quando não assume a forma de uma prática. Certamente
originário. Mais uma vez afirma-se o primado da vida. É o nota-se nos me~os_ cristãos uma reação, uma obsessão por forma~
momento da ruptura e da conversão, da apótaxis e da sjmtaxis novas de eclesialidade e de existência social. Mas é necessário
dos antigos ritos batismais. A conversão é um voltar-se para n~o superestimar o estágio atual do processo; este se encontra
uma direção nova, um empreender um novo caminho aberto amda nos seus primórdios. No seu todo, o cristianismo católico-
pela fé e nela divisado. Por isso o batismo cristão tem no ato romano _continua a carecer de opções sujeitas a progressiva
de fé, na sua profissão pessoa), um de seus elementos essenciais. maturaçao. Ele perdeu quase todo o seu caráter iniciático: a
A ênfase na fé como um total confiar-se percorre toda a Bíblia conversão não tem nele momentos precisos e devidamente assi-
e subjaz à aliança cósmica e à sua leitura cristã. Na liturgia do ~alados e a fé corre o risco de se restringir a simples forma-
presente Domingo é ela fecho da proclamação evangélica. lismo. Nesse sentido, a Quaresma é um tempo oportuno: o
Esta principia pelo sinal do deserto. Com ele confere-se à temp? da redescoberta da conversão e da fé, a era do dilúvio
existência histórica de jesus o significado de um êxodo. A ten- e .a !dade do deserto, o tempo pleno e, por isso, o tempo da
tação ou prova do deserto tem este significado que Marcos m1ssao. ~ompreenda-se: não se trata de restaurar uma praxe,
enuncia em seu núcleo, sem a desdobrar. É uma prova, um ma_s d7 mst~urar a práxis adequada ao Espírito, tal como Ele
combate no qual jesus se comporta como o homem da Nova a 1~sp1ra ho}e. ~s lovens movimentos de Igreja são uma aspi-
Aliança. Nesse sentido, a tentação abre-se a toda a vida do raçao desta mspiraçao. Para eles o tempo é decisivo: é o Tempo
Messias, não constituindo um fato isolado, mas um sinal de da Nova Aliança.
todo que há de ser a sua existência. A idéia de êxodo perfaz Francisco Benjamin de Souza Netto
a de conversão, palavra com a qual, triunfante da prova, ela São Paulo, fevereiro de 1981
há de iniciar o ministério de anunciar o Reino. O êxodo é a
afetiva conversão de um povo; o evangelho deste Domingo
é o anúncio de sua inauguração. jesus o empreende e, atraindo
a si aqueles que são marcados pela fé, faz deste êxodo a pro-
gressiva e consciente gênese de um povo novo. Com isto, desde
o seu abrir-se, a Quaresma põe o cristão face à Páscoa, sacra-
mento e realidade deste êxodo. A aliança cósmica, feita histórica
entre Abraão e Moisés, alcança a sua plenitude, mediante a
passagem do batismo de joão ao de jesus. O tempo chegou à
sua plenitude, o Reino está próximo: a conversão pregada por
joão é reiterada, abre-se à fé na Boa-Nova e toma forma na
missão de jesus. A ênfase coloca-se no novo. Não se pode
deixar na sombra a idéia de novidade: todo o novo é exigente
de conversão e de fé. A pregação de jesus afirma a necessidade
de ambas e, a partir delas, prepara, passo após passo, a Nova
Aliança firmada na Ceia e tornada efetiva na totalidade do
Evento Pascal.
Não se pode deixar de sentir o quanto tudo isto é atual.
Não é possível divisar nos sinais do dilúvio e do deserto uma
simples questão de hermenêutica: eles remetem à vida e à vida
mediatizada pelo êxodo, à vida sob a forma da história. Homem
de um sistema, o homem contemporâneo carece de conversão e
a sua fé tende a dissolver-se na simples crença; falta-lhe, enfim,

82 83
 Segundo Domingo da Quaresma
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: 6n 22,1.2.9a.10·13.15·18
A Liturgia de hoje seleciona alguns versículos de Gn 22, para não
tornar muito extensa a leitura. Mas nós devemos considerar o capitulo
na sua totalidade. Ele pertence à chamada tradição Eloísta e é conside-
rado um dos mais belos trechos dessa tradição, pela sobriedade, pela
grandeza dramática e contida da narração.
Já de início, o autor adverte que Deus submeteu Abraão a uma
prova, como para prevenir o horror que os sacrificios humanos causavam
aos hebreus (cf. 2Rs 3,27). Sabemos que os cananeus, em certas circuns-
tâncias, ofereciam sacrifícios humanos, especialmente de crianças.
O narrador não se detém a analisar os sentimentos de Abraão.
Mas coloca toda a força do sentimento nas palavras de Deus, em que
Ele recorda tudo o que significa Isaac para Abraão. Deve ter sido
fascinante e tremendo para Abraão seguir esse Deus. Mandou que dei-
xasse sua terra com a promessa de outra terra e ele não passa de
um nômade. Prometeu-lhe uma numerosa descendência, e por muitos
anos não tem filho. Quando, finalmente, tem Ismael e Isaac, é obriga-
do a mandar embora o filho da escrava, porque Isaac será o único
herdeiro. Agora que a ferida da despedida de Jsmael estava cicatri-.
zando e parecia que teria finalmente paz, Deus vem e lhe pede que
ofereça Isaac em holocausto.
O texto, na sua bela sobriedade, diz que Abraão, já de manhã, fez
ps preparativos e partiu. Nenhuma palavra, nenhuma exclamação, ne-
nhum pedido de explicação! O texto dá a entender que a dor não
abafou a fé, mas antes ajudou a aprofundá-la Mostra-se isto pelo
diálogo de Isaac com o pai: «Onde está a ovelha para o holocausto?
- Deus providenciará, meu. filho> (vv. 7-8).
Chegados ao lugar do holocausto, o pai certamente manifestou a
lsaac a ordem de Deus. Deve ter sido um momento terrível para um
coração de pai. Isaac aceita, obediente, o desígnio divino.
Mas, justamente no momento supremo, intervém novamente a voz
de Deus, para impedir a imolação de Isaac. Em seu lugar, é oferecido
um cordeiro que, providencialmente, estava por ali enleado pelos chifres
num espinheiro. Esta substituição da vítima humana por um cordeiro
está de acordo com a legislação mosaica, que ordenava oferecer um
cordeiro como resgate pelo primogênito (Ex 13,13; 34,19-20).
A obediência de Abraão é recompensada. Deus declara-o por um
juramento. Significa a certeza absoluta, para Abraão, do cumprimento
das promessas que Deus tinha feito.
O sacrifício de Isaac é visto pelos Santos Padres como uma pre-
figuração do sacrifício de Cristo. E há diversos elementos que con-
correm para isto: Isaac é filho único; é muito amado por Abraão;
Isaac se presta docilmente. Por outro lado, justamente porque Isaac
não é o sacrificado, mas em seu lugar é imolado um cordeiro, muitos
vêem nesse cordeiro uma prefiguração de Cristo que morreu por nós.
Cremos que nos dois casos é legítima a prefiguração, porque nenhuma
prefiguração bíblica esgota a realidade que é Cristo.
84
Mas o que se salienta e se agiganta no relato do sacrifício de
Isaac é a grandeza da fé de Abraão. Ele é alguém que crê até o
absurdo, porque tem a certeza que Deus é poderoso e bom para
conduzi-lo à realização de suas promessas, sejam quais forem os ca-
minhos que Ele o obriga trilhar.
Bibllografla: Piro t- C J ame r, La Saiote Bible, t. I, 1, Paris, Letouzey et
Ané; Cor d e r o, Max. O., Biblia Comentada, l\ladrld, BAC.
Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
Santa Maria, RS
Segunda Leitura: Rm 8,Slb-34
Paulo, antes de abordar a questão dos judeus (c. 9), eleva a
Deus, numa linguagem triunfal, litúrgica e lírica, um hino ao seu amor.
Nele manifesta sua esperança-certeza de que Deus é o único refúgio
do homem. Há poucos dias vi essa pergunta retórica de Paulo no pára-
choque de um caminhão: «Se Deus está conosco, quem será contra
nós?» A resposta é, certament~, nada e ninguém. Ou melhor, poderão
estar contra nós os homens e o mundo, mas temos a certeza de que
não prevalecerão, pois nosso aliado é imbatível, não perde nunca. Aqui,
Paulo retoma Rm 5,5-8, onde mostra que a esperança cristã, fundada
no amor de Deus para conosco, não poderá deixar lugar para inquie-
tações. Nem mesmo a morte poderá atemorizar o homem, pois também
ela foi vencida (JCor 15,54).
O vocabulário do trecho de Romanos (por nós - contra nós) sugere
um processo semelhante aos que encontramos em ]ó I-2 e Zacarias 3.
O texto mostra então a manifestação concreta do amor de Deus, e nos
versículos seguintes à nossa leitura elenca os opositores deste amor:
tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo e espada, mas nem
tudo isto ou as criaturas terrestres e celestes, nem o destino poderão
se opor à ação do amor misericordioso de Deus em nós. São levan-
tados questões e problemas contra o homem justo, e ele poderá até
duvidar, no entanto sabe ele que pode ter a certeza da salvação, quanto
à parte que depende de Deus, salvação objetiva. O ter-nos dado seu
próprio Filho (OI 4,4) é a garantia segura de que, com Cristo, Deus
nos dará também os auxílios necessários à sa!vação. Convém, porém,
lembrar que a certeza não exclui o combate da fé, pois o mundo e
os homens não estão ainda transformados, e o Deus que nos leva à
vitória não nos poupa das provações (l]o 5,4)'.
Corno Abraão, Deus não poupou o seu próprio Filho (Gn 22,16) e
o entregou pelos pecados nossos (cf. Is 53,6). Tomou a iniciativa da
salvação, reconciliou os homens e o mundo consigo (2Cor 5,18) pelo
sacrifício de Cristo. Desse modo todas as tribulações do homem não
o afastarão de Deus e seu amor, mas será o nosso sacrificio unido
ao de Cristo que nos levará a sermos glorificados com ele, já que
fomos reconciliados com Deus nele. Em Cristo, Deus está do nosso
lado, está a nosso favor, é por nós. Até nossa morte torna-se vitória,
porque com Cristo. Nossa sorte estava nas mãos do juiz supremo, mas
ele não nos condenou porque Cristo advogou a nosso favor (Hb 7J25;
Is 50,8s) e fomos q:agraciados» e «justificados».
Os últimos versículos têm sua estrutura discutida: é interrogação
ou não? O fato é que não se exclui a possibilidade dos eleitos serem
acusados, mas simplesmente afirma-se que eles o serão em vão. Vale
85
lembrar que «eleito» não é um termo exclusivista, mas diz respeito a
todo aquele que recebe o dom de Deus. Sabemos que Deus quer BRILHOU COMO
salvar todos os homens (lTm 2,4), mas de fato nem todos se salvam. O SOL
Nos sinóticos, eleitos é a comunidade escatológica (Me 13,20.22.27 e e suas roupas se 3. e suas roupas E SEU VESTJMENTO
par.); no Apocalipse são os que venceram e perseveraram até o fim ficaram resp1adecentes
(17,14), nos outros escritos do Novo Testamento é um termo técnico tornaram alvas e tão alvas ALVO. FULGURANTE.
para indicar a comunidade cristã e cada um dos fiéis. COMO A LUZ. como
não as pode alvejar
Cristo foi acusado e condenado em nosso lugar, mostrou que era lavadeira alguma na
inocente, Deus o ressuscitou (Rm 1,4) e ele está sentado como nosso terra.
advogado e intercessor junto de Deus. A medida que nós formos um 3. E EIS QUE 4. E 30. E EIS QUE
com ele, como ele serem.os declarados inocentes, agraciados e justifica- lhes aparecera(m) apareceram-lhes
dos. Embora acusados não seremos condenados, mas salvos. DOIS HOMENS
BlfJ/iograjia: K. B ar t h, The Epistle to the Romans, Londres 1968; P. J.
lhe falavam; eram
L e e n b a r d t, EpJstola aos romanos, São PauJo 1969; .i\l. j. L a g r a n g e :epttre Moisés (1) e Elias (2) com Moisés Moisés (1) .e Elias (2),
aux romains, Paris 1950. ' Elias (2) (!)
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J. 31. que,
Paulista, PE ENVOLTOS EM
OLõRIA
e eles estavam
Terceira Leitura: Me 9,2-10 conversando com Ele. conversando com FALAVAM
Jesus. DE SEU exoDo QUE
«Jesus proibiu-lhes contar o que tinham visto» IRIA COMPLETAR EM
JERUSALt!J\I.
.. 1. A NarraçiJ.o da Trllll$ffguração é multo privilegiada no novo Leclonãrio 32. ORA, PEDRO E OS
Ltturglco. Nos anos A, B e C é Jida conforme Mt Me e Lc no segundo domingo
da. quaresma. A versão de Me é lida no sábado da• sexta semana do tempo comum. COJ\IPANHEIROS
Alem disso ocorre na Pesta da TransfiguraçiJ.o do Senhor que, quando coincide com ESTAVAM COM MUITO
um domingo, tem preferência sobre a l'illssa do Domingo durante o Ano.
Na Mesa da Palavra, Ano A = REB 37 (1977/147), 111•-1ao• (R. Ruijs) SONO; AO DESPERTA-
considerou-se mais o contexto em que se encontra a Narração da Transfiguração
nos evangelhos slnõtlcos; na Mesa da Palavra Ano A = REB 38 (1917/149) REM, PORÉM, VIRAM-
451"'-454" (0. Selong) prestou-se mais atenção à~ erõpria narração. Aproveita-se bojé LHE A OLõRIA E OS
da oportunidade para apresentar uma comparaçao sinótica das três versões da DOIS HOMENS, QUE
Narração da Transfiguração conforme Mt, Ailc e Lc.
ESTAVAM COM ELE.
33. E ACONTECEU
2. Sinopse QUE, QUANDO SE
AFASTARAM D'ELE,
MI 17,1-9 Me 9,2-10 Lc 9,28-36 4. Tornando, então, a 5. E tomando a
palavra, palavra
28. ORA, ACONTECEU Pedro disse a Jesus: Pedro diz a Jesus: Pedro disse a Jesus:
DEPOIS destes discursos <SENHOR, «Rabi, «Mestre,
mais ou menos OITO é bom estarmos aqui; é bom estarmos aqui é bom estarmos aqui
1. E seis dias depois 2. E seis dias depois se quiseres e e
DIAS,
jesus tomou consigo Jesus tomou consigo Jesus tendo tomado farei aqui três tendas: façamos três tendas: façamos três tendas
consigo uma para ti, uma para ti, uma para ti,
Pedro e Tiago e João, Pedro, Tiago e joão, Pedro e João e Tiago, outra para Moisés outra para Moisés outra para Moisés
irmão deste, e outra para Elias». e outra para Elias». e outra para Elias».
e os levou e os levou ELE SUBIU 6. Pois não sabia
para' um monte alto para um monte alto AO MONTE o que falar, porque
a sós. a sós, estavam aterrorizados
sozinhos. PARA REZAR de medo.
29. E aconteceu,
ENQUANTO REZAVA 5. Enquanto ainda 34. Enquanto falava isso,
2. E se transfigurou E se transfigurou TRANSFORMOU-SE- !alava
diante deles diante deles LHE EIS QUE uma nuvem 7. E apareceu unia apareceu uma nuvem
E SEU ROSTO A FISIONOMIA nuvem
LUMINOSA
86
87
os envolveu. que os envolvia e os envolvia. e da ascensão. AI se trata, como diz explicitamente Lc 24,23, de dois
Ficaram aterrorizados ao anjos.
entrarem na nuvem. Outra caracter!stica desta versão antiga é que a atenção se con-
E EIS QUE centra em jesus. É Ele - não os discipulos - que goza de uma
saiu uma voz da e saiu uma voz da 35. E uma voz saiu da experiência religiosa excepcional por ocasião de uma oração:; para a
nuvem nuvem: nuvem, qual Ele subiu à montanha (vv. 28c.29a). Nesta versão não se encon-
dizendo: dizendo: tra que jesus elevou os discípulos para um monte», nem a expressão
Este é meu lilho Este é meu filho Este é meu Filho, o que se transfigurou <diante dele~ (cl. Mt 17,lb.2a; Me 9,2b.c). Os
amado, amado, Eleito, cdois homens> não aparecem aos discípulos (cf. Mt 17,3a; Me 9,4a:
EM QUEM PUS lhes), mas a jesus.
MINHA AFEIÇÃO, Somente nesta versão antiga conservada por Lucas indica-se o
escutai-O. escutai-O. escutai-O. assunto da cnnversa dos «:dois homenS» com Jesus, a saber: : «O seú
6. E, TENDO êxodo em jerusalé=. Este <êxodo> significa a morte de jesus. A palavra
OUVIDO (a voz), encontra-se neste sentido em Sb 3,2. AI ensina-se que para os justos
OS DJSCIPULOS a morte é um «êxodo», uma passagem da terra para Deus, e não uma
CAlRAM COM O eliminação da companhia dos viventes.
ROSTO NO CHÃO Dispondo destes elementos é posslvel reconhecer o sentido desta
E FICARAM versão antiga. «Jesus sobe a uma montanha, lugar privilegiado para
ATERRORIZADOS. manifestações divinas; Ele entra em oração e, sob o efeito . da pre-
7. E JESUS sença de Deus, sua fisionomia se altera e suas roupas irradiam bran·
APROXIMOU-SE cura, a cor celeste. Dois anjos Lhe aparecem - estes anjos que, na
E TOCANDO-OS, Blblia, são os mensageiros de revelações divinas - e Lhe falam de
DIZIA: «LEVANTAI seu 'êxodo', isto é, de sua morte (Sb 3,2; 2Pd 1,15). Concretamente
E NÃO TENHAIS isto quer dizer que, durante uma experiência mística inefá.veJ, jesus
MEDO». recebe a revelação que o seu destino é sofrer e morrer (ci. Is 53,1-12).
8. LEVANTANDO 8. E olhando logo 36. E enquanto a voz Esta cena situa-se, portanto, na mesma perspectiva que a do batismo,
OS OLHOS a seguir em redor já ressoava, mas com um progresso bem nítido na revelação; por ocasiã~ do ba-
não viram ninguém não viram ninguém, tismo, a voz celeste diz a jesus que Ele é o 'Servo de Javé', aquele
mais, que Deus escolheu para salvar Seu povoj aqui, jesus aprende ·que ·esta
somente jesus. somente Jesus com JESUS FICOU salvação não se pode realizar a não ser por sua morte> (p. 252).
eles. SOZINHO. 4. Também na primeira coluna, a de Mt 17,1-9, imprimem-se algu-
9. E ao descerem do 9. E ao descerem do mas expressões e frases em MAlúSCULAS. Elas são ·próprias de Mateus
monte, monte1 e veiculam nm interesse especifico deste evangelista. Especialmente o
ordenou-lhes jesus, Ele proibiu-lhes MAS ELES GUARDA- trecho maior que Mt tem de próprio (Mt 17,6-7) ajuda para perceber
dizendo: VAM SEGREDO E NA- de onde vem e para onde vai este interesse. Estes versículos inspiram-se
QUELES DIAS em Dn 10,9-12:
<A ninguém faleis da contar a quem quer NÃO DISSERAM A
que fosse NINGUÉM
VISÃO, o que tinham visto COISA ALGUMA DO Mt 17,6-7 Dn J0,9-12
QUE TINHAM VISTO.
até que o Filho do até que o Filho do 6. E, tendo ouvido (a voz), 9b. . .. e, ouvindo-o,
homem homem os discípulos .
ressuscite dos houvesse ressuscitado caíram com o rosto no chão cai com o rosto por terra
mortos~. dos mortos. e ficaram aterrorizados.
7. E Jesus aproximou-se e, 10. Eis, porêm, que uma mão
/
tocando-os, me tocou
3. Na «Synopse des Quatre :évangiles, Tome li», p. 250-253, analisa- dizia: clevan1aí e me fez levantar sobre' os
se pormenorizadamente esta sinopse da Transfiguração. O texto em joelhos ...
MAlúSCULAS da terceira coluna (Lc 9,28a.c; 29-33a.36b) seria a versão e não tenhais medo». 12a. E disse-me: <Não tenhas
mais antiga da Narração da Transfiguração que se pode reconstruir medo, Daniel . .. ».
a partir dos evangelhos sinóticos e que Lucas encontrou na tradição
por ele usada Nesta versão ainda não se mencionavam os nomes de Um texto semelhante a Dn I0,9-12 encontra-se em Dn 8,17-18. Mas
Moisés e Elias. Falava-se somente de <dois homens~ (vv. 30 e 32). Dn 10 pode explicar outros detalhes da versão de Mt. Em 17,2 Mateus
Isto acontece também em Lc 24,4 e At lJlOJ no contexto da ressurreição tem próprio, em comparação com Me, «e seu rosto brilhou como o

88 89
sol». Expressão semelhante encontra-se em Dn 10,6: «e seu rosto bri-
lhava como o relâmpago> (cf. Dn 12,3). O detalhe, que as roupas
de jesus se tornam alvas ccorno a luz:i>, pode inspirar-se em Dn 10,5:
«Vestido de linho ... e (sai) uma luz de dentro dele». Também a expres-
são «levantando os olhoS:> (Mt 17,8) encontra-se em Dn 10,5. Por fim,
destaca-se em Mt 17,9 a palavra «Visão», que somente aqui se encon-
tra nos .evangelhos sinóticos e que é usada duas vezes em Dn 10,l.
Todas estas particularidades da versão de Mateus confirmam uma
interpretação escatológico-apocalíptica da narração da Transfiguração.
Parece tornar-se uma rea1ização dos ditos escatológicos que, em Mt
16127-28, servem de introdução imediata a esta narração. Em compara-
ção com Me 9,1 (« .. ;até que vejam chegar com poder o reino de
DeuS>), MI 16,28 ressalta o carâter escatológico e apocalíptico, mo-
dificando: «antes de terem visto o Filho do homem vir em seu reino».
Assim o·• dito de Jesus evoca a parusia, que também já fora mencionada
em Mt 16,27. Por esta modificação a narração da Transfiguração pode
revestir-se. de um novo fim doutrinal. «J:>ara aqueles que se surpreen-
deram por motivo da protelação da parusia, a Narração da Trans-
figuração poder-se-ia tornar um penhor de que ela já está se realizan·
do: jesus, o Filho do homem, já está a caminho, Sua glória se revela;
o juízo final e o Reino que Deus Lhe confiou não tardaID» (Coune,
p. 57s).
5. Na versão de Me 9,2-10 convém ressaltar todos os elemen-
tos que : os três evangelistas têm em comum. Estes foram amplamente
0 procura de uma existência mais digna. Mensagem para todos
comentados na Pina Exegética de O. Selong, acima citada.
Bibliografia: nas duas Pistas Exegéticas, acima citadas. Aqui foram especial-
mente. aproveitadas: P. B e n oi t - M.-E. B o 1 s ma r d, Synop_se des Quatre
bvanglles, Tomes l-11, respectivamente 19172 e 1972; M. C ou n e, Radleuse Transfl-
guration {A'lt 17,1-9; .iltc 9,2-IO; Lc 9,28-36), em: AdS 11/15 {1973), 43-84.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Tema Prlnclpal
l'! DEUS QUEM AGE. VAI DAR CERTO!·
Sugestões para a Homilia
Introdução
É uma constante que percorre toda a Bíblia, hoje apresen-
tada nas duas figuras-chave, de Abraão ·e de jesus: É Deus
que age, vai dar certo, vai se realizar! Vai se realizar o plano
dele, o reino dele, aconteça o que acontecer. Pode haver con-
trariedades da parle dos inimigos. Deus se ri deles (SI 2).
Pode haver a infidelidade e a apostasia do povo, - e o Antigo
Testamento não estã cheio disto? -, Deus continua fiel. O
Reino dele vai se realizar, apesar de quaisquer adversidades.
Aquele reino de justiça, de paz e de amor, de relações boas
entre os homens ...
Mas não parece que o próprio Deus pode contrariar a rea-
lização ·do plano deste reino? No caso de Abraão, chamado a
90
sacrificar Isaac? E no caso de Jesus, morto na cruz? E, porém,
justamente nestes casos, que se revela a finneza do plano de
Deus. Através da provação, Abraão recebe a promessa renovada
e reforçada (primeira leitura). Através da morte, Jesus chega
à ressurreição e à mão direita do Pai (segunda leitura). E o
anúncio da paixão (Me 8,31-33; cf. Lc que no trecho corres-
pondente ao evangelho de hoje introduz Moisés e Elias, falando
do «fim» de Jesus) é seguido da glória, anunciada na transfi-
guração (leitura do evangelho).
Corpo
Parece estar nisto a mensagem para hoje, para nós: é Deus
que age, Deus que estã presente. Vai dar certo. Vru se realizar,
apesar de tudo. Mensagem para todos os que esperam o reino
de Deus: os pobres e todos os que sofrem, os injustiçados e
os que passam fome, os de um salãrio e os desempregados, os
que são expulsos de suas terras e os que vivem migrando, à
os que esperam o reino de Deus. Mensagem sobretudo para
os que lutam pela sua realização. Os líderes da base, leigos
engajados, padres, religiosos, todos os que lutam por uma con-
vivência humana mais justa, mais honesta, mais humana. Para
eles é uma mensagem e um apelo, apelo à coragem de lutar.
Que Deus age e vai realizar o seu plano é um convite, evi-
dentemente não para ficar sentados em casa, de braços cruza-
dos, esperando que as coisas aconteçam. O evangelho não se
dirige «aos tais», e Deus não se dirige a eles. A sua mensa-
gem é um convite para a luta pela realização do reino, pela
justiça bem concreta, no próprio ambiente de cada um, sempre
que se apresente a ocasião. Pode ser um desajuste familiar na
vizinhança, onde um conselho sincero talvez possa surtir efeito e
salvar uma união. Pode ser um problema do bairro, que requer
uma ação generosa e eficiente. Pode ser algo de âmbito mais
amplo, alguma situação de abuso, de injustiça ou de opressão
patente, que exige um protesto vigoroso. Pode ser desrespeito
contra pessoas humanas, que só uma atitude e uma denúncia
corajosas podem enfrentar. Pode ser também a luta humilde
do dever e do simples esforço do nosso trabalho, na familia,
na educação, no setor saúde, na vida politica etc. Pode ser
ainda um descuido culposo da honra de Deus ou da fé em
Cristo, que reclama uma atitude firme de fé, na repartição, na
faculdade, no trabalho ...
91
 Para tudo isto precisa-se de coragem. Pois os problemas na nossa de hoje, garantia de que vai dar certo, apesar da
são muitos e as dificuldades grandes. Quem procura realizar o tudo. Deus está conosco, quem estará, quem agüentará contra
reino de Deus encontrará muitos obstáculos, entraves e frus- nós? (segunda leitura). «We shall overcome:o. Havemos de
tração. O povo não entende. Os detentores do poder se põem vencer!
do contra e lançam ameaças. Os políticos só entendem e pro-
curam seus próprios interesses. Até instâncias e autoridades da Conclusão
Igreja desaprovam a sua ação, por medo ou por oportunismo.
•
We shall overcome ! A convicção dos negros americanos,
Tudo isto acontece. Tudo isto o miHtante do reino de Deus pode na sua luta pela emancipação e integração de sua raça, num
encontrar. E pode encontrar pior: desprezo, inimizade, perse- contexto de imensa discriminação. Convicção, baseada em parte,
guição, desmoralização, prisão ... mas só em parte, na promessa de Deus, e que no entanto lhes
E muitas vezes, nem Deus aparece. É a maior amargura, o deu e dá ânimo de lutar e coragem de enfrentar qualquer de-
sofrimento mais doloroso do cristão engajado. Onde está Deus? safio. Nós, cristãos (se somos cristãos), temos a plena pro-
Por que não faz sentir a sua presença e a força de seu braço? messa de Deus, a garantia mais maciça de que o reino .se
Por que ele não está com os que defendem os seus pobres, com realizará, garantia confirmada na história de Abraão e n~ his-
os que procuram Tealizar o seu reino? Advogados sérios, padres, tória de Jesus. Quanto mais coragem devemos ter nós! Dizendo
agentes sociais, sindicalistas e outros, verdadeiros cristãos, que todo dia «venha a nós o vosso reino», pronunciamos o nosso
ajudam os posseiros nos problemas de terra, que estão com os grito de guerra. Não é pedido apenas. É certeza: vai acontecer,
trabalhadores ou defendem os índios, os marginalizados. . . Por pois é o Senhor que vai fazer. Através de nós. Isto nos dá
que Deus deixa que eles sejam diminuídos, perseguidos, anar- coragem para continuar a luta.
quizados, desmoralizados, presos e mortos? As vítimas dos re-
Pe. Adriano van den Berg, C.M.
gimes de injustiça, só na América latina durante os últimos Belém, PA
dez anos, são milhares, verdadeiros mártires, testemunhas do
reino de Deus. Por que Deus deixa isso acontecer? Não está
sacrificando estes seus filhos mais dedicados, mais fiéis? Assim
*'
como pediu de Abraão o sacrif!cio de seu filho? Assim como
sacrificou Jesus? Não está sacrificando Jesus de novo, nestes
cristãos engajados e corajosos? E se no caso de Abraão apa-
receu ainda, na última hora, a salvação, no caso de Jesus o
próprio Deus se mostrou impotente para salvá-lo. No caso de
Jesus e em tantos casos do nosso tempo, casos conhecidos de
prisão, de tortura e de morte, dos que defendem os pobres de
Deus. E Deus deixa. Deus não se mexe. Não pode? Não
quer? . ·. . É de admirar que muitos desanimem, fiquem apavo-
rados, paralisados pelo medo? Precisamos, e precisamos muito
da mensagem.
Mas a mensagem está aí: na história de Abraão: a dura
prova, mas, através da provação, a promessa renovada e refor-
çada. Na história de Isaac, quase sacrificado, mas que «voltou
à vida». E também na história de Jesus, humilhado, torturado
e morto; mas eís que está vivo (cf. Ap 1,18) e à mão direita
do Pai (cf. SI flO,l; Me 14,62; 16,19; At 2,34; 6,56; Ef 1,20;
Cl 3,1; Hb 1,3.13). Lembrem-se, os irmãos engajados. Lembremo-
nos todos: da presença de Deus em toda a história, também
92 93

Terceiro Domingo da Quaresma
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Ex 20,1-17
Esta passagem do exodo apresenta-nos o Decálogo. Hã uma outra
versão do mesmo, com pequenas variantes, em Dt 5,6-21.
• O rapto de pessoas e sua escravização são considerados gravíssimos pe-
A primeira observação a fazer é que essa Lei (os dez mandamen-
tos) é apresentada como a Lei da Aliança. Toda Aliança supõe cláusulas
estipuladas entre os contratantes. ~ preciso ter conhecimento explicito
das condições da Aliança, para poder permanecer nela e saber quais
as infrações que a rompem. Deus oferece uma Aliança ao povo de
JsraeJ. É um imenso privilégio ser aliado do Deus poderoso que liber-
tou o povo do Egito. Mas para que Israel possa continuar a gozar
da proteção e do amor benevolente desse Deus, e ao mesmo tempo
usufruir da liberdade, Deus lhe dá a garantia de uma Aliança. Ora,
essa Aliança tem como condição necessária os 1O mandamentos.
É nesse contexto que deve ser compreendido o decálogo. Os man-
damentos não são simples princípios éticos, nem apenas normas de
boa convivência. Eles são dados e recebidos num contexto religioso e
s~o vistos pelo povo de Israel como o caminho e a garantia de sua
liberdade. E é assim que devem ser vistos e compreendidos também
pelos cristãos.
Quem lê esses mandamentos no texto do :Êxodo ou no do Deute-
ronômio tem dificuldade de saber como se faz a enumeração, onde ter-
mina um e começa outro. Segundo o texto da leitura, o 19 mandamento
restringe-se ao v. 3. O 2º é a proibição de fazer estátuas e imagens
para representar a divindade, e compreende os vv. 4-6. E assim por
diante. O décimo engloba a proibição de cobiçar os bens (a casa) do
próximo, incluindo aí também a mulher. No cristianisn10, por influência
de S. Agostinho e por razões práticas de catequese, omitiu-se o 2°
n1andamento que não tinha mais sentido, e desdobrou-se o último em
dois: não desejar a mulher do próximo; não cobiçar as coisas do
próximo.
O primeiro mandamento é a afirmação prática do monoteísmo.
Israel não chega a esta conclusão por via de especulação, mas pela
sua experiência histórica. Ê por isso que no v. 2 Deus se apresenta
como aquele que libertou Israel do Egito. Para Israel a aceitação e
a adoração de Javé como Deus único é um dom e uma opção vital.
O v. 7 apresenta o 3° mandamento: não pronunciar o nome de
Deus em vão. Parece que era muito comum invocar o nome de Deus
como confirmação da veracidade de um juramento. Não se pro::be o
juramento, mas sim fazê-lo sem motivo sério. O máximo pecado contra
esse mandamento é a blasfêmia, que era castigada com a morte (Lv
24,10-16).
O v. 13 garante o direito à vida. Em Israel esse direito é garantido
por Deus e a obrigação de respeitá-lo se torna uma das condições
para viver em Aliança com Deus. «Não matar» não significa só deixar
viver, mas também não deixar morrer. Não criar ou não permitir con-
dições tais que levem o próximo à morte.
94
O mandamento de não cometer adultério, v. 14, estã ordenado à
delesa da vida e da familia. Para que o matrimônio possa cumprir
sua finalidade, exige-se a fidelidade entre os esposos. A Bíblia toma
a sério o amor, o matrimônio, a vida e a fecundidade. O mandamento
dirige-se tanto à mulher, como ao homem.
O mandamento de não furtar, do v. 15, não visa só os bens do
próximo. Trata-se, antes de tudo, da própria pessoa, de sua liberdade.
cados de furto que merecem pena de morte (Ex 21,16; Dt 24,7). Reter
o salário de um operário também é um furto (c!. Dt 24,15; Lv 19,13).
Que dizer então dos salários de fome de nosso regime capitalista?
Contrariamente ao que geralnlente se pensa, o AT não visa só os
atos externos. O 10' mandamento (v. 17) tem como objeto o desejo, a
cobiça das coisas do próximo. Tem em mira a raiz do pecado, o de-
sejo desregrado que nasce no coração do homem (Mt 15,19). O man-
damento aponta essa cobiça como um pecado que se opõe à Aliança
com Javé.
Bibliografia: Pirot-Clamer, La Sainte Blble, t. 1, 2, Paris,..~ Letouzey et
Ané; A u z ou, O., De Ia ServJdumbre al Se.rvfcio, A1adrid, FAX; '\v 1 é n e r, C.,
:Sxodo de Moisés, Caminho para Hoje, Ed. Loyola, S. Paulo.
Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
Santa Maria, RS
Segunda Leitura: 1Cor 1,22·25
Mais uma vez, Paulo compara a sabedoria de Deus com a dos
homens, mostrando as perspectivas diversas das duas. Em Rm 11,33-36,
Paulo, no hino à sabedoria misericordiosa de Deus, mostrou .s:como são
insondáveis seus juJzos e impenetráveis seus caminhos» (v.. 33), e que
Deus quer salvar todos os homens contrariando a lógica humana. Aqui
em lCor, Paulo mostra como o próprio ato salvífico de Deus não se
enquadra na lógica dos homens.
Segundo a lógica judaica, os sinais dados por Deus seriam a ga-
rantia da veracidade do anúncio, procurava-se a segurança humana.
Para o grego a sabedoria contida no anúncio deveria satisfazer a inte-
ligência, com seu paladar requintado e ávido de novidades e conheci-
mentos (cf. AI 17,20s).
Também os judeus contemporâneos de jesus pediram milagres:
<mestre, queremos ver um sinab (Mt 12,38; 16,! e par.; Jo 6,30), e
Jesus lhes ofereceu o sina1 de sua morte e ressurreição (]o 2,18;
Mt 12,39s), simbolizadas no Templo reconstruido e pelo profeta Jonas.
Paulo segue a mesma linha, mostrando a cruz como único sinal para
judeus e gregos. O que· para eles era sinal de «escândalo», tornou-se
sinal-sacramento de salvação. Sinal, não só enquanto prova, ·ou como
símbolo que rememora, mas sinal-sacramento, isto é, eficiente: «Cristo
crucificado» que salva por sua morte e ressurreição.
Os gregos procuravam a sabedoria. Essa procura, como aquela dos
judeus, não era condenável em· si, mas Paulo não a aceitava, enquanto
se apresentava como condição imposta a Deus e sua revelação. A re-
ligião dos profetas estava cheia de sinais, e por sinais Deus confirmara
sua escolha e predileção por Israel. Por outro lado, os gregos desen-
volveram nos séculos a fina flor da filosofia ocidental, racionalizaram
95

tudo. Sabiam os limites do conhecimento humano, dentro dos quais o
homem pode aceitar um novo ensinamento ou entender coisas divinas.
Resultou, no entanto, que a religião por excelência, co monoteísmo
judaico», e a filosofia dos gregos, ofereceram resistência aos cami·
nhos da fé.
Vê-se, então, neste texto, sintetizadas as dificuldades, por parte de
judeus e pagãos, enfrentadas por Paulo nas suas viagens. Há pouco
tempo ele estivera em Atenas, e tentara preg~r Cristo usando a sa-
bedoria e os argumentos dos homens (e!. AI ·17), mas falhou, e de-
cepcionado optou pe1o <escândalo-loucura» do Cristo crucificado (2Cor
211-5). A partir de então não se trataria maiS de raciona1izar (sabe.
daria) ou provar (sinais) o anúncio, mas de se aceitar ou não, pela
fé, o que era anunciado e não previsto por judeus e gregos.
A doutrina anunciada por Pau1o, então, apresenta-se como oposta
às pretensões dos judeus e gregos. Na contradição da cruz está a gran-
deza-triunfo de Deus. Sua ação parece fraca e louca, roas nela
manifesta-se a grandeza-força e sabedoria do Deus que confunde os
fortes e sábios deste mundo (!Cor l,27s). No entanto, os que têm fé,
vêem na fraqueza e loucura (OI 5,11) do agir divino o sinal de sua
misericórdia. O anúncio da cruz, que parecia ·contradizer a esperança
dos homens, pela luz da fé é visto como vitória (Jo 12,34). O instru-
mento de maldiç!lo, usado no suplicio dós condenados, tornou. se instru-
mento de salvaçao.
Mais uma vez a sabedoria de Deus trilhou caminhos que não são
os da sabedoria dos homens.
Bibliografia: B. \V a J te r, A Primeira Eplslola aos Corlntios, Petrópolis 1973.
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
Paulista, PE
Terceira Leitura: Jo 2,13·25
1. Contexto da pericope
Em Jo 2,12 começa uma nova divisão dentro da secção de seu
evangelho que poderíamos chamar «OS primórdios» da revelação de Jesus
(Jo 1,19-4,54). De lato, jo 1,19-2,1 J formava uma «semana literária»
(como sugerem as indicações cronológicas em l,29.35.43; 2,1), levando
Jesus de Betânia-além-Jordão (1,28) a Caná, onde inicia a manife&-
tação de sua glória (isto é, da presença divina que habita nele)
(2,11). Depois dh versicu1o de transição 2,12, encontramos Jesus nova-
mente fora da Galiléia, especialmente em Jerusálém, de onde ele voltará
a Caná - exatamente como em 1,19-2,11 - para ali realizar seu se-
gundo sinal (4,54, cf. 2,11). Toda a secção 1,19-4,54 é caracterizada
por uma idé.ia central: o encontro com o Messias o revelador do Pai.
Os discípulos buscam-no e encontram-no (1,35-'51)'. Também Nicodemos
e a Samaritana -encontram em Jesus o que, nas suas mais profundas
aspirações, estão procurando (Jo 3 e 4). Jesus é o verdadeiro lugar de
adoração do Pai «em espírito e verdade» (4,22) - esta é a novidade
que estes primeiros capítulos de João revelam aos que buscam tal
lugar. Como disse o Pró1ogo: n'Ele contemplamos a glória de Deus
(Jo 1,14), que ahtigamente se revelava no Templo ou no Tabernáculo.
96
É nesta ótica que devemos interpretar o evangelho de hoje. É
uma peça programática, colocada no começo do evangelho (os Sinóticos
trazem a purificação do Templo na última semana de Jesus). Significa
que não mais o ~·Templo de jerusalém, mas «O templo de seu corpo»
(2,21) é o lugar da revelação e adoração de Deus. Como o sinal do
vinho em Caná (2,1-11), também a presente pericope revela a novidade
que se faz presente em Jesus Cristo.
2. Explicação de ]o 2,13-25
A menção da Páscoa (v. 13) explica a presença de jesus em Je-
rusalém. Sua atuação ali deve ser comparada com o que escrevem os
evangelhos sinóticos. Estes trazem uma apresf'.ntação mais complexa:
Jesus chega a Jerusalém, no fim de sua atividade na Galiléia e nas
outras regiões da Palestina (Mt 21,1 par.). Nesta ocasião, visita o
Templo e, escandalizado pela degeneração do culto, trata de lhe restituir
o sentido original, isto é, ser uma casa de oração («para todos os
povos», diz Me 11,17, o que Mt .omite, pois quando ele pub1ica seu
evangelho, o Templo jâ não existe e porta11to não pode ser casa de
oração universal). Em Me, esta seqüência é entrelaçada pelos dois epi-
sódios da maldição da figueira, símbolo da incredulidade de Jerusalém
(Me 11,12-14 e 20-26); em MI, estes dois episódios são unificados e
seguem depois da Purificação do Templo; Lc simpJifica mais ainda, eli-
minando este tema. Depois da Purificação do Templo, os chefes dos
judeus perguntam a Jesus com que autoridade Ele faz tais coisas. Res-
ponde jesus com a evasiva a respeito do Batista (MI 21,23-27). Depois,
entra em discussão com o judaísmo, sobre vários pontos (Mt 22 e 23).
Em joão, além do episódio do Templo se encontrar no começo do
evangelho, encontramos outras diferenças. Em primeiro lugar, não é
uma purificação do Templo, mas uma abolição do mesmo, ou, pelo
menos, a sua substituição pelo «templo» que será destruído· pelos judeus
e que jesus - na sua qualidade divina - em três dias há de ressus-
citar: o templo de seu corpo (2,19-21). Para sugerir este novo sen-
tido, jo não mais coloca, como resposta à pergunta da autoridade, a
evasiva a respeito do Batista, como em Mt 21,23-55, mas deixa Jesus
proferir a palavra sobre a destruição do Templo, colocada por Mt
26,60s na boca de <testemunhas falsas>.
Uma vez que se entende este sentido da narração (abolição do
Templo), não é di!icil descobrir detalhes que o reforçam. Assim, jo
ácrescenta, à narração sinótica, a expulsão dos animais para os sacri...
flcios (bois e ovelhas), razão pela qual jo deixa jesus lazer um chicote
(o que os Sinóticos não dizem), pois precisa deste para expulsar os
animais.
Pela mesma razão, jo não diz que Jesus derruba as bancas dos
vendedores de pombas (gesto irado contra a prática comercial), mas
que Ele manda afastar tudo aquilo (Jo 2,16; cf. Mt 21,12). jo guarda,
do sentido sinótico da narração, uma lembrança no v. l,16b («Não
façais da casa do ·meu Pai um mercado»). Contudo, não pensa em
uma restauração do Templo de Jerusalém como casa de oração, mas
na sua substituição. O v. 17 introduz esta significação, explicada em
v. 18-22. Em Jo, a citação do AT que, nos Sinóticos, dá à ação de
Jesus o sentido de restauração do Templo como casa de oração (Is
56,7 = Mt 21,13), é substituída por uma citação do Salmo do justo
97
f'
!
1
perseguido (SI 69,10 = Jo 2,17), preparando assiru a referência à
morte e ressurreição de Jesus, que forma o pano de fundo do diâlogo
dos vv. 18-20. Podemos portanto confirmar: para Jo, o sentido desta
perícope é anunciar jesus como o Novo Templo, lugar de revelação e
adoração do Pai.
l
Os vv. 18-19 mostram este sentido: Os judeus destruirão o templo
do Corpo de jesus, Jesus o «ressuscitará» (este é o verbo utilizado
no texto original) em três dias. Pois Jesus tem «autoridade• (exousia)
para dar sua vida, e para a retomar (Jo 10,18). Os judeus entendem
mal o que Jesus quer dizer. Tais mal-entendidos são corriqueiros no
4° Evangelho; mostram que o homem não pode nada sem a revelação
divina, intermediada pela iniciação cristã (cf. 3,4; 4,11-15; 4,33; 6,34
etc.). O homem entende as coisas no nível terrestre (um templo no
qual se gastaram 46 anos de construção!), mas jesus 'fala de urna outra
realidade, o domínio d~ Deus, que se torna presente em sua pessoa,
especialmente pela Ressurreição. Este <templo do seu corpo» (v. 21),
de sua presença gloriosa, é o que devemos procurar.
O episódio termina com uma descrição sumária da atividade de
jesus em Jerusalém, que depois será exemplificada pelo diálogo com
Nicodemos (Jo 3,1-21) .. Fala dos sinais que Jesus fez em Jerusalém (cf.
2,23-25; 4,43-45) e apresenta um trocadilho com o verbo «acreditar»
(pisteuein) : muitos acieditam em jesus, mas jesus não «Se acredita»
(não se dá em crédito)· a eles, pois ele sabe como é ó homem. O troca-
dilho é provocado pela atmosfera da paixão e morte, que marca o
contexto. Pois com estas se relaciona a inconstância âa fé, mencionada
também no final da atividade pública de Jesus (12,42-43). Jo visa,
com estas observações, a situação de seu tempo (fim do lo;i século):
é o tempo das perseguições judaicas (farisaicas) contra os cristãos,
depois da separação oficial do judaísmo e cristianismo e a expulsão
dos cristãos da Sinagoga (cf. 9,22; 12,42). Esta situação era mais
uma razão - para, desde o começo de seu evangelho, evidenciar que não
com os bois e ovelhas do Templo de Jerusalém, mas com a adesão
ao Templo ressuscitado que é jesus Çristo, encontraremos o verdadeiro
modo de adorar o Pai.
O evangelho de joão é um evangelho muito refletido. Seu sentido
não é aquele que aparece à primeira vista. Por isto, o autor m.enciona
que os disc:pulos de -jesus não entend_eram logo o sentido de seu
agir. Somente depois da sua ressurreição, à luz do Espírito que havia
de lhes recordar tudo (Jo 14,26; 16,13), compreenderam o· que estava
escrito e o que Jesus disse e fez (v. 17 e 22). Jo mostra Jesus à luz
da Páscoa.
3. Função na liturgia
Não existe, nas leituras da Quaresma, nem a leitura contínua dos
evangelhos, nem a coerência entre a primeira e terceira leitura, que
caracteriia a Celebração da Palavra nos domingos comuns. Contudo,
as leituras evocam, mediante seus temas diversos, um ·espírito comun1: o
espírito de conversão. É nesta pedagogia da conversão que se situa
o presente evangelho. Podem-se aprofundar, neste sentido, os três nio-
mentos da narração: 1) A expulsão dos vendilhões ·e dos animais de
sacrifício (2,13-16): pôr fim a uma forma de religião que já não
vale desde que Jesus nos mostra a vontade do Pai. 2) O Novo Templo,
Jesus (v. 17, transição, e vv. 18-22): procurar adorar e amar Deus no
98
Filho morto e ressuscitado. 3) A precariedade da fé (vv. 23-25): mes-
mo quando nós professamos a fé em jesus Cristo, ainda não nos colo-
camos definitiva e seguramente de seu lado; seja isto uma advertência
contra uma segurança temerária e uma exortação para uma conversão
sempre renovada.
Em tudo isto aparece, naturalmente, o cristocentrismo radical do
Quarto Evangelho. Converter-se, na linha de jo, significa voltar-se para
jesus Crist9, confiar-se a ele, abandonar os templos provisórios ou dege-
nerados. E trata-se do Cristo morto e ressuscitado, não do Cristo sim-
pático, bacana etc. As duas palavras que os discípulos entenderam
depois da sua ressurreição, a citação do SI 69 (Jo 2,17) e o lóguion
do templo (Jo 2,19; cf. v. 22), são características neste sentido.
Podemos dizer que o presente evangelho, como também os dos
domingos seguintes, nos preparam para a conversão como confronto
com o Senhor padecente e ressuscitado (cf. sobretudo o 59 domingo
da quaresma, Jo 12,20-33).
Bibliografia: B r o w n, Raymond R., Evangelho de ]oiio é epistolas, São Paulo,
Paullnas, 1975; D o d d, Charles H., A Interpretação do Quarto Evangelho, São
Paulo, Paulinas, 1971; K o n i n g s, johan, Encontro com o Quarto Evangelho,
Petrõpolls, Vozes, 1915; O l i v e ir a, Carlos Josaphat de, Evangelho da Unidade
e do Amor, São Paulo, Duas Cidades, 1006. Os comentários internacionais de
Bar te t t (S.P.C.K.), Brown (Anchor B.), B u 1 t ma n n (Meyers), Linda r s
(New Century B.), S e h n a e k e n b u r g (Herders). V a n d e n B u s s e b e
(Desc1ée).
Pe. Johan Konings
Porto Alegre, RS
ORSERVAÇ.\O: Neste Domingo pode-se ler o Evangelho· da Samaritana (Jo 4,5-42).
Pistas Exi:géticas na iUesa da Palavra, Ano A, p. 12!l-133.
Tema Principal
O HOMEM-TEMPLO, ONDE DEUS MORA,
É A GRANDE IDÉIA QUE O HOMEM DE HOJE PERDEU
Sugestões para a Homilia
Introdução
As leituras de hoje nos levam à constatação de que a fina-
lidade da Aliança é regular os relacionamentos entre o homem e
Deus e do homem com o outro homem. Toda Aliança reclama
uma legislação, como garantia e perene lembrança dos direitos
e deveres que brotam para aqueles que aceitam a Aliança. Mas
a base de tudo é Deus: por isso Deus legisla, Deus dita a lei,
Deus a envia aos homens, Deus especifica, em grandes linhas,
99
as normas que regem as instituições, os relacionamentos, a valo-
rização do material, sobretudo os princípios que fundamentam
a proteção de Deus e a liberdade do homem.
Corpo
1. Deus e sua lei revelados por Cristo
S. Paulo lembra que os judeus pedem e buscam sinais.
Isto é, provas concretas que revelem Deus e sua presença. Como
se não lhes bastasse o amor de Deus tão presente na história
que os arrancou das trevas por Abraão e do cativeiro do Egito
por Moisés! Os gregos procuram a sabedoria, isto é, a expli-
cação do mistério, a «materialização» de Deus, como se ele pu-
desse ser reduzido a um teorema, quando o amor de Deus se faz
sentir no mistério claro da comunhão íntima do homem. E, um
dia, Deus se revelou concretamente, na carne do Cristo, que é
o sinal pedido pelos judeus, que é a sabedoria buscada pelos
gregos, que é, sobretudo, a salvação esperada pelos homens
todos. Não salvação como apenas ponto de chegada no fim
da jornada histórica, mas salvação operando-se, no dia-a-dia
dos homens, atingindo toda sua atividade, pondo sentido em todos
seus instantes, ligando a terra ao céu.
Conclusão
Convencer-se da verdade de que somos templos de Deus
leva-nos a sermos possuídos pelo zelo: da raiz grega que signi-
fica «estar quente, entrar em ebulição» e que traduz a palavra
hebraica que indica o rubor que sobe às faces, quando a ver-
gonha ou entusiasmo, ou a paixão, se apossam do homem. Por
isso, ser possuído pelo zelo significa ser possuído pelo entusias-
mo, pela dedicação ardente, pelo interesse, ~elo empenho, pelo
ardor apostólico, como o de Cristo e dos apostolas. E este z~lo
que distingue um apóstolo ou consagrado de um mero funcm-
nário. Deus pede que sejamos homens de fé, pregadores de fé,
não funcionários ou, pior ainda, exploradores da fé ...
Frer Hugo D. Baggio, O.FM.
Rio de jaueiro, RJ

2. Deus não mora na periferia

E este cristo que na sua caminhada no meio dos homens
vai revelando Deus, sua vontade - sem alterar a velha lei - ,
e as riquezas que moram em cada um. Por isso, a limpeza do
templo é um gesto de profundo simbolismo: o homem deve limpar
a morada de Deus, que é ele mesmo. O homem-templo, onde
Deus mora, é a grande idéia que o homem de hoje perdeu. Por
isso perdeu o respeito ao homem, ao corpo do homem, à liber-
dade do homem, aos direitos do homem. Onde Deus foi excluído
entrou a ditadura, a opressão, o crime, ·o seqüestro, as torturas,
a injustiça institucionalizada. Ou Deus volta a tomar conta de
seu templo, o homem, ou os 7 demônios se apossarão dele.
Cristo é o grande templo de Deus - Deus-Homem ou Homem-
Deus - e nós participamos desta dignidade. Quão importante
recordar aos homens de hoje a dignidade, nascida da realidade
Deus, não de um Deus distante, isolado no seu céu, mas um
Deus presente, morando em cada um, fundamentando o respeito
que me devo a mim mesmo e o respeito que devo ao outro ( re-
cordar os mandamentos da 1• Leitura).
100 101

Quarto Domingo da Quaresma
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: 2Cr 36,14·16.19-23
A leitura proposta para esse domingo apresenta-nos quatro temas
encadeado~:_ a) os P.ecados .dos chefes e do p~vo; b) são a causa última
da destrmçao da Cidade Santa e do exílio; c) este lato é o cumpri-
m.ento de !'!"ª profecia; d) mas nem tudo está perdido: o edito de
Ciro, permitindo o retorno, manifesta a certeza que Deus não aban-
donou o seu povo.
Os vv. 14-1? tr_azem a rellexão sobre o pecado dos chefes e do
po~o!. como exphca_çao da causa dos tremendos acontecimentos da des-
tru1~~0 de Jeru~alem. É uma reflexão de teologia da história, muito
frequente e muito comum no Antigo Testamento. Basta recordar jz
2-3; e 2Rs 17,7-23. ~ ~utor bí~lico_ não se interessa e nem se preocupa
de ver as causas proximas e 1med1atas dos acontecimentos. Impregnado
de ~ua compreens~o teológica da história, ele busca a causa última que
exph~a. os acon~eciment~s, .e que se situa, segundo o Deuteronômio, no
pn~c1p1~ . da ~h~nç~: fidelidade à Aliança é igual a felicidade e pro-
teçao dmna; mf1dehdade à Aliança é igual a desgraça (cf. Dt 28).
Os vv.. 17-20 recordam, e~ f~rma sumária e patética, as desgraças
q;ie sobrevieram como consequência dos pecados mencionados: destrui-
çao, morte, saque, deportação.
No v. 21 o autor afirma que isto tudo aconteceu de acordo com a
profecia de Jeremias. o. que há de jeremias, aqui, é só a menção dos
setenta anos. O te~to citado não é de jr, mas do Lev:i!ico (Lv 26,34s).
O autor d~s Crônicas faz uma combinação de dois textos diferentes:
o de Jeremias (Jr 25:11-12; tb. 29,10), em que o profeta anuncia que
o exilm se P!Oiongara por 70 an~s; e o do Levítico (Lv 26,34s), em
q~e- s_e preve que. a terra (Palestina) será. devastada e permanecerá em
sohdao tantos anos, quantos forem os anos sabáticos que não foram
observados. Este texto do )..evitico pertence às bênçãos e . maldições que
acompanhavam as cláüsulas da Aliança.
O sentido do v. 21 é este: cumprindo suas ameaças e levando o
pov~ ao exílio, Deus deu á terra o repouso que seus habitantes lhe
haviam _recusado, ~ão observando a lei dos anos sabáticos. Jsto, con-
tudo,. nao quer dizer que, antes, nunca tenha sido observado o ano
~abático e I\e~ qu_eJ durante o exílio, a terra tenha ficado totalmente
mculta. Mas s1gn1flca que o Cronista vê um nexo de efeito e causa
entre a destruição e o exílio, e as violações da Lei.
. Mas, ap~sar ~e todo esse tremendo castigo e desse fim melancó-
h~o! o CronISta nao qu~r encerrar. sua obra com uma perspectiva pes-
s~m1sta. O povo escolhi.do tem fe num Deus que castiga, mas que
nao abandona, que humilha, mas que não esquece seu povo no sofri-
m~J_ltO. No fechamento do livro, apresenta-se-nos -o edito de Ciro, ·per-
mitindo aos deportados retornarem a jerusalém e reconstruirem o tem-
plo. E wn raio de luz no fim de uma noite escura.
Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
Santa Maria, RS
102
Segunda Leitura: Ef 2,4-10
Paulo, no cap. 2 de EféSlos, desenvolve a doutrina da salvação
gratuita em Cristo. O trecho da segunda leitura de hoje mostra sobre-
tudo a ação de Deus que se contrapõe ao estado de pecado em que
o homem viv:ia antes de ser salvo. Trata-se de uma confrontação entre
o passado, o que eram, e o presente, como e para que foram salvos.
A culpa provocara a ira de Deus, «mas Deus... nos amoU> e agora
a situação é outra. 'Nós', são todos, judeus e pagãos indistintamente,
que estavam numa situação sem escapatôda, «mas» Deus interveio na
história e mudou seu curso. Essa intervenção é dom gratuito fruto do
amor misericordioso de Deus, que embora não encontrando' nada de
amãvel em nós, assim mesmo nos amou e deu-nos a vida.
Para se ter a idéia do que é ser salvo é preciso que se tenha
tido a experiência da morte iminente, desse modo se valoriza o que se
recebe. Assim, só tendo consciência do seu pecado o homem pode per-
ceber a p~ofundidade da v:ida que lhe é dada pel~ graça no batismo.
Somos salvos. O tempo do verbo grego indica mna ação do passado
cujo efeito perdura no presente. Talvez em português se tivesse de
dizer: «temos sido salvos», ist-0 é, fomos e continuamos a ser salvos.
A salvaçãoJ a ressurreição dos mortos e a subida aos céus são reali-
dades atuais. Convém observar a evolução do pensamento paulino: Em
Rm 6,3-11 ele diz: «morremos e ressuscitaremoS» (passado-futuro); em
Cl 2,12: «morremos e ressuscitamos> (passado e presente); em Ef 2,6:
«nos ressuscitou e nos fez assentar• (tudo no passado). Em Rm 6 a
afirmação constitula uma esperança, em CI e Ef a salvação aparece como
uma realidade escatológica já experimentada e realizada. Temos de inter-
pretar a passagem como sendo o Cristo que jâ se encontra no céu, e
nós por sermos membros dele assim nos encontramos representados
nele. A vida da graça atual é o prelúdio do que teremos definitivamente.
Vivemos o tempo da ressurreição e a realidade da salvação pela espe-
rança que nos é dada pelo Esplrito, embora estejamos neste corpo
de morte.
Desde que o homem vive ainda neste mundo, ele não pode nunca
ter certeza absoluta de sua salvação pessoal. Deus nos salvou, e ofe-
receu essa salvação ao homem, mas permanece a possibilidade do homem,
mesmo batizado, dizer não a Deus. .:e o paradoxo da sua liberdade.
Paulo de modo especial, na parte final do trecho, explicita o «pela
graça» do v. 5. Esse foi o motivo de toda a sua luta, e aqui ele rea-
firma: o homem se salva pelo dom de Deus e não por suas obras.
Estas não são nada mais que o fruto produzido pela graça no cora-
ção do homem que abre seu coração, aceita Deus na sua vida. Crer, de
fato, é dar a Deus o posto que lhe é próprio, não é fazerJ mas aceitar,
receber o que Deus dâ. O homem prepara o terreno para que a se-
mente da graça dê seus frutos. Os frutos não vêm da terra (homem)
mas da semente (graça de Dens), que potencialmente os contém em
si, e desabrocha por ter encontrado a boa terra.
O homem. criou espaço para que Deus agisse dentro dele e por ele.
Se a salvação viesse das obras do homem, ele · poderia se gloriar
(Rm 3,27; 1Cor 1,29), mas ela é dom e o homem novo é criatura de
Deus e não fruto do esforço humano. A teologia farisaica quis que a
observância das questiúnculas da lei salvasse o homem. Paulo se opôs
a toda essa v:isão de salvação pelas obras, afirmando tudo ser dom
103
j
de Deus. Neste trecho está resumida a doutrina da graça de OI e Rm.
embora falte o termo justificação. Isso confirma de modo insofismá-
vel a origem paulina da carta.
A úl~ma frase retoma o difícil assunto da misteriosa conciliação
entre .~ liberda~e de Deus e a do homem. Que significa, «obras que
Deus ~a antes tinha preparado»? Tem-se a impressão que o cristão deva
andar num caminho preestabelecido. Durante séculos a teologia oscilou
s_ublinhando mais um aspecto ou outro. De fato sabemos que a própria
hberdade que temos é dom de Deus, assim ela não é absoluta mas
condicionada por Deus e o mundo circunstante. É um condiciona~ento
contingente. Somos criaturas de Deus mas não criadores filhos mas
não. ~enhores. Podemos dizer que desde a eternidade D~us preÍ>arou,
dec1d1u-se em como fazer a graça agir e dar seus frutos em nós.
Isto não resolve o mistério, mas deixa passar uma fresta de luz.
Bibliografia: H. C o n 2 e l m a n n - O. F r 1 e d r 1 e b, Epístolas de la r:autivldad
Madrid 1972; H. Se h li e r, La lettera agli Efesini, Brescla 1973· M. z e r w 1 e k'
Carta aos Effslos, Petrópolis. ' '
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
Paulista, PE
Terceira Leitura: Jo 3,14-21
1. Contexto da pericope
Jo 3,14-21 faz parte (conclusiva) das conversas de Jesus em Jeru-
salém, depois da expulsão dos vendi1hões do Templo (cf. evangelho
de domingo passado). O diãlogo com Nicodemos é, provavelmente con-
siderado como tipo do diãlogo com o judaísmo oficial de Jerusalém.
Isto, porém, não tanto na vida de Jesus (quando as autoridades judai-
cas de Jerusalém eram ainda predominantemente saduceus, aristocracia
sacerdotal do Templo), mas antes, no tempo da publicação do Quarto
Evangelho, depois da exclusão dos cristãos da Sinagoga pelos fariseus,
que se impuseram como chefes do judaísmo depois de 70 dC. Podemos
ver no diálogo com o fariseu, «chefe dos judeus», Nicodemos (cf. 3,1),
o tipo do diálogo (ou controvérsia) da igreja de João com o judaísmo
farisaico na terceira geração cristã. Mostra que os «mestres em Israel»
(cf. 3,10), apesar de seu conhecimento escriturístico, n&o entendiam nada
do «Reino de Deus» (jo 3,3.5 - as únicas utilizações deste termo em
Jo), porque eles ~ão da «carne» e não de «água e espírito» (símbolos
do batismo cristão, regeneração pelo Espírito de Deus) (Jo 3,3-11).
Depois de Jo 3,14-21, segue a discussão com a seita do Batista (Jo
3,22-36), conduzida em termos semelhantes à anterior i e a dicussão
com os samaritanos (4, 1-42). Os capítulos 3 e 4 parecem - depois da
«abolição> do antigo templo (2,13-22) - uma iniciação no espírito de
Cristo e sua Igreja. Por isto encontramos aqui textos que pertencem
aos mais significativos do Quarto Evangelho: Jo 3,14-21 e 31-36 -
quase tão fundamentais como o Prólogo (1,1-18), o pivô central (12,20-50;
cf. próximo domingo) e os Discursos de Despedida (cap. 14-17). Estes
e alguns outros trechos do 4º Evangelho receberam, na linguagem
dos exegetas, o nome de «discursos de revelação» de Jesus.
Característico destes textos é que só os entende, no seu sentido
verdadeiro, aquele que foi iniciado no espírito de Cristo. Para o não-
cristão, ficam inacessíveis. São formulados no «código» da iniciação
104
cristã (não foi jesus que falou assim, mas a Igreja em seu nome).
Certos termos têm um sentido cristão bem especifico, que o leitor não
iniciado não pode entender.
No contexto imediatamente anterior, Jesus abordou o tema do Reve-
lador. Nicodemos não pode entender, porque é terrestre (vv. 9-12). Pre-
cisa do Revelador, aquele que vem «do alto»: no caso, a figura celes-
tial do «Filho do Homem» (ver Dn 7,12), identificado com Jesus Cristo.
É exclusividade do Filho unigênito revelar Aquele a quem ninguém jamais
viu (e!. 1,18; 4,46). Este Filho do Homem, que é de cima, subiu também
ao céu (v. 13). Com isto, Jo aborda o tema da «elevação» (hypsôsis)
de Jesus, tema caracterizado pela típica «bivalência» do código joanino:
para o leitor iniciado, esta «elevação» (ou «exaltação») significa, ao
mesmo tempo, a elevação de Jesus na Cruz e sua exaltação na glória
da ressurreição (cf. 12,32s). O leitor que sabe isto entende facilmente
os w. 14-21.
2. Explicação d~ texto
Jo recorre a um acontecimento do AT: Moisés levantou uma ser-
pente de bronze, numa haste, a fim de que os israelitas, olhando para
este fetiche, fossem libertados da praga das serpentes (Nm 21,4-9).
Assim também deve ser «elevado» (na madeira da Cruz e na glória
da Ressurreição) o «Filho do Homem», Jesus, para que, quem o con-
templar (com os olhos da fé), seja salvo (3,14s).
A partir daí, ]o explica em que consiste o valor salvífico do Cristo
crucificado: Ele é o dom do amor de Deus ao mundo (3,lô). Utiliza
o qualificativo cunigênito» para sugerir que neste Filho está toda a
afeição do Pai (cf. Me 1,11 par.). Note-se o paralelismo entre os w.
14-15 e 16: a segunda parte de ambas estas frases (se. v. 15 e v. 16b)
é idêntica. Isto leva a supor que também a primeira parte signifique
a mesma coisa: a elevação do Filho do Homem (morte e glorificação)
(v. 14) é a mesma coisa que Deus dar - por amor - seu Filho
único ao c:mundo» (= os homens) (v. l6a). Nota-se, aqui, que «mundo»
em S. João não significa, necessariamente, o mundo fechado, inimigo
do plano de Deus (como em 7,1; 14,7.22.27; r5,18s; 17,14-16 etc.). Aqui,
o mundo (os homens) é objeto do amor de Deus. Deus corre o risco
do «amor ao mundo>, enquanto este fica livre para aceitar ou rejeitar
seu dom. Deus envia seu Filho para que o mundo seja salvo, tenha
a ~ida eterna:l'> - termo apocalíptico para indicar o que, nos evan-
gelhos sinóticos, é indicado . pela expressão «Reino de Deus» . (cf. Jo
3,3.5). Não é meramente «Vida além da morte», mas antes, vida que
pertence ao aiôn, o «tempo de Deus». É vida divina. Ela não começa
depois da morte, mas aqui e agora, se acolhemos, na fé, o dom de
Deus: jesus Cristo. Assim, quem crê em Jesus,_ não conhecerá a conde-
nação (já tem a vida, diz jo 3,36; 5,24; 6,47). Vive a vida de Deus
mesmo. Quem não crê, porém, já é condenado - não por Jesus, pois
este veio para salvar (3,17) - mas por si mesmo, porque não aceitou
o dom de Deus (e!. 12,44-50).
Deste modo, a vinda de Cristo (e, sobretudo, a sua «elevação» -
cf. 12,31) é um julgamento para o mundo. No confronto com Ele, o
mundo se divide ein duas categorias: os que aceitam a sua luz (cf.
l,4-5.9ss) e os que a rejeitam. Como é possível alguém rejeitar a luz
de Deus? Para responder a esta pergunta, Jo faz uma análise breve
105

mas penetrante. A Teologia da Libertação vê em Jo um teólogo da
cortoprâxis», por causa da sua terminologia «operar a verdade», cagir
segundo a verdade> (ljo 1,6; Jo 3,21; cf. Tb 4,6). A fé não é, em
primeiro lugar, subscrever doutrinas formais (ortodoxia forma1) mas
agir conforme a verdade. Ora, biblicamente, verdadeiro. é, antes de' tudo,
Deus mesmo (cf. Jo 3,33; 8,26; e!. 7,28). Agir conforme a verdade ê
agir em fidelidade ao Deus fidedigno, realizar a sua vontade, assim
como Ele mesmo a faz conhecer, sobretudo, no Filho dado até o fim,
por amor. Quem age assim é quem deixa iluminar sua vida pela luz que
é o Filho de Deus. Quem age do modo contrário, foge desta luz diz
joão, para que as suas obras rião sejam expostas à luz (3,20; cf.' ljo
2,9 etc.).
A incredulidade, grande problema para o Quarto Evangelista ( cf.
12,37-43), explica-se, não tanto por razões especuJativas, mas antes por
razões práticas: o homem não quer deixar questionar seu comportamento
pela luz do Senhor «elevado», morto por amor e - nisto mesmo -
glorificado. O homem tem medo, tem ódio de ver a sua vida nesta luz.
E, neste ódio, se condena a si mesmo.
Mas quem expõe sua vida a esta luz, mostra que ele age «em
Deus» (3!21),_ isto é, em união com a vontade do Pai, que faz com
que tal vida,· Já agora, possa ser chamada de «Vida eterna», vida divina,
vida de filho de Deus. Embora ainda não seja manifestado o que ela
será em plenitude (cf. ljo 3,2), sabemos que a vida unida à vontade
do Pai é o nosso destino definitivo e último, desde já. Se não g-0stamos
de tal vida desde já, também não adianta esperá•la para a eternidade.
Merece uma consideração o termo «em Deus»· (3,21). Faz parte das
«fórmulas de imanência» do Quarto Evangelho, cáracterizadas pela pre-
posição «em», muitas vezes acompâllhada por um verbo que exprime um
estado permanente (estar, ficar, permanecer). Assim, é dito que o Pai
está (permanece) no Filho e vice-versa (14,lOs; 17,21.23), o Filho nos
«Seus» e vice-versa (14i20; 15,4.5.7.9.10; 17,23), o Pai e o Filho nos
fiéis (14,23) e vice-versa (17,10), o Espírito nos fiêis (14,17). Estas
fórmulas expressam uma .união íntima, que, vista a dupla direção da
preposição, deve ser considerada como resultante de um movimento re-
cíproco. Não é uma infusão unilateral da realidade divina no homem1
como nos mistérios helenísticos e no gnosticismo, mas uma união bila-
teral, implicando numa decisão do homem em favor de Deus. Embora
expressas numa linguagem de união mística (influenciada pelo ambiente
helenístico), as fórmulas de imanência têm um fundamento tipicamente
bíblico: a Aliança, pacto bilateral entre De11s e o homem. Tal pacto
torna o homem representante de Deus nas suas 'obras. Assim como o
Filho faz as obras do Pai, porque «está no Pai e· o Pai n'Ele~ (14,10),
assim o que permanece n'Ele (15,5) faz as obras do Pai (10,37-39).
As obras <i:feitas em Deus» (em união com Deus) são, no fundoi obras
de Deus e assemelham o fiel ao Filho (embora a união deste com o
Pai tenha uma natureza específica, expressa pelo termo «Unigênito»).
Jo 3,16-21 (como 10,31-38 e cap. 15-17) revela aspectos centrais da
teologia do .Quarto Evangelho: a vida, morte e ressurreição de Cristo
como obra, ~orn e revelação do Pai; e, da parte do fiel, a decisão da
fé como participação nesta obra, que se torna presente nas próprias
obras dos fiéis.
106
3. Função na liturgia
O presente evangelho faz parte da pedagogia da conversão diante do
Cristo morto e ressuscitado, que é a linha geral desta quaresma. Diante
do gesto supremo do amor de Deus, realizado na existência humana de
jesus, «homem para os outros», ninguém pode ficar indiferente. Ê um con-
fronto decisivo e, dependendo de sua decisão, a gente entra na vida
verdadeira (vida do amor de doação que é a vida de Deus mesmo) ou
no apagamento de uma vida que não agüenta a luz: a vida do egoísmo,
da separação, da rejeição ... A nós escolhermos, não da boca para fora,
mas <em atos e verdade> (e!. ljo 3,18). Aqui, o pregador poderá con-
cretizar quais são atos de verdadeira doação ao mundo que Deus amou,
por exemplo (para ficar no tema da Campanha da Fraternidade), na
maneira de tratar o ambiente natural, que é de todos. Será que amamos
em espírito de doação este ambiente vital dos filhos de Deus, ou o des-
truímos em obras que não , agüentam a luz: loteamentos ilegais, des-
matamento clandestino e tantos outros atentados contra o mundo dos
homens?
Porém, para ficarmos fiéis à ótica joanina, é mister mostrar o cris-
tocentrismo de tais considerações. jo não pode servir de propaganda
para um «partido ecológico». . . Trata-se de mostrar que conhecer Deus
- o sentido último da nossa vida - é idêntico com aceitar jesus
Cristo (o crevelador»). O que, na prática, se verifica numa existência
conforme à sua, uma existência para os irmãos («pró-existência»), até
em coisas tão profanas como o cuidado do meio ambiente natural. Pois,
em Cristo, Deus amou o mundo dos homens.
Bibllograjia: Ver 39 domingo da Quaresma.
OBSERVAÇÃO: Neste Domingo pode-se ler o Evangelho do Cego de Nascença
(Jo 9,1-41). Pistas Exegéticas na .t'.Iesa da Palavra, Ano A, p. 136-139.
Pe. Johan Konings
Porto Alegre, RS
Tema Principal
Só O CRJSTO NOS REVELA O VERDADEJRO DEUS
Sugestões para a Homilia
Introdução
É impressionante a franqueza da !> leitura, analisando o
comportamento condenável dos condutores do povo: infiéis, sur-
;-~--
dos aos apelos de Deus, zombadores da Palavra, profanadores
do templo do Altíssimo. Por isso, sobre eles e o povo - que
tão mal conduzem - caem as iras de Deus: morte, deportação,
escravidão. Mas, em meio a tanta depravação, no horizonte surge
um templo novo: que é, antes de tudo, o Cristo elevado frente
107
 aos homens, qual serpente de Moisés no deserto (Evangelho),
pois o amor e a bondade de Deus acompanham sempre o homem
(2• Leitura). O que nos comove é este apego de Deus ao homem,
não obstante seu constante pecado. Deus não abandona o homem.
Esta mensagem cria alegria e confiança, em meio a um mundo
de promessas sem cumprimentos.
Corpo
1. Cristo apresentado aos homens
Quando o veneno das serpentes dizimava o povo pecador
e idólatra, Moisés ergue uma serpente de bronze e a saúde
retorna. Era o remédio simbólico, como o próprio Cristo o
explica. Ele seria o verdadeiro remédio levantado diante da
humanidade que, olhando para ele, encontraria remédio para
seus males. Num mundo como o nosso epidemicamente roído
por mil poluições de toda ordem, distorções e profanações sem
número, só o Cristo, colocado diante da humanidade, poderá
acordá-la para os verdadeiros valores. Daí o gesto profético de
João Paulo 11, no dia de sua entronização, levantando seu báculo,
com o corpo de Cristo pendente, diante da multidão que repre-
sentava a humanidade toda, prostrada em busca da salvação.
É nele que devemos fixar nosso olhar, é para ele que devemos
apontar, para que todos os olhos nele se fixem, porque, como
ele mesmo diz, a maior prova do amor e da bondade do Pai
é nos ter dado o Cristo, o Cristo que nós pregamos, mas Cruci-
ficado, porque por ele veio a salvação.
de Deus, nem são de punição seus gestos. São apelos ao nosso
amor e à verdade. É pela luz da verdade que nós nos devemos
julgar, isto é, encontrar os parâmetros de nosso comportamento:
0 homem agirá na luz, porque, sabendo-se na verdade, nada
tem a ocultar, nem aos homens nem a Deus. É homem livre,
na plenitude do termo.
Conclusão
Dia por dia somos desafiados pelo Cristo crucificado, nas
muitas cruzes q~e vemos, nas muitas que sofremos. Desafiados
pelo sofrimento que se abate sobre o homem, templo de Deus,
irmão do Cristo. Convidados a tomar uma posição: mirar-nos
.
na verdade deixar-nos invadir pela luz. Sinceridade e docilidade
nos ajudarão a entender o plano de Deus e seu modo de assumtr
.
0 sofrimento do mundo. Continuamente instados a nos conver-
termos: olhar sempre de novo para o Cristo, voltar sempre de
novo para o Pai.
Frei Hugo D. Baggio, O.F.M.
Rio de Janeiro, RJ

2. Cristo é o dom de Deus

O valor do presente indica o apreço do doador ao que o

recebe. Se Deus deu seu Filho ao mundo, pode-se concluir que
amor tem ele a este mundo, aos homens que neste mundo lutam
e se afadigam, dobrando-se ante tantos ídolos, uns trazidos do
ontem, outros plasmados hoje. Mas só o Cristo nos revela o
verdadeiro Deus, do qual somente nos pode vir a salvação. Este
Cristo é um julgamento, porque obriga o homem a confrontar
seu procedimento e seu modo de ver as coisas: tudo deve ser
visto à luz do Cristo. Sendo o amor e a bondade as forças
1 i
impulsionadoras do agir de Deus, seu «julgamento» vem mar-
cado por elas. Por isso, não são de vingança os pensamentos
1
109
108

1

Quinto Domingo da Quaresma
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Jr 31,31-34
A Profecia da Nova Aliança marca uma nova compreensão do
plano salvífico de Deus, no quadro do Antigo Testamento. O profeta
jeremias é encarregado de anunciar a Palavra de Deus num dos mais
difíceis períodos da história de Jsrael: os anos que precederam imedia-
tamente a grande catástrofe nacional da destruição de ]eritsalém e do
exílio. E o mais dramático é que a pregação de Jeremias pouco ou
nenhum. efeito produziu nos_ seu.s ouvin~es. Tanto que Jeremias estava
convenc!do que .esse .povo nao tinha mais chance diante de Deus, «que
sua ferida era incuravel> (Jr 30,12). A Aliança era continuamente rom-
pida. ~esse contexto de quase desespero, Deus revela a jeremiâs que
Ele vai fazer urna Nova Aliança com o seu povo.
Para compreender a Nova Aliança, é preciso compreender o que era
a Aliança do Sinai para os hebreus. Ela é como que a espinha dorsal
de todo o Antigo Testamento. O conteúdo da Aliança do Sinai era a
revelação da Lei, do caminho de Deus para seu povo. No êntanto,
essa Lei, dada em tábuas de pedra, não tinha conseguido conduzir
o povo a Deus. O ritualismo e o formalismo tinham abafado o seu
conteúdo.
Deus então promete algo novo. Não se trata de renovação da
Aliaôça do Sinai, nem de sua reformulação parcial. Trata-se de algo
diferente: «diversa, porém, será ... » E a novidade vem exposta nos
vv. 33-34. Os elementos principais da novidade são três: interiorização,
conhecimento de Deus, ·perdão dos pecados.
Como primeiro elemento da novidade, a Aliança passará a ser gra-
vada no coração do homem. Isto recorda o fato do Sinai, narrado no
exodo (32,15-16), em que a Lei da Aliança era gravada em tábuas
de pedra. Na nova Aliança a Lei será colocada no íntimo do homem.
Não será apenas uma lei externa que necessita de ameaças e sanções,
mas será uma· lei interior que inclinará suavemente o homem a seguir
com alegria e decil.idade ~ vontade de Deus. A Aliança do Sinai, gra-
vada em pedra, fot rompida. O gesto de Moisés de arrojar ao chão
e romper as pedras da Lei (Ex 32,19), no episódio do bezerro de ouro,
:onra-se um simbolo de toda a A1iança Sinaítica. A Nova Aliança,
implantada por Deus no coração do homem, será perene.
E esta perenidade lhe advirá do segundo elemento de novidade: um
conhecimento interior de Deus. Não se trata de um conhecimento espe-
culativo, mas de um conhecimento afetivo, amoroso, que abre o coração
do homem para Deus e o leva a aderir com alegria a seus preceitos.
Este conhecimento não necessitará de mestres porque será posto no
íntimo do homem pelo próprio Deus. E não será privilégio de poucos:
todos receberão este conhecimento, grandes e pequenos. Provavelmente
aq~i são indicados os sábios e dirigentes da nação, bem como os pobres
e ignorantes.
O terceiro elemento da Nova Aliança é o perdão dos pecados.
Certamente, o perdão dos pecados não é em si uma novidade no
Antigo Testamento. Mas aqui faz parte da 'novidad~ da aliança diversa,
que Deus vai estabelecer com seu povo. Este perdão é anunciado como
110
um dom gratuito, quase como uma anistia que tem como móvel a
bondade e a misericórdia de Deus. E o perdão dos pecados estabelece
um novo relacionamento, totalmente cordial e amistoso, entre o homem
e Deus. .
A Nova Alança é uma das mais belas e profundas profecias que
intuem e anunciam a realidade do Novo Testamento. Cristo mesmo
referiu-se a ela expressamente na instituição da Eucaristia (Mt 26,28;
Lc 22,20). Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
Santa Maria, RS
Segunda Leitura: Hb 5,7-9
O texto da segunda leitura é a conclusão da parte da Epístola
que demonstra Ser jesus sumo sacerdote, fiel . e !"iseri~ordioso. Esses
quatro versicülos contêm em resumo toda a Cristolog1a, apresentam
jesus Cristo nosso sumo sacerdote que sofre com e corno os homens,
na paixão.
A paixão é descrita como uma oferta suplicante, cheia de respeito,
à vontade de Deus (cf. Mt 26,39). O autor afirma que essa oração foi
ouvida1 mas ele teve de obedecer e sofrer. Porém, como pode-se dizer
que. a oração foi ouvida se ele morreu? O autor de ~ebreus. não trans-
mite uma nova tradição sobre o fato de Oetsêman1, mas interpreta-o
à luz do Salmo 22(21) 20. Assim supondo-se a elipse, foi atendido
<e liberto», e a tradução' de «eulabeia» (v. 7) por ang~stia e não por
submissão, o problema estaria resolvido em como explicar por que a
oração ·foi ouvida (cf. Zorell, Lexicon Graecum - «eulabeia»). .
Nesse caso a oração de Cristo teria sido ouvida enquanto ele foi
líbertado por Deus da angústia da morte. Essa possibilidade certamente
abriria .uma perspectiva nova para a oração do cristão perseguido. Sem
angústia, medo da morte, ele obedeceria ~om !emor filia}, .e pelos so-
frimentos chegaria à perfeição. Deus nos hvrar1a da angustia da m,?rte
e não do amargor dela, à semelhança do que aconteceu com o Cnsto.
O te:tto é então semelhante ao Hino Cristológico de Fl 2,6-11, onde
se afirma que a obediência leva à glorificação~ expressa aqui. não em
termos de senhorio mas de sacerdócio. Hb sublinha a humanidade do
sacerdote que ~ra representar os homens deve ser um deles, sofrendo
com os 'homens tendo experiência pessoal de suas misérias. Toda a
vida de jesus Íestemitnhou a realidade de sua humanidade, mas esta
se revelou sobretudo nas humilhações, nos sofrimentos mais atrozes que
culminaram com sua morte. Foi no Getsêmani que jesus, Filho de Deus,
manifestou em grau supremo s·ua fidelidade. e capacidade de miseri-
córdia, experimentando a dor. Deus não subtraiu Cr!sto da morte, ~te.n­
dendo seus <pedidos e súplicas», mas, além de bvrâ-lo da angustia,
fez que sua morte fosse transformada em exaltação e glória (cf. teo-
logia da cruz de Jo 12,27s; 13,31s; 17,5 e Hb 2,9). Ele apre~d~u a
obediência pela pedagogia do sofrimento, isto é, pela sua subm1~sao e
piedade filial, enfrentou corajosamente a morte (Jo 18,4~s), aceitou a
decisão de Deus seu Pai (Lc 22,42; Me 14,36), que nao se opôs à
realização das maquinações iníquas dos homens que o levaram à morte
(Jo 11,50).
O sacerdócio levítico que no Antigo Testamento não é apresentado
como vocação, enquanto o de Cristo, sim, não podia ser considerado
como perfeito. Cristo, porém, foi levado à perfeição, sua natureza humana
111
foi refun.dida no crisol do sofrimento, ele foi ~consagrado sacerdote».
E este é o sentido do termo «levar à perfeição» nos LXX (cf. Ex
29 e Lv 8), em Hb 21 101 onde significa o mistério da glorificação de
Cristo (e!. 5,9; 7,8), e em Hb 10,14 significando a plena realização da
vocação do homem (cf. 11,40; 12,23).
Acontece no homem uma transformação radical, qlle não era possí-
vel com os ritos antigos1 e ele torna-se digno de Deus. Trata-se de
uma obra divina, realizada pela paixão de Cristo, que assume um ca-
râter sacerdotal enquanto é comunicada por Cristo aos que aderem a
ele. Embora isento de sofrimentos, quis experimentar na sua carne,
quanto custa a submissão à vontade divina e assim merecer por nós
a salvação eterna. · o fim da presente·, pericope os v. 32-33. Mas antes de chegar a estes
Em suma, a leitura mostra como o Pontffice da Nova Aliança está
perto dos homens. A vida humana de Cristo, perseguido, caluniado1
incompreendido, torturado e por fim n1orto1 tornou-o apto a conferir
a seus seguidores a salvação. O cristão aprende que os seus sofrimen-
tos podem adquirir um ·novo significado à luz dos sofrimentos de jesus.
Bibliograjla: O. K u s s, La J2Hera agli Ebrei1 Brescla 1956; F. j. S e h i e r s e,
Lettera agli Ebr2i1 Roma 1968.
Pe. Carlos Alberto da "costa Silva, S.C.J.
Paulista, PE
Terceira Leilnra: Jo 12,20-33
1. Contexto da perlcope
Jo 12,20-50 é o pivô central do Quarto Evangelho. Antecede a este
texto a primeira parte do evangelho, o «livro dos Sinais» de jesus (jo
1,19-12,19), descrevendo a atividade querigmãtica de Jesus, que Jo ca-
racteriza a partir de alguns gestos milagrosos («sinais» no sentido
vétero-testamentário), explicados por <discursos (diálogós) de revelação>.
Nestes discursos não ouvintes apenas a voz de jesus; mas também da
igreja1 depois de meio século de reflexão cristã. Depois do pivô central,
em ]o 13,1-20,29, temos' o «livro da Exaltação». Mostra: jesus na chora~
da sua elevação na cruz ·e na glória (cf. com. de dom. passado). O
episódio 12,20-50 serve para concluir a atividade pública de Jesus e
inaugurar esta «hora>1 que, até agora1 «ainda não chegara» (cf. 2,4;
7,30; 8,20).
Narrativamente, o episódio -continua a situação da entrada de jesus
em Jerusalém e da proximidade da Páscoa (cf. 11,55; 12,1). Esta si-
tuação explica a presença de gente de fora 1 judeus helehistas e "gregos>,
simpatizantes do judaísmo ou prosélitos do mundo greco-latino, que
vieram a jerusalém par.a participar da romaria da Páscoa.
2. Explicação do texto
A introdução mostra os romeiros1 de Jíngua grega1 se dirigindo aos
apóstolos de nome grego, Filipe e André, originários de Betsaida1 a
parte mais helenizada da Galiléia. Na suposição que se trate de pagãos
(ou prosélitos, mas em todo caso não de judeus), a exclamacão de
Jesus <Chegou a hora em que o Filho do Homem é glorificado> ganha
112
um sentido de manifestação universal ao mundoJ reforçando as últimas
palavras do contexto precedente: <Todo o mundo vai atrãs dele» (12,19)
e preparando o tema da rejeição do judaísmo, incrédulo (12,31 e, so-
bretudo, 12,37ss). 1Jesus anuncia a hora da glorificação do Filho do
Homem, da manifestação ao mundo, Porém, não é algo espetacular. Trata-
se, mais uma vez,::: de uma ambigüidade do «código» joanino (cf. com.
de dom. pass.). Pois esta glorificação do Filho do Homem não é sua
vinda sobre as nuvens do céu - seu trono de glória -, como o
descrevem os livros de Daniel e Henoc e os evangelhos sinóticos (Me
14,62 par.; cf. Me 13,26 par.; Mt 25,31). A glória de Jesus é a sua
«exaltação:t>, e esta, é, antes de tudo, a elevação na cruz, como mostra
versículos, Jesus aprofunda o paradoxo. Tendo criado a expectátiva
de um acontecimento extraordinário, descreve agora este acontecimento
mediante uma parábola: um grão de trigo cai na terra e morre para
produzir fruto. O leitor iniciado no mistério cristão entende: é a morte
de Cristo e sua ressurreição, da qual vive a sua Igreja, pelo dom do
Espírito, dom pascal (cf. 7,37-39; 20,19ss). Mas para os «gregos» estas
palavras ficavam c.ertamente grego ...
A parábola é explicada nos versículos seguintes por umas palavras
1
de Jesus que se encontram também na tradição sinótica (ci. Mt 16,25
par.; Mt 10,39 par.). Para ganhar a vida é preciso perdê-la. Pois
a vida que se tem agora não é uma morada definitiva, mas uma
ocasião para a gente mostrar qual é seu verdadeiro compromisso -
e este se revela quando se doa a vida para o bem supremo, que é
a participação do amor de Deus. Quem torna a sua vida aqui o objeto
último de seu compromisso1 perde o trem da vida eterna. Quem, porém,
gasta sua vida para realizar a doação até o fim, está com jesus, aqui
e para sempre (v. 26) (cf. Mt 10,24 par.; 10,3~ par.). Assim, se serve
a Jesus como Senhor e recebe-se o reconhecimento do Pai. Em outros
termos, viver de verdade é estar do lado de JeSus. Aliás, é uma expe-
riência que se supõe que cada cristão verdadeiro conheça: gastando sua
vida no serviço do seu irmão (profissionalmente no dia-a-.dia, excep-
cionalmente nas circunstâncias imprevistas no heroísmo até), ele expe-
1
rimenta que isto é viver - uma vida que ninguém lhe pode roubar:
é «realização».
Agora fica claro o que é este estar com jesus. É estar com Ele
na sua agonia (cf. Mt 26,36-46 par.). A ousadia literária de João faz
com que, na «hora da glorificação do Filho do Homem~ se situe a•
angústia da agonia de Jesus, o grão de trigo que se sente sufocado
na terra. Embora joão nos apresente, no seu evangelho, jesus visto
através da Ressurreição, ele não esconde o drama humano desta existên-
cia (e!. Hb 5,7), drama da obediência ao Pai (cf. FI 2,6ss), na doação
até o fim. Jesus veio a «esta hora> (v. 27) - a hora que Jesus, con-
forme Me 14,41, anunciou no jardim de Getsêmani - porque ele quer
ser o dom do amor de Deus ao mundo (ci. Jo 3,16). Sua glorificação
é a sua obediência até o fim: é isto que significa o tema da glorifi-
cação de Deus em Cristo, v. 28-30 (e!. 17,1.5). Podemos dizer, diante
destes textos, que aquilo que no céu é a glória do Filho, glória eterna
porque divina (cf. 17,5; l,lss), aqui na terra se manifesta como obe-
diência até o fim (e!. FI 2,6-11). De fato, ambos os conceitos - glória
e obediência - significam a mesma coisa: a íntima união de Jesus
com o Pai razão pela qual o chamamos de Filho, e Filho único.
1
113
-----------------~--
Ora, frente a esta original manifestação da glória de Deus na
obediência de seu Filho no plano de amor, a humanidade entra numa
situação de decisão. Não pode ficar neutra. Por isso, esta hora é real...
mente a hora do Filho do homem, que, tradicionalmente, é considerada
como o juízo final (cf. Mt 26,64 par.; 25,31ss; 24,21ss par.). Por isto,
]o caracteriza esta hora como hora de julgamento, hora em que o
príncipe deste mundo é jogado fora: aquele que dominou o mundo e o
subtraiu ao amor de Deus. E aquele que é chamado Satanãs, o opositor
de Deus, a personificação da rebeldia contra Deus: Na hora decisiva
de Jesus, na hora da: efetiva doação «até o fim» (cf. Jo 13,l), este
«chefe~ é vencido: Deus venceu o mundo pelo amor de Cristo (cf.
16,33). Mas este julgamento refere-se não a mna figura mitológica que
nada tem que ver conosco. Trata-se do julgamento:_ do homem que se
une a esta incredulidade. Em outros termos, a cruz de Cristo é o trono
da sua glória e ao mesmo tempo seu tribunal; diante da cruz, nós
nos unimos a Ele (v. 25-26) ou então entramos no julgamento e somos
jogados !ora (v. 32) (cf, 3,18-21, ev. de dom. pass.).
Nesta hora entra em função o senhorio de Cristo: ele será «ele-
vado da terra» para atrair todos a si: imagem do Senhor glorioso, -
mas não devemos esquecer que esta exaltação, para joão, se realiza
antes de tudo na elevação da cruz, prova do amor de Deus e revelação
do seu rosto. Isto, explica-o a «nota de rodapé» que é o v. 33.
O tema da hora será retomado logo no começo do capítulo seguinte
(13,lss), inaugurando a segunda parte do evangelho. E a hora de
Jesus passar deste mundo ao Pai, hora de amor até o fim.
3. Função na liturgia
Contemplando a cruz como revelação da glória de Deus, pois Deus
é amor radical (cf. ljó 4,8-11), somos levados a tomar - ou retomar
- a nossa decisão existencial. Optamos pela «lei do grão de trigo»
ou pela auto-suficiência do «príncipe deste mundo»? Assim, a Jiturgia,
mediante este evangelho (e os dos domingos precedentes) hos envolve
num movimento de conversão radical, ao aproximarmo-nos - também no
tempo litúrgico - da cruz de Cristo, revelação do amor de Deus para
nós. E questionada, aqui, toda a nossa criteriologia pessoal. Minha vid@,
é ela uma «pró-existência», um estar do lado de jesus, ou uma expio·
ração? Tenho que decidir: confrontado com Cristo, não me posso
•esquivar desta decisão. · abre aos seus este mistério, desvela-o, chama-os. Desde já, o seu
Bibliografia: Ver 39 Domingo da Quaresma.
OBSERVAÇÃO: Neste Domingo pode-se ler o Evangelho de Lázaro {jo JJ,1-45).
Pistas Exegéticas na Jlfesa da Palavra, Ano A, p. 1·15-148.
Pe. ]ohan Konings
Porto Alegre, RS
114
~-----------
Tema principal
A Paixão como hora da exaltação do
Messias, Servo-Sofredor
Sugestões para a homilia
A Liturgia vai se aproximando de sua proclamação central
e maior. O Quinto Domingo da Quaresma coloca o cristão face
a face com o núcleo do Mistério: a Nova Aliança, a oblação
sacerdotal sob a forma de uma existência efetiva, a exaltação
de Jesus como, glória de Deus. São três expressões ou três
visões de uma mesma realidade, o que faz com que as duas
primeiras leituras fluam naturalmente para o interior da terceira.
Com efeito, tanto a idéia de uma Nova Aliança, proclamada na
iminência do exílio, quanto a aceitação da oblação sacerdotal,
feita sob a forma de um sofrimento real que é tensão morte-
vida, encontra centro e contexto na dialética exposta pelo Quarto
Evangelho. Este é o grande marco da liturgia dominical.
Proclama-se a iminência da «hora» e esta proclamação faz-se
na seqüência de um pedido, o de alguns gregos que queriam ver
Jesus. O significado maior do episódio é fazer suceder à simples
visão física do mestre e taumaturgo o conhecimento, ainda que
obscuro, do «mistério da hora». Esta desvela-se como o momento
decisivo. Sob forma parabólica é ela a hora do grão de trigo:
neste, a morte é necessária para que a vida manifeste a sua
plenitude. Eis a dialética pascal, o centro de consistência e o
clímax do novo êxodo, o processo vital que faz da nova aliança
uma nova criação. É apenas no dom total da vida, no empenho
sem reservas da própria pessoa, que se pode alcançar a pleni-
tude. No fundo Jesus assume a razão de ser seminal do homem;
a dialética do grão de trigo é kenose e elevação. Desde já, Jesus
êxodo e a sua Páscoa são de todos. Na ação pascal Ele é o
Homem; é na sua identidade, desde o momento seminal de seu
ser, que todo o homem é chamado a encontrar a própria identi-
dade. Em verdade, se assim é, é porque a humanidade não é
nele um revestimento ou um meio, mas realidade efetiva e plena.
J-lá algo de verdadeiro na legenda do herói: a vida humana não
foi feita para ser preservada, mas para ser conquistada mediante
o dom total.
Isto não obsta mas inclui a experiência da angústia: o impor-
tante, o essencial é não fugir à «hora». Esta já é, para João,
o momento da glória, palavra que designa a presença mais
115
pessoal, a presença supereminente de Deus. E nesse sentido
que a voz do Pai faz-se ouvir. A «hora» é a teofania essencial
desde sua face dolorosa;. nela, Deus se mostra no homem que
se eleva na dor e supera a morte passando por ela. Este elevar-se
é julrramento do próprio princípio do mal, chamado pelo Evan-
gelist~ «Príncipe deste Mundo». Não é necessário pensar em
uma entidade precisa: a história mostra muito bem, a cada
geração e povo, o que pode significar esta expressão. Mas este
elevar-se é, acima de tudo, um atrair tudo para o seu centro,
o homem em quem se manifesta a glória, o homem teofânico.
Está a liturgia em pleno prólogo do evangelho de Páscoa, ao
mesmo tempo que é rematado o livro dos Sinais. Donde a
penumbra que envolve a cena e as palavras de Jesus. As repre-
sentações do Messias Rei e do Servo se interpenetram e cedem
lugar, sem se perder, ao Filho do homem ( cf. Jo 12,34-36),
sem que nenhuma delas se deixe limitar por suas orige!.1s no
Antigo Testamento. A «hora» é o momento da revelaçao da
verdadeira identidade de Jesus.
De toda esta densa compreensão teológica do mistério de
Jesus pode-se inferir o lugar do humano e, no humano, da. morte
no mistério pascal. Como um outro Jesus, cada homem e cha-
mado à sua vocação seminal e é só na realização efetiva desta
vocação, na trama de uma vivência pascal, que se encontra e
desvela quem é o Filho do homem. A celebração mais solene da
Páscoa é, anualmente, o momento de eleição desta descoberta.
Hoje, no Terceiro Mundo, o seu lugar é a grande massa das
populações oprimidas. Estas, na razão .direta de sua fé, mas
também de sua simples humanidade, são o Messias, o Servo,
o Filho do homem a elevar-se e mani"festar em humanidade a
glória de Deus.
Francisco Benjamin de Souza Netto
São Paulo, fevereiro de 198-1
116
Domingo da Paixão ou de Ramos
1. COMEMORAÇÃO DA ENTRADA DO SENHOR
EM JERUSALÉM
Evangelho da Procissão de Ramos: Jo 12,12·16
1. Conte::rlo da perícope
O presente evangelho faz parte da semana pascal de Jo. e um
«texto sinótico» do Quarto Evangelho, e pode ser comparado com Mt
21,1-9 par. Nos Sinóticos, a entrada de Jesus em Jerusalém (que é sua
primeira visita ai) e a purificação do Templo formam um conjunto.
E?J. Jo, o contexto é. remodelado. Conforme joão, jesus já tinha ido
varias vezes a jerusalem (2,13; 5,1), e desde o cap. 7 Ele se encontra
ai quase permanentemente. Portanto, jo precisa dar uma outra razão
que os Sinóticos, para explicar a recepção triunfal que é oferecida a
Jesus em jerusalém. Nos Sinóticos, a razão é que as multidões reconhe-
cem no profeta vindo de Galiléia o Messias esperado. Em Jo, é por
ocasião da ressurreição de Lázaro, contada imediatamente antes (11,1·
12,11), que a multidão lhe prepara esta. entrada, como está explicitamente
em 12,17-18. De modo que esta entrada, como também o sinal da
ressurreição de Lázaro, se torna mais uma razão para os fariseus ~e
fixarem na sua oposição mortal a Jesus. Eles são os representantes
da incredulidade. Entretanto, devemos ler este episódio não apenas pen-
sando em Jesus de Nazaré pelos anos 30. Ilustra também o que estã
acontecendo no fim do primeiro século, quando João publica seu evan-
gelho. Os cristãos se tornaram numerosos, mas também perseguidos
pelo farisaísmo: <Todo o mundo vai atrás dele» (12,19).
]o não dá muito peso a este episódio. Ê, para ele, um dado tra-
dicional (cf. Sinóticos), que ele utiliza para arredondar o episódio de
Lázaro (cf. v. 17-19) e para preparar o tema do interesse suscitado
por Jesus (e!. v. 20ss; e!. com. do 5• dom. da Quaresma).
2. Explicação do te::rto
No texto de Jo, não encontramos a preparação da entrada em Jeru-
salém mediante a missão dos apóstolos para conseguir uma jumenta,
como em Me 11 11·6 par. Jo coloca imediatamente em cena o povo que
vai ao encontro de Jesus com ramos de palmeira, gritando a aclamação
messiânica «I-losana», que significa «Salvai-nos» e faz parte do Salmo
118(117), salmo pascal (Hallel) (Jo 12,12-13; o!. Me 11,7-10 par.).
Ao «Hosana, bendito o que vem em nome do Senhor» - cumprimento
do SI 118,25s - Jo acrescenta algo que não está tal qual nos evange-
lhos sinóticos: «O rei de Israel» (cf., porém, Me 11J10). A partir "deste
termo, coloca em termos o motivo do burrinho do rei messiânico, ci-
tando, como Ml 21,5, o texto de Zc 9,9-10. O mais característico do
texto joanino é o v. 16, dizendo que, depois da glorificação ( = morte
e ressurreição) de Jesus os apóstolos se lembraram do fato e entenderam
que foi um cumprimento das Sagradas Escrituras. ]o gosta de insistir
que as Escrituras só foram entendidas depois da morte (glorificação)
117
de Jesus (2,17.22; 7,31; 20,9). É o Espírito que faz entender (e!. 14,26).
É, portanto, na comunhão dos que são de Cristo, que se encontra o
sentido das Escrituras. Ao mesmo tempo, isto explica por que os judeus
não entenderam (no tempo de jesus) nem entendem (no tempo de
João) as Escrituras (cf. 5,39.46s).
Portanto, jo retoma a idéia tradicional de que jesus é o rei messiâ-
nico, sentado num jumentinho, mas não no mesmo sentido que J\'lt 21,5,
pois jo omite a menção de que este rei é suave (prays), o que se
revela, em Zc 9,9, no fato de ele montar num burrinho. Em outros
termos, ]o não se interessa em descrever Jesus como o rei humilde,
mas como o «rei de Israe)}}, título que está presente no começo de
seu evangelho (1,49) e que voltará em uma discussão irônica no fim,
quando Pilatos coloca na cruz de Cristo o título «rei dos judeus» e
não quer mais mudar o que escreveu. Também, na história do pro-
cesso de Jesus, os judeus são apresentados como desistindo de suas
ambições de ter um rei, um messias: só César mesmo (19,15). Tudo
isto nos leva a descobrir a intenção de ]o de destacar o título «rei
de Israel», o que significa a mesma coisa que Messias, mas no con-
texto do Quarto Evangelho soa um pouco mais polêmico, já que a
Igreja está em discussão com os que se consideram Jsrae~ mas já não
são: o judaísmo rabínico.
O evangelho de João não dâ ensejo para uma pregação sobre jesus
corno rei humilde. Sim, como Messias, cumprindo escrituras a respeito
do rei messiânico. Em comparação com os Sinóticos, a cena perdeu
muito de seu colorido popular. !ornou-se praticamente uma mera con-
fissão de fé messiânica, mas confissão ·inconsciente, pois só mais tarde
If!mbraram-se do sentido (12,16). Ora, mesmo os fariseus unem-se a
esta confissão do messianismo de Jesus, reconhecendo que «todo mundo
vai atrâs dele> (12,19). Certamente, jo quer ilustrar também, por estas
palavras, a situação no seu tempo.
3. Lugar na liturgia
Ê sobretudo o lugar na liturgia que valoriza o presente evangelho.
E o começo da «Semana Santa». Fica patente o contraste entre o entu-
siasmo da multidão do Domingo dos Ramos e a traição na Sexta-Feira
Santa. O evangelho de joão fornece uma explicação para este contraste:
quando da acolhida de jesus no domingo de ramos, o povo e os
discípulos, no fundo, não sabiam o que estavam fazendo. Só mais tarde
entenderam (v. 16). Por enquanto trata-se de «fé por causa dos sinais»,
como explicam os v. 17-18 (não lidos na liturgia), um entusiasmo não
baseado na decisão pessoal de aderir a Cristo, mas na procura de seus
benefícios. Este nível de adesão deverâ ser superado, e poderá sê-lo
diante do «fracasso» humano de jesus, na hora de sua morte. Quando
ele tiver perdido toda atratividade, o homem se pode decidir em favor
dele, e então ele atrairá todos a si (12,32; c!. domingo passado).
Num certo sentido, Domingo de Ramos é a festa de Cristo Rei.
O evangelho de João oferece perspectivas interessantes sobre este tema,
sobretudo nos cap. 18-19 (e!. REB 37, 1977, n. 148, p. 255*). Torna
explícito que o Reino de jesus não é «deste mundo> (19,36). O texto
do cap. 12 prepara este tema. No cap. 12, jesus é aclamado como
Messias pelos judeus. Porém estamos ainda na primeira parte do Quarto
Evange}ho, o «livro dos Sinais», em que o cevento» de Jesus fica ambí-
118
guo e sujeito a mal-entendidos, já que os próprios discípulos só enten-
dem depois (12,16), - para não falar dos outros (cf. os mal-entendidos
em 3,5ss; 4,!0ss; 4,32ss; 6,31ss etc.). 'No cap. 19 estamos na segunda
parte, o <livro da Exaltação>. Ai, tudo se torna claro. jesus é Rei e
Messias, mas não no sentido em que o mundo o entende. Sexta-feira •
Santa dá a luz para entender o Domingo de Ramos. Também .todo
mundo vai atrás dele» (12,19), mas não no sentido em que o mundo
entende isto.
• O .ll!essianismo (a realeza) de jesus, celebrado no Domingo de Ramos,
e a y1:or1a sobre o mund~ pela cruz:. A ressurreição de Lázaro, que,
na visao de jo, é a ocas1ao para a manifestação popular descrita em
12,~2ss, é o anúncio da ressurreição daquele que é «Ressurreição e Vida».
É 1st~ que se celebra na idéia do messianismo de jesus: a «vida» que
ele da, como dom de Deus, na sua morte e ressurreição.
É ~vidente que este evangelho dá uma base para desenvolvimento
no sentido da superação do messianismo terrestre de qualquer espécie.
Bibllogra/ia: Ver domingo passado.
Pe. johan Konings
Porto Alegre, RS
li. A SANTA MISSA
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Is 50,4-7
O Servo de ]avé de' Dêutero-Jsaias
A leitura Is 50,4-7 foi comentada na Mesa da Palavra, Ano
A, p. 156-157. Por isso aproveita-se agora da oportunidade para
dar uma introdução mais geral na problemática dos Cânticos do
Servo de Deus Sofredor.
l. Baseando-se em argumentos históricos, doutrinais e literários a
exegese divide o livro de Isaías em três partes: cc. 1-39; 40-55; 5tÍ-66
e lhes dá os nomes de Isaías, Dêutero-Jsaias e Trito-Isaías. A primeira
parte desenrola-se em Judá, durante a segunda metade do oitavo século
aC, quando os reinos de Israel e de Judâ são ameaçados por Assíria.
Os cc. desta parte são, salvo algumas exceções, atribuídos a ]saias.
A segundlf _parte desenrola-se em Babilônia, capital dos caldeus, depois
da destrmçao de jerusalém em 587-586 e durante o cativeiro. O livro
~onhece de nome o rei dos Persas, Ciro (559-529), e o' saúda como
bbertador do povo do cativeiro. A terceira parte supõe a volta do exílio
para Jud~ e Jerusalém e é atribuída a vádos autores anônimos de épocas
diferentes.
2 Em Dêutero-lsalas encontram-se os quatro Cantos do Servo de Javé
(Is 42,1-7; 49,1-6/9; 50,4-9; 52,13-53,12). Apesar de conterem muitas
expressões e tendências encontradiças no resto de Dêutero-Isaías estes
cantos podem ser destacados. Qual é o personagem que se escond~ atrás
119
 do titulo c:servo», tão rico de: conteúdo para o pensamento cristão?
Esse é um dos problemas do Antigo Testamento mais discutidos pelos
entendidos. Têm-se formulado numerosas hipóteses de interpretação. Hâ
.... três correntes maiores.
3. A primeira vê no Servo .de Javé um indivíduo, distinto do povo
(em 49,6 e 53,3-8 ele desempenha um papel junto ao povo, enquanto
nas outras partes de Dêutero-Isaías a expressão «O Servo de Javé»
indica o povo todo!). Mas não se chegou a um acordo ao precisar
este personagem. Trata-se de uma figura do passado (Moisés; Davi ou
um de seus descendentes); ou do presente (um profeta; o próprio autor
de Dêutero-Jsaías); ou do futuro (o .i\o1essias; um rei g1orioso dos fins
dos tempos)? A dificuldade não data de hoje. Ela já aparece no Novo
Testamento: «De quem disse istó o profeta: de si mesmo ou de outro?»
(At 8,32-35).
De qualquer modo unem-se na figura do Servo de Javé traços
proféticos e reais. E ele é também salvador, sacerdote e vítima ao
mesmo tempo que - pelos seus sofrimentos - «intercede pelos culpados»
(Is 53, 12). Ele tem uma missão missionária junto a todos os povos.
4. A segunda corrente dá à expressão «Servo de Javé» um sentido
coletivo. Ela não vê no Servo um indivíduo, distinto do povo de Israel
de que se fala nas outras partes do mesmo livro. É o povo que será
luz das nações; que deverá sofrer a perseguição e a morte pela sij).-
vação dos povos. Admite-se que se trataria de um grupo pequeno de
fiéis no seio do povo. Seria o pequeno resto que permanece fiel a
Deus e que deve servir de testemunha aos demais membros do povo e
às nações.
5. A terceira corrente combina as duas anteriores. Ela dá à expres-
são um sentido representativo. Usa-se o termo: personalidade corpora-
tiva. O Servo de Javé incorporaria na sua pessoa todo o povo, seu
passado e seu futuro. O profeta que escreveu os cantos teria proje-
tâ.do nele o verdadeiro Israel. O Servo é, para ele, a incorporação per-
feita tanto da ação salvífica de Deus como da resposta do povo. Ele
será a revelação e encarnação 'messiânica ou escatológica daquilo que
há de melhor da parte de Deus e da parte da humanidade. O Novo
Testamento proclama a realização destas expectativas em Jesus de Na-
zaré, na sua vida, paixão e morte, e ressurreição.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Segunda Leitura: FI 2,6· 11
«..• obediente até a morte da cruZ»
(0 texto foi comentado na Afesa da Paltwra, Ano A, p. 157-159 e 475-477).
No contexto de uma exortação aos cristãos de Filipqs Paulo cita um
hino cristológico. Através desta citação sugere que as principais coorde-
nadas da salvação operada através de Cristo marquem a existência
cristã. Estas coordenadas aparecem na estrutura do hino.
Na doxologia «Jesus Cristo é o Senhor» em que cuJmina o hino,
dirige-se a jesus o nome que no Antigo Testamento é reservado a Deus.
120
Conforme o hino, Jesus, morto na ciuz e depois exaltado, recebe de
Deus e da comunidade o nome de «Javé». Antes Ele não tinha este
nome. Ele era Deus preexistente. Assuffiindo a natureza humana poderia
ter-se valido desta igualdade com Deus. Mas ao tornar-se homem e .._
inaugurar a Sua missão preferia apresentar-se à humanidade como servo '
de Deus e não como senhor do universo. Esta preferência não era
somente de ordem subjetiva, mas de 9rdem objetiva. Ela revela que o
homem se realiza mais na submissão a Deus do que no senhorio sobre
o mundo e o universo. A soberania , do homem somente será plena-
mente humana se e na medida que ela for serviço de Deus. O fato
que Jesus recebe o senhorio sobre o universo depois de Sua obediência
até a morte revela que nela não há nada de usurpação. Nas palavras
usadas no hino pode transparecer uma alusão à criação do primeiro
homem e ao pecado de Adão: « ... não se exclui ... a antítese implícita
opondo 'Cristo a Adão: Cristo que possuía a semelhança divina não se
apegou 'ª ela avaramente, enquanto Adão quis arrebatar, por desobe-
diência, a semelhança com Deus» (Gn- 3,5.22; Dupont, p. 430). Dando
a este Jesus nada menos do que o iseu nome próprio «Javé», Deus
revela que Ele se identifica com quem se sabe identificar plenamente,
isto é, até a autodoação na morte, 'com Deus e com a vontade de
Deus. Schoonenberg resume esta dialética na frase: «(Jesus) foi total-
mente Ele, dando-se totalmente a Deus» (p. 55). Nesta modalidade da
salvação· que se revela no modo de ·ser homem do Cristo, revela-se
também o valor objetivo das virtudes cristãs de humildade e obediênciâ:
elas criam pela abnegação de si mesmo e a dedicação a Deus e aos
outros aquele vazio que Deus quer preencher com a Sua presença e
a Sua glória.
«jesus é Javé». Esta confissão de 'fé ou doxologia não é uma di-
vinização ou deificação indevida que existia no mundo greco-romano,
em que reis e imperadores se deixavam idolatrar como deuses. Não
era uma blasfêmia para os primeiros cristãos e não o é para nós,
porque nela se professa que se procura a salvação em alguém que
deu honra a Deus e recebeu honra de Deus. «Esvaziou-se (ou :
aniquilou-se) a si mesmo... feito obediente até a morte da cruz». l\fa
cruz Jesus experimentou a desolação da parte dos homens como desp-
lação da parte de Deus: «.M.eu Deus; meu Deus, por que me aban-
donaste?» Não tendo mais nada a esperar dos homens e não querendo
atender ao desafio «Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo», EJe confiava
Sua causa ao mesmo Deus de que se sentiu desolado: «Pai, nas tuas
mãos entrego o hleu espírito». Na confissão de fé «Jesus é Javé»
professamos que Deus deu razão a Jesus e que nós também Lhe damos
razão. Jsto não é blasfêmia, porque nisso também professamos que . a
realização plena do homem existe na dependência absoluta de Deus
antes, durante e depois da morte; e que, por isso, pode-se arriscar a vida
pela glória de Deus.
Paulo quer que esta estrutura objetiva da salvação se traduza em
estruturas de vida e de convivência das comlU1idades cristãs e da Jgreja.
«Cristo 'realizou a obra de Sua redenção na. pobreza, na humildade, na
renúncia, no sofrimento livremente aceito; seu exemplo é um apelo diri-
gido à Igreja. Incumbida de propiciar 'aos homens os frutos da reden-
ção, a Igreja não pode cumprir sua tarefa por meios diferentes dos
que Cristo empregou para nos salvar»: (Dupont, p. 434).
121
•
 Bibliografia: Ci. a Mesa da Palavra, Ano A nas páginas citadas acima As
citações são de: P. S c h o o n e n b e' r g, AnlqullÓu·se a si mesmo (Fl 2 7) ·em·
Conciliam (1966/l), 42·58; J. D u p o n t, A Igreja e a Pobreza em O B a' r â ú n ã
(ed.), A Igreja do Vaticano II, p. 42~452. ' ·
,.. Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Terceira Leitura: Me 14,1-15,47 (ou: 15,1-39)
«Salvou outros!»
1. A Narração da Paixão de Marcos é, como o resto do Evangelho,
compostas de unidades literárias menores, que já existiam na tradição
oral e/ou escrita antes de serem assumidas no conjunto do evangelho.
Os motivos que deram origem a estas unidades menores nem· sempre
foram os mesmos. No caso da Narração da última Ceia "certamente têm
sido litúrgicos. No caso da Narrarão do Processo diante de Pilatos, o
gov~rnador r_o~ano, pode !er sido apologético (jesus era inocente, corno
o sao os cnstaos persegmdos; nem Ele, nem estes representam perigo
para o Estado). Em o~tros casos-.forarn parenéticos, fazendo-se da paixão_
de Jesus um exemplo para os CJistãos, especialmente para os mártires
(p. ex., o perdão e a oração de, jesus em Lc 23,34.46 e de Estêvão em
At 7,59:60). A demonstração de ._que na paixão de jesus se realizaram
as Escrituras ora é de caráter dogmático, ora de natureza apologética.
Esta origem e inspiração diversificadas das perícopes menores não
impedem que, ao serem inseridas em conjuntos literários maiores e, por
último, nos evangelhos, tenham ·sido adaptadas ao novo contexto por
pequenas modificações, acréscimos e omissõesj todos veículos do inte-
resse e da teologia próprios do(s) autor(es) das composições maiores
e dos evangelhos. A comparação pormenorizada das pericopes e dos
conjuntos fornece critérios para identificar estes interesses e teologias
próprios.
2. A Narração da Paixão de Marcos é a mais antiga versão de que
dispomos e a base daquilo que encontramos nos outros evangelhos
sillóticos. Apesar de que apresente os fatos em uma visão cristã -
pilra os judeus e romanos o sentido dos fatos era outro! - esta visão
aparece mais na composição da narração e em um reCurso discreto ao
Ailtigo Testamento do que em explícitos comentários cristãos sobrepostos
aos fatos. Podem-se destacar três linhas que perfilam o conjunto: o
caráter paradoxal do sofrimento do Senhor, .o escândalo que provoca e
os frutos que produz.
· - Marcos não disfarça o terrível paradoxo do sofrimento do· Senhor.
já em 1Cor 11,23 a noite da paixão chama-se •a noite em que foi
e~tregue». Toda a Narração da· Paixão de Marcos está sob o signo
da traiçoeira entrega. Por judas é entregue ao Sinédrio (Me 14,10.11.18.
21.42.44); pelo Sinédrio é entregue a Pilatos (15,1.10); por Pilatos é
entregue aos soldados (15,15: dez vezes usa-se o verbo paradid{Jmai!).
Os soldados O entregam à morte (e!. 15 25) .• Por fim Deus mesmo O
entrega à sua p_rôpria sorte, morrendo 'com um grÍto de abandono
nos lábios (15,34). Em" 14,41 o evangelista resmne todas estas afirma-
ções na frase: Ele é «entregue em mãos dos pecadores> (14,41).
Jesus padeceu sozinho. Não foi compreendido por ninguém e aban-
donado por todos, inclusive pelos Seus discípulos. São justamente estes
122
• •
que põem em movimento este processo crescente de abandono, de entre-
ga e de traição: judas O trai, Pedro O renega e todos O abandonam.
Em 14,50 há outro sumário destas atitudes: sendo preso <lodos O
abandonaram e fugiram». Neste momento realiza-se a palavra que jesit.s
tinha proferido quando se aproximaram do Monte das Oliveiras: «todos
vós vos escandalizareis» (14,27). A correspondência entre o prévio aviso
e a conseqüente execução ressalta o caráter paradoxal e trágico da
solidão de jesus: a traição de judas e a negação de Pedra são pre-
ditas e depois em extenso pormenorizadas: «um de vós que come comi-
go:r> (14,lS)j «é um dos Doze que se serve comigo do mesmo prato»
(14,20; cf. 14,34). A comparaçãó entre Me 14,27-31 e 14,66-72 eviden-
cia que «OS primeiros cristãos não disfarçaram nem desculparam a ati-
tude vergonhosa do chefe dos apóstolos. jesus sofre sozinho e total-
mente incompreendido. No Getsêmani, durante a hora mai.s escura da
paixão, os discípulos dormem» (Grossouw, p. 91).
Todos eles ficam desorientadOSj todos não somente perdem a co-
ragem, mas também a fé. É este o sentido bíblico de «escandalizar-se».
Tropeçaram a fé, a esperança e o amor por jesus. Ele é abandonado
mesmo. Ao realçar este abandono não se procura focalizar o aspecto
humano do comportamento dos discípulos ou do sofrimento do Senhor.
«Descobrem-se neste abandono incompreensivo - como na paixão toda
- um sentido e intuito divinos. Eles são encontrados na Escritura do
Antigo Testamento. O próprio jesus não disse: «0 Filho do homem
segue o caminho segundo dele está escrito. Isto acontece para que
se cumptam as EscrituraS» (Me 14,21.49)? Também a sua solidão era
predita. Ao saírem para o Monte das Oliveiras, o Senhor diz aos
Seus discípulos: «Todos vós vos escandalizareis, porque está escrito:
Ferirei o pastor e as ovelhas se dispersarão> (Me 14,27; e!. Zc 13,7)
(ibid.). Nesta «noite _em que Ele foi entregue> todos se perdem: •o
povo, os fariseus, os sumos sacerdotes, Judas, Pedro, os doze. É o
paradoxo por excelência: entregando e abandonando Jesus encontram-se
entregues ao abandono. É no âmago deste paradoxo que aparece aquele
mister divino misterioso que repetidas vezes ressoa na Bíblia e acom-
panha toda a paixão de Jesus. Deus permite que, nesta noite, todos
se enganem em Jesus, se escandalizem dele e se percam, para que - ao
preço do sacriflcio de jesus - a reconquista da fé n'Ele, da esperan_ça
e do amor, fosse uma verdadeira ressurreição desta perdição, ou seja,
uma salvação divina, puramente gratuita, manifestação e adesão aos
caminhos de Deus.
«Sabemos hoje por que os discípulos se escandalizaram e fugiram.
Era, clizemos, porque a sorte de jesus não correspondia às expectativas
judaico-nacionalistas e terrestre-messiânicas por eles compartilhadas crim
a grande massa do povo. Isto é verdade. Mesmo assim seria melhor
dizermos: a fé deles naufragou, porque experimentaram na carne que
os Ca1J1:inhos de Deus não são os nossos caminhos. Esta formulação
é prefeiíve1J porque aplica-se também a nós; enquanto a outra, apesar
de certa, historia eJ pois, neutraliza o motivo do escândalo e lhe tira
a atualidade para nós hoje. Porque nós não compartilhamos aquelas
'expectativas judaico-nacionalistas'. Certo 1 Mas compartilhamos com eles
desejos, angústias, pensamentos e ideais por demais humanos. Sofremos,
pois, o mesmo mal> (ld., p. 92).
Deus quis salvar-nos deste mal por uma vítima do mesmo, pafa
que o reconhecêssemos e dele ressuscitássemos por uma metanóia que
atinge de tal maneira o homem e a humanidade que encerre o começo
123
de uma nova era: aquela da decisiva e definitiva vinda do Reino de
Deus aos homens e à humanidade. Pontos altos da Narração da Paixão
de Marcos são as perguntas do sumo sacerdote, chefe do Sinédrio:
«l'ls o Messias, o Filho de Deus bendito?> (14,61) e de Pilatos: «TU
és o rei dos judeus?» (15,2.9.12; cf. 18.26.32). Nos dois casos jesus
responde afirmativamente a estas perguntas. Mas estas respostas, _em vez
de levarem a reconhecimento e respeito, provocam a mais vil gozação
(14,65; 15,16-20). Da parte dos romanos jesus é preterido em favor de
um assassino e tratado como e executado com «delinqüentes comunS>.
Da parte dos judeus repetem-se em forma de escárnios as falsas acusa-
ções alegadas no processo diante do Sinédrio: a destruição e reconstru-
ção do templo (14,58 e 15,29-30) e a dignidade messiânica (14,61-62
e. 15,31-32). Duas vezes jesus é desafiado para mostrar a veracidade
de Suas pretensões, descendo da Cruz (15,30.32). Toda a maldade
humana dos acontecimentos transparece no escárnio: <Salvou outros,
a. si mesmo não pode salvar». O verdadeiro motivo de sua eliminação
está ai: não conseguiram conviver com um homem que veio libertar e
salvar para va1er. Tais libertadores e salvadores de verdade, os homens,
a sociedade, a humanidade difici1mente suportam. Tratando jesus da
maneira como o fizeram, o homem e a humanidade mostram o seu lado
sinistro. Simbolicamente esta escuridão envolve os eventos que - pa-
radoxalmente - não são os derradeiros da existência de jesus. O
seu último grito: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?»
faz rasgar o véu do templo que não mais abrigará a presença de
Deus, e abre os olhos e os lábios do primeiro homem que, no Evan-
gelho de Marcos, profere a confissão cristã da fé: «Na verdade este
homem era o filho de Deus;;.. Por sinal, este homem é um pagão e
de alguma maneira cúmplice da execução de Jesus. Nestes dois eventos
retomam-se de novo os dois componentes das acusações e dos escárnios:
acusações escárnios eventos
na morte
de jesus
destruição do templo 14,58 15,29-30 15,38
e'i sua reconstrução
Messias Filho de Deus 14,61-62 15,31-32 15,39
Em 14,62 jesus pretendia ser o Messias das profecias dos profetas
e ao mesmo tempo o Filho do homem das visões dos apocallpticos.
Em 14,58 atribui-se-Lhe a pretensão de destruir o templo feito por
mãos de homens e de edificar em três dias outro não feito .por . mãos de
homens. Em .uma seqüência desconcertante de fatos e tratos estas «pre-
tensões;;. são descartadas uma por uma, esvaziando-se no último grito
de abandono: «Meu Deus .. ., por que ..• ?»
~ Quando Marcos escreveu a sua Narração da Paixão e o seu Evan-
gelho, ele e a comunidade cristã jã sabiam a resposta. Não somente a
sabiam, mas eram, pela graça de Deus e a fé em jesus ressuscitado,
a, resposta viva a esta pergunta derradeira.
Bibliografia: Além de vários comentários, especialmente: W. K. O r osso u w.
De Lljdensverhalen, em: ld., Een Overlevende uit de Voortljd, Roermond 1967,
p. 83-120; A. Van b o y e, Les réclts de ta Passion dans tes évangltes synoptJques,
em: AdS 11/19 (1971)! JS.67; P. B e n o f t, Paixão e Ressurreição de Nosso Senhor
Jesus Cristo. Petrópo is 1971; L. B o·f f, Paixão de Cristo, Paixão do Mundo,
P:trópolls 1977.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
124
• •
Sugestões para a Homilia
O sentido profundo da Semana Santa •
Com o domingo de ramos se inicia a Semana Santa, cha-
mada pela Igreja de a Grande Semana. Nela comemoramos os
principais mistérios do Cristianismo. Aos nossos olhos, são apre-
sentados também os mistérios mais profundos de nossa condição
humana. Três considerações centralizam nossas atenções nestes
dias: Quem é Deus e o que pode Deus? Que é o homem e
o que pode o homem? Qual é o comportamento de Deus face ao
comportamento do homem? Se prestarmos atenção, veremos que
a Semana Santa nos representa, em forma de drama, a resposta
a estas três grandes questões.
1. Quem é Deus e o que pode Deus?
A fé cristã testemunha resolutamente: Deus é um ser cujo
rosto está voltado sempre para o homem. É um ser que nos
ama e nos acompanha e é cioso de nosso amor. Ele nos ama
tanto que se id~ntificou com nossa própri.a realidade e se fez
homem. Quis compartilhar de tal forma de nossa situação que
ninguém pudessê levantar alguma queixa contra Ele, por não
saber o que significa sofrer e se desesperar na vida. Tudo isto
fez parte de sua realidade, como o meditaremos nesta Semana
Santa.
O que pode· Deus? Deus pode abaixar-se tanto a ponto de
se tornar escravo e o último dos homens. Mais; ele pode chegar
a morrer e a morrer de uma forma ignominiosa como um mal-
feitor e bandido. Nós cristãos estamos de tal maneira habituados
a estas verdades que já perdemos o sentjdo de escândalo que
elas significam. O que aqui se afirma é algo de inaudito. Se
a Escritura sagrada não no-lo dissesse e não o testemunhasse
como fato hislóri.co, seria considerado blasfêmia e nós as pes-
soas mais ímpias que surgiram na história. E contudo trata-se
de uma verdade' histórica: Deus, realmente, se fez o último dos
homens. Em jesus se manifestou um Deus sofredor e sedento,
que corre atrás da ovelha perdida, que fica a esperar pelo filho
pródigo e que S@ alegra mais com um pecador que se converte
do que com 99 justos que já estão salvos.
Que um Deits se faça homem, já o especularam e afirmaram
também os antigos egípcios e gregos. Porém que um Deus, ao
fazer-se homem_,· participe de nossa condição fraca a ponto dl!
morrer como um malfeitor, de nos amar até o fim, mesmo sendo
125
seus 1mm1gos, isso tudo é um escândalo para o bom-senso que
quer conservar-se razoável. Bem dizia Paulo: Deus transformou
em loucura a sabedoria deste mundo, quer dizer: aquilo que nos
parece de todo impossível, se tornou, em Jesus Cristo crucificado,
realidade histórica.
2. Quem é o homem e o que pode o homem?
Que é o homem para que Deus o ame desta forma? E
a questão que está latente em todos os textos que iremos me-
ditar na Semana Santa. Devemos reconhecer que esta pergun-
ta é para nós mesmos um mistério, pois não temos razões sufi-
cientes para respondê-la. E uma surpresa para nós mesmos· o
fato de sermos tão importantes para Deus, a ponto de o Filho
de Deus fazer-se homem como nós. Por isso, somente a partir
de Deus compreendemos, de fato, quem somos. Sem a encarna-
ção do Filho eterno, jamais saberíamos de nossa inestimável
dignidade e da riqueza que carregamos em vasos de barro.
A Escritura responde da seguinte forma à pergunta - que. é o
homem? - : Ele é a imagem e semelhança de Deus, filho de
Deus, templo do Espírito Santo e lugar de encontro do próprio
Deus Trino. Numa linguagem mais nossa significa: o homem
é um deus em miniatura, um deus por graça. Ele representa
Deus dentro do mundo e mostra, em si mesmo, o rosto indes-
critível do Deus Trino. Na criação deve continuar a obra cria-
dora de Deus, na medida em que transforma a terra em paisa-
gem humana e fraterna.
E o que pode o homem? Pode muito e o mostrou na his-
tória; pode, realmente, ser o colaborador de Deus, levando a
criação de perfeição em perfeição. Mas também pôde transformar-
se na caricatura de Deus. Esbanjou o seu reino e tornou-se lobo
para o outro irmão. Quando Deus mes!Jlo resolveu fazer-se com-
panheiro humano, não foi reconhecido e foi morto como um
agressor da ordem deste mundo. Isso pode também o homem.
A Semana Santa significa outrossim juízo de Deus sobre o
homem e suas práticas.
3. Como reagiu Deus face à ação do homem?
A Semana Santa narra, em seu núcleo essencial, a mise-
ricórdia incomensurável de Deus. Deus poderia reivindicar seus
direitos divinos e humanos. Poderia fazer justiça e liquidar-nos
a todos como filhos rebeldes e maus. Teria todas as razões
126
•
para isso. Mas não o fez. O amor triunfa sobre a justiça, a
compa1xao sobre o juízo frio. Ele deu um sentido redentor à
sua condenação e um significado de reconciliação à sua morte
violenta na cruz. Aquilo que fora expressão da rejeição humana
- a cruz - transformou-a em símbolo da misericórdia, da
comunhão libertadora de Deus para com os pecadores. Deus
assim nos conquistou com a superabundância e a surpresa de
seu inaudito amor, na forma do perdão e da misericórdia. Desta
maneira Deus se manifestou ainda maior e mais impossível para
a compreensão humana. Onde lhe demos a morte, Ele nos mostrou
a vida. Ressuscitou para que nós também pudéssemos ressuscitar
e estar sempre com Ele.
Todos estes mistérios nos são oferecidos à contemplação
nesta Semana das semanas. Tomemo-nos tempo para rezar e
meditar. Basta olharmos para a cruz e aí temos tudo presente:
quem é Deus e o que Ele pode: fazer-se homem e morrer sacri-
ficado por amor; que é o homem e o que ele pode: um deus
em minúsculo no mundo e, ao mesmo tempo, o matador de
Deus; qual o comportamento de Deus ante o comportamento do
homem: misericórdia, compaixão, perdão e vida nova e ressusci-
tada. O Domingo de Ramos inicia este drama que culminará,
feliz, no outro Domingo da Ressurreição. Convida-nos a acom-
panhar estas cenas todas e termos os mesmos sentimentos que
Jesus teve. Incita-nos ao seguimento do Senhor.
Leonardo Boff, O.F.M.
Petrópolis, RJ
127

Quinta-Feira Santa ··
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Ex 12,1-8.11-14:
Comentário na Mesa ela Palavra, Ano A, p. 164.. 165.
Segunda Leitura: teor 11,23-26
f L
«Com efeito, eu .me,smo recebi do Senhor o quer vos transmiti»
Estes versículos, que se inserem no contexto mais amplo de l Cor
11,17-34, constituem provavelmente a mais antiga fixação escrita das
palavras da instituição da eucaristia. Trata-se, como Paulo o afirma,
de uma tradição recebida e transmitida. As palavras, fundamento de
toda a argumentação paulina contxa os desvios qi.te surgiram, soam
como que rituais, estereotipadas, feitas à base de repetição e para a
repetição cúltica da ceia.
Em lCor 11,17-34, 'Paulo visa fundamentar a verdadeira forma da
celebração eucarística, ameaçada por divisões e disctiminaçõe: que apa-
receram na comunidade de Corinto. Com efeito, Paulo diz: «JUÇO dizer
que, quando vos reunis em assembléia, há entre vós divisões~ (11,18).
A eucaristia, sacramento da unidade, tornara-se ocasião de discórdias.
E mais, Paulo afirma: «enquanto um passa fome, o~ outxo fica embria...
gado» (11,21). O partir do pão não levava ao repartir do pão. A
celebração se constituía' em afronta aos pobres que nada traziam por
nada possuírem. Para eliminar tais abusos, Paulo ap.resenta as palavras
textuais, pré-paulinas, da instuição da eucaristia.
De início, o Apóstolo indica as circunstâncias precisas do aconteci-
mento: «Na noite em que foi entregue» (11,23). Ele se refere não à
última ceia, mas à noite em que o ·Cristo foi entregue, noite que pôs
à mostra toda a maldade humana, a traição de Judas, a deserção dos
discípulos, a negação de Pedro, mas, ao mesmo tempo, deu origem ao
supremo gesto de amor de Cristo, a eucaristia, que sintetiza todo o
sentido de sua vida e de sua morte.
Nesta ocasião, «o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar
graças, partiu e. disse: Isto é o meu corpo por vós» (ll,23-24), expres-
são mais tarde explicitada por Lucas: «dado por vós> (22,19). O
Apóstolo se refere ao corpo de Cristo entregue à morte na cruz, pre-
sente aqui sob o véu e sim bolo do pão partido na ceia. O pão partido
e o vinho derramado tornam presente o ato sacrifical e expiatório da
morte de Ctisto e comunicam o seu fruto aos que executam a ordem
dada por Cristo: <Fazei isto em memória de mim> (11,24-25). Paulo
repete a ordem duas vezes, após as palavras sobre o pão e após as
palavras sobre o vinho. Isto porque, ao que parece, as duas partes
da celebração eucarística estavam encaixadas entre o começo e o fim
da reunião e refeição comunitárias. Mateus e Marcos eliminam a ordem
inteiramente: A própria celebração atestava a realização da injunção.
A expressão «em memória de mi111> não significa uma simples
recordação ou lembrança. Ê uma celebração que realiza o que recorda,
torna presente a obra salvífica do Cristo. A eucaristia anuncia e pro-
128
• . i. .
clama a morte de Cristo e atualiza a força salvífica desta morte «até
que Ele venha» (!Cor 11,26). Com esta afirmação, Paulo relembra
que aquele que sempre de novo se entrega no pão e no vinho é o
Vivo, o Exaltado, o Ressuscitado, que um dia se manifestará em poder
e glória. Este fato é recordado na Anâmnesis da Missa:· «Anunciamos,
Senhor', a tua morte; proclamamos a tua ressurreição e esperamos a
tua vinda gloriosa». A eucaristia está incrustada entre dois pólos, a
morte e ressurreição de Cristo e sua futura manifestação.
Nestes versículos, tão plenos de significado, Paulo ensina que a
existência de divisões e discriminações é um contratestemunho à cele-
bração eucarística, sacramento do amor de Deus e da unidade dos
fiéis. A fração· do pão vai de par com a comunhão fraterna (At 2,42).
E mesmo mais, esta é condição daquela. Para que uma comunidade possa
celebrar dignamente o mistério eucarístico é necessário que ela se esforce
para formar uma verdadeira familia cujos membros 'se considerem real...
mente como irmãos. Assim como o batismo pressupõe a fé, da qual ê
sinal, assim também a eucaristia pressupõe a caridade, da qual é a
expressão. Já o afirmava Santo Tomás de Aquino: <Como o batismo
é chamado sacramento da fé, assim a eucaristia é chamada sacramento
da caridade, que é o vínculo da perfeição» (Summa Theologica, 111,
q. 73, a. 3).
Bibliografia: Os comentários de J. 11 u b 'Y. E. W a 1 ter, J. H e r 1 n g, M.
E. T h r a J I. S. L y o n n e t, A trindade, plertitude da lei, Ed. Loyola 1978; J.
J e r e m 1a s, Isto é o meu t:01]JO, Ed Paullnas 1978; R. J oh a n n y, A eucaristia,
caminho de ressurrei~ão, E.d. Paullnas 1977.
Pe. Ga)uiel Selong, S.V.D.
·Rio de Janeiro, RJ
Terceira Leitura: Jo 13,1·15
«Dei-vos um exemplo para que, como eu vos fizJ também vós o façais»
A estrutura geral do quarto evangelho é comumente apresentada
da seguinte forma: prólogo (1,1-1~), livro dos sinais (1,19-12,50), livro
da exaltação (13,1-20,29), epilogo (20,31J..31). Por conseguinte, com o
capítulo 13 João inicia a segunda parte de sua obra, designada como
o livro da exaltação ou glorificação, pois assim iintitula o autor a
morte de Cristo.
Nos sinóticos a glória de Cristo, isto é, a manifestação da pre-
sença, esplendor, poder, magnificência de Deus nele, se revelam na cena
da transfiguração (Lc 9,28-36, especialmente o v. 32: <Ao despertarem
viram a sua glória»). O quarto evangeJista omite tal cena, pois para
ele a glória de Deus se manifesta na pessoa do Cristo (Jo 1,14: •E
o Verbo se fez carne e tomou sua tenda entre nós e nós vimos a sua
glória ... -.), em todo o seu ministério público (Jo. 2,11: «Este inicio
dos sinais, Jesus o fez em Caná da Galiléia e manifestou a sua glória
e os seus discfpulos creram nele») e o que é mais surpreendente,
esta glória se manifesta na cruz (Jo 17,1: <Pai, chegou a hora, glo-
rifica o teu Filho para que o teu Filho glorifique a· ti>).
A esta glorificação mediante a morte, o çvangelista se refere logo
de inicio em 13,1 (<Antes da festa da Páscoa, sabendo jesus que che-
gara a sua hora de ascender deste mundo ao Pai, tendo amado os
seus que estavam no mundo, amou...os até o fim»). Neste versículo,
aparecem três alusões à morte de jesus, isto é, nos termos «hora~,
129
~-
r--- ---
11: «ascender» e «até o fim». Com efeito, o termo «hora» no quarto evãn-
gelho não designa' um 1momento determinado do dia (como nos sinó-
11, ticos), mas possui uma significação simbóJica e teológica e engloba a
~! morte e glorificação do Cristo (7,30; 8,20; 17,1). Identicamente, o verbo
I! «ascender» (levantar, e1evar) já ocorre em 3,14 como designação da
cruz e exaltação («Como Moisés elevou a serpente no deserto, assim
é necessário que _o Filho do Hon1em seja elevado»). Finalmente, a
expressão «até o fim» encontra um eco nas palavras derradeiras do
Cristo na cruz: «Está findo> (19,30).
Esta visão do evangelista que concebe a paixão e morte do Cristo
como a sua glorificação é ·paradoxa]. Para ele, a humilhação suprema
do Cristo é a sua exaltação, a crucifixão considerada uma ignomínia
(Dt 21,23; Gl 3,13) ·é a sua gJorificação. Deus mostra o seu fulgor insus-
tentável naquele que se tornou o servo ·de todos., Aquele que morreu
no patíbulo de malfeitor, tornou-se o que de mais elevado existe. Em
outras palavras, temos aqui uma interpretação de glória ·radicalmente
diversa da glória ~humana. Enquanto que os grandes senhores deste
mundo se cercam do brilho da riqueza ou da honra do poder, Deus
revela o seu esple:ridor na baixeza total e na entrega absoluta da cruz.
Tal apresentação .conduz necessariamente a uma inversão de valores
na vida cristã.
O capitulo 13 do quarto evangelho é composto de três cenas: o
lava-pés (13,1-17),' o anúncio da traição de Judas (13,18-30) e a pro-
clamação do novo, mandamento (13,30-38). Seguindo o seu gênio peda-
gógico e dramático, joão contrasta e acentua o serviço e doação do
Cristo pelos seus ·(13,1-17) e o amor que deve ser a norma e o cri-
tério da vida cristã (13,31-38), intercalando entre as duas partes uma
cena de sombras e trevas, a traição de judas (13,18-30, particularmen-
te o v. 30: «Tomando então o pedaço de pão, judas saiu imediata-
mente. Era noite»). Entre duas cenas de luz, está incrustada uma cena
da «noite», termo que no quarto evangelho é empi:egado para designar
o reino da maldade, da mentira, do ódio (jo 11,10) e aqui indica a
traição por um dos Doze. ·.
Assim o lava-pés introduz, antecipa e prefigura a crucifixão. Ambas
as cenas se assemelham, pois ambas são atos de hu_mildade e de serviço,
ambas procedem do amor de Cristo pelos seus. Ei mais, a purificação
dos pés dos discípulos representa a sua purificação ·pelo sangue de
Cristo. Através do lava-pés, os apóstolos se tornam participantes _da
obra salvífica do Cristo: «Se eu não te lavar, não terás parte comigo»
( 13,8), participação esta que se realiza em primeiro lugar pelo batismo
a que alude 13,10: «Quem se· banhou não tem necessidade de se lavar,
porque está inteiramente puro». Com efeito,. através do batismo, como
diz Paulo, o cristãó é «sepultado com o Cristo na morte para que, como
o Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim
também nós vivamos vida nova» (Rm 6,4).
Paiúo (!Cor H,23-26) e os sinóticos (MI 26,26-29; Me 14,22-25
e Lc 22,14-20) nos trazem o relato da última ceia que Jesus realizou
com os seus discíj)ulos, à véspera da morte. Nesta ocasião, jesus re-
sumiu o sentido de sua vida e de sua morte nos. sinais do pão e do
vinho. O pão partido tornou-se o seu próprio corpo entregue à morte
pelos seus. O vinho tornou-se o seu sangue derramado para estabelecer
uma nova aliança ·entre Deus e a humanidade.
Em jo 6,11-13, isto é, no contexto da multipJicação dos pães, o
evangelista alude às palavras da instituição da eucaristia. Ali aparecem
130
as expressões «tomou os pães>, crendendo graças>, «deu-lhes>, «do mes-
mo modo», «recolhei» e «fragmentos» (termos estes que no livro da
Didaqué 9,4 designam respectivamente a primeira parle da celebração
eucarlstica e o pão nela empregado). A observação feita pelo Cristo <a
fim de que nada pereça» é um eco do respeito da comunidade pri-
mitiva pela eucaristia (!Cor 11,17-34).
No capítulo 13, o evangelista pressupõe o relato da instituição da
eucaristia e concentra toda a sua atenção no sentido profundo da
mesma, isto é, o imenso amor de Deus para con~sco. Como um ver-
dadeiro artista, ele revela este amor num gesto simples e ao mesmo
tempo comovente, o lava-pés: O Cristo se levanta da mesa, depõe. o
manto, toma uma toalha, cinge-se com ela, coloca água numa .bacia,
lava os pés dos discípulos e os enxuga com a toalha com a qual estava
cingido. Na conclusão, vem a pergunta e a advertência de Cristo: <Com-
preendeis o que vos· fiz? Vós me chamais de Mestre e de Senhor e
dizeis bem, pois eu ·o sou. Se, portanto, eu o Mestre e o Senhor vos
lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns dos outros> (13,12-14).
Através deste gesto, o Cristo não apenas se tornou o servo de
todos mas também o modelo pelo qual devemos pautar a nossa vida.
E1e tiiostrou como devemos realizar em nossa vida o seu seguimento,
colocando-nos ao serviço dos outros. O cristão, como diz Paulo, é o
servo dos outros (OI 5,13). A exemplo do Cristo, este amor sincero
pelo próximo deve ser levado até às últimas conseqüências, caté o fim>
(Jo 13,1), isto é, se necessário, até à morte.
Bibllograjia: Os comentãrlos de R. E. B r o w n, R. S ç h n a e ·k e n b u r g,
H van den Bussc·he, J. N. San ders, R. H. Llgbtf_oot. J. Konings,
Eiicontro com o quarto evangelho, Ed. V.:02es 1975; P. d e 1 a C a 11 e, A teologia
do quarto evangelho Ed. PauJinas 1978; C. H. D o d d, A lnterprela;ão do quarto
evangelhíl, Ed. PaulÍnas 1978.
Pe. Gabriel Selong, S.V.D.
Rio de Janeiro, RJ
Tema Prlnclpal
ACEITAR UM CRISTO FRACO E VULNERAVEL
,.
, Sugestões para a Homilia
Introdução
Pensando em jesus, O vemos muitas vezes · com traços bem
divinos. Não falamos tanto do homem de Nazaré e sim do Filho
de Deus Pai. E ·mesmo falando do homem jesus, não raras
-!
vezes aparece no 1fundo algo de sua divindade. Dizemos que
' jesus é homem e; no entanto, O vemos mais como Deus. ~
claro que não podemos negar estes aspectos, mas, na nossa lei-
tura dos evangelhos, nos colocam às vezes diante de sérias
dificuldades.
Temos medo, parece, de ver o lado humano de jesus, medo
de aceitar a divindade em aparência humana. Pensamos às vezes
131
que considerar Jesus como homem, como um de nós, é falta de
respeito para com sua dignidade de Filho do Pai.
Será que o Verbo não pode mais tornar-se homem? Será
que a divindade ou a glória de Deus deve aparecer em sinais
extraordinários, em pessoas e acontecimentos incompreensíveis?
Corpo
1. Problema de Pedro? problema nosso
Este modo de pensar a respeito de Jesus de certa forma
desfigura sua pessoa. Mas este já é um problema antigo. O
evangelho de hoje mostra-nos isto de um modo muito claro.
Jesus se apresenta aqui de uma maneira bem humana. Não é
ninguém poderoso ou forte e s"m pequeno, escravo que lava
os pés dos outros, alguém que serve e se . curva diante dos
outros: «É isto que eu quero fazer para vocês, é isto que eu
quero ser: totalmente insignificante».
Importante é que Ele faz isto justamente «sabendo que
chegara a sua hora». O fracasso total de sua missão está bem
c~aro diante de seus olhos. E Jesus não quer salvar as aparên-
cias. Assume o fracasso, não em fatalismo, porque não tem outro
jeito. Assume de uma maneira muito especial sua condição
humana.
Pode ser que esta idéia nos choque. Pode ser que tenha-
mos dificuldade de acostumar-nos com ela. O evangelho nos
mostra que também Pedro não se sentia bem, com isso. «Não
pode, o senhor lavar meus pés».
A resposta de Jesus é bem clara: «Se você não aceitar isto
se preferir um Cristo glorioso em vez de um com rosto humano'
suado, insignificante, um .Cristo fraco e vulnerável então não hâ
jeito para você; não terá comunhão comigo, de f~rma alguma».
E isto é demais para Pedro. Logo reage: «Então, Senhor, ·
ace to a sua insignificância». Infelizmente parece mais uma rea-
ção de impulso pois pouco mais tarde ele mostra que ainda tem
bastante dificuldade com este Jesus fraco e humano. Quer impe-
dir a sua prisão e em seguida diz que nem O conhece.
_ Custa para aceitar um Cristo que parece tão pouco Messias,
tao pouco Deus. Só palavras aqui não bastam.
2. Comunhão com Cristo e com os irmãos no lava-pés e na eucaristia
Com esta desumanização de Jesus corremos também o risco
de desumanizar a vida cristã e portanto a salvação. O cristia-
nismo poderia tornar-se assim algo de fora do mundo. Entre-
132
tanto não há outra coisa que mostra Cristo tanto do que seus
fracassos no mundo, os fracassos dos homens, o fato de eles
serem marginalizados, injustiçados e perseguidos. Jesus justamen-
te identificou-se com isso.
É isto que Ele quis mostrar num gesto simbólico, tornando-
se um escravo que lavou os pés dos apóstolos.
É esta também a tarefa dos cristãos, atendendo ao apelo de
Jesus: «Dei-lhes o exemplo para que, como eu fiz, também vocês
o façam».
Na Eucaristia realizamos, ou pelo menos deveríamos reali-
zar, a mesma coisa. O pão e o vinho que Jesus tomou e deu
aos seus amigos é o mesmo gesto de assumir a tarefa de 'ser
para os outros'. «Este é meu corpo, entregue por vocês; este é
meu sangue derramado por vocês. Aqui estou eu para vocês.
Fiz-me pequeno em suas mãos».
E aqui também Jesus nos convida e nos adverte: «Façam
isto em minha memória». Cristo está aqui, antes de tudo, na
doação ao outro, Só isto é verdadeira comunhão.
Conclusão
Nós cristãos que temos tanta dificuldade com um Cristo
tão humano e tão fraco, sentimos por isso também tanto pro-
blema em celebrar realmente Eucaristia, realizar comunhão entre
nós. Estamos por demais presos às nossas idéias de um Cristo
glorioso e de uni «Ião sublime sacramento»,
Devemos nós fazer também o nosso :Êxodo, sair da situação
bem conhecida, embora não sem problemas, sair do nosso Egito
e enfrentar o deserto para chegar à Terra· Prometida da ver-
dadeira comunhãq, da verdadeira Eucaristia.
Geraldo van Buul, O.F.M.
Santos Dumont, MO
133
 •
Sexta-Feira Santa
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Is 52,13-53,12'
<0 Senhor descarregou sobre ele as falias de todos nos»
O quarto cauto do <Servo de. Deus Sofredor» faz do profeta Isaías
um evangelista antes da hora, como dizia São Jerônimo.
· O canto começa (52,13-15) e termina (53,llb-12) com um oráculo
de Deus. A parte central é uma descrição do sofrimento do servo e
revfJa o motivo do mesmo. O oráculo inicial é um resumo muito breve
da sorte paradoxal do Servo. Ele terá êxito e será exaltado (v. 13);
até os homens mais " famosos do mundo assumirão uma atitude de
espanto e respeito diante dele (v. 15), porque a exaltação segue-se a
uma profunda humilhação e a sofrimentos indizíveis: (v. 14).
O e. 53 inicia-se com uma dupla pergunta retórica. Nela acentua-se
a ten.são provocada pela sorte paradoxal do Servo, evocada pelo oráculo
anterior em que se afirma que Deus mesmo- o salvará da desgraça.
Somente o poder de Deus serâ capaz de fazer do sofredor desfigurado
um sinal para as nações (cf. 52,10; 49,6).
Pelo recurso literário da pergunta retórica, dirigida ao ouvinte ou
leitor deste texto, este mesmo é obrigado a desempenhar um papel
ativo no drama que se desenvolve diante de seus olhos. Somente pela
sua fé será capaz de entender a ação sa1vífica de Deus, reservada ao
iuturo. No decorrer do teXto ele é envolvido de uma maneira ainda
mais radical, porque predomina a primeira pessoa·f do plural (cf. vv.
1.2-3.4-5.6), que o inclui nas considerações acerca do Servo. .
Em vv. 2-3 descreve-se a vida sofrida do S~rvo, que não tem
nenhuma atração. Pelo contrário! Tudo nele é miséria e sofrimento.
Isto faz dele um marginal da sociedade, a qual o evita e o olha como
alguém atingido por uma praga divina.
Os vv. 4-6. contêm, por isso, uma surpresa embaraçosa: aquele de
quem nós nos .desviamos por medo de sermos atingidos pela mesma
~ praga divina - é isto o sentido da expressão hebràica «cobrir o rosto
diante dele» - foi de fato ferido pela mão de Deus por causa dos
1 pecados nossos: «0 Senhor ·descarregou sobre ele as faltas de todos
l
nós» (v. 6b). Sem o percebermos, aplicamos ao caso dele a convicção
de que doença e desgraça sejam castigos merecidos de erros pessoais.
tramas tão preconceituosos e hipócritas como os amigos de Jó ! Por
isso ace.ntua-se nos vv: 7-9 a inocência do Servo (v. 9), que assume
seu sofrimento sem queixumes (v. 7). Esse sofrimento não é mais, nestes
versículos, conseqüência de doença, mas de mau trato e perseguição
que o levam à morte: <Ele foi morto pelos pecados do povo> (v. Sb).
Apesar da impressão de que tudo tivesse acabado com esta morte
infame, surge a hora da glorificação. Todo mundo será testemunha da
grandeza de Deus, quando Ele mudar a sorte do Servo. o:Todo mundo~
encerra todos -aqueles que em vv. 1-6 são indicados com a primeira
pessoa do plural. Provavelmente deve-se pensar em primeiro lugar no
povo de Jsrael a quem o profeta destinou a sua mensagem. Mas abran-
ge mais. Os reis e nações de 52,15 evocam o universalisfno da men~
134
sagem do Servo. Em última análise o profeta) retomou nesta passa-
gem um tema que em suas grandes linhas é clássico na Bíblia: Deus
revela a Sua grandeza libertando da humilhação pequenos e humildes,
e esta salvação não conhece fronteiras. -
Inevitavelmente surge a questão que o funcionário de Candace já
dirigia ao diácono~ Filipe: oetA respeito de quem· o profeta falou isso?
Dele mesmo ou de, outro?» (At 8,34). A resposta não é fácil.
Não se impõe identificar o Servo simplesm·ente com um determi..
nado indivíduo ou grupo que existiria na realidade histórica passada
ou contemporânea ç:>u mesmo futura e que reuniria em si todos aqueles
traços que se encontram nos quatro cânticos do Servo. Melhor seria
s~por. que o A. tenha idealizado um indivíduo. ou;,grupo que conhecia ·da
história. Em outras palavras, o Servo de Deus Sofredor não há de
ser identificado simplesmente com aJguma figura histórica mas incor-
pora ideais e concepções religiosos que podem ter se ;ealizado · em
vários indivíduos ou grupos históricos. Nesta hipótese o Servo funciona
como tipo, uma espécie de símbolo, que pode ter tido uma origem
concret'! na história passada ou contemporânea, Il}as que a transcende e
se reahza sempre .de novo, quando um individuo ou grupo incorpora
.estes mesmos ideais e concepções. Este indivíduo ou grupo torna-se,
no caso, Servo de ]avé.
O título não é, pois, reservado a este ou aquele indivíduo ou
grupo determinado. ·E os cristãos não forçaram O texto quando. o apli-
caram a Jesus, qu_e por seu sofrimento expiatório e sua ressurreição
.se tornou o Servo de Deus Sofredor por excelêl}cia, luz para judeus e
pagãos. Através dé sofrimento pelos outros che'gar à glória de Deus
e dar-lhes testemUnho desta glória é o cerne. de ser-servo-de-Deus
{53,10.11). O que .o profeta viu como ideal, se 'tornou realidade histó-
rica em jesus. O ser-servo-de-Deus à maneira que o profeta idealizou
e jesus realizou foi divinamente autenticado pela ressurreição. Onde
se encontrar. um sérvo de Deus, ele glorificará 'à Deus por seu sofri-
mento em favor de outros e será glorificado por Deus. E vice-versa.
Porque, aquilo que~ era para o ·profeta pré-visãÓ em relação a Jesus,
1
é para nós, cristãos, reprodução por meio de uma participação na
sorte de jesus. Este princípio foi formulado explicitamente por Paulo:
«Agora eu me alegro pelo que tenho sofrido :Ptir vocês. Porque, por
meio dos meus sofrimentos físicos, eu ajudo a completar o que ainda
falta aos sofrimentós de Cristo, a favor da Igreja, o Seu corpo» (Cl
1,24). Por isso, Paulo não hesitou em aplicar à sua própria vocação
e missão as profecias do Servo de Deus Sofredor (cf. At 13,47; OI
l,15s; etc.). E há i:.indícios de que esta aplicação é extensiva a todos
os cristãos. "
Bibliografia: Atem ide comentãrios: \V. Q ui n t e n s, · em Oetuigenls 13 ( 1968-
1969), 116-121; R. C., 1 AI. Ruijs, De Slrukluur van de Brief aan de Romeinen,
Nijmegem 1964. Outr::is Pistas Exegéticas sobre o texto na ~lesa da Palavra, Ano A
(L. Garmus) e Ano B, .p. 172-173 (R. Ruijs).
' Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Segunda Leitura: Hb 4,14·16; 5,7-9
Pistas Exegéticas. desta leitura na J\-Iesa da Palavra, Ano A, p. 173
-175 (R. Ruijs). Ct. A Mesa da Palavra, Ano B, p. 111, uma Pista E-
xegética dedicada a Hb 5,7-9 de Pe. Carlos A. da Costa Silva, S.C.J.
135
1
A
 Terceira Leitura: Jo 18,1-19,42
jesus e Pilatos - A Igreja e o Estado
O autor do 49 Evangelho dá urna interpretação teológica dos even-
tos narrados. Nesta visão teológica, as atitudes dos contemporâneos
frente a jesus de Nazaré tornam-se tipos das atitudes humanas de
todos os tempos frente à _revelação e encarnação de Deus em jesus
Cristo. Os judeus, especia1mente as cJasses dominantes reJigiosas, re-
presentam e.o mundo», isto é, aquela parte da humanidade que rejeita
jesus como o Cristo de Deus e que não é capaz de rever o seu sistema
re1igioso à luz de uma nova afirmação do Deus vivo e verdadeiro no
mundo. Sua reação será: matar este Deus, mesmo que seja ccomendó
a Páscoa» (c!. 18,28). Os disc/pu/os representam os fiéis da Igreja de
todos os tempos.
Esta interpretação transparece na divisão e na estrutura do Evan-
gelho. Pode-se dividir aquilo que precede 18,1-19,42, isto é, a Narração
da Paixão e Morte de jesus, em duas partes: cap. 2-12: «Jesus e o
mundo-:.; jesus revela-se ao mundo e ê rejeitado por ele; cap. 13-17:
«Jesus e os Seus»; jesus revela-se aos discípulos e a fé deles os trans-
forma na primeira geração dos fiéis.
Nos cap. 18-19 não há progresso nas atitudes do «mundo» nem
nas dos «discípulos». Marcam-se as conseqüências exteriores das atitu-
des interiores, descritas nas partes precedentes. Através desta descrição
já se conhecem os papéis que «O mundo», representado por Caifás
e os judeus de um lado, e a «Igreja», representada pelos discípulos,
especialmente por judas, Pedro e o discípulo anônimo a quem jesus
amava, de outro lado, desempenharão a seguir. No caso de Caifás,
por exemplo, repete-se o que já foi dito: «Caifás foi quem dera aos
judeus o conselho: Convém que um só homem morra em lugar do
povo» (18,14 = 11,47-53). A traição de judas, a negação de Pedro
e a presença ao pé da cruz do discípulo anônimo são realizações con-
cretas de atitudes anotadas ou preditas anteriormente (para 18,2-3 cf.
13,2.21-23; para 18,15-18.25-27 cl. 13,38; para 19,25 cl. 13,23-25).
A novidade e originalidade de cap. 18-19 em comparação com as
partes anteriores do .49 Evangelho e também com as Narrações da
Paixão de Mt, Me e lc, consistem na apresentação e elaboração do
processo de jesus perante Pilatos. Este processo abrange a maior parte
destes capítulos e vai de., 18,28 até 19,22. Deve-se interpretar esta origi-
nalidade na perspectiva de cap, 2-17. Poder-se-ia acrescentar às duas
partes «Jesus e o Mundo» e «jesus e os SeuS» a parte «Jesus e o
Estado». De fato, também Pilatos não é uma figura meramente his-
tórica, mas desempenha um papel típico. Esta parte do Evangelho
poderia, por isso, ter o titulo: «Jesus e o César, ou «0 Reino de Deus
e o Poder Político» ou ainda <a Igreja e o Estado». O evangelista de-
senvolve a relação «Jesus e Pilatos», situando jesus no meio entre
«O mundo» (representado pelos judeus, especialmente pelos sacerdotes)
e o estado (representado por Pilatos). Jesus obriga Pilatos a optar por
Ele e Seu Reino, que é o Reino de Deus, ou pelo mundo, pelo reino
deste mundo, por César. Afirmando por três vezes .que jesus não tem
culpa (18,38; 19,4.6), e mesmo assim entregando-O ao mundo, isto é,
às mãos dos judeus (19,16), Pilatos compromete o papel do Estado
no mundo.
136
jesus reconhece o papel do Estado no mundo, nas J'Rlavras: «Não
terias poder algum sobre Mim, se de cima não te fora dado» (19,11).
Mas doravante o Estado somente poderá executar devidamente o seu
papel, se reconhecer a presença do Rei e do Reino . no mundo. Este
Rei e este Reino não são «deste mundo». Nem se afirmam no mundo
com métodos mundanos de poder e de violência (18,36). A única pre-
tensão deste Rei e deste Reino é ser da verdade e testemunhar a
verdade (18,37).
Para tentar escapar à tornada de posição clara e decidida em prol
da verdade, por meio da pergunta evasiva «Que é a verdade?» (18,38),
PHatos de fato rejeita a verdade que se lhe apresenta em jesus, e
submete o poder po1ítico aos critérios «deste mundo». A escapatória
jurídica - a anistia por. ocasião da Páscoa (18,39s) - e o apelo falso
aos sentimentos de compaixão - a flagelação (19,4-6) - não mais
o podem ajudar. Rejeitando a verdade ou negociando-a, Pilatos entregou-
se ao mundo e está perdido.
Os judeus, de sua parte, perdem o seu papel especifico no m~~do
e identificam-se formalmente com «este mundo» e com o poder pohbco
comprometido com este mundo, ao declararem: «Nosso único rei é o
Imperador!» (19,15).
No processo contra Jesus, judeus e romanos, o mundo e o estado
compactuam na tentativa de eliminar deste mundo a Verdade (18,37},
o Reino (18,35), o Filho de Deus (19,7) e, em última análise, o Deus
vivo e verdadeiro.
jesus permanece fiel ao Seu testemunho até a morte. E Deus rnostra-
se fiel à sua testemunha, ressuscitando-O da morte.
A fé em jesus ressuscitado e a fidelidade até a morte dos fiéis àquela
Verdade que jesus pregou, é a atual presença do Reino e da Verda~e
no mundo. Mas também agora a Religião Oficial e o Estado estao
expostos ao perigo de compactuarem com o mundo e de comprometerem
seus papéis que, originalmente, lhes vêm de cima (cf. 19,11).
Bibliografia: Além de comentãrlos, especialmente:. H. S ~ h 1 1 e r,. Jesus und
Pilatos nach d~m jobannesevangelium, em /d., Die Zeit der Ktrche,. Friburgo 1958.
p 56-74· /d Der Staat nach dem Neuen Testament, em: Jd., Besmnung auf das
Neue T~sta,Ü'ent, Friburgo 1964. p. 193-21 l ;_ J. B. ~\.e t z, Les Rapports entre
I'Eglise et Je Monde à la lumiêré d'une TIJ.eologle. Pollh~ue, em: O. G a r r O n e,
e.o., La Théologil' du Renouveau, vol. li, i\'\ontreal-Pans 196», p. 33-47. Outro
comentário de j. K o n i n g s, na .Mesa da Palavra, Ano r'\, p. 175-179.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Sugestões para a Homilia
Introdução
A Morte de Jesus é simultaneamente um aconteciment.o q~e
lhe diz respeito como Pessoa e é solidário. ~e. t?da a h1stón.a
humana. O seu anúncio solene é, hoje, o m1msteno de sua um-
versalidade. Esta universalidade tem o seu momento sacramental
na Ceia, quando, firmando com os seus - com o homem -
137
a Nova Aliança, Jesus os incorpora à sua Paixão assim como
se incorporara à humanidade de quem eles eram uma pequena
porção e para a q1!al eles passam a ser, como igreja, o sinal
da plena libertação, antes mesmo de serem ministros e apóstolos.
Corpo
· 1. A iniciativa de jesus • sacerdócio e o 'I'emplo decltnam de sua mediação, declinam de
Todavia, a morte de Jesus não constitui um evento indi-
ferenciado. Ela tem a forma de um processo judicial ante duas
instâncias: a dos chefes oficiais e oficiosos do seu povo e a
do império. Esta esirutura formal é penetrada, porém, desde o
início por um princípio transformante, a iniciativa de Jesus,
explícita desde a Ceia, e que acaba por fazer. dela a face sim-
plesmente exterior do que acontece, uma exterioridade, é certo,
pesadamente real. Da dialética entre o processo que instauram
o sinédrio e o pretório e a iniciativa de Jesus decorre todo o
significado da ação. que se desenvolve.
2. O primeiro ato: jesus, agente do que aconteceu
O primefro ato de toda a seqüência ocorre no Horto: Jesus
vai ao encontro da situação que lhe cabe assumir e sujeita-se
à traição de Judas. Todos aqueles que sua palavra incomodara
fazem-se presentes nas pessoas dos sumos sacerdotes e dos fa-
riseus, representados por sua polícia, à qual associam também
uma coorte, primeira presença do poder romano na ação. Após
esboçar uma intempestiva reação, os discípulos se dispersam ou
dissimulam. O vazio que então se forma torna manifesto o
quanto Jesus se assume como agente do que aconteceu: uma
simples resposta sua, Eu sou, tem a força de uma teofania que
prostra e inibe seus agressores; Ele se entrega voluntariamente,
sem perder um só dos que lhe foram confiados.
3. O segundo alo: Jesus traça a sua história
O segundo ato .da paixão é constituído pelo processo diante
do Sinédrio, mais uma vez com um contraponto doloroso: a
negação de Pedro. Enquanto esta isola mais ·o réu, a ação ju-
dicial intencionada não consegue cumular o seu inelutável vazio.
Tudo isto realça a liberdade com que Jesus traça a sua história.
138
De um lado, ele· supre pela ausência dos .discípulos, de outro,
todo o conteúdo do processo é progressivamente fornecido por
seu testemunho. O primeiro resultado deste seu primado é a
dissolução da ação ante o sinédrio na sombra do poder romano.
Certamente, alegam-se razões, mas a razão verdadeira se omite.
Com o envio a Pilatos aqueles que eram até então juízes tornam-
se simples autores. A «exousia», isto é, o poder e a compe-
têQcia de julgar Jesus se aliena e desvela a sua nulidade. O
sua verdade.
4. O terceiro ato: Cabe a jesus realizar .,toda a justiça
O processo perante Pilatos é rapidamente polarizado pela
questão que Importa: a questão sobre o Poder. Sem se subtrair
a ela, resolve-a Jesus em seu fundamento: põe a questão sobre
a Verdade. O representante de César, acastelado no ceticismo
oficial, tenta esvaziar a ação: pode constituir um risco para o
império quem fala em nome da Verdade?· A pretensão real do
réu parece-lhe sem conteúdo; como Barrabás, pode ser ele indul-
tado, como um criminoso menor, flagelado e reduzido à sua
ínfima identidade: Eis o homem! E impossível crucificar um
homem vazio de si mesmo, vazio até de toda a culpa: a irrisão
se consuma. Os seus acusadores procuram restituir-lhe a iden-
tidade dolosa: a sua pretensão de ser o filho de Deus. Teme-
roso, Pilatos invoca a sua competência para, ante o silêncio do
réu, verificar o exato teor da acusação. Trata-se, porém, de
uma competência alheia, vinda do alto. A abertura a esta trans-
cendência desvela a condição de pecado do processo: Juiz e auto-
res passam à condição de réus. Doravante, cabe a Jesus reali-
zar toda a justiça. Sucessivamente, a fidelidade do primeiro é
posta em questão e a dos arautos do judaísmo oficial se dissol-
ve no reconhecimento do poder de César, seu ímico rei. Configura-
se um conflito de poderes, com o que se encontra uma causa
para a condenação: Jesus pode ser entregue para ser crucificado.
5. O último ato: Esta morte é um triunfo
Segue-se a execução: a causa inscrita atesta o teor da
sentença. A alegada condição de Filho de Deus, respondendo
à questão sobre a Verdade, restitui o conteúdo à pretensão real
de Jesus. Inimigo prostrado, seus despojos podem ser divididos,
Homem na iminência da morte, cabe-lhe fazer seu testamento:
139
 confiando, um ao outro, a mãe e o discípulo, é de sua condição Sábado Santo: Vigília
de Filho que faz o seu legado. A Morte pode advir-lhe como a
consumação de algo que jaz sob o seu poder: o acesso à ver- Ver A Mesa da Palavra, Ano A, p. 183,199.
dadeira Vida, que o faz arder de sede. Plenitude, esta Morte é
um triunfo que põe ao alcance do homem os seus principios .Evangelho: Me 16,l-8
imanentes, o sangue e a água, que exala também o seu princíp:o «Ressuscitou, não está aqui!»
Primeiro, o próprio Espírito.
l. É op1n1ao aceita que Me 16,9-20, apesar de inspirado e canon1co,

Conclusão
• não é o final autêntico do segundo evange1ho. Surge a questão muito
discutida se Me 16,1-8 é o fina1 autêntico ou se e_ste se perdeu. A
opinião de que Mt 16,1-8 não seja o final autêntico, mas que este se
Política e relígiosa, a sentença pronunciada pelo sacerdócio tenha perdido, é muito antiga. Prova disso são as antigas tentativas
para dar um fecho, diferente de Me 16,1-8. Tão antigas que se encon-
e pelo império produz, em sua execução, o exato contrário do tram codificadas nos velhos manuscritos e que uma delas é reconhecida
efeito que visa: tira à vida sua forma física, singular; e eis inspirada e canônica. Ao todo propõem-se seis cláusulas do segundo
que, agora, no Espírito, ela jorra universal e alcança a tota- evangelho: ·
lidade do _homem. 1°) Me 16,1-8: a cláusula de manuscritos antigos ·muito importantes
Pe. Benjan1in de Souza, O.S.B. como o Vaticano e o Sinaitico.
São Paulo, SP 2°) Me 16,1-8 e 9-20: esta cláusula canônica já era conhecida por
~- Justino, Taciano e Ireneu.
3°) Me 16,1-8 ~ uma cláusula curta: «Elas narraram brevemente
àqueles que estavam com Pedro tudo que lhes tinha sido anunciado.
Depois disso o mesmo Jesus (lhes apareceu) e do Oriente até o Oci-
dente enviou por meio deles o sagrado e incorruptivel anúncio · da sal-
vação eterna». Esta cláusula encontra-se desta maneira em somente um
códice, a saber, o códice Bobiense, da antiga tradução latina da Africa.
4') Me 16,1-8 e a cláusula curta de n' 3 e ,Me 16,9-20: .Esta
cláusula . encontra-se em quatro unciais e outros m?nuscritos gregos,
cépticos e etiópicos.
5°) Me 16,1-14, a cláusula do códice Freer e 16,15-20. O texto é
este: «E eles se justificavam dizendo: 'esse século de iniqüidade e
de incredulidade está sob (o domínio de) Satanás que não permite
que quem está sob o jugo dos espíritos impuros capte a verdade e o
poder de Deus; revela portanto desde agora a tua justiça'. Isto é o
que eles djziam a Cristo, e Cristo lhes respondeu: 10 termo dos anos
.do poder de Satanás chegou ao cumprimento; e contudo outras coisas
terríveis estão próximas. É para aqueles que pecaram que eu fui dado
à morte, a fim de que se convertam à verdade e não pequem mais,
a fim de que herdem a gJória espiritual e incorruptível da justiça que
está no céu. Mas ide pelo mundo ... '»
Segundo S. Jerônimo tal conclusão estava contida, ao menos par-
cialmente em alguns manuscritos, especialmente gregos (cf. BaJlarini,
p. 144). ' '
6°) Me 16,1-8 e a cláusula perdida.
Muitos exegetas acham que se perdeu a cláusula autêntica e que
nenhuma das antigas tentativas para recompô-la satisfaz. Alguns deles
propõem, então, uma tentativa própria.
2. Aumenta o número de exegetas que encaram Me 16,1-8 como
a cláusula autêntica. Em primeiro lugar porque é dif;cil explicar por
que e como uma outra cláusula se tenha perdido. Em segundo lugar,
porque Mt e Lc certamente já conheceram Me 16,1-8, mas não uma

140 141
 outra cláusula final. Nos textos paralelos (Mt 2jl,l-IO e Lc 24,1-12)
mostram-se dependentes de Me 16,1-8. Logo depois seguem caminhos
diferentes, recorrendo a tradições independentes. E em terceiro lugar
porque, em ú1timá análise, Me 16,1-8 seria um final que corresponde
ao resto do livrinho de Marcos sobre jesus.
Em Me 16,1-8 o autor apresenta, conforme a opinião deles, o
essencial para finalizar o seu livrinho: o anúncio da ressurreição e a
reação adequada ao mesmo.
Para o anúncio da ressurreição usa-se uma fórmula querigmática:
cjesus de Nazaré, que foi crucificado, ressuscitou». É o núcleo do que-
rigma que tantas vezes se encontra nos Atos dós Apóstolos (cf. At
2,22-24.36; 3,13-15; 4,10; 5,30; 10,38.40; 13,29). Em forma de predição
da morte e ressurreição, este mesmo núcleo do querigma encontra-se
várias vezes no Hróprio evangelho de Marcos (Mc,8,31; 9,9-13; 9,30-31;
10,33-34). Em Me 16,6 proclama-se a realização destas predições pela
citação do núcleo. querigmático, base da fé cristã e conteúdo central
da pregação apoStólica pós..pascal. Em outras palavras: o evangelho
de Marcos termina onde começa a pregação apostólica. Ora, conforme
o prescrito, o livrinho quer apresentar «O início do Evangelho de jesus
Cristo» (Me 1,1) e não se alongar em <atos dos ·apóstolos>.
Uma das razões por que a autenticidade de Me 16,1-8 como cláusula
final é combatida é que a reação das mulheres sei'ia inadequada e im-
pensável como criiiclusão de um evangelho. Mas déve-se saber primeiro
o que é, aos olhOs de Marcos, uma reação adequada a uma manifesta-
ção de Deus e de onde vêm as expressões que ele usa em 16,8.
Em Me é freqüente o «medo» e o «pavor» dos acompanhantes de
jesus, dos discípulos e do povo. cEm várias ocasiões, Marcos termina
suas narrativas _de milagres, mencionando o pav'or das testemunhas,
cf. 1,27: a cura do demoníaco na sinagoga· de Cafarnaum; 2,12: a cura
do paralítico; 4,41: a tempestade ac_almada; 5,42: a ressurreição da
filha de jairo; 6,51b-52: a marcha de jesus sobre as águas. É ver-
dade que duas passagens não terminam pelo tema do temor {Me 9,6:
a transfiguração, e 10,32: o terceiro anúncio da paixão), mas ele é
salientado no contexto» (H. Grass, citado por Trilling, p. 196). Em
Me 16,8 retornam, pois, os dois motivos do «medo» e do «pavor»,
acentuados pela fuga das mulheres. «0 'mistério: de jesus', que em
Marcos toma impressionante vulto, torna-se ainda mais denso preci-
samente no fim do Evangelho» (Trilling, p. 196). Que este pode ter
sido o pensamento de Marcos reforça-se pela resposta à pergunta de
onde vêm as expressões usadas em 16,8. Elas são de natureza apo-
cal;ptica e têm os seus paralelos nítidos em Dn 10,7:
b!blica e apocalíptica veicula a reação humana adeguada a. ~~a reve-
lação divina. No ca~o trata-se do. n;ysterium t~e.mendlJm da vitoria sobre
a morte. manifestada na ressurre1çao do cructf1cad~! _ .
3. O fato que 'Se pode discutir se Me 16,1-8 e· ou nao a clausula
autêntica do evangelho de Marcos ressalta mais urµa vez a nat~r:za
literária dos evangelhos sinóticos. ~ecolhem-se neles peq~enas trad1~o!s
preexistentes. Tentou-se com bons resultados recçinstru1r a trad1çao
usada por Marcos, em Me 16,1-8. E pergunta-se,_ qual terá sido a
origem (ou a Sitz .im Leben) da mesma. ~xis.tem ~uas respostas. con-
vergentes. Urna primeira sugere que ela teria sido usada com~ «le1tu~~
na celebração litúrgica anual da Páscoa do Senhor, por CUJ'_l ocas1ao
os cristãos visitavam o sepulcro de Jesus e lhes era anunciada esta
narração. Em vez de pensar na festa anual_ dos cristãos da__c_omuni-
dade de jerusalém pode-se melhor pen~ar, dIZ a s~gund~ op1n1ao, ~m
romeiros cristãos que de lonue peregnnavam a Jerusalem e tambem
visitavam o sepulcr.o de jesu~. Naqueles tempos havia na Palestina
muitos monumentos :sepulcrais judaicos que eram visitados pelos judeus,
corno se faz até hoje: os túmulos dos patriarcas eJJ.1- Hebron, o sepul-
cro de Davi em Jérusalém etc. Visitavam-se estes ,sepulcros na supo-
sição de que neles os venerados antepassados estivessem de alguma
manira presentes. De maneira semelhante os cristãos Vieram ao sepulcro
de Jesus. E contava-se-lhes a narração da ressurreiç'ão de jesus. Neste
pano de fundo altera-se de vez a função desta narração. Através dela
explica-se aos peregrinos que procuram o sepulcro, q_ue erraram o ende-
reco: «Ele não está aqui!» Em distinção dos patriarcas, de quem se
pe~sava- que de alguma maneira continuasse~ nos .s.epulcros, procJama-
se de jesus: «Não está aqui!» Tanto faz, vir aqu1~ O sepulcro pouco
importa. O que importa é o Jesus vivente. E este encontra-se alhures,
não aqui no túmulo. <Ele vos precede na Galiléia» (Me 1&,7), na .•Ga-
liléia dos gentios» {Mt 4,15), isto é, na própria terra de onde viestes
para visitar o Seu sepulcro: <Lá O verão!» (Me 16,7).
Assim entendictd e explicada a Narração de Me. 16,1-8 talvez deixe
de novo os ouvintes perplexos e apavorados por «terem procurado entre
os mortos quem eslá vivo» (e!. Lc 24,5).
Bibliografia: Os comentários de Se h ·w e i z e r, . T. a Y 1 o f.· Se h .mi d,
Se h na e k e n b u r g {Vozes). W. O. K ü mm e i, Etnlellung rn daf! N.T.,
l973l&; T. B ai J ar j n 1, e o., Introdução à Biblia, Tomo IV, Petrópolis 1912,
p. 144-146; W. T r i 11 i n g, A Ressurreição .de Jesus, Começo da Nova Era:
em: Jd., O Anlincio d~ Cristo nos Evangelhos Sinóticos, S. Paulo 1976, p. 193-221,
B. i\t F. v a n J ~ r se I, Het Iege graf (Me 16,1-8), em: H. Alou~ 1 t s, e.o.,
Evangelie zonder Masker, Utrecht 1971, p. 199-207. P. B e no 1 t - l\1. E:
B o l s mar d Synopse' des Quatre bvangiles, Paris, Tome I _1977'1; Tome II 1972,
s v o J "t ~'U 28 1-10· em· A Jlfesa da Palavra Ano A :!:::: REB 37 (1977/148).
264•-257•; Í.\. D. à o u't d e r, J\lark XVI,1-8 and' ParaJlels, em: NTS 24 (197~).
0

Dn 10,7
«.. . mas apode!ou-se deles um
grande estupor ( ekstasis) e eles
fugiram (ephugon), cheios de me-
do (en phoboi)».
Me 16,8
<E ... elas Íugiram (ephugon) ...
pois um tremor e um estupor
(ekstasis) se apossaram delas ...
pois tinham medo (ephobounto)~.
235--240; o. w. T r o m p f, The First Ressurrection Appearance and the Endmg
of i\'larl,'s Oospel, em: NTS 18 (1972), 308-330; E. S c_b i II e b e e e k x, ]ezus,
het verhr:al van een levende, Bloemendaal 1974.
,
Raul Ruijs, O.F.M.
· Petrópolis, RJ

Este mesmo versículo de Dn 10,7 é usado também em At 9,7, no Sugestões para a Homilia
contexto da aparição de Jesus ressuscitado a Paulo. Não se deve, pois,
ler Me 16,8 sorne'nte como urna informação histórica que faz conhecer Vigília Pascal: Luz sem Sombras
uma reação psicológica de mulheres assustadas. Em termos de linguagem
Anos atrás, correu por todos os cinemas do mundo o filme
r 142 143
'1
1.
1
I•
!
'
 americano intitulado Trevas sem luz, que deu muito que falar.
Aí se abordava o seguinte tema: Um sábio arqueólogo empreen-
deu escavações nos arredores de Jerusalém, oude hoje se encon-
tra a basílica do Santíssimo Calvário. Certo dia comunica ele
a todos os meios de imprensa: Eu encontrei a sepultura de Jesus
de Nazaré, crucificado no ano 33. Esta sepultura, porém, não
está vazia, mas dentro dela se encontra um cadáver mumificado;
Cristo, pois, não pode ter ressuscitado; Cristo não ressuscitou.
Esta novidade se espalha, aos quatro ventos, por rádio, televisão
e imprensa. O mundo entra numa densa treva. Tudo o que re-
cordava Cristo foi feito desaparecer. Igrejas foram destruídas,
conventos fechados, padres abandonaram suas paróquias, missio-
nários do mundo inteiro retornaram a suas pátrias, irmãs aban-
donaram suas escolas e hospitais; enfim, o mundo entrou numa
enorme confusão. Até que enfim é desmascarado um embusteiro,
comentavam alguns. Abaixo com a moral cristã e com a cruz,
símbolo do sacrifício e da aceitação da morte - gritavam
dos mortos que um dia hão de ressurgir para a vida que jamais
conhecerá a morte.
Nesta Vig!lia Pascal, não celebramos Trevas sem Luz, não
estamos na sexta-feira santa, mas na Páscoa, a festa da Luz
sem Sombras. É pena que estejamos já por demais acostumados
a ouvir estas verdades e já tenhamos perdido o senso pela no-
vidade que elas trazem. O homem antes de Cristo não sabia
nada disso. Ele sabia apenas sobre a incoercibilidade da morte.
O homem de hoje sem Cristo é como o pagão: nada sabe da
absoluta esperança. A crença na ressurreição futura dos mortos
é mais uma bela hipótese que uma verdade passivei de verifi-
cação. Em Cristo ressuscitado os apóstolos e nós experimenta-
mos e vimos a realidade de um sonho, o fato de um desejo
querido ao coração humano. Então compreendemos por que
Paulo escarnece da morte e triunfante lhe pergunta: «O morte,
onde está a tua vitória? O morte, onde está o espantalho com
que amedrontavas os homens?» (lCor 15,55). A morte foi tra-

t,, outros. Outros tantos não deixaram de observar: Ê muita pena

-que tudo isso tenha sido uma falsidade, pois o Ressuscitado
ainda nos dava o sen1ido e esperança de enfrentar a vida e de
gada pela vitória de Cristo. A festa desta noite é de alegria;
é de se cantar e ouvir o Aleluia. A nossa vida está assegurada;
esta vida que aqui vivemos não nos será tirada com a morte;
't,.
superar seus absurdos. Agora, porém, com dor, temos que ve- a morte será apenas um fenômeno biológico, mas que não po-
'"
1
rificar nossa frustração. derá destruir o nosso verdadeiro ser. O nosso amor jamais po-
' Assim, e com outros tantos pormenores, o filme Trevas derá ser destruído. Com a ressurreição de Cristo viemos saber
sem Luz vai mostrando o que significa o mundo sem o fato que a vida é mais forte que a morte, que a morte é só uma
e a fé na ressurreição de Cristo: verdadeiramente trevas, con- passagem forçada mas que não nos poderá fazer mal algum.
fusão, frustração e angústia nos corações humanos. Porém, no Levemos um pouco da luz desta noite para dentro de nossas
1 final, o filme mostra o sábio arqueólogo no leito de morte.
Antes de entrar em agonia, ele quer ainda uma vez falar. E
vidas; semeemos sementes de ressurreição no chão escuro de
nossos problemas e alegremo-nos: Cristo ressuscitou. Nós res-
então revela ao médico professor da universidade que sua des- suscitaremos com ele. Aleluia!
coberta fora uma falsidade, que ele interpretou mal o cadáver Leonardo Bo!!
mumificado. Este não era do ano 33 mas do ano 333 dC. Petrópolis, RJ
Esta história, de um filme moderno, mostra-nos à maravilha
o que seria o mundo sem a fé na ressurreição. Paulo já nos
dizia em sua epistola aos coríntios: Se Cristo não ressuscitou,
vã é a nossa pregação, vã a nossa fé; nós seríamos falsas tes-
temunhas e os mais miseráveis de todos os homens ( cf. l Cor
15,15s). Quereriamas viver de fantasias e em vez de enfren-
tar a vida e a morte, procuraríamos fugir da dureza com falsas
projeções de nossos desejos. Porém com o fato da ressurreição
de Cristo entrou uma novidade total em nosso mundo fechado
pelo círculo da morte. Alguém rompeu esse circulo e deu espe-
rança a todos nós. Bem diz São Paulo, novamente na sua carta
aos corintios: Se Cristo ressuscitou, então havemos nós tam-
bém de ressuscitar. Ele é apenas o p~imeiro da enorme cadeia
l 145
144
l j

Domingo de Páscoa
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: At to,34a.37-43
Neste capítulo, Lucas narra como S. Pedro, após misteriosa visão
(10,9ss), se dirige aos pagãos - Cornélio e sua familia -, admitindo-os
na comunidade cristã pelo batismo, não sem reclamações da parte dos
judeu-cristãos (11,1-3). A partir do v. 34 se nos oferece o 1° discurso
que Pedro faz perante um auditório não-judeu, anunciando a salvação.
A cena empolga e a autoridade de Pedro se impõe. O discurso se compõe:
(a) de uma espécie de exórdio (vv. 34-36, aqui omitidos); (b) de um
resumo da vida de Jesus (vv. 37-41), a quem Deus constituiu juiz
dos vivos e dos mortos (v. 42) e do qual dão testemunho todos os
profetas (v. 43).
No exórdio se diz com realce que, diante de Deus, todos os homens
são iguais (v. 34s; cf. OI 3,26ss); a _de;ipeito desta semelhança _geral,
no v. 36 insinua-se uma certa supenondade, um certo pnv1lég10 de
L; Israel, porquanto a ele é que foi dirigida em primeiro lugar a men-
sagem evangélica (At 3,26; 13,46; Rm l,16i 3,2). Pedro refere-se a
uma convicção, adquirida agora graças à misteriosa visão de jope (At
1011-16) confirmada com o evento-Cornélio (10,20-23). Sabia que em
D~us nã~ há acepção de pessoa, que Ele não prefere injustamente este
ou aquele (Dt 10,17), entretanto até este momento considerava natural
que Javé, Senhor absoluto, preferisse o povo judaico às outras nações,
fiel a seu plano (cl. Gn 17,7; Ex 19,4-6; Eclo 36,14). Aliás, Jesus em
várias ocasiões e de vários modos dissera que todos os povos fariam
parte de seu Reino (MI 8,11; Me 16,15s; Jo 10,16; AI 1,8). O próprio
1
Pedro, em suas alocuções anteriores, supunha esta verdade, quando
estendeu a salvação messiânica não só aos judeus mas. tambêm aos
1: que cestão longe» (At 2,39), ou ainda, quando ensinou que aos judeus,
1 em primeiro lugar, foi enviado o Salvador (At 3,26). Isto posto, n~da
impede que o chefe dos apóstolos, em virtude de sua formação judaica,
continuasse a fazer distinções entre judeus e pagãos.
Recorde-se que, já no VT, havia profecias concernentes à universa-
lidade da salvação, segundo as quais judeus e pagãos formariam um
só Povo sob o Messias (Is 2,2ss; 49,1-6; JI 2,28; Am 9,12; Mq 4,1).
Eram conhecidas dos Israelitas que, porém, as interpretavam a seu modo,
vale dizer, os pagãos deveriam sujeitar-se à circuncisão, à Lei mosaica.
Como Povo eleito consideravam-se únicos, superiores aos demais, po-
' . .
dendo aceitar os outros povos, contanto que renunc1assem a sua na-
cionalidade para fazer-se judeus civil e religiosamente. Semelhante men-
talidade permanecia mesmo após a conversão a Cristo. Para um judeu
era, pois, óbvio que todo o não-circuncidado, embora simpatizante do
mosaísmo, como era o caso de Cornélio (At 10,2.22), se considerasse
impuro1 indigno de sentar à mesma mesa.
Assim pensou Pedro até a mencionada visão (At 10,14.28; 11,5-17),
assim pensava a igreja de jerusalém (At 11,3), assim continuaram pen-
I,' sando certos judeu-cristãos mais tarde, estando a questão já esclarecida,
quando inclusive tentaram intimidar a Pedro (cf. GJ 2,12). A visão
celeste de jope levou Pedro a mudar de opinião: deverá banir seus
:l
1 '
146
1
I·:
escrúpulos de pureza legal, porquanto o que Deus purificou não é
impuro (AI 10,15.18). No Concílio de Jerusalém, evocando tal visão,
Pedro dirá que Deus purificou os pagãos pela· fé (temor de Deus,
prática da justiça), não já pela circuncisão (At 15,9).
Nos vv. 37-43 Pedro, em nome dos Doze, embora suponha algum
conhecimento («vós sabeis» ... ), traça breve resumo da vida pública de
jesus, após o batismo (1,22), quando inaugurou oficialmente a tarefa
messiânica, insistindo na realidade dos milagres, de sua morte e ressur-
reição. No v. 38, «Deus O ungiu com o Espírito Santo e com o· poder»
parafraseia Is 61,l: «O Espírito do Senhor repousa sobre mim, porque
o Senhor consagrou-me pela unção; enviou-me a levar a boa-nova aos
humildes ... » - passagem que Jesus se aplicara na sinagoga de Na-
zaré, ao iniciar sua vida pública (Lc 4,17-21). O Apóstolo pretende
justificar o proceder («fazendo o bem ... curando») e os miJagres de
Cristo: é o <IUngido» do Senhor Javé, segundo atestam as profecias.
Como em 2,22ss esboça a figura de Cristo qual se encontra no evan-
gelho de Marcos que reproduz os sermões de Pedro. «Cristo» é o
mesmo que «Ungido», «Messias». Não se trata de unção propriamente
dita, como no caso dos sacerdotes, profetas e reis (Ex 28,41; Lv 8,12;
lSm 10,1; 1Rs 19,16), mas de escolha .divina para certa missão, acom-
panhada de graças especiais (2Sm 12,7; Is 61,1; SI 44,8). Deus «ungiu»
a jesus quando o constituiu Messias. Esta <s:unção» em substância deu-se
já na Encarnação, todavia manifestou-se publicamente no batismo (Jo
1,31-34) e, mais ainda, na ressurreição (AI 13,33).
Apela-se ao testemunho dos apóstolos: viram, ouviram, sentiram
tudo - vida, palavras, obras, morte, ressurreição. Eles são testemunhas
que Deus escolhera de antemão (v. 41) para pregar ao povo ( = todos)
e testemunhar que Jesus de Nazaré foi constituído por Deus «juiz dos
vivos e mortos» (v. 42; cf. Lc 24,47). O que diz Pedro encaixa perfeita-
mente com o modo de agir divino, ao qual se refere também Paulo, no
sentido de levar os homens à salvação pela fé e através do ministério
de outros homens (Rm 1,l6s; 10,13ss). Para o príncipe dos apóstolos
sobressaem, como acontecimentos decisivos da salvação, a morte e res-
surreição de Jesus.
É conhecida a predileção dos soberanos de então por títulos e
homenagens. A eles se contrapõe Jesus de Nazaré, como verdadeiro
benfeitor e único salvador, o Senhor de todos. Em seu primeiro discurso
aos judeus Pedro declarou que Jesus Cristo fora constituído «Senhor
e Messias; (AI 2,36). Agora (10,42) o proclama «juiz dos vivos e
mortos», expressão mais adequada para um ambiente pagão (cf. At
17,31). A expressão «vivos e mortos» (cf. 2Tm 4,1; IPd 4,5) passará
para o s~mbolo dos apóstolos. Confirma a doutrina paulina, segundo
a qual os homens da última geração, que viverem no momento da
parusia, não hão de morrer (cf. ICor 15,51; l!s 4,15ss). Cristo, ao
ressuscitar, foi constituído «juiz» dos que então viverem e dos «mortos~
que ressuscitarem para o juízo (jo 5,22). Pedro, finalmente, aduz outra
razão para crer em Jesus Cristo, - o testemunho dos profetas (Js
49,6; 61,I; Jr 31,34; Zc 9,9), segundo o qual é crendo em seu nome
que se obterá a remissão dos pecados, a salvação messiânica (v. 43).
É mais uma prova das a1tas prerrogativas de Jesus. Já antes o
Apóstolo mencionara em seus discursos (2,38; 3,16; 4,12) a necessidade
de crer nele para salvar-se.
147
 Bibliografia: K fi r z J n g e r, J., Atos dos Apóstolos, trad. de J.-J. Kloh p11,
Petrópolis, Vrnes, 1971; T u r r a d o, L., Biblia comentada, IV, BAC/.Madrid 1965;
L e a 1, J., Hechos de los Apóstoles, La Sagrada Escritura, NT, 11, BAC/Madrld
1965.
Pe. Matheus F. Giuiiani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Segunda Leitura: 1Cor .5,6b-8
Paulo escreve a uma comunidade cheia de altos e baixos. Nela
se encontrava o entusiasmo dos carismáticos (12-14), mas também a
divisão causada por contendas internas (1-4), os casos de incesto (5),
de apelo a tribunais pagãos (6) e a fornicação (7). Na comunidade de
Corinto já se refletia a constante da lgreja, que é ao mesmo tempo
santa e pecadora.
O nosso texto faz parte do cap. 5, que trata do incestuoso pre-
sente na comunidade, e Paulo toma como ponto inicial de sua reflexão
o fermento, certamente inspirado pela proximidade da festa dos Azimos
dos judeus, que lhe forneceu o.s termos ázimo, cordeiro, imolação, Pás-
.coa, e na qual o fermento desempenhava um papel importante. Podemos
afirmar que o fermento é um símbolo universalmente conhecido, de-
-corrente do uso culinário doméstico presente entre os povos. E sua
.ação de levedação e fermentação é universalmente conhecida. Na Bíblia
esta simbologia já fora usada por Cristo no duplo sentido, do fer-
mento bom que leva para o bem (Nlt 13,33 = o reino) e o mau fer-
mento que ]eva ao ma] (Mt 16.6 e par. = os fariseus), comO também
:será usada por Paulo em Gl 5,9.
Paulo usa a simbologia do fermento .mau, no caso o incestuoso,
que pode contaminar toda uma comunidade. Esta então tem de se pre-
eaver e afastar de seu seio tal fermento, fermento velho .s:da malicia
1-e da perversidade», e substituí-lo pelos «ázimos da pureza e verdade».
A culpa de um membro contamina toda a comunidade, e a comunidade
é também responsável por seu membro que erra. A idéia de persona-
lidade corporativa está aqui presente, juntamente com aquela do corpo
que é a comunidade (cf. 12,12-30).
Paulo não fala em usar um bom fermento, masJ estando em clima
de Ázimos, de tornar-se a comunidade semelhante ao pão· sem fer-
mento, símbolo de pureza e integridade. O pão sem fermento é feito
do trigo como a natureza produz. A comunidade sem pecado será pura
e íntegra segundo a nova natureza, purificada e renovada, recebida no
nascimento pelo batismo em nome de Cristo (Ef 4,22ss).
A festa judaica dos Ázimos exigia a destruição do pão fermentado
que havia na casa (Ex 12,9) e por oito dias ele devia estar ausrnte
(Dt 16J4). Agora a Páscoa do cristão já foi imo1adaJ e de uma vez
para sempre. 1sso significa, então, que todo o pão da maldade deve
ser definitivamente destruído; o fermento do pecado, destruído pelo
Cristo, não deve ter mais vez. E o ser morto e ressuscitado com Cristo
para uma vida nova supõe uma vida pascal de pureza e santidade,
simbolizada no pão sem fermento. Os cristãos tornaram-se novos, e
devem manter~se como tais.
Do ponto de vista exegético é interessante a referência a Cristo
Páscoa, pois isto signiUca que por volta do ano 57 dC, em que foi
escrita a Primeira Coríntios, a Páscoa já fora reinterpretada cristã-
148
mente, Cristo tornara-se o Cordeiro Pascal definitivo. E nessa perspectiva
terá continuidade a reflexão cristã que a partir da identificação de jesus
com o cordeiro, feita por joão Batista e relatada no Evangelho de
joão (1,29: «eis o cordeiro de Deus~), eXpressa na catequese batisma1
de lPd 1,19 («fostes resgatados... pelo sangue precioso de Cristo,
como de um cordeiro sem defeitos e sem mácula»), e no Apocalipse
(5,6: «vi um cordeiro de pé corno que imolado»), o que será a iden-
tificação definitiva feita peJa liturgia cristã, Cristo é o verdadeiro cor-
deiro (Prefácio da Missa de Páscoa). Certamente para tal contribuiu
a cronologia de joão que põe a morte do Cristo no momento em que
os judeus imolavam o cordeiro (19J14) e fi:Ublinha o fato de que nenhum
osso lhe foi quebrado (19,33-36; cf. Ex 12,46).
Paulo assim, segundo tradições litúrgicas cristãs, anteriores a e1e,.
afirma ser «Cristo o verdadeiro cordeiro sem mancha imolado por nós».
Bibliografia: E. W a 1 ter, A Primeira Epistola aos Corintios Petrõpolis 1973;
X. L.-D u f ou r, Vocabuldrio de Teologia Blblica, ·verbete "Cordeiro 1', PetrópoJis 19'17.
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
Paulista, PE
Terceira Leitura: ]o 20,1·9
Encontra-se uma Pista Exegética desta leitura na Jl1esa da Palavra,
Ano A, p. 203-204 (R. Ruijs).
Leitura da Missa Vespertina: Lc 24,13-35
Comentário na A Mesa da Palavra, Ano A, p. 218-220. CI. A
Mesa da Palavra, Ano B, p. 166-168 (comentário de Lc 24,35-48).
S11gestões para a .Homilia
Que significa a vida ressuscitada?
Introdução
A festa da ressurreição de Jesus celebra o tri11nfo da vida
contra todas as forças que se opõem a ela. Por isso, o centro
da fé cristã não consiste na celebração da memória de 11m
herói morto, mas da presença de um Vivo e Vivente no q11al
se decifrou para todos nós o sentido último da vida. Há duas
perguntas básicas que os homens sempre levantam: que é a
vida? qual o futuro da vida? A ressurreição projeta uma luz
explicadora sobre esta realidade tão vital.
149

1
'!
'
'
 Corpo
l. A vida é chamada para a vida
Se olharmos ao nosso derredor, o que constatamos é o do-
mínio da morte; tudo vive, mas chega um momento, em que
tudo começa a envelhecer, se deteriora e morre. A vida é um
mistério. Quem no-lo repetem continuamente são os próprios
c;entistas. Podemos estudar as condições da vida, mas ela mes-
ma permanece uma realidade aberta. É verdade que onde há
vida sempre ocorre uma troca de matéria para ganhar energia
e uma multiplicação como forma de se conservar. Mas tudo
conhece um limite, apesar de formas muito inferiores de vida
manterem-se vivas por milhares e milhares de anos. Assim, por
exemplo, na pele de um elefante Mamut, que se congelou na
Sibéria, cerca de 10.000 anos atrás, foram encontradas bacté-
rias ainda capazes de serem revivificadas. Em muitos campos
de sal mineral foram encontradas bactérias, há milhares e milhões
de anos fixadas vitalmente (que não morreram), que podem ser
reconduzidas à vida ativa. É comum hoje em dia que bactérias
sejam submetidas a baixíssimos graus de temperatura e aí con-
servadas, sem necessidade de alimento ou de multiplicação, por
mais de 40 anos e depois novamente reativadas com todas as
funções da vida. Mas apesar de tudo, chega também para elas,
um dia, o fim não-desejado.
No homem, a morte sempre constitui um drama e uma
angústia. Tudo em seu ser chama para a vida em plenitude
e, contudo, não pode deter os dinamismos de morte. Paulo
exclamava: «Quem me libertará deste corpo de morte»? E res-
pondia: «Graças a Deus, por Nosso Senhor Jesus Cristo» (Rm
7,24-25). Aqui se encerra toda a certeza e a alegria cristã.
Alguém libertou-nos da morte. Em alguém, a vida que clama
pela vida, triunfou e manleve sua força contra os bafejas da
morte. É o sentido da ressurreição. Por ela se professa a fé
da vida em plenitude. Não se diz que, simplesmente, sobrevi-
veremos. Diz-se que a vida mortal do homem não é mais mortal,
que nele a vida é tão realizada, densa e perfeita que a morte
não consegue penetrar e realizar sua obra de destruição. A nossa
alegria é tanto maior quanto sabemos que Jesus é o primeiro
dos mortos a possuir esta plenitude de vida, e que nós segui-
remos a ele e somos chamados a herdar esta mesma vida ressus-
citada. A angústia milenar desaparece, sossega nosso coração.
1
Enfim, o futuro é aberto e um desembocar feliz desponta para
o sentido da vida chamada, para sempre, para a vida.
150
2. Vida de ressurreição é vida de plena comunhão
Que significa, propriamente, a vida ressuscitada? Para
respondê-lo precisamos olhar para o Cristo ressuscitado, pois
só nele nos foi dado contemplar, aqui na terra, esta forma de-
finitiva de vida. Primeiramente se trata de vida humana. É a
mesma pessoa - no caso Jesus - que é entronizada na vida
plena. É aquele que andou entre nós, é o crucificado. Na vida
ressuscitada tanto o corpo quanto a alma são conservados e
transfigurados. Não se trata, portanto, apenas de uma imorta-
lidade espiritual para uma parte do homem. Todo homem e o
homem todo é chamado a esta vida nova. Em segundo lugar
se trata de vida nova. Atente-se: não se diz outra vida, mas
vida .nova. Se fosse outra vida, não haveria relação com a vida
que agora vivemos. Com a ressurreição se dá a transfiguração
desta nossa vida mortal. Paulo o diz, claramente, quando aborda
esta questão na sua carta aos Coríntios (15,35-38): «é preciso
que este corpo corruplível se revista de incorrupção e que este
ser mortal se revista de imortalidade» (15,53). Em terceiro
lugar se trata de vida plena. Que é para o homem a plenitude'
da vida? A plenitude da vida acontece ou nos acercamos dela,
quando todos os dinamismos latentes da vida se expressam e se
ativam. O dinamismo fundamental de toda vida, também daque-
la mais inferior, é o da troca, do dar e receber, da comunhão.
No homem viver significa, simplesmente, comungar, entrar em
relação com todos os seres, potenciar ao máximo a abertura que
já agora possui.
Na vida presente podemos realizar formas altas de comunhão
e comunicação. Pelo corpo nos expressamos, fazemo-nos presen-
tes aos outros; pelo pensamento e pelo amor penetramos até
na intimidade do outro e instauramos laços de unidade. Mas
sempre topamos também com obstáculos à comunhão. O corpo,
certamente, é grande instrumento de presença; mas, ao mesmo
tempo, é um obstáculo à presença porque não podemos ocupar
todos os lugares; precisamos do espaço e do tempo para nos
locomover e fazermo-nos presentes a outros em outros lugares.
O corpo não é translúcido: comunicamo-nos somente por pa-
lavras, sinais, gestos que conservam uma inevitável ambigüida-
de. O ideal seria, e esta é a nossa suprema aspiração, de su-
perar todos estes empecilhos à comunhão e sermos totalmente
transparentes para todos. A utopia do coração é penetrar na
intimidade de todas as coisas e viver com o universo inteiro
uma profunda fraternidade e comunhão.
151
 Ora, ressurre1çao deve ser representada como a realização
completa e exaustiva destas potencialidades presentes dentro de
nossa vida humana. Pela ressurreição o homem desabrocha total-
mente. As sementes em nós de comunhão e de amor nascem
para sempre; os botões de fraternidade, de abertura terna para
com os outros, enfim se abrem e floresce, finalmente, a pleni-
tude da vida no Reino de Deus.
Em Jesus ressuscitado notamos a realização desta utopia,
cujas raízes se encontram no mais profundo do coração, nos
sonhos mais ancestrais e nos mitos mais arcaicos de nossa histó-
ria. Agora tudo isto não é mais utopia, nem mais esperança, é
fato histórico e realidade completá.
Conclusão
Não basta ficarmos alegres com o triunfo da vida. Cumpre
entrar na contemplação da forma de vida que Deus nos pro-
meteu e realizou, de forma exemplar, em Jesus Cristo ressusci-
tado. Mais importante ainda é garantirmos para nós semelhante
futuro ridente. E o garantimos à condição de nos pormos no
seguimento de Jesus Cristo, de sua mensagem e de seus exem-
plos. Quem tenta viver como ele viveu, já começa a sentir em si
as forças de ressurreição. Dentro de sua mortalidade vai se
formando a imortalidade. A morte apenas deixará cair o invólu-
cro que escondia o tesouro precioso: a vida, agora plena porque
realizada na tola! comunhão e amor com todas as criaturas
de Deus.
Leonardo Boff, 0.F.M.
Petrópolis, RJ
i,
152
1
'
Segundo Domingo da Páscoa
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: At 4,32-35
É mais uma descrição da comunidade cristã primitiva e de sua
ação social em favor dos carentes. Lucas já fizera, em 2,42-47, um
belo retrato da vida íntima da comllnidade cristã de Jerusalém: escutan-
do o ensino apostó1ico, vivendo unidos na caridade, prestando culto
público e sacramental. Com expressões encantadoras torna a insistir na
missão fraterna de todos os fiéis que, por sinal, punham tudo em·
comum (v. 32). At 2,42-47 se concatena com 4,32-37 e forma trilogia
com 5,12-16; o autor de Atos intenta evidenciar a obra do Espírito
Santo na comunidade. Em conseqüência, não havia necessitados. A ausên-
cia Qe carentes é hiperbólica. A comunidade de Jerusalém sempre foi
pobre (6,1; 11,27-30); provam-no as coletas de S. Paulo por ela. A
hipérbo1e reaJça o empenho de muitos em socorrer os pobres, desa-
pegando-se de seus bens. Tal desapego é caro a Lucas (Lc 6,20-26;
9,36; 12,33; 18,22; At 2,45; 4,34). Trata-se de um conse1ho de per-
feição, mais do que um sistema a impor. ..
Todos que possuíam, punham à disposição dos apóstolos para que
repartissem segundo as necessidades (vv. 34-35). Tal comunhão de
bens não deve entender-se em sentido absoluto. Havia, com efeito,
união de esp:ritos e de corações, a ponto de pôr em comum os bens
materiais (2,44s). Naturalmente é o caso de uma descrição de ideal
nem s.empre atingível. Tudo indica que não passou de um entusiasmo
inicial de pouca duração, aprovado sim pelos apóstolos, porém nunca
exigido formalmente. Embora 2,44s e 4,34 ·insinuem norma geral, todavia
não se deve urgi-la, já que o caso de Ananias e Safira (5,1-11) prova
ser algo livre e a atitude de José Barnabé (4,36), algo raro. Sabe-se
que, em Jerusalém, cristãos possuíam casa~ (12,12; 21,16). Mesmo admi-
tindo tais restrições, semelhante prática não deve ter dado bons resul-
tados. É possível que isso tenha motivado a pobreza geral da comuni-
dade jerosolimitana, o que levou Paulo a organizar várias coletas em
seu favor (11,29; Rm !5,25ss; !Cor 16,1-4; 2Cor 8,1-9; 01 2,10). A
situação não aconselhou o mesmo nas comunidades paulinas. Inclusive,
não teria sido fácil emprestar a tal prática dimensões universais. O
Cristianismo sempre admitiu a propriedade particular. contanto que não
fosse nociva ao bem comum.
A comunhão de bens derivou, mais do que dos essênios, do exemplo
de Jesus com os . apóstolos, como continuidade lógica, particularmente
se se tem em vista a condição da primeira comunidade cristã. Só mesmo
por motivos re1igiosos foi possível tal comunhão parcial dos bens. :e
algo bem diverso do atual comunismo. Não por nada se diz no v. 32:
«Ninguém dizia que eram suas as coisas. que possuía; mas tudo entre
eles era comum». A renúncia dos bens brotava da fé e da esperança
no Senhor.
«Um só coração e uma só alma» (v. 32) exprime unidade interior
de pensamento e afeto, colimando num sincero altruísmo. É a irrupção
espontânea do amor fraterno, sem preceitos nem imposições, mas pro·
vocado pela vivência da salvação e pelo exemplo de Cristo. O «coração»
153
 para os semitas conota mais, a inteligência, ao passo que «alma» se
refere antes à vida afetiva. A fé e o amor comum são o verdadeiro
principio da pobreza de espírito. Objeto do testemunho intrépido dos
apóstolos é a ressurreição dê Cristo. Efeito desse testemunhQ. é o ca-
risma dos milagres, que o vinha corroborar. «Em todos eles era grande
a graça» (v. 33) pode ser a simpatia do povo ou o favor junto a
Deus. Deus se revela através da vida dos apóstolos e primeiros cristãos.
Como eles o fizeram, será que nossa vida agora revela a situação
de uma nova criação? Como sentimos hoje a verdade salvífica? Algo
apenas externo e remoto? Estamos capacitados para captar a intensidade
da fé dos inícios da Igreja? Somos, como eles então, um espetáculo
ao mundo hodiernO?
Bibliografia:. Cf. Domingo de Páscoa, 1,, leitura.
Pe. Matheus F. O,iuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
) servado a vida espiritual e prometido a eterna.
Segunda Leitura: lJo 5,1-6
O tema central desta p~rte, desde 4,7, é o amor,• a predileção.
São joão sugere que tal amor não é imposição arbitrária, mas exigên-
cia da natureza divina, já que Deus é amor. EJe, ao suscitar cristãos
para uma nova vida, lhes coinunicou sua própria natureza_ e vida, com
o que podem amar como o· Pai celeste ama. A prática da caridade
provará sua filiação divina. Aqui está a mais alta concepção do Ãgape,
segundo joão, para quem o ·,amor é participação da vida divina~ pro-
cede de Deus como de sua )onte, é efeito de nosso nov'o nascimento,
é germe divino recebido no ,batismo (4,7). Sem o amor fraterno não
pode existir conhecimento autêntico de Deus, porque Deus é amor. A
Encarnação é plena manifest,ação do amor de Deus (4,9) e não há
verdadeiro amor sem união e
comunhão com Deus, o qual leva a uma
grande confiança fiJiaI. O teip.or, ao contrário, separa.
O cristão deve amar a Q"eus porque Ele nos amou primeiro (4,19),
Pretender amar a Deus, seni amar aos irmãos, é mentirá. Como pode
amar-se o Deus invisível se hão se ama o próximo que Se vê? Final-
mente, deve-se amar, pois e;dste um preceito do Senhor, o primeiro,
o maior, o único. Amar é ciimprir os preceitos de Deus, os quais se
resumem no de amar o próximo. É claro, devemos amar antes de tudo
a Deus. Todavia, no plano ':divino, é impossível amá-lo sem amar o
próximo.
João fala-nos da fé em Jesus Cristo e respectivas utilidades (5,l-13).
Crer na divindade de Cristo é nascer de Deus (la), é amar ·a seus
irmãos, filhos do mesmo Pai '(lb-2), é observar os mandaiilentos (v. 3)
e vencer o mundo (4). A partir de 5,14 anuncia que a fé é a raiz, o
pressuposto da caridade fraterna, a qual não pode existir sem o ver-
dadeiro amor. A fé torna-se· ·critério de nossa filiação e esta constitui-
se em razão profunda do amor. Fé e caridade são correlatas: onde
existe fé, há legítimo renascimento espiritual, dando lugar ao amor.
Entretanto a fé, como tal, é uma causa que predispõe para a graça
(GI 2,16; Rm l,16s; 3,22). · vontade de Deus. Para animar, S. João ·garante que os preceitos do
A fé, critério de filiação' divina (Jo 1,12), confessa qúe Jesus é o
Cristo, -0 Filho de Deus (5,1), o que significa acreditar ·na divindade
e na encarnação de Jesus (2,22; 4,2s; Jo JJ,27; 20,31), ccimo revelador
154
•
do .Pai e ~alva dor do mundo (Jo 4,29.42). Não basta reconhecê-lo,
faz-se mister submeter-se a Ele, vivendo? unido a Ele. Crer na divin-
dade de Cristo é sinal de que se nasceu de Deus. Sem fé não hã
nem filiação : divina nem caridade. O novo nascimento implica em cari-
dade fraterna porquanto estabelece entre os crentes relações de uma
mesma vida. Impossível amar a Deus, autor de nossa geração espiritual,
e odiar aqueles que ele regenerou. O anior que temos a Deus atinge
também seus filhos. Odiar os irmãos é' não possuir a vida eterna
(3,15). Crer em Deus é amar a seus filhos porque são irmãos.
O cristã.o é essencia1mente homem n~scido, gerado por Deus para
sempre, em .continua dependência dele. Possui nova vida: a da graça.
Continua a receber, ao longo de sua existência, o ser e a vida divina
de seu Pai, diversamente do que acontec~ na geração natural «Quem
ama. aquele que o gerou"' (v. 1) evoca a piedade filial, o amor do
filho para ~u progenitor. Se no plano humano as reJac;ões de carne
e sangue engendram um amor natural tão forte, quanto mais no pJano
divino o cri~tão deverá amar seu Pai celeste, por lhe ter dado, con-
Portanto;i amar o Pai inclui amar truítbém todos os que dele nas-
ceram, os cristãos. E amá-Jos por amor de Deus, já que se está ligado
a eles pela mesma natureza e graça. Deus mora continua e pessoal-
mente no cr.istão. Em virtude da graça e da participação da mesma
natureza divina, surge uma relação íntima, urna semelhança entre o
fiel e Deus, motivo de amor. Assim a fé dá origem, em nós, a novas
relações de fraternidade, uma espécie de parentesco espiritual. Em 4,20
o amor fraterno é critério do amor de Deus. Aqui (5,2) é o amor
de Deus que é critério do amor ao próximo. São inseparáveis, se com-
plementam mutuamente, porquanto há um, só autêntico amor: o amor
(ágape) com que Deus se ama e nos ama. A ausência ou presença de
um marcará r a existência ou não do outro.
Como póde S. João estabelecer critério da verdadeira caridade fra-
terna um sihal incontrolá.vel, qual é o amor de Deus? O apóstolo
explicita (v. - 2s): a observância dos mandamentos de Deus é sinal
certo de que -existe caridade fraterna. O efeito supõe a causa. O cristão
que cumpre os mandamentos (efeito) possui o verdadeiro amor de Deus
(causa). Sempre que amamos a Deus - o que se prova observando
sua Lei - possuímos com certeza também o amor que nos une aos
irmãos. Praticar os mandamentos é critério certo de que se ama a
Deus e ao próximo (2,3; 3,24). É um ideal ao qual se deve tender
com esforço, r pois o reino de Deus o exige. A porta que leva ao céu
é estreita (Mt 7,13). A vitória consiste em ser fiel até ao fim (5,4;
cf. Rm 9,19.23). Este texto demonstra egregiamente o caráter so-
brenatural do amor ao próximo na Igreia cristã, amor que só pode
existir nas almas virtuosas e unidas a Deus; Quais mandamentos (obras)?
João· não o diz, supõe-nos conhecidÚ~. Sb 6,18 dissera: O amor
consiste na .observância ·das leis. Cristo - insistira no cumprimento de
seus preceitos (2,3-6; 3,22ss; Jo 14,15.21.23; 15,10), visto que não
basta escuta~ e crer nos seus ensinamentos, mas urge praticá-los (Mt
7.24). É o axioma evangélico das «obra~». é a conformidade com a
Senhor não são pesados. Com efeito Deus não impõe a seus filhos
carga demasiada. O Concílio de Trento, ~o ensejo desse texto, afirma
que Deus não ordena coisas impossíveis (Dz 804.828). Já Filo acerta-
155
 damente dissera: «Deus não pede nada de pesado, complicado, difícil,
senão o que é absolutamente simples e fácil: amá-lo como benfeHor
(De spec. leg. 1, 299). Os preceitos de lJo são fáceis: é só crer na
Encarnação redentora de jesus, no amor do Pai e de Cristo para co-
nosco, é amar a Deus e ao próximo.
A religião do AT se fundava particularmente no temor; - a do
NT, no amor. jesus censurou nos fariseus o imporem fardos pesados
(Mt 23,4; Lc 11,46). Cristo, por sua vez, declara seu jugo leve e
suave (Mt 11,30). A lei antiga era pesada porque conscientizava do
pecado e não dava forças para superá-lo (Rm 7). A fé de' Cristo unida
à caridade, ao invés, torna acessível o cumprimento da lci, conferindo
ainda forças para isso. Para quem ama, o preceito é fácil e delicioso
(Agost., PL, 35, 2033; 40, 448). O discípulo de Cristo já não é servo
mas amigo: vai ao Pai por amor, alegre. O caminho do amor facilita
a vida. A graça, que nos faz filhos de Deus, confere-nos outrossim
potencialidade para _observar o amor e vencer as dificuldades que ofe-
rece o mu_ndo e o demónio contra tal preceito (v. 4; cf. 2,16). Dita
vitória se obtém pela fé, a exemplo de Cristo (.i\'lc 9,23; ]o 16,33;
Ef 6,15; Hb l l,33s; lJo 2,13; 4,4). E um estado de liberdade interior
que dá leveza à vida.
No v. 5 aponta-se o objeto da fé: Jesus é o Filho de Deus. A
verdade que leva à vitória é crer em jesus, o Filho de Deus. Sem
fé em Cristo não há filiação divina (5,1) e sem filiação não se terá
força para vencer. A fé fornece aos cristãos um ideal sublime, pelo
qual hão de lutar, e o auxílio da graça divina.
Insiste-se aqui na identidade do Jesus histórico com o Filho de Deus, uma
verdade fundamental do Crlstianlsmo. jesus veio ao mundo para cumprir a missão
redentora, recebida do Pai e realizada por melo da água e do sangue (v. ô).
"Agua" e "sangue" são meios de salvação (Jo 19,34ss), personificados por joão
quais testemunhas de que jesus é Pilho de Deus. A "água" aludiria ao batismo de
Jesus e o "sangue", à sua morte de cruz. jesus manifestou aos homens sua missão
divina, no início de sua vida pâblica, quando no Batismo se ouviu a voz do Pai:
"Este é meu Filho muito amado" (l';lt 3,7; jo I,32ss). Esta proclamação divina, a
descida do Espirita Santo, ao sair da água, testemunham e explicam sua missão
divina. O "sangue" (:= morte de cruz) também testemunhou sua divindade com
vários milagres: rasgou-se o véti do templo, tremeu a terra, fenderam-se as rochas,
abriram-se os túmulos, ressuscitaram muitos santos... a ponto de os guardas e
o centurião, assombrados, reconhecerem que jesus deveras era o Filho de Deus
(Mt 27,51-54). Portanto, batismo e morte de jesus resumem sua vida e sua missão
salvífica. João acrescenta (v. 6) ainda que jesus "veio não só pela água, mas
pela água e pelo sangue", querendo significar que o mesmo jesus do Batismo foi
quem morreu na cruz. E alusão aos erros de Cerinto e dos ps~udoprofetas, os
quais pretendiam isto: na cruz só morreu o homem jesus, não o f'ilho de Deus.
Outros exp:ícam esta passagem de modo diferente: Cristo teria vindo por melo
da "água" e do "sangue", saídos de seu costado, para testemunhar sua natureza
humana (Agostinho). Para outros, ainda, "água" e "sangue" seriam meros simbolos
dos sacramentos do batismo e da eucaristia, os quais, a seu modo, atestariam o
imenso amor de Cristo para com os homens e .sua divindade.
Individualmente, a I' explicação é mais justificável. Entretanto se concilia
bem com as outras, porquanto não se repelem: Cristo velo pelo batismo e pela
cruz, como pela água e pelo sangue - slmbolos dos sacramentos... S. Paulo
não associa o batismo com a morte de jesus?
Ademais (V. 6) é posto o fundamento da fé: ela se estriba no tes-
temunho divino, mais precisamente no do Espírito Santo. .E critério na
discrição dos espíritos (4,2), é a chave para melhor entender a cari-
dade. O Espírito Santo atesta sem cessar, na Igreja, que Jesus é o
Filho de Deus e Redentor. O próprio Cristo predissera tal testemunho
(Jo 15,26; 16,Sss; 8,13ss). O Espírito transforma os apóstolos, capa-
citando-os para testemunhar Cristo até ao sangue. Além disso1 converte
o escândalo da cruz em vitória plena de jesus sobre o demônio (jo
156
•
14,1.30; 16,10.33). E o Espírito da verdade e atesta Cristo na lgreja com
seus carismas e sua ação santificadora.
Bibliografia: T o m ã s d e A q u i n o, Suma Teológica; Ha a g- B
A use j o, Dicclonario de la Biblia (v. "propiciatorio"). Herder, Barcelona
or n -
1963;
Mole r o, F. R., Epistolas de San Juan, La Sagrada Escritura, Ili (NT), BAC/
i\1adrid 1962; Salgue r o, j., Epistolas católicas, Biblia comentada, VII, BAC/
Madrid 1965; S pi e q, C., Agape, Ili, Paris 1959.
Pe. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Terceira Leitura: Jo 20,19-31
<t.Felizes os que crêem sem O ver»
Outras Pistas Exegêticas de Jo 20,19-31 e 20,19-23 na .Mesa da Palavra, Ano A,
e na REB 37 (1977/148 e 149) p. 2so~-2S3• e 329~-331•.
É opinião comum entre os exegetas que o quarto Evangelho ter-
mina com 20,30-31 e que o c. 21 é um apêndice, certamente inspirado
e canónico.
Em 20,30-31 o autor resume o conteúdo de seu livrinho e esclarece
os leitores sobre a intenção com que ele o escreveu. Ele explica que
pretendeu dar uma descrição e interpretação de alguns dos muitos
sinais - o que não é o mesmo que «milagre»! - que jesus fez. O
acréscimo «na presença dos seus discípulos» é uma alusão às teste-
munhas qualificadas e fidedignas dos sinais de Jesus (cf. ]o 15,27;
Lc 1,2; At 1,21s). O critério da escolha e da descrição dos sinais
consistia na aptidão de suscitar e/ou fortalecer a fé na dignidade
messiânica e divina de jesus, fonte de vida para todos que n'Ele crêem.
Em 20,19-29 descrevem-se os últimos sinais de todos aqueles que
foram aproveitados no decorrer do Evangelho. Todos os sinais ante-
riores prepararam e culminam nestes. Estes últimos realizaram-se no
primeiro (v. 19) e no segundo (v. 26) dos «primeiros dias da semana»
ou «domingos» (cf. Ap 1,10: «dia do Senhor»). É importante captar
a intenção do evangelista. Ele escreveu no fim do primeiro século. Du-
rante várias décadas as comunidades cristãs se reuniam no primeiro
dia da se.mana para celebrar a eucaristia e comemorar a ressurreição
do Senhor Jesus (At 20,7-12; lCor 16,2). Escrevendo o Evangelho, o
evangelista colocou este costume na perspectiva das aparições de jesus
ressuscitado. A celebração dominical - ensina o evangelista nesta etio-
logia da «Missa Dominical» - tem as suas raízes na reunião vesper-
tina no primeiro dia da semana em que jesus ressurgiu do sepulcro
e subiu para seu Pai, e na repetição desta reunião oito dias depois.
Estas reuniões de jesus ressuscitado com os Seus discípulos são a
inauguração das assembléias semanais das comunidades cristãs de todos
os tempos. Todas elas são assembléias em redor do Senhor ressusci-
tado, em que Ele está tão realmente presente como naquelas primeiras.
Naqueles dois primeiros domingos Jesus veio .ainda de modo visível,
depois de modo invisível. «Felizes, porém 1 os que crêem sem O ver»
(v. 29).
O sentido da celebração litúrgica semanal é dado em três etapas,
marcadas pela antiga saudação litúrgica «A paz esteja com vocês»,
que se repete três vezes, como uma espécie de «antífona» (vv. 19.21.26).
• 157
Na primeira (v. 20), sublinha-se a «rea1is praesentia» de Jesus apesar
das portas fechadas. Jesus mostrar as mãos e os lados significa que
é o próprio Jesus morto e ressuscitado que está presente, não somente
nesta primeira reunião do Senhor com os discipuJos, mas também em
todas as demais assembléias litúrgicas.
Na segunda etapa (vv. 21-23), destaca-se a fundação da Igreja que
se realiza em três atos: a comunicação da missão (v. 21b), do Espirita
Santo (v. 22) e do poder de perdoar e reter os pecados (v. 23).
Esta fundação da Igreja nestes três atos é obra do Senhor morto e
ressuscitado, realizada no primeiro dos «primeiros dias da semana?J.
Ela não se repete, mas se renova e atualiza em cada celebração euca-
rística dominical em que se celebra a «memória» da mesma.
Na terceira etapa (vv. 26-29, preparada por vv. 24-25) realça-se
que em todas as ceJebrações eucarísticas do «primeiro dia da semana»
o Senhor morto e ressuscitado está tão rea1mente presente como na
segunda celebração deste dia, em que Tomé podia pôr o dedo no
lugar das chagas. É a fé dos fiéis de todos os tempos que Jesus
decJara bem-aventurada com as palavras; «Felizes os que crêem sem
Me ver!» Esta fé expressa-se na confissão Jitúrgica «Meu Senhor e
meu Deus!» Ela não é fé de segunda mão. É a mesma fé e a mesma
comunhão com o Senhor. O vivo contato com o Senhor é diferente,
mas não menos real.
Raul Rui ;s, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Tema Principal
CRER É ENTREGAR-SE AO TU DE DEUS E DO PRóXIMO
Sugestões para a Homilia
' intelectual. Crer é vida, práxis, atuação na história, a partir
Introdução
São Tomé entrou no linguajar de cada dia como símbolo de
cet:cismo. «Sou como São Tomé: ver para crer». São Tomé é
considerado o homem com os pés na realidade que não se deixa
levar por sonhos. Graças a essa concepção popular, ele galgou
há pouco o posto de propagandista de sabão em pó. . . O «teste
de São Tomé» desafiava o consumidor a experimentar as virtudes
de Orno ...
Corpo
1. Crer
O que não se pergunta é se o Evangelho de São João, de
onde a tradição popular haure sua figura de Tomé, a compreen-
de de fato assim. O problema radica no próprio sentido de «crer».
158
Comumente entendemos que crer é aceitar como verdadeiro o
que os outros dizem, sem prová-lo ou sem experimentá-lo por
si mesmo. E um ato intelectual sem base na experiência. Como
o crer se baseia no que outros afirmam, quem «Crê» pode ser
considerado como um «Maria-vai-com-as-outras», sem persona-
lidade para se apossar dos conhecimentos por sua própria atua-
ção. «Ver para crer» torna-se um ideal. É estar disposto a aceitar
mesmo as coisas mais incríveis, desde que se possa verificar
com os próprios olhos, a partir da experiência, se de fato é
assim. Um São Tomé realista, empirista ... tal a imagem vulgar
e corrente.
Bem diferente é o que o Evangelista nos quer dizer com
sua narrativa. Primeiramente porque Tomé não é modelo a ser
seguido, mas exemplo contra o qual precaver-se. Não é ele o
«bem-aventurado», o «feliz», mas os que não vêem e crêem.
Entretanto, esta atitude está bem distante da inocência ingênua
que n.1s entrelinhas se atribui aos que não são como Tomé.
A diferença reside em como se deve entender o verbo «Crer».
Teologicamente crer não é simples aceitação por oitiva de um
fato esdrúxulo. Crer é em primeiro lugar entregar-se a um Tu,
empenhar-se com a totalidade de nosso eu pela causa de Outrem.
Crer não faz fechar os olhos; pelo contrário: abre-os para re-
conhecer em Cristo o sentido da vida, e assim leva a prostrar-
se e clamar: «Meu Senhor e meu Deus!» Crer traduz-se em ir
até o fim com Aquele por quem se opta. É uma relação pessoal
e, por isso, transforma-se em amor. Amar e crer são duas faces
da mesma atitude. Crer, portanto, não se reduz a uma atividade
daquele a quem se aderiu.
2. Crer e observar os mandamentos
Por isso a fé transborda em amor. E não só amor a Deus.
Ou melhor: a fé transborda em amor a Deus no sentido cristão,
um amor que só chega a Deus, passando pelo irmão. É a
própria lógica da fé em jesus como Filho de Deus e Messias
que nos leva a unir amor a Deus e amor ao próximo. Só pôde
amar a Jesus de Nazaré, quem sabia amar a qualquer pessoa
humana por sua dignidade própria, mesmo no maior despoja-
mento. Pois o Filho de Deus perambulou como um pobre pelas
estradas da Palestina. Sem paradeiro nem pousada. Comeu com
os pecadores e publicanos, falou às prostitutas, acolheu os mar-
ginais. Só quem estava aberto ao amor às pessoas, real e sem
preconceitos, era capaz de amá-lo.
159
 A própria lógica da fé em Jesus, Filho de Deus, nos manda seguir seus passos. Não viram a jesus também os fariseus?
unir inseparavelmente amor a Deus e aos irmãos. Nem pode ser Por acaso lhes serviu de algo? Mas quem segue as palavras
de outra maneira, quando em Cristo nos tornamos filhos de de Cristo, quem adere à sua pessoa no concreto da vida e na
Deus. Não há meio de amar o Pai, sem amar os filhos. E a construção da história humana, esse é feliz. Seus olhos viram
melhor forma de amar o Pai é amar os filhos. Fraternidade é mais que muitas «testemunhas oculares», pois souberam descobri-
a base de nossa relação com Deus; e a fé em Deus tem por lo, quando lhes vem ao encontro no pobre, no necessitado que
exigência indispensável a fraternidade. hoje em nosso continente é o estmturalmente pobre e necessitado.
Também aqui, como na primitiva Igreja de jerusalém, se
3. A fraternidade é concreta
trata de começar a construir fraternidade a partir das bases.
O encontro com Cristo no rosto do irmão abrirá os olhos e
Fraternidade não é castelo no ar, som oco, palavra nas o coração para a responsabilidade social numa ação transfor-
nuvens. Fraternidade se constrói na concretidade do econômico madora. E essa, em movimento progressivo, partindo da defesa
e do social. É ai que ela se torna verdade e deixa de ser retó- do direito mais elementar dos irmãos desamparados, chegará à
rica. Palpável e histórica, no terra-a-terra, é a fraternidade que transformaÇão global da sociedade. Nessa opção orientada por
a fé no Deus revelado em Cristo exige de nós. uma adesão profunda e viva a Cristo (= crer), seremos «felizes».
Os primeiros cristãos o entenderam. Por isso São Lucas Porque não vimos a atuação histórica de Jesus, mas captamos
os descreve unidos num só coração e numa só alma. Coração sua presença e o imperativo que decorre da opção por ele. Não
e alma que não se fundiam no sonho, mas na realidade econô- vimos, mas cremos.
Francisco Taborda, S.].
mica e social: «Ninguém considerava seu o que possuía, mas São Leopoldo, RS
tudo era comum entre eles» (At 4,32). «Não havia entre eles
indigente algum ... » (At 4,34). O Reino de Deus que é fra-
ternidade a partir do Pai, em verdade não se realiza pelo eco-
nômico, mas no econômico. E, enquanto perdurar a história,
só nele se torna mais do que palavreado oco.
Crer é amar. Amar a Deus é criar fraternidade, a partir
da qual o possamos invocar como Pai. E fraternidade se con-
cretiza num projeto social, político, econômico. Ao cerne mesmo •
do ser cristão pertence a responsabilidade política, a contri-
buição a um projeto histórico que aproxime a sociedade mais e
mais do ideal fraterno. Não se pode ser cristão sem quebrar as
estruturas injustas que impedem o amor a Deus, expressão de
nossa fé. Estmturas injustas impedem o amor a Deus? Eviden-
temente, na mesma medida em que são concretização e força
motriz do desamor ao próximo.

4. «Felizes os que não viram e creram-;

Quem lutar por «romper as cadeias injustas, desatar as

cordas do jugo, mandar embora livres os oprimidos, quebrar
toda espécie de jugo, repartir o alimento com quem tem fome,
der abrigo aos sem teto, vestir os maltrapilhos» (Is 58,6-7),
dá verdadeira expressão a sua fé. Podem não ter visto as obras
de Jesus, seus sinais, seus gestos. Que importa? Decisivo é
160 • 151

Terceiro Domingo da Páscoa
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: At 3,t2a.13-15.17-19
É o segundo discurso de Pedro perante o povo israelita. A pri-
meira parte é mais apologética, fazendo ver que o milagre de curar
o coxo, à porta do templo (3,lss), não é obra dos ap?stolos, nem
mérito do enfermo, mas deve atribuir-se à fé em jesus Cristo (v. 16),
entregue, renegado e crucificado pelos próprios judeus, a quem Deus
ressuscitou dentre os mortos - evento que .os apóstolos podem teste-
munhar (vv. 12-16), isto é, a salvação de Deus em jesus Cristo. A
segunda parte, de caráter parenético, exorta os ouvintes ao arrepen-
dimento e à fé em Jesus Cristo, condição indispensável para participar
aos bens messiânicos (vv. 19-26), já que o Messias se destina antes
aos judeus. Para os antigos o non1e é inseparável da pessoa, é a
essência, a força de uma pessoa ou divindade. Crer no nome de Jesus
é o mesmo que crer em Jesus. O milagre dá ensejo à manifestação
da palavra. Foi o que aconteceu em Pentecostes e amiúde nos Evan-
gelhos:· fatos exteriores e palavras explicativas unem-se para eviden-
ciar a salvação.
Entre as duas partes figura uma «Captatio benevolentiae», atenuan-
do a culpa dos judeus, porquanto agiram por ignorância (do mistério
divino de Cristo, de sua niissão), pensando tratar-se de um blasfemo
e transgressor da Lei. Sem aperceber-se, contribuíram para o cumpri-
mento das profecias relativas ao Messias sofredor (Is 52,13-53,12; SI
21,2-19). «Pela boca de todos os profetas»... Os profetas formam
um todo, un1a unidade. Não equivale dizer que o sofrimento de Cristo
se encontra em todos e em cada um deles. Assim fez Jesus em Lc
24,26s, At 10,43; assim fez Pedro (!Pd l,11). É o tradicional argu-
mento das profecias. De maneira análoga falou Paulo em Antioquia
da Pisídia (13,27; cf. Rm 10,3; lCor 2,7s; l,23s), inclusive aplicando
a si tal ignorância para escusar-se da antiga incredulidade ( 1Tn1 11 13).
Semelhante desculpa aduziram Jesus, na cruz, para con1 os que o
haviam crucificado (Lc 23,34) e Estêvão para com os que o apedre-
javam (At 7,60). Naturalmente essa ignorância não os isentou de toda
a falta porque foi ignorância culpável: Jesus provara suficientemente
sua mi~são divina (jo 15,22ss; 19 11). Pedro submeteu a cura milagrosa
1
não a um suposto seu poder pessoal, mas à ação de Deus através de
Jesus Cristo.
Segue uma exposição comovente da história da salvação, na qual
se sublima o ato salvífico de Deus por intermédio de Cristo. É um
brado afetuoso à mentalidade israelita, um apelo envolvente à consciên-
cia religiosa do Povo eleito. Deus não é Deus dos mortos. É o Deus
de Abraão, de Isaac, de Jacó e de nossos antepassados. É o Deus
da A1iança, um Deus pessoa que falou a Moisés, o Deus vivo. Aparecem
aqui também os tjtu1os messiânicos de Jesus: o «Servo de Deus», o
«Santo», o «Justo» (v. 14; cf. 2,27; 4,27; 4 130; 7,52; 22,14; lPd 3,18;
ljo 2,J;, Mt 27,19; 12,18; Lc 1,35; 4,34; 23,47; jo 6,69; Is 42,lss; 53,11;
'
1
Jr 23,5; SI 15,10) muito usados pelos primeiros cristãos. Note-se que
o Cristianismo está ainda muito influenciado pelo judaísmo.
162
Os cristãos reconhecem no misterioso sofredor de Isaías (42; 49;
50; 52-53) o Servo de Javé, a pessoa de Jesus Cristo. Tencionam superar
a repugnância judaica por um Messias sofrer.lar (2,23; 8,32s; 17,3; Lc
24,26; lPd 1,11). A glorificação que Deus lhe confere (v. 13) é sua
ressurreição com todas as conseqüências (2,32ss): agora é o Senhor!
E-lhe, outrossim, aplicado o título de «Autor (ou príncipe) da vida»
(v. 15), em ant;tese ao assassino Barrabás, destruidor da mesma. A
comparação com Barrabás poderia levar a crer que se trata da vida
física. Entretanto, na perspectiva de Pedro trata-se, também e· sobre-
tudo, da vida sobrenatural (fé, salvação). Aliás, Jesus falara de «Vida»
neste sentido (Jo 10,10.28; 17,2s). Hb 2,10 e 12,2 aponta Cristo como
«autor da salvação. . . e da fé». Sem ir tão longe, Pedro pouco depois,
perante o Sinédrio (5,31), em contexto análogo, parece dar a explicação
autêntica, quando diz ser Jesus «autor da salvação ou príncipe que
nos salva» mais do que Moisés (7,25.35). De resto observe-se o para-
lelismo implícito entre Moisés e Cristo nos primeiros capítulos de Atos
(3,22; 7,35-53).
O apelo para o arrependimento e para a conversão (v. 19) está
em função da parusia (vv. 20s), e eles são necessários para merecer
a Bênção de Deus por meio de Jesus Cristo e o perdão dos pecados.
Sinal deles é o batismo. A conversão supõe uma transformação inte-
• rior do homem: para os pagãos é voltar-se sinceramente ao verdadeiro
Deus e abandonar os ídolos (lTs 1,9; OI 4,9; At 14,15; 15,19; 26,18-20),
para os judeus é aceitar Jesus como Senhor (At 9,35; 1Cor 3,16).
Já no AT há referências à conversão. A novidade na proclamação
da 1greja consiste no entrelaçamento da conversão radical e do perdão
com a obra salvífica de Jesus Cristo. Aderindo a Cristo pela fé e
pelo batismo efetua-se a justificação portadora de salvação. A remissão
de pecados e a consecução da salvação estão vinculadas ao sacrifício
expiatório de Cristo (Lc 22,19s).
Ter-se-á Pedro lembrado de sua própria negação ao dizer: «Vós
renegastes o Santo ... »? Certo, não terá esquecido seu deslize, inclu-
sive deve ter-se equiparado aos ouvintes («Deus de nossos pais»).
Talvez se deva a isto o fato de falar tão francamente do pecado contra
Jesus. O que, porém, mais conta é testemunhar o feito salvífico de Deus
em Jesus Cristo: «Deus o ressuscitou.; .. Disto. som~s. te~temunhas~ (y.
15). A afirmação da culpa humana esta hgada a testif1caçao do des1gn10
divino que se cumpriu nos sofrimentos de Cristo.
Bibliografia: Cf. Domingo de Páscoa, J:i. leitura.
Pe. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Segunda Leitura: ljo 2,1-5a
Ao iniciar a carta, João dá um testemunho preclaro e pessoal
sobre Jesus. Como -Deus é luz, o cristão deve caminhar na luz, fazendo
o bem e rompendo com o mal. Com efeito, Cristo nos purificou com
seu Sangue, mas é necessário purificar-nos continuamente (isto contra
os hereges e gnósticos que se diziam impecáveis). Dizer que não se
tem pecado é enganar-se a si mesmo, é faltar à verdade (1,8-10). A
1
auto-suficiência gera o auto-engano. Se pretendermos ser impecáveis, nos
seduzimos e enganamos. Se nos obcecamos não poderemos ver a luz,
163
1
!
 a verdade. Ninguém pode dizer-se livre de pecado. A universalidade
dele consta do AT (lRs 8,46; Jó 4,17; 15,14; Pr 20,9; Ecl 7,20; Eclo
19,17; SI 142,2) e do NT (Mt 6,12; Rm 3,9-18; !Cor 4,4; Tg 3,2). foi
confirmada pelo Concilio de Trento (Dz 833). João parece referir-se a
pecados pessoais e atuais (cf. Tg 3,2), graves ou leves, não perdoados
porque ainda não confessados.
Em vez de iludir-se com os pecados, melhor é reconhecê-los e con-
fessá-los (1,9). Como Tiago (5,16), também S. João aqui parece referir-
se a uma prática de confissão em uso entre os judeus e, depois, entre
os cristãos (Me 1,5; Didaquê 4,14; 14,1).
Quis-se ver nesta passagerii (1,9) uma alusão à confissão sacramental, iã que
S joão ê quem recorda o poder conferido aos apóstolos de perdoar pecados (Jo
2Ó 23). Deveras, hã um paralelo literal evidente. Entretanto, a exegese antiga vê
aq'ui apenas uma acusação humilde e interior dos pecados diante de Deus. O
Concilio de Trento, ao falar da instituição dã Penitência, aduz IJo 1,9 e Tg !J,16
sem, porêm, definir-lhes o sentido exato (Dz 899). A partir de S. Roberto Belarm!no,
muitos teólogos inferem dele (J,9) a confissão sacramental. É- fazer o texto dizer
mais do que intentava. i\lelhor ê ver nele a necessidade de confessar noss.os peca-
dos, sem especificar onde e como. Deus perdoa a quem sincera . e .hunuldemente
pede perdão, porque ê fiel e justo (Ap 16,5ss; Hb 10,23; 11,11), m1sencordioso, em
virtude de seu Sangue redentor (l,7; 2,2).
Todos somos pecadores, mesmo depois da justificação. Negá-lo é
tratar a Deus de mentiroso (v. 10), já que a Escritura a toda hora
afirma ser o homem pecador. Quem não se reconhece tal, priva-se da
luz que lhe subministraria a Palavra de Deus, única a dizer a ver-
dade e a nos libertar. - Até. aqui o contexto antecedente.
A pecabilidade universal é conseqüência da fragilidade humana. Tal
condição não autoriza a pessimismos ou desesperos. João, falando ao
círculo íntimo dos fiéis (note-se o diminutivo de afeto: «meus filhi-
nhos»), previne de que não se peque, mas, se acontecer, sugere a espe-
rança: Jesus Cristo, o Justo, é nosso intercessor e defensor junto a
• Deus Pai (2,l), advogando nossa causa, como vítima de nossos pe-
cados. O cristão, ciente de sua fraqueza, deve recorrer constantemente
a tal Advogado e a seu Sangue propiciatório.
Filo aclara o que seja o "paráclito", referindo-se com este te~mo ora ao Sumo
Sacerdote munido do peitoral do julgamento (Ex 28,29). o qual intercede na terra
por Jsraei ora ao Verbo que dá eficãcia no cêu à intercessão do S. Sacerdote na
terra (De' vita M~sis, 3, 14, 155).
Jesus, ainda em vida, prometera este outro defenso~ junto ao ~ai,
o Paráclito (Jo 14,16), sinal de_ que Ele . o era. lambem. A doutrma
consoladora da intercessão de Cristo nos ceus fazia parte da catequese
antiga (Rm 8.34; Hb 4,14ss; 7,24s; 9,24; !Tm 2,5). Fácil é pecar,
porém. consola saber que há um intercessor, poderoso e amigo; logo,
não se trata de um Juiz severo, senão de um Pai amável, que escuta
seu Filho quando suplica por nós sem cessar. Não sem mérito, porque
jesus é ~ justo: não ten1 pecado, é a própria santidade, é o Filho de
Deus. Sua intercessão, em decorrência, é infinitamente eficaz.
Ademais, Jesus é a expiação pelos -nossos pecados e. pel~s. do mundo
inteiro. Expiação ou propiciação (gr.: «hilasmós» ou «hl1astenon»; 4,1~)
significa uma -situação definitiva de vítima pelos nossos pecados, atraves
de seu Sangue e de seu sacrifício que nos reconciJiou com Deus. Uma
vez que jesus se ofereceu a si mesmo. em sacrifício expiatório (Is 52,13-
53,12), agora pode aplacar ao Pai, apresentando seu Sangue derramado
por nós pecadores (Hb 9,11-14; Ap 1,5). E o faz de modo permanente
164
e incessante, porque é o Justo. Dissera Paulo: «Deus o destinou para
ser, pelo seu Sangue, vítima de propiciação mediante a fé ... » (Rm 3.25).
"Hi1astérlon"/"hilasmõs" na LXX traduz o hebraico "kapporetb", a tampa, re-
vestida de ouro, que recobria a Arca da Aliança, a peça mais importante e_ signi-
ficativa do santuârio. Teologicamente "kapporeth" simbolizava a presença de Javé
e aquilo que realizava a reconciliação no dia da expiação (Yõm Kippur). Seria o
centro do Santo dos Santos, o trono de Deus, onde residia Javé, lugar inacesslvel
ao povo somente aberto ao Sumo Sacerdote. Ai Deus se revelava e comunicava
com o Povo; ai perdoava os pecados . e mostrav~ . S!Ja misericõrdi~. Por. isso, tornou-
se 0 centro do culto mosaico, onde o sacnf1c10 da expiaçao obtmha toda a
eficácia aplacando a Deus. No NT, no. sacrifício da cruz, Cristo é para sempre
nosso ~propiciatório" pelo qual nos reconciliamos com Deus. jesus r.ealizou em
sua pessoa a propiciação. prefigurada !'º "kapporeth" da Are~. asper~1do com o
san!!lle das vitimas. A purlhcação mosaica com o sangue e a nitercessao do sumo
sacêrdote, no dia da expiação, Jesus as concretizou de modo (mico e superior na
paixão e morte, e contin,ua fazendo-o no céu para sempre e para todos (Ap 5,6;
cf. ST, III, q. 48, a. 2).
Portanto, todos podem salvar-se contanto que saibam aproveitar do
perdão que se lhes oferece (4,14; Jo 3,16-21; 4,42; 12,47; JTm 2,4ss).
S. Jo.ão responde aos gnósticos, que admitiam a eficácia redentora de
Cristo só para os bons. Nos vv. 3-5 se discerne paradoxalmente quem
são os filhos de Deus. Para ser filho de Deus não basta fugir do pe-
cado, mas é preciso guardar seus mandamentos, peculiarmente o do
amor (1,5ss). Este é o critério dos verdadeiros conhecedores de Deus
(contra os gnósticos). Não é suficiente conhecer a Deus em teoria,
como os filósofos. Urge também conhecê-lo experimentalmente, mediante
uma· fé viva, que envo1va o homem todo para uni-lo eficazmente a Deus,
tornando-se assim norma de vida. «Conhecer~ significa «Saber» e tam-
bém «saborear algo» ou «estar u~ido a e1e» (cf. 2Cor 13,6; OI 4,9).
Conhecer a Deus é participar de sua vida, é estar em comunhão com
Ele.
Destarte, o conhecimento de Deus não pode andar separado da prá-
tica dos mandamentos (3,5). O mesmo se diz em Tg 2,14ss: a fé está
Jigada às obras. Em Paulo o que vale na vida cristã é a fé que age •
• peta. caridade (GJ 5,6). São conceitos que servem para diferenciar o
verdadeiro cristão do herege. Nota-se o tom po1êmico contra os gnós-
ticos: o conhecimento, meramente especulativo de Deus, se não leva
à prática dos preceitos, nada vale. Não há conhecimento verdadeiro
de Deus, nem comunhão com Ele sem a conformidade com sua vontade.
Quem obedece aos mandamentos prova Que deveras conhece a Deus.
Pretender conhecer a Deus sem_ a prática dos preceitos é ser men-
tiroso (v. 4), é como aquele que está nas trevas e pretende estar em
plena luz (1,6). João se refere aos falsos doutores que ostentavam
sua ciência (gnosis), mas faltavam aos mais~ elementares deveres da
vida cristã. Sob pretexto de sua liberdade, obtida mediante a gnose,
davam largas à libertinagem moral, à rebelião contra a Lei de Deus.
O Apóstolo os chama de embusteiros, dada a falsidade de sua ciência,
destituída da graça divina, única a_ habilitar para o reto conhecimento
de Deus. Este colima para o amor, que por sua vez se explicita pela
vivência dos mandamentos (Jo 14,15-23). A obediência à Palavra supõe
atos e esforços que plenificam o amor a Deus. Aqui a caridade goza
de primazia sobre o conhecimento e, em Paulo, sobre a fé ( 1Cor
8,2s; 13).
O falso cristão (v. 5) difere do autêntico: este cumpre e guarda
a Palavra divina. «Guardar a Palavra» diz mais do que «guardar os
seus mandamentos», porquanto a Palavra de Deus enfeixa toda a Re-
velação e não apenas alguns mandamentos (Jo 14,24; Ap 22,7.9). A cari•
16'1
 dade, em quem guarda a Palavra de Deus, é bem mais perfeita do que
naquele que sô observa alguns preceitos. Aí está o critério do lídimo
cristão (l,lO; 2,14; Jo 5,38; 8,31).
A caridade, virtude essencial no Cristianismo, refulge nos escritos
joaninos, em especial no Evangelho e na 1~ Carta. A caridade de I]o
é uma realidade sobrenatural ontológica, conferida por Deus ao homem,
não apenas uma resposta psicológica ditada pela gratidão humana. Assim
a caridade do homem é uma verdadeira participação· da caridade incria-
da -de Deus. «A caridade é a própria essência divina, com a qual ·par-
ticipadamente amamos de maneira formal ao próximo (ST, II-II, q. 23,
a. 2). É um verdadeiro dom real de Deus, que o homem não recebe
passivamente, mas aceita livremente, cooperando com Ele com todas
as forças. Deus ama primeiro, confere ao homem a capacidade de amar
a Deus e ao próximo. Na caridade do homem se unem o elemento
divino e o humano: o amor de Deus para o homem e o amor do
homem para Deus. Tal amor é «perfeito» (v. 5), isto é, em sentido
escatológico e finalístico, - em sentido de perfeição à grega (por
evolução), - ou em sentido de estado perfeito pleno, graças ao ele-
mento divino e humano. · ·
Bibliografia: Cf. 29 Domingo de Páscoa, 2• leitura.
Pe. Matheus F. Giuliaui, S.A.C.
Santa Maria, RS
Terceira Leitura: Lc 24,85-48
«Mostrou-lhes as mãos e os .péS»
• O último capítulo do Evangelho de Lucas (Lc 24) divide-se em
três parles: vv. t-12.13-35.36-53. Esta divisão ·baseia-se em diversos
critérios. O conjunto todo apresenta-se como um tríptico ou quadro de
três painéis.
Um primeiro critério para distinguir os painéis é aquele das pes-
soas que desempenham um papel. Há três grupos diferentes. No pri-
meiro painel (24,1-12) apar~cem algumas daquelas mulheres que acom-
panhavam jesus durante a sua vida pública e que «tinham vindo com
Jesus da Galiléia> (e!. 8,1-3; 23,55). No segundo painel (24,13-35)
encontram-se dois representantt!s dos setenta (e dois) discípulos que
Jesus mandou à sua frente (e!. 10,1-20). No terceiro painel (24,36-53)
domina o grupo dos onze apóstolos. Constat~-se um certo clímax nesta
seqüência de grupos de pessoas. ~
Um segundo critério é fornecido pelas aparições. Distinguem-se três
tipos de aparições, um para cada paiD;el. As mulheres não aparece o
próprio jesus ressuscitado, mas «dois homens com veste fulgurante»
(v. 4) ou anjos (v. 23). Aos discípulos de Emaús aparece jesus, mas
Ele não é reconhecido. Nó próprio momento em que O reconheceram,
Ele desapareceu. A aparição de Jesus aos apóstolos é a mais evidente:
. os onze são convidados a ver e apalpar as mãos e os pés de Jesus
e Ele come à vista deles.
-Como na seqüência dos diversos grupos de pessoas existe nesta
seqüência das aparições um clímax inegável. As mulheres são informa-
das do evento da ressurreição; o dois discípulos gozam da presença
de jesus ressuscitado, mas não O identificam a não ser no momento
166
í
f
de seu desaparecimento. A narração da apar1çao aos apóstolos é uma
acumulação de provas da identidade do aparecido - primeiro confun-
dido com um fantasma! - com jesus de Nazaré crucificado.
Um terceiro critério da divisão em três partes encontra-se nas
instruções que as três categorias de pessoas recebem. Também nestas
instruções pode-se constatar um clímax. As mulheres são ensinadas pelos
anjos de que jesus mesmo, antes de sua morte, já instruiu os discí-
pulos de que a sua morte não seria o fim de sua história. Faz-se
uma· referência à predição da paixão, morte e ressurreição que jesus
proferiu durante a sua vida terrestre (v. 7j cf. 9,22). Duas vezes insiste-
se nesta «memória» do passado (vv. 6 e 8). No segundo painel é o
próprio jesus que retoma esta predição. Mas os discípulos de Emaús
somente recebem estas instruções de jesus depois de terem dado a
versão deles da história de Jesus (vv. 19-24). Esta versão é, de fato,
um resumo de todo o Evangelho anterior, inclusive dos dados do pri"."
meiro painel do triplico (vv. 22-24 = vv. 1-12!). Por isso não se espera
uma reação tão vio1enta de jesus a esta versão dos fatos. A repreensão
de Jesus: «Ô insensatos e lentos de coração ... » (v. 25) só pode signi"."
ficar que à história como ela foi contada pelos disc;pulos faltava o
essencia1, a saber, a chave de seu entendimento e de sua interpre-
tação. É o próprio jesus ressucitado que fornece esta chave, ensinando
a necessidade salvífica da paixão e demonstrando como os aconteci-
mentos pascais de sua morte e ressurreição estavam inscritos nos planos
de Deus, revelados nas Escrituras (vv. 26-27).
Na instrucão dos apóstolos (vv. 44-49) Jesus ressuscitado repete,
primeiro, a inStrução dada aos discípulos de Emaí1s (v. 44 = v. 27);
depois, a instrução dada às mulheres (v. 46b = v. 7;_ cf. v .. 26). Por
fim há na instrução aos onze um elemento novo, nao mais voltado
par~ o passado, mas para o futuro: acrescenta-se que esta história
há de ser pregada a todas as nações (v. 47). Ele declara os apóstolos
as ieslemunhas qualificadas desta história (v. 48). E promete o Espi-
rito, ·necessário para a devida execução desta missão (v. 49).
Como já foi dlto, também nestas instruções existe um çlimax muito·
claro acentuado pelas repetições e progressos em cada painel. Não
há ~ais dúvida de que Lucas compôs este Ciipítulo final de seu Evan-
geJhO com muito cuidado. Parece que Lucas, pelo modo de estruturá-lo,
quis dizer que a figura de jesus e as vicissitudes de sua história s~­
mente são inteligiveis e relevantes para os discipulos à luz da re~surre1-
ção e, mais ainda, à luz da paJavra e da presença do ressuscitado.
Talvez exista um quarto critério para distinguir os painéis. A reação
à primeira aparição consiste somente em descrença . (~.. 11). ~ue a
fé em Jesus e a interpretação adequada de sua hi~toria supo_em. a
presença do próprio ressuscitado - que não se realizou no primeiro
caso quando somente apareceram anjos! - Lucas sugere P.elo fato
de que os olhos dos discípulos de Emaús somente se abriram no
momento em que jesus «tomou o pão, o abençoou, depois partiu e
distribuiu a eles» (v. 30). Trata-se do gesto eucarístico, já comum
quando Lucas escreveu este capítulo. Que a devida _pregação da his~ó­
ria de jesus, expressão da fé adequada, su~õe uma presença esp~~1a1
do Senhor ressuscitado, encontra a sua expressao na promessa do Espirita.
167
...----- --- ----
' O terceiro painel: jesus e os apóstolos: vv. 36-53
No terceiro painel o evangelista quer demonstrar a identidade de
jesus ressuscitado com o jesus da vida pública. Para isso ele recorreu
o fatos e ditos. A fatos, porque Jesus mostrou mãos e pés, marcados
pelas chagas, e comeu alguma coisa diante deles. A ditos, porque Jesus
retomou as predições da paixão e ressurreição proferidas durante a
vida p~blica (e!. Lc ?,22.44; 17,25; 18,31-33). 'É este Jesus morto e
ressuscitado, que admite de novo os apóstolos à sua comensalidade
e comunhão - o que representa um sinal efetivo ou sacramento de
perdão -, é este Jesus que encarrega os apóstolos com a missão de
pregar a todos os povos a penitência e a remissão dos pecados em Seu
nome (v. 47).
Eles devem pregar esta mensagem, colocando-a nas perspectivas
da história da salvação como esta está anotada em toda a Bíblia nos
livros de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. ' - A Palavra de Deus é clara: para obter o perdão dos pecados
Lucas conhece três etapas na formação dos apóstolos. A primeira
coincide com. o ministério terrestre de Jesus (v. 44) antes da morte;
a segunda situa-se durante os quarenta dias entre a ressurreição e a
ascensão (vv. 45-48; cf. At 1,1-11); a terceira começa no dia de Pen-
tecostes com a missão do Espírito Santo (v. 49a). O mestre que dá
e?ta for!11a~ão_ é o Jesus mortal, o Jesus ressuscitado e o Jesus entro-
nizado a d1te1ta do Pai (e!. At 2,33).
Comparando-se vv. 44-48 com a parte querigmática dos discursos
dos Atos dos Apóstolos (p. ex., At 2,22-24.38; 3,13-19; 5,30-32), vê-se
que Lucas acentua muito que Jesus mesmo está à origem da pregação
da lgreja pós-pascaJ. Isto quer dizer, ele sublinha que a corrente de
tradição que vive na Jgreja não começou com os apóstolos mas com
o próprio Senhor ressuscitado (cf. OI 1,1.11.15ss). Foi o Senhor ressus-
citado que abriu o espírito dos discípulos para que compreendessem
as Escrituras (v. 45). A interpretação adequada das Escrituras não
era,. pois, uma questão de teologia, mas de revelação. Nem o Jesus
mortal conseguiu abrir os olhos dos discípulos mais íntimos para a
Sua verdadeira missão. Foi o Senhor ressuscitado que lhes revelou o
sentido da Cruz (v. 46). Não existe prova mais clara de que a fé no
Messias de Deus exige mudança de mentalidade e remissão dos pecados
(v. 47). A revelação de Deus em Jesus revela de um modo assustador
a incapacidade e indignidade do homem diante do divino. Mas ela não
foi dada para condenar e sim para salvar o mundo. Jesus é o salvador
de todas as nações (v. 47b). Para que a salvação alcance realmente
a todas elas, E1e encarrega os apóstolos de serem testemunhas desta
Boa-Nova (v. 48).
Jesus despede-se deles com uma promessa (v. 49) e com uma
bênção (vv. 50-51). Por isso esta despedida não causa tristeza pela
separação mas «grande júbilo> (v. 52) e· <louvor a Deus» (v. 53).
A ida ?e Jesus _não é o fim de uma esperança lograda (cf. v. 21),
mas a inauguraçao de uma nova etapa da História da Salvação a do
Espírito e da Igreja. '
Bibliografia: Os comentários de R e n g s t o r 1 P J u m m e r \V i k e n h a u s e r
S tu h 1 m u e 1 J e r. Lc 24.13-35 foi comentado ~a J\1esa da Palavra, Ano A. p:
218-220; ai outras indicações bibliogrâficas.
Raul Ruijs, 0.F.M.
Petrópolis, RJ
168
Tema Principal
A palavra de Deus nos é · proclamada para que a gente tenha
fé em Cristo ressuscitado: ele está na glória do Pai, na sua amizade.
Ele se mostra presente no meio de nós para que, crendo, sejamos
perdoados dos nossos pecados. Mesmo ofendido pelos nossos pecados,
ele nunca se afasta de nós, mas vem chamar·nos para a conversão.
Vejamos em jesus que ressuscitou, o amigo.
Mas somos chamados a não pecar mais. Sua Palavra e seu modo
de viver nos fazem evitar o pecado.
Ouvir a palavra de Deus perdoa nossos pecados e também nos leva
a viver sem .cometer o pecado.
O conteúdo das leituras
é preciso mudar de vida, voltar para Deus (1' Leitura). Só a cegueira
da ignorância pode levar à rejeição daquele que é justo e santo e
vem justamente para que sejamos perdoados de nossos pecados e nos
tornemos santos e justos como o Cristo. Quem condena uma pessoa que
nunca fez nenhum mal? Talvez aqueles que não aprenderam a praticar
o bem.
- João (2' Leitura) com especial carinho chama os cristãos de
«meus filhinhoS» e logo afirma que «escreve. . . para que não cometam
pecado». Sair da ignorância é reconhecer que Jesus é justo; sua vida
traz lições. Mas não basta repetir as palavras de Jesus nem mesmo
é suficiente aceitar que são verdadeiras. Quem «conhece» que o ensi-
namento é certo e não obedece, é mentiroso. Mentiroso é o pouco que
se pode dizer neste caso. Seria muita maldade no coração querer errar
de propósito; então a gente prefere se enganar, quer dizer: mentir
para si mesmo. É claro que, com isso, se pretende mentir para Deus.
IssoJ porém, é impossível.
- O Evangelho insiste que é preciso crer e fazer experiência de
Jesus, sobretudo de sua ressurreição e de sua vida em Deus, para
acolher a mensagem de perdão que ele traz. Mas Jesus ressuscitado
não aparece para cada um de nós. É preciso fazer uma experiência
pessoal e contá-la aos outros. Mesmo assim, quem ainda não fez expe-
riência de Jesus vivo e presente se assusta se alguém aparece dizendo
«A paz esteja convosco». Ficando no pecado não se pode conhecer
a paz. Pela remissão dos pecados, voltando para Deus, mudando de
vida, a gente entende que não é preciso tremer. A paz de jesus estará
em nós. Não cometendo mais o pecado, a paz permanece em nós e já
podemos dar testemunho dela.
Sugestões para a Homilia
Introdução
Os textos da Palavra de Deus, hoje lidos, nos fazem refletir
sobre 3 comportamentos: a ignorância - causa de tantos males,
o conhecer por experiência - que leva a não cometer o pe-
169
 cado, e o testemunho de que, com a rem1ssao dos pecados,
encontramos a paz. Vejamos, rapidamente, cada um destes
comportamentos.
Corpo
1. A ignorância, causa dos males
E preciso reconhecer e denunciar os males. Matar alguém,
condenar o inocente, viver na injustiça, oprimir os mais fracos
e tantos outros males semelhantes, todos percebem. Mas a igno-
rância faz dizer que podemos continuar fazendo tais coisas. Até
Pilatos, que não tinha tanta instrução sobre o verdadeiro Deus
dos antepassados do povo judeu, já havia decidido soltar Jesus.
Mas Pedro denuncia o povo por ter condenado Jesus. Insiste no
fato de reconhecerem que foram eles os responsáveis pela morte
de Jesus. Primeiro passo para a conversão: reconhecer que somos
responsáveis pelos males existentes. A tendência é sempre achar
que os outros são responsáveis. Um exemplo: discutia-se sobre
a paz no mundo. Alguém levantou-se e disse: «eu não sei o
que os grandes vão fazer, mas eu quero a paz no mundo. E
vou começar. Como? Na minha casa vou encontrar o caminho
da paz verdadeira. Minha casa está no mundo. Assim o mundo
terá um pouco mais de paz». Tratava-se de uma pessoa analfa-
beta, mas não ignorante.
Ignorância é ficar como está, sem ver os erros. Os judeus
da época de Jesus, e todos nós, somos responsáveis pelos males
existentes. Se nos recusarmos a aceitar isso, somos ignorantes.
Mas Pedro não pára nisso. Ignorância não traz culpa. «Vocês
não são culpados» muito embora o pecado da morte de Jesus
e tantos outros pecados estejam aí, diante de nossos olhos.
«Convertam-se, mudem de vida, voltem para Deus e os pecados
serão remidos».
2. O conhecimento - para não pecar
1 Muitas coisas a gente sabe porque ouviu dizer, mas ninguém
! está disposto a dar a vida pelo que ouviu dizer. Responsáveis
mesmo pelas «fofocas» e também pelas verdades são aqueles
que nos disseram. Não se trata de apenas «saber». E preciso fa-
zer a própria experiência numa dinâmica de con-viver, de «saber
com» quem aprendeu profundamente. Conhecer é perceber com
o íntimo do coração a realidade que se compreendeu com a
mente desligada do restante da pessoa.
170
Outros discípulos haviam tratado o Cristo ressuscitado como
um peregrino, ou melhor, um estrangeiro. Depois de terem apren-
dido os ensinamentos das Escrituras, explicadas pelo próprio
Jesus, o reconheceram «num gesto de partir o pão». Viram
como o saber pela explicação dos profetas é muito diferente
do «Conhecer» pela presença que se revela. Eles contam sua
experiência mas os outros discípulos não prestam atenção. Tanto
assim que, ao ouvirem aquela saudação bem característica do
mestre: «A paz esteja com vocês», julgaram ver e ouvir um
fantasma. Quantas vezes somos semelhantes aos discípulos: o
normal seria a gente ouvir boas referências aos nossos irmãos.
Mas estamos ·tão desacostumados com isso que julgamos ter
uma visão quando nos contam boas notícias; as coisas erradas,
mesmo não verdadeiras, sempre deixam marca em nós. Ao menos
pairam dúvidas sobre as pessoas que sofrem calúnias. Até a
sociedade em que vivemos parece ter mudado o princípio fun-
damental do direito: «o réu precisa ter sua suposta culpa com-
provada para ser condenado». Hoje, gente é presa, banida, jul-
gada, desprezada. . . e depois se verifica que era inocente. São
centenas. Quantas prisões preventivas não indenizadas!
O Ressuscitado conhece bem as pessoas humanas. Não se
irrita porque os discípulos não acreditam. Nem mesmo que o
chamem de «fantasma». Leva-os à experiência: mostra pés e
mãos. Olhem, toquem. . . Pede peixe e come; fala com eles
para que prestem atenção às Escrituras e façam a experiência
de que isto que fora predito está acontecendo. Só assim acolhem
a «mensagem do perdão dos pecados». São João convida os
«filhinhos» a fazerem a experiência de obedecerem à Palavra
de Jesus, de a colocarem em prática e assim chegarem ao «Co-
nhecimento». Quem conhece e não pratíca, mente para si mesmo.
Quem põe em prática o que perdeu, conhece por experiência
como é bom tornar-se justo como Jesus «O nosso Justo». E «não
comete mais o pecado» de rejeitá-lo. A rejeição é fruto da igno-
rância. Havendo conversão, mudança de vida, voita para Deus ...
há perdão dos pecados.
3. Testemunhar - para encontrar a paz
A ignorância leva à rejeição. O conhecimento tira da vida
mentirosa e perdoa os pecados. O testemunho permite encontrar
a paz do Cristo. E a dinâmica da experiência humana. E tam-
bém o processo do crescimento na fé. O testemunho dos discí-
pulos de Cristo não produz a fé. Esta é dom do Cristo ressusci-
tado. Ele é quem diz: «A paz esteja convosco». Mas mostrando
171
 com pés que andam para fazer o bem, com mãos que se abrem
generosamente, repartindo com os outros a comida, um peixe
apenas. . . entendemos aquilo que lemos nas Escrituras. Cristo
apareceu para abrir os olhos dos discípulos e assim deixarem de
ver fantasmas onde havia um verdadeiro homem que se entre-
gou por amor, para a remissão dos pecados. Esses mesmos
discípulos se tornam os anunciadores, aqueles que vão contar
sua. experiência para que outros façam a mesma experiência.
Ass m lodos encontrarão a paz. Hoje, em nome do Cristo a
Igreja diz ao mundo: «A paz esteja ... » O mundo pensa que
ela é fan!asma. Mas a verdade é que a Igreja quer a paz para
todos os povos e luta por isso. Sofre também perseguições,
mas não se acovarda. João Paulo li é testemunho eloqüente
dis~o e a imprensa mundial lhe confere esta autoridade, já re-
cebida de Cristo.
Conclusão
Perdão dos pecados, paz e Eucaristia
Nesta liturgia da Palavra ouvimos que somos ignorantes
e por isso rejeitamos o perdão e a paz. Parece que estamos
vivendo até fora do mundo de hoje. Se acolhermos a Palavra
e esta m'ssa se tornar uma experiência que nos leve ao conhe-
cimento da presença de Cristo em nosso meio, leremos o perdão
dos nossos pecados. Vivendo a comunhão com Jesus e dando
testemunho desta fé comum, uns aos outros, encontraremos a
paz. Na Eucaristia de hoje, mais uma vez Jesus nos diz, por
me10 daquele que preside esta celebração: «A paz esteja com
vocês».
Agora já podemos vencer a ignorância, aceitar Jesus que
quer comer conosco, conhecer quanto isto é bom. Teremos, nesta
celebração, o perdão dos pecados, se «nos arrependermos da
nossa rejeição e ignorância, mudarmos de vida e voltarmos para
Deus». Hoje podemos fazer a experiência do que significa a
1
«Paz do Cristo».
!
Maucyr Glbin, S.S.S.
'1 Brasilia, Df
i observância mosaica para os pagãos convertidos ao Cristianismo (At
' salvação. Não poupa ao Sinédrio: «Vós o crucificastes»! Paulo, logo
1
1.
r 172
Quarto Domingo da Páscoa
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: At 4,8-12
Pedro e João, retidos, estão ante o Sinédrio, cuja autoridade não
desconhecem, o qual lhes pede justificativas de sua pregação cristã.
O milagre do coxo, junto à porta «Formosa», deu o que fazer às auto-
ridades religiosas judaicas: o fato era evidente (3,7ssi 4,14ss) e, por
outra, elas obstinavam-se a crer. Crescia assombrosamente o número
de adeptos da nova religião que punha em perigo a mosaica. Não
restava senão encerrar a questão e intimar os apóstolos a não mais
pregar. Ao que Pedro e João responderam com delicadeza e franqueza
não ser possivel calar, porquanto fazia-se mister obedecer a Deus,
antes que aos homens (4,19s; 5,29). Embora devessem obedecer às auto-
ridades legitimas (lPd 2,13s; Rm 13,1-7; TI 3,1), tinham ordem de
pregar o Evangelho (1,8; Mt 28,19ss; Lc 24,47). Contra uma ordem
expressa de Deus não valem leis humanas; à pergunta tios sinedritas
sobre a autoridade e jurisdição dos apóstolos em matéria de religião,
Pedro, não como simples homem, porém cheio do Espírito Santo, res-
pondeu respeitosa e intrepidamente com uma admirável profissão de fé
em jesus Cristo: «Nós pregamos a todos em nome de Jesus Cristo
de Nazaré, a quem vós crucificastes. Ele ressurgiu dos mortos e curou
o coxo, como bem sabeis. Apesar de rejeitado, não há outro nome
pelo qual possamos ser salvos» (vv. 11-12). No v. 12, com mais força
e insistência do que nos discursos anteriores, Pedro assegura que Jesus
é o único Salvador. A idéia de salvação está contida em jl 3,5 e na
própria etimologia do nome de Jesus (Mt 1,21).
Lucas, autor de Atos, evangelista do Espírito Santo, anota a pre-
sença da 3' pessoa divina nos Apóstolos, o que vinha realizar a pro-
messa de Jesus para depois de sua morte (Lc 12,1 ls; 21,13ss; Mt 10,12;
Jo 14,26; 16,7-15; At 1,5.8; 2,4.38). Ao longo de Atos, é o Espírito
Santo quem dirige a vida da Igreja inefável e eficazmente.
A crucifixão e a ressurreição são dois fatos-chave na história de
Jesus e da fé Ciistã: aquela é a prova mais clara da realidade da
morte . de jesus, - esta explica seu poder. O mistério da vida da
Igreja entra em ação. As palavras de Pedro são de grande alcance,
nas quais já não se faz sequer menção da Lei corno fator de salvação.
Até mesmo nem se pode confiar nela em termos de justificação. Coisa
igual se dirá no Concílio de jerusalém para solucionar a questão da
15,IOs). Pedro não perde a oportunidade de anunciar a mensagem de
mais, ver-se-á na mesma contingência, quando insistirá na universali-
dade da salvação, efetuada por Cristo, sem distinção de raças e de
classes sociais (Rm 10,1 ls; OI 3,26ss).
O príncipe dos Apóstolos repesca no AT uma citação, aplicando-a
a Cristo: cA pedra que foi desprezada por vós, edificadores, é que
se tornou a pedra angular» (SI 117,22; e!. lPd 2,4.7; Rm 9,33). Tam-
bém Jesus já o fizera, adaptando a si a referida passagem: apesar de
173
 rejeitado pelos judeus, Ele é a pedra angular da nova casa de Israel
(v. 11; e!. Lc 20,17; Me 12,10; Mt 21,42). jesus, desprezado pelos
homens, foi glorificado por Deus. Tanto os primeiros cristãos quanto
o judaísmo posterior admitiram o caráter messiânico do Sl 117. A
citação caracteriza inequivocamente a obcecação e a tragédia do Povo
eleito por Deus.
Quem é que interpela os Apóstolos? São sacerdotes, o chefe do
templo e saduceus (4,1), os quais, indignados face ao sucesso dos
Apóstolos, sendo já tarde, submeteram-nos à prisão preventiva, na espe-
ra de soluções da parte do Sinédrio logo que raiasse o dia. Os sa-
cerdotes, a polícia do Templo se revezavam em turnos (ICr 241-19·
Lc 1,5). O chefe do Templo' («strategós», cf. 5,24ss), posto im~diat~
após o sumo sacerdote, era um sacerdote encarregado da ordem no
culto, nos turnos, nas manifestações populares, - cargos de impor-
tância nesse tempo de efervescência política. Quanto aos saduceus não
se vê claro o porquê de sua presença, já que não exerciam função
aí, É possível que, entre os ouvintes de Pedro proclamando a ressurrei-
ção de Cristo, houvesse também saduceus, os quais, dada sua ojeriza
contra a ressurreição (23,6-9; Mt 22,23), se teriam dirigido aos en-
carregados do Templo a fim de prender os apóstolos. Nesta época,
os saduceus gozavam de grande prestígio, porque era dentre suas
famí1ias que em geral saía o sumo sacerdote, responsável último pelo
Templo e pela religiosidade. Acresce ainda, segundo Atos, serem os
saduceus inimigos ferrenhos do Cristianismo, ao passo que os fariseus
eram mais benignos. Todavia não faltavam fariseus inimigos (cf. 26,5-11).
O sinédrio (v. 5), conselho supremo de Israel, compunha-se de prínci-
pes dos sacerdotes (aristocracia sacerdotal), anciãos (aristocracia leiga)
e escribas (doutores da Lei, em geral fariseus); era detentor do poder
civil e religioso, tanto quanto Roma permitisse. O presidente nato do
sinédrio era o sumo sacerdote, no caso Caifás (cf. ]o 18,13), que pon-
tificou do ano 16 a 36 de nossa era e foi deposto pelo legado L.
Vitélio. Figura também aí Anás, sumo sacerdote deposto por Valério
' Grato, em 15 dC, depois de reinar 9 anos, quando granjeou autori-
dade mesmo sobre seus sucessores.
Pode-se compartir da tensão provocada no interior do sinédrio, quando
1! eles, que mataram a Jesus e assim rejeitaram Aquele que se tornaria
a pedra angular, ouviram ressoar no próprio recinto a proclamação
audaz de que não há fora de Jesus outro caminho de salvação. Nestas
1 palavras expressa-se a mensagem fundamental de toda a pregação apos-
tólica e nelas se condensa a preocupação de todos os escritos do NT.
Nas palavras de Pedro perante o grande conselho de Israel, encontram-
.
'
se os conceitos «verdade», «graça», «luz», cvida» ... e todas as expres-
sões mediante as quais é parafraseada a salvação que Deus ofereceu
ao mundo em Jesus.
Bibliografia: Cf. Domingo de Páscoa, ]t leitura.
Pe. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
174
Segunda Leitura: 1Jo 3,1-2
Após ter dado testemunho sobre o Verbo (1,1-4), João passa a
intimar o cristão a que ande no caminho da luz (1,5-2,28), rompendo
com o pecado, observando os mandamentos, precavendo-se do mundo
e desconfiando dos anticristos. Numa segunda etapa, convida-o a viver
como filho de Deus (2,294,6), observando os mesmos tópicos de antes,
os do caminho da luz. O presente texto anaHsa o princípio de viver
como filhos de Deus. A idéia de justiça (2,29) liga com o que precedeu.
Os que praticam a justiça poderão ir tranqüilos e confiantes ao juízo,
jã que Deus é justo e os justos nasceram de Deus para uma nova
vida, são de lato filhos de Deus a partir do batismo (Jo 3,3-8),
mediante o qual o homem se torna participante da natureza divina
(2Pd 1,4). A filiação divina - realidade sobrenatural - comprova a
união com Deus e seu amor para conosco.
João supõe sabido que Deus é justo, perfeito. Em decorrência,
quem nasceu dele e participa de sua vida deve praticar a justiça, obser..
var os mandamentos (Jo 14,15ss; 15,10; ljo 2,3-9). Quem faz isto é
deveras filho de Deus. O critério de filiação dlvina é a semelhança
com Deus, a perfeição interior conferida pela graça. Dissera Jesus.:
Sede perfeitos, como vosso Pai é perfeito (Mt 5,48). A razão é que,
nascendo de Deus, participa-se de sua natureza, donde a semelhança
com Ele. João amiúde aplica a imagem do nascer ao dom da vida
divina (2,29; 3,3; 4,1; 5,1.4.18; Jo 3,3-8) que acontece no batismo. Este
novo nascimento confere-nos o nome e, em certo modo, a natureza de
filhos de Deus. E o amor que leva a tanto.
O cristão é filho de Deus não só por uma ficção jurídica, mas
também no plano entitativo. A filiação adotiva humana só comunica
externamente um direito entre o adotante e o adotado, - ao passo
que a divina consiste na participação de nova vida, de nova natu-
reza, semelhante à de Deus, mediante um novo nascimento (ST, III,
q. 3, a. 2-4). Diante do mistério da filiação divina, João vibra de
emoção e exclama maravilhado: «Vede que admirável sinal de amor
nos deu o Pai, concedendo.-nos ser chamado~ como de fato o somos,
filhos de DeuS» (3,1). Deus, em seu amor, não só nos deu seu Filho.
Também nos adotou como filhos, comunicando-nos sua própria natureza
(1,13; 2,29; Jo 3,16).
Se tal é a dignidade do cristão, é óbvio que o mundo não o
conheça, já que não aceitou o Cristo. «Mundo» assume aqui acepção
pejorativa:· os inimigos de Deus (2,15ss). Como a nossa dignidade so-
·brenatural é participação inefável da vida de Deus, os que não conhe-
cem a Deus não poderão outrossim conhecer os seus filhos. Aliás, já
o dissera Jesus: «Expulsar-vos-ão ... vos tirarão a vida ... procederão
deste modo porque não conhecem o Pai, nem a Mim• (Jo 16,2s).
O amor divino - ãgape - é uma realidade espiritual que foge
aos sentidos. Conquanto seja espiritual, é perceptível em seus efeitos
e é objeto da fé. «Ver> e <crer> freqüentemente vêm unidos (Mt 21,32;
Me 15,32; jo 6,30; 20,8-29). O amor dá ao crente possibilidade de
estar em comunhão com Deus e conhecê-lo.
A melhor 1radução de "ágape" não é "amor", termo equivoco e carregado de
sentimen1allsmos. "Caridade" seria mais adequado, porém traz em si demasiado
colorido cristão. Quem sabe, o melhor equivalente seja "predileção", 1ermo que
implica em escolha deJlberada e prescinde da afeição instintiva e mais ainda da
emoção (Splcq, C., Agape, 111, p. 247, nota 5). "Agape" no NT encerra um
triplice e1emen1o: - na visão blbtlca significa 1oda espécie de amor, ternura e
afeto; - na perspectiva ética, exprime escolha, estima, amor IUcido e respeitoso,
175
--------- -~---
admiração e veneração (uso ciãssJco); - no aspecto re11gloso, conota a presença
de Deus como sujeltoi objeto e motivo do amor, e exprime veneração, deferência,
piedade, estima, respe to a Deus e ao próxJmo.
"Vede" ('Jdeln') conota simpatia, admiração, contemplação jubilosa... é verificar,
dJscernir1 compreender a fundo, saborear, perceber intelectual e afetivamente (Mt
13,17; /i1c 2,12; Lc 17,22; )O 8,56; At 13,41).
A caridade cujo objeto somos nós mesmos, é um amor excepcional
1
('potapós'), generoso, que vem do céu, cuja natureza não pode não ser
divina (Spicq, ibid., p. 254). J3 uma realidade que Deus nos dá gra-
tuitamente ('dédoken'), um dom concedido pelo Pai aos fiéis: o pró-
prio Deus que os torna participantes de sua natureza divina mediante
a graça, fazendo-os seus filhos (2Pd 1,14). O novo nascimento para
a vida divina atribui-se ao amor (ágape) do Pai, amor maravilhoso
de Deus com o qua1 ama ternamente aos cristãos como a seus filhos
(]o 14,21).
O amor do Pai mostrado aos apóstolos é um afeto nobre e puro,
ativo e generoso, é uma realidade em si mesma, íntima e concreta,
que Deus nos comunica e que permanece em nós, fazendo-:nos filhos de
Deus. J3 o próprio Deus (2Pd 1,4). Esse amor se estende a todos os
que .amam seu Filho Jesus, a quantos são Jegltimos cristãos. «Ser cha-
mado>, na Bíblia, equivale a «Ser>, porque, quando Deus chama ou
impõe um nome, concretiza aquilo que tal nome enuncia (Is 7,14; Lc
1,32). Se o cristão é «chamado~ !ilho de Deus, o é de verdade (3,1).
Assim, nossa filiação divina não é apenas metáfora, mas também con-
soladora realidade (3,9).
Em 3,2 joão volta a interpelar com carinho ('queridíssimos') os
fiéis a que atentem à filiação divina, agora e no futuro, porquanto
sua dignidade é desconhecida do mundo e, em parte, também dos pró-
prios fiéis, uma vez que ainda não produziu todos seus efeitos. Acon-
tece que os mistérios divinos, aqui e agora, só os podemos entrever
de maneira enigmática, indireta e imperfeita, como por um espelho que
mal reflete a imagem (cf. !Cor 13,12). Só na eternidade aparecerã
em plenitude o que deveras são os filhos de Deus, quando Ele se re-
velará tal qual é. J3 ver.dade que o somos desde agora, pois a vida
eterna já está em nós (3,9; 4,13; Jo 3,16; 6,53). Se tais, devemos
viver corno tais (3,3-4,6).
Pela fé já conhecemos nossa dignidade de filhos de Deus. A espe-
rança nos faz prelibar o prêmio que nos espera nos céus. Quando apa-
recer Cristo glorioso, na parusia final ou no final de nossa purificação
sobrenatural, é que haveremos de saborear a visão beatífica e tornar-
nos semelhantes a Ele, porque a filiação divina nos descobrirá sua
imensa profundidade ao conhecer melhor nossa semelhança com Deus.
A visão - pela caridade - implica em união consciente e mais per-
feita da alma com Deus. No céu veremos a Deus face a face, sem
véus, - visão direta, intuitiva, de tu para tu. «Aí, nossa inteligência
alcançará a própria essência da Causa primeira, conseguindo a perfei-
ção pela união com Deus, como sujeito, no qual está a felicidade única
e suprema do homem» (ST, 1-ll, q. 3, a. 8). São as vias dos místicos
e ascetas: purgativa, contemplativa e unitiva. Só então a filiação di-
vina descobrirá sua peculiar essência e sua ocu1ta magnificência - a
semelhança com Deus.
BibUograflri: Cf. 2q Domingo de Pãscoa, 2• leitura.
Pe. Matheus F. Oiuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
176
i.
Tea-ce!ra Leitura: Jo 10,11-18
1. Contexto da perlcope
Este evangelho é a segunda parte do discurso do Bom Pastor, um
conjunto literário que, provaveJmente, teve uma vez uma existência inde-
pendente e foi, por Jo, integrado no evangelho como elemento da
discussão com o judalsmo (como sugere a origem do tema, no AT:
Ez 34, a critica dos pastores de lsraeJ). Assim, atualmente, a primeira
parte do Sermão (jo 10,1-10) é a seqüência da critica de Jesus, dizendo
que os chefes dos judeus são cegos (9,40-41, fim do sinal do cego
de nascença). A segunda parte (10,11-18, o evangelho de hoje) é a
continuação imediata da primeira e trata explicitamente da figura do
Bom Pastor. A terceira parte é separada da primeira e segunda. Está
num outro contexto narrativo. Segue depois da conclusão do episódio
do cego (em 10,19-21) e encontra-se no contexto da festa da Dedicação
(I0,22ss).
A primeira parte do Sermão, lida na liturgia do Ano A, apresenta
uma parábola inicial (10,1-5), em que é descrito o que acontece com
relação ao redil coletivo das antigas aldeias palestinenses: pessoas entram
e saem, ladrões pulam a cerca e pastores entram pela potta pata chamar
cada um as suas próprias ovelhas pelo nome; e as ovelhas seguem
a voz conhecida (I0,1-5). Depois de uma observação sobre a incom-
preensão dos judeus (v. 6), Jo faz uma primeira aplicação (alegorizante)
desta parábola, comparando Jesus com a porta do redil, porta para os
pastores e porta para as ovelhas (vv. 7-10). Na segunda parte do
sermão, o evangelho de hoje, jesus é comparado com o pastor mesmo~
2. Explicação do texto
Nos vv. 7-10, a explicação da parábola era organizada pela repe-
tição da fórmula «Eu sou a porta• (v. 7 e 9). Do mesmo modo, os
vv. 11-18 são estruturados pela repetição cEu sou o bom pastor» (vv.
11 e 14). Na primeira explicitação desta idéia (vv. 11-13), Jesus des-
creve o «bom pastor> (ho poimên ho kalos, o pastor cde qualidade»)
em oposição àquele que não é pastor, mas apenas mercenârio. A dife-
rença principal é que o pastor de verdade dá a sua vida pelas ovelhas
(!Ih), enquanto o mercenário foge (cf. Ez 34,5). A segnnda explici-
tação, do v. 14 em diante, descreve mais amplamente a figura do
bom pastor mesmo: 1) Ele conhece as ovelhas e as ovelhas o co-
nhecem (elaboração do motivo «chamar as ovelhas pelo nome» e «as
ovelhas lhe conhecem a voz», vv. 3-4). 2) Ele dá a vida pelas ovelhas
(v. 15c, cf. !Ih). 3) Em uma nova associação de idéias, diz que hã
também outras ovelhas, não deste aprisco, que precisam ser conduzi-
das na perfeita unidade (v. 16). 4) O cerne cristológico de tudo isto
é o amor, a união entre o Pai e- o Filho, que faz com· que jesus dá
a sua vida com soberania divina, livremente, assim como Ele a poderá
retomar (vv. 17-18).
1) jesus conhece as ovelhas e as ovelhas o conhecem. Na linha
do simbolismo, que marca o Quarto Evangelho todo, devemos enten-
der este «conhecer» não no sentido natural, mas dentro do código
da linguagem joanina. Neste código encontram-se o sentido blblico-
177
 -
existencial de conhecer (experimentar, ter intimidade, familiaridade, ami-
zade, relação matrimonial etc.) e o sentido helenístico-gnóstico (conhe-
cimento por revelação). Jo sugere, por este termo, ao mesmo tempo,
a relação intima entre Jesus e os seus (cf. 15,15: «Não vos chamo
servos, mas amigos>) e o conhecimento da revelação em Jesus, expresso,
alhures, por termos como sejam: cQuem me conhece, conhece o Pai,
Aquele que me enviou> etc. (cf. 14,7-9; 16,3; 17,23.25).
2) jesus dá sua vida pelas ovelhas. Esta realidade é a conseqüên-
cia do conhecer afetivo, no sentido bíblico. Mas tem também um sentido
de revelação: o dom de Jesus é a revelação do Pai. Conhecemos Deus,
assim como Ele é, no dom de Jesus para a vida do mundo (cf. 3,16;
6,51; !Jo 3,16; 4,Sss). O lato de Jesus dar a sua vida em prova íle
amor é idêntico com jesus ser dado ao mundo como revelação do
amor do Pai. De modo que «dar a vida;)) não apenas anuncia a hora
da morte de Jesus; significa também a totalidade da vida de Jesus
como dom do Pai, Palavra e revelação do mesmo. E significa ainda,
que esta vida não é pura e simplesmente aniquilada, mas dada, isto é,
transmitida a outros: nós a recebemos e vivemos dela. Isto se deve
entender no sentido da revelação: conhecendo o Pai, o termo abso-
luto da nossa vida, em Cristo, podemos viver a sua vida, agora e
para sempre: é a comunicação da vida divina.
3) Outras ovelhas, outro aprisco. Quais são as «outras ovelhas»
do v. 16? Qual o «outro aprisco»? Sabendo que ]o escreve seu evan-
gelho com as divisões internas do fim do l<) século diante dos olhos,
a gente poderia pensar nas outras comunidades cristãs que não as do
Quarto Evangelista. Mas parece mais óbvio - e Jo 11,52 nos convida
neste sentido - pensar que se trata de cristãos que não provieram
do tradicional «rebanho de Deus», Israel, mas do paganismo (cf. 7,35;
11,52; 12,19.20ss). Com isto, o autor ultrapassa a dimensão vétero-
testarnentária das imagens do rebanho e do «pastor de Israel», indi-
Fando a realidade messiânica da reunião das Doze Tribos (Ez 34).
Na situação dramática da separação de judaísmo e cristianismo, no
fim do l '> século, interpretada por João e sua comunidade como a
rejeição do messias (rei, pastor) pelo próprio povo eleito (cl. Jo 19,15),
surge agora a figura do pastor escatológico que não é limitado a
Israel, mas que é pastor de todos, reunindo em um rebanho todas as
ovelhas, também as que não vêm de Israel.
4) O cerne cristológico. Os vv. 17-18 encerram a segunda parte
do sermão do Bom Pastor. Explicam o pressuposto cristológico daquilo
que foi dito anteriormente. Este pressuposto tornar-se-á o tema prin-
!:
cipal da terceira parte do sermão, em l0122ss. O fato de o pastor dar
t
1
a sua vida pelo rebanho é expressão, conseqüência ou razão - o
substrato semítico do pensamento joanino não permite distinguir cla-
ramente - do amor que o Pai tem para o Filho. E essencialmente a
mesma idéia que Jo 3,16; 15,13; lJo 3,16; 4,9 etc. O amor de Deus
se revela na vida de jesus dada .para a vida do mundo. Porém, o v. 17c
acrescenta uma idéia nova: Jesus a dá para a retomar. Isto não dimi-
nui o dom, no sentido de que Ele o retirasse. Pelo contrário, é uma
expressão do valor ir.comparável deste dom, pois é o dom de urna
vida «de ressurreição», portanto, de qualidade divina: o dom da vida
de Jesus, na morte, é vida eterna para Ele e para os seus. Assim se
realiza a «lei do grão de trigo» (Jo 12,24). Nesta doação, Jesus age
178
com soberania divina: a ressurreição, chamada aqui cretomar a vida»,
é a prova de que Ele a deu Jivremente. Jesus não é a vitima de uma
tramitação. A doação até o fim é o que Ele quer mesmo (cl. 13,ls),
corno executor da vontade do Pai (v. !Se).
Aqui aparece a existência de jesus e, sobretudo, a doação de sua
vida, como ato de uma pessoa (= centro de decisão) divina. Paradoxal-
mente, a submissão extrema de Jesus ao «Ser carne» ( = humanidade
mortal) é a realização da obra divina por excelência: dar vida. Isto
é o que revela a ressurreição. De modo que o termo «dar a sua
vida», nos versículos anteriores, não apenas assinala o pastor sacrificando-
se pelo rebanho, mas indica o enviado divino transmitindo aos seus o
dom da vida eterna: <Vida em abundância» (v. 16).
3. Função na liturgia
Importa sensibilizar os fiéis pelo cCristo pascal», que fala no pre-
sente evangelho e em todo o Quarto Evangelho. Só quando se tem
a Ressurreição diante dos olhos, é possivel entender o que o texto
quer dizer e o que é o dom da vida do Bom Pastor. Significa que
nós participamos da vida pascal de Jesus. Sua doação existencial (sua
«pró-existência»), recebida por nós na fé que se exterioriza em atos,
nos introduz num outro nível de vida que não o da vida material: a
vida da ressurreição. Por isso, o presente evangelho estâ muito bem
situado no seu atual lugar litúrgico.
O 4' domingo pascal é o Domingo do Bom Pastor. Neste domingo
se lê, cada ano, uma das três partes do sermão do Bom Pastor, na
terceira leitura da missa. Jsto não influi, porém, na escolha das duas
primeiras leituras. A gente sente a !alta do texto de Ez 34 como pri-
meira leitura. Mas mesmo como está, neste ano B, a descrição da
salvação no nome de Jesus (At 4,8-12, I' leitura) e a meditação
sobre o amor que Deus nos mostrou em Jesus (ljo 3,1-2, 2' leitura)
reforçam de maneira sumamente feliz as idéias principais do texto de
Jo 10,11-18.
Bibliografia: Ver 311 Domingo da Quaresma.
Pe. Johan Konings
Porto Alegre, RS
Tema Principal
ESCUTAR A PALAVRA DO SENHOR,
RECONHECe-LA E vive-LA PARA SERMOS FILHOS DE DEUS
Sugestões para a Homilia
Introdução
A voz de Cristo, uma «VOZ» enfre muitas
Não há dúvida nenhuma de que o mundo de hoje perdeu e
está perdendo sempre mrus o valor do silêncio, indispensável
para se escutar alguém que fala. Tudo ao nosso redor é ba-
179
 rulho. Isso pode levar o homem à alienação total. Milhares são
as vozes que se agitam em redor de nós e dentro de nós.
Muitas destas vozes querem trazer-nos boas-novas, noticias novas
de libertação, de verdade, de felicidade. Mas corre-se o perigo
de que a televisão destrua a nossa capacidade pessoal de pensar,
de refletir e de discernir. O jornal traz notícias já filtradas e
mastigadas segundo normas bem determinadas. O rádio, o ci-
nema, os discos, a propaganda, os pronunciamentos políticos
tentam manipular sempre mais a nossa consciência em vista de
conquistas pessoais ... Mesmo a voz da Igreja talvez nem sem-
pre tenha sido pura e límpida como o evangelho. Nesta mul-
tidão de «Vozes» que gritam de fora e nos agridem por dentro,
onde se situa a voz de Cristo?
Corpo
1. Uma voz que nos chama
O homem de hoje há de aprender a se mover nesta flo-
resta de vozes e sons e a procurar nela o trilho certo que o
leve à libertação. Precisa antes de tudo assumir uma atitude de
sincera escuta, aberta ao diálogo. Não podemos fechar-nos a
nenhuma voz que nos chame, seja qual for a sua origem: a voz
da técnica, a voz da economia, da política, a voz do sexo, do
dinheiro. . . Através de cada uma delas chega a nós uma par-
cela qe verdade que somos chamados a descobrir, aceitar e
vivenciar.
É necessário não nos considerarmos donos da verdade; mas
homens em busca da mesma. Quem busca está sempre atento a
todos os sinais que o possam levar à meta almejada. Os sinais
do mundo de hoje ressoam sempre mais polêmicos. A polêmica,
a critica áspera e partidária, porém, não podem de forma algu-
ma conduzir a um relacionamento mais fraterno entre os homens.
Quem somente sabe polemizar e criticar, perde a capacidade de
escutar e distancia-se sempre mais dos outros. A própria Igreja
é um exemplo disso. Era-lhe difícil abrir-se ao diálogo com as
outras religiões, com outras ideologias, com os ateus e comu-
nistas. Ela estava por demais acostumada a condenar e a lançar
excomunhões. Por muito tempo a Igreja andou de olhos ven-
dados, incapaz de enxergar o bem naqueles que não pensavam
segundo as normas friamente preestabelecidas pelos defensores
! da única e absoluta verdade. Certamente, não era erro de um
.i lado só, somente da parte da Igreja, mas também dos outros.
1
1!
I~ 180
~
Quando a Igreja, finalmente, por um ato de coragem, se liber-
tou do orgulho de considerar-se a única e exclusiva depositária
da verdade, começou a enxergar melhor. Hoje não mais podemos
nos considerar os únicos possuidores da verdade; ela está pre-
sente em tudo e em todos. No diálogo, no respeito recíproco,
revela-se sempre mais o bem imenso que se esconde em cada
homem de boa vontade.
Esta voz do bem é a voz de Cristo que nos chama. A
vontade de eliminar as injustiças e a própria luta contra todas
as discriminações humanas são a nova voz de Cristo, que vem
a nós do coração da mesma humanidade angustiada e em busca
de novos caminhos. Para saber distinguir esta voz de Cristo
na voz do homem sofredor que - marginalizado e perseguido
- procura a verdadeira libertação, é indispensável que com
muita coragem nos dispamos dos preconceitos que nos impe-
dem de enxergar e de escutar o irmão, que com a mesma
sinceridade, como nós, procura a verdade. Só quem é livre, pode
e sabe escutar na multidão das vozes falsas e falsificadas a voz
verdadeira da bondade e do amor.
2. Cristo, o Bom Pa$for
No texto do Evangelho de hoje se nos revela toda a gran-
deza do coração de Jesus Cristo. Ele mesmo apresenta-se como
o «Bom Pastor». Pode ser que esta imagem não diga muito
a nós, filhos da técnica, que perdemos a simplicidade da vida
dos campos. Tentemos reconstruir na imaginação a vida dura
do pastor que acompanha o seu rebanho de ovelhas pelas encos-
tas das montanhas em busca de alimento mais substancioso. Este
pastor ama as ovelhas, encontra nelas toda sua riqueza e não
mede sacrifícios, colocando-se totalmente a seu serviço.
Mediante esta imagem do Bom Pastor, Cristo quis revelar
aos homens todo o seu carinho e toda sua preocupação para
com cada um de nós. Como o pastor expõe a sua vida para
salvar o rebanho do lobo ou dos ladrões, assim o Cristo arris-
cou a sua vida pela salvação dos homens. Cristo arriscou tudo
para não se comprometer com os fortes e os poderosos da sua
época. Ele não foi um mercenário: defendeu os pobres, curou
os doentes, anunciou a boa-nova aos humildes. Jesus não teve
medo de romper as estruturas do seu tempo, favorecendo os
«sem voz e sem vez», proclamando que o sábado é feito para
os homens e não o homem para o sábado. . . Libertou-os das
escravidões da Lei, dando o novo mandamento do amor.
181
l Cristo conhece cada um de nós Intima e profundamente.
Quem ama penetra o coração do outro, compartilhando todas
as ânsias, angústias e anseios. Por isso, Cristo nos conhece; e
nós O conhecemos, correspondendo ao Seu amor. O amor ver-
dadeiro não se fecha; se abre sempre mais e para todos. O
coração de Cristo também se dilata, atinge novos horizontes
e não se limita às ovelhas que vivem tranqüilas e seguras no
seu aprisco. «Tenho ainda outras ovelhas que não são deste
aprisco. Preciso conduzi-las também, e ouvirão a minha voz e
haverá um só rebanho e um só Pastor» (Jo 10,16). Não haverá
um só rebanho no sentido numérico. Já está se formando o único
rebanho ou o único povo «daqueles que procuram o Senhor com
coração sincero» ( cf. a IV Prece Eucarística). Na medida em
que soubermos olhar mais «O que nos une do que o que nos
divide» estaremos constmindci este novo reino do Senhor.
Os cristãos anônimos desde já fazem parte deste único
rebanho e realizam junto conosco o desejo de Jesus Cristo.
3. A voz de Cristo nos transforma
Não podemos permanecer insensíveis à voz de Cristo. A
gente a aceita ou a rejeita. Aqueles que a aceitarem dinamica-
mente, vivendo-a, Deus os transformará em filhos do Altíssimo.
Esta mensagem da segunda leitura aplica-se a todos que reco-
nhecem e aceitam a palavra do Bom Pastor. João, o evangelista
do amor, •preocupa-se em revelar aos homens a grandeza e a
gratuidade do amor do Pai. Maravilhamo-nos considerando as
delicadezas de Deus. Ele toma a iniciativa de nos amar, de nos
libertar e· de nos separar do mundo, para nos consagrar ao
seu serviço. Ser filho de Deus é agir, desde agora, em sinto-
nia com a sua palavra e tornar-se sinal vivo da presença d'Ele
no meio dos homens. Um dos motivos do ateísmo · contempo-
râneo e da descrença generalizada talvez seja o fato de a Igreja
durante muito tempo ter apelado mais à inteligência do que
ao coração. Um Deus intel~ctnal ou intelectualizado não satis-
faz a ninguém. Somente o Deus vivo que· anda conosco e parti-
cipa dos nossos acontecimentos diários corresponde plenamente
aos nossos desejos do infinito. Somos caminheiros nas estradas
poeirentas do mundo, rumo à casa do Pai. Nela introduzidos,
O veremos como Ele é e seremos para sempre semelhantes a
Deus. Quem se silencia para escutar a voz de Cristo não so-
mente será ouvinte da palavra, mas será por ela transforma-
do em praticante da mesma.
182
4. A voz de Cristo nos torna profetas
Ninguém pode receber a palavra de Deus e guardá-la .enter-
rada dentro de si. Precisa revelá-la através da vida. Na leitura
dos Atos dos Apóstolos nos é proposta a atitude corajosa de
Pedro. Diante das autoridades constitu!das apresenta a sua fé
e proclama a verdade, que ele carrega dentro de si. A Igreja
sempre precisará de profetas corajosos que como o Bom Pastor
e como Pedro saibam arriscar a própria vida; não somente
para defender os irmãos, mas também para denunciar todas as
injustiças que se cometem continuamente.
A missão de profeta não se escolhe. É um chamado do
mesmo Cristo, que Ele faz a quem quer e quando quer. Mas
a nós todos cabe a responsabilidade de permanecermos atentos
à sua voz, tentando reconhecê-la no meio do vozerio para depois
a executarmos com coragem.
O profeta é aquele que anuncia em nome de Deus. Não
proclama a própria palavra, mas a mesma palavra do Senhor.
Ele é um simples porta-voz; não lhe é permitido alterar a pala-
vra. O profeta anuncia, denúnciando. Anuncia a paz denunciando
a guerra. Anuncia o respeito ao homem denunciando o des-
respeito de que continuamente é vitima, por ser profanado nos
seus direitos fundamentais de liberdade. As palavras de Pedro
são uma violenta condenação do falso e doloso agir dos sa-
cerdotes que tinham condenado Jesus Cristo. A boca da ver-
dade não se cala. O profeta proclama-a em qualquer momento
e com todos os meios. Proclama-a com a palavra, com a vida
e com a morte.
Nós, hoje, somos chamados a proclamar a verdade, denun-
ciando a mentira com todos os meios a nossa disposição. Tndo
deve tornar-se veículo da verdade: a imprensa, a televisão, o
rádio, a música. . . Aquelas mesmas vozes que esmagam dentro
de nós o desejo do infinito, bem usadas, podem despertar em
nós o desejo do infinito e fazermos conhecer sempre mais o
Cristo que está no meio de nós.
Conclusão
A palavra de Deus, proclamada e explicada na litu~gia ~e
)loje, mexe no mais íntimo de nosso ser. Chama-nos a d1scermr
no meio de tan!as vozes a voz certa, a voz do Cristo. Este Bom
Pastor ~os chama a sermos filhos de Deus e a darmos teste-
munho, com a nossa vida, da verdade encontrada e aceita com
183
sincera adesão. Não podemos permanecer tranqüilos, vivendo so-
zinhos a nossa fé. Quem vive sozinho a fé, corre o risco de vê-la
lentamente murchar como uma flor sem água, e depois morrer.
A convicção leva-nos a sermos autênticos como Pedro e a assu-
mirmos as nossas responsabilidades, condenando violentamente
não só com a ·palavra, mas particularmente com a vida, todas
as injustiças que se cometam ao nosso redor. Se queremos ser
realmente filhos de Deus devemos realizar as obras de Deus
e não as obras das trevas.
Cristo é o Bom Pastor que nos conhece pelo nome. Será
que nós somos boas ovelhas que reconhecemos a voz de quem
nos chama? Hoje a Igreja comemora o dia mundial das vo-
cações. Ela convida todos a manter-se em atitude de escuta
para perceber o que Deus quer de cada um. A Igreja precisa
de novos «bons pastores» que se dediquem de tempo integral
às necessidades do povo de Deus. O problema das vocações
na Igreja não é somente problema do Papa, dos bispos e dos
padres, é problema de cada cristão que se sente Igreja viva
do Senhor. Cristo, o Bom Pastor, continua a chamar. Que nin-
guém permaneça surdo à sua voz; que ninguém tenha medo
de responder.
Patrlcio Sciadini, O.C.D.
São Paulo, SP
184
Quinto Domingo da Páscoa
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: At 9,26·31
«Pregava com coragem o nome de jesus»
Três ou quatro textos .·nos informam sobre a primeira estadia de
Paulo em Jerusalém depois de sua vocação no caminho a Damasco:
At 9,26-Si; OI 1,18-23; At 22,17-21 e Rm 15,19 (?). Cada um apresenta-a
sob um ângulo diferente, o que dificulta a harmonização dos dados.
Em At 9 pode-se chegar à conclusão de que Paulo tenha sido vítima
das circunstâncias que determinaram suas idas e vindas. Ele fugiu de
Damasco para escapar às mãos dos judeus. Ao vo1tar a jerusalém, de
onde ele saiu como perseguidor, Paulo é recebido com muita reserva,
porque desconfiam de sua conversão (v. 26). Por meio de Barnabé que
lhe serve de intermediário ou «advogado» (cf. 4,36: «.Barnabé significa
huios paraklêseôs!?), ele ganha a cobertura dos apóstolos. Pregando
em Jerusalém Paulo tentou reatar o diálogo com os helenistasJ ou seja,
com os judeus da diáspora cuja língua era o grego, interrompido pelo
martírio de Estêvão, em que o próprio Paulo desempenhou um papel
(cf. At 7,58-8,1). Mas quando constataram que Paulo correu o mesmo
risco, os irmãos o levaram a Cesaréia e o encaminharam para Tarso.
Conforme At 22,17-21 não foram as circunstâncias que levaram
Paulo a sair de Jerusalém e de Judá, da <terra dos judeus>. Pelo
contrário! Paulo as alegou para permanecer ai e pregar aos judeus na
própria capital espiritual deles (vv. 19-20). A sua salda de Jerusalém
é conseqüência de uma intervenção do Senhor que, em uma visão no
iemploJ lhe comunicou a sua verdadeira missão através das palavras.:
«Va~ porque eu te enviarei para longe, às nações ... » (v. 21).
Segundo OI 1,18-23 toda a iniciativa teria vindo de Paulo. Ele que
- já fazia três anos - pregava o evangelho aos pagãos, procurou
Pedro em Jerusalém. «Fiquei com ele quinze dias... Em seguida fui
para as regiões da Síria e da Cilícia» (18b.21). Neste contexto a
estadia de quinze dias em Jerusalém apresenta-se somente como inter-
valo, uma espécie de visitatio ad limina.
At· 9,26-31 presta-se para uma análise estilística. O trecho vv. 27-30
consiste em quatro partes: a chegada de Paulo a Jerusalém; a apresen-
tação de Paulo aos apóstolos; a pregação de Paulo em Jerusalém, espe-
cialmente ao~ helenistas; a saída de Paulo de Jerusalém e sua viagem
a Tars0-. Como se observou acima, estes acontecimentos parecem
desenvolver-se sob a pressão- das circunstâncias. Ao mesmo tempo trans--
parece no vocabulário usado por Lucas e na composição do trecho uma
teologia dos fatos. Uma tradução literal pode servir como demonstração:
C : Barnabé ... o levou aos APóSTOLOS
(e contou-lhes)
B · que o Senhor havia falado a ele
A : e como em Damasco pregara destemidamente
EM NOME DE JESUS
X : (Paulo permaneceu com eles)
185
 A': em Jerusalém, pregando destemidamente
EM NOME DO SENHOR
B': falava também. . . com os helenistas
e·: os irmãos Ievaram-nfJ até Cesaréia
e enviaram-no (EKSAPOSTELLô).
Mesmo em uma tradução vê-se que, duas a duas, voltam as mesmas
palavras ou palavras da mesma raiz, na ordem indicada pelas letras
C-B-A-X-A'-B'-C'. Consciente ou inconscientemente saiu da pena do
narrador um quiasmo. Esta figura literária é ao mesmo tempo centrípeta
(C-B-A-X) e centrífuga (X-A'-B'-C'). Isto sugere que a breve estadia
de Paulo em jerusalém junto aos apóstolos na igreja-mãe marcou um
pontq decisivo na sua carreira de apóstolo dos pagãos.
Antes de ser enviado (EKSAPOSTELLô) à diáspora, à terra
pagã (C'), Paulo foi apresentado aos APóSTOLOS (C). Paulo falou
somente com os· helenistas (B') depois que o próprio Senhor havia
falado a ele, que também era helenista (B) 1 Nos termos centrais do
quiasma (A e A'), Lucas caracteriza a atividade missionária de Paulo:
ele pregava o nome do Senhor jesus com muita coragem (parrêsia)J
seja em Damasco, seja em Jerusalém e - subentende-se - em qualquer
outro lugar. Paulo não era pais predestinado para permanecer em
Jerusalém. Depois de ser apresentado aos apóstolos (C) e de ter co-
nhecido a Igreja-Mãe de Jerusalém (X) ele podia ir ao mundo afora
e tornar-se o apóstolo das regiões pagãs (C').
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Segunda Leitura: lJo 3,18-24
Contexto antecedente. O capitulo 30 da ljo dã como principio o viver como
fllbos de Deus (vv. 1-2) uma vez que o somos de fato. Para tanto, nos Intima
a romper com o pecado Ívv. 3-10) e a observar os mandamentos. O pecado acontece
quando se transgride a el. Pecar e desconhecer a Cristo. Aderir a Ele significa
Ubertar·se do pecado. A observância dos mandamentos se reduz ao amor a Deus
e aos Irmãos. Não amar o próximo é ser homicida, é perder a vida eterna. O
amor se revela quando se estã disposto a dar, sem interesse, -a vida pelos irmãos,
como agiu Jesus Cristo. A caridade distingue os filhos de Deus, é sinal de que o
cristão está em comunhão com Ele. O amor fraterno, atfâs, é um dos aspectos da
Justiça ou da observância da lei moral Como tal se impõe (v. 1l) e, segundo
J>aulo resume toda a LeJ (OI 5,14). João oferece um contraste: ao amor opõe o
ôdJo, 'cujos protótipos foram respectivamente Caim (v. 12) e Abe1. O amor vem de
Deus e ê vida para o próximo; o ódio vem do diabo e quer liquidar o Irmão.
Amor e ódio se disputam a humanidade, colocando.a em constante oposição. Se o
"mundo" apresenta ódio, Cristo pede a seus membros amor. Depois da teoria, a
prática (v, 17): quem tiver bens, vá ao encontro do necessitado. Não ter compaixão
do carente equivale a não amar a Deus, a não ser seu fllho. Amor afetivo e efetivo.
Nosso texto. O ambiente é de afeto - «filhinhos meUS>. O seguidor
de jesus deve ter compaixão, como Ele a teve (Hb 2,16ss; 4,15; 5,2;
Ef 4,32; IPd 3,8). Não é cristão um coração insensível. O amor é sinal
da presença ativa do amor de Deus no cristão. Não bastam palavras,
requerem-se obras (v. 18; cf. Tg 2,15s; esmolas, dar a vida etc.). Diz
lá um provérbio popular: obras são amores e não boas razões. A sin-
ceridade do amor se prova com atos. Eis a antítese em binômio (v. 18):
palavras/llngua x atos/verdade. «Palavras• e «atos> se distinguem como
-teoria e prática; clíngua> e «Verdade». se contrapõem como hipocrisia
e autenticidade (o artigo antes de clingua• ressalta-a como fautora de
186
I'
amor hipócrita; cf. Tg 1,25; 2,12; 15,17); o 2° termo de cada binômio
reforça o primeiro - pejorativamente no 19 (a c:línguru> deturpa a
«palavra») e positivamente no 29 (a «Verdade::> anima o «ato»).
Amar de verdade é amar como jesus amou na cruz (3,16): eis o
critério! Toda obra que se fizer em favor dos irmãos, merece ser
executada com o ani-0r que jesus teve na cruz. O Senhor e o discípulo
são uma coisa só. São frutos do amor fraterno: conhecer que se é
da verdade (v. 19), paz e tranqüilidade de consciência (v. 20), con-
fiança em Deus (v. 21), eficácia da oração (v. 22), amor e fé (v. 23),
comunhão com Deus atestada pelo Esplrito Santo (v. 24).
A prática da caridade darâ a conhecer que «Se é da verdade», isto
é, filhos de Deus (v. 19), - que se vive de fato segundo a vontade
divina, - que se exerce a caridade sem hipocrisia (lPd 1,22; Rm 12,9;
2Cor 6,6). Por 'verdade', aqui, compreende-se a verdade transcendenta1
que reside no cristão (1J8; 214): implica em procedência divina, em
pertença a Deus (cf. ]o 18,37), em designação do próprio Deus.
Se não somos de DeusJ não haverá amor verdadeiro. Se houver, ao
invés amor sem hipocrisia, é porque estamos em comunhão com Deus.
O h~mem que assim age estâ no reto caminho, pode ficar tranqüilo,
estar em Paz (peithein-LXX), porquanto, mesmo que a
consciência (lit:
«coração») acuse algo (v. 20; crux interpretum), Deus é maior (=
transcendente, poderoso, santo) do que o seu coração; -como juiz infalível,
conhece tudo que nele anda e sabe perdoar, embora o ser humano seja
ingrato e não mereça tanto (]o 21,17). A despeito da onisciência divina:
nosso coração pode ficar tranqüilo, porque, além de nossos pecados,
Deus vê nosso amor ao próximo, sinal de nosso filiação. Segundo S.
joão, esta paz do coração se estriba na magnanimidade do coraç~o
do Pai, cujo amor é imenso. Os ll,8s faz ver que a transcendência
divina encerrà a misericórdia infinita; um hino de Qumrân repete a mesma
coisa. Deus nos ama de modo superior ao nosso, sendo outros os seus
parâmetros. joão adota um princípio essencial da nova aliança: a jus-
tiça é uma graça, não decorre do homem, nem da observância da Lei,
nem das obras, - mas é puro dom divino. É a linha do otimismo sal-
vífico de S. Paulo (Rm 8,31: «Se Deus é por nós, quem será contra
nós•?), - da parábola do juízo (Mt 25,21-26), - das bem-aventuranças
dirigidas aos misericordiosos e pacificadores (Mt 5,7ss), - do axioma
de Pedro: «a caridade encobre a multidão de pecados» (!Pd 4,8; cf.
Pv 10,12).
Agost1nho1 Beda e Calvino, ao fazer exegese deste verslcuto (20), .entendem
no sentido aa grandeza de um juiz severo. Aliãs, 51!;m mêrlto, pois o contexto
joanino é de outro feitio: de salvação cer1a, de superação do temor e de vitória
sobre o mal. No v. 20 faz.se um apelo à confiança de quem se libertou do temor,
nada tendo em sua consciência de que o acuse: é o filho que recobra sua audâcia
filial - "parresla" - ante o Pai. A "parresla" é mais do que simples confiança;
é a confiança arrojada, franca de um filho piedoso e obediente ante o pai, cuja
bondade lá experimentara; é· a liberdade interna que segue à diluição de uma ame&ça.
condenat6ria, levando a caminhar de fronte erguida e infundindo segurança jovial,
porque sabe que o pai atenderá aos seus justos pedidos. Observ·e-se o "carlssimos9
(v. 21): conota afeto, ambiente amigo e eclesial; de resto, em S. João, indica
nobreza honra, decorrentes mais da religião socialmente entendida do que da
carldadê; é o nosso "reverendo" e, portanto, além do afeto, apresmta algo dl?
titulo oficial.
Deus ouve a oração de quem 1em boa consciência. S. joão, pessoalmente,
fizera a experiência. Para que a oração seja eficai, postula-se como condição
Jmprescindivel agradar a· Deus, vale dizer, cumprir seus mandamentos (v. 22), o
que confere ao homem uma santa ousadia no diálogo com Deus. O to mandamento
é o amor ·fraterno .i\laior o amor maior será também a eficácia da nração, visto
oue amar ao próxiÜto é viver em cÕmunhão Jntima e vital com Deus - a "kolnonla,.~
.tonde estiver a caridade orante, ai estará o nuvido de Deus" (Agost., PL 35,2024).
Aliás, jesus havia prometido escutar as preces dos seus (Jo 15,7; 16,23) - prece
187
que é pedido (~itêo). Os verbos "pedir" e "receber" estão no presente aqui: sinal
de que nossas supllcas serão atendidas logo, "Observar os mandamentos" é expressão
tlplca de S. João (18 vezes) ao lado de outra equivalente: "fazer o que é agradável
a seus olhos" (v. 22).
O v. 23 resume a exortação anterior (2,18-3,21). Para o apóstolo
o que é mais fundàmental e agradável a Deus é a fé em Jesus, aliada
à caridade fraterna. Tal fé não é mera adesão intelectual não é só
receptiva, senão também viva e plena, a qual se explicita 'na conduta
moral corno obediência absoluta e incondicional aos seus preceitos (Jo
3,18-ZI); a fé se plenifica com a prática deles (2,3-11); fé essencial-
mente é ~econhecer a Jesus, Messias e Filho de Deus, é aderir-lhe pela
observân~1a de seus mandamentos, vivendo como Ele viveu; esta fé e
esta prática da caridade garantem a comunhão íntima e vital com Deus
e, em decorrência, a eficácia da oração: é o que prometeu Jesus depois
da Santa Ceia (Jo 15,7-11; 14,13ss).
Fina1mente, a observância dos mandamentos é penhor de nossa per-
manência em Deus e de Deus em nós (v. 24), - é garantia da ima-
nência divina em nós e da mais intima união com Deus: a «koinonia».
Deus e o cristão formam uma só coisa. Dizia Beda: .;:Que Deus seja
tua casa e tu, da mesma forma, sejas a casa de Deus» (PL, 93, 105).
A presença do Espírito Santo em nossa alma - o Espírito Santo mora
nos fiéis como num templo (!Cor 3,16) - é que atesta se Deus habita
em nós, - se estamos em comunhão com Ele, - se há vida divina
em nós. Cumpre-se o que Jesus pedira na oração sacerdotal: «Pffa
que todos sejam um, assim como tu, Pai, estás em mim e eu em ti,
para que também eles estejam em nós» (Jo 17,21). No texto não se
diz como os fiéis sabem que possuem o Espírito Santo. Todavia, João
pensa na experiência intima do cristão (ljo 2,27) e nos contínuos
favores do mesmo Espírito em nós, que são penhor de sua presença em
nós (OI 3,2-5). Dirá S. Paulo: o Espirito Santo que Deus derramou
em nossos corações atesta-nos que somos filhos de Deus (Rm 8,16;
OI 4,6).
Bibliografia: CI. 29 Domingo da Pâscoa, Ano B (2• leitura), acima, p. 157.
Pe. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Terceira Leitura: Jo 15,1-8
1. Contexto da perlcope
Neste e nos próximos domingos, as perícopes evangélicas são to-
madas do conjunto dos «Discursos da Despedida» de Jesus no 49 Evan-
gelho. Esta escolha é extremamente. feliz, porque, de lato, os cc. 14 a 17
- como todo o evangelho de João - são escritos como expressão
do significado pascal, senhorial do Senhor ressuscitado. Todo o evan-
gelho d~ joão deixa transparecer. nos gestos e pa1avras de Jesus, o
reconhecimento que, na luz do Espírito, a Igreja tem dele depois da
sua ressurreição. Isto vale especialmente com relação aos cc. 14-17.
Não trazem um laudo policial das últimas palavras de Jesus, mas a
reflexão dos discípulos, iluminados pelo Espírito, sobre o significado
de Jesus, especialmente, de sua morte, entendida como volta ao Pai
depois de ter realizado a sua obra e missão {14,lss; 17,lss). Este
188
conjunto divide-se em três partes: 1' Discurso de Despedida (Jo 14),
2' Discurso (Jo 15-16), Oração de jesus (Jo 17). Suspeita-se que, numa
primeira redação do 49 Evange1ho, os atuais cc. 15-17 não constavam,
pois o 1° Discurso termina com uma exortação para deixar o local da
Ceia (14,31c) e tem uma perfeita continuação em 18,lss. Os cc. 15-16
(2° Discurso) e 17 (oração) parecem uma inserção. Retomam, outrossim,
os mesmos temas que o e. 14, embora com novas reflexões. Provavel-
mente encontramo-nos na presença de uma coleção de homilias joaninas,
colocadas no quadro da Despedida de jesus na última Ceia. A perícope
do 59 Domingo Pascal B é o começo do 2° Discurso, começando
abruptamente, como ocorre mais vezes quando da inserção de matérias
homiléticas no 4' Evangelho (cf. 3,31; 8,12; 10,1; 12,45). Contudo, não
há nenhum indício lingüístico de que teríamos aqui acréscimos de um
outro autor, como antigamente tinham pretendido certos hipercriticos.
]o 15,1-8 e 15,9-17 (5' e 6' Domingo Pascal B) formam um con-
junto: a alegoria da vinha e dos ramos. Não há uma clara distinção
entre a alegoria que começa em 15,1, e sua explicação, que se estende
até o v. 171 como indica a presença do termo «fruto:t> (v. 16s). Porém
somente os versículos 1-6 contém, propriamente, a a1egoria da videira.
Os vv. 7-17 formam uma reflexão sobre um dos temas da alegoria, o
produzir frutos.
2. jo 15,1-8
O gênero literário de Jo 15,1-6 é o do mashal, ou seja, linguagem
figurativa. No presente caso, trata-se de um mashal alegórico (uma
imagem que na sua totalidade e nos seus principais elementos estru-
turais representa uma outra realidade, não imediatamente acessível). E
uma alegoria explicada (p. ex., no v. 3, que pode ser o fruto de reflexão
sobre a imagem original). Contudo, enquanto a maioria dos mashalim
têm a forma de enigmas (Pr, Eclo etc.) ou de parábolas (narrações
de acontecimentos sugestivos, estilo preferido de Jesus), o de ]o 15
é colocado em forma de um discurso de revelação, forma literária
que surge nos últimos livros sapienciais e que se encontra muito em
escri!os extrabíbJicos (p. ex., da gnose mandeica). ]o 15,1-8 distingue-se
também das alegorias puras, que trazem sua aplicação no fim (cf. no AT
as alegorias de Jz 9,7ss e 2Sm 12,lss), porque a chave de interpretação
é dada desde o começo, uma fórmula de revelação de jesus: «Eu
sou a vide verdadeira», urna das sete fórmulas Eu sou + imagem que
ocorrem no quarto evangelho (cf. ô,35: pão da vida; 8,12: luz; 10,7:
porta; 10, 11 : pastor; 11 ,25: ressurreição e vida; 14,6: via, verdade e
vida). Suspeita-se que se trate de invocações litúrgicas da Igreja joa-
nina, comentadas nos «discursos de revelação» de Jesus. A semelhança
de Jo 15 com a alegoria do pastor e do rebanho, em Jo 10, é notável:
em ambos os casos, o tema é inserido no contexto sem preparação
a1guma (10,l; cf. 15,1) e traz uma imagem alegórica, com aplicações
diversas; a diferença principal é que, na alegoria da vide, a chave é
dada desde o começo. Nas suas homilias, Jo não se atém a um esquema
rígido. Na presente, ele mistura imagem e explicação (p. ex., no v. 3).
Para a compreensão é importantíssimo saber se o fundo do pensa-
mento é helenístico-cósmico, ou bíblico-histórico. Se fosse helenístico-
cósmico, o primeiro versículo dever-se-ia interpretar como significando
que Jesus é a vide real (do mundo das idéias) em oposição às videiras
visíveis, que são apenas imagens fracas da realidade prototípica, invi-
189
\
i
sível e espiritual (dualismo platônico). Contudo, as continuas referên-
cias de Jo ao AT e as analogias proféticas de suas imagens nos
levam a pensar que a comparação deve ser entendida a partir da
história bíblica. Ora, na história bíblica, a vide ou vinha é Israel (ou
seus representantes). Então, a oposição, expressa pelo termo «Verda-
deiro:!), não seria entre o visível (físico) e o invisível (espidtual), mas
entre o Antigo e o NT. Israel é a vide ingrata (como seus chefes eram
os pastores imperfeitos, sua Lei o caminho provisório etc.). jesus Cristo
(por Jo colocado no lugar do Reino de Deus) é a vide verdadeira,
que dá seiva e permite produzir frutos.. Para ver mais claramente de
que videiras não verdadeiras jesus se distingue, basta ler Is 5,lss
(utilizado nas parãbolas sinóticas: Mt 20,lss par); Jr 2,21; e sobretudo
Ez 17,6. A identificação da vinha com uma pessoa foi facilitada pela
leitura do SI 80(79),15ss (sobretudo na versão grega, utilizada pelos
primeiros cristãos).
A alegoria tem várias aplicações. A primeira, bastante na linha do
AT, é a identificação de Deus com o agricultor, aquele que cuida da
vinha ou vide (cf. Is 5). O conjunto de alegorias mostra, porém, que
o v. 1 não indica tanto o cuidado de Deus para jesus, a vide, mas
antes, a idéia de propriedade: Jesus é de Deus, e dele são também
os ramos da vide, os fiéis, enquanto pertencem a jesus. Na segunda
aplicação, a idéia da poda ou purificação, o sujeito agente é o agricultor,
portanto, Deus mesmo. Temos aqui uma visão bem Joanina: ptla palavra
de Jesus (v. 3), o Pai exerce a krisis, a separação entre o que é salvo
e o que é rejeitado (cf. Jo 3,18ss; 5,24ss; 8,50s; 12,47ss). Porém, a
imagem é mais complexa. Não indica apenas a separação entre aqueles
que crêem e os que não crêem na palavra. Diz ainda que os que crêem
são podados pela palavra. A melhor maneira para explicar isto seja
talvez a comparação coín o adolescente, que quer ser tudo e não
consegue ser nada, até que se decide a «podar uma série de coisas
da sua vida e assim, determinando-se (delimitando-se, colocando termos
a si mesmo), realiza sua personalidade: O cristão se realiza enquanto
«determinado» pela palavra de Cristo. Limitando sua existência dentro
das coordenadas desenhadas pelo mandamento de Cristo - mandamento
do amor fraterno - ele se torna personalidade cristã. E produz fruto.
A seguinte aplicação considera a união vital entre a videira e os
ramos. Agora, o agricultor ·não é mais considerado; a videira mesma
é o centro da atenção. Por mn jogo de palavras com a preposição em,
se pode dizer que os ramos ficam na videira e a videira (por sua
seiva) nos ramos. Esta aplicação parece dizer que sem a adesão a
Jesus Cristo não se pode fazer nada de salvífico. Isto parece fanatismo.
O fundo histórico que estâ atrás desta insistência exclusivista é a
rejeição de Jesus como Messias por parte do judaísmo e a atitude
dos gnósticos, que só se interessam nos belos pensamentos de Jesus,
mas o querem tornar supérfluo como pessoa histórica, sobretudo corno
homem realmente humano e sofredor. Contra estas tendências, joão diz:
sem Cristo, não há fruto de salvação. · de descobrir o rosto paterno de Deus, a face fraterna do próxi-
Os vv. 7-8, que já não pertencem ao mashal propriamente, con-
cluem dizendo que o Pai (o dono da vinha) é glorificado com o fruto
que os ramos produzem. Porém, ainda não é especificado quais são
estes frutos. Se João retoma aqui a idéia expressa nos textos sinóticos
(Mt 3,8-10 par; 7,16-20 par; 12,33) o fruto será em primeiro lugar a
conversão, a fé. Mas para joão adesão a Cristo pela fé e imitação
... 190
de sou exemplo de amor é a mesma coisa (cf. 13,5-10 e 12-16). Por
isso, devemos pensar que os frutosJ aqui, são ao mesmo tempo a fé
e o agir moral conforme o mandamento do Senhor. O resto do texto
torna isto mais claro (cf. próximo domingo).
3. Função na liturgia
Se a 3.0 leitura não oferece uma conexão evidente com a 1~ (leitura
contínua dos Atos dos Apóstolos), tanto mais evidente é a conexão com
a 2• leitura, tirada da J• Carta de João e expressando as idéias da
observância do mandamento do Senhor, a recepção dos nossos pedidos
e o «permanecer em Deus::>. São as mesmas idéias de ]o 15,4-8. Formam,
portanto, o eixo central da liturgia do dia. Além disto, se deve observar
que estamos no Tempo Pascal: a liturgia sensibiliza os fiéis pela união
vital com o Cristo ressuscitado, aliás, o único com o qual nos podemos
unir realmente. Sua ressurreição é condição para a nossa união com
e1e. Em outros termos, não se propõe aqui uma imitação mecânica do
Jesus terrestre, mas, no reconhecimento que aquele que morreu na
cruz foi ressuscitado por Deus, ele se torna uma presença imprescin-
dível para nós e sua palavra o rumo de nossa vida, unindo-nos existen·
cialment~ com ele e com o Pai.
Bibliografia: Ver próximo domingo.
Pe. Johan Konings
Porto Alegre, RS
Tema Principal
ASSIM COMO A SEIVA PERPASSA TODA A ARVORE
ASSIM JESUS TODA A HUMANIDADE
Sugestões para a Homilia
Introdução
Há uma frase no evangelho deste domingo que encerra um
grande mistério; seus termos devem ser explicados para poder-
mos compreender suas reais dimensões. Diz Jesus: «sem mim
nada podeis fazer» (Jo 15,5). Para um cristão bem informado,
esta afirmação não contém problemas. Ele sabe, a partir de sua
fé, que Jesus é o único Mediador e Salvador. Sem Ele, sem
sua vida, seus ensinamentos, sua morte e principalmente ressur-
reição, estaríamos entregues à nossa própria sorte, incapazes
mo e nossa liberdade face aos idolos deste mundo. Sem Jesus,
em termos de nossa salvação eterna, nada poderíamos fazer. Mas
o que acontece com os demais homens que não tiveram a graça
que nós tivemos de conhe.cermos a Crislo e podermos ser ramos
vivos da árvore que é Ele? Qual o destino dos homens que
191
r-
i
viveram antes de Cristo? Eles, mesmo que quisessem, não po-
deriam entrar em contato com jesus, porque Ele ainda nao
havia entrado na história dos homens. E são milhões e milhões
de pessoas. E aqueles que nasceram depois de Cristo e vivem
em culturas que nada sabem nem ouviram d'Ele? Vale também
para eles a frase do evangelho: «Sem mim nada podeis fazer?»
Não seria isto fanatismo de um grupo religioso, entusiasta de
seu fundador, mas sem sentido de realidade e das reais propor-
ções da história humana?
;
Não estamos diante de uma frase de um grupo fanático,
1. mas de uma profissão de fé acerca das dimensões do mistério
de Jesus. A epistola de S. João, lida neste domingo, nos recorda
que «Deus que tudo conhece, é maior do que o nosso coração»
{ljo 3,20). Jesus de Nazaré, homem que andou entre nós, é
maior do que a história que o acolheu. Ele possui a grandeza
e a dimensão de Deus. Reflitamos sobre esta verdade, pois
assim descobrimos o acerto da frase: «Sem mim nada podeis
fazer».
Corpo
1. jesus segundo a carne e jesus segundo o Espirita
O próprio evangelista S. João nos ajuda a entender que «sem
Jesus nada podemos fazer». Em seu Evangelho, S. João narra
as palavras e os gestos do Jesus segundo a carne, mas inter-
pretados à luz do Jesus segundo o Espirita, do Jesus celeste
e ressuscitado. Em palavras bem simples: em todas as palavras
e gestos de Jesus S. João é capaz de ver palavras e gestos de
Deus; vê uma luz que se esconde nas dobras da vida terrestre
de jesus. Esta luz é a dimensão divina de Jesus. Então a frase:
«Sem mim nada podeis fazer» equivale a esta: «Sem Deus nada
podeis fazer». E isto nem precisamos explicar, porque, efetiva-
mente, sem Deus o homem não se sustenta, não existe jamais
sozinho, mas sempre acompanhado e penetrado da presença
divina.
Sempre, portanto, que lermos os Evangelhos devemos reter
estas duas dimensões: a dimensão da carne, daquilo que é nor-
malmente compreensivel, daquilo que é histórico e a dimensão
do Espirito, daquilo que é divino, trans-histórico. O jesus-homem
que nos fala, revela o Jesus-Deus que nos visita.
2. jesus, Homem-Deus qual videira cósmica
Como Deus, Jesus é, na expressão feliz do prólogo do
Evangelho de S. João, «a luz verdadeira que ilumina todo homem
que vem a este mundo» (1,9). Ninguém deixa de ser atingido
192
por Ele; todas as pessoas, de todos os tempos e em suas pró-
prias situações são acompanhadas pelo Verbo eterno. Ele é qual
videira cósmica cujos ramos se estendem de ponta a ponta da
história. Todos os homens são ramos desta videira. Mas hã
ramos e ramos. Os que se abrem à luz e em tudo procuram
o honesto e verdadeiro são vigorosos e cheios de vida. Os que
vivem d11 mentira e gostam do escuro, definham e morrem. Assim
entendemos a palavra de Jesus: •Eu sou a videira e vós sois os
ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele, esse dá muito
fruto. . . O que não permanece em mim é lançado fora como
o ramo e seca» (]o 15,5-6). Portanto, as palavras de Jesus
sobre a videira e o permanecer ligado a ela não devem ser
entendidas apenas segundo a carne, mas principalmente segundo
o Espírito; não apenas válidas para quem conhece jesus Cristo,
mas para todos, mesmo que não o conheçam, porque ninguém
se encontra fora da atmosfera que é Cristo.
O ramo não tem vida independente. Ele a recebe do tronco.
Recebe-a à sua maneira, produz as suas folhas, dá as suas
flores e cria os seus frutos. Não é o tronco que produz tudo
isto, mas o ramo. Entretanto, só o produz na medida em que se
encontra ligado ao tronco e recebe a seiva dele. Analogamente
ocorre com cada homem e Jesus Cristo. Há um laço secreto
que os une. Na eternidade todos saberemos o quanto é verdade
a frase: «Sem Jesus, nada podemos fazer».
Conclusão
Não depende de nós a existência da videira que é jesus· e
dos ramos que somos nós. Deus nos criou no Filho Jesus, como
imagens e semelhanças de Jesus. Mas depende totalmente de
nós sermos ramos vivos ou mortos, darmos frutos ou apenas
vegetarmos. O Evangelho nos garante: «Se derdes muitos frutos,
meu Pai será glorificado. Se derdes muitos frutos sereis, então,
meus discípulos» (]o 15,8). Glorificando o Pai e sendo discipulos
de jesus estaremos para sempre no Reino de Deus. A nossa vida
terá sido proflcua e será eternamente vida feliz.
Leonardo Boff, O.F.M.
Petrópolis, RJ
193
 ..
'
1
Sexto Domingo da Páscoa
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: At 10,25s.34s.44·48
1 <Deus não faz distinção de pessoas> (v. 34) - é alusão a ISm 16 7
Lucas, depois de narrar a conversão de Paulo, destinado à IDissao
1 entre os pagãos, aponta um fato novo: a abertura de Pedro para os
gentios, ao constatar que o dom do Espirita Santo se difundia também
sobre estes. Com efeito, At 10,9-23 relata a visão de Pedro em Jope e
sua ida a Cesaréia com alguns «irmãos>, para a casa de Cornélio.
Deu-se a ação conjunta do humano e do divino: o Espírito Santo
interfere na vida de ambos, os quais são importantes para a execução
do plano de Deus. E a Igreja que, dócil ao Espírito Santo, percorre
o caminho de jope até Cesaréia (50 km), a fim de constatar a obra
divina. Pedro ó o grande mediador na perspectiva de Atos e o tes-
temwiho dos cseis irmão&» será eficaz no momento em que ele preci-
sar justificar seu proceder perante os Irmãos de jerusalém (11,12).
Neste contexto dá-se o memorável encontro Pedro-Cornélio, cena que
comprova a vocação e atuação de Paulo: evangelizar os pagãos. Im-
pressiona em Cornélio o desejo de salvação. E todo o paganismo que
anseia pela mensagem salvífica. Cornélia aguardava, cercado de mllitas
pessoas - amigos e parentes - como ele tementes a Deus e à pro-
cura da verdade. Sabe-se que no seio do paganismo havia gente sincera
e de bom cunho espiritual, preparada para o Evangelho, mais talvez
do que o judaismo retrógrado e teimoso. Não dissera jesus a respeito
do centurião de Cafarnaum: «Digo-vos que nem mesmo em Israel
encontrei tanta fé» (Lc 7,9)?
A prostração de Comélio, à chegada de Pedro, exótica para um
romano e vezeira entre os judeus (Gn 33,3; lSm 24,9; Est 3,2), exprime
veneração pelo sobrenatural nele existente. O apóstolo recusou tal honra.
É possível que, naquele instante, tenha evocado uma atitude sua idên-
tica, quando, prostrado aos pés de Jesus, proferira estas palavras:
«Afasta-te de mim, Senhor, que sou um homem pecador» (Lc 5,8;
pesca milagrosa). Não terá lembrado outrossim a !alba lamentável, no
pátio de Caifás, negando a jesus? Pedro, não aceitando a deferência
do centurião, aponta para o exemplo que a Jgreja deverá seguir: voltar
l contrastou com a mentalidade fechada dos judeus (e!. Rm 9-11).
sempre ao gesto humilde e despretensioso de Pedro. O culto à pessoa
e às honras faciJmente encobre o caminho que Jesus trilhou - o da
cruz, o da humilhação, o da «quenose> (cf. Fl 2,5-11).
Pedro, esclarecido por visão, falando ao grupo, assegura que pe-
rante Deus nada é impuro. Ademais, pede explicação do fato de Cornélia
o haver chamado para sua casa. Este lhe afiança ter sido, por sua
vez, objeto de urna visão divina, em decorrência de sua oração e de
suas esmolas. O centurião e os seus estão de ouvidos atentos às pa-
lavras de Pedro, que assim falou: «Em verdade reconheço que Deus
não faz distinção dê pessoas, mas em toda nação lhe é agradável aquele
que o temer e fizer o que é justo» (vv. 34s). Os 2 versos são o inicio
de um discurso resumido sobre verdades básicas· do anúncio da salva-
ção, perante um auditófio não-Jsraelita; é um sermão missionário dis-
tinto dos anteriores (a judeus), onde se omite·m os argumentos bíbli-
cos, embora não faltem reminiscências vétero-testamentárias. A estrutura
literária é pobre, por ser Pedro imperito no grego e Lucas, dada a
194
importância da perlcope, não querer corrigir. O conteúdo essencial
é . a_ atividade salutar de jes?s de Nazaré e a confirmação de sua
mts~ao por obras, em especial pela ressurreição. Os apóstolos são
enviados do mesmo Jesus e devem apontar o caminho da salvação
pela adesão a Cristo pela fé.
texto relativo à eleição de Davi: «O homem vê a aparência, mas'~
Senhor olha o coração>. É 1.Jma convicção que Pedro adquiriu agora
graças à visão de jope (10,9-16), ilustrada pelo caso-Cornélio. Teori~
camente ele admitia que em Deus não há distinção de pessoas (cf.
2,38; 3,26; Is 2,2ss; 49,1-6; jl 2,28; Am 9,12; Mq 4,1). Contudo, no
contexto, Pedro, como todo bom judeu, não conseguiu disfarçar de·
todo um certo favoritismo por Israel. Na história da salvaçãó quando
Deus a oferece, não adota critérios humanos: para Ele não 'valem a
posição, a ·descendência, a raça, o povo, a diversidade de religião. o
q?~ vale é o temor de Deus e a prática da justiça. E o caminho sal-
v1f1co d~ !gi;eja em/por jesus Cristo, cujo múnus é mostrar que está
aberto 1nd1stintarnente a todos aqueles que, venerando o mistério de
Deus e buscando o direito e a justiça, o procuram de coração sincero.
E a tese de Paulo em Rm 1,16 e 3,21ss, em 01 3,26ss.
As palavras de Pedro foram confirmadas pelo testemunho do Espírito
Santo (vv. 44-48), o qual, enquanto Pedro falava, foi infundido também
sobre os pagãos. Na história de Cornélio se verifica o cumprimento do
plano divino: o encontro de Pedro com o centurião marca a importân-
cia do novo rumo que a obra da salvação assunie. Como em Pen-
tecostes, quando o Senhor ressuscitado, para justificar o inicio da obra
salvífica da Igreja, se manifestou na vinda do Espírito Santo e no
dom das Unguas, - agora também se verifica na casa de Cornélio, em
Cesaréia, um novo Pentecostes, corno sinal de uma nova etapa: o
início da evangelização dos gentios. E o Pentecostes dos pagãos. Pedro
mesmo confronta os dois fenômenos (10,47; 11,15; 15,8), O evento
Aqui, como em Jerusalém, homens - amigos, familiares, servos de
Cornélio - são arrebatados pelo Espírito Santo, ·falam em várias linguas
e glorificam a Deus. Ainda não são batizados, apenas foram cativados
pela mensagem salvífica proclamada por Pedro. São sinceros abertos
e dispostos. Eis o valor que a Palavra possul para a sal~ação ! A
Palavra é sumamente eficaz se é dirigida por quem tem fé e se é
acolhida por quem é disponível e aberto. Tudo é obra do Espírito"
Santo. Será que nossa pregação propicia a vinda do Espírito sobre
os ouvintes? O Pentecostes de Cesaréia é um sinal de que a Igreja
e Pedro estão certos, quando se dirigem à casa de tantos outros «Cor-
nélioS>. Os companheiros de Pedro, judeu-cristãos, puderam testemunhar
admirados que o dom do Espirita Santo se difundia também sobre os
pagãos, sem que passassem por Moisés.
O chefe dos apóstolos reconheceu o sinal do Espírito e, aos poucos,
foi se libertando da mesquinhez da mentalidade judaica. A salvação
é para tódos. Se Deus concedeu o batismo no Espírito, como pode
a Jgreja negar o batismo com água? Note-se uma pergunta similar
do etíope a Filipe (8,36). E ordenou que todos fossem batizados «em
nome de jesus Cristo>. Os apóstolos em geral não batizam. Delegam
os outros (cf. !Cor 1,14-17). O batismo cem nome de jesus Cristo>
é expressão que designa o batismo cristão com fórmula trinitária ( cf.
195
 •
Didaquê, 8,t-3). E o único caso em que o Espírito é infundido antes
do batismo. Deus. quer convencer de que não é preciso passar pelo
mosaísmo para pertencer à Igreja e receber o Espírito Santo. Se Pedro
os manda batizar, após receberem o Espirita Santo, é porque os quer
agregar à comunidade cristã. Com isso aumenta o número dos fiéis e
abre-se um novo caminho para a Igreja realizar, na liberdade do Espi-
rita, a salvação universal. O «ficou com eles alguns diaS» (v. 48) é
símbolo de que a Jgreja foi ao encontro dos gentios.
Bibliografia: CI. Vigília de Nata1 do Ano B (2" leitura), acima, p. 43.
Pe. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa J\laria, RS
Segunda Leitura: lJo 4,7-10
Contexto anterior. Tratava-se de viver qual filho de Deus, rompendo com o
pecado, observando os mandamentos -:-- em especial o do amor - e crendo em
Cristo. Sô assim seria posslvel a uniao com Deus (kolnonla). É preciso, ademais,
discernir os espiritos desconfiando dos falsos profetas, e precaver-se dos caminhos
do mundo, enquanto 'se contrapõe a Deus.
Nosso texto. S. joão, bruscamente, do tema da fé volta à tec1a do
preceito universal do amor - o ágape (3,l l.23; 2,15), com o seu
costumeiro apelo, carregado de afeto: «Caríssimos»! Assunto central
desta secção é a predileção, que não é uma obrigação arbitrária, mas
uma exigência da natureza, porque Deus é amor (4,16). Ele, ao gerar
cristãos para uma nova vida, lhes comunicou sua própria natureza e
viâa. Resulta então que os fiéis podem amar como o Pai celeste,
enquanto o exercício da caridade, nos cristãos, provará a sua filiação
divina. Aqui está a culminância do «ágape» de S. joão. O amor é uma
participação da vida de Deus, é uma realidade que procede dele, é
«Ser de Deus» (5,19). O amor vem a ser o critério de como discernir
os bons dos maus, os de Deus e os do mundo: estes odeiam, aque1es
amam; se o mundo ama (philein) - seu amor é fingido.
O amor autêntico deriva de Deus como de sua fonte: quem ama
irrestritamente, nasceu de Deus (v. 7; 2,29; 5,1), é filho de Deus, está
animado de sua graça (3,9). O amor fraterno é efeito inevitável de
nosso novo nascimento sobrenatural Fazendo-nos participantes de sua
vida e natureza, Deus fez-nos também participantes de sua caridade.
O amor mútuo não surge por conveniência moral ou atitude de perfei-
ção ideal. É antes um movimento· vital resultante da nova natureza, a
divina (5,19; 4,4; 4,2s.6; 3,10). A predileção não é um sirnp1es dom
divino, nem uma graça carismática passageira, mas está em íntima
conexão com o novo nascimento em ordem à filiação divina, quando
nos trailsmitiu sua vida e natureza. O amor é fruto do germe divino
recebido no batismo. Em Rm 5,5 parece que é o Espírito Santo quem
ama dentro de nós. Entretanto, S. João esclarece: o próprio cristão é
1 que ama por si mesmo, em virtude de sua fi1iação divina, com a qual
pode amar divinamente. A caridade confere ao crente a possibilidade
de entrar em comunhão com Deus e conhecê-lo - conhecimento que
vai de par em par com o amor fraterno. Quem ama, conhece a Deus,
revela Deus, é de Deus e está em comunhão com Ele. Amor e co-
nhecimento crescem paralelamente e se complementam (2,3-11). Filiação
divina e conhecimento de Deus são princípios e fundamento da caridade
196
fraterna. O conhecimento de Deus como Pai amãvel estã impregnado
de amor e condicionado pelo mesmo (Rm 8,15; GJ 4,6; t Cor 8,3). Para
conhecer a Deus e permanecer nele é preciso arnã-lo. e.Conhecer> na
Bíblia é possuir aquilo que se conhece, é estar em comunhão com ele.
Os três atos - nascer, conhecer e amar - estão intimamente ligados.
No v. 8 há, como fator de aprofundamento, o paralelismo antité-
tico: quem não ama divinamente prova não ter atingido o verdadeiro
conhecimento de Deus. Antes (3,11.23; Jo 13,14; 15,12), o amor vinha
mais como preceito, como um «espírito», como obrigação. Agora, João
o apresenta como postulado da natureza divina, existente e atuante em
nós desde o batismo. Amamos como Deus ama. Possuir ciência teológica
(tipo gnóstico) ainda não é ipso-facto um verdadeiro conhecimento
(!Cor 8,2; Rm l,28s). O conhecimento de Deus em S. João não é
apenas racioc1nio; pressupõe uma relação intima e pessoal com Deus,
proveniente de experiência viva e amorosa. Só quem ama pode conhecer
a realidade íntima das pessoas e coisas; quem não ama, não chega a
isto. O ato de fé não fica no enunciável, mas busca a realidade (ST,
2-2, q. 1, a. 2). Só quem ouve a Palavra e a põe em prática pode
afirmar que conhece a Deus. Tal conhecimento se torna perfeito pela
obediência e fidelidade (Os 4,6; 6,6). Sem caridade fraterna não há
conhecimento pleno de Deus, porque Deus é amor. Esta é a melhor e
mais cabal definição de Deus e o ponto culminante da Revelação. Assim
sendo, o amor é o atributo cUvino que mais leva a conhecer sua na-
tureza, que melhor a revela.
O Sermão da Montanha propugna o amor do Pai, generoso até
para com os pecadores e inimigos (Mt 5,43-48; Lc 15,7-10; Mt 9,13).
A vida de Cristo é vida de amor, benignidade e paciência, dando a
vida em resgate dos que ama: é o auge do amor (Rm 5,8; 8,32; 8,39).
O amor para S. João já não é tanto um atributo, quanto a própria
natureza divina. É o apogeu da mística e do pensamento humano. l?
o que há de maior. Dizendo-se que Deus é amor, é tudo. O amor não
é só uma das atividades de Deus. Toda sua atividade é amor, tudo
que' faz é por amor. O AT é uma história do amor divino: criação,
revelação, aliança, redenção, providência, misericórcUa, paciência (On
1,28-30; Ex 33,IBs; Os 11; Jr 3,12; SI 135; 144,8).
Contudo, é no NT que o amor se revelou mais pleqPiµiente nos
mistérios da encarnação (Jo 3, t 6), da redenção e da graça,'-quando o
amor da Trindade é irracUado por sobre os homens. O amo:r do
cristão, em conseqüência, é participação do amor de Deus. Donde ser
o Cristianismo a religião do amor. O amor a Deus e· ao próximo são
da mesma natureza, porque a essência de Deus é amor - revelação
suprema do NT. joão intuiu o amor como manifestação de Deus através·
da pessoa, vida e doutrina de jesus (Mt 11,27; Lc 10,22; 1ágape• no
clássico, na LXX, significa manifestação de amor, como prova de ami-
zade). Deus é amor, dom e comunicação total .de si desde a eterni-
dade, amor perpetuamente em ato e subsistente.
·Nos vv. 9-10 aponta-se a encarnação como revelação e manifestação
surpreendente do amor divino, quando este se tornou evidente e pal-
pável na vinda do Filho unigênito (monogenés = único-.. e bem amado)
para salvar-nos. É o texto joanino que melhor expressa a epifania da
caridade (Spicq). O verbo «ephanerõthe» (manifestar-se), no aoristo,
sugere que o Amor se revelou em tempo determinado. Na perspectiva
de S. joão, a encarnação é um fato que já se realizou, porém, se
197
 VY. 7-10
perpetua, é de permanente atualidade (Jo 14,23; uso do perfeito
<apéstalken»). Cristo continua vindo a nós pela graça, para infundir Se as minhas palavras perma· 7 17 lsto vos ordeno
vida. Semelhante ·mediação vivificadora decorre de sua encarnação ( = o necem em vós
dom do amor de Deus), de sua morte e de sua glorificação (Jo Pedf o que quiserdes, ser· 7 16 O Pai vos dará o que pedirdes
l,14.17s; 7,39; 17,19; ljo 1,7; 2,2; 4,10). «Para que vivamos por Ele>. vos-á dado
A encarnação para o Pai é missão, delegação envio. O Enviado possui Produzir frutos 8 16 Produzir frutos
missão especial: falar e agir em nome do P~, representá-lo junto - aos Tornando-vos meus discípulos 8 16 Eu vos escolhi
homens. Portanto, é o Pai que se revela amor; não mandou qualquer 15 Eu revelei o que ouvi do me.u Pai
um, senão o seu próprio Filho, unigênito, muito amado. Isto prova O Pai me ama 9
quanto amor Deus tem por nós, pois não duvidou em sacrificã-lo por 15 Eu vos chamei de amigos
Eu vos amei 9
nós. Se o mandou a este mundo, foi para que os seus filhos pudessem Vós permaneceis no meu amor 10 14 Vós sois meus amigos se- fazeis
unir-se a Ele (Jo 1,4; 5,26; ljo 1,2), ter a vida da graça e da glória. se observardes meus mandamentos o que vos ordeno
Os 3 grandes mistérios da nova aliança - encarnação, redenção, graça
- resumem o Evangelho. Paulo e joão os entendem como concebidos
e realizados pelo infinito amor de Deus. 12 Meu mandamento: amai-vos ....
O v. 10 ostenta a maravilha do amor cristão: não fomos nós -que
o amamos. Ele amou-nos primeiro, enviando-nos seu Filho para expiar v. 111 Dlss~vos lsto para que a minha alegr1a
esteja em vós
nossos pecados. Nosso amor não foi senão uma resposta a quem nos r

amou desde sempre. A iniciativa da salvação cabe ao Pai, o qual enviou

seu Filho ao mundo com a missão de ser vitima expiatória de nossos
pecados. Jesus Cristo é propiciação (hilasmós) pelos pecados da huma-
nidade, pOrque aplacou a justiça divina ofendida, obtendo assim para
os pecadores a possibilidade de participar da vida divina (Jo 3,16;
ljo 2,2; 4,9s). Outra não é a doutrina paulina (Rm 5,8; 8,32; Ef 2,4s;
Tt 3,3-7). O amor de Deus se patenteou misericordioso, desinteress.ado,
gratuito, generoso. Não nos amou a titulo de reciprocidade, mas espon-
taneameote, porque sua natureza é amor. Se põe à morte até seu Fil~o
amado é porque deseja atrair a si os que tenciona salvar. Nas Odes
de Salomão (s. li) hã a seguinte reflexão: <Não teria sabido amar o
Senhor, se Ele não me tivesse amado primeiro» (3,3).
Bibliografia: Cf. 2<> Domingo de Pâsi;:oa do Ano R t2' leitura), adma, ã p. 157.
Pe. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Terceira Leitura: Jo 15,9·17
1. Contexto da perlcope: cf. domingo anterior
2. ]o 15,9-17
Os vv. 7-17 de Jo 15 formam um conjunto, delimitado pela inclu-
são literária «pedir ao Pai, permanecendo em Jesus~ (v. 7), ou _cem
seu nome» (v. 16). _As idéias concentram-se em redor do v. 11, sobre
a alegria completa. Pois a mútua imanência de Jesus e os discipulos
- aplicação do mashal da vide nos versículos anteriores, sobretudo
vv. 5-6 - tem. como resultado ser ouvido pelo Pai, já que ele é glori-
ficado pelo fruto desta união: fruto que é a caridade conforme o amor
que o Pai manifestou no Filho, e que é o conteúdo da «palavra» na
qual os discípulos devem permanecer. R. E. Brown visualiza is!.,, no
seguinte esquema:
O . núcJeo _central da unidade é portanto a comunicação da verda-
de!fa alegna, que é a conoeqüência da observância da palavra (man~
damento) do Senhor, ou seja, do amor fraterno.- -
·Enquanto os vv. 7-8 relacionam o cpermallecer em Cristo» (cf. com.
do dom. anterior) com a eficácia da oração - para a glória do Pai
-, os vi:'· 9-10 explicam em que consiste concretamente este «perma-
necer»: e o. pe~manecer no amor. jesus começa pela fonte: o Pai.
Ele ~mou . pnmelfo (cf. IJo 4,10 etc.}. Cristo, palavra do Pai, amou
tarnbem: os «seus». E estes são solicitados para ficarem no seu amor.
Amor de Cristo: isto é, que vem do Cristo, através de sua paJavra
seu : mandam~nto. Co'!1o_ Jesus fic?u no amor do Pai, guardando su~
pal~vra, assim o cr1stao ~eve ficar no amor. de Cristo, guardando
sua -paJavra. Aparece, aqui, que «amor» em João não é uma coisa
sentimental, mas a Jnesma coisa que Paulo chamaria de «obediência»
(Fl ·2,6-12). É união de vida, não uma sensação sentimentaJ mas um
d~sppr ~ua me~te e ativ!dade para o pJano do Pai. E ent~egar sua
v1d~, Nisto esta a alegr1a - a «reaJização» - de Jesus, e e1e nos
en~m~ este segredo para que a nossa alegria seja compJeta: esta é
a 1dé1a centrai d.a presente perícope. Aqui, devemos recordar o começo
do mashal da videira: a palavra de Cristo nos purifica e nos torna
fecu~dos (Jo 15,2-3); .e a ?hed}ência à mensagem de Cristo que nos
permite uma verdadeira «reahzaçao», nos dã uma personalidade definida
faz com que nos sejamos alguém e valhamos algo. ,
'A nossa identidade é sermos aqueles que pertencem à caridade
exercida conforme o espírito de Cristo. Buscar realização e contenta~
mento numa . outra direção, é contrário à nossa identidade. E trata-se
de urna caridade que não nos pertence. Muitas pessoas enganam-se

198 199
r
neste ponto. Festejam à vontade, e fazem caridade dando as sobras da
mesa para a negrada, como dizem. . . ExpJoram seus empregados e
depois fazem caridade aos filhos dos mesmos (que têm tão lindos
olhos cheios de agradecimento ... ) . Ou delimitam-se um mundo de que
eles são os donos, da caridade e de tudo. . . Isto não é o que Cristo
nos diz. Ele quer que a nossa caridade permaneça fiel à sua palavra,
que é a de Deus. A caridade não é uma veleidade, mas uma obediên-
cia a um preceito. Não somos nós que inventamos. Colocamo-nos a
serviço do apelo que vem a nós, muitas vezes, num modo e numa
aparência que não nos agrada nada. Por exemplo, na forma da exigên-
cia de uma nova estrutura da sociedade, uma estrutura que não. nos
permite ser tão «donos» corno éramos, para que haja mais garantia de
justiça para todos.
Depois da frase central (v. 11), o terna é aprofundado na ordem
contrária. O v. 12 especifica agor.a, explicitamente, o «permanecer no
amor de Cristo:&- como sendo o amor mútuo conforme o modeJo do
amor de Cristo. E este modelo é claro: é a doação da vida pelos
camigos~ (ou por quem se ama) (v. 13). Para que não haja dúvida
sobre quem são os amigos, pelos quais o que ama dá a sua vida,
v. 14 continua: «Vós sois meus amigos~. Como já dissemos, porém,
amor e amizade não é coisa sentimental. E união da vontade: fazer
o que o Senhor ordena, guardar sua palavra. Isto faz parte da lógica
do amor. Se o preceito de Jesus é o amor, quem não o observar não
participa do seu aroor. O v. 14 só se entende se a gente sabe que
o preceito de Jesus é o próprio amor.
O v. 15 traz uma idéia que já apareceu em jo 8,32ss: a idéia de
que os discípulos - agora «amigos::> -, são «gente da casa». Eles
sabem o que seu amo faz, participam na realização de sua vida.
Este saber recebe aqui a categoria de revelação. O que jesus nos
ensina, vem do Pai. Traduzido em tennos existenciais: o mandamento
do amor não é opcional, mas a expressão do Absoluto da nossa
existência~_ E assim como ele mesmo do Pai saiu e a ele volta (13,1),
assim também sua reflexão que saiu da consideração da glória do
Pai (vv. 7-8), agora volta a este tema (v. 16). Somente, a função
mediadora do Filho .. fica mais clara agora: ele escolheu os seus 3-Jlligos
para que andando seu caminho produzissem frutos para o Pai -:- e
o Pai lhes dará tudo o que se insere nesta união de vida Pc:iucas
são as frases que com maior densidade resumem a existência do ~van­
gelizador. A iniciativa vem de Deus, através de Jesus Cristo. Ninguém
se constitui apóstolo a si mesmo. Aliás, não seria possível, pois a
palavra de Deus, que trazemos «:corno em vasos de argila», nos trans-
cende, fica sempre uma surpresa para seu próprio portador. Atraídos
pelo amor convidativo do Cristo, o cristão se coloca a serviço desta
iniciativa. É bom lembrar-se em que consistiu, concreta e historicamente,
o que joão expressa aqui na frase altamente teológica do v. 17: jesus
de Nazaré tratou de renovar, qual um profeta, a vivência religiosa
dos que se chamam os filhos de Abraão (cf. jo 8,39ss). Para. este
fim, reuniu em seu redor pessoas que, aos poucos, foram participan-
do do mesmo critério transcendente que o conduzia. Aos poucos tam-
'
1
bém, foram pertencendo menos ao «mundo», mesmo ao mundo reUgioso
de seu tempo, e mais absolutamente ao apelo transcendente. Tornaram-
se inadaptados. Tudo isto, não porque o desejavam ou porque de. ma-
neira auto-suficiente procuravam sua realização conforme critérios pró-
1
200
prios, mas porque o cjusto e Fiel> os designou para isto. Por causa
disto, os frutos que produzem são realmente glória do Pai, confir-
mação do sentido absoluto da vida que os torna diforentes do mundo
judaico e de qualquer mundo auto-suficiente.
Para terminar, Jesus resume ainda uma vez seu preceito: amai-vos
uns aos outros. Pois este é o critério, que, embora não exclusivo é
especifico do cristão: quem ama à maneira de Cristo é Cristão' e
continua sua obra. '
3. Função na /ilurgia
Como no domingo anterior, também no presente a relação entre
a 2' leitura e o evangelho é evidente. O cristão permanece no amor
que vem de Deus (pois Deus é amor, Ijo 4,8), e que se manifestou
em Jesus Cristo. Nesta imanência no amor, ele se pode dirigir a
Deus com confiança: não lhe faltará nada que for preciso para viver
esta união vital. Sua existência será uma glorificação (honra e mani-
festação) de Deus mesmo. E esta serã sua alegria.
.A. liturgia deverã ser conduzida de tal modo, que sensibilize os
participantes para o que se pode chamar a «existência pascal> do
cristão. É uma existência diferente da natural, carnal. ~ unida com a
do Ressuscitado. Seu critério não é a satisfação dos desejos ou pro-
jetos imediatos da vida natural, mas a plena alegria de permanecer
no Deus-amor e de revelá-lo pela caridade vivida em atos.
Blbllografla: Comentários de R. E. Brown (Anchor Blbl~, R. B u 11 ma n o
(Meyer). R. Se h na e k e n b u r g (Herder). S. Se b u J z N.T. Deutsch). e.
H. D o d d, A lnterpretaI-ilo do Quarto Evangelhl!i São Pa o, Paulinas, 1917;
J. K o n 1 n g s, Encontro com o Quarto Evangelho, :t'etrilpoHs, Vozes, 1975.
Pe. johan Konings
Porto Alegre, RS
Tema Principal
A MANIFESTAÇÃO DO AMOR DE DEUS EM JESUS DE NAZARB
E O AMOR CRISTÃO
Sugestões para a Homilia
Introdução
«Amor» é uma das palavras gastas pelo uso. Palavra que
talvez ainda continue a chamar nossa atenção. Que talvez ainda
pareça ser uma palavra-chave para qualquer -pessoa de «bons
sentimentos». Que talvez ainda represente obviamente um valor
indubitável.
Mas, pensemos bem, se não há aí um engano. Uma doce
ilusão. Quando falamos de amor, falamos de quê? De um sen-
timento? De um calor que dá lá por dentro? De um respeito
abstrato ao outro que é tanto mais fácil de ter, quanto mais
louge o outro está? Ou quanto menos necessidades o outro iem?
201
 Esse é o «amor» que nos infundem as novelas da televisão a
p~opaganda comer~ial, os «~onhos» da adolescência. «Amor» que
nao passa de ego1smo, pois procuramos a nós mesmos, nosso
bem-:star, e não o outro. Amor fácil, porque não precisa sujar
as maos com o concreto. · Embora «dar a vida» seja algo muito concreto e palpável,
Hoje a liturgia nos convida a refletir sobre o amor, sua
verdadeira natureza, sua fonte, sua concretização.
Corpo
1. «Deus é amor». Que amor?
A primeira epístola de São João traz aquela expressão la-
pidar, tantas vezes repetida~ «Deus é amor» (lJo 4,8). Acostu-
mados com o desgaste da palavra «amor», essa «definição» de
Deus, isolada do contexto, pode dizer-nos muito pouco.: Ou
pensamos que ela diz muito, quando na verdade bem pouco diz.
«Deus é amor» não nos informa puramente sobre a natureza
interna de Deus, mas sobre sua atitude para conosco. Que Deus
é amor, não se manifesta por declarações ou declamações, mas
pelo amor que Israel e a Igreja descobriram em sua experiência
histórica de Deus.
Basta lermos o texto da primeira epístola de São João para
sabermos que Deus manifestou seu amor ao enviar seu Filho
unigênito ao mundo (v. 9), ao libertar-nos do pecado (v. 10),
ao dar-nos vida em seu Filho (v. 9). Sua ação histórica, con-
creta, mostrou-o como o Deus-amor. Amor não é uma palavra
altissonante para definir a Deus. Amor são atos concretos em
meio à história dos homens.
O amor de Deus, o amor tão humano de Deus, é para nós
termômetro do amor. Quem é de Deus, ama. Quem nasceu de
Deus, ama. Quem «conhece» a Deus, ama. Ama a quem? O
texto da leitura de hoje é muito claro: ama o próximo. «Amemo-
nos uns aos outros» (lJo 4,7). Se o amor de Deus se mani-
festou no amor aos homens, também o amor dos homens deve
manifestar-se no amor aos semelhantes.
É assim que faz quem «conhece» a Deus. «Conhecer» na
teologia de João não é só tomar conhecimento de algo, estar
informado sobre algo. «Conhecer» é mais: é saber, é amar, é
viver de acordo com o que se sabe, é saber experiencialmente.
Por isso, quem «conhece» a Deus, faz como Deus faz .. Seu
amor é como o amor de Deus: é amor aos homens. Essa atitude
pertence de tal forma ao conhecimento de Deus que, quem' não
ama seu irmão, não conhece a Deus. · relutância.
202
- -- . ...._
2. A manifestafão concreta do arizor de Deus
• O amor é concreto. Por isso temos em Cristo a manifesta-
ção histórica do amor de Deus. «Ninguém tem maior amor do
que aquele que dá a vida por seus amigos» (Jo 15,13).
estamos tão acostumados a ver a cruz de Cristo, que dela já
não luz tão obviamente o amor. Os próprios símbolos e imagens
que deveriam tornar próxima a expressão do amor de Deus na
cruz se tornaram corriqueiros. A cruz, de instrumento de suplí-
cio, se fez adorno. Foi estilizada em obra de arte.
Só reconhecemos na verdade o que significa o amor de
Deus, na medida em que concretizamos o que foi a morte de
Cristo: conseqüência de uma vida que provocou ódio, divisões,
escândalo. E por quê? Não é Jesus de Nazaré a manifestação
do amor de Deus? Justamente por isso a resposta foi ódio e
desamor. Estranho? Então tente instaurar amor num ambiente
de ·ódio e desunião! Verá.
Jesus quis concretizar o amor de Deus, mostrando amor aos
que mais necessitavam dele. Dirigiu-se aos pobres, aos doentes,
aos marginalizados, aos pecadores. Mostrou-lhes que a lei e os
costumes que os mantinham na posição de objetos não vinham
de Deus. Deus queria fraternidade. Os homens não eram irmãos,
pelá culpa dos homens.
Mas, para implantar amor, não basta falar, explicar as
razões do desamoF. É preciso agir, porque o amor não são pa-
lavras, são obras. Jesus agiu. Mostrou-se irmão dos que não
eram tratados como irmãos, dos que não tinham irmãos. Mas,
com isso, desgostou os monopolizadores dos direitos e privilé-
gios da sociedade de então. A «ordem» vigente foi abalada ..
Como ousava o carpinteiro de Nazaré desafiar a desigualdade
que os poderosos diziam sancionada por Deus? «Crucifica-o».
O amor de Deus manifesta-se em Jesus bem concretamente,
encarnado nas circunstâncias sócio-polítitas e religiosas da épo-
ca. «Dá a vida por seus amigos»: morre, porque se mantém
solidário com os desclassificados e ensina-os a descobrirem que
são homens, irmãos dos poderosos, filhos de Deus.
E a ressurreição confirma sua vida como expressão do ver-
dadeiro amor de Deus.
3. Um exemplo concreto
' A primeira leitura nos diz como os cristãos entenderam o
caminho de Jesus e o trilharam com coragem, embora não sem
203
1
r
1

A divisão entre judeus e pagãos era o problema social fun- diferente a resposta. Uma coisa é certa: não basta afirmar que
damental do cristianismo primitivo. Em termos modernos fala- «Deus é amor». Amor é concreto. E o concreto é doloroso,
ríamos de racismo e «apartheid». Entre judeu e pagão não havia conflitivo. Mas também pascal, porque é através do amor con-
comunhão possível. Que fazer com os pagãos que ouviam e creto que experimentamos a ressurreição em nosso dia-a-dia.
aceitavam a mensagem de Jesus ressuscitado? Deveriam tornar-se
judeus? Ou os judeus deveriam reconhecê-los como irmãos, sem Francisco Taborda, S.J.
condições prévias? São Leopoldo, RS
Aqui o amor se tornou concreto para os primeiros cristãos.
Aqui eles podiam provar se «conheciam» a Deus, se haviam
entendido a Jesus.
Quando o amor se deve tornar concreto, é difícil amar.
Também para os primeiros cristãos. Até para os apóstolos. É
o que a primeira leitura nos mostra. Dizer «somos todos irmãos»,
é bonito. Viver com um pagão como irmão, é outra questão.
O amor precisa ser como que «imposto» da parte de Deus pela
ação visível do Espírito Santo (cf. At 10,47). É sempre assim:
o homem gosta de falar de amor e ouvir falar de amor. Mas
traduzi-lo no concreto é desagradável, incômodo, porque exigente.
4. Hoje não é muito diferente . ..
Que significa o amor concreto hoje? Onde o Espírito Santo
tem que «impor» o amor concreto a nós cristãos? Basta abrir-
mos os olhos. Não temos todos um pouco de racismo? Não
têm as classes alta e média ccmsciência de superioridade, e a
classe baixa consciênci:i. de inferioridade? Qual é o patrão que
chama o empregado à sua mesa para a refeição? E qual o
empregado que se sente bem em tal amb'.ente? Tudo isso ma-
nifesta algo mais básico: nossa sociedade calcada em moldes
capitalistas, nosso sistema sócio-econômico capitalista periférico
dependente.
O amor concreto precisa ver essa realidade. Que é amar
num país com tais estruturas sociais? Certamente o amor con-
creto vai muito além do assistencialismo. O desafio que o Espí-
rito Santo nos «impõe» hoje é colaborar na libertação das
maiorias oprimidas em nosso país e nosso continente.
«Libertação», porém, pode ser igualmente uma palavra linda
de encher a boca, mas abstrata, tremendamente abstrata, enga-
nadora e assim alienante, enquanto fica só na palavra. Precisa
tornar-se ação. O amor de Deus exige aqui e agora que cola-
boremos na libertação de nosso povo, para que surja uma nova
sociedade, mais fraterna. Para tanto será preciso perguntar o
que é possível fazer aqui e agora. Para cada pessoa, em cada
comunidade, em cada classe social, em cada profissão, será

204 205
 Sétimo Domingo da Páscoa
Ascensão do Senhor
Pistas Exegéticas
Para as Pistas Exegélicas da Primeira e da Segunda Leitura, cf.
A Mesa da Palavra, Ano A, p. 245-246.
Terceira Leitura: l\lc 16,15-20
O final de l\lc (16,9-20) falta nos manuscritos mais antigos, é
desconhecido a vários SS. Padres da Igreja. Tudo leva a crer que
foi acrescido mais tarde. Pressupõe os outros evangelistas, dos quais
deduz as aparições, especialmente de Lucas e João. De estilo trôpego,
sem penetrar a fundo as idéias, entretanto é altamente ilustrativo para
a mentalidade da comunidade posterior. Salientam-se neste final duas
seções: na primeira narram-se as aparições a Maria Madalena (vv.
9-11: resumo de jo 20,11-18 e Lc 8,2 e 24,1-11), aos discípulos de
Emaús (w. 12s) e aos Onze (w. 14ss, cl. Lc 24,36-43.13-35), -
quando repreende a falta de fé nos discípuJos, os quais não deram
crédito àqueles que o haviam visto. É uma advertência aos futuros
fiéis de crerem nas testemunhas da ressurreição, mesmo sem terem
visto pessoalmente o Senhor (cf. ]o 20,25.29: Tomé; Lc 24,lOs). A
censura se estende também aos Onze: são descrentes e duros de co-
ração, porque não acreditam nas testemunhas de sua ressurreição. Quer-
se aí inculcar a necessidade de uma fé sincera. Após a censura, os
apóstolos teriam ensaiado uma desculpa, como sugeriu um copista pos-
terior que forjou um minidiálogo entre Jesus e os Onze, o qual se
conserva num manuscrito grego do s. IV ou V. Notam-se nele um teor
espiritualizante, urna visão soturna do mundo e do poder de satanás.
Vale transcrevê-lo:
"E eles se desculparam, dizendo: Este eõnlo sem lei nem fé está sujeito a
Satanás, que não permite que tudo o que está sob o poder dos esplritos Imundos
chegue ao conhecimento da verdade e do poder de Deus (? o texto está truncado).
Por Isso manifesta já agora tua justiça, diziam eles a Cristo. E Cristo respondeu-
lbes: Está completado o limite dos anos para o poder de Satanás. Mas ap:roximam-
se outras coisas terríveis. E eu fui entregue à morte pelos pecadores, a fim de
que eles se convertam à verdade, nem pequem mais. oara poderem herdar a
espiritual e imperecivel glória da justiça no céu".
A segu'nda seção (o texto comentado) aduz o discurso missionário
- o mandato - do Senhor ressuscitado (cf. l\lt 28,19s). Exorta a
evangelizar o mundo inteiro e estabelece que a fé e o batismo são
necessários para a salvação. Aos que pregam, prometem-se carismas
especiais (vários tipos de milagres) para apoiar e confirmar a pre-
gação da Palavra. Com a ascensão, Jesus separa-se afinal dos discí-
pulos, - cena que literariamente acopla e resume Lc 24,50-53 e At
1,9-11 - e passa a sentar-se à direita de Deus. A Ele a comunidade
eleva os olhos, porque coopera na sua missão terrena; assim pensava
e cria firmemente a Igreja primitiva engajada na evangelização do
mundo inteiro.
206
Os discípulos são enviados a pregar. Aqui, como em l\lt 28,16-20
e Lc 24 47 o mandato apostólico acompanha a aparição pascal do
Ressuscit;d~. O autor deste pseudolinal conferiu a tal mandato uma
forma especial, ressaltando a ação missionária a todas as. cri~tur~.
Não se pense é óbvio que devessem pregar também aos 1rrac1ona1s,
porquanto no 'v. 16 à , pregação deve corresponder a necessária. fé, a
qual só é concebível nas criaturas racionais. Em Mt 28,19 se diz: «a
todas as naçõeS». Trata-se aqui do avanço vitorioso do Evangelho,
qual se descreve em lTm 3,16: «Sim, é tão subJime - unanimemente
o proclamamos - o mistério da bondade divina: manifestado na carne,
- justificado no Espírito, - visto pelos anjos, - anunciado aos povos,
- acreditado no mundo, - exaltado na glória».
No Igreja ficará determinado: salva-se .q?em tiver fé e f~r ba-
tizado; quem não tiver fé será condenado no ]Utzo ?e ~eus. Os tJ?llagr_es
que acompanharão a pregação revelam uma exper1ê?c1~ da Jgre1a mis-
sionária: a dos carismas. As curas, os portentos ai citados~ ~contecem
também nos Atos dos Apóstolos. São eles: expulsar demon1os, falar
novas língúas, manusear ou caminhar sobre serpen~e~ e beber 'Yeneno
sem ser afetado (c!. Lc 10,19). No mandato exphc1ta-se o universa-
lismo cristão entre os pagãos, universalismo que em Marcos prova ~~r
coisa pacífica em Roma em comunidade formada de ex-pagaos, abas
..
em germe em Me 7,27 ~ 13,10. Quanto ªº~ carismas, el~s indicam um
poder especial conferido aos apóstolos e f1e1s para dominar os i_nimi-
gos espirituais do homem. Entretanto valem menos que a r:al1dade
interior da graça .ou a eleição para o Reino. A cura material dos
enfermos pela unção com óleo tornou-se um sinal do poder ~obre as
enfermidades dado aos apóstolos. Recebidos de graça, os carismas se
eXerçam também de graça. O poder sobre os demõn.ios vtsa d_estruir
seu domínio no mundo como se pensava nos ambientes bibhcos e
extrabíblicos de então. 'Os diabos são chamados imundos porque se
julgava habitassem nos túmulos, cujo contato produzia impur~za legal.
Cur_ar doenças é um carisma afim: visto que a doença era tida como
efeito do pecado, curá-la era anular .as conseqüências_ do pecado e,
assim derrotar Satanás. «Falar novas hnguas» (glossoJaha) nao é falar
língu~s estrangeiras, mas faculdade de emitir, em êxtase, ~ons ininteli-
gíveis e palavras incoerentes - interpretáveis apenas àqueles que
possuem o carisma da «interpretação». Não intenta e~ificar, s_en~o tes-
temunhar a presença do Espírito de Deus. A g1ossolaha, sem interprete,
pouco adianta, pode mesmo ser prejudicial à ·comunidade - com.o acon-
teceu eJil Corinto. Os carismas não são diretamente para confirmar a
fé que está sendo anunciada, mas um dom aos crentes, embora_ com
valor apologético secundário. Os portentos têm valor global: nao se
exige que se realizem em todos os crentes. Os mesmos acontecem «em
nome de Jesus». Os apóstolos já haviam recebido tais carismas (Mt
10,1.8; l\lc 3,15; 6,7-13; Lc 9,1-6; 10,19). .
Na Igreja primitiva, os carismas eram mais fre.qüentes em virtude
das circunstâncias: expulsão de demônios, dom das hnguas, andar sobre
serpentes e escorpiões sem perigo (Lc 10,l9). S. Paulo é mordido por
serpente e nada sofreu (At 28,3). S. João, em Ptamos, foi envenenado
com bebida, nada acontecendo. A imposição das mãos não estaria rela-
cionada com os efeitos da unção que sanava os enfermos (Me 6,13)?
Em toda a história da Igreja, o milagre sempre teve lugar e impoitância.
A dureza da condenação aos incrédulos sem discernir entre boa e
má-fé, a insistência nos gestos prodigiosos ao longo da missão1 são
2f'/1
 condicionadas aos tempos e não se podem absolutizar para sempre.
Me encerra .afirmando a ascensão/assunção de jesus ao céu e sua entro-
nização à direita de Deus (cf. SI 109,1). «Sentar-se à direita de Deus>
é expressão semita e significa estar na mesma esfera divjna e parti-
cipar de seu poder divino. A linguagem evoca a «ascensão» de Elias
(2Rs 2,11; Eclo 48,9). O titulo «Senhor jesus> só aqui aparece nos
Evangelhos. Nas cartas é mais encontradiço. Na Igreja antiga, o titulo
«:Senhor» (Kjrios), aplicado a Cristo, era uma confissão de sua di-
vindade. Ê com ela que Marcos inicia seu evangelho. Lucas concebe
a «:ascensão» como um «arrebatamento» corporal de jesus (Lc 24,51;
At 1,11), concepção que se impôs, embora a expressão não se encon-
tre nos outros evangelhos; além de conciliar-se com a cosmovisão do
tempo, permitiu imaginar que jesus se afastara dos discípulos e, ao
mesmo tempo, garantira sua presença na comunidade. O Senhor-Jesus,
junto ao Pai, fica em comunhão com a comunidade terrena, que dá
continuidade à sua obra, ajudando-a mediante cooperação, que Marcos
discerne através de sinais acompanhando a pregação. O final de Me
reconhece a obra missionária dos apóstolos e a respectiva confirmação
de Cristo com prodígios. É a pregação e a extensão da fé umas décadas
depois.
Mais detalhes sobre a Ascensão (cf. Lc 24,50s e AI 1,9-12): Mt
e Jo nada dizem; supõem-na. Me relata só o fato, que se deu diante
dos apóstolos. Lc descreve-o um pouco mais no evangelho e, ainda
mais pormenorizadamente, nos Atos. Não há conexão cronológica com
o que antecede. Segundo Atos, um belo dia jesus conduziu os apósto-
los "'até Betânia, no lado oriental do Monte das Oliveiras, perto de
Jerusalém. A tradição assinala um lugar, no alto do mesmo monte,
como local da Ascensão. Af, Jesus, levantando os braços à guisa dos
sacerdotes no templo, os abençoava. Enquanto dava sua última bênção,
separou-se deles. As palavras «foi arrebatado ao céu> são muito discuti-
das pela critica (Nestle, NT) e parecem interpoladas. Os apóstolos «se
prostraram» diante dele ( = adoraram-no) - é frase também contestada
pela 'critica, segundo Nestle. Em todo o caso, é um ato de acata-
mento da majestade de Cristo, enquanto subia ao céu. Na pesca mi-
lagrosa (Lc 5,Sss), Pedro, em seu arrebatamento, se prostrou aos pés
de jesus, rogando-lhe que se retirasse porque era pecador. Ora, não
admira que se repita aqui a mesma cena, numa reação espontânea
ante o Cristo que sobe aos céus vitorioso, já que depois «voJtaram
para jerusalém com grande júbilo, permanecendo no templo, louvando
e bendizendo a Deus».
A Ascensão dá a impressão de ter sido um fato mais demorado
(cf. At 1,9-12). Após ter-lhes falado, elevou-se da terra diante deles
e uma nuvem o ocultou. Os apóstolos, na· medida em que o acompa-
nhavam com seus olhares, vendo-o afastar-se para o alto, eis que
lhes apareceram dois homens vestidos de branco, que lhes disseram:
'Homens da Galiléia, por que ficais aí a olhar para o céu? Este jesus
que acaba de vos ser arrebatado para o céu, voltará do mesmo modo
que o vistes subir para o céu' (AI 1,9-11). É descrição segundo as
aparências físicas, sem pretensão cientifica. Ê o céu atmosférico, acessí-
vel ao olho humano, sem alusão aos vários céus da cosmografia hebraico-
helenista (cf. 2Cor 12,2). As duas personagens com vestes brancas
são anjos em forma humana, corno aqueles que apareceram às mu-
lheres junto ao sepulcro vazio (Lc 24,4; jo 20,12). A nuvem, no VT,
208
costuma figurar nas teofanias (Ex 13,2ls; 16,10; 19,9; Lv 19,2; SI 96,2;
Is 19,1; Ez 1,4). No NT a nuvem aparece na Transfiguração (Lc
9,34s; At 1,9). O profeta Daniel assere que o Filho do Homem virá
sobre as nuvens para estabelecer o reino messiânico (7,l3s), - texto
ao qual jesus alude aplicando-o a si mesmo (Mt 24,30; 26,64). J'l
natural que jesus ao entrar na,' glória, após ter cumprido Sua missão,
apareça também sobre a nuvem, símbolo da presença e majestade di-
vinas. Ademais, as personagens vestidas de branco anunciam a parusia,
quando jesus, ao invés de subir, descerá glorioso - motivo de espe-
rança e perseverança para os cristãos (cf. 3,20s; JTs 4,16ss; 2Pd 3,8-14).
A exortação do Ressuscitado ao trabalho missionário é formulada
num otttro «final» mais breve de '.Marcos, presente em muitos manuscritos:
"Mas elas (as mulheres) re1atararo com brevidade, tudo o que lhes fora
ílrdenado, àqueles que estavam (reunidos) ao redor de Pedro. Mas, em seguida,
enviou o próprio Jesus, do nascer ao põr-do-so1, por meio deles, a santa e JmpereciveJ
pregação da salvação eterna".
jesus continua sua pregação, graças à Igreja, - pregação que, por
apoiar-se na sua ressurreição, tem a certeza da vitória. O Evangelho
de Cristo, anunciado na Igreja, transformou-se pelo suplício na cruz em
força salvífica. A comunida,de cfistã que, depois de sua morte, se via
comprometida com o dever de anunciar o Evangelho, sente-se agora
enviada a isto, não por virtude própria, mas pelo Cristo Ressuscitado.
O mandato apostólico proclama a missão universal docente e sa-
cramental : a universalidade de ; seu ensino e de seu batismo. Cristo,
detentor de todo e qualquer poder (jo 13,3; Mt 28,18), faz os apóstolos
participar de sua autoridade, enviando-os a concretizar sua missão, o
apostolado recebido do Pai: «Ide por todo o mundo e pregai o Evan-
gelho»! Nisto eles atuam e obedecem com poder derivado e participado,
mas real, porque em nome de Cristo. Manda-os a todos os povos, cria-
turas, realizando a universalidade da salvação prevista já pe1os pro-
fetas. Tal missão se reveste de dupla finalidade: ensinar e batizar.
Institui-se destarte o magistério apostólico na Igreja. Não basta conhe-
cer o Evangelho. Urge incorporar-se no Reino pelo batismo. «Batizar»
(baptlzo) não é apenas csubmergir-se> (bápto), senão também <lavar/
purificar> (Lc 11,38; Me 7,14): Além de pregar o Evangelho, faz-se
mister batizar, com o que o homem se purifica, produzindo um «novo
nascimento» espiritual (jo 3,5s). Para Paulo, o batismo leva o cristão
a con-viver com Cristo, a incorporar-se a Ele (Rm 6,8). O lavacro
batismal deve fazer-se em nome das três pessoas trinitárias (Mt 28,19).
Batizar «em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo», isto é, para
a .:pessoa», ou em virtude da «pessoa» do Pai, do Filho e do Espírito
Santo - o que sugere uma Pl!rificação e uma consagração do fiel à
Trindade. «Em nome de» expressa também autoridade. Na passagem
paralela, segundo Mateus, Cristo manda ensinar a observar seus pre-
ceitos. Me o supõe, quando assere que a fé é condição absoluta para
salvar-se. Com efeito, a fé surge da audição da Palavra (Rrn 10,14).
A pregação do Evangelho é requisito prévio para o batismo, o qual
para quem não observa a lei de Cristo ·pouco ou nada resulta.
Marcos, ao acrescentar a promessa de carismas à comunidade cristã
(16,17-18), aponta para um privilégio, vale dizer, os prodígios demons-
tram a autenticidade renovadora do Batismo, que marca o ingresso
no Reino. São Paulo, escrevendo aos Gálatas, prova-lhes a verdade
209
 da fé cristã, mostrando que os carismas, existentes em sua comunidade,
não provinham da Lei judaica, mas eram fruto da pregação da fé
(OI 3,2).
BibJJografla: R. S eh n a e k e n b u r g, O Evangelho segundo 1Uarcos (trad.
de E. Blnder), Vozes, Petrõpoiis 1974; j. A 1 o n s o, Evangelio de San J\farcos,
La Sagrada Escritura, NT, 1, BAC, Madrid 1961; M. de Tu y a, Evangelios,
Biblia comentada, V, BAC, Madrid 1964.
Pe. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Tema Principal
«OU DEUS SE ENCONTRA NO CORAÇÃO DOS HOMENS
OU NÃO SE ENCONTRA EM LUGAR NENHUM»
Sugestões para a Homilia
Introdução
Hoje os cristãos celebram a subida de Jesus aos céus. Quando
ouvimos o termo céu, somos impelidos a imaginar um lugar
í acima da estratosfera, onde Deus habita em companhia de seus
j~
,, santos e anjos. Ora, quando o príncipe de Florença, desconfiado,
'i
indagou de Galileu se ele havia visto, por sua luneta, Deus lá
em cima no céu, o grande cientista do século XVII deu-lhe uma
resposta lapidar: «Üu Deus se encontra no coração dos homens
ou não se encontra em lugar nenhum».
Corpo
1. A Ascensão de jesus
Na leitura dos Atos dos Apóstolos feita hoje, ouvimos São
Lucas dizer que Jesus «provou, sem deixar dúvida alguma, que
estava vivo». Provou aos apóstolos e nós temos a mesma fé
dos apóstolos. Portanto, cremos que Jesus de Nazaré, assassina-
do pela repressão político-religiosa da Palestina de seu tempo,
venceu as forças da morte e ressuscitou. Cremos que, agora, sua
presença abarca toda a natureza e toda a humanidade, além
de nossas dimensões de tempo e espaço. Como não temos ca-
tegorias que definam a presença ressuscitada de Jesus, dizemos
que ele «subiu aos céus». Isto não quer dizer que ele está
«lá em cima», desafiando os astronautas engajados na corrida
espacial. Significa que ele está em tudo e E"t11 todos e, sobretudo,
«no coração dos homens», como falou Galileu - pois é neste
templo - o nosso coração, o centro de nossa personalidade,
210
o eixo de nossa vida - que o adoramos em espírito e verdaac
De nada adianta freqüentarmos a igreja, acendermos velas, fa-
zermos promessas, se não abrimos o coração a Jesus ressuscitado.
2. Atitudes de ascensão em nossa vida
a) A oração. - O que significa «abrir o coração a Jesus
ressuscitado»? Isso requer duas atitudes que, em nossa vida,
encontram a sua síntese: uma atitude de oração e uma atitude
de ação. Deus não é a nossa subjetividade ou uma sensação
psicológica. Deus é uma pessoa e, como tal, entramos em rela-
ção com ela assim como nos relacionamos com as pessoas a
quem amamos: conversando, criando laços, partilhando intimi-
dade. Eis a prática da oração. A oração é o nosso momento
de diálogo e abertura a Cristo. Quando rezamos, deixamos que
o Espírito dilate o nosso coração para que possamos, aí dentro,
apreender, na fé, a presença inefável de Deus. Por isso, o cristão
que não reza é como um marido que não dialoga com sua
esposa. Aos poucos, um se fecha ao outro e a relação vai
esvaziando-se. Quando rezamos, somos como a terra que, sob
a chuva, se abre para fecundar a semente. Como diz Maria,
nessa abertura orante, Deus realiza em nós maravilhas ...
b) A ação. - A atitude de ação é conseqüência, e também
causa, da nossa atitude de oração. Esta nos torna mais sensí-
veis à presença do Senhor ressuscitado em tudo isso que é a
negação do «Céu» e se nos apresenta como sinal do «inferno»:
a fome, a tortura, o arrocho salarial, o desemprego, as doenças
sem tratamento, o excesso de horas-extras no trabalho etc. É
ai que o Senhor quer ser encontrado, servido e amado, para
que possamos transformar esse «inferno», fruto do pecado estru-
turado e historizado no sistema capitalista, em «céu», ou seja,
em realidade justa, livre e verdadeira.
3. Movimentos de ascensão
Há uma definição de inferno dada pelo escritor russo
Dostoievski, que permanece atual: «Ü inferno é a ausência de
amor». Amar não é apenas querer bem a uma pessoa. É querer
bem a todas as pessoas, principalmente estes que mais necessi-
tam do nosso amor, da nossa doação, da nossa luta: os traba-
lhadores oprimidos por uma ordem social que procura preservar
a divisão dos homens em diferentes classes sociais. Se, de alguma
forma, nos voltamos para as causas dos trabalhadores ou, como
tais, assumimos as aspirações de nossa c1asse, estamos fazendo
o que Jesus fez: subindo do inferno ao céu, isto é, superando
211
os sinais de pecado, as forças da morte e implantando essa rea-
lidade nova e jnsta que é o prenúncio do Reino que está pro-
metido pelo Pai. Portanto, há em nossa vida um movimento de
•ascensão», todas as vezes que procuramos quebrar as barreiras
do pecado, da injustiça, da morte, para que os homens tenham
a vida e a vida em abundância, como diz Jesus no Evangelho
de São João ( 10, 10).
Conclusão
Na carta aos Efésios é dito hoje que Jesus «está acima
de todas as autoridades que existem neste mundo». Eis o grande
desafio lançado pela Igreja primitiva: obedecer antes a Deus que
aos homens. Para nós, cristãos, as determinações humanas são
válidas na medida em que não contrariam as exigências de nossa
fé e os imperativos de nossa caridade. Não podemos obedecer
uma autoridade que se pretende mais sábia que Deus e mais
poderosa que o Cristo. A presença ressuscitada de Jesus apare-
ce, hoje, nos sinais de justiça, de liberdade, de amor, que vemos
em cada pessoa, nos movimentos sociais, nos povos em busca
de sua libertação, na ânsia de uma vida melhor. E isso está
acima de tudo mais, pois de nada valem as leis, as normas e os
regulamentos, se eles não contribuem para reduzir as injustiças
e tornar o povo - principalmente os oprimidos - livre e mais
feliz.
Frei Betto
Belo Horizonte, MO
212
Domingo de Pentecostes
Pistas Exegéticas
Para as Pistas Exegéticas das três Jeituras, cf. A Mesa da Palavra,
Ano A, p. 253-258. Para comentários da Terceira Leitura, jo 20,19-23,
cf. também 1. e., p. 209-212.
Tema Principal
Com a celebração do Domingo de Pentecostes termina o tempo
pascal. Hoje é também o último dia da Semana de Oração pela Unidade
dos Cristãos. Sugere-se, portanto, à luz do Dia de Pentecostes e do tema
da Semana da Unidade, uma homilia sobre
A UNIDADE DA IGREJA
Sugestões para a Homilia
Intr-Odução
Escdndalo da divisão e busca da unidade
1. Em nosso bairro hâ várias igrejas: a nossa igreja ca-
tólica, uma ou mais igrejas de «Crentes». Nós, os cristãos, cons-
truimos igreja ao lado de outra igreja. Isto na melhor das hipó-
teses. Porque às vezes construimos igreja contra igreja. Quando
os «crentes» abrem um ponto de pregação, um templo para
começar um «trabalho», achamos que devemos fazer alguma
coisa para neutralizar a influência deles. As vezes tem sido assim.
Os «crentes:. têm construído igrejas ao lado das nossas, para
salvar os coitados dos católicos do inferno que os espera e para
mostrar-lhes Jesus o Salvador.
Quem são eles para nós? Quem somos nós para eles? Somos
irmãos? Irmãos separados, divididos? Somos desconhecidos uns
para os outros? São eles, para nós, hereges, causadores de
divisões, adversários, concorrentes? Somos para eles: adorado-
res de Maria, dos Santos, que não conhecem a Bíblia?
2. Desconhecimento e indiferença, inimizade e concorrência,
ou até simpatia, compreensão mútua, amizade, de qualquer
forma, a divisão entre os cristãos «Contradiz abertamente a von-
tade de Cristo e se constitui em escândalo para o mundo, como
também prejudica a santissima causa da pregação do Evangelho
a toda criatura» (Decreto conciliar sobre o ecumenismo, n• 1).
213
 Realmente, como o mundo pode crer que Jesus veio para
unir o que estava disperso pelo pecado, se os seus próprios dis-
cípulos estão divididos entre si? Como o mundo pode crer que
Jesus veio acabar com a inimizade, se os seus discípulos são
«irmãos separados», quando não algo pior?
3. Em contraposição, na história do cristianismo sempre tem
havido movimentos de união. Hoje em dia é bastante forte esta
busca de unidade entre os cristãos, e por toda parte há grupos
de cristãos que se dedicam à causa da unidade.
Cristãos conscientes do pecado da divisão se têm perguntado:
- apesar de pertencermos a Igrejas diferentes, o que po-
demos fazer juntos para anunciar a Boa-Nova a toda criatura?
- apesar das nossas divisões, o que podemos fazer juntos
em favor de um mundo mais justo, mais fraterno, mais habitável?
- qual é a unidade que (ainda) existe entre nós, irmãos
divididos, e o que podemos fazer para crescer naquela unidade,
que o Senhor oferece à sua Igreja?
Estas são as perguntas fundamenlais que coloca diante de
nós o movimento da unidade, geralmente chamado movimento
ecumênico ( oikoumene: terra habitada, mundo inteiro).
Corpo
1. Colocai-vos a serviço uns dos outros, para a glória de Deus
(terna da Semana da Unidade de 1979)
1) A unidade como dom de Deus. - A unidade é um dom
que Deus oferece à sua Igreja. Apesar de todas as divisões ela
continua a existir. Mas as divisões a tornam imperfeita, obnubi-
lada. Importa, portanto, caminhar para a plena unidade, que o
Senhor quer para a sua Igreja. Sendo dom, graça, o caminhar
para a plenitude na unidade está a exigir, antes de qualquer
ouira ação, aquilo que o Concílio chama a alma de todo movi-
mento ecumênico ou o ecumenismo espiritual (ver Decreto con-
ciliar sobre o ecumenismo, no 8):
- constante renovacão e reforma da Igreja, na fidelidade
ao Senhor; · na Europa.
- conversão interior;
- oração pela unidade.
2) A Semana da Unidade . •- Para conseguir esta plena
unidade em Cristo, a nossa Igreja e outras Igrejas Cristãs de-
dicam uma semana especialmente à causa da unidade. Para
muitas Igrejas, já é um costume de muitos anos. Em alguns
países a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos é ce-
214
lebrada em janeiro (18 a 25 de janeiro: memória da Cátedra
de Pedro • em Roma e da conversão de Paulo), em outros
países, como o Brasil, a Semana da Unidade é feita nos dias
que antecedem ao Dia de Pentecostes (Ascensão a Pentecostes).
Inicialmente as intenções da Semana visavam mais a volta
dos irmãos separados ao seio da Igreja Católica; hoje em dia
pedimos antes que todos os cristãos (nós mesmos incluídos)
possam crescer na unidade que o Senhor quer para a sua Igreja.
3) O tema para a Semana. - Desde 1967, organismos
ecumênicos da Igreja católica e de outras Igrejas cristãs indi-
cam um tema especial para a Semana da Unidade. Assim, por
exemplo, para o ano em curso, foi escolhido o tema: «Colocai-
vos a serviço uns dos outros, para a glória de Deus».
Este tema é inspirado na 1• carta de Pedro, cap. 4,7-11.
O autor da carta exorta as pequenas comunidades cristãs, espa-
lhadas num mundo hostil e sujeitas a grandes dificuldades, a
procurar o seu sustentáculo na comunhão mútua,
- permanecendo vigilantes na oração,
- mantendo a mútua e constante caridade,
- exercendo a hospitalidade,
colocando a serviço, uns dos outros, os dons recebidos.
4) Um programa de ação em favor da unidade. - Sem
dúvida, estas exortações do Apóstolo Pedro contêm um progra-
ma de unidade (koinonia) dentro da nossa própria comunidade,
ou entre as comunidades da nossa Igreja.
E se nós, cristãos separados, convencidos de pertencermos
todos ao Corpo do Senhor, tentássemos tomar estas exortações
de Pedro como programa de ação, no bairro, na cidade, onde
vivemos uns ao lado dos outros? Se começássemos a orar juntos,
ou a interceder uns pelos outros; a nos amar de verdade, como
irmãos (sem o adjetivo «separados»); a receber os outros como
irmãos, a compartilhar os dons que cada uma das nossas Igre-
jas recebeu do Senhor? O Papa joão Paulo II falou disso na
audiência geral do dia anterior ao início da Semana da Unidade
2. cPara que o mundo crei~
A unidade da Igreja não é um fim em si. Como a Igreja
toda, ela deve estar a serviço da salvação do mundo. Jesus
orou ao Pai assim: «Pai. .. que eles sejam um ... para que o
mundo creia» (Jo 17,21).
• Pela reforma litúrgica , esta festa foi transferida para 22 de fevereiro.
215
 O movimento em favor da unidade dos cristãos deve incluir,
como aliás sempre tem incluído, o mundo com os seus proble-
mas, a luta pelos injustiçados, os marginalizados, a luta pelo
reconhecimento real dos direitos humanos, a luta contra o ra-
cismo, e todas as outras formas de dominação (como a do
homem sobre a mulher). A luta em favor de um mundo habitá-
vel, que dá dimensões universais ao movimento ecumênico, é
um vasto terreno para uma ação conjunta de Igrejas e grupos
cristãos e um poderoso meio para descobrir novos caminhos
para a plenitude da unidade em Cristo.
3. Unidade dos Cristãos e ação do Espírito Santo
É muito significativo celebrar a Semana da Unidade em
conexão com o Dia de Pentecostes.
J) O Espírito os une num só corpo. - O Espírito Santo
desce sobre os discípulos que estavam reunidos no mesmo lugar,
perseverantes na oração, com Maria, a Mãe do Senhor. E quan.do
os discípulos recebem a força do alto, eles começam a . anunciar
as maravilhas de Deus a pessoas de raça e cultura diferentes;
mas de tal forma que cada um os ouve falar na sua própria
língua. . terras estrangeiras. Estes exilados lsraeUtas estavam prnfundamente chocados com
Reconhecendo que Jesus é o Senhor, os convertidos se fazem
balizar e são acrescentados ao corpo qu~ é a Igreja. Na uni-
dade do Corpo do Senhor, acabam (ou (!evem acabar) a.s o~o­
sições de raças (não há mais judeu nem grego), dommaçoe-s
sociais (não há mais escravo ou livre) e de servi tu de de sexo
(nem homem nem mulher), porque todos são um em Cristo.
2) O Espírito, princípio de unidade .na multiplicidade de
dons. _ O Espírito Santo suscita uma multiplicidade de dons no
Corpo do Senhor, que é a Igreja, mas ao mesmo tempo f:l~ é
o princípio de unidade; porque tudo vem do mesmo Espmto.
Conclusão
Nesta Eucaristia estamos novamente reunidos, como os dis-
cípulos estavam. No meio de nós está 9 Senhor ressuscitado,
como narra o Evangelho de hoje. Novamente Ele nos concede
o seu Espírito, para que nos possamo.s· colocar a serviço do
perdão e da reconciliação. Cristãos reconciliados para sermos
instrumentos de reconciliação no mundo.
P. Fr. Félix Neefjes, O.F.M.
Rio de Janeiro, RI
216
Solenidade da SS. Trindade
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Dt 4,32-34.39-40
«lahve é Deus e não há outr0»
Contexto literário de Dt 4,32-34.39-40. Esta passagem, que a Igreja
nos apresenta como uma parte da Palavra de Deus celebrando a festa
da Santíssima Trindade, deve ser situada e lida no contexto maior
de todo o Dt 4, Porque Dt 4 forma uma unidade em si· ele não revela
ser uma continuação com o que lhe precede, Dt 1-3, e ~em com o que
lhe segue, sobretudo Dt 5-26, a assim chamada lei deuteronômica. Este
capítulo, mesmo tendo atualmente uma posição singular no livro do
Deuteronômio, compõe com Dt 1-3 a moldura introdutória à lei deute-
ronômica. A temática central de Dt 4 pode ser resumida neste par de
palavras: Dom e dever ou proposta de Deus e a resposta do homem.
A época do surgimento de Dt 4,32-34.39-40. Esta parte bem como todo 0 Dt 4
ê atribuído à fonte literária deuteronomista". Dt 5-26, no entanto, pertencem em
termos gerais à fonte literária deuteronõmica. Dt 4, portanto, deve ter surgido no
tempo em que os Jsraelltas sofriam as conseqiiênclas do exi!Jo babiJõnico (cf.
Perlitt, p. 32-36; Rad, p. 7). Esta constatação é multo linportante, pois situa
historicamente os redatores desta fonte Uterãria bem como seus endereçados que,
como exl1ados, estão longe de sua pátria, morrendo de saudades de seus familiares
e amigos, e impossibilitados de viverem intensamente sua fé e sua re1igJão em
tudo que experimentavam. Muitos calram num fataUsmo muito prejudicial e outros
não raramente, apostatavam da ft! em labve. !l sob este pano de fundo hlstõrJcÓ
do povo de Israel que devemos ler e interpretar a nossa passagem Dt 4,32-34.3{)..40
bem como toda a catequese de Dt 4 que ê tardiamente exilica.
Comentário de Dt 4,32-34.39-40. Logo de inicio se percebe que os
teólogos deuteronomistas - visando sempre explicar a causa da ca-
tástrofe dos dois reinos israelitas ( cf. 2Rs 17) - fazem com esta pas-
sagem uma catequese sobre lahve, o Deus de Israel. Nos vv. 32-34 o
pregador deuteronomista convida seus contemporâneos a uma medita-
~ão sobre o seu passado. Nesta contemplação dos tempOs de outrora
ele conclama seus ouvintes exilados a retrocederem o mâximo possível
na história, isto é, até ao tempo da criação do homem por Jahve;
l"" ••
e ele os pergunta se de uma extremidade dos céus até a outra acon-
teceu e se nuviu algo tão· poderoso como eles jâ constataram com lahve;
cu se um povo como os israelitas conseguiu ouvir a voz de Deus do
fogo sem perecer; t>U se jâ aconteceu sobre a face ·da terra que
mn Deus se aproximou de tal maneira de um povo, escolhendo-o,
preferencian<to-n entre todos os povos; e, além de tudo isto, se existe
um povo como o de Israel que desde o seu berço experimentou tão
de perto a ação efetiva e libertadora de Deus, isto é, salvando-o da
()pressão egípcia com mão forte e braço estendido, conduzindo-o e
protegendo-o em toda a sua história por meio de provas, de sinais
maravilhosos, de prodígios, lutas... Que questionamento sério, que ca-
tequese clara e direta para provocar nos israelitas exilados urna opção
jlOr lahvel
Por isso, a partir desta contemplação do passado salvífico e prenhe
-da ação amorosa e gratuita de Iahve para com o povo israeHta, não
217
há outra salda e conseqftência: cSabe agora e grava no teu coração
que Jahve, ele é o Deus em cima nos céus- e embaixo sobre a terra
e não há mais outro> (v. 39). Quando se lê este versículo no hebraico
percebe-se a força de expressão que ele contém. Após o termo lahve
o redator deuteronomista parece que faz uma pausa para enfatizá-Jo e
acrescenta o pronome pessoal «Ele»; e antes do termo elohim ( = deus,
divindade) ele coloc~ o artigo definido para anunciar assim que so-
mente lahve é Deus, que ele é o único Deus e fora dele não existe
mais nada que possa ter o atrjbuto divino; e isto nem lã em cima
nos céus e nem sob e sobre a terra. Em vista desta compreensão
de Deus resulta conseqüentemente que as únicas leis e prescrições cli-
vinas são aquelas que os iSraelitas conhecem e devem observar. Uni-
camente o cumprimento fiel delas propiciará para eles e para gerações
futuras toda a sorte de bem e uma vida ltinga na terra que Jahve,
o grande Deus de Israel, quer dar outra vez. Aqui neste v. 40 se per-
cebe com toda a clareza a situação histórica do teólogo deuteronomis-
ta e de seus contemporâneos que é o exílio babilônico. Este justamente
aconteceu porque os israelitas rejeitaram Iahve e não pautaram suas
vidas nas suas orientações. E toda esta catequese visa apresentar Iahve
como aquele que não mudou de idéia, que não fechou as portas para
seu povo. Uma conversão deles, expressa na observância de seus prin-
cípios, levará lahve a realizar um segundo êxodo e dar outra vez a
terra de Canaã como moradia de seu povo. Para despertar justamente
es~a fé e ~sta esperança nos seus ouvintes os catequistas deuterono-
nustas enfatizam as grandes obras de Jahve no passado de sua história.
A b•rit e os deuses estrangeiros. O !ermo.chave da teologia deu-
teronomista para explicar a razão do exílio dos israelitas na Babilônia
e para mostrar o caminho da reconquista da Terra Prometida é a b'rit.
Este termo hebraico, normalmente traduzido no português por aliauça no
sentido de pacto, acordo, tratado, não tem no AT um significado unf-
voco como geralmente é encontrado em exposições teológico-dogmáticas,
na liturgia e na catequese. Sobretudo na fonte literária deuteronomista
o termo b'rit tem um significado muito rico. Não me I! posslvel apre-
sentar aqui as p1urifonnes nuanças que a Vrit tem, mas apenas referir
o tenno «aliança> com a veneração de deuses pagãos ou com o culto
exclusivo de Jahve como Dt 4,32-34.39-40 e seu contexto imediato nos
sugerem (cf. Perlitt, p. 36-38).
A b~rit, portanto, relacionada com a veneração de outros deuses
é o meio eficaz para os teólogos deuteronomistas explicarem o motivo
do exílio. Como a graude maioria dos israelitas, vivendo na Palestina,
colocou lahve de lado e o degradou em segundo plano em favor do
culto das divindades pagãs, eles foram exiladlli\ justamente para aquelas
terras e aqueles povos cujos deuses adoravam. Os teólogos deuterono-
mistas chamam esta atitude idolátrica dos israelitas de quebra da b'rlt.
E, por outro lado, a veneração exclusiva de Jahve significa fidelidade
à b'rlt. E nesta total adesão a lahve se encontra para eles a única
condição da reconquista da Terra Prometida.
A catequese do teólogo deuteronomista é. clara e convincente. De-
pende da geração dos israelitas exilados e hoje de nós se quisermos
nos converter- a Iahve, o Deus da misericórdia, que jamais abandonou
.µguém e é eternamente fiel (v. 31) ou adorar deuses leitos pela mão
do homem com material perecível como madeira ou pedra, que não
podem ver, nem ouvir, nem comer e nem cheirar (v. 28)ª
218
/
Bibliografia: R a d, O. V., Das jünfte Buch Mose. Deuteronomium, ATD 8,
Oi.Sttingen 1968; Per 1 i t t, L., Bundestheolol!ie im Alten Testament, WA1ANT 36,
Neukirchener Verlag 1959; Me e a r t h y, D. J., Treaty and Covenant, An Bib1
21, Roma 1963.
Pe. Pedro Kramer, O.S.F.S.
Porto Alegre, RS
Se!l'!fllla Leitura: Rm 8,14·17
Este trecho da carta aos romanos pode ser considerado como o seu
centro. Nele chega ao cume o ensinamento paulino, 'nós somos filhos,
Deus é nosso Abbá-Papa)•. O que distingue o cristianismo das outras
religiões pode-se resumir nessa afirmação. As religiões falavam da pa-
ternidade divina enquanto criador, fonte de vida, não enquanto fonte
de amor e misericórdia. O judaísmo conheceu este amor de Deus, mas
perdera-se no emaranhado de leis e questiúnculas, lembrando mais o
temor que o amor de Deus. O Evangelho que revelou o Pai indo ao
encontro do !ilho pecador arrependido (Lc 15), mostrou um relacio-
namento de filho adulto e livre e não mais de escravo e senhor, entre
Deus e o homem.
Mais que um simples mestre interior, o Espirito é o princlpio da
nova vida no homem (Rm 5,5), e não creio que se deva disc~tir o
que é, ou quem é este Espirito. Sabemos que a _in-habitaçã? da Trmdad:
em nossos corações é que nos faz filhos, entao o Esplr1to Santo esta
em nós pelo batismo e por conseguinte também sua !orça e inspiração.
Essa presença é um dom da bondade de Deus e não mérito nosso.
De lato a qualificação Espírito «de Deus• não deixa nenhuma düvida
quanto à origem do espír,ito que está em nós.
Sente-se do texto que estamos diante do Espírito de Deus e do
espírito que nos guia os passos, ou seja, nosso espírito embebido pelo
Espírito de Deus que nos guia e é fonte de ação. De um lado o '
Espirito Sauto e de outro o efeito dele em nós: a adoção como lilhos
0
de Deus e não escravos. A negativa da frase não significa que antes
os homens tivessem recebido de Deus um espírito de escravidão, mas
que o recebido agora é diferente do anterior. De fato o espírito re~e­
bido tornara-se de escravidão, porque os homens deturparam o sentido
da lei tornando-se dela escravos. Ser filho significa ser livre diante
de Deus, mas ao mesmo tempo reconhecê-lo como Senhor do qual tudo
provém.
Para exprimir esta filiação, Paulo usa o termo do direito pagão,
não conhecido dos judeus: «adoção», que integra totalmente o adotado
na família, da qual ele _recebe o nome, a herança e o privilégio . de
1· chamar o pai de familia, · papai. O lato de .pert~ncer. ª? .povo escolhido
levaria a esta adoção (Rin 9,4), mas na v1vênc1a histor1ca desta voca-
ção a lei causou a morte. Assim que na Nova Aliança não basta mais
1
a pertença carnal para conferir a filiação e a dignidade de filho de
Deus. E necessário renascer pelo Esplrito (Jo 3,5). O que Jesus é por
natureza o homem é de direito em vista da adoção.
Filh~s que somos clàmamos abbá. O termo abbá é um dos ara-
maísmos presentes n~ Novo Testamento, e deve ter impressionado de
tal modo os ouvintes, acostumados a serem tratados como servos,
que !oi conservado na sua língua original. E diflcil dizer se é fruto
de alguma tradição litúrgica ligada à oração do Pai-Nosso, o que
de certo podemos dizer é que esta palavra em Rm e GI é um eco
219
da tradição que teve origem nas palavras de jesus ao nos ensinar
a rezar (Mt 6,9) e no Getsêmaoi (Me 14,36). Esta linguagem familiar
e terna, Cristo a usara dirigindo-se a seu Pai e nosso Pai, e é essa
que Paulo utiliza, passando da segunda pessoa para a primeira,
incluindo-se portanto, para quebrar o monolitismo teológico judaico que
desconhecia tal termo.
O fiel então levado pelo espírito de filiação clamaria ( cf. Lc 1,46:
Magnificat), Abbá. Acho porém que se deva dar ênfase ao verbo com
o sentido de «proclamar». O Espírito dentro de nós nos leva a pro-
clamar e a anunciar alto e bom som que Deus é nosso Pai. Como
Cristo proclamou, ao confirmar que era o Filho de Deus (cf. Lc 22,70),
e foi perseguido e processado, também nós ao proclamarmos tal ver-
dade corremos o risco de sermos incompreendidos e perseguidos, so-
frendo como ele sofreu por ter-se declarado tal.
O Espírito então se une ao nosso espírito (Bj) para testemunhar
essa nova realidade. Em GI 4,6 é Ele próprio que clama. Não se trata
de duas testemunhas (cf. TOB), mas do Espírito que testemunha aos
homens essa verdade fundamental pela mediação do espírito do homem,
pelas ações do homem, pelo e no homem, dando-lhe a ousadia e a
coragem de proclamar e testemunhar sua fé (cf. !Cor 5,20). Nós somos
instrumentos do Espírito, damos espaço para ele, deixamos que ele
fale aos homens por nós.
Após demonstrar que de fato somos filhos, Paulo retoma o tema
da primeira frase, e afirma que somos herdeiros. No Antigo Testa-
mento a herança designava a terra prometida (Df 4,21) e não incluía
em si a morte de alguém. No Novo Testamento a herança é o reino
(Mt 25,34) e ? vida eterna (Mt 14,29). Cristo pela ressurreição recebeu
tudo isso do Pai e o dá aos seús irmãos que se uniram a ele pelo
batismo e com ele sofreram por causa da mensagem proclamada: «Deus
é nosso Pai», e que por isso mereceram a ·ressurreição e a herança.
Há uma coriexão profunda entre sofrer e ser glorificado, mas não
que soframos, para ser glorificados. A glória é_~ dom e como tal não pode
ser condicionada. O sofrimento é conseqüência do anunciar e viver o
anúncio, Deus é Pai. Como Cristo humilholl-se (Kenosis) também o
homem passa por sua Kenosis, como Jeremias e Jó, para chegar à
glória.
Assim o Espírito que habita em nós nos faz herdeiros (cf. !Cor
6 9-11 1· Gl 4,21-31; Rm 8,15 e 21), mas por enquanto temos só o penhor
clcor 5,5). o direito à herança plena teremos com a nossa ressurreição
(!Cor 15,50). Isso porém não deve ser motivo de preocupação pois
a adoção é ·irreversível e não só um fato jurídico por si revogável,
como o prov~ a alternância dos termos filho e._ prole, utilizada por Paulo
(vv. 19 e 21).
Somos· filhos e herdeiros da promessa, nossa esperança é imorredoura.
Bibliografia: K. B ar t h, The Epistle to the Romuns, Londres 1968; F. j.
L e e n h a r d t, Epistola aos romanos, São Paulo 1969; l';l. J. La g r a n g e,
épitre aux romalns, ParJs 1950; O. K-u se, La Iettera 'ai romanz, Roma 1968.
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.j.
Paulista, PE
220
Tercelra Leitura: Mt 28,16-20
e. . . em nome do Pai e do Filho .e do Espírito Santm>
1. No primeiro Evangelho encontra-se repetidas _vezes o procedi-
mento literário que se chama inclusão. O Evangelho todo está incluído
entre as palavras iniciais biblos geneseõs (Mt 1,1), alusão ao Livro
de Gênesis (cf. Gn 2,4; 5,1) e as palavras finais <até o fim ou a
consumação do mundo» (Mt 28,20) .. jesus encerra o Seu ministério
na Galíléia (cf. 26,32; 28,7.10), onde o inaugurou (cf. 4,13ss). O Seu
primeiro e último pronunciamento profereAos do alto de urna montanha
da Galíléia (cf. 5,lss; 28,16ss).
Esta localização do primeiro e último pronunciamento de Jesus em
uma montanha reveste-se de um sentido teológico especial. Não se trata
de uma indicação topográfica, mas de uma encenação típica para uma
revelação. Há muitos exemplos no Antigo Testamento. O primeiro evan-
gelista retomou este motivo com grande vigor. O lugar do importante
ensinamento inicial é a montanha de 5,1 que deu à doutrina aí profe-
rida o nome de cSermão da Montanha». A «montanha» ganha novo
relevo como lugar típico de revelação em 15,29, cuja encenação se
assemelha até nos detalhes com 5,1. Como aí, a cena de 15,29-31 é
esboçada com esmero para sublinhar a importância do que se segu·e.
No primeiro caso segue-se o Sermão da Montanha (cc. 5-7), no se-
gundo a Multiplicação dos Pães (15,32-39). De um lado a revelação-pela-
palavra do doutor de Jsrael, novo «legislador» como Moisés; do outro
lado a revelação-pela-ação do salvador que nutre Seu povo como
Moisés no deserto. A Transfiguração de jesus na montanha (Mt 17,1-9;
cf. Ano A, p. 452*) revela-O maior do que Moisés e Elias, os maiores
do Antigo Testamento. No remate do Evangelho a montanha aparece
uma última vez para sublinhar a importância das derradeiras palavras-de-
revelação a respeito da autoridade de jesus e de Sua presença na
Igreja e a respeito da missão da Igreja que consiste em fazer de todos
os povos discípulos de Jesus, batizando-os e ensinando·os a observar os
,Seus mandamentos.
2. As derradeiras palavras de jesus assumem também o procedi-
mento literário da inclusão:
C: Toda a autoridade me foi dada no e é u e na te r r a.
B: Ide, pois, fazei todas as nações discípulos,
A: batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo,
B': ensinando-os a observar tudo o que vos mandei.
C': E eis que Eu estou convosco todos os dias até o fim do m u n d o.
Coordenam-se em redor da sentença trinítãria e sacramentológica
central (A) enunciados eclesiológicos (B e B') e cristológicos (C e C').
Neste último pronunciamento jesus disse tudo. Esta palavra volta quatro
vezes nas frases cristológicas (C e C') e eclesiológicas (B e B').
O ce~tro da derradeira proclamação ou do «:testamento» de Jesus consiste
na missão de batizar em nome da SS. Trindade. «Tudo~ estã concen-
trado nisso, tanto a autoridade (C) e a assistência (C') de jesus, como
a missão da Igreja (B e B').
Quando todos serão introduzidos no mistério da SS. Trindade e
viverão eternamente no seio do Pai, corno filhos no Filho, graças ao
novo principio vital que é o Espírito Santo, este mundo (C'), isto é,
221
F
todo o universo (o «céu e a terra»: C) terá cumprido a sua m1ssao
de fornecer um habitat pro-visório aos homens e à humanidade e poderão
desaparecer (e!. Mt 13,39.49; 24,3; 5,18).
Começando o seu Evange1ho com uma referência ao Livro de Oê-
r nesis (e à origem dos céus e da terra e da humanidade, cf. Gn 2,4;
5,1) e encerrando-o com uma referência ao fim ou à consumação do
mundo, o evangelista ensina que Jesus de Nazaré deu novos rumos
à história da humanidade e dos homens. Estes novos rumos têm suas
raízes em Deus, que Lhe conferiu autoridade para isso. Jnvestido de
pleno poder divino «no céu e na terra~. Jesus autoriza a Igreja para
continuar esta missão, assistindo-a continuamente com a Sua autoridade.
As frases ec1esioiógicas enunciam tanto as raízes corno os rumos
da autoridade e da missão da Igreja. As raízes estão em Jesus glori-
ficado. Não somente graças a um mandato transmitido há vinte séculos.
Toda a atividade eclesial tem sempre sua origem no Senhor glorificado
que a acompanha e assiste, na caminhada através dos séculos. Os rumos
da missão de Jesus e da Igreja consistem em última análise na par-
ticipação de todos na vida divina e trinitária. Tudo (C-B e B'-C')
converge para isso (A). Esta imersão de todos no mistério da SS.
Trindade realiza-se não somente batizando, mas fazendo os batizados
verdadeiros discipulos, levando-os a uma ortodoxia (B) e uma orto-
práxis (B'). Deste «batismo~ nascem comunidades cristãs ( .ue conhe..
cem a mensagem de jesus (B) e a põem em prática (B').
Bibliografia: Cf. A Alesa da Palavra, Ano A, p. 247-249, onde se encontra ontra
Pista Exegética de Mt 28,16-20.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Sugestões para a Homilia
Introdução
- Batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo (Mt 28,19).
- Eu e o Pai, somos uma coisa só (jo 10,30).
-·- Peço-te, ó Pai, que todos sejam uma coisa só, como tu,
Pai, estás em mim e eu em ti; que eles 'estejam em nós, para
que o mundo creia que tu me enviaste (Jo 17,21).
- Eu neles, e tu em mim, para que sejam consumados na
unidade e para que o mundo reconheça que tu me enviaste
e os amaste como tu me amaste (jo 17,23).
Realmente: que nação, por grande que seja, tem um deus
tão perto dela como nosso Deus de nós, sempre que chamamos
por Ele? (Dt 4,7). Deus perto de nós. Deus um de nós. Deus
um só conosco. Nós, um só com Deus, naquela união-unidade
do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
222
Corpo
Todos nós, um só. - Somos? - Seríamos, se não fosse
pelas barreiras e pelas separações, divisões, conflitos, guerras,
ódios, desuniões. . . Seriamos um só, se não fôssemos, nós, os
grandes construtores de muros e paredes, que nos separam e
afastam uns dos outros. Se as nossas cidades não fossem a
grande contradição à visão de jesus e à visão de Deus. Pois a
contradição existe: A cidade de Deus, visão de unidade con-
sumada. A cidade dos homens, espetáculo de eterna divisão.
No meio da Alemanha, no coração da Europa, situa-se a
cidade de Berlim. No coração de Berlim, e cortando a cidade
de ponta a ponta, está, desde há mais de 25 anos, o famoso
muro, que separa 3 milhões de cidadãos de outros 2 milhões
de cidadãos. O muro impede familiares, amigos, conhecidos de
se visitarem e até de se verem livremente. Do lado oriental, o
governo comunista «limpou» uma grande área, tirando todas as
construções, a fim de que ninguém possa nem chegar perto do
muro. É preciso ter estado em Berlim e ter falado com os
berlinenses, para poder avaliar um pouco o trauma social que
significa esse muro.
Mas o muro de Berlim não é único. Ele tem seu prolonga-
mento na assim chamada «Cortina de ferro», a barreira infran-
queável, que divide a Alemanha Oriental da Ocidental. E ele
tem seu prolongamento na «cortina de bambu», que separa o
povo chinês do resto do mundo, e em todas as outras cortinas
e muros. Quantas cidades nossas, e sobretudo determinados
bairros das nossas cidades, não são uma grande rede de muros
e paredes de separação? Andando pelas ruas de muitos bairros,
só o que se vê, é muro e mais muro. Espetáculo triste, realidade
e símbolo.
Realidade, pois os muros e as paredes são necessários,
para proteger as casas e os quintais, a propriedade e o lar,
contra assaltos e invasões. E quanto mais se tem, em tennos
de casa, de quintal, de dinheiro e de luxo, tanto maior a ne-
cessidade de proteção, e tanto mais alto o muro, a cerca e a
grade, e mais pesados os cadeados e os trincos dos portões.
É claro e evidente: a realidade é esta!
Quando, porém, se pergunta por que a realidade é assim e
por que é precisa toda a proteção, revela-se o simbolismo dos
muros e das paredes. É que os muros de alvenaria e de cimento
annado são símbolos e produtos de outros muros. São produtos
dos muros de uma ordem econômica e social injusta, que favo-
rece uns e discrimlna, oprime e marginaliza os outros. Estes
223
 1
muros ajudam os protegidos a acumular sempre mais a sua Deus perto de nós. Será que vai ser uma presença ameaça-'
porção dos bens materiais: dinheiro, terra, casa e conforto de dora, porque «O Senhor, nosso Deus, é um fogo devorador»?
vida, e assim, por uma lógica inerente, fazem indispensáveis (Dt 4,24; cf. Is 33,14; Hb 12,29). Ou será como na visão de
os muros e divisões físicas, como defesa contra os que não têm. João em Palmos: « . • . a tenda de Deus com os homens: Ele
Muros e mais muros. Muros de preconceitos de raça, de habitará com eles, eles serão o seu povo, e ele, Deus-com-eles,
classe, de convicção religiosa, de formação cultural e de graus será o seu Deus. Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos,
acadêmicos; preconceitos de toda a espécie, mas que se funda- pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem
mentam quase sempre nas divisões de ordem social e econômica. dor haverá mais. Sim! as coisas antigas se foram» (Ap 21,3-4),
O muro de Berlim e a «Cortina de ferro» são uma realidade, os muros e as divisões, as desuniões e as separações. E ficou
física e humanamente generalizada no nosso mundo, na «Cidade o abraço e o íntimo do coração do Pai e do Filho e do Espírito
dos homens». Santo.
Levanta-se, aqui, a pergunta, se estas considerações são Conclusão
apropriadas para a festa da Ssma. Trindade. «Santíssimo» não
significa três vezes santo? Santo,. santo, santo, Senhor Deus A festa da Ssma. Trindade significa o apelo da intimidade
dos exércitos. Os céus e a terra estão cheios de sua glória! de Deus a todos os homens de boa vontade. A resposta não
E como é que nós falamos em muros e divisões sociais e eco- pode ser apenas um louvor desencarnado, mas o louvor da
nômicas? Não é quase sacrílego, profanar deste modo o «Santo entrega de nossas armas e defesas, o desmantelamento dos muros
dos Santos»? e das paredes entre nós: em casa, na família, no bairro, ena
Com efeito, não temos muito o costume de ligar a econo- grande sociedade nacional e mundial. A fim de que todos sejam
mia e a ordem social aos mistérios da intimidade de Deus, e um, e a fim de que a humanidade se torne uma verdadeira co-
a própria palavra «santíssimo» parece sugerir algo de muito munidade. E que esta nossa comunidade seja com o Pai e com
aéreo e elevado, que não pode ser misturado com a profanidade seu Filho Jesus Cristo (ljo 1,3) e com o Espirita Santo. Amém.
do mundo. No entanto, a profanação não está propriamente na
reflexão, e sim, na realidade do nosso mundo. Por isso também, Pe. A. van den Berg, C.M.
Belém, PA
em vez de entregar-nos a e perder-nos em elevadas especula-
ções, que espiritualizam e desencarnam o mistério de Deus, pode
ser melhor evocar a grande contradição e tomar consciência da
blasfêmia que vivemos e praticamos na nossa cidade e convi-
vência humana. Esta convivência que é chamada a inserir-se na
unidade do Pai e do Filho e do Espírito, do Deus que está
perto e envolve a cidade humana e procura incluí-la na sua
vida divina, em que não existe divisão, nem muro, mas em que
«Eu e o Pai somos uma coisa só», e em que todos nós have-
mos de tornar-nos uma coisa só, no Pai e no Filho e no Espí-
rito Santo. Dentro deste esforço, deste apelo, deste chamado-
convite divino estamos nós, e vivemos a nossa cidade humana
dilacerada e dividida.
Festa da Ssma. Trindade. Devemos glorificar e louvar ao
Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, sim. Mas todo louvor será
uma mentira e uma blasfêmia, se deixarmos continuar a con-
tradição. Se não nos esforçarmos, seriamente, por quebrar os
muros, pequenos e grandes, a fim de deixar-nos invadir pela
força unitiva do mistério de Deus.

224 225
 Solenidade do SS. Sacramento
do Corpo e Sangue de Cristo
Pistas Exegéticas
Ptlmelra Leitura: Ex 24,S.S
«Faremos tudo lfJ que Jahve disse e lhe seremos obedienteS>
Conte"!o literário de Ex 24,3-8. Esta passagem se encontra atual-
mente no livro d~ llxod? envolvido por Ex 24,ls.9-11. Estas duas partes,
no entan!~, se_ diferenciam por um outro grupo de pessoas, por dife-
r!'l'tes des1gnaçoes de D~us e pelo· diferente lugar de atuação das pessoas
:!adas !!elas· Já a partir desta constatação parece precipitado unir estas
uas urudades, Ex :i4,ls.9-11 e Ex 24,3-8, sob um titudo: Realização
da . «all"f'Çtl> no Smai ou atribuir estas duas partes a fontes Ji!e-
rár~as diferentes que, no entanto, abordam o mesmo assunto (O termo
«3!iança> sempre apar~ce grifado, pois ele nem sempre abrange o con-
tendo do termo hebraico b'rit que tem vârias nuanças).
grantl :;eJ~~~sª a1iiaJ~Xn: 4• 3~:Stã~e~d9 1J~çP!~ ne ~Tofu~~as p3-es8quisas de dois
0
3 No v. 5 jovens israelitas e não sacerdotes são encarregados para
a fontes UterârJas pré-de 1
ser atribulda nd
$ o • 4>A 24, não pertence
u eron m1cas. Es1a passagem, portanto, certamente pode
Kutscb, p. fis.~?ºPe~utfes, àfoo!~ôãe)s llterãrJas deuteronômica/deuteronomista (cf.
a. seguir, • , • P· • Isto, no enta~to, será fundamentado togo
Coment~rlo d~ Ex 24,3-8. Lendo-se com :atenção esta passagem,
po.de~ entao perceber logo que ela se compõe de duas camadas. A
pruneira Ex 24,3.4aa.7 que tem como tema a lei e a «aliança> e a
segunda Ex 24,4ajl-6.8 que descreve uma cena sacrifical e ta'mbém
emprega o termo «aliança>.
. A primeir_a cam~da inicia de modo inesperado, pois no v. 3 se
diz que «M01sés vem>, sem poder descobrir donde ele veio Assim
~oi_no Moi~s é aqui intro"duzido, há na perlcope do Sinai ape~as uma
uruca alusao, Ex 19,7.Sa, onde ele também aparece de modo direto.
E tanto nesta passagem como em Ex 24,3 Moisés surge com a finalidade
11e apresentar ao povo «Iodas as palavras de Jahve ... • e acolhe dele
sua resposta e seu juramento. Isto, aliás, é repetido no v. 7.
Tudo isto Já r~vela que esta passagem não pode ter surgido na
época em que a Lei de Deus eslava em via de ser colecionada codifi-
cada e pr~posta para ser praticada, mas manifesta o te~po em
q~e a Lei, Já h~ !empo codificada, necessitava de uma dignidade reli-
gmsa como. o direito de Deus. A Lei precisava ser revalorizada. Ela
fora esquecida e posta de lado no tempo dos teólogos deuteronõmicos.
226
Por isso que nesta paS.agem não se fala desta ou daquela prescnçao,
mas da soma de tudo que era prescrito ao povo de· 1srael e que devia
ser o conteúdo sagrado de Seu compromisso religioso com lahve. E ·a
revitalização da Lei de Deus é uma estrutura fundamental e um prin-
cípio teológico do movimento de reforma deuteronôntlco/deuteronomista.
Isto se encontra descrito de modo solene e amplo ·em 2Rs 22s. Aqui
também encontramos a evolução do livro da torá para o livro da «b'rib
como a passagem das _palavras e leis de lahve para o livro da b'rit
em Ex 24,3.4aa.7. E a melhor maneira de revalorizar a Léi de Deus
para os teólogos deuteronõmicos era ligá-la com o Sinai, pois ele era
chão mui~o sagrado como lugar da revelação de Jahve. Ouvir, portanto,
a Lei de Deus, santific~da desta maneira, e concordar com ela, pondo-a
em prâtica, é praticar a b'rit, isto é, uma vida pautada na orientação
de Iahve. Motivar os israelitas do séc. Vil aC a esse estilo de vida
era o objetivo básico dos teólogos deuteronômico/deuteronomistas.
A segunda camada, Ex 24,3atJb·6.8, COI\leça com a expressão ena
dia seguil)te pela manhã> que alude a uma continuação, sem ficar
claro se é com Ex 24,ls ou com os vv. 3 e 4. Em todo o caso Moisés
nesta camada começa de manhã a construir um altar ao pé do monte e
certamente erigiu doze ; colunas perto ou em torno · do altar para re-
presentar as doze triheis, isto é, a totalidade do povo ·de Israel.
oferecer a Jahve holocaustos e sacriflcios.
B Importante ressaltar que neste verslculo não se fala de sacrifJcios da "aliança".
Aliás em todas as fontes llterãrias da tradição -do AT nunca aparece o termo
sacrlilclo da "aliança". E também é preciso enfatizar que esta ação sacrifical não
tem nada a ver com a realização da "aliança" como comumente se interpretam os
sacrificlos desta cena cuttuat e o rito do sangue nos vv. 6 e 8. A explicação geral
do v. 5 é a seguinte: Moisés tomou uma metade do sangue e a colocou em baclas
e a outra metade ele derramou sobre o altar que represei:)ta Deus. A primeira
metade do sangue, assim se interpreta normalmente o v. 8, Moisés aspergiu-a sobre
o povo dizendo: Eis o sangue da "aliança" que Deus faz convosco. :a desta Inter-
pretação que surgiu a compreensão da aliança no sentido Qe um pacto, tratado,
acordo de Deus com o homem. Mas, cuidado! vamos com calma ler o que está
escrito em hebraico nos vv. 6 e 8 para não fazermos "eisegese", isto é, lnterca1ar
no texto blblico nossas idéias. Talvez que toda a compreensão do sangue da aliança
é Introduzida aqui sem que haja base para isto no texto bibllco.
Lendo com atenção o v. 6 encontramos a expressão· cmetade do
sangue. . . e metade do sangue». Esta distribuição1 do sangue pode
sugerir dois parceiros. ·Um seria Jahve representado pelo aliar sobre
o qual Moisés derrama metade do sangue. A metade do sangue que
foi colocada em bacias é em todas as interpretações esquecida em favor
do v. 8; mas neste versículo não se fala nem de uma e nem de
outra metade do sangué1 mas simplesmente do sangue que Moisés toma
para aspergir o povo. Por isso de metade do sangue só se laia no v. 6
e não no v. 8. A aspersão de sangue, enfim, tem aqui um significado
ou uma função além do rito do sacrifício, fundamentando talvez uma
cerimônia da aliança? Perlitt, um grande perito nesta: questão, responde
assim: O rito de sangue descrito no v. 6 pertence : somente ao ritual
do sacrifício como o altar e a nada mais (cf. Perli!t, p. 199). A ação
do sacrifício, portanto, ·que começou com o v. 4af}, na qual a aspersão
de sangue é um rito normal de certos sacrifícios israelitas, estã con-
clulda no v. 6. E assim se abrem as portas para explicar o v. 8.
O v. SbP «em vista de todas estas palavras» tem, ·totalmente evidente,
apenas uma ligação com os vv. 3 e 7 e não com a· ação do sacrifício.
Esta parte, no entanto, não pode ser separada de Sbà. porque a expres-
227
são hebraica 'karat bsrlt al' =cortar uma «aliançm> em vista de, é
comum e fixa no AT. O v. 8b então, «eis o sangue da bsrlt que lahve
faz conosco em vista de todas estas palavras», é um,a interpretação
clássica de uma antiga ação sacrifical com os meios lingüísticos e
nocionais do v. 7 que não provém do tempo de Moisés, mas de Josias.
Assim os teólogos deuteronômicos também relacionam o termo b~rit
com o culto sacrifical israelita, relendo todas as tradiçfies do passado
à luz da teologia da l?rlt. Assim a expressão sangue da b•rlt tem
para Kutsch o mesmo significado que o livro da b8rit no v. 7, a saber:
assumir o compromisso de viver de acordo com as palavras de Jahve
(Kutsch, p. 87s). Deixar-se aspergir pelo sangue da b'rit, então, sig-
nifica a mesma promessa do povo no v. 7 de forma oral, isto é,
comprometer-se a praticar tudo o que foi prescrito por Iahve.
Bibliografia: N o t h, M., Das zwelte Buch Mose. Exodus, ATD 5 Oõttlngen
1968; Per 11 t t, L., Bundestheologie im Altem Testamerrt, \VMANT 36! Neukirchener
Verlag 1969; K u t s c h, E., Verheissung und Oesetz, BZAW 131, Ber ln 1973.
Pe. Pedro Kramer, O.S.F.S.
Porto Alegre, RS
Segunda Leitura: Hb 9,11-15
Contexto. A carta aos Hebreus oferece-nos uma slntese do NT em confronto
com o VT, sublinhando a mensagem nova de Cristo, superior à antiga aliança.
Cristo é superior a Moisés e aos anjos. Como sacerdote transcende o sacerdócio
vétero-testamentário. O novo santuário, a . nova aliança, superam de longe os de
antigamente. A eficácia do sacrifício de jesus é definitiva. O VT é apenas
sombra do NT.
Nosso texto (9,11-15) apresenta o ministério sacerdotal de Cristo
nos céus. Após ter falado dos sacrifícios mosaicos1 reporta-se ao sacri-
fício de Jesus. Mesma terminologia, panorama distinto i - aquela, no
NT, adquire muito do metafórico. Este assunto se defronta com a
carnalidade do culto antigo. A pessoa de Cristo operou transformação
total no sacerdócio e na Lei (7,12), realizou mediação sacerdotal para
os bens espirituais. Em conseqüência, desde o inicio, outro seria o
âmbito de seu ministério sumo-sacerdotal. Historicamente Jesus viveu
na terra, morreu na cruz e depois subiu ao céu. Assim sendo, Hb
consideraria a morte de Jesus na cruz como um fato que teve lugar
fora do santuário celeste, tendo por finalidade única conseguir o Sangue
necessário para a entrada no céu. Muitos intérpretes de Hb opinaram
que jesus Cristo se tornou sacerdote só no céu, onde oferece incessan-
temente a Deus o seu Sangue derramado na cruz. Todavia, semelhante
posição não parece fazer justiça à importância da morte de Jesus nem
à argumentação da Carta em apreço.
Vejamos as passagens relativas ao ministério sacerdotal de jesus:
- 4,14: «Temos um grande sumo sacerdote que penetrou nos céus,
Jesus, Filho de DeuS».
_ 5,10: «Porque Deus o proclamou sacerdote segundo a ordem de
Melquisedec».
- 7,27: «Tal é o Pontífice que nos convinha: santo ... e elevado
acima dos céus que se imolou a si mesmo urnã vez para sempre».
- 8, l : «Temos um sumo sacerdote que está assentado à direita
do trono da majestade divina nos céus>.
- 8,2~ «E ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo, eri-
gido pelo Senhor, e não por homens».
228
- 8,4: «Se ele estivesse na terra: nem mesmo sacerdote seria>.
- 6,20: <Onde (santuário eterno) Jesus entrou por nós como pre-
cursor, Pontífice eterno».
Estas citações dão a impressão de que Jesus só no céu conseguiu
o sumo sacerdócio. Entretanto, a interpretação tipológica do ritual da
expiação .CLv 16) s~ admite a conclusão de que Jesus, já sumo sacer-
dote, se nnolou a S1 mesmo na cruz e atravessou os céus até o trono
de Deus. Seria absurdo pretender que a paixão e morte de jesus não
foram sacrifício sacerdotal, o que se refuta com textos da mesma
carta, a saber:
- 9,26: «Ê certo que apareceu uma só vez ao final dos tempos
para a destruição do pecado pelo sacrifício de si mesmo».
- 9,28: «Cristo se ofereceu uma só vez para tornar sobre si o!;
pecados da multidão>.
- 10,5--14: «Ao entrar no mundo, Cristo diz: "não quiseste sacrifício
nem oblação (do VT), mas me formaste um corpo. . . Eis que venho,
ó Deus, para fazer a tua vontade' (SI 39,7ss)... Foi em virtude desta
vontade de_ Deus que temos sido santificados de urna vez para sempre,
pela oblaçao do corpo de Jesus Cristo. . . que ofereceu pelos pecados
u!11 . único sacrifício e logo em seguida tomou lugar para sempre à
'!ir_e!ta de Deus. . . por uma oblação só Ele realizou a perfeição de-
f1n1tiva daqueles que receberam a santificação>.
·Deste trecho transparece claro que Cristo «já veio>, «jã aparecen>,
cjã se apresentou~ na qualidade de sumo sacerdote. Hb não quer apenas
!alar da ascensão ao céu, mas também interpretar teologicamente toda
a existência de jesus. Seu sacerdócio, em contraste com os ritos exter-
nos do VT, traz os bens efetivos e reais (10,1). Em concreto, seriam
as promessas melhores do NT (8,9), a remissão dos pecados1 a co-
munhão definitiva cr;>m D~us. jesus pode oferecer-nos tudo isso, porque
exerce um sacerdóc10 mais excelente, que não se consuma no âmbito
terrestre, mas em tabernáculo maior, mais perfeito, não feito por homens,
não pertencente ao plano finito. A obra de Cristo faz ressaltar a imensa
superioridade de seu sacrifício face ao levítico. Os cbens futuros>
(9,11), vindouros, são os messiânicos (B,6). O ctabernáculo mais exce-
lente e mais _perfeito» (v. 11) é o celeste, do qual o mosaico era apenas
sombra ou figura (8, 1-5). Assim como o sumo sacerdote israelita atra-
vessando o «santo>, penetrava no csanto dos santos:) aspergid~ com
sangue de animais, assim Cristo, atravessando os céus' (v. 11) inferio-
res, entra no verdadeiro santuário, onde mora Deus, com a aspersão
de seu próprio sangue (v. 12).
Não é fáci1 transpor Lv 16 (rito da expiação: o sumo sacerdote atravessava
o tabernáculo anterior e penetrava no santo dos santos) para a pessoa e atos de
Cristo. jesus( pela sua morte, entrou no verdadeiro "saoto dos santos" de Deus
{cf. 9,24; 0,12.20). Que é este "tabernáculo do santuário celeste" que Jesus
atravessou/penetrou? Como nas parãboJas, não se confunda imagem com realidade.
A Idéia de um recinto (Lv 16) não corresponde necessariamente em Cristo a
um lugar sagrado qualquer. . . Não se Imaginem pois "regiões tn/eriores do Céu"
ou_ "áreas lnacessiveis aos sentidosn. A imagem 'de uih tabernáculo "não feito por
mao humana, não deste mundo" qualifica teologicamente a figura histórica de Jesus.
Os Santos Padres assim Sl? exprimem ao ensejo desse texto um tanto obscuro· o
que o primeiro tabernáculo anterior do VT não podia fornecer - a condição bá~lca
para a entrada no autêntico "santo dos santos" do céu - agora já ficou resolvido
pelo "tabernáculo maior e mais perfeito" da vida de· Jésus S João Crisóstomo
Interpreta "tabernáculo" como sendo o corpo/humanidade d~ Cristo. Caetano vê
nele a Igreja antes da ascensão. Cristo não põde entrar no "santo dos santos"
sem sangue (9,7); contudo sua morte1 sacrJflclo cruento, :produziu uma reparação
eterna e apagou todos os pecados da numanldade ontem, hoje, amanhã. Além disso,
o Sangue de Cristo nos purificou a consciência de todas as obras "mortas", ante-
229
rtores ao batismo; o Sangue de Cristo pode purificar, com os mérltas do sacrl-
ficio de Crista, o Jntlmo da consciência com uma renovação interior de vida, restau-
rando a vida divina da graça no hamem. Assim o homem se habilita a servir ao
Deus vivo com um culto agradável qual o de Cristo no céu e de todo o corpo
mistico. E através de Cristo Sacerdote que a liturgia recobra todo seu valor.
Não consta claro que o texto, aqui, tenha presente a remissão dos
pecados que pesam na consciência dos cristãos e prejudicam o culto
divino. Certo é que pelo batismo houve um novo come"Ço e que o fiel
recebeu a capacidade de servir ao Deus vivo. Isso implica em que o
Sangue de Cristo pode sempre purificar-nos das coliras mortas>. No
VT tocar um defunto contaminava ritualmente o individuo (Nm 19,11-22).
Ora, o defunto que nos contamina somos nós mesmos. Esta entrada de
jesus Cristo, inversamente do sacerdócio hebraico, faz-se uma só vez
e para sempre, obtendo-nos uma redenção eterna (v. 12). Argumentando
ca minore ad maius:P se diz: se o sangue de animais era capaz de
obter uma pureza carnaljJegal, tanto mais o Sangue de Cristo, versado
na cruz, será capaz de produzir pureza interior/espiritual. Hb mais
que deter-se na diferença de efeito (pureza legal/interior) pensa na
diferença de vítima (animais/Cristo), diferença infinita, que dá força
ao argumento. A expressão «pelo Espírito Eterno> (v. 14) pode aludir
tanto ao Espírito Santo que movia a Cristo em seu agir (Lc 4,1; 4,14;
Mt 4,1; 12,28) como também, mais provavelmente, à sua natureza divina,
o que empresta ao sacriflcio um valor eterno.
O v. 15 volta ao conceito de «novo testamento:=- para, logo mais
(vv. 16-17), fazer ponderações juridicas. «Diathl!ke> em grego pode
significar «aliança> (sentido religioso) e também <testamento> (sentido
jurídico), expressão da última vontade de alguém. Hb explora com
r
habilidade tal ambivalência para demonstrar que a Nova Aliança só
passou a valer com a morte de Cristo. Como só pode haver partilha
após o falecimento do testadorJ assim Cristo devia antes morrer para
que tivéssemos direito à herança prometida. Cristo é também mediador
da Nova Aliança precisamente porque se ofereceu ao Pai na cruz. Pa-
rece absurdo que Deus possa morrer, - mas não será este absurdo
a «loucura da cruz»? Deus não se fez homem para destruir pela
morte aquele que mantinha o domínio sobre a morte (Hb 2,14)? Nem
adianta distinguir: Cristo morreu corno homem, não como Deus. Hb
faz morrer Jesus como quem, pessoalmente, estabeleceu o testamento
de Deus. A morte do test~dor produz efeito perene. Não é algo transi-
tório. A teologia litúrgica de Hb visa apresentar a morte sacrifical de
Cristo na cruz como evento perene e que produz fruto de salvação
para sempre.
Bibliografia: F. .1. S c h ler se, Epistola aos Hebreus, trad. de W. Pires
Martins, Vozes, Petrópalis 1970; O. K u s s, La lettera agll ~brei, trad. de O.
Rlnaldi, Morcelllana, Brescla 1966; .i\l. N J i:: ola u, Carla a los Jlebreosf La Sagrada
Escrltura, NT/UI, BAC, Madrid 1962; L. Turra d o, Blblia comentaaa, VI, BAC,
Madrid 1965.
Pe. Matheus F. Oiuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Terceira Leitura: Me 14,12-16.22·26
«Este é. meu sangue da Aliança . .. » -
No Novo Testamento encontram-se reminiscências da última Ceia de
jesus com Seus discípulos nos quatro evangelhos e J Cor 1J. Há várias
questões muito discutidas a respeito. Por exemplo, a da dependência /ite-
230
rdria entre os relatos; a da datação da última Ceia; a questão se a
última Ceia era ou não uma ceia pascal. As teorias sobre a ascen-
dência literária combinam Marcos e Mateus de um lado, Paulo e Lucas
de outro lado, enquanto a versão de João, com a narração do lava-pés,
representaria uma terceira corrente. A-5 análises e comparações dos
relatos dos sinóticos levaram à hipótese de que, em um estádio pré-
literário, tenham existido duas correntes de interpretação da última
Ceia, uma que acentuasse mais o caráter pascal da mesma, outra que
insistisse mais na sua natureza eucaristica. Nos nossos evangelhos si-
nóticos encontrar-se-ia uma fusão destas correntes. A primeira, que
apresenta a última Ceia como uma ceia pascal, influenciou também a
cena da preparação da última Ceia, no caso a primeira parte da
leitura, Me 14,12-16 e os textos paralelos, MI 26,17-19; Lc 22,7-13.
Dentro do próprio re1ato da última Ceia estas duas correntes de inter-
pretação reconhecem-se mais 'facilmente na versão de Lucas. Ela divide-
se em· duas partes. Primeiro fala-se em «:comer a Páscoa» (Lc 22,15-16)
e «beber do fruto da videira» (Lc 22,17-18) e, depois, do pão (Lc
22,19) e do cálice (Lc 22,20) eucarísticos. As mesmas correntes são
reconhecíveis em Marcos e Mateus. Mas a primeira em uma forma
menos completa, somente mencionando-se ela em ligação com o «beber
do fruto da videira» ( cf. Me 14,25; Mt 26,29) e, em contraste com
Lucas, depois da interpretação eucarística do pão e do cálice (cf. Me
14,22-24; MI 26,26-28).
Estas constatações suscitam a questão da autenticidade destas cor...
rentes de interpretação. Ambas as interpretações são de Jesus mesmo,
proferidas na mesma ocasião, ou em diferentes ocasiões que posterior-
mente foram combinadas? Ou pode-se tratar de elucidações e formula-
ções litúrgico-teológicas diferentes do mesmo gesto de Jesus? Ao ce-
lebrar a última Ceia ele interpretou antecipadamente - como antes
a Sua mensagem e Sua ação e comportamento - também a Sua paixão
e morte como constitutivas da vinda do Reino (Me 14,25 e par). Para
que a Sua mensagem e ação, a Sua paixão e morte não perdessem
este valor constitutivo da vinda do Reino, mas continuassem a a!uar
através da memória vivida na história das pessoas e comunidades que
nelas - e n'Ele - acreditarem, legou-lhes-as - e a Si rne.smo -
em uma celebração, moldada à maneira daquela celebração que, através
dos séculos, se provou constitutiva do povo de. Deus a que pertencia,
a saber, a celebração da Páscoa. Também esta, comemorando a ação
libertadora de Deus no passado, não esgotou nesta memória a sua vir-
tualidade, mas sempre de novo depositou no coração dos crentes e do
povo a esperança messiânica da vinda do Reino. Instituindo a celebra-
ção de Sua memória na eucaristia, Jesus conferiu-lhe toda a virtua-
lidade da celebração pascal.
Os fatos constitutivos lembrados e celebrados na Páscoa Judaica per-
manecem, porém, muito aquém dos fatos constitutivos lembrados e ce-
lebrados na Eucaristia Cristã. Por isso a celebração eucarística não
somente na sua forma mas também no seu conteúdo podia absorver
os eventos pascais constitutivos tanto do antigo como do novo povo
de Deus, da Antiga e de Nova Aliança.
Como no Novo Testamento encontram-se quatro ou cinco versões
da última Ceia, nenhuma delas. totalmente idêntica, assim a Igreja
de hoje, enriquecendo a liturgia da Missa com várias Preces Euca-
231
 rísticas, reconhece que o sentido 1otal do que se comemora somente
poderá ser atingido através de várias formas de celebração da mesma.
Bibliografia: Em português, além de comentários, por exemplo, J. J e r em 1 as,
Isto e o meu corpo, São Paulo 1978; L. O o p p e l t, Teologia do Novo Testamento,
Petrópolis-São Leopoldo 1976, p. 223-231 · L. B o f f, Paixão de Cristo, Paixão do
.Afundo, Petrópolis 1978, p. 46-49; verbeÍes em Dicionário Enciclopedico da Blblla,
Vocabulário de Teologia Blbllca, Dicionúrio de Teologia Blblica, Dicionário de
Teologia etc.
Raul Ruijs, 0.F.M.
Petrópolis, RJ
Tema Principal
A VIDA Só É VIDA, QUANDO É FEITA DOM E ENTREGA'
Sugestões para a Homilia
Introdução
Deus possui. uma pedagogia curiosa: quando nos quer co-
municar as verdades mais sublimes, se serve de exemplos mais
corriqueiros. Assim todos entendem e sua salvação alcança o
' homem. Quando quer mostrar como o seu desígnio de liberta-
ção se realiza na história, mesmo quando nem pensamos nele,
nos fala da semente que germina e cresce, pouco importa se
o agricultor dorme ou vela. Quando nos quis revelar a forma
1
íntima e profunda de sua presença em nosso meio, usou o
1, exemplo dos alimentos: eles se fazem nossa carne e nosso san-
gue: assim Jesus se faz nosso sangue e nossa carne. É a Euca-
ristia, como sacramento e como mistério.
Corpo
1. Comer e beber: expressão mais profunda da união
Quando comemos e bebemos se realiza um dos maiores
mistérios da criação. De um pouco de matéria preparada se
alimenta a vida humana, se reproduz e se garante o espírito
presente no corpo. Por isso, comer e beber nunca é um ato banal,
mas sempre uma ação sacramenlal. Não nos nutrimos, mas nos
alimentamos, preparamos os alimentos, enfeitamo-los e executa-
mos, à mesa, um verdadeiro ritual. A razão reside no fato de
que, inconscientemente, nos damos conta de que com a comida
e a bebida · se renova sempre um mistério: por mais alta e
excelente que seja a vida, ela não perde suas raízes materiais
e cósmicas. Dependemos de um pedaço de pão, de um copo de
água ou de vinho. Pão e vinho se transmutam: deixam de ser
232
o que são e se fazem nossa própria carne, nossa própria vida
e nosso próprio esp!rito. Eles se fundem com a nossa própria
realidade. É o exemplo, quem sabe, mais elucidador da perfeita
união.
Ora, Deus encarnado quis ficar sempre conosco. Não exte-
riormente, deixando sinais de sua passagem pela terra. Quis
ficar vivo e tão unido à nossa vida quanto unido está o ali-
mento que ingerimos e que se transforma em nossa própria
vida. Por isso Jesus celebrou uma ceia na qual nos disse as
memoráveis palavras que sempre de novo repetimos na santa
missa: «Tomai e comei, isto é o meu corpo»; «tomai e bebei,
isto é o meu sangue». Jesus, pela eucaristia, se faz nosso próprio
corpo; nós, pela eucaristia, nos tornamos corpo de Cristo. É
assim que somos associados a Cristo e é desta forma que Cristo
se une a nós, fazendo nascer a sua Igreja.
2. Vida só é vida quando é entrega
O alimento só é alimento quando é entregue e consumido.
A vida humana só é humana, rica, verdadeira quando se faz
entrega e dom de amor. É este o sentido que Jesus quis tornar
imorredouro com a Eucaristia: o senti d.o da vida se conquista
sacrificando a vida. A vida só vive quando se dispõe a morrer.
É como o grão. Se quer dar vida nova, tem que morrer. Mas
esta morte não é perda, como todos tememos. É ganho. É forma
de garantir a própria vida. Jesus fez de sua vida uma completa
entrega. Não apenas no momento da última ceia, mas em todos
os momentos da vida. Os Evangelhos estão cheios de exemplos
do amor, solidariedade e entrega de jesus em função dos outros.
Ele foi um ser-para-os-outros. «Se alguém vem a mim, eu não
o mandarei embora» (Jo 6,37); nunca entendeu sua vida como
algo a ser vivido só para si, mas sempre como serviço e dom
aos outros. Agora na última ceia, este modo de ser próprio de
Jesus alcança sua expressão suprema. Ele se entrega a tal ponto
que se faz pão e se faz vinho para assim poder estar na inti-
midade da vida de cada homem que o recebe; mais ainda, para
poder ser a vida de cada um que o comunga.
A vida que circula em todo aquele que comunga Cristo é
vida divina. Por ser divina é vida ressuscitada e imortal. É já
o céu se fazendo presente, é já o Reino de Deus se antecipando
dentro da história.
Jesus quis ainda que seu corpo e seu sangue significassem
sua última lembrança e expressassem a aliança que Ele fez co-
nosco. A alianç11 é o laço indefectível que une seu amor à
233
nossa existência. Nós podemos pecar, nossa vida pode se esva-
ziar e se perder; mas jesus não rompe jamais a aliança que
Ele fez com nossa existência. A Eucaristia mostra que Ele con-
tinua se entregando e querendo ser vida de nossa vida, sangue
de nosso sangue. É a aliança perene que, qual arco-íris, se esten-
de sobre todos os homens.
Conclusão
A vida de Jesus foi de entrega. Só comunga dignamente de
seu corpo e sangue, quem faz de sua própria vida também
uma entrega. Por isso a Eucaristia separada do amor aos irmãos
não é a Eucaristia de jesus Cristo. Ele derramou seu sangue
para salvar seus irmãos. Daí que todo aquele que comunga de
Cristo deve poder também comungar do irmão, e estar disposto
a sofrer por causa do serviço aos irmãos. O sacramento implica
seguimento de Jesus Cristo. Seguir é querer conformar a própria
vida com aquela de jesus e estar apto a compartilhar do próprio
destino de Jesus.
Leonardo Boi!, 0.F.M.
Petrópolis, RJ
Orações da Missa
No Missal Romano, Missa própria dasta festa: Paulinas,
{
1
p. 408s; Vozes, p. 335s. Duas Missas Votivas da SS. Eucaristia:
Paulinas, p. 911-913; Vozes, p. 751-753.
Dois Prefácios próprios: Paulinas, p. 455s; Vozes, p. 381s.
Cf. o Prefácio de Quinta-Feira Santa: Paulinas, p. 258s; Vozes,
' de «homem de Deus> (9,6-10), de «Vidente> e de <profeta> (9,9; d.
215s, e o da Oração Eucarística V.
234
Segundo Domingo do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: 1Sm 3,3b·10.19
«Fala, Senhor, pois o teu servo escutai">
Samuel é uma figura-chave na história do povo de Deus do Antigo
Testamento. Viveu e desempenhou um papel de liderança na transição
da época dos juízes para a época dos reis. Liga entre si a religião
popular dos tempos passados e dos santuários _populares espalhados
sobre o território das tribos de um lado e 1 de outro lado, a religião
e o culto oficiais introduzidos mais tarde por Davi e Salomão e sem-
pre mais centralizados no templo de Jerusalém.
Que o próprio povo de Deus do Antigo Testamento tinha consciên-
cia desta posição-chave de Samuel na história deriva-se de textos como
SI 98(99),6 e Jr 15,1, onde ele é mencionado ao lado de Moisés. De-
riva-se também das várias funções que uniu na sua pessoa ou que a
tradição posterior lhe atribuiu. Aparece, primeiro, corno responsável de
santuários, onde desempenha funções. cultuais (cf. 7,9; 9,13; 11,15; 13,
8-15). No último texto reivindica-se para ele a competência exclusiva
para oferecer holocaustos e sacrifícios pacíficos. O nome de Samuel es-
tava ligado a vários santuários: de Siló (1,1-4,!), de Rama (7,17) e
de Gálgala (11,14-15), Esta circunstância deve ter aumentado a po-
pularidade e a fama dos mesmos. Em segundo lugar se lhe atribuiu a
função de «juiz». Também esta função ele desenvolveu em vários lu-
gares (Betel, Gâlgala, Masfa e Rama: 7,15-17). E ocasionalmente soube,
como os juízes do Livro doS juízes, reunir o povo e os combatentes
do povo na luta contra os filisteus (cf. 7,2-14). Em terceiro lugar, Sa-
muel é apresentado como profeta. Como tal atribuem-se-lhe os títulos
19,18-24).
A narração de que se tiraram alguns versículos para a leitura de
hoje mostra vários elementos próprios do gênero literário da vocação
de profetas. Monloubou os analisa no estudo citado na Bibliografia.
Os cc. 1-2 mostram o ambiente em que Samuel nasceu e foi criado.
Nasceu de pais justos que o encaminharam para o serviço de Deus,
«internando-o> no santuário (e. 1). Aí, ele corre o perigo de se tornar
vitima dos abusos que se praticam neste ambiente em que não se ob-
servavam as leis de Deus (2,12ss) e em que a <a palavra do Senhor
era rara> (3,1~. Mas Deus ínterveio pessoalmente e o libertou destas
influências nefastas. A narração da vocação sublinha por três vezes (vv.
5.6.8) que não foi um chamado humano que introduziu Samuel no
serviço de Deus, mas o Senhor mesmo. Este traço encontra-se também
na vocação de Moisés (Ex 3), de Gedeão Uz 6), de Amós (Am 7,15),
de Jeremias (jr l,4ss), etc. Ele realça-se por uma certa inaptidão da
parte do chamado. O menino Samuel custa a entender a origem da
mensagem que recebe porque ceie ainda não conhecia o Senhor e a
Palavra do Senhor não lhe fora ainda dirigida» (3,7). Assim também
hesitou Moisés diante do fenômeno estranho da csarça que ardia, mas
não se consumia> (Ex 3,3). Amós sublinha que deve sua" vocação pro-
fética à iniciativa de Deus, alegando que não era <profeta nem filho
235
 de profeta>, mas cpastor e cultivador de sicômoros> (7,14). Jeremias
sente-se totalmente despreparado para a missão que lhe é confiada (Jr
1,6). Sempre alegam-se contra-indicações humanas contra a vocação di-
vina. «Samuel era ainda criança; Moisés não tinha o dom da palavra
(Ex 4,10-17); Gedeão pertencia a uma familia pequena e sem proje-
ção (Jz 6,15); Amós, era mais treinado para o trabalho do campo do
que para o ministério profético (Am 7,14-15); Jeremias julgava-se in-
capacitado (Jr 1,16); Ezequiel achava que não passava de um fraco
'filho de homem' (Ez 2,1; cf. ainda lSm 16,7-11):. (Monloubon, p. 43).
Este despreparo aparece ainda mais quando o eleito de Deus se en-
contra diante do objeto de sua missão. O pequeno Samuel linha medo
de contar ao sacerdote Heli o conteúdo da revelação noturna (3,15).
Encarregado de instigar os hebreus à liberdade e de convencer o fa-
raó a que renunciasse à mão-de-obra barata que ele ·explorava, Moisés
ressentiu-se demais da falta de êxito e de força (Ex 5,22s; 6,12). Amós
havia de criticar o sacerdote responsável e a dinastia:, reinante no pró-
prio «santuário real, no templo do rei> (Am 7,13). Jeremias defronta-
va-se com «todo o pais, os reis de Judá, seus chefes, seus sacerdotes
e todo o povo do paiS> (Jr 1,18), enquanto Ezequiel se encontrava
«rodeado de espinhos e sentado sobre escorpiões> (Ez 2,6).
Como no caso de !saias (6,1-6) Samuel ,é chamado em um san-
tuário e Amós recebe uma visão importante em um santuário (Am
9,1-4). O menino Samuel estava a serviço de um sacerdote, enquanto
Jeremias e Ezequiel eram, eles mesmos, sacerdotes. Os três receberam
o encargo para proclamar o castigo inevitável daquilo que estimavam
e amavam. Samuel tinha que anunciar a condenação da familia sa-
cerdotal de Heli (3,12-14). Jeremias devia anunciar que o santuário de
Jerusalém, reduzido a uma «caverna de ladrões» (7,11), seria destruído.
E Ezequiel, que a Glória do Senhor se retiraria de, jerusalém e do
templo, profanados pelos pecados de Israel (Ez 9-11).
A condenação e a ameaça pertencem à mensagem dos grandes pro-
fetas (cf. lSm 3,11-14; Am 7,1-8,3; Is 6,lOs; Jr 20,8; Ez 2,10; etc.).
Mas, mais importante do que este dado - o conteúdo negativo da
Palavra de Deus -, é o próprio fato de que esta Palavra ressoa de
novo e encontra porta-vozes de tal modo que possa desenvolver a sua
mlssão na história do povo de Deus. Destaca-se isto nas frases com
que se encerra a narração da Vocação de Samuel (lSm 3,l!l-20). Em
Amós (3,3-8), Jeremias (15,16; 20,8-9) e Ezequiel (;!,3} fazem-se ob-
servações semelhantes. Graças à fidelidade à Palavr,a que Deus lhes
dirigia, Samuel e os demais profetas tornaram-se aqueles agentes da
lJ
história de Dens com seu povo, que deram à religião blblica o seu
caráter próprio e essencial, a saber, o de dar ouvidos à voz de Deus
que fala. A Palavra de Deus que se lhe revela leva o profeta ao
mesmo tempo a transmitir esta palavra, ou, então, a transformá-la em
ação. Por ;sso as narrações das vocações proféticas são relevantes para
/,/\:> entendimento da essência da vocação cristã. Porque cada cristão é
, chamado a escutar a Palavra de Deus e a pô-la em prática.
Blbllograjla: Os comentãrJos de A. van den B o r n e J. C. Tu r r o (em:
WC); L. Mo n 1 o-u b ou, La vocation de Samuel (1Sm 3,3b-10.19) em: AtlS Il/33
(1970) 40-45; C, Me: s t .e r s, A Jmplantação 1!a Monarquia. O t!onflito entre Pê
e Realldad~ em: Pa1av1a de Deus na História dos Homens, Volume J, Petrópolis
1971, p. J-1-26; A. N e b e r, L'Essence du Prophétlsme, Paris 1955.
Raul Ruijs, O.P.M.
Petrópolis, RJ
236
''
Segunda Leitura: teor 6,13c-15a.17·20
cOs vossos corpos são membros de Cristo»
A l Cor responde a problemas e toma atitudes face a vários abusos
morais: part:darismos, incesto, litígios perante tribunais pagãos, con-
ceito muito elástico de castidade. A presente leitura' litúrgica concerne
à , castidade, justificando-a teologicamente. -É possível que Paulo, em
Corinto tenha formulado sua doutrina sobre a liberdade cristã com
esta ~pressão: «Tudo me é licito, mas nem tudo' aproveita. . . mas
não me deixarei levar por coisa alguma» (v. 12). Em 3,21 dissera:
-e- tudo é vosso, vós, porém, sois de Cristal>. Aos Gálatas dirá: «F~s­
tes chamados à liberdade; mas não a tomeis por pretexto para servir-
des à carne» (OI 5,13).
Não é fácil viver ,a liberdade. O homem não se conforma com
possíveis restrições a ela, quer radicalizá-la. E como sofre- ao ver que
de uma liberdade demasiada cai para uma escravidão deprimenteJ Em
Corinto, a doutrina sobre a liberdade caiu em terreno propicio: os
gregos viviam certo dualismo. Dum lado professavam certo espiritua-
lismo, desprezando o corpo. Por outro, estavam acostumados a gozar
a vida. Conciliavam os prazeres do sexo com o e'spirito de maneira
estranha. Paulo tenta sublinhar a vida sensível, apontando-lhe a ca-
ducidade. O alimento é para a vida, a vida para Deus. O sexo tanto
mais, já que a nutriçãi> é algo mais que simples satisfação de uma
necessidade. Não se pode ficar no plano meramente sensível sob preço
de tornar-se um animal de estimação.
A pessoa, que não empenhar todo seu personalismo humano na sua
atitude para com o sexo, rebaixar-se-á, mais ainda: «0 corpo não é
para a impureza: ele é para o Senhor, e o Senhor· para o corpo» (v.
13c). Se cventre~ conota a vjda animal, ccorpo» compreende o homem
em sua dignidade e suas potencialidades pessoais, é a· expressão per-
sonal -do homem. É a. finalidade última de todo nosso ser: pertencer
totalmente ao Senhor (cf. Rm 14,7). <0 Senhor para o corpo (= pes- •
soa)~ . . . indica a entrega pessoal do Senhor a nós na eucaristia, com
o que se confirma a reciprocidade corporalmente.
Antes, Paulo, falando do «alimento» e do «Ventre», disse: cDeus
destruirá um e outro». Agora, referindo-se ao «corpo (= pessoa)», diz:
«Deus, como ressuscitou- o Senhor, também nos ressuscitará a nós ... »
com toda a nossa corporeidade, confirmando para sempre a união ates-
tada agora pelos sacramentos. Abusar desta corporeidade é pecar contra
a nossa vocação primacial. Nem é simples abuso sexual, mas uma in·
gerência nos direitos do Senhor, como se fora o corpo do Senhor. Pela
castidade pertencemos corporahnente a Cristo. A pertinência total ao
Senhor determina fundamentalmente a nossa autocoµsciência A forni-
cação no cristão é ultraje de Cristo, já que seu corpo (= pessoa) é
membro de Cristo (v. 15). Fornicação aqui é a prostituição. Os gre-
go$ eram, via de regra, monogâmicos. A esposa administrava o lar
e os filhos legítimos, não era lá tão valorizada como pessoa humana,
podendo não bastar a um marido realizado. Achando seu matrimônio
dêficiente, o esposo procurava compensações com meretrizes ou nu. ho-
mossexualismo. Sendo nosso corpo membro de Cristo, quem procura me-
retriz faz de um membro de Cristo membro de meretriz, confronta
Cristo com a meretriz.
237
 No matrimôniO cristão, a doação mútua dos esposos deve ser ver-
dadeira entrega a Cristo. Vinculando a sexualidade diretamente a Cristo,
Paulo preparou uma visão personal da mesma. Ao homem depravado
(«carne» em sentido pejorativo) opõe o «homem que se torna um
espírito com o Senhon. A carnalidade da só carne, na qual o homem
deturpa a sua dignidade pessoal, jogando-a na lama, opõe-se o reto
uso do corpo, porque conduzido pelo Espirita Santo. Há então um só
corpo e um só espírito ('Ef 4,4), uma perfeita e mútua comunhão
com C~isto (v. 17).
O corpo dos batizados é templo do Espirita Santo (w. 18-20).
Logo, não· pode pactuar com a fornicação, que, é um pecado contra o
próprio corpo, falta que Paulo esconjura. Hál outros pecados contra
o corpo (suicídio, embriaguez ... ), mas a fornicação é praticada no
corpo e com o corpo, sendo mais corporal ou carnal, já que na prática
sexual corpo e espírito, corpo e pessoa, cor~ e individualidade estão
mais simultaneamente envolvidos do que em qualquer outra atividade.
O instinto do pudor nos mostra como as expe,riências sexuais marcam
a personalidade! No meretrlcio não se compra apenas um corpo: ven-
de-se o próprio, solapa-se a consciência do seu valor pessoal. O pecado
carnal não fica só na carne. Os diretores de consciência garantem que
os pecados da carne enfraquecem as faculdades superiores: inteligên-
cia e vontade. - no Apocalipse). Parece ser iospirado por Is 52,13-53,12, quarto canto
Paulo, a fogo e ferro, quer retificar o falso conceito grego de
«corpo» O corpo do batizado é templo do Espírito Santo (v. 19). Ao
Espírito Santo cabe a propriedade tlpica de inabitar em nós, visto que,
por natureza, Ele, é a autocomunicação de Deus em pessoa. Onde está
o Espírito, ai está Deus (12-14; Rm 5,5; GI 4,6). O batizado pertence
integralmente a Deus em corpo e alma. Já não se pertence. Como tal
não pode fazer com seu corpo o que quiser;. Não é por acaso que
nos tornamos propriedade exclusiva de Deus: fornos resgatados por alto
preço, entreganda por nós seu próprio Filho, o qual se entregou à morte
cruenta por nós, em resgate (IPd l,18s).
Os corlntios sabiam dos escravos que eram libertados mediante uma
soma depositada num teinplo, ficando agradecidos a quem os resga-
tava.. Paulo aproveitou a imag.em. Portanto, nós, uma vez resgatados,
deverlamos glorificar a Deus de alma e corpo, já que a redenção se
processou também· corporalmente. O corpo, santificado pelos sacramen-
tos, pode e deve glorificar a Deus em todas as nossas atividades:
trabalho, lazer, sono, esporte ... Sendo livres, corremas a perigo de nos
deixarmos dominai por impulsos desordenados, caindo em práticas ver-
gonhosas que nos' deprimem e rebaixam. No helenismo, de um sensua·
lismo solto passou-se a uma atitude hostil ao corpo (rnaniquelsmo).
No Cristianismo, 'graças às verdades da criação e redenção, o corpo
é revalorizado· em· seu justo termo: nem divinizado) nem menosprezado.
Bibliografia: Cf. 111 Domingo do Advento (2' leitura), acima, p. 13.
Matheus P. Oiuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
238
Terceira Leitura: ]o 1,35·42
«Encontramos o Messias>
J. Explicação
O presente texto é a primeira parte do episódia de Jo 1,35-51, que
narra a vocação de Pedro e André, Filipe e Natanael. O episódio todo
é constituído conforme o principio da «transmissão de convite». Jesus
encontra joão; este co1oca dois de seus discípulos.. em contato com
Jesus; seguem-no (1,35-39). Um deles, André (1,40), .convida seu irmãa
Pedro (1,41-42). Depois, jesus encantra Filipe (v. 43) e este convida
Natanael. A atuação de André, convidando Pedro, e de Filipe, convi-
dando Natanae1, é estritamente paralela. Possivelmente, o evangelho re-
corde estas cenas com tanto carinho, porque prefiguram a missão dos
primeiros cristãos, que depois da morte de jesus de~iam levar o con-
vite adiante, de pessoa a pessoa, como ainda nós hoje.
A primeira parte deste conjunto (como também a segunda, que
não analisamos aqui) divide-se em duas cenas. Na primeíra (v. 35-39),
o Batista mostra aos seus disclpulos jesus como <O cordeiro que tira
o pecada do mundo» (v. 35; cf. 29). O título de cCordeiro:o é própria
do ambiente do 49 Evangelho (aparece, num outro sentido, também
do Servo de Javé, texta primordial para a formação da cristologia da
Igreja primeva. Neste canto, a Servo de Javé é comparado com um
cardeiro levada aos tosquiadores (Is 53,7); ele carrega os pecados dos
homens (53,5-6), É possível que já em Is o rito do bode expiatório
(Lv 16), rito de purificação do povo, inspirou em parte esta imagem
e a sua combinação com o perdão dos pecados. O importante é ver
o sentido salvífico expresso nesta imagem. O Batista revela jesus nãa
como um esplendoroso rei davidico nem como Filho de Deus, embora
este título, tão caro ao 4° Evangelho, caberia bem depois de ]o 1,34
(e!. Me J,11 par). O Batista revela o sentido fundamental de Jesus
como Salvador, pois a revelação de Deus em jesus Cr.isto é, antes
de tudo, uma revelação no amor do Crucificado, plena realização da
figura de Is 53. Isto é também característico do evangelha de joão:
não é meritmente um «evangelium gloriae», como alguns intérpretes que-
'rem, mas um ú'.evangelium crucis gloriosi». É na atuação soteriológica
de jesus, realizando a figura de Js 53, que vemos revelarªse toda a
dirnensão messiânica e escatológica de jesus. Observe-se, porém, que,
na seqüência do episódio, também os outros títulos messiânicos de je-
sus aparecem, quase como uma profissão de fé dos primeiros discJ-
pulos: o Messias (v. 41), aquele de quem falam as Escrituras (v. 45),
o Filho de Deus e Rei de Israel (v. 49), o Filho do Homem (v. 51).
O que atesta a índole programática deste episódio: é uma proclamação
de jesus Messias conforme todos os gostos. ,
A narração da vocação de André e seu companheiro desconhecido
é muita diferente daquilo que conta Me 1, 16-20. É POl>Sivel que o acon-
tecimento tenha sido transmitido na tradição oral de duas maneiras
bastante diferentes.. Mas além de serem «tradições v3.riantes>, as duas
narrações têm também interesses teológicos e querigmáticos diferentes.
Em Me, a história é construida em redor do dito sobre os «pescadores
de homens>; este dito e,xplica toda a maneira de encenar o aconteci-
mento. Em jo l,35ss, o· teor é bem diferente. A história é construida
23~
! sobre a idéia da busca do Messias. Em Me, jesus é quem procura e
chama os discípulos. Em jo, são os discípulos que, encaminhados pelo
Batista, procuram jesus. Daí a pergunta de jesus no v. 38: «Que estais
procurando?» Ao procurar corresponde o encontrar: «Encontramos o
Messias» (v. 41), cEncontramos aquele do qual Moisés escreveu na
Lei> (v. 45). O tema do encontrar é destacado ainda pelo fato de o
autor utilizar este termo também para a «transmissão de convite» de
André a Simão Pedro, de jesus a Fi1ipe, de Filipe a Natanael (vv.
41.43.45). Em vez de narrar a «vocação dos discípulos por jesu~ como
Me 1,If1c.20, J_o l,35ss narra «O encontro do Messias pelos discípulos»,
encontro que Se rea1iza em reação de cadeia. Deve-se reparar também
que os discípulos, à pergunta de jesus «Que procurais?» não respon-
dem «0 Messias», pois joão já lho indicara como tal. Respondem: «Onde
estás permanecendo?» (grego menein, morar, permanecer)~ Querem es-
tar com ele, lá onde ele está. É o rnenein, o permanecer com e em jesus
que será comentado por jesus na hora da sua despedida do mundo
(cf. sobretudo Jo 14,lss.10; 15,lss). Quem encontra o Messias, perma-
nece com ele. Jo justifica narrativamente este «ficar com ele» pela hora
avançada: a «décima hora» é quatro da tarde.
Voltando agora o olhar para trás, notamos que o terna de cen-
contrar o Messias» completa de maneira sucedida o episódio anterior,
2. Lugar na liturgia
O presente evangelho serve para abrir a leitura da vida pública
de Jesus durante os domingos comuns do ano litúrgico. Embora seja
o evangelho de Me que fornece a leitura continua no Ano B foi esco-
~id_o este episódio do evangelho de jo para abrir a série, po~que cons-
f titui o elo entre a festa do Batismo do Senhor (omitida este ano, por
coincidência com a Ep;fania) e a atividade pública de Jesus na Gali-
léia, que, nos domingos seguintes, será apresentada mediante as lei-
turas de Me. O episódio joanino é especialmente adequado para enca-
f beçar a narração da vida pública, porque coloca em plena luz o que,
em Me, só aos poucos a,Parece: a significação messiânica e salvífica
t de Jesus.
Com este evangelho relaciona-se, naturalmente, a primeira leitura do
dia, a vocação de Samuel. Contudo, deve-se observar que no caso de
Samuel se trata de uma vocação no sentido tradicional, semelhante à
dos profetas Isaías, Jeremias e Ezequiel, enquanto o episódio evangé-
lico realiia um gênero literário próprio, aproximando-se mais da reve-
lação do que da vocação.
; Johan. Konings
1 Porto Alegre, RS

~
o testemunho do Batista, mostrando que ele não era o Messias (1,6-8.

·I
19ss), mas testemunha do Messias (l,15.23.29ss). Todo o 1' cap. de Jo
gira em re~or da questão: «Quem é o Messias?l>. Não é o Batista, mas
este encaminha para ele; é o Nazareno - nome desprezado pelos ju-
deus do I século (de tal modo que o judeu verdadeiro, Natanael, tra-
duz este desprezo na observação do v. 46) - a quem os discípulos
l
'
Tema Principal
A VOCAÇÃO DO HOMEM É DEUS

'i
1 encontraram (v. 45).
.. Assim, Jo l,35s_s é um encontro com o Messias. Nos evangelhos si-
noticos, o reconhecimento de jesus como Messias sucede aos fatos da
t Sugestões para a Homilia
Introdução
sua pregação na Galiléfa (Me 8,27ss par). A estruturação diferente do
4~ evangelho faz com que este reconhecimento se situe na primeira pá-
gina. Há uma coincidência interessante com o evangelho de Mateus.
Este introduz, na cena da profissão de fé em Jesus como Messias, por
I
;
O tema central deste domingo é a vocação e o nosso se-
guimento, em resposta, ao Filho de Deus. Ao nascer, o homem
nasce para o desafio e missão de transformar a própria vida
Pedro (Mt 16,l3ss = Me 8,27-30), a mudança do nome de <Simão fi- numa plenitude. Esta plenitude, a Bíblia afirma, chama-se Deus.
lho de Jonas>, em «Pedro> (Mt 16,17s). O 4° evangelho realiza a :Ues-
ma associação aqui, em 1,42: a mudança do nome de Pedro coincide E o caminho para chegar a Ele chama-se jesus. Os discípulos
com o encontro do Messias (jo traz, além do grego petros, também o do evangelho de hoje tudo abandonaram para segui-1'0 e Si-
ar3!11aico kefa; e diz «filho de João» em vez de «Jonas», o que indi- mão recebeu um nome novo que significa missão e predileção.
caria um contato com a forma oral da tradição, presente em Mt 16).
Olhando bem, notamos que o evangelho de Jo é completo desde
a primeira página. O reconhecimento de jesus como Messias e os prin- Corpo
cipais títuJos cristológicos estão aí. Muito mais do que uma narração
progressiva, embora tenha a aparência disto, o 49 evangelho é um l. Deus procura o homem
contínuo aprofundamento. ·Os discípulos representam os que procuram
o Mess!as e, encaminhados um pelo outro, o encontram em jesus. O
v~".d~deITo «chamado> é o leitor do 4° evangelho. Ele é convidado para Na primeira leitura, Deus chama a Samuel na inconsciência
d1ng1r seu olhar para o Cordeiro e, seguindo-o descobrir a sua mo- \ do sonho e o chama por três vezes. Não lhe foi fácil distinguir
rada e ficar com ele, ficar com ele num sentido multiforme: na co- a voz de Deus, assim como, muitas vezes, para nós, que vive-
m'!"idade ~os que crêem nele, _mas també~ lá onde ele está agora, mos mergulhados nas múltiplas solicitações da vida, também não
pois ele foi preparar um lugar 1unto ao Pai, onde há muitas moradias
(mona, e!. menein, Jo 14,2; cf. 17,24). Este é o sentido último do con- o é. Mas Deus insiste, não se cansa e nem abandona aqueles
vite para ver em jesus o Messias. a quem quer salvar. No caso de Samuel, foi preciso que Heli,
240 241

1:
um velho sacerdote já com os olhos enfraquecidos e mal po-
dendo ver (cf. lSm 3,2), lhe abrisse os olhos para a presença
do Senhor. E Deus, então, lhe confia a ingrata missão de anun-
ciar a destruição da casa. de Heli, cujos filhos procediruµ mal e
desonravam o templo e o nome do Senhor (cf. cap. 2).
Uma das verdades mais fundamentais dos Livros Sagrados
é a busca do homem por parte de Deus. Deus não só chama
o homem do «caos do nada» para a vida, mas o vocaciona
para uma vida de união intima com Ele. Coloca-o num paraí-
so e com ele se compraz em passear por entre as árvores. O
homem, como sabemos, virá posteriormente a perder esta inti-
midade natural com seu Deus, por causa de seu pecado. Deus,
no entanto, não o rejeita para sempre, mas visita-o em sua
tenda ( cf. Abraão), faz com ele uma aliança de fidelidade e
salvação ( cf. o Povo Eleito) e, finalmente, para ensinar-nos o
caminho da verdadeira vida, Ele mesmo vem armar sua tenda
na terra dos homens (cf. Jo 1,14).
A vocação na Bíblia é um chamado para os caminhos san-
tos de Deus e para uma vida de união com Ele. Quando o
povo se faz surdo a esta vocação, Deus suscita homens espe-
ciais a quem confia uma missão religiosa e libertadora. O
enviado se reveste da força de Deus e fala ao povo em Seu
nome. Proclama Seus cam.inhos e um ano de graça, reacende a
fidelidade devida a Deus por causa da aliança feita com Ele,
denuncia o mal e a injustiça que dividem as pessoas e obscu-
recem os planos de Deus, anuncia castigos para a purificação
dos pecadores, prega a conversão, promete a salvação e recon-
firma a fé do povo no poder de Deus. O profeta é a voz da
consciência onde, momentáneamente, dorme inconscientemente a
vocação do homem para a santidade de Deus. · frente e afastou Pedro, que lhe embargava o caminho, com pa-
O acontecimento com Samuel, descrito na primeira leitura,
é significativo. Cada um de nós pode estar dormindo, esquecido
da vocação que tem. Mas Deus não dorme e nem pestaneja;
Ele continua a nos chamar e procurar. Importante é que o ho-
mem seja sensível à sua voz e não deixe de suplicar: «Fala,
Senhor, que o teu servo escuta!»
2. O homem na busca de De11&
A vocação do homem - dissemos - é Deus e sµa san-
tidade. A Ele devemos . responder com todo o coração ,e alma,
ou, como diz São Paulo aos Coríntios, «glorificá-1'0 com o
nosso corpo» ( 1Cor 6,20). Segundo a Escritura, o homem que
242
vive e busca os caminhos de Deus é sábio e prudente, pois sua
casa repousa sobre a rocha de Sua palavra que é fiel. O que
vive como se Deus não existisse, entregue aos próprios sonhos,
é louco e insensato, pois seu destino, sendo obra de suas mãos,
se torna frágil e perecível. Deus é o grande e definitivo desa-
fio da vida. Tão grande quanto a felicidade de acreditar n'Ele
é a dificuldade de ser-Lhe fiel. Se Ele é imprescindivel para a
salvação eterna, é, no entanto, dispensável dentro da lógica da
«cidade dos homens». Aqui é que a busca de Deus, tanto quan-
to graça, ne torna também esforço continuado e cruz, que o
homem deve abraçar, aceitando nela morrer.
Deus não é só o Deus de todas as consolações; é também
o Deus .das supremas exigências. E por isso, talvez, que a me-
diocridade dos nossos comportamentos prefere transformá-1'0
num «bom vizinho» com o qual nada se quer ter de mal, mas
com o qual também nada se quer ter de muito bem. Temos
alergia a uma convivência profunda que seja de vida e morte.
O exemplo de Jeremias talvez seja o mais gritante em toda a
história sagrada, se o de Jesus não fosse o mais eloqilente. Je-
remias amaldiçoou o dia em que nasceu, porque Deus, que o
seduzira; se lhe tinha transformado em motivo de gozação cons-
tante e de vergonha (Jr 20,8.17). O profeta sentia a Deus co-
mo um fogo devorador que se lhe encerrara nos ossos. Luta
por livrar-se dele, sem, no entanto, consegui-lo. Sente-se, en-
tão, vencido e se revolta com o sentimento da derrota (cap. 20).
O exemplo de Cristo é igualmente contundente: Só quer fazer
a vontade do Pai, mas esta decisã_o o arrasta para Jerusalém,
onde sofrerá na mão das autoridades civis e religiosas de seu
povo. Mas ele, como diz o evangelista, seguiu resolutamente em
lavras ásperas. Tanto Jesus quanto Jeremias não fugiram da
vocação de encontrar em Deus a razão de sua morte e a fonte
de sua salvação.
Os apóstolos do Evangelho de hoje buscaram a Jesus, que
São João afirma ser o Filho de Deus, e lhe perguntaram: «Onde
moras?» Jesus apenas responde: «Vinde e vede!» Deixa, por
conseguinte, a eles a liberdade de segui-lo ou não, sem estimu-
lar-lhes a curiosidade com perspectivas mirabolantes. Na base
da vocação está um ato de fé absoluto e despojado. O homem
é chamado a apostar em Deus e em Deus somente, sem co-
nivências, sem arranjos, sem meios-termos, sem bocejos. O ho-
mem, praticamente, deve morrer para si mesmo, crucificar sua
carne, tomar sua cruz, abandonar tudo e obedecer fielmente à
voz de Deus. Neste caminho, se ele encontrar a morte, encon-
243
trará também - é esta a grande promessa de Deus - a ver-
dade e a vida, a salvação, a alegria e a paz.
Conclusão
O homem é fundamentalmente um ser à imagem e seme-
lllança de Deus. Esta natureza se transfigura quando a pessoa
abraça a vocação para a qual está destinada, ou seja, fazer do
Reino de Deus sua razão de viver. Viver para o amor d'Ele. Se
o homem faz de Deus o seu amor, Deus, muito antes, quand9
éramos ainda pecadores, já fizera de nós seu sonho de eter-
nidade. Deus ama o homem e nele encontra graça e compla-
cência. Quer viver na nossa intimidade e destina-nos à Sua casa
onde já nos prepara um lugar. A vida é o lugar onde se joga
e prepara o Reino dos céus. Cristo é o exemplo do homem
perfeito. que se fez obediente ao Pai até a morte e morte de
cruz e passou pela vida fazendo o bem a todos. Nós somos
chamados a segui-1'0, abandonando o mal e o mundo das tre-
vas, para que em nós se façam vivos e patentes os traços e a
estatura do Filho de Deus e nosso irmão, Cristo Jesus. Viver
assim é viver acordado, longe da inconsciência dos sonhos e
fantasias carnais.
Frei Neylor j. Tonin, O.F.M.
Petrópolis, RJ
244
Terceiro Domingo
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Jn 3,1·5.10
«0 Senhor teve pena de seu povo»
O Livro de Jonas é aproveitado uma só vez no novo lecionário
litúrgico dominical e festivo. Não deve seu nome ao autor, mas ao per-
sonagem principal da narrativa. Não se trata de uma narração histórica,
mas de uma parábola. A datação é difícil, mas supõe-se que tenha
sido escrito mais ou menos quatro séculos antes de ·Crlsto. «0 tema
principal é a universalidade da saivação. De um lado o livrinho torna-se
assim um protesto contra o particularismo judaico, representado por
Jonas que, primeiro, tenta subtrair-se à sua missão entre os gentios
e, no fim, se. revela um grande egoísta. De outro lado dá-se clara-
mente a entender que as decisões divinas de destruir os pagãos sem-
pre são condicionais; pagãos que se convertem, como os ninivitas, mui-
tas vezes são melhores do que os próprios judeus. Como teólogo, o
autor focaliza muito bem o domínio mundial de Javé, mas sobretudo a
sua vontade sa1vifica universal, que, em última análise, é misericórdia»
(Deden, DEB, p. 826s).
O autor desenvolve esta doutrina a partir do credo central, citado
em 4,2; Deus é cum Deus compassivo, clemente, Iongânimo, rico em
bondade e pronto a renunciar aos castigoS». Este credo aparece pela
primeira vez na auto-revelação de Deus a Moisés em Ex 34,6. Mas
ganhou um lugar fixo na celebração da penitência do Antigo Testa-
mento (cf. Jl 2,13b; SI 85(86),15; 102(103),8; 144(145),8; Ne 9,17). Com
ajuda de outros textos bíblicos (Ez 26·28 em jn 1; jr 36 em jn 3;
!Rs 19 em jn 4; Jn 2 é um florilégio de textos dos Salmos), o autor
estende este credo também aos pagãos: também para com eles Deus
·é um Deus compassivo, etc. Especialmente a comparação entre Jr 36
e Jn 3 vem ao caso, uma vez que a leitura é tirada de Jn · 3.
Em ambos os textos encontra-se a mesma idéia fundamental de
uma ameaça condicional (Jr 36,2-3 e Jn 3,8-9). Constata-se o mesmo
desenvolvimento dos fatos: Deus ameaça (Jr 36,7b e jn 3,4; cf. 1,2);
proclama-se um jejum (Jr 36,9 e jn 3,5); a notícia disto chega até ao
rei e seus servos (Jr 36,12-20 e Jn 3,6). Mas enquanto o efeito da
mesma consiste em endurecimento em jerusalém (Jr 36,24) que é cas-
tigada (Jr 38,29-31), em Nínive ela provoca manifestações externas (Jn
3,6-Sa) e internas (Jn 3,8b) de penitência e de conversão e por isso
é salva da execução da ameaça (Jn 3,10; cf. 4,11).
Estas e outras comparações que se poderiam fazer mostram que
o livrinho não é uma estória popular, mas obra de um homem letrado
que, trabalhando no seu gabinete, se valeu de seu Conhecimento das
Escrituras para expor uma tese determinada.
O que motivou o autor a apresentar esta tese do modo que o fez,
- isto é, em forma de parábola e aludindo continuamente a textos
sagrados já existentes? «Em primeiro lugar o livrinho é um protesto
contra o particularismo judaico, cujo expoente é Jonas. Não somente
porque ele tenta subtrair-se de sua missão junto aos pagãos, mas an-
tes de tudo por causa de sua atitude egoísta em e. 4. Na hora em
245
que ele mesmo gozou da misericórdia de Deus, ele esgotou..se em ações
de graças (cf. 2,2-10). Mas quando os ninivitas são contemplados por
ela, ele se queixa e resmunga (cf. 4,1-2). ti claro que atrás de Jonas
estão os judeus nacionalistas que impacientemente esperam o c::Dia do
Senhor>, em que finalmente tomar-se-á vingança dos povos pagãos. O
exílio babilônico os tinha ainda endurecido nesta antipatia. E as hu-
milhações que se lhe seguiram pioraram-na ainda mais. Onde ficou a
execução de todas aquelas profecias que os profetas proferiram contra
os pagãos? Contra esta onda antipagã no século V levantou-se uma
contracorrente universalista muito forte. Os livros de Rute, ]ó e Jonas
são expressões da mesma.
Além disso o livrinho é uma exortai;ão à conversão. O contraste
proposital entre Jn 3 (penitência do rei de Nlnive e dos seus prlncipes)
e Jr 36 (impenitência do rei joaquim e dos seus ministros) indica
que o autor em certo sentido quis envergonhar seus patrícios, pondo-
lhes diante dos olhos o exemplo dos ninivitas (cf. Mt ll,2ls; J2,41s).
Do mesmo modo os judeus de seu tempo, que são mais culpados do
que muitos pagãos, deviam antes ter receio de sua própria sorte do que
sonhar castigos que afligem os pagãos> (Deden, comentário, p. 182s).
Blbllo!Vafla: D. D e b e n, Comentário; J d e rn, verbete "Jonas (Livro)", em: DBB,
p. 82~; A. P eu 111 e t, verbete "Jonas (le Livre de)", em DBS JV (1949)
1104-1131.
Raul Ruljs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Segunda Leitura: teor 7,29-31
cO tempo se fez curto>
O capitulo VII desta Epistola ocupa-se com o matrimônio e o celi-
bato. A presente leitura pretende dar uma justificativa escatológica a
estes estados de vida, pecuJi.armente ao dos que renunciam voluntaria-
mente ao matrimônio. O Apóstolo é claro e incisivo: exige de tQdos -
casados ou não - o espírito de continência diante da realidade paru-
slaca. O v. 31b - «... a figura deste mundo passa> - continua e ilus-
tra o v. 29 - e.. . o tempo é breve». Não se quer aqui resolver o
problema do conhecimento ou crença que Paulo teve da proximidade
do juízo, da parusia. Interessa muito mais a mensagem que Paulo quer,
através de sua crença, transmitir à Igreja. Palavras dentro de certo pres-
suposto ou situação podem valer sempre e em qualquer circunstância.· Com
a vinda de Cristo, o mundo parece viver como antes, mas algo mudou.
No tempo que medeia entre a 1• e a 2' vinda do Senhor o mundo está
em tensão, .como entre duas tenazes. E isto que se quer significar com
o termo: «breve~.
Paulo, nos vv. anteriores, dera mais realce à virgindade do que ao
matrimônio, em virtude dos compromissos e ansiedades ligadas ao eg...
tado conjugal, que impedem a entrega total e radical ao serviço do
Senhor, razão última do celibato. Para não semear inquietudes, o Após-
tolo prossegue dizendo que, se a virgindade é melhor, contudo não é
um prec-eito, - que o matrimônio não é mau, mas sua estrutura nem
'sempre facilita a união com Deus. Dirige-se aos solteiros para que em
sua opção tenham presente a precariedade dos bens desta vida.
246
cOs que têm mulher, sejam como se não tivessem> - não e re-
nunciar ou ficar indiferente às relações matrimoniais normais; trata-se
de um principio geral : não ser escravos delas, a ponto de não já po-
der viver sem elas. Deve haver um espaço para a liberdade, - o que
Paulo mais vezes sugere, por exemplo, quando aconselha a abstenção
matrimonial temporária e de comum acordo para fins de oração. A si-
tuação de casado ou não casado é, sob vários aspectos, diferente, to-
davia o que importa para Paulo é o essencial: a opção especificamente
cristã, a ser feita por todos, manifestando a grande novidade da exis-
tência cristã, não obstante o estado de vida de cada um. A vida cristã
não deve impedir a matrimonial e vice-versa. A seguir faz analogia
com outras vivências: «Os que choram, como se llâO chorasseID>. Pode
ser a frustração como casado ou qualquer tipo de angústia no viver.
Ele não proíbe as lágrimas, pois também chorou (Rm 12,15; Fl 3,18).
«Os que se alegram, como se não se alegrassem»: não se inveja a
euforia dos alegres e felizes. Ambas, angústia e alegria, são humanas.
O cristianismo está longe da cataraxia» (= indiferença, insensibilidade)
dos estóicos. Paulo mostra-se aqui bem afim às bem-aventuranças. Hã
uma tensão entre presente e futuro, entre situações concretas e a sal-
vação prometida. Todos, porém, estão convidados à fé e à esperan-
ça na Promessa.
«Os que compram, como se não possuíssem: os corhttios possuíam
tato comercial, inclusive os cristãos. O Apóstolo não lho prolbe, sob
condição de evitar toda fraude, conservando certa liberdade (cristã), a
qual deverá afetar toda a sua vida. Não se trata de fazer do cristão
um alienado da realidade. «Os que usam deste mundo, como se dele
não usassem>. . . porque o tempo é curto. «Mundo» incluiria tudo que
é a vida sócio-político-cultural, os relacionamentos, os bens. Não es-
tranhe o cristão se nem tudo nesta vida vai bem: os insucessos po-
dem ser admoestação da Providência divina no intuito de estimular o
desapego, lembrando que <uma só coisa é necessâri"" (Lc 10,42). Quem
vive em função do Reino, da parusia, não deve depender de perdas e
lucros nos valores deste mundo passageiro.
Distanciar-se do mundo, naquele tempo, era necessãrio. Depois, acon-
teceu o contrário: o cristão não dá o justo valor às realidades ter-
renas, não se engajando com o próximo necessitado. O Concilio Va-
ticano ensina que não se podem omitir os cuidados materiais, buscando
com diligência e fidelidade o progresso terreno retamente entendido como
promoção do Reino (OS 36s, 39, 44, 72).
Contudo, hoje, surge o velho perigo: apreço demasiado às reali-
dades terrestres, descambando-se para a secularização, pragmatismo, na-
turalismo e materialismo. De tanto enaltecer o matrimônio, esquece-se
a virgindade consagrada; - de tanto proclamar a liberdade, perde-se
o sentido da obediência livremente assumida; - de tanto canonizar os
bens deste século, esvai-se o amor da pobreza evangélica. PauJo visa
a um certo equilibrio. Estes vv. se identificam com o espírito das bem-
aventuranças, dos conselhos evangélicos: nem todos são chamados à
prática destes últimos de maneira radical, mas não pode haver ninguém
que não partilhe, ao menos um pouco, do espírito daqueles. As pala-
vras de Paulo são menos que um preceito, entretanto significam mui-
to mais.
Bibliografia: Cf. Segundo Domingo i!o Ano B, 2• Leitura, acima p. J3.
Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
247
 Terc~lra Leitura: Me 1,14-20
«0 tempo está realizado, o Reino de Deus cheg-
1.' Explicação dos vv. 14-15
Geralmente, Me 1,14-15 é considerado como o começo da atividade
pública de jesus, especialmente, na Galiléia. Isto, porém, não deve fazer
esquecer a ligação com· o contexto precedente, o batismo (onde jesus
recebe o Esp!rito profético) e a sua retirada no desertá (pelo impulso
do. mesmo Esp!rito). jesus realiza, na sua atuação, a plenitude do pro-
fetismo. Plenifica o profetismo-de-milagres, estilo Elias-Ells2u (o reve-
zamento do Batista por· jesus lembra o revezamento de' Elias por Eli-
seu, 2Rs 2,9.15; a respeito de joão Batista como novo Elias, cf. co-
mentário ao evangelho ·do 3' Domingo do Advento); pleni!ica também
o profetismo-de-pregação (pénitencial e escatológica), estilo dos pós-exl-
Jieos. O v. 14a assin-ala · este revezamento, que convida a uma comp~a­
ção entre o último profeta do AT (João) e jesus de Nazaré, profeta
do Reino de Deus. Mais adequadamente que Mt, que coloca já na boca
de joão a pregação do Reino de Deus (MI 3,2, dil. de Me), Me não
menciona a pregação do Reino de Deus por parte de joão. Para Me
(e Lc), o núcleo da mensagem do Batista é a conversão; seu batismo
significa exatamente isto (Me 1,4-5; e!. Lc 3,3; Mt 3,6). A Logienquelle,
fonte comum de Mt e Lc, nos conserva, inclusive, um: impressionante
testemunho do anúncio do julzo exterminador por João" (Mt 3,7-10 = jã acontece, de fato! Não adianta estabelecer uma Cristandade no mun-
Lc 3,7-10). Em comparação com isto, aparece muito bem ·a novidade
da pregação de jesus, em Me 1,15; noviàade que o torna único e
irreversivel entre os profetas: a proclamação da presença (êggiken, che-
gou) do Reino de Deus e da salvação. É a Boa-Nova, conservada em
termos mais extensos no Sermão da Montanha de MI 5-7 e Lc 6,20ss.
Porém, no evangelho de Me não aparece desde o começo toda a sig-
nificação salvifica da atividade de jesus; aparece gradativamente (por
exemplo, 7,37 etc.). O evangelho de Me é prenhe de um mistério que
só aos poucos se revela. A expressão de 1115 é típica; neste sentido.
Parece .um anúncio do Dia de Javé, e por isto o Anunciador pede con-
versão (cf. o Batista).· Mas na segunda parte, diferentemente do Ba-
tista, Jesus pede fé, e fé numa Boa-Nova/ E este termo,. Me o emprega
com convicção, pois ele -é o único dos evangelistas que iDtitula seu ~de­
poimento» 'sobre jesus com este termo (Me 1,1). Assim, os vv. 14-15
realizam uma surpreendente proximidade entre a exigên_Cia da conver-
são e a alegria do Reino. Converter-se, no sentido de Me· 1,15, é aceitar
com confiança (= fé) a alegria do Reino que chegou.'.
O leitor moderno pode estranhar que jesus foi proclamar uma no-
ticia tão importante não apenas num país de 20.000 Km' (menos que
o Sergipe), mas nem mesmo na capital deste país, porém na região
marginal que era a Galiléia. As vezes não é bom perguntar por que
a história acontece como acontece. Afinal, é lã que o pequeno rebanho
se reuniu depois ·da morte de jesus (cf. Me 14,27; 16,7). Mas é útil
ter diante dos olhos o que significa o conteúdo da mensagem de jesus;
o próprio conteúdo torna toda a propaganda supérflua, pois trata-se do
Reino de Deus. Este não depende de notoriedade humana.- Pelo contrário,
Deus tem uma certa preferência para intermediários insignificantes, por-
que estes não colocam seu orgulho no lugar da obra de Deus (cf.
Mt 5,3ss par; 11,Mss par). Acontecer num canto perdido do mundo é
248
exatamente umà caracter!stica do Reino de Deus. Talvez pareça egolsta:
por que não deixar participar as multidões do·i mundo todo? Isto tor-
nar-se-á claro depois da leitura das parábolas de jesus (Me 4): o Reino
de Deus Segue o método da semente; cresce sem ninguém se dar con-
ta. O antigo e novo povo de Israel tinham experiência de ser um «pe-
queno resto», testemunha entre as nações; ser pequeno não -era problema
para eles; o que importava era serem autênticos e fiéis; o resto da
obra era lá co\n Deus. Isto nos ajuda para entender o que é o Reino
de Deus. Não ·.é um csistem~, nem o sistema• em que o judaísmo se
deveria tornar ·o centro do mundo (messianisrito nacionalista do AT),
nem o sistema da Cristandade; o Reino de Deus não tem nada a ver
com tais «grandezas». O Reino de Deus é a força humilde mas ifresis-
tivel da vontade de Deus. Observe-se que jesus não costuma chamar
Deus de •Rei» (o que combinaria com «reino»), mas de Pai! O Reino
de Deus é o amor paterno de Deus tomando conta dos homens. Ora,
isto não é possível por um evento mundial, que se impõe à humani-
dade toda, um'à revolução ou coisa semelhante, mas somente pela se-
mente da -conversão. Note-se também que jesus, embora anuncie a re-
velação do Reino para esta geração (Me 13,30), não tem pressa nem
curiosidade para saber a data (13,32). Pois a certeza de que Deus serã
tudo em iodos,·- que não haverã mais outra coisa, basta. Podemos apren-
der alguma coisa diSto ai: não devemos estar àpressados em fazer mui-
tas coisas para fazer chegar o Reino; isto é lã com Deus. O importante
é que, o pouco que fazemos, seja da qualidade do Reino; então ele
do pela pressa, as armas e a Inquisição; Deus não tem nada a ver com
isto; nem devemos pagar violência com violência em nome do Reino
de Deus: isto só é atrasá-lo. Mas ele começa de verdade aqui· e agora
onde o homem se converte para viver conforme as Bem...aventuranças;
ainda que for num canto perdido do mundo ...
2. Explicação de vv. 16-20
No v. 16 ·começa uma nova situação no tempo e no espaço. Po-
rém, quanto ao conteúdo, existe uma ligação Intima entre vv. 14-15 e
vv. 16-20: a adesão radical dos pescadores do Lago de Oenesaré (Mar
da Galiléia) é a ilustração da conversão por causa do Reino e do
Evangelho (só Me conserva este último termo na palavra do seguimen-
to, Me 8,35 e 10,29 e par). 1) Não é uma ,conversão de penitência
em cinzas e jejum, mas a alegria de seguir jesus. 2) Não é a adesão
a uma entidade abstrata, o «Reino de Deus S.A.>; mas adesão a
uma pessoa.
É mister observar que esta vocação ainda não é propriamente a
vocação de capóstolos», pregadores; esta vem $omente em Me 3,13ss e
6,6ss. Trata-se: aqui da adesão do disclpulo que segue seu mestre aon-
de for; na base disto, serão escolhidos1 mais tarde, para «ficarem com
ele> (3,14). ,
A narrativa desta vocação é duma simplicidade impressionante; só
narra o essenCia1, para emoldurar um dito de jesus: cVjnde após mim,
e far-vos-ei pescadores de homens>. Dito caracterizado pelo gosto do
paradoxo que marca todos os ditos de jesus; pois em Jr 16,16 os «pes-
cadores de hoinenS> são os inimigos que devem castigar o povo infiel.
249
 Não se pode excluir que Jesus tenha aludido à atividade escatológica
destes cpescadores de horne11S>; somente, seu modo de agir serâ dife-
rente. Quanto à narração, começa mencionando que Simão e André são
pescadores (por enquanto, de peixes). Segue o dito paradoxal de jesus.
Depois só uma frase para dizer: eles deixaram tudo e o seguiram (v. 18).
Quanto a Tiago e João, Me nem menciona a palavra de Jesus, mas em
compensação acrescenta um detalhe pitoresco: deixam seu pai no barco
com os jornaleiros e eles, os filhos, se mandam ... (v. 20). Reconhece-se
aqui não somente o sabor de tradição oral da primeira comunidade
cristã, mas ainda a palavra de Jesus dizendo que segui-lo significa dei-
xar pai e mãe (Me 10,29 par; cl. Mt 10,37 par).
A narração tem valor querigmático: mostra o impacto da novidade
de Jesus. Não que os evangelhos exigem que todos sigam a Jesus como
os dois pares de irmãos, mas de toda maneira, os que mais tarde se-
rão «:enviados,. (= apóstolos) acolheram a mensagem do Reino de
modo exemplar. É um ideal que alguns conseguirão alcançar e que é
apresentado desde o inicio do escrito de Me para ilustrar a força mis-
teriosa que saia de Jesus: a força do Reino. Observemos também a
maneira nova em que Jesus chama os discípulos: não são estes que
procuram seu Mestre, como era costume no padrão rabínico. É o Mestre
que procura seus discípulos. E estes nunca serão seus substitutos como
entre os rabinos era costume. Só um será o Mestre (cl. Mt 23,8).
3. Lugar na Jlturgla
A palavra-chave que une este evangelho com a 1' leitura é: con-
versãD. Contudo, existe uma grande diferença para com a conversão
dos ninivitas: 1) A conversão dos ninivitas é negativa; só serve para
escapar ao juízo; a que jesus pede é a conversão 4positivaJ. à alegria
do Reino. 2) A conversão dos ninivitas expressa-se em jejum e cinza;
a do evangelho em seguimento generoso. 3) O Deus da ameaça (em
Jonas) deixa-se implorar para mudar seu plano; o Deus da salvação
o realiza gratuitamente, quando o tempo se completa; depois vem a
contribuição do homem: acolhê-lo.
Observe-se que no presente evangelho a vocação de Pedro e An-
dré é narrada de modo diferente do domingo anterior. Não adianta
entrar numa tentativa de discussão ou de harmonização (por exem-
plo, Jo 1,35ss seria a primeira vocação, Me l,16ss a segunda, mais
especifica). Ambas as tradições, de Me e de ]o, esquematizam a his-
tória; sua reconstrução científica é impossível. O modo certo para ler
estes textos é procurar a mensagem de cada um no contexto de seu
evangelho, prescindindo do que dizem os outros.
Blbllografia: Oerat: Comentãrios de Se h m J d, J. (Com. de Ratisbon~ 1 2);
Scbwetzer, E. (N.T. Deusch, 1); Trtltfng, W. (N.T. - Com. e mensa-
gem 2/1); Taylor V.; Wansborougb, H. (New Cath. Commentary); Maly,
E. 1. {S. Jerónimo); N f n e b a m, D. E. (Pellcan "Oospet Comm.); tb. H a e n eh e n,
E. Der Vleg jesu, 2• ed., Berlln, DeOruyter 1968. Especifica: T t 111 f n g W. O
An6nclo de Cristo nos Evangelhos Sinóticos, Paulinasi_ S. Paulo 1978; 37ss;
B o r n k a m m, O. jesus de Nazaré, Vozes Petrópolis 1Y1D, 60ss; K o n 1 n g s J.
Jesus nos Evangelhos Slnóticos, Vozes, Petrãpolis 1977, 22ss; M f n .e t te d e T 11-
1 e s s e, o. Le secret messianlque dans l'évangile de Alarc, Cerf, Paris 1968, 40s.406.
Johan Konings
Porto Alegre, RS
250
Tema Principal
UMA VOZ PROFÉTICA LEVANTA-SE. TRAZ NO SEU BOJO
O REINO DE DEUS. OS TEMPOS E OS HOMENS
E A SOCIEDADE MUDAM-SE
Sugestões para a Homilia
Introdução
A presença do Reino
A primeira palavra que o Evangelho de Marcos atribui a
jesus é uma palavra profética. Já o momento histórico no qual
se faz ouvir gera a expectativa de que ela o seja: João vem
de ser preso e o silêncio de ser imposto ao derradeiro profeta
dos tempos da preparação. É mister que uma nova voz se faça
ouvir e esta não tarda; ao contrário, soa ainda mais audacio-
sa e proclama a iminência do Reino: proclama-o tão próximo
que o faz crer presente. Com eleito, a sua proximidade é uma
proximidade perfeita e uma proximidade perfeita é já uma ver-
dadeira presença.
Corpo
1. As exigências do Reino
Ora, diante do Reino iminente e face à palavra que o
proclama, duas atitudes são exigidas: a conversão e a Fé. A
primeira consiste em profunda trans!ormai;ão interior e pode-se
dizer que nela o homem encontra a própria identidade para
além de todos os marcos limites e valores até então alcança-
dos. Nesse sentido, é ela o marco inaugural da Fé que constitui
um confiar-se o próprio ser, a própria pessoa à verdade do
Deus cuja palavra se reconhece nos lábios do profeta. Estas
duas atitudes, tão profundas que se tomarão dois movimentos,
hão de conferir à profecia um alcance universal e uma supera-
ção que o restante do Evangelho há de proclamar.
2. A llOCafão ao Reino
Mas a palavra profética é sempre uma palavra que abre um
caminho: e é no caminho aberto pelo anúncio inaugural de je-
sus - por seu evangelho 1 - que Marcos situa o chamado, a
251
vocação dos primeiros discípulos. Esta vocação é simbolizada
pela figura do pescador, a evocar as grandes águas e, nelas, a
possibilidade da vida e o risco da morte, mas também as na-
ções, que, mais e mais, hão de ser divisadas como carentes da
palavra e perder o estigma de inimigo mortal.
Mas, nas palavras de Jesus, tornar-se pescador é ainda um
efeito remoto: imediatamente, trata-se de converter-se e crer e
estas duas palavras assinalam dois momentos de uma supera-
ção. Primeiro, a superação de um mundo estruturado no intimo
da consciência do homem: a presença do que lhe é exterior e o
domina em sua intimidade. Este momento é a conversão; não
mais a dos ninivitas face a uma catástrofe iminente, mas, face
à iminência do Reino, a conversão que visa a universalidade da
libertação. O segundo momento, a Fé, é em verdade toda uma
história e, dela, diz-se aqui apenas a palavra inaugural, que se
abre a um futuro que ela não delimita mas cria.
Consecutivamente, crer é abrir-se à iminência do Reino, tor-
nando-o presente na medida em que nosso engajamento com
o Cristo atualiza em nós o seu anúncio. É claro, não nos é fá-
cil, como não o foi aos discípulos, dar à nossa Fé uma forma
adequada à exigência do Cristo: todavia, é sempre possível
reassumir a imagem do pescador que trabalha o mais profundo
das águas, pois estas são a massa humana que a opressão
alienou e em meio às quais também estamos imersos.
Conclusão
A mediação da conversão e da Fé tem o poder de tor-
nar presente o Reino sempre iminente.
Pe. Benjamin de Souza, O.S.B.
São Paulo, SP

3. A Fé cria o presente do Reino

Deste futuro, o Evangelho constitui a Iniciação e os discí-

pulos, cuja conversão se pressupõe, os primeiros iniciados, os
primeiros a crer, isto é, a se lançar adiante, confiantes. De
fato, são eles as nossas primícias na Fé e, por isso, é sempre
possível buscar inspiração em sua experiência: a de uma Fé
que cresce na medida em que assume as suas contradições e
ousa transgredir as limitações ditadas pela cpnvenção ou pela
segurança.
No Evangelho, o gesto de deixar tudo e seguir denota a
conversão e colhe a Fé. Mas a Fé arrebata em seu interior a
conversão e, com ela, revolve o homem, criando nele e por ele
o presente do Reino.

4. Engajamento pelo Reino

Em nossos dias, a conversão se articula a partir de uma

situação que, conservando grande parte da injustiça que sem-
pre caracterizou a ordem instituída da sociedade, tem de pecu-
liar haver elevado esta ordem a uma racionalid~de quase per-
feita e, por isso, arrogar-se o direito de impor a sua injustiça
em nome da razão e da ciência, fazendo do cidadão oprimido
agente de opressão. Converter-se é, neste quadro, desarticular
o homem que uma sociedade, cuja lei é a dominação, estruturou
dentro de nós.
252 253
 •
Quarto Domingo do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Dt 18,15-20
«0 Senhor te suscitará um profeta como eu:
é a ele qne devereis oU11iT>
O cap. 18 do Deuteronômio trata dos direitos dos sacerdotes levi-
ticos (vv. 1-8), das falsas expressões de profetismo (vv. 9-14), do ofí-
cio do profeta em Israel (vv. 15-20) e do critério para distinguir o
verdadeiro do falso profeta (vv. 21-22).
As origens do profetismo, considerado legítimo, em Istae1 são pro-
jetadas por Dt 18,15-20 para o perlodo da peregrinação no· deserto,
para contrapor-se às expressões proféticas que Israel encontrou depois
em Canaã (18,!1-14). A pesquisa histórica mostrou, contudo, que o pro-
fetismo de Israel passou por uma longa evolução. Suas origens mais
remotas provêm d8s formas mais primitivas de profetismo, como as
existentes na Mesopotâmia e em Canaã.
A adivinhação, a magia, o espiritismo em suas mais va ~adas for-
mas atestadas em Canaã são tentativas humanas de entrar em contac-
to com o sobrenatural. 'conhecê-lo e, se possível, controlá-lo. Parã o
Deuteronômio, porém, Deus já fez conhecer sua vontade, expressa na
Aliança do Sinai, da qual Moisés é o Intermediário pedido pel<> próprio
povo (v. 16). O desejo de o homem saber se serâ ou não feliz, tam-
bém Jã foi respondido: Se observar a Lei da Aliança o homem serâ
abençoado e feJiz; se .a desobedecer, será amaJdiçoado.
Conseqilentemente, o Dt vê a instituição profética como uma con-
tinuação do oficio mediador de Moisés. Como Moisés deu a conhecer
a vontade divina contida na Lei do Sinai, assim o profeta tem a obri-
gação de tornar conhecida esta mesma vontade ao povo (v. 18). cPor-
que o Senhor Javé nada faz sem revelar o seu segredo aos profetas
seus servos> - diz uma glosa deuteronomlstica em Amõs (3,7).
Mas o· profeta, apesar de ser ccomo Moisés», não é um simples
repetidor da Lei. Ele é um intérprete da Lei, um intermediário entre
Deus e os homens que deve vigiar e promover sempre de novo a fi-
delidade à Aliança. A exemplo de filias que foi retemperar sua vocação
no Monte Horeb (!Rs 19,3-18), tC>do o profeta busca seu vigor na
Aliança do Sinai.
Sendo o profeta um intermedlãrio entre Deus e os homens, o fiel
deve atender aos seus apelos (v. rn). O profeta, por sua vez, sob pena
de morte, deve ser fiel à inspiração e vontade divinas.
Quando em nossos dias, por desejo de obter saúde, alcançar felici-
dade, ou por simples curiosidade, não poucos cristãos entregam-se a
práticas de astrologia, espiritismo, umbanda e outras mistificações, este
texto do Deuteronômio ganha uma renovada atualidade. Deus já fez
conhecer sua vontade nos seus mandamentos.. Por meio de Jesus Cristo,
que ensina com autoridade (e!. Me 1,27), traçou o caminho da felici-
dade nas bem-aventuranças do Evangelho. A mensagem de Cristo é
sempre de novo atualizada pelos legltimos pastores e pregadores de
sua Igreja. E na vontade de Deus assim expressa que o cristão de-
254
verâ buscar as orientações para sua vida, e não nns falsos tipos de
profetismo
L. Oarmus, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Segunda Leitura: teor 7,32·35
«Eu quisera qne estivésseis Isentos de preocupaçõM>
Aqui Paulo prossegue justificando por que a virgindade é melhor.
Em si ela é melhor por causa das dificuldades presentes (v. 26) de
viver como cristão, da tribulação da carne (v. 28) e da preocupação
pelas coisas do mundo (vv. 33s). Em outras palavras, resume a carga,
as ansiedades ligadas ao estudo matrimonial, enquanto impedem uma
entrega mais plena ao serviço de Deus. Reassume o Apóstolo, como
no contexto anterior, a -idéia de «poupar», mas acresce uma novidade:
a de «Cuidado> e a de «agradar». Quer ver o cristão livre de cuida-
dos tanto negativos (o que não lazer) com<> positivos (o que lazer).
E um desejo seu, não um preceito. O cristão deve estar acima das
coisas do mundo, ficando assi.m livre dos «cuidados» mundanos. Os
cmdados' do batizad<> são as coisas do Senhor (v. 28). Como o Após..
tolo apr_ecia o estado de liberdade e de libertação 1
O casado .cmd0» das coisas do mundo e do Senhor: está como
que «dividido~, serve a dois senhores, devendo «agradan> ao Senhor e
ao cônjuge (Lc 14,20). E quanto se exige para «agradar>! Se os espo-
sos se esmerassem em pertencer totalmente ao Senhor, não haveria o
cservir a dois senhoreS». Isto é exigir demais, e. não parece a norma
geral. Paulo está cônscio. Dai, o andar precavido e atê um tanto cé-
tico. Não deixa, porém, de apontar um ideal alto, levado que é pelo
seu amor ardente ao Senhor, embora procure moderar-se (e!. v. 35).
Entretanto almeja que os esposos pertençam plenamente ao Senhor,
sem reservas nem desvios. Paulo quer livrar o cristão das preocupações
terrenas · para que possa servir mais facilmente ao Senhor e ser «.santo
no corpo e no espírito>, quase separado do mundo, consagrando total-
mente a Deus seu pensar e seu existir (v. 34). Para evitar que al-
guém d~ ênfase demasiada a suas palavras, acrescenta com delicadeza
que nãot se trata de fazer violência, nem de armar cilada a quem quer
que seja, mas apenas de indicar o que é melhor (vv. 7.35).
Ao :cuidado pelas coisas do mundo c.ontrapõe-se o cuidado pelas
coisas elo Senhor. Ao estar «dividido» opõe-se o «pertencer indivisa-
mente> ao Senhor. Tem-se a impressão de que o «para ser santa no
corpo e no espírito> conota tal indivisibilidade do coração. Não se
pensé, contudo, que os casados .não possam ser santos. O Apóstolo se
esforçou por encontrar um termo que exprimisse a pertença, expllcita e
~clusiva, a Deus. Optou pela expressão supra: «santa no corpo e no
espírito>, E o que parece dizer o versículo 35.
Paulo não se refere àqueles que gostariam de casar, mas não o
podem..Todavia, hã quem veja no v. 34 uma alusão a esta gente:
ao lado · das virgens, cita as solteiras, as não casadas. Se bem que
estas «mulheres não casada&> podem ser as viúvas (e!. vv. 39-40) ou
ainda as mulheres pagãs que, antes do batismo, viviam em uniões ilí-
citas. Nada impede que se trate dos celibatãrios por necessidade, os
quais, na !é, fazem da sua impossibilidade real de casar uma voca-
255
' -
ção positiva em prol do Senhor. «Cuidar das coisas do SenhoD, dito
com tanta espontaneidade, é um convite, um apelo a reconhecer e rea-
lizar esta vocação positiva.
A rapjdez do tempo (v. 29) é mais um motivo para sacrificar-se
em buscar o melhor. De fato, o mundo passa rápido (v. 31) e o tem-
poral é de menos valor. Por conseguinte, faz-se mister viver sem apegos.
BibUogra/la: CI. Segundo Domingo do Ano B, 2~ Leitura, acima p. 13.
Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Terceira Leitura: Me 1,21·28
cUma nova doutrina, com autoridade>
!. O conjunto Me 1,21-39
Me 1,21-39 é tradicionalmente chamado •o dia (ou: o sãbado) de
jesus em Ca!arnau~. Começa com a entrada de Jesus em Cafarnaum,
onde, logo de manhã, participa do culto do sãbado, na sinagoga (1,
21-22). Nesta ocasião -expulsa um demônio (1,23-26) e provoca a admi-
ração do povo por causa de sua autoridade (1,27-28). Hos1 oda-se na
casa de Simão e André, onde cura a sogra de Pedro (1,29-31). De-
pois do pôr do sol, isto é, terminado o repouso sabático, o povo lhe
traz enfermos de todos os lados, aos quais cura (1,32-34). Anoitece.
De madrugada, Jesus retira-se para rezar; diante da tentativa dos dis-
cipulos de levâ-lo novamente à multidão que espera curas, Jesus res-
ponde que deve realizar sua missão em outr-08 lugares da. Galiléia
(1,35-39). Exatamente vinte e quatro horas.
Não é preciso dizer que este e dia> não é um relatório d~ . polfcia.
Me sintetiza aqui, de maneira pessoal, uma série de dados da tradição:
a permanência (certamente mais demorada que um dia) de Jesus em
Cafarnaum, sua partic;pação'_ na sinag-oga, sua atividade benéfica junto
aos doentes e «endemoninhados:., os laços de amizade, talvez de pa-
rentesco, com Simão, André, Tiago e João ( cf. também o , episódio
precedente, Me 1,16-20), a oração de Jesus e a sua vida viandante.
Pode-se suspeitar que esta unidade literária conheceu um primeiro es-
boço já na pregação, colocando num dia tudo o que Jesus fazia nos
dias da sua vida pública. Contudo, a maneira em que atualmente os
diversos episódios são ligados entre si deixa reconhecer a mãó de Me.
2. ExpliCação de 1111. 21-22.27-28
Os vv. 21s.27s formam uma moldura («inclusão>) em redor do exor-
cismo, que constitui o núcleo da narração. Moldura importante, porque
mostra que sentido o evangelista quer dar ao exorcismo. jesus ensina,
e isto provoca admiração, pois ensina com autoridade (exousia), e não
como os escribas que ensinavam «conforme disse rabi x a rabi y> . ..
Jesus fala de Deus de primeira mão (v. 22). Ora, no v. 27 aparece
que o exorcismo é a confirmação desta exousia (mesmo termo!·que, em
2,10, é utilizado para perdoar pecados; em 3,15; 6,7, para, expulsar
demônios; em 11,28ss, para expulsar os vendilhões do Templo). Este
256
tema da exousia msmua a autoridade divina da atuação de jesus. É
um ternio que se relaciona com o mistério de Jesus no evangelho
de Me: no AT, a exousia é dada por Deus ao Filho do Homem (o
termo é tlpico do livro de Dn; v. esp. Dn 7,12.14.26.27). É a exousia
escatológica, que põe fim ao reino de Satã e instaura o Reino de Deus.
Por Isso também a doutrina que acompanha esta exousla é uma dou-
trina nova, não no sentido de um «último grilo> que àgrade ao ouvido,
mas no sentido de inaugurar uma realidade nova; em oposição aos
cúltlmos gritos>, jesus tem realmente algo para dizer, algo que não se
ouvia antes: a irrupção do Reino de Deus. É neste quadro que deve-
mos entender a história de exorcismo, que forma o núcleo da narração.
Reciprocamente, o exorcismo ilustra também a emoldura>, o ensinamento
de jesus. Aqui, como em muitos outros textos, Me diz que Jesus ensina,
mas não o quê. Somente na segunda parte do evangelho, Me especifica
que Jesus fala, para os seus disclpulos lntimos, de seu' sofrimento, mor-
te, ressurreição. Quanto ao ensinamento para o público amplo, porém,
só é especificado, uma vez, que ele lhes ensinava a respeito do Reino
(4,ls). O conteúdo do ensinamento de Jesus não parece preocupar o
evangelista Mc1 contrariamente a Mt e Lc, que inseriram nos seus evan-
gelhos a «Fonte das . Palavras de Jesus~ (Logle!UJue/le). O que o
preocupa é o anúncio de que Jesus é o Messias. Ora, exatãmente esta
dimensão de missão divina é destacada pelo exorcismo na slnanoga de
Cafarnaum, durante o ·ensinamento de Jesus.
3. Explkação de vv. 23-26
Me 1,23-26 não é uma mera história de exorcismo. É uma epifa-
nia de Jesus. Enquanto o povo desconhece a verdadeira dimensão de
Jesus e os disclpulos reconhecem sua função messiânica só a partir de
8~27 (e ainda na incompreensão: 8,33; 9,32), os que estão Implicados
diretamente com Deus, seus adversários, os demônios;, o sabem desde
o começo (Me 1,24; 3,11; 5,6). E como os disclpulos, mais tarde, serão
proibidos de dizer quem j.esus é (por exemplo, 8,30; 9,9), assim tam-
bém os que foram libertos do seu demônio (3,12; e!. 1,34). Isto vale
também para outras curas (8,26), porque, afinal, qualquer doença era
vista como uma intervenção do Maligno (cf. Jó 1,6-2,10). Considerar
a enfermidade como estado abençoado por Deus, é uma atitude do
Novo Testamento (!Cor 12,9). Em relação com isto devemos observar
que muitos fenômenos patológicos eram explicados, na: Antigüidade, co-
mo possessão demoníaca. AqUi, importa que a cura -é uma ocas1ão para
se manifestar pela boca do endemoninhado o fundo da autoridade
(2xousla) de Jesus. Assim, esta história é caracterizada pelo jogo de
luz e sombra que é tlpico do evangelho de Me. Jesus é revelado como
Messias e Filho de Deus, mas sempre com uma certa reserva, porque,
de fato, nem os homens e nem mesmo os discípulos o compreenderam antes
de sua Ressurreição. (É útil comparar esta história com a de Me 5,
2-15 e com o sumário de 3,11-12). As palavras do demônio demonstram
uma semelhança notável com o vocabulário das narrações sobre os pro-
fetas Elias e Eliseu: e!. IRs 17,18; 2Rs 3,13 (= Me 1,24a); e o titulo
de «Santo de Deus> (1,24), cf. 2Rs 4,9. O modo de narrar a história
alinha jesus - com os poderosos profetas, embora os ultrapasse. Na
Log/enquelle de Mt e Lc conservou-se uma palavra de' Jesus que ilustra
bem o que Me deixa transparecer nesta narração: expulsar demônios
257
 é revelar a força do Reino (para quem quiser entender) : Lc 11,20 =
Mt 12,28. O poder do Maligno, que atinge a todos, mas se manifesta
especialmente nos endemoninhados, é rompido. A conclusão do povo
mostra que as multidões não ficaram insensíveis a esta dimensão divina
da obra de jesus; porém, não compreendem; apenas ficam pasmados
(v. Z7). De toda maneira, Jevam adiante o fato e a fama do tauma-
tnrgo (v. 28).
~claro que Me não traz uma descrição psicológica daquilo que
ocorreu lá na sinagoga, e seria despistar a atenção do assunto perder-
se -em considerações psicológicas do tipo de perguntar qual a enfermi-
dade, como o homem conhecia Jesus etc. Inclusive, é passivei que numa
mesma narração se combinem traços de vârios fatos. A intenção da
narração é teológica1 querigmática: suscitar admiração por aquele a
quem até os demônios obedec·em. A quem obedeceriam, senão a Deus?
4. Lugar na liturgia
A liturgia relaciona o presente evangelho com a leitura de Di 18,
15-20. Por esta aproximação destaca-se o caráter profético da atividade
de Jesus. Este está sobretudo na exou~ia. Quem .não escuta as palavras
que o profeta fala em nome de Deus, Deus lhe pedirá contas! (Dt
18,15). É, portanto, a revelação da autoridade divina em jesus Cristo
que forma o terna central da liturgia de hoje, e que se deverá co-
mentar especialmente. A partir do evangelho, pode-se mostrar que a
autoridade de jesus se revela na sua atuação, que é um atestado ga-
rantido pelas próprias forças malignas, atestado não apenas para a
atuação, mas também para o ensino do qual esta atuação faz parte;
pois jesus ensina por pa1avras e atos, à maneira dos profetas.
Bibliografia: Geral: Cf. domingo precedente. Especifica: Ã'l I n e t te d e T 111 esse,
O. Le secret messlanlque dans l'évanglle de Alarc, Cerf, Paris 1968, 75ss; S c h m 1 d,
J. (Com. de Ratisbona, 2), excurso sobre exorcismo ad J\ilc l ,21ss.
Johan Konings
Porto Alegre, RS
Tema Principal
. '
EXPULSAR DEMôNIOS É LIBERTAR DO MAL
E DEVOLVER A LIBERDADE
Sugestões para a Homilia
Introdução
Chagas de nossa sociedade
A nossa sociedade é complexa. Tão complexa, que somos
tentados para confiar a outros, mais competentes do que nós,
a solução dos problemas.
258
A nossa sociedade está doente. Prova disso são os me-
nores abandonados; os viciados de álcool e de drogas; os po-
liciais dos esquadrões da morte; as mulheres de casas de
tolerância; os desempregados, acidentados e encostados; os es-
moleiros; as crianças subnutridas; os analfabetos; os crimino-
sos: ladrões, falsários, assassinos. . . Todas estas categorias de
pessoas representam um problema para a nossa sociedade.
1
!
i 1. Quem é culpado e quem é vitima?
Existe uma tendência manifesta para moralizar e condenar
este tipo de gente. Rotulam-se de malandros; gente que não
presta para nada; uns sem-vergonha; aproveitadores e parasi-
tos; gente perdida mesmo e possuída do demônio. . . Ao emi-
tir estas opiniões subentende-se que os demais, inclusive a gen-
te, são os bons cidadãos, vitimas destes vagabundos.
Muitas vezes não se tem a menor idéia de que tais julga-
mentos possam ser precipitados, errados e muito injustos. Nem
se desconfia de que jogar a culpa nos outros seja outra forma
para se desculpar e tirar o corpo fora, quando se trata de
resolver estes problemas de nossa sociedade.
Está mais do que na hora para admitir que todas aquelas
categorias de pessoas malvistas e malquistas não sejam cau-
sas, mas vítimas das doenças da nossa sociedade. Vítimas da
maldade anônima coletiva que criou a sociedade em que vive-
mos, a mantém em pé e a transformou em um mecanismo dia-
bólico em que uma minoria vive à custa da maioria. Antes e
em vez de julgar seria bom fazermos um exame de consciência
e perguntar-nos se e em que medida fazemos parte deste me-
canismo que esmaga tanta gente. Existe grande perigo que olhe-
mos o cisco nos olhos dos outros e não vejamos a trave no
nosso e que apontemos para os outros com dedo sujo.
2. jesus não moralizou, mas libertou
Podemos aprender da atitude de Jesus. Ele não conde-
nou a ninguém. Não rotulou ninguém de pecador, mas libertou.
Libertou os pecadores do peso do pecado, perdoando. Libertou
os doentes da doença, curando. Libertou os possuídos pelo de-
mônio, expulsando.
259
 O Evangelho de hoje nos narra o primeiro ensinamento e
o primeiro milagre de jesus. O milagre é uma expulsão de um
demônio. Olhemos o estado daquele homem e a atitude de jesus.
O homem estava de tal modo «possuído» que tinha per-
dido a sua própria personalidade. Quando ele gritou: «Ai! Que
temos nós contigo, jesus de Nazaré?:., ele não agiu nem falou
por conta própria, mas era o espírito imundo que falou e agiu
nele. Este homem não tinha culpa em agredir jesus, mas era
vítima da influência nefasta do demônio. Por entender isso, je-
sus não ficou com raiva dele, não o xingou nem castigou.
Aqui como nos outros textos dos Santos Evangelhos, os
possuídos do demônio não são descritos nem tratados por Je-
su~ como homens moralmente maus que se perderam por pró-
pna culpa, mas como vítimas involuntãrias e sem defesa dos
poderes satânicos. São estes poderes satânicos que agem e fa-
lam neles e reconhecem em jesus «o santo de Deus» e se apa-
voram diante do Filho de Deus feito homem. Os demônios não
suportam a presença de Deus tão perto da gente. Eles denun-
ciam a divindade de jesus, para que todo mundo se apavore
diante d'Ele e fuja d'Ele. jesus não aceita esta deuúncia, este
testemunho dado pelos poderes do Mal. Ele quer que a gente
descubra e aceite a sua pessoa livremente. Em vez de acusar
o possuído de maldade, Jesus o liberta do poder do Mal que
estava controlando suas ações e palavras. Libertando o homem
do poder do Mal, jesus lhe devolveu a liberdade. De tal modo
que, doravante, possa agir por conta própria. Assim jesus res-
tituiu a este homem a possibilidade de ser ele mesmo, de ser
gente, e de - querendo - abraçar livremente a fé e entrar
no Reino de Deqs.
Agindo desta maneira jesus se colocou na linha de Moisés
e dos grandes líderes do povo de Deus que, chamados por
Deus entre os irmãos, libertaram o povo da escravidão do Egi-
to, dos trabalhos forçados, da sede e da fome, das influências
nefastas de cultos e crenças supersticiosas e de estruturas, ins-
tituições e leis que escravizam o homem.
3. Não sejamos escribas que moralizam~ mas cristãos que libertam
Os contemporâneos que presenciaram este ato de Jesus per-
guntaram: «Que é isto? Eis um ensinamento novo, e feito com
autoridade!» Admiravam-se desta maneira porque jesus os en-
sinava como quem tem autoridade, e não como os escribas.
260
Nós não podemos recair no comportamento dos escribas.
Eles se comportavam como donos da Lei de Deus. E julgavam
todo mundo, bom ou mau, conforme esta Lei. Rotulavam todo
mundo e, muitas vezes, estavam prontos para aplicar o castigo
prescrito pela Lei. Como ,no caso daquela mulher adúltera que
jesus salvou com aquela observação: «Quem de vocês estiver
sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra». Que nós
não sejamos escribas, mas cristãos. Não vamos jogar pedras
em ninguém. Reconheçamos que muitos dos vícios enumerados
(criminalidade juvenil, embriaguez e tóxicos, prostituição, de-
semprego ... ) são muito mais conseqüência de falta ,de liber-
dade do que de falta de moralidade. Os poderes do Mal que
escravizam o homem de hoje, muitas vezes se encarnam em
mecanismos, estruturas e orientações erradas da religião, dos
jornais e revistas, de filmes e novelas, do analfabetismo, do
nível de vida subumano, do baixo salãrio, do alto custo de
vida. . . Estes poderes e os vícios que daí resultam não se
combatem eficazmente moralizando, acusando, e condenando os
indivíduos, mas libertando-os e transformando os mecanismos,
estruturas e instituições ou leis erradas de que são vitimas.
Conclusão
«S para sermos livres que Cristo nJJs llbertoU>
Dizem que a Igreja e o Cristianismo estão perdendo ter-
reno no Brasil, e no mundo. Se for verdade, certamente se
deve ao fato de que não somos mais como era jesus que en-
sinava com autoridade, isto é, não somente falando mas tam-
bém agindo e libertando.
Nós, cristãos, aqui reunidos, somos a Igreja de Jesus. Pelo
Seu Espírito que habita em nós somos chamados a vivermos
a liberdade dos filhos de Deus, libertando os nossos próximos
dos poderes demoniacos que estrangulam a nossa sociedade e a
transformam para muitos de nós em um verdadeiro inferno, do-
mínio de espíritos maus. O divino Esp!rito Santo nos impele
para libertarmos os homens das condições escravizantes em que
se encarna este domínio e para devolver-lhes a liberdade de
pensar, de agir, de falar e de optar. Conduzindo-os a esta li-
berdade - e não os acusando de pecado ou ameaçando-os com
penas eternas - é que se criam as c-0ndições necessârias para
a vinda do Reino de Deus.
Oau1 Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
261
fT
Quinto Domingo do Tempo Comum
. Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Jó 7,1-4.6-7
<Minha vida é um sopro>
O trecho é uma queixa amarga de Jó. Ele é um homem sem sos.
sego. Vivendo em desgraça, depois de ter conhecido , a felicidade ele
procura a . causa de su~ desventura. _Coerente consigO mesino, ele se
reconhece inocente. Mantém esta certeza contra as aparências a força
da tr~di.ção -e as insinuaÇões dos amigos, que pretendem fazer' de Deus
o paliativo dos problemas do homem. Jó não aceita de modo nenhum
a sugestão de seus . amigos para reconhecer um pec~do que não fez
ou J?ara, pelo menos, admitir que esteja sofrendo por uma culpa es-
quecida. Ele pede contas a Deus: «Não há culpa! De onde me vem
esta desgraça?» Entretanto vê os seus dias passarem Sem receber uma
resposta satisfatória. jó · anseia por ela «como o escravo espera o fim
do trabalho forçado e o assalariado o pagamento>. Mas tudo parece
indicar que para ele já não haja mais esperança e que terminará sua
• necessidade com que o homem ama e reconhece a Deus como única
vida na desgraça, sem recurso, nem apelação.
Mesmo assim, ]ó pefmanece firme na sua atitude. Não se conforma
com a sua desgraça sem culpa e não aceita a religião - a imagem
de Deus - de seus amigos, porque o levaria a reduzir o Deus de
sua fé a um passe par/out ideológico ou a ópio do povo. Teimando
na· fé, Jó não espera a última palavra ·de seus amigos, mas de Deus:
<Lembra-te ... » (v. 7). Esta prece encontra-se nos salmos de súplica e
lamentação. «Recordar ou lembrar-se significa aqui: permanecer fiel ele-
tivamente, agora, a uma atitude de benevolência mostrada no pas~ado>
(DEB, 968)>. <Lembra-te> é a primeira palavra que Jó dirige a Deus.
~a Bíblia, esta expressão encerra quase sempre uma prece para pe-
dir a Deus de permanecer fiel à sua Aliança. Aqui se .trata da aliança
de Noé: que Deus não. se esqueça da condição de sua criatura! Que
faça cessar seus sofrimentos! Que reconheça sua inocência! Que lhe
explique o mistério de sua infelicidade!» (de Vaulx, 31). Jó prefere
h.wnilhar-se a si mesmo e ser humilhado pelos outros,~ mas permanecer
firme na sua fé em Deus (cf. 2,9), a reduzir Deus às D\edidas da gente.
Bibliografia: O comentário de E p p 1ng-Ne11 s; o verbete "Memória", em:
DEB, 967-971; J. de V a. u 1 x, Vle humalne vJe de malheur 7 (Jb 7), em: AdS
11/36 (1974) 28-32. . • ·3
Rà'.ul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Segunda Leitura: lCor 9,16-19.22·23 ,
«Eu me fiz servo de tudos»
Paulo !alara 'nos vv. precedentes (1-14) de seus direitos, como
apóstolo, posto que, por razões pastorais e de conveniência não os
usufruiu. Tenciona evitar a mais lé:ve aparência de passar b~ à custa
262
• 1
do Evangelho; antes, suportou todo tipo de privações para não opor
dificuldades ao mesmo. Aborda o tema da liberdade cristã como um
grande valor, sem que seja o único e o mais elevado. Pode-se razoa-
velmente - e Paulo o fez! - renunciar .ao exerclcio da liberdade sem
contrariá-la e negá-la. · ,
Além disso, insere aqui uma autodefesa contra aqueles que o de-
preciavam por não ter acompanhado o Senhor em sua vida mortal.
Tem direitos e poderes, porque Jesus o chamou pessoalmente e lhe
apareceu como ressuscitado (15,1-8), capacitando-o para o ministério
(9,11-14). O contexto psicológico mostra-o 11ezyoso: provam-no os ana-
colutos, as inter.rupções bruscas. A singularidade de sua vocação o im-
pele a mais: anunciar o Evangelho (v. 16) não é para ele glória,
mas compromisso imenso, uma vez que foi capturado por Cristo. Não
basta proclamá-lo, como o fizeram os outros, já que !ora perseguidor
da Igreja. Se ?nunciar o Evangelho é uma «imposição>, exclui com
este vocábulo qualquer atentado à livre e espontânea liberdade, à cor-
dialidade. Voluntariamente e de todo o coração empenha a sua liber-
dade. Entre diberdade> e cnecessidade> há estrita relação: «imposição>
ou «necessidade?, aqui, não se opõem à «Uberdade>, antes, esta se
consuma naquelas. O âmago da liberdade consiste justamente naquela
realidade, digna de todo o seu amor e dedicàção. Bem entendidas, di-
berdade> e •necessidade> envolvem unidade. Em Cristo conciliam-se ine-
favelmenle obediência e amor filial. Aceita ~brigações ou imposições,
equacionando-as, à sua condição e autoconsciência de Filho. Se o ho-
mem se conforma afetiva e efetivamente com· tais cimposições>, na fé
e no amor, ela~ deixam de ser uma imposição vinda de fora.
cAi de miní se eu não anunCiar o EvangelhÕ> 1 - não é ameaça
vinda de fora, senão um impulso muito mais forte vindo de dentro -
o do amor. Resistir-lhe seria o maior fracasso. O v. 17 demonstra
como deve ser nossa tareia de evangelização: na liberdade e no amor.
Só assim será eficaz e agradará ao Senhor. Fazê-lo a contragosto ou
apenas como um dever, imposto e não aceito, é gesto de escravo, de
proletário, de imaturo - o que não corresponde ao plano de Deus,
nem merece qualquer recompensa. A idéia de , «recompensa:. conota cer-
ta sensação penosa ou, ainda, mentalidade interesseira. A cglória:. para
Paulo .não é algo de p~ram~nte exterior, como nós entendemos hoje,
mas sun o testemlUlhO mter1or da boa consciência. Nada espera de
humano pela pregação do Evangelho, pois o faz gratuitamente. Aliãs,
é natural esperar por um prêmio, ainda mais se é Deus. Ta1 esperança
não tem nada de calculism01 o que viria desmerecer a idéia de prêmio.
Em certas faix~ de piedade cri~tã, a motivação da recompensa por
vezes representou um papel um tanto suspeito. Todavia, não se deve
cair no outro extremo, como se toda idéia de recompensa fosse indig-
na do homem. Esta atitude colocaria o homem acima da pregação de
Jesus e d.o~ apósl?lo~, fora da pedagogia . de Deus e da p~icologia hu-
mana. Re1ettar a 1dé1a de recompensa seria orgulho, anularia a relação
fundamental do homem para com Deus, repeliria a graça divina.
Paulo resigna de seus direitos, como apóstolo, por razão de ordem
pa~toral (vv. 19ss), fazendo-se de forma livre "o servidor de todos para
cativar a todos; Antes propusera o princípio da liberdade cristã face
às carnes sacrificais (c. 8). Agora o salvaguarda contra abusos da
parte dos auto-suficientes, mostrando em sua .vida como deve ser usa-
263
1
do; sua regra de vida, livremente escolhida, é a antitese - «livre de
tudo>. ; • •servo de todos>. Obedece assim ao preceito de jesus: .Se
alguém quiser ser grande; seja vosso servidor:. (Me 10,43s). Sabe que
só assim estará de acordo com o Evangelho - sintése de tudo que
é cristão: caridade, humildade, imitação... seja qual for o Dome que
se lhe queira dar. O verbo «ganhar», metáfora derivada do comércio,
é sinônimo de csalvar», passando à terminologia missionária. Note-se
o cquanto maiS> do coração apostólico de Paulo. A Igreja terá que
orientar-se mais e mais por este programa missionário: todos a Cristo.
O verdadeiro apóstoló se identifica com os que deseja salvar: co-
mo Cristo se fez homem- para salvar os homens, assim Paulo cfez-se
tudo para salvar a todoS>... E uma formulação temerária, digna só
dos grandes santos. Não se trata de um ativismo desmesurado. Paulo
tem em mira assinalar a dificuldade que têm os fortes de considerar
os fracos. Não importa qual seja esta fraqueza. Em todo. o caso, os
pobres possuem direitos perante Deus e a Igreja. Por· sinal, jesus es-
colheu os pequeninos e declarou felizes os pobres. Sabe, porém, que
ele, a Igreja, nunca atingirão a todos. Entretanto, a wiião destes pau...
cos tem significação para os demais, em virtude dã lei básica da
economia da salvação -.; a da satisfação vicária de uns pelos outros.
O Concilio Va1icano enunciou: <A Igreja é o sacramento da salvação
para a humanidade> (LO 1).
«Faço tudo pelo Evangelho .. .> Tesume toda sua vida apostólica,
seu entusiasmo pelo Rein9. <Para tomar parte nele ... > - é que Paulo
não apenas zela pelos outros, mas pensa também na sua própria saJ...
vação. Ninguém está tão. seguro de sua salvação que. possa dedicar-
se exclusivamente à salváção dos outros. Nem os Apóstolos. A eleição
própria é o pressuposto 'para o serviço dos irmãos e 'vice-versa. Aqui
es1~ a mais au!ê~tica solidariedade de todos na Igreja; unindo os que
enSJnam e adnurustram com os que ouvem e recebem. Esta distinção
já não vale no plano da santidade e da graça, onde os papéis po-
dem inverter..se.
Bibliografia: Cf. Segundo Domingo do Ano B, 2• Leitura, acima p. 13.
Matheus P., Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Terceira Leitura: Me 1,29·39
<De madrugada retirou-se para um lugar deserto. E ali orav11>
1. O conjunto
Estamos sempre no . dia de Cafarnaum (cf. comentário do 4• do-
mingo comum). O autor não apresenta uma história elaborada como no
texto anterior, mas uma série de pequenas noticias_: a_ cura' da sogra
de Pedro, curas de diversos tipos, a retirada de jesus; e um sumário
de sua atividade através da Galiléia. A unidade deste material é es-
tabelecida pelas indicações cronológicas inseridas por : Me (depois do
culto, v. 29; ao anoitecer; v. 32; de madrugada, v. 35);
264
2. Os vv. 29-30
A história aparen1emente insiguilicante de Me 1,29-32 é valiosíssima,
porque a única ·razão por que foi conservada ·é: que ela aconteceu. De
fato, em comparação com os exorcismos e milagres espetaculares, curar
a febre de alguém parec~ insiguilicante. Mas aconteceu, e foi conser-
vada por causa de sua ligação com o chefe dos apóstolos, Pedro. já
S. Lucas achou' a história fraca demais e fez da cfebre» (Me 1,30)
uma <grande febre> (Lc 4,38); e acrescentou um «trabalho> de jesus
contra a febre (Lc 4,39). Nada disto em Me. Parece que o que im-
porta é atestar como o mistério de jesus penetrou na vida de Pedro
e sua familia. Pois a sogra respondeu ao gesto de jesus: «começou
a servir-lhes» (diakoneln), verbo tipico para traduzir o modo de se-
guimento de mulheres (cf. Me 15,41; Lc 8,3; W,40; jo 12,2) com rela-
ção a jesus (seguimento que os outros rabinos não permitiam). Por-
tanto, para os que acusam o evangelho de antifeminismo, é bom ob-
servar que um 'dos primeiros fatos relatados é a admissão de uma
mulher na companhia de jesus, respondendo a um beneficio que foi
mais do que uma cura e vitória sobre as forças do Maligno: um convite.
3. Os vv. 32-34
Referindo-se' ao costume popular de se reunir diante da porta de
pessoas interessantes, Me descreve uma cena ·(um «Sumário», como di-
zem os exegetas) de curas diversas de jesus (cl. Me 3,10-12). Embora
o autor não o :diga expressamente, seu imitador Mt o entendeu bem:
é a realização das profecias sobre Deus consolando seu povo (Is 35,
4-6) e do Messias tomando sobre si as nossas enfermidades (Mt 8,16ss,
cf. Is 53,4.11).
Encontramos aqui novamente o que já caracterizou a cura do en-
demoninhado na perlcope antecedente ( cf. dom. passado) : a briga de
jesus com o demônio (afinal, os antigos consideravam todas as doen-
ças como forças do Maligno; cf. Le 13,11-16'. e MI 12,22). Novamente
também a proibição que eles falem (<segredo messiânico»). E. quem
nos 'revela o sentido escriturístico deste segredo messiânico é MI, no
seu texto paralelo (Mt 12,16-21): jesus realiza a profecia do Servo de
Javé, que cnão :1evanta a· voz nem grita> (Is' 42,1-4), que não preciSa
de publicidade. Os espíritos malignos reconhecem jesus, porque sua apa-
rição lhes concerne diretamente: signmca o fim dó reino deles; O
povo porém não reconheceu plenamente a significação da atuação de
jesus; fica na admiração e incompreensão (para os primeiros cristãos,
Isto deve ter sido uma das explicações por que deixaram jesus mor-
rer; cf. At 3,17; é somente por sua ressurreição que jesus se revela
como Messias e. Pilho de Deus ao comum dos mortais, Inclusive os
disclpulos).
4. Os vv. 35-39
Em termos ·de composição literária, os vv. 35-38 formam um epi-
sódio completo; . o v. 39 é transição para o episódio seguinte. A indi-
cação do tempó. no v. 35 faz parte da estrutura redacional que Me
impõe ao cdia âe Calarnaum> (cf. supra). jesus se retira num lugar
deserto. O termo . cdeserto> evoca o lugar onde Deus encontrou seu
265
 povo, conforme o AT; o lugar também onde o profeta Elias procurava
o rosto de Deus; é o lugar originário da Aliança e da Salvação (a tal
ponto que os antigos judeus compararam também o exllio babilônico
com a escravidão do Egito e sua libertação como uma nova traves..
sia do deserto). Além deste sentido tipológico (assumir os momentos
mais autênticos da Aliança entre Deus e seu povo) a oração de jesus
em lugares isolados (cf. Me 6,46; sistematizado por Lc: 3,21; 5,16;
6,12; 9,18.28; 11,1). tem ainda o sentido de o distinguir dos rabinos
e fariseus, que cultivavam sobretudo a oração pública, como . aparece
na tradição de Mt 6,5-6. Uma séria advertência também à Igreja de
nossns dias, que está esquecendo a oração da solidão (e por isto sua
oração pública fica tantas vezes sem gosto). Me diz que Simão (e os
que estavam com ele) «perseguiu» Jesus lá no seu lug_ar de oração -
marca da sua incompreensão, comparável à de Me 8,31-33. O seguimen-
to obediente transformou-se numa persecução em busca de sucesso (v.
37) - embora certamente justificada com as melhores intenções (com·
paixão com o povo, etc.). jesus, porém, não entra n_a deles e coloca
a sua missão acima da tentação do imediato; jesus não é como nós,
que negJigenciamos o importante por causa do urgente. . . A semente
do Reino não é para ser extraida da terra na hora em que caiu; deve
desaparecer para se multiplicar. Deve também se ramificar em outros
lugares (v. 38). O lugar do profeta não é na sua própria terra (Am
ô,12-15; Lc tematiza esta idéia no episódio 4,16-30, porém situado em
Nazaré e não em Cafarnaum; o sentido fica o mesmo).
A conseqüência desta fidelidade de jesus à sua missão, mesmo
contra o gosto do povo, é sua volta pela região da Galiléia (v. 39),
onde ele realiza as mesmas coisas que em Cafarnaum: anunciar o evan·
gelho e expulsar os demônios, o que são duas faces da mesma realidade.
5. Lugar na liturgia
Da presente leitura (escolhida por ser continuação do domingo an·
terior) a liturgia salienta a idéia do sofrimento; este é o tema co.
mum da t• e 3' leitura (a 2', como geralmente, segue uma linha inde-
pendente, a da leitura contínua das cartas de Paulo). Jmporta destacar
o dinamismo visível dentro do tema do sofrimento: ]6 expressa a im-
pressão geral do AT, que o sofrimento, no fundo, não tem sentido
claro para a pessoa humana. Pode ser permitido por Deus como pro.
vação (assim o explicam os dois primeiros capítulos de jó), mas de
toda maneira, os que estão em pó e cinza não cantam a glória de
Javé ... Falta, no AT, uma perspectiva positiva do sofrimento. No NT,
esta se abre desde o início da atuação de Jesus; faz parte da Boa.Nova.
jesus toma sobre si o sofrimento de todos, como destaca Me 1,33.
Proclama, no sofrimento, a vitória sobre o Maligno, último culpado do
sofrimento, conforme os antigos. Podemos extrair dai uma aplicação
para a atualidade: o sofrimento, também hoje, parece, à primeira vista,
uma fatalidade - às vezes culpa do individuo, muitas vezes, porém,
conseqilência de fatores que escapam ao controle dos indivíduos e mes-
mo dos grupos humanos, ainda que sejam seus intermediários. Con·
tudo, embora não haja lugar para exaltação ingênua, devemos dizer
que em Cristo o sofrimento é assumido por Deus mesmo; não lhe é
estranho nem insuperável. Mas também esta vitória sobre o sofrimento
precisa ser intermediada pelos homens: o esplrito que deu força a
1'
266
jesus deve animar os seus fiéis para, de modo criativo - fazendo
tudo novo - vencer o sofrimento lá onde lho for dado e significar
assim que Deus está conosco.
Pode-se destacar também o conteúdo de c:um dia de jesus>, exem-
plo de um dia do cristão: proclamação da boa-nova, assumindo as en-
fermidades dos homens, e tudo isto, baseado numa íntima auscultação
da vontade do Pai, na oração, disposto a cir a outras cidadesl>.
Bibliografia: Ver 31> Domingo do Tempo Comum, 3 1 leitura, acima, p. 250.
johan Konings
Porto Alegre, RS
Tema Principal
A primeira leitura e o evangelho deste domingo nos falam do tema
do sofrimento. Jó apresenta.se completamente impotente diante das des-
graças que caem sobre ele. Não tem explicações para o sofrimento que
o aflige. Passa o dia no sofrimento e espera a chegada da noite. Sem
poder dormir anela pela chegada da manhã. Marcos, num relato vivo
e sintético, nos mostra Cristo na casa de Simão e André curando en-
fermidades.
CRISTO, OS CRISTÃOS E O SOFRIMENTO
Sugestões para a Homilia
Introdução
Cotidianamente deparamo-nos com a realidade do sofrimen-
to. Um ente querido nosso nos deixa, familias vivem dramas
sérios com os filhos, lares são desfeitos, inquietações morais e
materiais se abatem sobre os homens, a violência pareee nos
tirar o gosto de viver, povos inteiros vivem o drama da guer-
ra que mata seus filhos e destrói bens adquiridos com suor,
milhões de seres humanos vivem a fome de pão e a miséria
de bens, deparamo-nos com nossas próprias limitações e pe-
cados. A doença e a enfermidade flsicas se apresentam como
fardos pesados que mal e mal conseguimos carregar. Por que
tudo isso?
Corpo
1. Teria sentido o sofrimento?
Normalmente falando o sofrimento é um absurdo e a morte
um enigma inexplicâvel. Jó faz exatamente essa experiência hu-
mana da impotência do homem frente ao sofrimento. A vida
na terra é uma luta e o ser humano vive suspirando por uma
267

sombra onde possa descansar. Primeiramente devemos dizer que
o homem é criatura. Como criatura, pertencendo ao mundo
criado, ele é limitado. Está sujeito ao desgaste do tempo. De-
ficiências físicas e defeitos interiores uão podem ser atribuídos
ao Senhor, mas ao fato de o bom.em ser criatura. Até certo
ponto podemos compreender que a natureza chegue mesmo a
1 produzir aberrações de seres que nascem com defeitos físicos
ou morais. Não precisamos e não devemos atribuir isso logo
l
1
l
a Deus. Mas não resta a menor dúvida de que as pessoas que
vivem em enfermidades ou que se defrontam com seus filhos
que nascem doentes ficam perplexas. Em segundo lugar deve-
1 remos dizer que nossos defeitos morais provêm de nosso co-
ração que é dividido, dilacerado, rasgado, pecador. Infligimos
males aos outros e os outros nos oferecem nossa porção de so-
frimentos. Muitos males têm como única fonte o coração mau
do ser humauo, marcado pelo egoísmo, pelo desejo de ter, pelo
esquecimento do outro. Quando os homens conjugam suas forças
para fazer o mal tornam a vida de muitos um verdadeiro vale
de lágrimas.
O homem do Antigo Testamento compreendeu que o mal
não provém de Deus e, no relato do pecado original, mostra
que o mal nasce do coração dos primeiros homens e de todos
aqueles que os sucederam no tempo. Muitos dos piedosos de
Israel como os orantes dos salmos e Jó ficaram, no entanto,
perplexos e não encontraram explicação satisfatória que justi-
ficasse a presença do mal. Nossos contemporâneos, muitas ve-
zes, têm dificuldade em crer em Deus precisamente pelo pro-
blema do mal que assume dimensões e proporções cósmicas em
nossos dias. · qualquer sofrimento do corpo e da mente humana. Engajar-se
2. A resposta de Deus em Crifilo
Qual seria a resposta que Deus tem a dar a este problema
em seu Filho, Cristo Jesus? Primeiramente devemos afirmar que
Jesus de Nazaré se mostra compassivo diante de toda espécie
de sofrimento. São incontáveis os casos relatados pelos evan-
gelistas: ele chora diante do túmulo de Lázaro, ressuscita o fi-
lho da viúva de Naim, cura os leprosos do caminho, acolhe
corações doloridos co.mo o da mulher pecadora, expulsa demô-
nios e, como nos diz Marcos no evangelho deste domingo, cura
a sogra de Pedro. Insinua assim que sua missão é curar o
mal. No mundo novQ que está instaurando toda. lágrima deverá
ser enxugada e os homens não terão mais que defrontar-se com
a realidade da morte. O sofrimento para Cristo é um mal e
268
f
como tal precisa ser debelado. Nesta linha podemos afirmar que
os cristãos se esforçarão, enquanto estiver a seu alcance, por
extirpar toda sorte de sofrimento da face da terra.
Mas qual a resposta de Deus ao sofrimento na história
de Jesus? Ela é misteriosa, mas forte;. O símbolo . do cristia-
nismo é uma cruz, instrumento de suphcm e de sofrimento, e o
Cristo que sempre impressionou a todos os homens é o Cristo
das dores da sexta-feira santa. Deus não tem outra resposta a
não ser esta: na luta de todos os dias, na cata da verdade, do
bem da defesa do homem e na instauração do Reino de Deus,
Jesu~ teve de guardar a fidelidade que o le~ou até o d?m de
sua vida no alto de uma cruz. E desde entao todo sofnmento
encerra um valor de redenção. A paixão e morte de Cristo fi-
caram sendo símbolÓ e penhor da vida por mais paradoxal que
essa expressão possa ser. Viver as limitações, ·.os dramas, as
frustrações, as dores da vida pode signifii:ar para o cristão,
como significou para Cristo, mistério de Vida. A resposta. de
Deus ao sofrimento humano é que ele mesmo, em seu Filho,
se tornou sofrimento. Ele não tinha beleza nem formosura, era
desprezado como um condenado. Mas o grão de trigo preci-
sava morrer para poder dar fruto.
3. O cristão e o sofrimento
,·
Cabe ao cristão lutar com todas as veras para extirpar os
sofrimentos físicos da face da terra. A medicina, a técnica deve
poder continuar seu trabalho em vista da minoração de todo e
na linha de uma luta pela extirparção do sofrimento da face
da terra é colocar-se na linha de Cristo que não aceitou o so-
frimento como um fatalismo e como algo bom. Importaria que
nações e governantes envidassem todos os esforços para que
as conquistas da técnica cirúrgica estivessem ao alcance de mui-
tos. É missão dos cristãos apoiar e promover todos os orga-
nismos nacionais ou internacionais que defendam a saúde e que
lutem por melhores condições de alimentação e de higiene. Ê
tarefa da Igreja denunciar todas as engrenagens dominadoras
que façam o homem sofredor e infel~. O mal moral do pec.a.do
é responsável pelo sofrimento de muitos. No mundo reconc1ha-
do de Jesus Cristo o coração novo do homem não causa mais
sofrimenao aos outros. Nessa nova ordem de coisas, nesse mun-
...
~
do marcacl,o pelo fraternismo, os males advindos do egoísmo e
da ânsia do ter seriam supressos•
269
 • •
Uma vez feitos os empenhos necessanos para debelar o
mal físico e evitar os sofrimentos advindos do coração do ho-
mem fica àinda o mal presente entre nós. Cabe então ao .~ris­
tão saber assumi-lo à maneira de Jesus de Nazaré. Nunca po-
deremos extirpar totalmente do cristianismo a sombra da cruz
de Cristo. Os grandes homens da fé foram aqueles que sou-
beram assumir suas limitações e se associaram aos sofrimentos
de Cristo. Nisto consiste exatamente nossa participação no Mis-
tério Pascal.
Conclusão
. . O últin:io culpado. pelo sofrimento é o Maligno. Com a vi-
tona de Cnsto o Mahgno e a morte foram derrotados e inau-
gurou-se uma nova terra. Nunca percam os cristãos de vista o
fato de que o jnsto sofredor se acrisola e se prepara, pas-
sando por entre as coisas que passam, para a trar.sfiguração
de seu ser.
Almir R. Guimarães, O.F.M.
Petrópolis, RJ
1'
\ podem representar uma ameaça. Dai normas bem concretas para afastar
í
1.
270
'
I'
'
Sexto Domingo do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Lv 13,1-2.45-46
<Ele serd levado a Aarão, o sacerdote»
No Novo Leciondrio Trienal das Missas Dominicais e Festivas há
somente duas leituras de Lv e elas são lidas nas .Missas do sétimo res-
pectivamente sexto Domingo do Ano A e B, que nem sempre são ce-
lebradas. A leitura .de hoje consiste em quatro versicu1os de um con-
junto literário de cento e dezesseis versículos (13,1-14,57). Esta ma-
neira de tirar textos de seu contexto pode dar uma impressão injusta
sobre o tratamento que no povo de Deus do Antigo Testamento se
dispensava a pessoas com doenças da pele. Teria sido um tratamento
discriminatório, uma expulsão sumária e impiedosa, que documentaria
uma mentalidade muito primitiva.
Contra esta impressão está o fato de que se dedicam quarenta e
quatro versículos à descrição das consultas que, antes de se chegar
à segregação formal da sociedade (vv. 45-46), hão de ser feitas por
ninguém menos do que «Aarão, o sacerdote, ou por um dos seus fi-
lhos sacerdotes> (v. 2). Acrescente-se que este capítulo que trata da
segregação é seguido por um outro dedicado à readmissão à sociedade
das pessoas curadas de Suas doenças. Antes de serem readmitidas, as
pessoas são submetidas a vários exames, de novo aos cuidados dos
sacerdotes. A própria reintegração na comunidade é urna celebração
circunstanciada com purificações, unções -eom óleo e sacrifícios. No povo
de Deus do Antigo Testamento, pois, não se fez pouco dos leprosos
e outros enfermos da pele. Mais, talvez, do que no novo povo de Deus.
Diz-se que se podem questionar os motivos deste tratamento com-
plicado. As concepções depositadas nas leis de Lv 13-14 documentariam
cuma menta1idade muito primitiva, ou até supersticiosa» (OAC, Vol. 2,
p. 252). Resquícios de superstição podem-se encontrar na prescrição de
soltar um pássaro vivo (cf. 14,7.53). «A religiosidade popular dos se-
mitas- viu facilmente a causa da doença na presença de maus espíri-
tos alados. Os pássaros ocupam o lugar deles: um deles é sacrificado
e o outro é solto> (Cazelles, 69). Mas estes resquícios de superstição
pertencem a um ritual muito arcaico que funciona em Lv 13-14 e no
resto de Lv em um contexto literário e teológico novo. As diversas
camadas literárias e teológicas superpostas na história da tradição e
redação de Lv dificultam o devido entendimento do livro e da legisla-
ção sacerdotal a respeito da pureza e impureza cultuais. Expressa-se
nelas ainda um tremor como que existencial diante das realidades limí-
trofes da existência humana, a saber, aquelas que se relacionam com
a sua origem (sexualidade e nascimento; d. Lv 15 e 12) e o seu fim
(en!ermidllde e morte; c!. Lv 13-14). cEstas realidades experimentam-
se carregadas de forças misteriosas, transcendentes ao homem, que lhe
estes perigos. Em um estádio posterior, quando, no culto, se experimen-
tam as possibilidades de entrar em contato com a divindade, todo este
complexo é visto em luz nova, a saber, como contrário a De~ de tal
modo que a pureza conforme as normas já conhecidas exige-se agora
para poder parti~ipar do culto> (Vink, p. 48).
271
 Que a lepra era cons;derada uma investida >dos poderes da morte
na vida humana deduz-se dos sinais de luto que deve manifestar, a
saber, «as vestes rasgadas» (v. 45). Sentiu-se que quem ou aquilo ·que
traz as marcas da morte é incompatível com a presença de Deus vivo
e há de ser mantido longe da fonte da vida, para que esta não pe-
riclite. «Fundamental para o entendimento de Lv como um todo há de
ser a grande noção do que significa o culto nas tradições sacerdotais:
a possibilidade de segurança em uma existência de todos os lados amea-
çada; esta possibilidade é dada por Deus e através dela abre-se ca-
minho para aprOximar-se de Deus, cuja cólera e pragas, do contrário
destruiriam o homem inclinado ao mal» (Vink, p." 14). ' látrica e nem razão de escândalo, podem-se comer tranqüilamente (vv.
Dentro do mesmo contexto literário de Lv., a teologia alcança a
1
profundidade de, c. 19. Neste capitulo a pureza-, ou a santidade não é
vista como uma qualidade cultuai exigida legalmente de coisas e pes-
soas, mas corno, um atributo de Deus. Revelado~ dinamicamente na his-
tória da salvação, desde a libertação do Egito ;(cf. 19,36), ele é pro-
posto ao homem' como exemplo e -arquétipo do ,agir humano. Revelado
e comuriicado ao homem como principio de ação divino-humana o faz
participar da aç~o salvífica de Deus que atinge a todos, mas de pre-
r
ferência os mais: necessitados e margina1izados, tl quem pertencem tam-
bém os leprosos. A cura dos leprosos faz parte da esperança mes-
siânica, do judalsmo do tempo antes e durante; a vida de jesus (c!.
Mt 11,5; Lc 7,ZJ.). . compreende agora pagãos, judeus e l(rjstãos. Até ali a divisão para ele
Bibllogr4fla: Os comentãrlos de V 1 n .k e C a z e 1 J e s; P.-M. O a 1 o p 1 n La
sltuatlon tlu Iépreux dans l'Ancfen Israel (Lv 13,1·2.4~6), em: AdS 11/37 ci97t)
42-47; S t r a e k·B í 11 e r b e e 1c, IV/2, p. 745-763 (Excurso sobre lepra e leprosos).
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Segunda Leitura: 1Cor 10,31-11,1
«Sede meus imitadores, como eu mesmo ô sou de CristD>
1 qüência, a imitação dos santos: um caminho para chegar a Cristo; -
No contexto aborda-se o assunto das carnes sacrificadas com suas
questões práticas, ·o .qual precisa de uma decisão (10,14-11,1). Não é
possível fazer conviver a participação no Corpo de Cristo (w. 14-17)
com o ser comensal do demônio (w. 18-22). Paulo trata de explicitar
autenticamente a liberdade face aos casos particulares (w. 23-30). Ele
não é dos que <se detêm milito em conselhos ::-casuísticos particulares.
Prefere dar atenção mais ampla e profunda ao~ assunto em geral sob
o prisma do universal. Trata-se de ver o que deva prevalece; em
qualquer circunstância. O problema são as carnes sacrificais: podem
ser comidas pelo cristão?
O Apóstolo manda que se aplique o que é essencial para um
cristão a qualqtier comida e bebida ou atividade, sem deter-se, oomo
quer que seja, só em atos religiosos. Para o cristão, tudo estâ -funda-
mentalmente relacionado a _Deus; logo, o batiZado deve glorificar a
Deus em tudo; Onde estiver, faça o que fizer - coma ou beba exerça
atividades humanas, faça uso correto das coisas que o Cri;dor lhe
confiou - o cristão encontrará Deus em tudo isso e terá motivo para
render-lhe homenagem e gratidão. Inclusive, setltirá a maior felicidade
ao descobrir qu·e, assim; está se realizando da· maneira mais sublime
isto é, glorificando a Deus. , '
272
Os vv. 23-33 resumem a solução concreta e prática ao caso de
consciência criado com as · carnes imoladas aos ídolos. Estas podem
ser comidas, jâ que nada envolvem de sagrado. Entretanto, surgindo
a possibilidade de escândalo ou de desedificação para alguém, deve-se re-
nunciar à própria liberdade em favor da caridade. Tudo é licito, po-
rém nem tudo é conveniente, nem tudo edifica; ninguém busque o seu
próprio interesse, senão o do outro (w. 23-24). A caridade não busca
as suas coisas (13,5) e, quem as busca, não procura as de jesus Cris-
to (FI 2,21). Quanto às carnes imoladas aos ldolos: estes não são
nada, aquelas nada encerram de sagrado. Não havendo intenção ido-
25ss). No contexto próximo anterior '(w. 28-30), põem-se restrições à
liberdade, quando intervém o escândalo de outrem menos esclarecido.
Com isto, nada se abstrai ao principio da liberdade de consciência.
É apenas uma renúncia do mesmo em favor da consciência mais fra•
ca dd próximo, um ato de sensibilidade e de amor. Para que, em caso
de e§cândalo, dar ocasião a que os' fracos critiquem minha liberdade
de co,nsciência? Para que dar ocasião a que me censurem, quando posso
comer dando graças a Deus? ;
O v. 31 mantém-se na mesma direção do conselho anterior: não
dar ocasião a escândalos e a criticas. A glória de Deus é que deve
ser o critério de nossa conduta. O mundo religioso de Paulo (v. 32)
fora: _pagãos e judeus. A Igreja de Deus, em Corinto, contradistingue-se
tanto do mundo pagão quanto do judaico. Com liberdade apostólica
(v. 33), Paulo se oferece qual modelo de renúncia, qual pai que fala
a seus filhos. Quer agradar a todos, intenta não a sua vantagem mas
a dos outros, em função da salvação;
!Cor 11,1 liga-se melhor ao capitulo to, do qual é uma conclusão
geral: A importância teológica, ascética e histórica é notável: - a
imitação dos santos é vâlida e licita· na medida em que eles reprodu-
zem ·a vida de Cristo e servem parà imitâ-lo, tornando-se, em conse-
a imitação dos santos, proposta pela Igreja, tem aqui a sua origem,
na imitação de si que Paulo exige de seus fiéis; - Cristo assume
aqui um sentido histórico, abraçando toda a sua vida terrena, a qual
nos é apresentada como causa exemplar, em prãtica na Igreja desde
os apóstolos. A frase: •Sede meus imitadores ... • contém o principio
da imitação no sentido do seguimento, e o do seguimento na linha da
imitação. A comunidade olhará para o exemplo vivido pelo Apóstolo,
já bastante conhecido. dmitar> é ouvir a Palavra e observar como
ela é concretizada na vida: ambas as partes se ilustram mutuamente.
jesus dera o exemplo. Atrás da conduta e palavras do Apóstolo as-
soma a figura de jesus. Com efeito, ele resumiu em si a vida de
Cristo, não se comprazendo a si mesmo (Rm 15,3) e se entregando
à morte por todos, embora não o percebessem. Assim entendeu Cristo
a sua missão: cumprir a profecia sobre o Servo de Javé (Is 53). Pode-
se concluir que Paulo sempre teve em mira este padrão, embora nem
sempfe o expressasse abertamente.
• P. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
273
~,
t Terceira Leitura: Me 1,40-45
«Movido de compaixão jesus lhe disse: Quero, s2 purificado>
1. Explicação do contexto
Quanto ao contexto é mister observar que a cura do leproso (Me
1,40-45) segue logo dePois do -e:dia de Cafarnaum» e s~rve para ilus-
trar o desenlace daquele dia, a salda de Jesus ~a ~ua cidade (1,~8) e
sua atuação na região da Galiléia (1,39). É a primeira de uma. série de
ilustrações, todas elas bastante elaboradas e, por fim, resumidas pelo
csumário> da atividade de Jesus em Me 3,7-12, antes da escolha d.os
seus disc!pulos Intimas, os apóstolos. Todos os :xemplos que Me cita
na seção 1,40-3,6 são marcados por uma novi?ade J?rovocadora. O
resultado não se faz esperar: as autoridades decidem livrar-se de Je-
sus (Me 3,6). Os títulos dos episódios mostram seu caráter provocador:
Jesus cura um leproso, impuro por excelência (l,4o..4?); Jesus perdoa
pecados (2,1-12); Jesus chama um pecador ao seguimento (2,13-14);
Jesus tem comunhão de mesa com publicanos e pecadores (2,15-18).;
jesus critica o jejum em nome da realidade nova (2,18-22); J~sus. cn-
tica a mesquinhez com que é encarado o sábado (2~28);. i;na1s mnda,
ele opera uma cura no dia de sábado (3,1-6). Razoes su!1c1entes para
provocar o ódio das autoridades (3,6). Só duas considerações a r~s­
peito desta seqüência: 1) O evangelho de Me é, realmente, uma «His-
tória da Paixão de jesuS» provida de uma longa introdução, como disse
Kãbler· as ralzes de sua Paixão e Morte jã estão af. 2) A atuação
salv!fi~a de Jesus não tem nada a ver com paternalismo bondoso ( dis-
tribuir milagres); os seus milagres, embora certamente sejam encar_na-
ções do amor humano de Deus. são, ao mesmo tempo, provocaçoes,
desinstalação dos conceitos estabelecidos, destruição de tabus (leprosos,
publicanos ... ) . Jesus vence o e anátema> do AT, a exclusão de pessoas
e coisas por medo. Ele é a novidade que irrompe e vence. As antigas
provisões tornam-se obsoletas. Não se coloca vinho novo em odres
velhos (Me 2,22): esta é a idéia central, o que se pode constatar quan-
do se considera a estrutura literária, que concentra tudo em redor da
comunhão de mesa com os pecadores, ocasião em que jesus proclama
oficialmente a nova economia do Reino:
1,39: sumário
1,40..45: cura do leproso
2,1-12: perdão dos pecados
2,13-22: Jesus com os pecadores
2,23-28: questão do sábado
ir vocação
co!'vívio
<vmho novo•
3,1-6: cura em dia de sábado
3,7-12: sumário
2. Explicação de Me 1,40-45
A presente narração é fortemente marcada pela intenção teológica de
Me, ao ponto de provocar algumas dificuldades; o pregador tenha cons-
ciência disto. O começo é normal, porém parece que o leproso tr""'!"
gride a severa separação que a Lei mosaica impôs (Lv 13, e!. t• lei-
tura). A ra~ão desta transgressão está na conlianFa que. o hon;ie~ t~m
em Jesus (v. 40b). Jesus, por sua parte, transg!1de mmto m'!'s. o m-
terdito: ff)CQ no leproso, tomando-o pela mão. O texto da mmorrn dos
274
manuscritos diz que Jesus fez isto movido por compaixao (v. 4la), e
seria perfeitamente normal; alguns manuscritos, porém, lêem eirado>; nes.
te caso, sua ira poderia ser dirigida: a) contra o espírito imundo, causa
da doença (cf. l,24s); b) contra a dureza da Lei; ou e) menos pro-
vavelmente, contra o homem que veio até ele sem autorização dos sa-
cerdotes (se jesus fosse tão observador da Lei, não teria tocado no
homem). f: provável que a lepra era considerada como um espírito imun-
do: a formulação de v. 43 poderia tão bem servir para a expulsão de
um demônio, como para a cura da lepra. Tem-se a impressão de que
Me ou a sua tradição, depois de ter mencionado a purificação da le-
pra (v. 42), a contam novamente como se fosse um exorcismo, pois o
v. 43 se traduz, literalmente: «E profundamente comovido contra ele,
expuJsou-o imediatamente». É possível que Me, ao elaborar os dados
tradicionais da história, tenha interpretado esta frase como despedimento
do homem, conservando, por descuido, o termo «profundamente comovi-
do contra ele», originariamente relacionado com o espírito imundo. Tam-
bém nos vv. 44-45 aparece uma certa tensão entre tradição e redação.
O mostrar-se aos sacerdotes parece uma maneira tradicional para ter-
minar semelhante história: confirmação da cura mediante a prática pres-
crita pela Lei. Porém, tal ordem não se combina facilmente <:om «Vê
que não digas nada a ninguém» (v. 44), expressão característica do
segredo de jesus, que Me gosta de salientar no seu evangelho. Pois
jesus não é o Messias conforme os conceitos humanos, mas o Filho
de Deus, cuja atuação fica um mistério para os homens (cf. 4° dom.
comum). Também, é de se perguntar se Me entendeu as últimas pa-
lavras do v. 44, «em testemunho para eles», no sentido óbvio, de que
o homem devia testemunhar sua cura; ou no sentido que condiz com
a tendência teológica do contexto todo (cf. supra), de que este teste-
munho seja contra eles e sua preocupação legalista; é neste último
sentido que a mesma expressão é empregada nos outros textos de Me
(6,11; 13,9-10). Neste caso, conforme o entendimento de Me, o homem
não deveria fazer publicidade a respeito de jesus como taumaturgo,
pois isto só Jeva a ambigüidade e mal-entendido; mas seria testemu-
nha do Evangelho, da boa-nova que se realizava na atuação de jesus,
superação das antigas disposições legais, pusilânimes embora de origem
mosaica. Seja como for, desde que o homem aparece entre os cidadãos,
a notícia corre cerno fogo na palha. . . jesus, evitando o tumulto da
multidão - e, apesar de isto condizer também com a teologia de Me,
não devemos duvidar que corresponde à realidade histórica, em que a
teologia de Me está inspirada. . . - se retira nos lugares desertos, lu-
gares da nova salvação, superior à que começou no deserto do Sinai,
com Moisés; pois atinge também aqueles que a Lei de Moisés ex-
cluia do povo ...
3. Lugar na liturgia
A ligação com a primeira leitura é evidente. A própria liturgia
sugere a dinâmica de ver a radical novidade que a presença e atua-
ção de jesus significa. Para a homilia pode ser interessante explicar
que o AT não é apenas a situação que jesus encontrou ao assumir
sua missão, mas a situação de sempre, ao redor de nós e em nós
mesmos: discriminação dos mais deserdados, marginàlização como se se
tratasse de lepra à antiga... Nesta situação deve ressoar a palavra
de fé: cSe queres, podes purificar-me>, prescindindo de todos os dis-
275
 positivos legais; e a palavra da exousia, da autoridade misteriosa do
Filho de Deus: e.Quero, sê purificadol>.
Bibliografia: OeraJ: Cf. 30 Domingo Comum. Especifica: M 1 n e t te d e T l 1-
1 esse, O. Le secret messlanique dans l'évangile de .M.arc. Cerf, Paris 1968, p.
41-51, 54-69(!); T r 111 J n g, ,V. (N.T. - Comentãrlo e Mensagem, 2/1), p. 59-62;
Se h m 1 d, J. {Comentãrfo de Ratisbona, 2), ad 1,45 (lepra) e 8,3 (proibição de
falar).
Johan Konings
Porto Alegre, RS
Tema Principal
COM JESUS JA SE INAUGUROU A NOVA SITUAÇÃO DO HOMEM
Sugestões para a Homilia
Introdução
O Reino de Deus se constrói contra o Reino deste mundo.
Assim como o mundo se encontra, não agrada a Deus. Ele é
decadente, pois é marcado pela miséria física, pela desintegra-
• ção da personalidade, pela marginalização de pessoas. Há in-
suficiências que pertencem ao processo do mundo dentro da
evolução, distante ainda do seu estádio definitivo quando culmi-
nar em Deus. Estas insuficiências têm que ser assumidas como
realidades inevitáveis a quem peregrina e ainda não habita a
pátria da identidade e da perfeição. Mas há males que nascem
da maldade humana, da insensibilidade face à dor do próximo
e do egoísmo que discrimina pessoas e marginaliza situações.
É -0 caso narrado no presente evangelho: o leproso é afastado
do convívio humano como se fosse habitado por um espírito
mau; não lhe bastava a solidão da lepra; sofre sob a solidão
do desprezo e da irrisão. Esta situação não agrada a Deus.
Reino de Deus, cerne da pregação de Jesus, implica numa
r<1dical sanação da condição presente do mundo. No Reino de
Deus não haverá mais choro nem lágrima, não vigorará mais
enfermidade nenhuma nem discriminação de qualquer sorte. En-
fim irromperá a plenitude da criação e a absoluta realização
do homem todo inteiro.
Corpo
1. Com jesus o Reino já irrompeu porque leprosos são curados
Com Jesus jâ começou a se realizar de forma visível e
consciente o Reino de Deus. Os milagres todos visam mostrar
esta boa-nova. Eles não querem tanto evidenciar que Jesus é
o Enviado do Pai quanto deixar claro que Ele é o mais forte
que vence o forte. Ele revela que tem poder sobre a dimensão
276
sinistra da dor e da m1sena. Por isso cura, atende aos pobres,
põe de pé aleijados e ressuscita mortos. Estamos diante de si-
nais que apontam para o advento do Reino.
Entretanto o Reino de Deus não consiste só em curas. Mui-
tos ontem e hoje alimentaram e continuam alimentando uma
compreensão milagrosa da nova ordem querida por Deus. Pre-
gam um cristianismo reduzido às necessidades básicas do ho-
mem, da saúde, do amor, do dinheiro. Criam-se tendas dos
milagres, inventam-se orações fortes e organizam-se bênçãos mi-
lagrosas. Estas formas nascem da indigência humana, clamando
por salvação. Jesus com seu Reino quer atender também a isto.
Mas não coloca em tais eventos o peso de sua pregação. Os
milagres são sinais da presença do Reino, não são o Reino já
realizado; são antecipações que nos dão o gosto da verdadeira
realidade que ainda está para chegar. Mais importante do que
ver milagres é converter o coração, abri-lo para a justiça, sen-
sibilizá-lo para o serviço aos outros. Quem procura viver as
bem-aventuranças - ser pobre, solidário com os que choram,
manso, faminto e sedento de justiça, misericordioso, limpo de
coração, pacífico, paciente na perseguição - este já começa a
viver no Reino de Deus. Nele já está se realizando o novo céu
e a nova terra. Evidentemente nem tudo já foi inserido no
Reino, porque a criação continua ainda a gemer, os homens
a sofrer e as estruturas sociais a marginalizar. Mas o princi-
pal já ocorreu.
Porque é assim entendemos que Jesus peça ao leproso
curado que não diga nada a ninguém. Havia o risco real de
que os judeus entendessem o Reino apenas como a satisfação
das necessidades primordiais do corpo.
2. O Novo Testamenlo já foi inaugurado mas o Anligo ainda não aeabou
Com Jesus, particularmente com sua ressurreição, o ·Reino
jâ se faz realidade dentro de nosso velho mundo. Por isso di-
zemos que vivemos sob o regime do Novo Testamento. Existe,
objetivamente, um fermento novo dentro da massa deteriorada
da criação com força de tudo transformar. Entretanto conti-
nuamos a viver também dentro do Antigo Testamento. Este
não é um tempo passado e já superado. Ele constitui uma con-
dição humana ainda imperfeita, ainda pervadida de pecado,
ainda necessitada de libertação. Neste sentido encontramo-nos
até o presente no advento. Os tempos são maus. Continuam
os leprosos que para nós hoje seriam as classes empobrecidas
e marginalizadas.
277
 Face aos males que marcam a nossa condição de Antigo
Testamento devemos, à imitação de Jesus e do evangelho des-
te domingo (Me 1,40-45), alimentar três atitudes. A primeira
é de compaixão e até de indignação. Jesus se comoveu diante
do leproso. Não ficou insensível. Contra o que a lei prescrevia,
obedeceu à lei do coração e do amor: estendeu a mão e tocou
no enfermo (v. 41). Quem não é sensível às necessidades do
irmão, não poderá amá-lo. Devemos até alimentar uma indig-
nação ética face às misérias humanas, especialmente com res-
peito àquelas provocadas pela injustiça como o empobrecimento
e a violação dos direitos do pequeno; quem n~o se indigna,
possui um coração pequeno; e um coração pequeno é incapaz
de comprometer-se com o oprimido e arriscar sua vida pela
libertação dos irmãos humilhados. Na raiz de toda vontade de
mudança e de toda lutá pela justiça se encontra a chama viva
da indignação ética.
A segunda atitude é a súplica: «Senhor, se quiseres, tu po-
des limpar-me» (v. 40). É a situação de Antigo Testamento
que clama pela irrupção do Novo. Deus é senhor da vida e
da morte, da saúde e da enfermidade. Ele pode inaugurar a
ressurreição e antecipar·· a situação libertada do homem no Rei-
no de Deus. «Se tu queres ... » Não podemos forçar. . . Pode-
mos suplicar. E Deus que escuta o gemido dos filhos queridos,
muitas vezes, se compadece e nos poderá dizer: «Eu quero, sê
limpo» (v. 41). Talvez não seja uma intervenção miraculosa,
mas o médico adequado, o remédio exato, a reação excelente
do corpo, o tempo propício. Para alguém que tem fé, trata-se
de um sinal que aponta para a realidade do Reino de Deus.
A terceira atitude é a paciência histórica. Pode ocorrer que
a súplica não foi atendida na Iinlia de nosso desejo. Ao in-
vés de participarmos das sementes da ressurreição, somos con-
vidados a compartilhar da paixão do Senhor. Carregamos a
dor, sofremos a doença e penamos na noite da tentação como
Jesus. Somos peregrinos e mergulhados nas promessas do An-
tigo Testamento. Ainda assim podemos viver da• esperança do
Novo Testamento, pois é pela esperança que somos salvos (Rm
8,24). Precisamos da paciência histórica e integrar em nossa
vida as forças da morte, na certeza de que a morte já foi ven-
cida e certos das palavras do Senhor: «na vossa paciência pos-
suireis as vossas vidas»- (Lc 21,19).
Leonardo Boff, O.F.M.
Petrópolis, RJ
J trário, entristeceu a Deus e causou-lhe canSaço.
278
Sétimo Domingo do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
'
.frlmelra Leitura: Is 43,18·19.,21·22.24b·25
<Sempre sou Eu quem devo não mais me lembrar de teus pocado11>
Os comentários consultados dividem Is 43 em vários oráculos iso-
lados, alegando' como critério a fórmula introdutória: cEis o que diz
o Senhor> (43,1.14.10),. Certos indicies literários e temáticos jusfüicam
tratar estes oráculos junto com aqueles de Is 44,1-5 e 6-8 (c!. a mesma
fórmula em 44,2 e 6) como uma unidade em que cada oráculo desem-
penha uma função. Estes indicies são, por exemplo, a repetição da in-
terpelação: «Vós sois minhas testemunhas» (43,10.12; 44,8); a mesma
maneira repetidà: com que Deus se apreseiit~ em 43,11 e 25: cSou Eu}
sou Eu . .. » Em uma repetição progressiva desenvolve-se o tema da
libertação da e8cravidão do Egito e aquela do cativeiro babilônico.
Fala-se destas libertações em 43,2; 43,16-20 e 44,3-4. Em 43,2 em ter-
mos muito gerais e metafóricos; em 43,16-20 em termos diretos, alu-
dindo-se claramente aos eventos históricos; em 44,3-4 em termos es-
pirituais. Certamente nos oráculos de c. 43, mas possivelmente também
no oráculo de e. 44 encontra-se o contraste que deriva da diferente
situação histórico-geográfico-climática. O profeta lembra o primeiro êxo-
do (43,16-17) e profetiza um novo êxodo (43,19b-20). Para possibilitar
o primeiro êxodo, Deus abriu um caminho pelo mar parando as águas
(43,16); no novo êxodo Deus fará o contrário e abrirá um caminho
pelo deserto, fazendo nele jorrar água (43,19b-20), O deserto evoca a
associação de calor que queima tudo, isto é, de fogo. Por isso o con-
traste em 43,2 assemelha-se ao contraste entre os dois êxodos: «Se
tiveres de -atravessar água, estarei contigo. . . Se caminhares pelo fogo,
não te queimarás ... ~ No oráculo de 44,1-5, omite-se a alusão ao pri-
meiro êxodo e ,espiritualiza-se o novo êxodo: <derramarei água sobre
o solo sequioso. . . derramarei meu espírito sobre tua posteridade . ..
(43,3). Quase se diria: o novo êxodo é visto como um batismo em
ãgua e espírito 1
Nestes orâcUlos não somente presta-se :atenção à parte que cabe
a Deus, à diviria ação salvífica no passado' e no füturo, mas também
à parte que cabe ao povo. O seu desenvolvimento está ligado à inter-
pelação: cVós sois minhas testemunhas>. Ser testemunha encerra, neste
contexto de Js 4344, não somente ter sido testemunha ocular e auricular
de certos eventos, mas também de dar testemunho dos mesmos; Encerra,
pois, além do conhecimento, o reconhecimento ou a gratidão e a ex-
pressão pública deste conhecimento e reconhecimento para que também
outros cheguem a este (re)conhecimento (cl: 43,10.21). Em outras pa-
lavras, o povo que se beneficiou dos eventos testemunhados é chamado
a expressar o conhecimento e reconhecimento em celebrações de ação
de graça, em louvor do autor destes eventos. Deus esperava esta cele-
bração (43,21). ~Mas esta expectativa foi frustrada (43,8.22-24). O povo
não somente não celebrou no seu culto a stia gratidão e o seu (re)c~
nhecimento, a sua grata lembrança (d. 43;18) dos eventos passados,
louvando e agradecendo a Deus que os realizou, mas fez até o con-
·
279
 Em uma antitese Jiterariamente genial e teologicamente comovente o
autor contrasta a ·memória do povo com a memória de Deus. Porque
o povo falhou na memória dos eventos salvíficos do passado realiza-
dos por Deus e cuja celebração traz no bojo a esperança de eventos
salvilicos ainda maiores (ci. 43,18-19a), o povo perdeu a sua dignidade
e os tltulos de sua glória (cf. 43,L3.4.6b-7.14.15) e se perdeu em pe-
cados e iniqüidades (43,24h). Para se recuperar e para se salvar da
situação ingrata do cativeiro, conseqüência da ingratidão e da não-lem-
brança do bem que Deus lhe fez, Deus há de esquecér o mal que o
povo fez, há de não-lembrá-lo, hã de perdoá-lo (43,25). E estes pe-
cados não são de ontem nem de anteontem: «Jâ teu primeiro pai pe-
cou .. .> (43,7).
Mas Deus perdoa rneS.mo, resgata de novo e agOra, sim, depois
de ter «batizado» o povo .em água e espírito (cf. 44,31), a reação à
ação de Deus será melhor, será perfeita. Por um novo recurso lite-
rário muito rico de forma e conteúdo o autor estabelece uma ecola1ia
entre o primeiro e o penúltimo oráçulo desta unidade literária Em
43,l Deus afirma: «Eu te chamo pelo nome: tu és ··meub Em 44,5
vem a resposta correspondente: •Eu sou do Senhor» (#,5). Esta eco-
lalia não suporta a interferência de vozes de outras ·divindades. Nem
da parte de Javé que é «O primeiro e o último> e fora de quem não
há outro Deus (44,6), nem da parte do povo para quem não existe
«outro rochedo> de salvação, além de Javé (44,8).
t H é r J n g j., La seconde épltre de Saint Paul aux Corlnthiens, N!uchate1 1958.
Bibliografia: Os comentários de Schoors, Penna e Fohrer. J. D. Smart,
Hlstory and Tbeo1ogy in Second Isalah, London 1967. 1'
Raul Ruljs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Segunda Leitura: 2Cor 1,18-22
«Deus t! testemunha fiel•
Paulo mais uma vez reafirma a fideJidade de Deus para com os
homens. Jesus Cristo por . sua vida levou a efeito tudo o que Deus
prometera, e desse modo foi o «sim definitivo» de Déus aos homens,
nele exprimiu-se plenamente a fidelidade de Deus, nele·' não há mudan-
ça mas só verdade. jesus ignora a duplicidade, sua palavra é certa
e definitiva. O que se exige do homem, isjo é, que seu sim seja sim,
e seu não, não (Mt 5,37; Tg 5,12), é o que Paulo afirma de Deus.
Em Cristo realizaram-se todas as profecias, nele Deus deu a sua
resposta aos homens, cumpriu e confirmou o que prometera. jesus Cris-
to é o «amém de Deus. (cf. Ap 3,14) a seu plano salvlfico. Ele é a
realização, concretização, visualização e reveJação do mistério escondido
desde os séculos em Deus (Rm 16,25). Desse modo :a fidelidade de
DeuS' garante a de Paulo, pois seria contraditório se ele desmentisse
sua mensagem com uma atitude de duplicidade. Deus é exemplo para a
vida do homem, e como ele foi fiel a sua palavra, também o homem
novo deve sê-lo, dizendo seu sim pela fé. Esta mesma fé, por outro
lado, é que leva a comunidade a concluir suas oraçõeS:, com o «aména
(cf. Rm 16,27; !Cor 14,16; Ap 5,14; 22,20). Em ou:tras palavras, o
sim da vida, que é a fé, ~coa no amém da oração. c-
AMÉM, uma das quatro palavras aramaicas conservadas na litur-
gia do Novo Testamento : significa «sim, realmente é assim,_ isto é
verdade>; afirma a fidelidade do Senhor e a fé do bom.em, e foi usada
280
por Cristo mais de 50 vezes na fórmula camém amém>, para introdu·
zir suas afirmações categóricas ao ensinar.
A liturgia tornou-se deste modo uma . confissão de fé naquele que
cumpriu sua palavra, e ao qual elevamos nossa oração de ação de gra-
ças e louvor. :e a resposta do homem fiel, à fidelidade de Deus em
jesus Cristo. Dai conclui-se que daremos testemunho da glória de Deus,
só assumindo na vida o engajamento de fidelidade expresso pelo «amém>
da oração. '
O motivo, porém, por que nossa palavra e ação é certamente o «sim»,
a verdade, não •está em nós, mas no dom que recebemos de Deus, o
Esplrito Santo. :e Ele que nos dá a certeza da verdade. Sua unção,
seu selo, que em Joel 3,1·2 fora prometido a todos, tornou-se realidade
no batismo, onde faz do homem filho de Deus e membro do povo
messiânico, e por seus dons leva o batizado, e de modo especial o
apóstolo, a ser ..1 um mensageiro fiel da merisagem de Deus em Cristo.
A formulação do texto paulino é claramente trinitária e reflete uma
convicção profunda, presente na Igreja nascente, embora não seja ainda
clara a per~oni!icação do Espírito.
O Espírito em nós é então a garantia (5,5; E! 1,13-14) da verda-
de que nos foi ·dada por Deus e pregosto da alegria celeste prometida
por Deus aos que são fiéis, aos que são «Sim, amém> (Ap 2,10).
BJbJlograjia: C a n t 1 n a n t J., Les EQlttes de St. Paul explfqm!es, Paris ]970;
Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
, Paulista, PE
Terceira Leitura: Me 2,1·12
«0 Filho do Homem tem poder de perdoar pecados na terr11>
A Critica ou História das Formos («Formgeschichte.) divide os
Evangelhos Sinóticos em um grande número· de gêneros literários. Dis-
tinguem-se, primeiro, a tradição doutrinal e a tradição narrativa. Na
primeira conservam e transmitem-se palavras :de Jesus; na segunda, obras
de Jesus e eventos que Lhe dizem respeito.• As Narrações de Milagres
pertencem claramente à tradição narrativa. Mesmo assim a cura do pa-
rall!lco de Me 2,1-12 e textos paralelos (Mt 9,1-8; Lc 5,17-26) faz parte,
conforme alguns exegetas, da tradição doutrinal; conforme outros da
tradição narrativa. Esta divergência remonta aos grandes pioneiros da
História das Formas, Dibelius e Bultmann. .Ambos separam como forma
literária própria· aquelas narrações muito brews, cujo enredo serve para
pôr em realce itma sentença lapidar de jesus. Dibelius as chama de
paríliligma e as· classifica na tradição narrativa. Bultmann as chama de
apoftegma e as coloca na tradi1ão doutrina/; O que deve prevalecer na
classificação, a ·forma Jiterária ou o conteúdo doutrinal? E claro que,
em urna classificação literária, devia prevalecer o critério literário. Deste
ponto de vista, Dibelius está mrus certo. Mas o que interessa a nós
é, sem dúvida, o conteúdo doutrinal. Ora, Ô' que a Critica das Formas
e a critica literária em geral nos ensinam é que não há conteúdo sem
forma, nem forína sem conteúdo. Uma anãl_ise mais aperfeiçoada ensi..
nou que em Me 211-12 (par.) está-se diante de uma fusão de duas for·
mas literárias, a saber, uma narração de milagre, que narra a cura
do paralítico (2,l-5a.11-12) e uma contruvérsia de jesus com os escri·
bas sobre o poder de perdoar pecados (2,5b-IO). Duas vezes repete-se
281
a locução c(Jesus) disse ao paralltico .•. ~, a saber, em vv. 5a e lOb.
Se a gente, na leitura, pula diretamente de v. 5a para v. 11 tem-se
mna perfeita narração de milagre com todos os seus traços caracterís-
ticos. Pela inserção da controvérsia dentro da narração do milagre re-
sultou uma fusão de duas formas literárias, uma narrativa e outra
doutrinal. Nesta fusão predomina de tal maneira a sentença cO Fi-
lho do Homem tem poder de perdoar pecados na terra>, que a cura
do paralítico passa · ao segundo plano e somente serve de pano de
fundo ou de enredo para ressaltar o poder de perdoar. Em outras pa-
lavras, o conjtlnto literário novo afigura-se como mn paradigma ou
apoftegma.
A esta altura já se pode perguntar: Por que arrumar tanta con-
fusão em cima de uma narração à primeira vista tão . simples, singela
e transparente? A gente faz isso em virtude do adágio aeima citado:
não há forma sem conteúdo, nem conteúdo sem forma. Destacaram.se
em Me 2,1-12 três formas, a narração da cura do paralltico, a con-
trovérsia sobre o poder de perdoar e a fusão das duas. Qual é o
conteúdo delas?
- A primeira forma, : a narração da cura do paralítico, mostra
jesus como messias, que inaugura os tempos messiânicos, preditos pelos
profetas, em que os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres
é anunciado o Evangelho• (Mt 11,3-5; Lc 7,22; cf. Is 35,5-6; 42,7; 26,19;
29,lSs; 61,1). A norração do milagre (Me 2,l-5a.11-12) transmite esta
mensagem com muito vigor. jesus é procurado pelas multidões (v. 2).
Ele lhes •anuncia a Palavra>, isto é, a Boa-Nova. O evangelista Mar-
cos repetidamente declara que jesus pregava e ensinava (d. Me 1,39;
2,2.13; 6,2.6b; 6,34; 10,1; 11,17; 12,35). Ora, em todos estes casos a
gente não fica sabendo o Que jesus ensinava, qual era o conteúdo des-
1e ensinamento. Em vez de interessar-se pelo conteúdo do ensinamento
de jesus, o evangelista Marcos dá muito valor ao fato de que jesus
«ensinava uma nova doutrina com pudeT» (1,22.27). Parece que pará
este evangelista a novidade se encontrava neste poder. Ele queria d.e-
monstrar que a palavra e . o ensinamento de jesus não eram falação,
palavra vazia, frase de efei~o, tapeação do povo simples ou propaganda
polltica. Narrando a purificação de um leproso (1,40-45), a cura de mn
paralítico (2,3-5a.11-12), a .vocação de um publicano (2,14) e dos doze
(6,7-13), a multiplicação dos pães (6,35-44~, etc., depois de ter alir~
mado que «Jesus ensinava», torna-se evidente que o evangelista Marcos
mostra muito mais interesse pela força da Palavra de Jesus e pela re-
perc.ussão que tinha sobre os ouvintes da Palavra dr;> que pelo seu
conteúdo. Ao evangeJista Marcos interessava o fato de que em jesus
de Nazaré, no Seu ensinamento, na Sua pessoa e no Seu poder, Deus
mesmo tem irrompido no mundo; isto é, que n'Ele Deus agiu para salvar.
A narração da cura do paralítico realça de uma maneira eloqüente
a fé dos que trouxeram o paralltico até perto de jesus. Não se desa-
nimaram ao verem o acesso a jesus dificultado pelas multidões. Impedi-
dos de se aproximarem de -jesus pelo caminho de fora da casa, fizeram
volta, subiram o telhado,_ abriram um buraco no telhado, desceram o
paral!tico e o levaram a jesus pelo interior da casa. jesus não resistiu
a tanta fé n'Ele. E deu-se o estalo da cura. Existe correspondência li-
terária perfeita entre as palavras de jesus e os efeitos que evocam:
jesus: clevanta / pega a tua padiola / e vai para casa>.
O paralítico: cse levantou / pegou a padiola / e foi-se à frente de
todo mundo>.
282
Este triplice paralelismo literário acentua como a Palavra de Je-
sus está carregada de poder. A triplice reação das multidões, por sua
vez, corresponde aos fenômenos constatados:
As multidões: cTodos ficaram admirados / e glorificaram a Deus, /
. dizendo: cNunca vimos coisa iguall~
- Na segunda forma literária atribui-se a jesus o titulo Filho do
Homem. Este titulo tem muitos sentidos, conforme os contextos literá-
1. rios e teológicos em que se encontra, seja no Antigo Testamento, seja
nos escritos judaicos não-biblicos, seja no Novo Testamento. Para es-
pecificar o sentido do termo em Me 2,10 destaca-se a aposição ena
terra». Conforme o Livro de Daniel e os livros apocalfpticos não-b!bli-
cos o Filho do Homem é mn ser celeste, cuja revelação na terra está
reservada ao fim do mundo. Em Dn 7,13-14 insiste-se muito no poder
com que este Filho do Homem é revestido~ O poder que ele recebe
é conforme o contexto Dn 7,10, o poder do juiz escatológico. Afirmar,
c~mo faz Me 2101 que o cFilho do Homem tem poder na terra» en-
cerra .ensinar q~e para o m1mdo e a humanidade, já começaram os
últimos tempos e 'que os poderes do mundo novo jâ invadiram o velho
mundo e que este já está caducando. Ora, o que surpreende é que Jesus
exercita este poder não para julgar e condenar, mas pa_ra perdoar.
· Isto significa que a hora da prestação de contas é precedida por um
per!odo de graça e de misericórdia. Esta doutrina sempre desagrada e .
escandaliza aos . escribas e fariseus cujas concepções de Deus e da jus-
tiça divina estão enquadradas nos parâmetros da rlgida e inflexível re-
tribuiçãu do bom ou do mau comportamento humano. A doutrina da
controvérsia entre jesus e os escribas contida em Me 2,5b-10, em última
análise é aquela de At 1042-43: cEÍe (jesus ressuscitado) ordenou-nos
que anunciássemos ao Pov'o e atestâssemos ser ele o juiz dos vivos e
dos mortos estabelecido por Deus. A ele todos os profetas dão o tes-
temunho de que todo aquele que nele crer receberá, por seu nome, a
remissão dos pecados». De fato, aplica-se a_gora, no tempo da lgreja,
a Jesus, Filho do Homem celeste em virtude de sua ressurreição, a
afirmação de Me 2,10 de que «O Filho do Homem tem poder de perdoar
pecados na terrfl> e que perdoa a todos que nele crêem como perdoou
ao paralitico de. Me 2,5. Alguns exegetas estão co1;1vencidos de que ~c
2 10: cpara que saibais», não se dirige aos escnbas da controvérsia,
Dias aos leitoreS' do Evangelho, isto é, a nós'. Argumentam que é muito
improvável que Jesus tenha apresentado aos escribas uma prova de
que Ele tem o poder de perdoar pecados•. Toda a tradição neotesta-
mentária desmente esta suposição e converge na certeza de que Jesus
sistematicamente recusou tais provas aos escribas. A versão de Mateus
confirma esta hÍpótese, uma vez que, no fim do paradigma, escreve que
ca multidão ... ·'glorificou a Deus, que deu tal poder aos hOm•TIS>. A
Biblia de jerusalém anota neste lugar: cNotar o plural:. certamente Mt
pensa nos ministros da Igreja, que receberam de Cnsto este poder
(18,18)>.
- No atual texto de Me, Mt e Lc as duas formas literárias da
narração de um milagre (2,l-5a.11-12) e da controvérsia de jesus com
os escribas (2 5b-IO), confundiram-se na forma literária do paradigma
ou apoftegma. ' Esta nova forma tem o seu próprio conteúdo. A cura
do paralitico vai a~ompan~ada do perdão do pecado~ ma.is do que pro-
va · e'Sta cura exterior é sinal e sacramento da cura interior. Devolvendo
a 'vista aos cegós, ·a pureza aos leprosos, a força aos paralíticos, a au-
dição aos surdos, a fa1a aos mudos e a vida aos mortos, jesus salva
283
 da desgraça da marginalização e devolve o pleno gozo da comunhão
e. com~icaç~o n.a _convivência humana. Ora, todas estas salvações e
libertaçoes sao sinais de uma salvação muito mais profunda e abran-
1 gente, porque - pelo perdão dos pecados - devolve ao homem a co-
munhão eom Deus. Jesus celebra esta salvação repetidamente durante
a sua !"ida terre~tre _nas refeições com os pecadores e publicanos. São
verdadeiras antec1paçoes do banquete celeste, como o exercício do po-
1 de~ de perdoar antecipa o juízo final. Marcos mencionará logo de-
pois de Me 2,1-12 uma tal refeição na casa do publicano Levi, cha-
mado para ser apóstolo (Me 2,13-17). A reação dos escribas e fariseus
é a mesma. Nã? admitem esta revelação de Deus, deste Deus que es-
colhe os parallticos e pecadores e que perdoa, liberta e salva de ver-
dade e ataca o mal não somente nas suas conseqüências, mas o atinge
nas suas causas. Esta teologia não encara jesus somente como tau-
m~turgo, nem as curas como milagres; para ela os milagres são si-
nais de que o novo mundo não surge pela condenação e destruição
do velho mund_?, mas atra!és de sua recuperação e salvação, que passa
pela recuperaçao e salvaçao do homem e do coração humano.
B/bllograjla:,, Os comentários de S eh m l d, T a y J o r, S e b w e i z e r; B. van
I e r se 1, em: Een begln", Btltboven 1973, p. 40-46; O. O ai d e Le para}ytlque
pardonné et guérJ {Me 2,1-12), em: A't!S II/38 (1970) 79-BS· H. S ç h 11 e r-H.
K ah 1efe1 d, Mk 2,1-12, em: EuE 3 (1970) 339-347. '
Raul Ruijs, 0.F.M.
Petrópolis, RJ
Tema Principal
JESUS FOI «SIM> E e O «SIM> DE DEUS
Sugestões para a Homilia
Introdução
Não é fãcil dizer sim, principalmente quando este sim en-
cerra um ato de fé e nos leva para a morte de nossos sonhos.
Mas é momentoso dizê-lo quando ele representa a nossa sal-
vação. Deus espera e pede que o digamos. Para facilitá-lo, Deus
vem ao nosso encontro com seu amor e faz-nos Seu sim per-
manente e cheio de graça. Em Cristo, o sim de Deus coincidiu
totalmente com o sim do homem. É por isso que nós, tendo
uma vez, por Adão, dito não a Deus, dizemos agora, por Cris-
to, como afirma São Paulo, sim à glória de Deus (2Cor 1,20).
Corpo
1. A promessa e a queixa de Deus
Comecemos por escutar a queixa de Deus que se confessa
atormentado pelos pecados do povo e cansado com suas ini-
qüidades: «Sou sempre eu - Cliz Deus quem deve apagar
284
tuas faltas e não mais me lembrar de teus pecados,. (Is 43,
25). Deus, naturalmente, não se cansa com as nossas iniqüida-
des e nem vive atormentado por causa de nossos pecados, mas
o profeta usa desta linguagem para dar corpo e ecoar um mal-
estar que a consciência do fiel deveria estar sentindo diante de
suas infidelidades ao amor que experimentava da parte de Deus.
Deus, para o povo, era uma promessa de vida segura e salva-
ção messiânica. Não coloca o profeta, na boca de Deus, os
anseios de felicidade e abundância com as quais o povo so-
nhava? Segundo Ele, o deserto vai florir e a estepe serã habi-
tável; o povo será alimentado e cantará Seus feitos.
A queixa de Deus, no entanto, é concretizada pelo pro-
feta porque o povo O esqueceu. Esqueceu-se dos grandes feitos
ocorridos em sua história, já não O honrava com holocaustos e
nem Lhe oferecia sacrifícios. O povo, que com Ele fizera uma
aliança de fidelidade, agora se ajoelhava diante de falsos ído-
los, nep;ando-Lhe amor, esquecido de seu juramento. Diante dis-
to, a queixa e a pergunta de Deus: Por que, Israel?
Se voltarmos os olhares sobre nós mesmos e nos colocar-
mos no lugar do Povo Eleito, talvez escutássemos a voz de
Deus ecoando em nossa consciência as mesmas promessas e
nos acusando com as mesmas queixas. Quantas vezes nos dei-
xamos seduzir por falsos deuses e colocamos nossa confiança
em enganosas e fugazes esperanças! Quantas vezes esquecemos
Sua presença e quantas vezes abjuramos o caminho de Seu
amor, tornando-nos infiéis à nossa consagração batismal! Quan-
tas vezes O negamos, para seguir e acalentar a obra de nossas
mãos! Vivemos como se não tivéssemos sido marcados com o
sinal da cruz e como se não fôssemos o templo vivo da San-
tíssima Trindade! Que espécie de sim dizemos nós? O «não»
que somos e que entristece nosso espírito desqualifica nossa
identidade de cristãos e filhos de Deus e torna justificáveis as
queixas do nosso Deus.
2. O sim do homem jesus
São Paulo definiu jesus de forma simples e definitiva: Ele
foi «Sim» e «amém» para Deus. Ele foi só e sempre sim. Os
apóstolos, na convivência com o mistério de Jesus, chegaram a
admirá-lo pela fidelidade a seu caminho e intransigência aos
caminhos de Deus, cuja vontade, que Ele só e sempre queria
fazer, Lhe norteou a pregação do Reino dos Céus. Mas não só
os apóstolos; o povo também experimentou a força da fideli-
dade de Jesus e creu em seu poder. Quando o acesso normal
a Cristo se encontrava bloqueado, as pessoas não hesitavam em
285
' :i
buscar meios extraordinários para d'Ele se aproximar. E fize-
ram, como diz o evangelho de hoje, baixar, pelo teto da casa,
um paralítico para que Cristo o curasse no corpo e no espí-
rito. O resultado foi que a multidão se encheu de profunda ad-
miração e se pôs a louvar a Deus, dizendo: «Nunca vimos
coisa semelhante» (Me 2,12) !
O sim de Jesus fez-se no dia-a-dia, na dificuldade da fé,
no suor de sangue, na obediência da cruz. Não devemos pen-
sar que para Jesus tenha sido fácil ou facilitado o caminho de
Deus. O contrário é a verdade. Quanto mais· próximo de ;Deus
Ele vivia, tanto mais sensível se fazia às exigências incontor-
.
·' náveis de Seu amor. Mas Cristo não fugiu ao confronto com os
planos do Pai e, como diz o· evangelista, pôs-se a rezar inten-
samente quando o cálice amargo de Sua vontade não podia
passar sem que Ele o bebesse. E o resultado foi que, quando
se encontrava na cruz, aparentemente abandonado por Seu
Deus, sozinho diante de Sua mãe impotente para o ajudar, com
os discípulos em fuga e imobilizado por três cravo' , venceu
mais uma vez Sua obediência, Ele renovou Seu «Sim . e con-
fessou que tudo estava bem e consumado.
Na extrema experiência da dor e da morte, quando nada
mais conta senão a força da fé, o homem conhece a verdadeira
razão pela qual viveu e colhe o fruto do caminho por ele per-
corrido. Jesus, que só e sempre fora sim a Deus, encerrou sna
vida com um sim, entregando a Deus o Seu esp!rito. E nós?
Para que sim derradeiro estamos marchando? Que sim esta-
mos dizendo? Que sim esperlfllJ.OS dizer quando estivermos em
nossa cruz? · e das providências punitivas e salvíficas tomadas por Deus, fa1a-nos
Conclusão
As promessas de Deus são de vida e Seus feitos são de
salvação. Não de vida e salvação apenas eternas. Os milagres
de Deus já começam no tempo e Cristo os realizou a bem de
Seus irmãos. Também nós somos chamados a operar o bem
e a sermos instrumentos do milagre do amor. Talvez não con-
sigamos restabelecer a saúde f!sica de um paralítico e nem, abrir
os olhos de um cego. Mas podemos encher de luz um coração
abatido e reerguer o ânimo de quem se encontra desesperan-
~ado. Se não podemos ser a força, podemos, ao menos, ser o
mstrumento do milagre. Ou, como diz Isaías: Por nossa 'ação,
do deserto brotará uma fonte e a estepe se encherá de vida
e alegria.
Frei Neylor J. Tonin, O.F.M.
Petrópolis, RJ
286
Oitavo Domingo do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Os 2,16b·17b.21·22 (Vulgata: 2,14b.15b.19-20)
cConduz/./a-ei ao deserto para falar-lhe ao coração>
i;ste texto de Oséias inaugura um novo modo de falar do relacio-
nam~µto Deus-HomemJ que se tornou corrente na tradição profética
posterior (cf. Jr 2,1-3; 2,32; 3,1-20; Ez 16; 23), foi adotado no Novo
Testamento pelo próprio Cristo (cf, Me 2,19-20) e mais tarde pela mís-
tica cristã.
Trata-se da imagem tão expressiva do amor matrimonial. Nesta ima..
gem Deus é sempre apresentado como o esposo e o povo de Israel
como a esposa. Deus é quem toma a;; iniciativas, escolhendo Israel sem
méritçi nenhum e estabelecendo com e.la uma aliança de amor. Cumu1a-a
de bens, dando-lhe beleza, riquezas e sustento, além dos filhos. Ela,
poréni, respondeu-lhe com a infidelidade. Deus, sempre fiel, tentou de
rnuitâs ·naneiras reconduzi-la à fidelidade, tentativas em geral frustradas
pela ·perversidade do povo. Finalmente, decidiu punir Israel de uma ma-
neira exemplar com o exílio, na esperança de uma renovação mais
profunda.
É comumente aceito que Os 1-3 não seria uma pura e simples
imagem Jiterãria, mas que corresponde a fatos concretos vividos pe1o
Profeta. Segundo informações de um biógrafo, Oséias deve ter-se casado
realmente com Gomer, uma prostituta a serviço de um santuário cana-
neu (1,2s). Gomer, depois de ter dado três filhos ao Profeta (1,4-8),
tornou-se-lhe infiel, como no-lo informa o próprio profeta (3,1-3). Mas
Oséias continuou assim mesmo a procurá-la, na esperança de trazê-la
de volta ao lar. Deus serviu-se desta triste experiência matrimonial de
Oséias para fazer-lhe compreender o1 doloroso drama da crônica infi-
delidade de Israel ao seu esposo Javé. Desta infidelidade do povo eleito
o Profeta (2,4-17). Suas palavras foram depois (2,18-25) reinterpreta-
das talvez pelo mesmo biógrafo, ou redator, que escreveu Os 1,1-6. O
nosso texto, portanto, compreende palavras autênticas de Oséias (2,16b.
17b) '·ao lado de acréscimos de um redator (2,21-22).
As palavras autênticas de Oséias (vv. 16b.17b) concluem um lon-
go processo de Javé contra seu poVo. Após convocar os filhos para
denunciar o adultério da mãe (v. 4), o próprio Javé inicia um processo
em que denuncia a infidelidade de Israel (v. 7). Depois anuncia as me-
didas punitivas que tomará a fim de •fazê-la retornar a si: tornar-lhe-à
inacessíveis os ídolos, seus amantes (v. 8), destruirá seus lugares de
culto, acabará com suas festas e devastará a terra (vv. 8-9.11-15) para
mostrar-lhe como é desprotegida e fraca (v. 12). Feito este trabalho
preparatório de caráter destrutivo, Deus empreenderá uma tarefa posi-
tiva, a de reconquistar o coração de sua esposa. Para que isso seja
possível, deverá afastá-la dos atrativos do culto cananeu, conduzindo-a
ao deserto (v. 16b). Foi ali que deu-se, segundo Oséias, o primeiro
encontro de amor entre Deus e Israel (9,10; 11,1-4; 13,4-6). Foi o pe-
riodo ideal em que se estabeleceu a aliança. Tempo em que Israel con-
fiava em Javé e o seguia docilmente. •A decadência iniciou-se depois da
287
 conquista, quando Israel deixou-se contaminar pelo culto idolátrico. Por
. isso Oséias considera o deserto rião tanto como um lugar de provação
(cf. Ez 20,33-34), mas como o lugar propício para Israel voltar ao
amor de sua juventude (Os 2,17b), que marcou o início da vida de
,:
Israel (11,1). Ali no deserto Deus <lhe falará ao coração> (e!. Gn
34,3; Rt 2,13) para recuperar-lhe a confiança e o amor.
1 1
Percebe-se assim que a finaiidade última do juízo punitivo de Deus
é o ret-0rno ao «primeiro amor», a restauração da comunhão de amor
e
com Deus. É nesta linha que se movimentam os vv. 21-22. Eles . anun-
ciam para os tempos escatológicos (cf. «naquele dia>, v. 18) uma nova
aliança que abrangerá tanto homens como animais. Será uma aliança
matrimonial inteiramente nova e definitiva. Javé já não tratará 1 Jsrael
como a esposa adúltera (2,4-15), mas estabelecerá com ela um· novo
;• noivado, como se fazia então eom urna moça virgem, pagando ao pai
" o preço correspondente. Deus promete a <fidelidade> e Israel «conh&-
cerá» o Senhor (v. 22), iniciando, ambos urna nova vida.
Nestes poucos versículos estão traçadas as duas linhas mestras de
qualquer renovação espiritual: o ~retorno, no silêncio e na austeiidade,
às origens inspiracionais e a necessidade de wna constante atualização.
Os fariseus apegaram-se unilateralmente à tradição. jesus, o espoSo da
nova aliança (cf. Me 2,18-22), soube valorizar o que de autêntica· tinha
o judaísmo, permanecendo sempre aberto para o «Espírito qu ~ vivifica>,
·e atualizando <a letra morta> da 'Lei (cf. 2Cor 3,6). Por isso, em Cris-
to «tudo se fez novo> (cf. 2Cor 5,17).
Bibliografia: Comentário de N. W .. W o 1 f f, Dodekapropheton li Hosea (BK,
XJV/1) 3o ed. Neuklrchen-Vluyn 1976; S. V J r g u li n-0. D a Spin e to i i, Os
Doze Pr.ofetas~DanleJ, Jntrod. à BJblla, vol. 11/4, Petrópolis 1978, 46--72.
L. Garmus, O.F.M.
Petrópolis, RJ
f 1. A passagem divíd&-se em duas parles: a explicação de uma ati-
Segunda Leitura: 2Cor 3,1b·6
«Sois uma carta de Cristo>
Paulo fala do seu ministério apostólico, mostrando que não tem
nenhuma pretensão, a não ser servir à palavra. Acusado de ser vai-
doso, ele mostra que não se orgtJlha de nada, pois sua segurança pro-
, vém apenas do fato de saber-se ministro de uma aliança superior. Sua
capacidade, que o leva a ter certeza de agir corretamente, vem de: DeusJ
de quem ele recebeu este dom.
Na época, havia muitos falsos profetas, dai a necessidade de cartas
de apresentação (e!. At 18,27; Rm 16,1; CI 4,10; 3Jo !l-12) exigidas
dos pregadores pelas comunidades cristãs. Paulo não admite tal exi-
gência, pois sendo suficientemente: conhecido dos coríntios, acha que jâ
deu provas suficientes de que era um verdadeiro profeta, anunciador
da palavra de Cristo e não um embusteirq. Para ele o que importa
é já ter demonstrado que Deus l}Je confiou uma missão, dai não serem
justas as exigências de cartas e 'lS acusações de falso elogio (e!.- 5,12).
Paulo desenvolve, então, uma idéia já presente em lCor 9,2: «o
selo do meu apostolado sois vós~. Sua carta de recomendação é a
própria comunidade. Carta esta inscrita nos corações e lida por todos
que têm oportunidade, e que contém a prova de sua autenticidade em
288
si mesma, pois foi ditada por Cristo e escrita por Paulo, não com
tinta mas com o Espírito, e não sobre pedra mas n,o coração dos
fiéis (e!, Ez 11,19; 36,26).
As comunidades fundadas por Paulo, obras do Espírito por meio
dele, são apresentações e recomendações vivas que tornam inúteis as
cartas humanas, como a Aliança no Espírito tornou inútil: a Aliança An·
liga escrita sobre pedra (cf, Ex 24,12; 31,18; 38,28s). A comunidade de
Corinto será então, por sua operosidade, uma apologia viva de Paulo, e
essa argumentação será t~to mais válida se os opositores forem os
judaizantes, que tão bem conheciam a Antiga Aliança.
Conclui-se então, que a confiança de Paulo vem da graça de Deus
presente nele. Sem a graça não se pode fazer, nem pensar coisa al-
guma para a vida eterna. :com a graça, Paulo tem coragem de ir até
Deus e se apresentar diante dele, tendo a consciência , de estar apto,
porque Deus o habilitou para ministro do Espírito que dã a vida. Paulo
põe-se assim na linha ministerial de Cristo e dos apóstolos, em oposição
aos ministros da lei mosaica e de qualquer outra lei, que ,exige mas não
dâ condições de ser observada (Rm 7,5). Pela morte de Cristo foi se-
lada uma nova Aliança, fundamentada no Espírito, e dela Paulo é mi-
. nistro (e!. Lc 22,20; !Cor 11,25). Nessa Aliança realiza-se a passagem
do que era escrito, para o que deve ser vivido no coração do homem
(Jr 31,31). ,
Blbllografla: C a n t J n a n t! J., Le.s Epltres de St. Paul expllqu!es, Parl5 1970;
H é r t n g, j., La seconde ép tre de Saint Paul aux Corlnthlens, NeuchãteJ 1958i
De la Potterte-S. Lyonnet, La vida según el Esplrltu, S~Iamanca 1967.
Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
, Paulista, PE
Terceira Leitura: Me 2,18-22
«Enquanto o esposo estiver com eles não pudl!ni, jejuar>
tude dissidente (2,18-20) e duas pequenas parábolas (2,21' e 22).
Na primeira parte mencionam-se três grupos de «crentes> que exis-
tiam no judafsmo da Palestina do primeiro século: os discípulos de
joão Batista, os (discípulos dos) fariseus e os discípulos' de Jesus. Des-
venda-se o sentido desta primeira parte seja a partir da reconstrução
da situação histórica concreta que levou à pergunta e à resposta sobre
o jejum, seja a partir do 'contexto literârio em que se encontra atual-
mente nos evangelhos sinóticos.
2. A tentativa de reconstruir a situação histórica concreta da vida
terrestre de jesus sublinha' que o tempo do verbo de Me 2,18 cestavam
jejuando> indica um determinado jejum e _não um costume. Ela encara
a menção dos (discípulos dos) fariseus como um acréscimo posterior.
Esta hipótese tem certos apoios na comparação dos textos de MI, Me e
Lc. E também alega que · um autor que conhecesse bem o ambiente
palestinense do tempo de Jesus não usaria a expressão cdiscipulos dos
fariseus», porque os fariseits não eram «mestres> ou «rabis> e não ti·
nham «discípulos» como João Batista e Jesus, a não ser que fossem
também escribas. Nesta teoria, a maneira de mencionar- «os discípulos
de joão> encerraria que o fundador, João Batista, jâ estáva morto.
O conjunto destes dados - tratar-s&-ía de um determinado jejum
dos discípulos de João Batista - levou à hipótese de que a própria
morte de João Batista teria sido o motivo do jejum de seus discípulos.
289
 conquista, quando Israel deixou-se contaminar pelo culto idolátrico. Por
. isso Oséias considera o deserto rião tanto como um lugar de provação
(cf. Ez 20,33-34), mas como o lugar pr-0pício para Israel voltar ao
amor de sua juventude (Os 2,17b), que marcou o inicio da vida de
" Israel (11,1). Ali no deserto Deus <lhe falará ao coração> (cf. On
34,3; Rt 2,13) para recuperar-lhe a confiança e o amor.
Percebe-se assim que a finalidade última do juizo punitivo de Deus
' 1
é o ret-0rno ao «primeiro amor», - a restauração da comunhão de amor
com Deus. É nesta linha que se movimentam os vv. 21-22. Eles . anun-
ciam para os tempos escatológicos (cf. «naquele dia», v. 18) uma· nova
aliança que abrangerá tanto homens como animais. Serã uma aliança
matrimonial inteiramente nova e definitiva. Javé já não tratará 1 Israel
como a esposa adúltera (2,4-15), mas estabelecerá com ela um· novo
noivado, como se fazia então eom uma moça virgem, pagando ao pai
o preço correspondente. Deus promete a <fidelidade> e Israel <conh&-
cerá» o Senhor (v. 22), iniciando, ambos uma nova vida.
Nestes poucos versículos estão traçadas as duas linhas mestras de
qualquer renovação espiritual: o 'retorno, no silêncio e na austeiidade,
às origens inspiracionais e a necessidade de wna constante atualização.
Os fariseus apegaram-se unilateralmente à tradição. Jesus, o espoSo da
nova aliança (cf. Me 2,18-22), soube valorizar o que de autêntico· tinha
o judaísmo, permanecendo sempre aberto para o «Espírito qu ~ vivifica>,
e atualizando ca letra morta> da Lei (cf. 2Cor 3,6). Por isso, em Cris-
to «ludo se fez novo> (cf. 2Cor 5,17).
Bibliografia: Comentário de N. W,, W o 1 f f, Dodekapropheton 1; Hosea (BK,
XJV/l) 3o ed. Neuklrchen-Vluyn 1976; S. V J r g u l J n-0. D a S p ln e to i i, Os
Doze Profetas~DanieJ, JntJod. à Blblla, vol. Jl/4, Petrópolls 1978, 41).72.
L. Oarmus, O.F.M.
Petrópolis, RJ
'
Segunda Leitura: 2Cor 3,lb·6
«Sois uma carta de Crisio>
Paulo fala do seu ministério apostólico, mostrando que não tem
nenhuma pretensão, a não ser servir à palavra. Acusado de ser vai-
doso, ele mostra que não se orgtJlha de nada, pois sua segurança pro-
, vém apenas do fato de saber-se ministro de uma aliança superior. Sua
capacidade, que o leva a ter certeza de agir corretamente, vem de: Deus,
de quem ele recebeu este dom. r terrestre de Jesus sublinha' que o tempo do verbo de Me 2,18 cestavam
Na época, havia muitos falsos profetas, dai a necessidade de cartas
de apresentação (cf. At 18,27; Rm 16,1; CJ 4,10; 3Jo 9-12) exigidas
dos pregadores pelas comunidades cristãs. Paulo não admite tal exi-
gência, pois sendo suficientemente· conhecido dos coríntios, acha que jâ
deu provas suficientes de que era um verdadeiro profeta, anunciador
da palavra de Cristo e não um embusteirq. Para ele o que importa
é já ter demonstrado que Deus l}Je confiou urna missão, dai não serem
justas as exigências de cartas e 'lS acusações de falso elogio (cf. · 5,12).
Pauto desenvolve, então, uma idéia já presente em l Cor 9,2: «o
selo do meu apostolado sois vóS~. Sua carta de recomendação é a
própria comunidade. Carta esta inscrita nos corações e lida por todos
que têm oportunidade, e que contém a prova de sua autenticidade em
288
si mesma, pois foi ditada por Cristo e escrita por Paulo, não com
tinta mas com o Espírito, e não sobre pedra mas rip coração dos
fiéis (cf. Ez 11,19; 36,26).
As comunidades fundadas por Paulo, obras do Espírito por meio
dele, são apresentações e recomendações vivas que tornam inúteis as
cartas humanas, como a Aliança no Esplrito tornou inútil, a Aliança An-
tiga escrita sobre pedra (cf, Ex 24,12; 31,18; 38,28s). A .comunidade de
Corinto será então, por sua operosidade, uma apologia viVa de Paulo, e
essa argumentação será t~to mais válida se os opositores forem os
judaizantes, que tão bem conheciam a Antiga Aliança.
Conclui-se então, que a confiança de Paulo vem da graça de Deus
presente nele. Sem a graça não se pode fazer, nem pensar coisa al-
guma para a vida eterna. :com a graça, Paulo tem coragem de ir até
Deus e se apresentar diante dele, tendo a consciência de estar apto,
porque Deus o habilitou para ministro do Esplrito que dã a vida. Paulo
põe-se assim na linha ministerial de Cristo e dos apóstolos, em oposição
aos ministros da lei mosaica e de qualquer outra lei, que .e:dge mas não
dâ condições de ser observada (Rm 7,5). Pela morte de Cristo foi se-
lada uma nova Aliança, fundamentada no Espírito, e dela Paulo é mi-
. nistro (cf. Lc 22,20; !Cor 11,25). Nessa Aliança realiza-se a passagem
do que era escrito, para o que deve ser vivido no cor~ção do homem
(Jr 31,31). ·
Blbllogra/la: C a n t J n a n t! J., Le.s Epltres de St. Paul expllqu!es, Pari! 1970;
H é r t n g, J., La seconde ép tre de Saint Paul aux Corinthtens, Neuchãtel 1958;
D e 1 a P o t t e r 1 e-S. L y o n n e t, La vida según el Esptrltu, S~lamanca 1967.
Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
· Paulista, PE
Terceira Leitura: Me 2,18-22
«Enquanto o esposo estiver com eles niíJJ put/J!ni, jejuar>
1. A passagem divide-se em duas partes: a explicação de uma ati-
tude dissidente (2,18-20) e duas pequenas parábolas (2,2F e 22).
Na pdmeira parte mencionam-se três grupos de «crentes:. que exis-
tiam no judaismo da Palestina do primeiro século: os discípulos de
João Batista, os (discípulos dos) fariseus e os discípulos· de jesus. Des-
venda-se o sentido desta primeira parte seja a partir da reconstrução
da situação histórica concreta que levou à pergunta e à resposta sobre
o jejum, seja a partir do 'contexto literário em que se encontra atual-
mente nos evangelhos sinóticos.
2. A tentativa de reconstruir a situação histórica concreta da vida
jejuando» indica um determinado jejum e _não um costume. Ela encara
a menção dos (disclpulos dos) fariseus como um acréscimo posterior.
Esta hipótese tem certos apoios na comparação dos textos de MI, Me e
Lc. E também alega que · um autor que conhecesse bem o ambiente
palestinense do tempo de jesus não usaria a expressão cdisclpulos dos
fariseus», porque os fariseits não eram «mestres:. ou «rabis> e não ti·
nham «discípulos» como joão Batista e Jesus, a não ser que fossem
também escribas. Nesta teoria, a maneira de mencionar. cos discípulos
de joão> encerraria que o' fundador, joão Batista, jâ estáva morto.
O conjunto destes dados - tratar-s&-ia de um determinado jejum
dos discípulos de joão Batista - levou à hipótese de que a própria
morte de joão Batista teria sido o motivo do jejum de seus discípulos.
289
,,
A passagem assim analisada e interpretada transportaria os leitores para
urna situação bem concreta da vida de jesus. iUma vez que Jesus mesmo
fora batizado por João Batista e alguns dos disclpulos de jesus tinham
sido antes discípulos de joão Batista (e!. Jo 1,35-40), a morte do an-
tigo mestre poderia ter sido também para eles motivo de luto (de
que fala explicitamente Mt 9,151) e de jejum, O gesto de não acompa-
nhar os discípulos de João Batista neste luto e jejum teria tido cer-
tamente algo de surpreendente e até de chocante e provocante. Jesus
às vezes recorria de propósito a tais atitudes e gestos .simbólicós. Por
exemplo, quando toma refeições nas casas de pecadores e publicanos;
quando chama uma criança para servir de modelo ·aos discípulos; quan-
do entra em Jerusalém sentado em um jumento; quando lava os pés dos
discípulos, etc. Se a hipótese for certa justifica-se plenamente a per-
gunta que se teria feito na ocasião: «Por que os discípulos de joão
jejuam e os teus não?» Ela expressaria uma clara surpresa e um cer-
to estranhamento. Em vez de justificar o comportamento surpreendente
de Seus discípulos por um recurso a desculpas descmbaraçadoras, a
resposta de jesus translumbra o âmago da situação em que eles se en-
contram. Apesar dos pesares, apesar da morte de joão Batista, eles
não podem jejuar, porque estão em plena temporada messiânica. Não
hã dúvida de que esta interpretação é bastante paradoxal. Atitudes pa-
ralelas encontrar-se-iam em textos como Mt 8,21 par Lc 9,59-62: <Je-
sus disse a alguém: 1 Segue-me'. Esse respondeu: 1Permite-me ir pri-
meiro enterrar . meu pai'. Ele replicou: 'Deixa que os m{)rtos enterrem
os seus mortos; quanto a ti, vai anunciar o Reino de Deus'. Um ou-
tro disse-lhe ainda: 'Eu te seguirei., Senhor, mas permite-me primeiro
despedir-me dos que estão em minha easa'. Jesus, porém, lhe respon-
deu: 'Quem põe a mão no arado e olha para trás não é apto para o
Reino de Deus'>. Como a prisão de João Batista marca, nos evange-
lhos sinóticos, a iniciativa de Jesus para começar a Sua vida pública . e
a proclamação da chegada do Reino de Deus (cf. Me l,14s; Mt 4,12-17),
assim a morte do mesmo não teria sido motivo para interrompê-Ia. Even-
tos como a mórte de João Batista, do próprio jesus e o mart!rio de
Seus discípulos. representam os paroxismos das dores messiânicas. A de-
vida explicação. e interpretação de gestos simbólicos como este de Me
2,18-19 encontrar-se-iam ·em textos como Mt 5,10-12; Lc 6,22-23; Jo
3,28-30; Hl,20-22, onde também se encontra uma combinação paradoxal
de humilhação e engrandecimento, de luto e ile alegria, contida também
no adágio que diz <o sangue dos mártires é semente do Reino~.
Geralmente considera-se Me 2,20 par como um acréscimo posterior,
inserido para justificar o jejum dos cristãos em épocas mais recentes.
Mas não se po_de excluir que a morte de João Batista tenha sido para
jesus uma Iiçã_o e até uma ocasião para dizer: «Agora é a vez de
vocês, discípulos' de João Batista, para jejuar em luto. A vez dos Meus
disclpulos também virá. Mas enquanto estou com eles convém não im-
portuná-los>. N.esta suposição o texto bem poderia ser uma espécie de
paralelo de Lc 13,31-33: «Na mesma hora, ,aproximaram-se alguns fa-
riseus que lhe disseram: 'Parte e vai-te daqui, porque Herodes quer te
matar'. Ele respondeu: 'Ide dizer a esta raposa: Eis que eu expulso
demônios e realizo curas hoje e amanhã; ~ no terceiro dia vou ter-
minar. Mas hoje, amanhã e depois de amanhã, devo prosseguir o meu
caminho . .. '»
3. O contexto literário em que se encontra a passagem nos evan-
gelhos sinóticos encerra uma reinterpretação e atualização do conteúdo
290
original. Tanto no contexto anterior corno posterior aparecem os fa-
riseus (cf. Me 2,16 par Mt e Lc; Me 2,24 par Lc), que contestam o
comportamento de Jesu~ e de Seus disclpulos. No contexto anterior
apresenta-se Jesus tomando refeição na companhia de publicanos e pe-
cadores. Por associação antitética ligou-se a este contexto o texto do
jejum. Em vez de banquetear-se em companhia de pecadores e publi-
canos, jesus e os Seus discípulos fariam melhor em acompanhar gente mais
piedosa como os fariseus e os discípulos de joão Batista no jejum. Sabe-
se que os fariseus jejuavam duas vezes por semana (e!. Lc 18,12). Os
disclpulos de João Batista podem ter observado um jejum semelhante.
No contexto anterior~ jesus respondeu à contestação de Seu comporta-
ment.o com um provérbio popular: «Não são os que têm saúde que
precisam de médico, mas os doentes» (Me 2,17 par). O mesmo faz
agora, dizendo: «Os convidados de um casamento podem jejuar quando
estão com os noivos?» Em outras palavras, Jesus declara: «Agora é
tempo de lesta e não de jejum. jejum já era!» Lançando mão de um
provérbio popular, Jesus o aplica à situação nova, criada por Sua pre-
sença, por Suas palavras e obras: os disclpulos que ·n'Éle acreditam
participam já da alegria messiânica; a chegada do Reino torna a prá-
tica do jejum obsoleta e um rito de penitência que jâ não tem razão
de ser porque pertence à Aliança Antiga.
Esta mesma mensagem da novidade dos tempos messiânicos que faz
estourar como inadequadas as estruturas, instituições, costumes, ritos e
legislações antigos, é expressa nas parábolas do remendo novo em fa..
~enda já gasta e de vinho novo em odres velhos.
4. Uma nova atualização teria sido inserida no texto pelo acrés--
cimo de Me 2,20: «Dias virão, porém, em que o esposo lhes será fi ..
rado; e então jejuarão naquele diru>. Nesta hipótese a palavra cesposo:ti
teria um sentido nitidamente alegórico e indicaria Jesus. A frase quer,
então, justificar a reintrodução da prática do jejum na Igreja primitiva.
O texto paralelo de Lc diz em pluraJ, no fim da frase, «naqueles diaS>;
isto é, naquela época. Marcos tem o singular «:naquele dia>. Isto pode
encerrar uma alusão direta à sexta-feira, em que os cristãos jejuavam
em memória da morte de Jesus, enquanto os fariseus e talvez os dis--
clpulos de joão Batista jejuavam nas segundas e quintas-feiras.
Blbllografla: Os comentá.rios de Me de Ta y 1 o r. Se b w e i z e r, Se h m 1 d;
P. B enol t-M.-E. B o 1 s mar d, SJ!!opse des Quatre Evanglles en français, Pa-
ris 1972, 2 Vol.; J. A. z 1es1 e r, The Removal of the Brldgeroom: A Note on
Mark JI.18-22 and parallels, em: NTS 19 (1972-1973) 190-194; O. O a 1 d e, Questfon
sur Je jeilne (Me 2,tS-22), em: AdS JI/39 (1912) 44-!54; J. Jeremias, As Parã-
boJas de Jesus, S. Paulo 1916. ·
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
·Tema principal
A novidade do Evangelho do Reino·
Suge_stões para a homilia
O jejum constituía,. no Oriente Antigo, uma prática consa-
grada que se inscrevia nas prescrições relativas a certas solenida-
des e a determinadas situações, tais como a morte e a expiação.
É no horizonte desta tradição que Jesus é questionado. Ele o é
291
 pelos discípulos de João e pelos fariseus, ou por pessoas que mente novo é incompatível com o velho: ou o realiza, suprimin-
percebiam e estranhavam a omissão de seus discípulos a respeito do-o em sua forma caduca ou, se tenta a, composição, rompe-o
desta disciplina. Esta é a notícia que o evangelho de Marcos nos e_ t~do se. perde. N~ Rein.o não há lugar para uma tal compo-
transmite, para dela tirar uma conclusão mais importante para s~çao. Apos quase vmte seculos de história, a posição dos cris-
representação a se formar da identidade de Jesus do que para taos bem pod7 ser a dos discípulos dos fariseus e de João (ou
se resolver a questão do jejum. Todavia, como esta demarca o ~aqueles que interpelaram Jesus). Se assim for, o Espírito, que
significado da mensagem, é importante compreendê-la. e sempre novo porque criador, será incompatível com ela. O
Questão sobre uma observância consagrada, a interpelação «Mystérion." transcende o tempo e a ·situação ou conjuntura dos
feita a Jesus é séria e traz implícita uma censura, se não uma contemporaneos de Jesus; esta se refaz na iniciação de cada
sentença condenatória. A resposta dada tem a habilidade de não homem, de cada grupo social, de cada povo que se defronta
pôr em dúvida o valor, mas a oportunidade da observância. com o Evangelho: e, então, a opção exige total liberdade face
':: Com efeito, ninguém pensaria em jejuar durante uma celebração à novidade do Reino. Não há observância a preservar, por
de núpcias, se é amigo do esposo. Mas a resposta não se fecha sagradas que possam parecer. E necessário que o cristão o
sobre a questão; com ela, Jesus atribui-se um antigo símbolo homem, esteja sempre pronto a revestir o traje nupcial e a 'ser
da aliança entre Javé e seu povo. Em sentido amplo, significa odre apto para o vinho novo do Reino. Este, por sua vez, há
ele que sua presença histórica corresponde a verdadeiras núp- de o transformar no próprio Corpo do Cristo, esposo no Esposo,
cias, excluindo práticas fúnebres e expiatórias. Em Jesus de Um na Unidade de Deus.
'
Nazaré, se perfaz o esponsal entre Deus e seu povo. Todavia, Francisco Benjamin de Souza Netto
isto não se faz de forma vaga: Jesus é, ele próprio, o Esposo São Paulo, fevereiro de 1981
1
i :i e esta novidade altera as relações Deus-homem. E «no homem»
1l 1 Jesus que Deus é Esposo de seu povo. Arauto do Reino, Ele é
pessoalmente a realização deste: o objetivo e o subjetivo encon- ).
tra_m_ a sua identidade na história da Salvação. A questão sobre
o Je!um ce~e lugar ao «Evangelho» e é neste ceder lugar que
ela e resolvida: para a consciência das comunidades primitivas,
par~ as quais o jejum permanece uma prática, haverá jejum na
medida em que cada geração experimentar e celebrar a «ausên-
i cia» de Jesus como primeiro momento do Evento Pascal, seja a
um título privado, seja, antes de tudo, na vivência eclesial.
Este o significado central do Evangelho. O seu alcance é
dado pelas parábolas da veste e do vinho. A novidade do Evan-
gelho, do Reino e de Jesus é incompatível com as instituições
~ antigas: ela as rompe porque é a sua realização e, como tal,
as suprime no ato de as levar à plenitude: «para um vinho novo,
1 odres novos», para o novo homem, vestes novas. O simbolismo
1
da veste abre-se, no sacramentário cristão, ao simbolismo batis-
1 mal; o do vinho, ao eucarístico. A condição do cristão nem pode
constituir um remendo, nem pode caber no homem velho, já
1 que o seu elemento é o vinho novo do Reino, vinho no qual é
dado o princípio mais originário da vida, o Espírito. Em suma,
f só há lugar no Reino para práticas suscitadas e inspiradas
1
por sua própria novidade: ele não comporta o transplante de
1

observâncias.
A atualidade da mensagem é patente: todo o verdadeira-

292 293
1

1
'1
Nono Domingo do Tempo Comum
Primeira leitura: Dt 5,12-15
,,
«Observarás o sábado, santificando-o»
Contexto literário de Dt 5,12-15. Dt 5 se compõe de duas partes:
Dt 5,5b-22a que é uma citação, o assim chamado Decálogo, e Dt
5,1-5a.22b-32 que é a mpldura do D·ecálogo, como introdução e conclusão.
A leitura deste domingó, portanto, é uma parte ou uma das dez pres-
crições do Decálogo.
A época da composição de Dt 5,12-15. Para Perlitt o Decálogo se
tornou naquilo que ele é agora no Livro do Deuteronômio, isto é, 1:1ma
citaçãô contendo uma ~érie de prescrições, antecipadas po"f um discurso
de Deus, no tempo da pregação e da teoJogia deuteronômicas. Ou como
ele diz alhures que o lugar original do Decálogo deve ser procurado no
contexto da teologia deuteronõmica (PERLITT, p. 92.98}. Então, com
outras palavras, Dt 5,12-15 como um elemento do DecáJogo surgiu no
séc. Vil a.e.
E este séc. VII a.C. é politicamente marcado pela dominação dos
israelitas pelos assírios. , Esta hegemonia assíria teve suas repercussões
no c_arnpo reJigioso e social do· povo de Israel. A elite israelita nada
fez contra a ereção do panteão assírio no templo do Deus Javé. O
governo israelita para se manter no poder se submete cegamente ao
regime externo assírio, negando assim as convicções religiosas e sociais
mais genuínas do povo de Israel como povo de Deus Javé. E é à luz
deste pano de fundo histórico, sinteticamente descrito, que se deve ler
e interpretar a primeira leitura deste domingo.
Comentário de Dt 5,12-15. Esta parte contendo uma prescrição de
observar o sábado, santificando-o, expressa um protesto de uma parte
do povo de Israel contra os assírios e contra a liderança israelita que
«simplesmente dança como eles tocam». Uma porção do povo israelita
no entanto, fiel ao Deus Javé, rec.Jama a folga semanal no sábado para
poder se dedicar mais a Deus. E esta exigência é revelada como ordem
de Javé. Assim ela justifica o descanso no sábado que é, ·na realidade,
uma espécie de greve. Javé exige o repouso sabático e por isso os
veneradores de seu Deus devem parar seus trabalhos neste dia. O sábado
é santificado, pois neste dia os adoradores do Deus Javé se reúnem
para o culto, onde escutam a Palavra de seu Deus, recordam e celebram
as maravilhas· libertadoras que Deus fez por eles na história do
passado e também está disposto a realizá-las no presente. E é neste
culto, celebrado aos sábados, corno parada após os seis dias de trabalho
durante a semana, que os fiéis a Javé se organizam e percebem a sua
identidade que os diferencia dos assírios e dos israelitas que apostataram
de Javé.
Este sábado portanto, exigido como prescrição de Javé, era uma
greve, pois neste dia se repousava; e ele era santificado porque se
aproveitava a folga sabática para se reunir no culto. Aí o povo israelita
fiel a seu Deus se organizava criando uma consciência comum para. se
opor aos que lhe queriam roubar o sentido da vida, a razão de sua
294
existência, isto é, sua identidade de povo que luta para preservar vivas
suas tradições do passado; e que se une para ter forças contra aqueles
que os querem prlvar do mais sagrado que é a livre expressão de sua
fé no Deus Javé.
Esta orde.m do Senhor para descansar no , sábado para santificá-lo
tem dimensões sociais muito profundas. Neste ·rdia todos deviam parar
seus trabalhos, isto é, também os dependentes do israelita fiel a Javé
como o filho, a filha, o servo, o boi, o jumento, qualquer animal, inclu-
sive o estrangeiro que mora entr.e eles. A santificação do sábado por-
tanto só será perfeita quando todos pararem :-:de trabalhar no sábado
e assim poderão em liberdade cultuar seu Deus Javé.
Esta greve como descanso no sábado terá seguramente êxito, pois
parte da determinação do Deus Javé que é poderoso. Pois Ele já demons-
trou sua soberania na história libertando os hebreus do Egito, com
mão poderosà e braço estendido. E com isto se relembra a experiência
grevista tão linda dos hebreus no Egito quando de lá fogem, deixando
as construções e os trabalhos nas roças incompletos, pefa metade.
Esta leitura mostra onde reside a força Esta está com o povo
unido a Deus e entre si. Um povo assim unido e organizado é capaz
de quebrar ª' violência, a opressão e a exploração de qualquer multi-
nacional que tem seus adoradores em qualquer país do Terceiro Mundo.
Preservemos ou reconquistemos o dia do descanso, santificando-o, reu-
nindo-nos em· assembléia em torno do nosso Deus, Libertador dos
fracos, dos pequenos, dos doentes e dos explorados.
Bibliografia: L. P e r 1 i t, Bundestheologie im Allen TestamenJ, W.i\\ANT 36,
Neükirchener Verlag, 1969.
Pedro Kramer, O.S.F.S.
1 Porto Alegre, RS
Segunda leitura: 2Cor 4,6·11
«Nós, embora vivamos, svmos sempre entregues
à morte por causa de je.suS».
de Jesus~.
Nosso texto inicia-se estabelecendo uma ligação entre o Deus que
criou a luz rio início da criação e o Deus da luz da fé que brilha em
nossos corações. O Deus da criação é o mesmo da redenção e da palavra
proclamada. Assim a oposição ao Evangelho de Paulo é uma oposição
ao próprio D~us que iluminando a alma comunica o conhecimento divino
da glória que. contemplamos velado no rosto de Cristo. Em outras pala-
vras, a luz Que contemplamos é o conhecimento da glória de Deus.
Deus origem ·de toda luz e glória, brilha no rosto de quem crê, como
brilhou no rOsto de Moisés e para Paulo na estrada de Damasco
(OI 1,15s). .
A idéia se integra perfeitamente. na teologia da luz, enquanto ex-
pressa a fé e a glória de Deus que gera a luz e é a própria Juz;
joão dirá que jesus veio ao mundo como luz de Deus (c!. jo 1,Ss).
Com tudo isso o Apóstolo procura explicar a origem da fé, que não é
só decisão do homem, mas primeiro uma atuação de Deus sobre o
homem.
O paradoxo, g,ue se segue, tenta explicar essa realidade maravilhosa
295
 dentro de nós que é a ,:fé, cujo conteúdo é transmitido pelo ministério
apostó1ico. Somos nada, tporém com a ajuda de Deus somos n1uito. Isso
explica porque a fragiJidade do ministro não implica na fragilidade da
mensagem transmitida, mas pelo contrário ressalta a grandeza e o poder
divinos na difusão do Evangelho. ·
O Antigo Testamento conhece o barro como sinal da fragilidade
do homem (Gn 2,7) limitado e sujeito a mil misérias. O tesouro trazido
é então o ministério apostólico confiado por Deus a pessoas que vivem
não a realidade da glória, mas de sofrimentos e perseguições. Paulo
tenta explicar esse contraste aos coríntios. Quem vê o vaso não suspeita
do tesouro contido. O vaso precisa dos maiores cuidados. -Se se rompe,
1 o tesouro ficará sem proteção e se perderá. Dai decorre que apesar da
1 fragilidade, o vaso é importante, e precisa dos maiores cuidados. A
imagem, é claro, vale para todos os discípulos.
O homem exterior, que sofre humilhações e sofrimentos, traz con-.
sigo um tesouro precioso, isso significa que se o evangelizador fosse
capaz de agir por si só a obra seria atribuída a ele e a -ação de Deus
ficaria desconhecida e obscurecida. Na fraqueza do homem transparece
a grandeza de Deus. A 'força do Apóstolo é a força extraordinária de
Deus que supera toda expectativa, ele como qual cristão experimenta a
própria miséria e a poderosa ajuda de Deus, reconhece que nele opera
um.a força sobrenatural, divina e gratuita. O que Paulo sofre vai além
dos limites das possibilidaQes humanas, mas não é derrotado porque
Deus está com ele.
Em seguida, por antiteses que lembram as lutas dos atletas na
arena, Paulo descreve a situação real do ministro do evangelho, sempre
protegido do pior pela providência, que o faz não ser derrotado e
ressurgir quando parece destruído. A fraqueza humana se contrapõe a
força divina, este é o milagre da fé: o golpe mortal do inimigo não
acontece nunca. O apóstolo traz a «necrosis» de Jesus no corpo para
que também a vida de Jesus se manifeste nele. Como Cristo padeceu
em seu corpo, o apóstolo padece e participa da morte dele, está entregue
a uma morte continua.
Assim a vida do apóstolo' é uma reprodução dos dois aspectos da
vida de Cristo: sofrimento e glória. A união existencial do apóstolo
com o Cristo acontece em todos os momentos, no sofrimento (cf. Cl
1,24) e na participação da glória, já presente pela manifestação de uma
pujante vida interior que o faz resistir às tribulações. Essas destroem
o homem velho para que' o novo possa ressurgir. Como Jesus, também o
apóstolo, pela morte entra na vida; vive em sua própria vid.a e ministério
a paixão de Cristo que prega. Após o perigo/derrota/morte vem a
transformai;ão para a vida/ressurreição.
A morte, como a r~ssurreição de Cristo, se manifesta na vida do
cristão ou apóstolo, e ~o caso específico o sofrer do apóstolo é em
favor dos fiéis. O esgotar-se no trabalho apostólico torna-se fonte de
vida para os fiéis. Uma profunda comunhão de sofrimento e vida une
Cristo, os discípulos/apóstolos e fiéis. Batizados na morte, com Ele
1 ' ressuscitaremos. , plantações alheias nem porque jesus curou uma mão seca, mas porque
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.j.
Paulista, PE
296
Terceira leitura: Me 2,23-3,6
1. O contexto
Em Me 2,1-3,6, ternos uma série de cinco discussões de jesus com
os seus adver.Sários (escribas e farisells), todas situadas pelo evangelista
em Cafarnaum (2,1). Para distingui-las das «controvérsias hierosolimi-
tanas» que se localizam em jerusalém (11-12). são conhecidas como
sendo o primeiro grupo das «controvérsias galilaicaS» (2,l-3,35). Com-
põem um conjunto de narrações centradas sobre um acontecimento susci-
tando discussões polêmicas:
J) O paralitico perdoado e curado (2,l-12);
2) Vocação de Levi e acolhida dos pecadores (2,13-17);
3) Pergunta sobre o jejum; o velho e o novo (2,18-22);
4) As espigas apanhadas e a observância ·do sábado (2,23-28):
5) Cura do homem com a mão seca num dia de sábado (3,l-6).
A estrutura das quatro primeiras controvérsias é sempre idêntica:
a) enunciado do fato que vai motivar a discussão de jesus com
os fariseus e os escribas;
b) os adversários do Cristo o acusam;
c) Jesus responde com uma autoridade que não aceita a discussão,
citando um ditado popular ou um precedente tirado das Escrituras:
l) «0 Filho do homem tem na terra podêr para perdoar pecados
(2,10);
2) «Os sãos não necessitam de médico, mas, sim, os que estão
doentes; eu não vim chamar os justos, mas sim os pecadores
(2,1,7);
3) «Podem porventura os filhos das bodas jejuar enquanto está
com eles o esposo? () Mas dias virão' em que lhes será tirado
o esposo, e então jejuarão naqueles dicis> (2,19-20);
4) «0 Filho do homem até do sábado é S'enhor» (2,28) ;
5) <É lícito no sábado fazer o bem ou lazer o mal? Salvar a vida
ou matar?~ (3,4).
As controvérsias centrais (2-3-4) tratam cada uma de comida; devem
ter a mesma origem. A primeira e a última discussão foram acrescen-
tadas posteriormente; em si não são bem controvérsias mas milagres
suscitando a oposição por causa de circunstâncias anexas polêmicas (o
poder de perdoar os pecados - a observância do sábado).
A quarta e a quinta controvérsia também foram modificadas: a
polêmica surge não ·mais porque os discípulos colheram espigas nas
fez isto num dia de sábado. A mudança de acento indica um ambiente
judeu.cristão tentando amenizar o jugo do preceito sabático e justificar
o domingo como sendo «O dia do Senhor».
Enfim, também é significativo no meio judaico, o simbolismo do
número cinco: cinco livros do Pentateuco, cinco coleções de Salmos,
cinco pães para cinco mil pessoas ... -e aqui cinco controvérsias.
297
 2. Comentário do texto
2.1. As espigas apanhadas (2,23-28)
Esta quarta controvérsia acrescenta-se às três precedentes sem ne-
nhuma ligação precisa. Tem entretanto a mesma estrutura que as duas
controvérsias anteriores:
!) Relato dum lato (v. 13-15. 18a. 23);
25 A respeito do qual surge uma acusação contra Jesus sob.a forma
duma pergunta (v. IB. 18b. 24); . O pensamento de jesus não é totalmente novo nem isolado. Já 1Mc
3) Resposta autoritária de jesus (v. 17. 19-20. 25-26);
4) Ampliação do ensinamento de Jesus (v. 21-22.27).
2.1.1. O fato (v. 23)
Em Mt 12,l e Lc 6,1, o delito dos discípulos consiste em apanhar
e comer espigas num dia de sábado. Me' escreve para leitores vindos
de ambiente pagão e, como para eles seria muito difícil entender a
reação tão dura dos fariseus a respeito dum gesto tão ligeiro, Me
«exagera» um pouco o· fato: os discípulos «abriram-se um caminho»
apanha!ldo espigas. Isto torna a reação dos fariseus um pouco mais
compreensivel
i'
2.1.2 Acusação dos fariseus (v. 24)
Os casuístas fariseus tinham estabelecido uma lista de 29 trabalhos
proibidos durante o sábado. Entre eles havia uma série de trabalhos
agricoJas como arar, seriiear. colher, ceifar, moer, etc ... Para eles, o
gesto dos discipulos de Jesus ê um desafio e uma ofensa à observância
sabática (cf. Ex 34,21 ).
2.1.3. Resposta autoritária de Jesus (v. 25-26)
O Cristo responde segundo a dialética rabinica do qal lvahomer
(isto é, do «leve e pesado»): uma interrogação seguida dum argumento
a forliori. No caso presente. jesus formula uma outra pergunta a partir
de um fato bíblico, a estótia dos pães (sagrados) da proposição consu-
midos por Davi e seus . companheiros, na época de Abiatar, o príncipe
dos sacerdotes. A partir da realidade de um acontecimenfo maior
deduz-se a legitimidade de um fato bem menor. . . O que fez Davi era
muito mais grave do que a ação -dos discípulos. Se o primeiro foi até
aconselhado peJo Sumo Sacerdote Abiatar, quanto mais perdoável a
atitude dos discípulos acompanhados pelo «Mestre do Sábado» (v. 28) !
Notemos que a argumentação de jesus aqui não é perfeita:
a) em ISm 21,2-7, o Sumo Sacerdote é Abimelek, o pai de Abiatar.
Me menciona o nome do filho talvez porque deve ter presenciado a
cena (lSm 21,1-6) e é bem mais conhecido; atribui-se então ao filho
fatos famos_Q_s ocorridos a seu genitor.
b) o qtie era proibido a Davi e _aos seus companheiros era o
simples fato de consumir os pães sagrados da proposição, seja ou não
num dia de sãbado!
298
2.1.4. Ampliação do ensinamento de Jesus (v. 27)
A resposta decisiva de jesus tem a mesma força que a do v. 10
(«O Fi1ho do 'flomem tem na terra poder de perdoar os pecados») mas
aqui temos uma insistência especial: «O Filho do homem até do sábado
é Senhor». É · claro que para Me. jesus identifica-se com o Filho do
homem; iguala-se a Deus porque reivindica o título de «Senhor» e afirma
sua autoridade sobre a instituição divina do sábado. O v. 27 não é uma
simples conseqüência dos anteriores, é muito mais: a idéia-força ilumi-
nando o episódio das espigas apanhadas e do milagre da mão seca.
2,39-41 é uma ilustração da relatividade do mandamento sabático quando
a sua observação traz perigo de morte ou, pelo menos, gra\·es conse-
qüências para a pessoa humana. Rabinos posteriores a Jesus tiv~ram
também um raciocínio análogo; temos por 'exemplo, da parte de um
deles, o seguinte comentário de Ex 31,14: «Ü sábado vos foi confiado,
mas vocês não foram confiados ao sábado».
2~2. Cura .do homem com a mão paralisada (3,1-6)
A quinta e última controvérsia galilaica, como a primeira. consiste
numa narração de mi1agre muito sóbria. As secções estritamente paralelas
de Me e Mt 12,9-14 dão o texto seguinte:
«E entrou numa sinagoga e estava ali um homem tendo a mão
seca e disse ao homem: «Estende a mão», e ele a estendeu e a
sua mão .ficou boa.»
,•
Podemos .comparar este episódio com o de 1Rs 13,4-6 (gesto de
estender a mão seca) e Ex 4,6-7 (mão restituída).
Entretanto, a narração marciana .não se interessa aqui no fato
milagroso mas sim na controvérsia que este vai suscitar porque Jesus
curou num sábado. Houve então um deslocamento para a observância sabá-
tica (v. 2.4) obtendo ao mesmo tempo um grupo de cinco controvérsias.
Os dois outros sinóticos relatam também o mesmo acontecimento.
Me 3,16 e Lc 6,6-11 têm basicamente. urna narração idêntica enquanto
Mt 12,9-14 mostra-se mais independente, referinda:--se a um outro mi1agre:
o do homem hidrópico (Lc 14,1-B).
A expressão «outra v-ez» (v. 1) liga o fato à cura do homem com
espírito imundo, também na sinagoga de Cafarnaum (1,21.23). Nos dois
casos, Jesus viola cientemente, numa casa de oração, o preceito do
descanso sabático. Na famosa Jista dos 29 trabalhos proibidos havia
igualmente o de tratar os doentes, sa1vo em perigo de morte (o que
não é absolutamente o caso aqui). Parece que ninguém duvida do poder
taumatúrgico de jesus, nem os fariseus presentes. A preocupação deles
é outra: ficam «espionando-o para ver se curaria num dia de sábado
para o acusarem» (v. 2); farão a mesma coisa outra vez quando jesus
entrar na casa de um dos principais fariseus, igua1mente num dia de
sábado, e curar o homem hidrópico (Lc 14,1-2).
Enquanto os fariseus se escondem, a transgressão de jesus é decla-
rada pública. Não tem medo de sua opção. Por isso, o Cristo coloca
o doente bem no meio da assembléia, num gesto provocador para os
fariseus, quietinhos mas atentos. Porém, Jesus adivinha os maus propó-
sitos daqueles que pretendem ser os guias do povo. Por isso toma a.
299
1
'j iniciativa interpelando-os, em alta voz, diante de todos: «É licito no
sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar a vida ou matar?~ (v. 4).
jesus coloca a única e verdadeira pergunta. Não se preocupa em saber
se ele está trabalhando ou não, numa interpretação meramente legalista
e externa do mandamento divino. Trata-se de saber se a gente age por
amor ou não, pela justiça ou pela opressão, pela libertação ou pelo
cativeiro. Partindo dum_ caso particular, Jesus estende-o ao campo dos
princípios: como podemos agir mal fazendo o bem? A Jiceidade de um
ato não depende de princjpios externos mas sim da con&ciência reta e
esclarecida de quem age. E se a lei torna-se um ·obstáculo~ a lei perfeita
da caridade leva a vantagem: «Amarás ao teu próximo como a ti mesmo»
(OI 5,14). Santo Agostinho dirá mais tarde Ama et fac quod vis, •Ama
e faze o que queres».
Enquanto Jesus salva uma vida fazendo o bem, os· fariseus agem
mal querendo matar a Jesus. Não respondem nada à sua pergunta porque
a bondade desarma; nã.o tinham resposta diante de tanta evidência! Por
outro lado, sabendo que não gozam do apoio popular, preferem calar-se
para não perder o seu prestígio. Mas a raiva deles é proporcional à
sua derrota. Não se dão por vencidos. Sabendo perfeitamente que o povo
não os acompanharia nas suas leis opressivas, eles vão até aliar-se com
os amigos e partidários do rei Herodes que não tinham afinidades polí-
ticas e religiosas com eles: «Tendo saído, os fariseus imediatamente
puseram-se a conspirar com os Herodianos para matá-lo» (v. 6). Sem
eles, com efeito, não se podia agir ·eficazmente contra jesus. É o mesmo
Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia e da Peréia (de 4 a.e. a 39 d.C.)
que mandou prender e decapitar a joão Batista, o primo do Messias.
Os Herodianos ainda vão aparecer ao lado dos fariseus na armadilha do
tributo que se deve ou .não pagar a César (12,13-17).
As cinco primeiras controvérsias galilaicas encerram-se então de
modo dramático com o v. 6 sublinhando a seriedade e a gravidade do
conflito surgido entre Jesus e seus inimigos. Temos aqui um prelúdio
aos três anúncios da paixão (8,31-33; 9,30-32; 10,32-34).
Pe. Hugues d'ANS
Lins, SP
Bibliografia: Gerard S. S 1 o y a n, S.T.L., Evangelho de jlarcos, Ed. Paulinas,
São Pau1o, 1975; Gilberto O o r g u 1 h o e Ana Flora A n d e r s o n, O Evangelho e
a Vida de Marcos, Ed. Paulinas, 1978; Oscar B a t ta g 1 1 a, Francesco U r ·i e e h i o
e Angelo La n e e 11 o t ti, Comentário ao Evangelho de ,uarcos, Ed. Vozes, Petrópolis,
1918; P. B e no 1 t e Al.-E. Bois mar d, Synopse des quatre Evangiles en trançais:
tomo 1: Textes, 1965; tomo 2: Commentaire, 1972; "Traduction Oecumfnique de la
Bible" (TOB), Nouveau Teslament, E:d. du Cerf - les Bergers et les Mages,
Paris, 1977. ' Só que Jesus não nos quis ensinar «prudência». O que o
300
Tema principal
A liberdade de Jesus
Sugestões para a homllla
O homem moderno descobriu a liberdade e a considera o
primeiro dos valores da vida. Num primeiro momento encantou-se
com a liberdade em sua dimensão individual, expressa politica-
mente pelas democracias liberais, socialmente pelo liberalismo
econômico, cientificamente pela psicologia, filosof,icamente pelas
diversas correntes da filosofia moderna, em especial o existen-
cialismo. Hoje se acentua mais sua dimensão social, que vem à
consciência e à prática nos diversos movimentos de libertação
política, econômica e social. Nada mais atual,, portanto, que
eonsiderarmos sob o prisma da liberdade a Boa-Nova de Cristo.
O evangelho deste domingo (e também as leituras) nos convi-
dam a tanto.
1. jesus, homem livre
As curas operadas por Jesus em dia de sábado pertencem a
suas atividades e atitudes mais características. Nelas Jesus mos-
tra provocativamente SUll liberdade frente à lei .iudaica. Provoca-
tivamente, pois Jesus poderia ter evitado o conflito. Que custaria
admoestar os discípulos a se dominarem e suportarem a fome
por algumas horas a mais, para não colher as espigas em sá-
bado? Que exemplo de «prfldência» ele não nos daria, se dis-
sesse ao homem da mão seca: «Espera um pouco que pelas seis
da tarde, passado o sábado, vou curar-te»? Que custaria a esse
homem esperar mais algumas horas? E ele não haveria de
compreender a extrema fidelidade do taumaturgo que assim lhe
falasse? Se Jesus tivesse agido assim, ninguém reclamaria, não
·haveria conflito. Seria um modelo de «prudência», (pastoral) ...
caracteriza, é a liberdade. Líberdade frente às mais sagradas
instituições da sociedad.e em que vivia. Enfrentando a mentali-
dade então vigente, Jesus, com sua liberdade, não estabelece,
no entanto, o princípio da anarquia, da negação. pela negação,
da arbitrariedade arvorada em lei suprema. Sua liberdade não
é libertinagem ..
301
 ....
1
1
2. O amor, princípio da liberdade
O que distingue liberdade de libertinagem é que a primeira
tem uma norma, uma medida. Mas pôr a liberdade sob uma
norma, não é coarêtá-la e assim negá-la? Poderíamos comparar
a liberdade com uma abertura infinita. E a capacidade de abra-
çar o que quer que se lhe apresente como bem (mesmo falso).
Qualquer medida ·que se lhe queira impor, será restrição, será
negar a liberdade. A «genialidade» da liberdade de jesus está
em que ele nos faz descobrir uma medida que não restringe a
liberdade, mas, por ser medida, tampouco transforma a liberdade
em lihertinagein.
Se liberdade é abertura infinita, só o infinito pode ser sua
medida: uma norma que não restringe. jesus viveu sua liberdade
diante do Pai, em favor dos homens. Por isso foi livre, divina e
infinitamente livre, sem com isso dar luz verde à libertinagem.
Ponto culminante da primeira narração da perícope de hoje
(espigas) é a afirmação: «Ü sábado foi feito para o homem
e não o homem para o sábado» (Me 2,27). O clímax da segunda
narração (homem da mão seca) está na pergunta: «E permitido
fazer o bem ou o mal em sábado? Salvar uma vida ou matar?»
(Me 3,4). Ambos nos indicam qual a norma da Hberdade de
jesus: a realização verdadeira do homem, a opção ética pelo
homem.
Mas jesus não entende esse antropocentrismo num sentido
egoísta, da vantagem própria. O homem não é norma da liber-
dade como eu. Esse egofsmo limitaria a abertura infinita da
liberdade e introduziria nela a arbitrariedade. O homem é norma
da liberdade como tu, como ser de relações, como filho e irmão
(filho de Deus e irmão nosso), Não é a si próprio que jesus
visa com sua liberdade: ele defende o direito dos discípulos à
alimentação, ele defende o direito do homem da mão seca à
saúde. Em outras palavras: a medida da liberdade de jesus é
o outro, o respeito ao outro, o amor ao outro. A única medida
que mede e não coarcta, porque o amor é infinito. Mais tarde
Santo Agostinho haveria de resumir lapidarmente a raiz da liber-
dade de jesus e do cristão: Ama et fac quod vis («ama e faze
o que queres»).
Como o amor vem de Deus, jesus por sua liberdade frente
à Lei, volta ao espirita da Lei de Deus e, especificamente, ao
sentido que a lei sabática tinha em suas origens. A leitura do
Deuteronômio que ouvimos neste domingo, nos mostra o sen-
•.
tido humanitário e social da instituição sabática. No sábado
302
-.
todos são iguais: o israelita e o estrangeiro, o pai e os filhos,
o senhor e os servos e até mesmo os animais.· No contexto
social da época se trata de que o proprietário dê descanso a
todos os seus «pertences». A razão teológica desse benefício
social é a grande intervenção social de Deus na história de
Israel: também o israelita, hoje senhor, fora um dia «pertence»
do faraó. Javé lhe concedeu a liberdade. A gratidão se mani-
festa na correspondência entre sua atitude agora e a de Javé
outrora. Hoje ele deve dar liberdade aos seus no dia consagrado
a Javé. Entretanto, a lei da liberdade sabática tornou-se, após o
exílio, lei da escravidão sabática. A instituição do sábado perdeu
o sentido originário de benefício ao homem para. se tornar em
jugo que esmagava o homem. Por isso jesus a rejeita. Ela dei-
xou de ser criadora de liberdade, porque já não visa ao bem
do outro.
3. Ser livre num mundo escravo
A liberdade de jesus, baseada no amor, tem seu custo -
e um alto custo - , quando deve ser realizada num mundo
escravo. Se não acrescentássemos esse aspecto, não estaríamos
falando da liberdade concreta de jesus, que lhe custou a vida.
Ser livre num mundo escravo é ser livre na contradição, na
oposição. E nadar ou remar contra a correnteza. E os homens
não costumam suportar quem assim age. O homem escravo
mata quem quer chamá-lo à liberdade. Por isso não é de estra-
nhar que já no fim da perícope deste domingo, Marcos narre
do conluio entre fariseus e herodianos para prender a jesus
( cf. Me 3,6). Apresenta-nos as forças religiosas e políticas
unidas nessa conspiração. Religião e política, duas instituições
que, postergando sua finalidade primeira, podem endurecer suas
estruturas esquecendo a Deus e ao homem,. a quem deveriam
servir. E, no momento em que esquecem a alteridade, passam a
escravizar.
A vida de jesus, que é liberdade, leva à morte de jesus,
uma morte em conseqüência da liberdade. Por isso, é através
eia morte e da perseguição que a vida de jesus se manifesta no
discípulo (cf. 2Cor 4,11).
«Assim em l)ós opera a morte; em vós, a vida» (2Cor 4,12).
A morte de jesus - e com ela a perseguição e a morte do
cristão - é morte que traz vida, é morte para que se tenha
vida. Por mostrar e viver a liberdade, jesus é condenado. Sua
morte nos liberta, porque é conseqüência de uma vida que nos
ensinou o caminho da liberdade: o amor a Deus que se expressa
303
1
'1
no amor ao homem respeitado em sua dignidade fundamental
de filho, irmão e senhor.
Onde há escravidão (política, econômica, social, psicológica,
cultural, religiosa ... ), pretende-se impedir o homem de expan-
dir-se e realizar-se como pessoa, como irmão, como filho de
Deus. Onde o homem é impedido de realizar-se como filho, Deus
não é adorado como Pai, em espírito e verdade. Por isso, a
problemática da escravidão (de todas as escravidões) não é
alheia à dimensão religiosa p1ópria à Igreja. Pelo contrário lhe
é intrínseca. Como dizia Berdiaeff, minha fonie para mim é um
problema material; mas a fome do outro é, para mim, um pro-
blema espiritual.
A Igreja (nós que somos Igreja) só estaremos no caminho
de Cristo, na medida em que o seguimos na liberdade frente a
Ioda instituição e estrutura escravizante, livres frente a elas não
para tirarm9s vantagens pessoais (libertinagem), mas para liber-
tarmos o outro, nosso irmão, e assim sermos Jivres com ele.
Porque, se a medida da liberdade é o amor, nunca se é livre
sozinho.
Francisco Taborda, S.J.
Curitiba, PR
~
1 sua culpa, dizendo que aceitara da companheira apenas urna fruta. cEis
l desordem, a confusão»! (Agostinho, PL 34,449).
1 ludibriada pelo Maligno. O juiz divino leva em conta essa atenuante,
t A Serpente é um ser inteligente e maldoso, que encarna o êspírito
304
Décimo Domingo do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira 1eitura: Gn 3,9-15
Contexto. Nos cc. 1-2 do Gênesls o autor descrevera a criação do mundo e do
homem valendo-se de várias fontes. O e. 3 ocupa-se da sua condição de pecador. O
pecado' IJiarca a desordem na criação. originando o mal fisico e moral. A humanidade
está sujeita ao mal moral nas suas múltiplas expressões. O hagiógrafo aborda o fa_to
como teólogo. insinuando que o mal flsico e moral não estava no plano original de
Deus; ao sair de suas mãos, o primeiro estava numa situação .diversa da atual.
Contudo, a limitação humana e a Intervenção do demônio introduz1~a!" 1:'º mundo o
pecado e suas terrivels conseqüências. Nosso texto pertence à trad1çao 1avlsta, com
nuances de antromorfismo, de pitoresco, de imaginativo e descritivo. Como sempre,
na Biblia, faz-se mister discernir o que é roupagem literária daquilo que é conteúdo
teológico.
Nos vv. J-6 de Gn 3, o assunto ê a Serpente (= demônio), a tentação e o
pecado; a seguir apontam-se os efeitos do pecado, o encontro do homem com Deus
f\'V. 7-14), o qual profere três sentenças contra os autores do pecado (vv. 14-19).
Por fim. proclama-se Eva "mãe dos viventes", sendo os primeiros pais expulsos do
paraiso como castigo pelo pecado (vv. 20-2-1).
Gn 3,9-15
Texto. Nossa pericope (vv. 9-15) é narração popular de tipo antro-
pomórfico. A presença de Javé no paraíso e seu diálogo com os primeiros
pais realçam a mudança essencial havida no homem frente a si mesmo
e a Deus. Adão e Eva, antes amigos de Deus, agora se escondem. É o
lado psicológico ·do pecado: o escrúpulo, o medo, a insegurança, o senti-
mento de culpa. Para designar o desequilíbrio emocional, resultante do
pecado, o autor apresenta os protoparentes com vergonha de comparecer
nus diante do Senhor, com quem antes conversavam tão familiarmente,
apesar da nudez. Ao sentimento de pudor une-se o de remorso. Rompe-
ram-se as relações e Deus, juiz universal, pede contas, insinuando,
porém, desde o inicio, como criador e pai, que vai reatá-las, embora
fora do paraíso. Ao pecado segue-se o julgamento divino, salientando-se
a astúcia da Serpente. A proibição e respectiva ameaça fora dada
diretamente a Adão. É a ele que Deus se dirige em primeiro lugar com
um lacônico «onde estás:t-? Adão tenta justificar-se, culpando, traindo
sua esposa e, afinal, responsabilizando o próprio Deus por lhe ter dado
uma companheira tão fiágil e tentadora. Inclusive parece querer atenuar
a soberba! Não aceita o pecado. Em lugar de humilde confissão, a
O Senhor, então, se dirige à Mulher que, por sua vez, acusa a
Serpente. A excusa dela é mais procedente, pois reconhece ter sido
sem porém 'f!ximí-la do pecado. É a história do homem: peca, não
aceita, busca pretextos, culpa os outros, vai à cata de atenuantes ...
mas Deus lhe pedirá contas.
do mal e conhece o preceito divino, instigando o homem a desobede-
cer-lhe. E, nessa desobediência, o livro sagrado vê a causa de todo mal.
305
r
O autor sacro, usando a imagem da serpente, adapta-se a tradições
populares com o fito de tornar mais acessível sua mensagem religiosa.
A cobra é talvez o animal que mais repugnância e aversão instintiva
provoca. Deveras parece um bicho «maldito»; ela sempre foi um réptil
por natureza, mas o hagiógrafo, teologizando, vê nessa atitude e no
«comer o pó» uma humilhação, um indício de abatimento e derrota,
ao passo que o caminhar ereto é sinal de realeza; os ofídios não se
nutrem de pó, como pensavam os antigos (Js 65,23.25; SI 71,9; Mq
7,17). «Comer o pó» simboliza a derrota da Serpente, não como simples
animal, embora divinizado cá e lá, mas como instrumento de Satanás,
autor, com Edão e Eva, do pecado.
V. 14. Deus não permite pretextos à Serpente, não dialoga com
ela, por ser inexcusável, indigna em força de seu ódio a Deus e de
sua inveja para com o homem. Sem mais a declara «maldita~ entre
(= mais do que) todos os anim:;.is e feras dos campos; em 3,17 será
amaldiçoada a terra, - em 4, 1, Caim. Maldição eficaz que se manifesta
no «andarás de rastos sobre o teu ventre e comerás o pó ... » a que a
serpente é condenada. «Andar de rastos» e «comer o pó» são metáfo~as
estribadas na realidade física, mas que encerram um profundo sentido
moral: o natural se torna castigo e símbolo de profunda e repugnante
humilhação e derrota (Lv 1l,41s; Is 49,23; Mq 3,17).
A sentença divina é aplicada segundo a ordem da transgressão: à
Serpente (arrastar-se e lamber o pó), à Mulher (incômodos da mater-
nidade) e a Adão (o peso do trabalho). Nos vv. seguintes (14-19) há
dramatização teológica. NB: Babilônios, egípcios e cananeus represen-
tavam a deusa-serpente
"andando ereta"; é bem possivel que o hagiógrafo, exibindo-a condenada a
"arrastar-se", queira opor-se aos cultos e mitologias dos povos que a faziam
th.>usa da fertilidade e fecundidade (cf. 2Rs 18,4).
A participação no primeiro pecado pareceria ter estabelecido ami-
zade entre a Mulher e a Serpente, mas pelo contrário tal amizade, uma
vez ludibriada, transforma-se em ódio, cujo sinal é a nossa atitude face
a uma serpente: não sossegamos até esmagá-la. Semelhante amizade
não é apenas entre a mulher e a Serpente, senão também entre as
respectivas descendências - é perpétua - até que a Descendência da
Mulher lhe esmague a cabeça, embora a Serpente continue ameaçando
e ferindo seu calcanhar.
No texto hebraico fala-se apenas da hostilidade ('êbã = luta habitual,
implacável, profunda, sangrenta; cf. 35,21s; Ez 25,15; 35,5) entre as
descendências da Serpente e da Mulher. Sendo a serpente figura do
i Inimigo, o texto contrapõe os homens ao demônio e sua caterva; pela
1 diversidade dos ferimentos: na cabeça (tão importante) e no calcanhar
l
(órgão de menos valor) - ele deixa entrever a vitória final do homem.
O texto grego (LXX) se refere à linhagem da- Mulher com um pronome
masculino - «autós», este, ele - o que levou os intérpretes atribuírem
tal vitória a um Descendente por excelência da Mulher, dando assim ao
texto sentido messiânico, sufragado por alguns SS. Padres. O texto
1 latino da Vulgata {S. jerônimo), por sua vez, substitui o pronome
masculino pelo feminino - «ipsa», esta/ela - versão que, associada
ao paralelismo Eva/Maria, forne&u base à intepretação mariológica do
t versículo em questão, referente à primeira mulher.
On 3,15 constitui-se na primeira promessa de redenção feita à hu-
manidade pecadora - o Prato-evangelho. O demônio acreditara que,
306
seduzida e vencida a primeira mulher e sua descendência, teria estabe-
lecido uma amizade perpétua entre ambas. Todavia, no plano divino,
dar-se-ia o contrário, visto que, desde então, se declarou uma guerra
para sempre entre a Serpente e Eva, com as respectivas descendências,
culminando com a vitória da Descendência da Mulher, vitória da própria
humanidade após ter sido vencida em Eva. É a maldição e o castigo
da Serpente, de início aparentemente vencedora - vitória que, na ver-
dade, foi princípio de uma derrota maior e definitiva.
Quem é a !vfulher? Os mariólogos insistem em ver nesse texto Maria,
em sentido próprio e literal, aduzindo inclusive argumentos de certo
valor, mais teológicos ou piedosos do que exegéticos. Entretanto, o
texto e o contexto sugerem que a «inimizade» se trava entre a Serpente
vencedora e a Mulher (Eva) vencida. Contudo, a Providência divina
fará com que a Mulher vencida agora seja, no futuro, vencedora em
sua descendência; aqui a grande humilhação da Serpente: ser suplantada
por Eva que antes fora vencida pelo demônio. A inimizade futura entre
a Mulher e a Serpente, com as respectivas linhagens, não surge em
decorrência do pecado atual de Eva, senão por uma especial intervenção
do juizo de Deus após o pecado: o castigo da Serpente consistirá em
que a Mulher, agora seduzida e escrava do mal, se torne por decreto
divino o seu maior inimigo, frustrando os planos diabólicos.
Portanto, o contexto exige que a luta, em sentido literal, se trave
entre a Serpente e Eva com suas descendências. A vitória caberá a
esta última. Naturalmente, On 3,15 possui caráter mariológico. Com
efeito, «Mulher» ('ishshã) aplica-se Jiterariamente a Eva (sentido direto),
- típica e plenamente a Maria (sentido indireto, implícito). A patrística
dá-lhe sentido mariológico a partir do paralelismo Eva-Maria: assim
como Eva é a mãe dos homens, Maria é a mãe espiritual dos redimidos
e, paradoxalmente, a imprudência e a desobediência de Eva foram repa-
radas pe1a obediência e fidelidade de Maria. Outros SS. Padres não
vêem ~laria nesse texto (Basílio, Gregório de Nazianzo, joão Crisóstomo,
Agostinho); aqueles que aceitam ser o texto mariológico, fazem-no
baseando-se não na luta/inimizade com a Serpente, mas no paralelismo
Eva/Maria, análogo ao de Adão/Cristo proposto por Paulo (Rm 5,12s).
Tudo parece indicar que o sentido mariológico está mais no termo
«descendência» do que em «mulher».
Quem é a descend€ncia? A linhagem da Serpente, em sentido coletivo,
é o conjunto das forças do mal que, aliadas à Serpente, lutam contra
Deus. Paralelamente à descendência da Mulher, como coletividade, seriam
as forças do bem que promovem o Reino de Deus e lutam contra seus
inimigos, vencendo-os.
Contudo, muitos há que dão ao termo sentido pessoal individual: a
descendência da Mulher seria alusão direta à pessoa do Messias, jesus,
real vencedor da Serpente. Mais óbvio, porém, admitir-se o sentido
coletivo: a posteridade da Mulher (Eva) são todos os seus descendentes,
a quem caberá a vitória. Entretanto, dentro desta coletividade emerge o
representante máximo, Jesus Cristo, o Messias, Rei vencedor do mal.
Logo após, em lugar de destaque e fora de série, está Maria.
Os vaticínios subseqüentes do AT vão concretizar e especificar esta
profecia geral, fonte de esperança para os homens pecadores.
Bibliografia: R. de Vau x, La Oenêse {Bj), Cerf/Paris, 1951; F. As e n si o,
Génesis fla S. Escritura), AT/I, BAC/J\\adrid, Hl67; C o 1 u n g a-Cor d e r o, Bihlia
Comentada, 1, BAC/i\\adrid.1960; P l r o t-C 1 ame r, La Sainte Bihle. 1/1, Paris, 195.1;
307
. ,
l P. E. Testa, La Sacra Bibbia, Oenesi i, J\\arietti/Turim-Roma, 1969.
P. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Segunda leitura: 2Cor 4,13-5,1
Santa Maria, RS
«Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus ressuscitará também a nós».
O apóstolo supera todos os sofrimentos pela força da fé, dom de
Deus e dá testemunho apesar de toda oposição. A fé é apresentada
como condição necessária para a proclamação da verdade e Paulo cita
o Si 116,10 para mostrar que o mesmo espírito de fé e de confiança
em Deus que tinha o salmista, ele também o tem no Senhor ressuscitado.
Assim a consciência da fraqueza não o oprime, pois já experimentou
as maravilhas da fé que fundamenta sua esperança.
Ele espera um futuro glorioso pois o Deus que ressuscitou Jesus
Cristo ressuscitará também os fiéis, e a comunhão pessoal que há
atualmente entre os cristãos sobreviverá de alguma .forma na vida futura.
Paulo triunfará junto com seus ouvintes; juntos, todos participarão do
cortejo de Cristo, não haverá mais distinção entre fiéis e apóstolo. Essa
expressão carinhosa de Paulo estimulava os cristãos de Corinto a espe-
rarem na sorte gloriosa, pois a ressurreição de Cristo era uma garantia
da ressurreição da Igreja.
Esse texto paulino mostra, então, a ressurreição do cristão como
algo de futuro, excluindo que ela tenha já acontecido no batismo (cf.
CI 3,1-2,12), corno significando um tempo cronológico no passado.
Todos os sofrimentos de Paulo são em favor dos cristãos e produzem
uma força interior que faz superabundar a graça. Pelo sofrimento do
apóstolo o Evangelho ganha terreno; amarguras e perigos abrem um
caminho para a verdade de Deus. Como o sentido da existência humana
é proclamar a glória de Deus, e quanto mais pessoas crerem em Jesus
Cristo mais serão os que darão glória a Deus, o fim último da atividade
apostólica é aumentar o coro dos que dão glória a Deus.
A parte física, corruptíveJ do homem pode se consumir e sua força
vital ser aniquilada, o homem interior, espiritual criado em nós no
batismo, porém, é imortal, animado pela fé e o Espírito Santo. Cada
dia de novo recriado pela força do amor de Deus, ele assume a imagem
de seu criador (cf. CI 3,10) torna se nova criatura. A esperança
é portanto maiOr que as tribulações, pois a força interior da graça
levará à vida da glória, à salvação definitiva, tornando nosso corpo
i
glorificado (cl. Rm 8,11; JCor 15,22-28). · C
O texto pode ter também uma interpretação diretamente missionária.
Paulo consome sua existência realizando sua vocação apostólica, o
homem interior, porém, ganha cada dia mais força e energia pela ação
do Espírito que o realimenta. ' A'
A idéia de Paulo, por_ém, não é dizer que o sofrer mereça por si
li só a recompensa eterna, pois a glória é um dom. De fato só pela graça
de Deus é que o cristão mira a morte como passagem para a vida.
E o fato dos bens eternos serem invisíveis não significa uma diminuição
de valor, mas que o invisível é eterno, pois a fé vai além da fatuidade
(Hb 11,1).
Nesse contexto, a comparação de nossa vida com uma morada/tenda
a ser substituída por um edifício, obra das mãos de Deus, é a aplicação
308
simbólica do conceito de transformação do homem exterior em interior.
Paulo usa uma terminologia bíblica compreensível para o nômade e o
sedentário, para explicar a nova corporeidade que o Espírito nos dará
{cf. 1Cor 15,44s), um corpo dom de Deus que supera e escapa a nossa
compreensão material.
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
Paulista, PE
Terceira leitura: Me 3,20-35
1. O contexto
No domingo passado, analisamos o início das chamadas controvérsias
galilaicas (2,l-3,35), constituído por um conjunto de cinco discussões
entre Jesus e seus adversários. Hoje vamos estudar o segundo grupo
das controvérsias, contendo duas novas acusações gravíssimas contra
o Cristo (3,20-35). O díptico é ligado por duas dobradiças: um sumário
(v. 7-12) e a instituição dos doze (v. 13-19).
O sumário é um pequeno resumo ·idealizado da atividade milagrosa
do Cristo reunindo as multidões entusiasmadas, não só da Galiléia mas
de todas as regiões habitadas pelos Judeus (notemos a ausência da
Samaria!) Tem tanta gente que Jesus corre até o risco de ser compri-
mido! Diante deste triunfo popular e da cegueira dos eruditos (os
escribas e os fariseus), o Cristo rompe definitivamente com a sinagoga
para pregar doravante nas casas de amigos ou, simplesmente, ao ar
livre: num barco, num monte, em baixo duma árvore, na estrada ...
Até os espíritos impuros reconhecem a sua filiação divina (v. l l).
Jesus vai também instituir o grupo dos Doze para enviá-los a pregar
o Evangelho, com o poder de expulsar os demônios.
2. Comentário do texto
O trecho proposto peJa liturgia de hoje tem urna perfeità estrutura
em quiasma na qual as diversas conclusões aparecem na ordem inversa
de sua introdução:
A - Os parentes de Jesus querem prendê-lo. v. 20-21
B - Primeira acusação: está possuído de Belzebú ! 22a
- Segunda acusação: exorciza pelo príncipe dos demônios! 22b
D - Logion sobre Satanás. 23-26
C' - Resposta à segunda acusação. Z7
B' - Resposta à primeira acusação. 28-30
- O verdadeiro parentesco de Jesus. 31-35
2.A. Os parentes de jesus querem pren.dê-lo (20-21)
Só o segundo evangelista narra este pequeno episódio no qual os
parentes de Jesus («os seus») emi_tem um julgamento altamente pejo-
rativo e desrespeitoso («ele está fora de si})); querem até agarrá-lo
porque parece ter perdido a razão. Os outros evangelistas preferiram
deixar de lado este trecho que poderia ser prejudiciável à pessoa de
309.
 1
Jesus Cristo. ·d-
Corno já o notamos no sumario (v. 7-12), Jesus prega à multi ªº'.
fora da sinagoga, numa casa, provavelment.e a de Simão e André C1 29
2 1) onde o Cristo devia sentir-se bem a vontade. Todavia há tanta
g~nte que nem podem tomar as refeições!
2.B. Primeira acusação: está possuído de Belzebú! (22a)
o.
Escribas vindo especialmente de jerusalém, para acusar o Cristo,
começam a ~spalhar um boato: Jesus faz suc~sso porque fez um pact?
com 0 príncipe dos demônios, chamado ind1ferenterne~te de ~e~ze~u,
Santanás ou Belial (2Cor 6,15): todos estes nomes designam o 1n1m1go
que se opõe à vinda do Reino de Deus, o Espíri.to do Mal. .
Mais uma vez Me é o un1co dos evangehstas a mencionar esta
acusação assim co~o a procedênCia hierosolimitana dos escribas.
2.C. Segunda acusação: expulsa os demônios pelo poder do principe
dos demônios (22b)
Os doutores da Lei espalha~ ainda outra mentira: jesus exorciza
porque o próprio demônio age nele! Liberta os homens com a força
que escraviza!
2.D. Logion sobre Satanás (23-26)
Chegamos à parte central do quiasma; é também a mais desenvol-
vida. Pela primeira vez, Me diz que o Cristo vai respon.der em parábolas.
A parábola é um gênero literár~o de forma comparativa, carr~gado de
imagens inteJigíveis só pelos iniciados. Boa parte delas - e o caso
aqui - referem-se à vinda do Reino de Deus.
O Jogion compõe-se de três comparações começando cada uma por
«E se . .. ». Primitivamente, estas partes deviam ter a mesma estrutura;
esta foi ligeiramente modificada por algumas adições marcianas:
- «tal reino» (primeira comparação, v. 24c);
- «tal casa» "(segunda comparação, v. 25b);
- «mas tem fim» (terceira comparação, v. 26c).
O Jogion original devia então apresentar esta forma:
- «E se um reino estiver dividido contra si mesmo,
não pode subsistir;
E se uma casa estiver dividida contra si mesma,
não pode subsistir;
E !$e Satanás se levantar contra si mesmo,
não pode subsistir».
A «Casa» da segunda comparação deve ser entendida no' sentido
metafórico de <familia» (cl. 2Sm 7,11-12).
As duas primeiras condicionais indicam uma simples eventualidade
(ean + subjuntivo) enquanto a última focaliza uma realidade (ei +
indicativo). . da sua resposta desaparece se considerarmos que Jesus está falando
A última parte do Jogion é um pouco surpreend~nte porque deixa
a gente imaginar uma pluralidade na pessoa de Satanas; para tornar a
comparação mais plausível, Me acrescentou o verbo «se .Jevantou» (contra
310
si mesmo).
A argumentação de Jesus é clara: se o mal serve para fazer o bem,
age contra si mesmo autodestruindo-se! Uma vez posto o principio geral,
Jesus vai responder a cada urna das acusações feitas, começando pela
última.
2.C'. Resposta à segunda acusação (27)
O logion sobre «O forte» é uma reminiscência das palavras de João
Batista: «Após mim vem aquele que é mais forte que eu» (1,7a). A
força era uma das virtudes do Messias (Is 11,2; 49,24-26; 53,12); mani-
festa-se na luta de Jesus contra o Espírito do Mal.
Na alegoria contada aqui, «o forte» é o príncipe dos demônios.
Jesus é mais poderoso que Satanás. Lc é mais explícito: «Sobrevindo
outro mais forte do que ele, vencendo-o, tira-lhe toda a sua armadura
em que confiava, e reparte os seus despojos:i> (Lc 11,22). Se jesus
expulsa os demônios, é sinal que acorrentou Satanás (Ap 20,1-3).
2.B'. Resposta à primeira acusação (28-30)
A glosa do v. 30 indica claramente que jesus refere-se à acusação
de estar possuído de espírito impuro.
A resposta de Jesus é um dos textos que melhor ~i:nbam a força
de perdão presente -em Deus. O fogion começa com a ·:P@ã.v,ra hebraiCJt
«amen» ( = «em verdade») que tem um sentido afirmativo reforçado.
~D Cristo diz «aos homens tudo será perdoado, os pecados e até as
blasfêmias que blasfemarem» (v. 28). ImpQssível perdoar mais!
Porém, diante de tanta bondade divina, há entretanto o famoso
pecado contra o Espírito que parece abrir uma exceção. Em que consiste
exatamente? Conforme o contexto imediato, é. o seguinte: quem atribuir,
de má fé, às forças do mal o bem gerado por Jesus Cristo exclui-se a si
mesmo do plano salvifico de Deus. Não é Deus que recusa o perdão,
é o pecador que recusa em acolher a salvação oferecida gratuitamente
pelo Pai através do Espírito Santo que age em jesus. É a própria
pessoa que se fecha, radical e voluntariamente, por causa da cegueira
e dureza de coração (3,5). Tal recusa de conversão impede o perdão.
Nisto consiste a blasfêmia contra o Espírito ou, em outras palavras, o
pecado eterno (v. 29).
2.A'. O verdadeiro parentesco de jesus (31-35)
Os três sinóticos contam este episódio, seja antes do ensino em
parábolas (Mt/Mc), seja depois (Lc).
Em Me, a chegada da mãe e dos «irmãos» (= os primos) de Jesus
(cf. Mt 12,46) constitui uma seqüência direta aos v. 20-21. jesus está
pregando na casa de André e de Simão. Por causa da multidão, Maria
e os outros familiares não podem falar pessoalmente com o Cristo. Por
causa disto, mandam alguém avisá-lo de sua presença.
É um fato muito banal do qual Jesus vai aproveitar-se para mostrar
que veio reunir todos os homens numa só família. A dureza aparente
não com os membros da sua família mas sim à turba. Em termos
atuais, o Cristo diria que a sua familia não se restringe aos vinculas
do sangue: reúne todos aqueles que fazem a vontade de Deus (paren-
311
 .,
j
1
1
tesco espiritua1), o Pai de todos os homens e de todas as mulheres.
Com efeito, o Espírito que o Filho veio trazer é um espírito de comunhão
e participação no próprio Amor de Deus que se exerce soberanamente
perdoando. É SÓ acreditar e agir de maneira conseqüente!
Pe. Hugues d'ANS
Lins, SP
Bibliografia: Veja 911 Domingo do Tempo Comum, Ano B.
Tema prlnclpal:
Vontade de Deus x ideologia dominante
· Sugestões para a homilia
Introdução
O Evangelho deste domingo nos apresenta Jesus julgado por
seus contemporâneos. Quem é este homem que desrespeita o dia
sagrado, que anda em companhia de pecadores ~ de ignorantes,
que se arvora em autoridade sobre a Lei e a tradição? Os
contemporâneos de Jesus têm uma resposta. De onde eles a
tomam? Em linguagem sociológico-filosófica se pode dizer: da
ideologia dominante.
1. Ideologia dominante: «todos pensam assim»
Quando emitimos um parecer espontâneo, quando medimos
os valores que se nos apresentam, temos alguma medida, algum
critério para o julgamento. Muitas vezes dizemos: «Está claro.
É óbvio. Todo o mundo pensa e faz assim». Será que a opinião
da maioria é razão suficiente para nossos julganientos e nossas
ações? Já perguntamos algum dia por que «lodo o mundo pensa
assim»?
O cristão devia ser pessoa dotada de espírito crítico que
não aceita, sem mais, o que «lodo o mundo pensa e faz». Devia
levantar a suspeita de que por trás do óbvio, do comum, há
alguma malícia escondida, fruto do pecado humano. Se assim
o fizéssemos, haveríamos de descobrir que coisas aparentemente
tão naturais e óbvias, apenas ocultam um esquema de pensa-
. ·I
mento e de. ação que vem a dar em vantagem para alguns
membros da sociedade, os mais poderosos.
De fato, em toda sociedade onde há um esquema de domi-
nação, os dominadores procuram fazer com que todos pensem
que a verdade está do lado deles. Como são poderosos, acabam
312
de fato impondo «sua» (falsa) verdade como verdade universal.
Todos - na medida em que não têm espírito critico ou, falando
cristãmente, na medida em que não procuram discernir a von-
tade de Deus - acabam assimilando os valores propostos pela
classe dominante da sociedade, esquecendo os verdadeiros valo-
res. É o que se chama «ideologia dominante». «Ideologia»·,
porque é uma falsa consciência da realidade e dos genuínos
interesses da sociedade; «dominante», porque sub-repticiamente
imposta pelos dominadores.
Hoje existem inclusive meios poderosíssimos de inculcar a
ideologia dominante: os meios de comunicação de massa. Por
exemplo, a TV, através das novelas (mas não só), leva ao
conhecimento dos mais afastados rincões do Brasil o modo de
vida da classe alta da zona sul do Rio. Mas não só dá a
conhecer, senão que o apresenta como norma], como algo a ser
desejado por todos e que qualquer um, com um pouco de sorte,
pode atingir. O ideal do dinheiro, do poder, do sexo fácil e
despersonalizado é transmitido como ideal humano para todos.
Na luta por esses pseudovalores tudo serve. Pouco interessa a
honestidade dos meios. A problemática do operário, do lavrador,
do favelado, enfim, da imensa maioria da população brasileira
aparece rarissimamente na novela. E, quando aparece, é na
perspectiva distorcida pelos interesses dos dominadores: não
são apresentados em suas lutas e reivindicações, mas tentando
«Subir» ao «ideal» por meios ilícitos ou por golpes da sorte.
Desta forma é 1inoculada a ideologia dominante: a vida é assim,
uns estão por cima com dinheiro, poder e prazer, e os outros
por baixo procurando imitá-los, mesmo que consigam apenas
uma caricatura do ideal alcançado pela classe alta. Sorte de uns,
azar dos outros. - Quem tem vantagem em que se pense assim?
Os que estão por cima.
A imposição do esquema de vida e pensamento dos pode-
rosos não é exclusiva de nossa sociedade. É própria de toda
sociedade de classes, seja no mundo capitalista ou no socialista,
seja hoje ou no tempo de Jesus.
No tempo de Jesus a classe dominante impunha como
esquema de conduta a observância estrita da Lei Mosaica em
moldes farisaicos, embora na própria classe dominante houvesse
os laxos na observância legal (saduceus). A Lei para os fari-
seus era interpretada não como ajuda à realização do homem,
mas como valQr em si. Essa interpretação da Lei e sua obser-
vância requeriam uma ciência muito complexa, inacessível ao
povo simples e que, portanto, o mantinha eternamente depen-
dente dos sábios e poderosos. Em vez de assumirem sua res-
313
ponsabilidade diante de Deus, as pessoas do «povão» tinham
que perguntar às classes dirigentes o que deviam fazer para
agradar a Deus. Desta forma, assimilavam os valores das clas-
ses superiores e julgavam seus semelhantes segundo os padrões
farisaicos. E tudo isso era considerado natural, normal. Dava-se
exatamente o fenômeno da «ideologia dominante»
2. jesus julgado pela ideologia dominante
O Evangelho deste domingo nos apresenta dois juízos sobre
Jesus: o de seus parentes e o dos escribas vindos de Jerusalém:
Os parentes de Jesus são gente simples, pessoas do povo, oriun-
dos da miserável Nazaré. Mas seu juízo sobre' Jesus coincide
magnificamente com o dos doutores: «Ele está louco», pensam
os parentes. «Ele está possesso», supõem os doutores.
Por que? Percorrendo o Evangelho de Marcos até o ponto
desta narração, podemos compreender. Jesus anuncia o Reino
ele Deus ( cf. Me l, 15) e, no entanto, reúne em torno a si
homens ignorantes, pescadores ilettados que não conhecem a
Lei (cf. l,17 e 20). Toca no leproso (cf. 1,41), o que era abso-
lutamente proibido ·pela Lei. Perdoa os pecados, direito exclusivo
de Deus ( cf. 2,5s). Chama para ser discípulo um pecador
público, cobrador de impostos (cf. 2,14). Toma_ refeições com
pecadores, num sinal visível e patente de confraternização ( cf.
2,15s). Não jejua conforme a tradição (cf. 2,18). Defende seus
ignorantes discípulos que desrespeitam o sábado (cf. 2,23s).
Quebra ele mesmo o mandamento do descanso sabático ( cf.
3,ls). Em resumo: Jesus não segue os padrões -vigentes, <<nor-
mais», de conduta de um judeu fiel e muito mais de um rabino.
Jesus não vive como todos vivem ou esperam que ele viva, não
repete o que todos fazem e dizem, não reproduz a ideologia
dominante. Pelo contrário, com ações e p:ilavras, contradiz
frontalmente a interpretação corrente da Lei.
Qual é o veredicto daqueles que fazem eeo à ideologia
dominante? Não pode ser de Deus. O «deus» da ideologia domi-
nante exigia outra atitude que a de Jesus. Logo só pode ser
louco ot1 possesso. Louco, porque enfrenta os poderosos; pos-
sesso, porque desrespeita a Lei de Deus (embora esta já não
seja de Deus, pois foi privada do espírito). ,.
( em si mesmo. O sábado é para o homem (espigas) e o bem
3. A vontade de Deus, contra-ideológica
' seca).
Ao julgamento de seus contemporâneos ideofogizados, Jesus
contrapõe a vontade de Deus. «Olhando os que estavam ao seu
314
redor, disse: 'Eis minha mãe e meus irmãos! Quem faz a von-
tade de Deus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe'»
(Me 3,34s).
A vontade de. Deus é a razão por que Jesus rompe o círculo
fechado da ideologia dominante. Mas não é também a vontade
de Deus que os fariseus buscam em sua interpretação da Lei?
A diferença está em que, enquanto os fariseus a buscam no
abstrato da letra, Jesus a encontra na necessidade concreta do
homem e nas circunstâncias cambiantes da existência. A vontade
de Deus é eterna e imutável (e nisso os fariseus tinham razão),
mas apenas enquanto o amor, lei suprema, é eterno e imutável.
O amor, no entanto, precisa concretizar-se nas situações variá-
veis da história. E aqui está o elemento tipico da busca da
vontade de Deus segundo Jesus.
Em última análise é uma questão de perspectiva. Os fariseus
vão à Lei, procurando confirmação para a situação vigente que
eles pretendem imutável e eterna e por isso. procuram solidifi-
cá-la em Deus. Mas desta maneira interpretam a Lei desde o
, lugar social dos poderosos. Jesus busca a vontade de Deus na
necessidade histórica do homem e, por isso, desde o pobre e
marginalizado, e.julga a letra da Lei. A vontade de Deus, também
para Jesus, é imutável e eterna: a realização (a salvação) de
• todos os homens. Mas, como os homens são históricos, deve ser
procurada no partidarismo pelos que não têm vez. O texto de
Marcos, identificando «quem faz a vontade de Deus» com
aqueles que estão ao redor de Jesus (cf. Me 3,34s), põe no
seguimento histórico de Jesus a chave para encontrarmos a
vontade de Deus.
Tudo o que o Evangelho de Marcos narrou de Jesus, até
este ponto, está repleto de desobediência à letra da Lei. E, no
entanto, tudo recende a amor pelo homem concreto. Jesus não
separa em compartimentos estanques o que é de Deus e o que
é do .homem. Os pescadores da Galiléia também são chamados
por Deus, capazes de ouvir sua mensagem e transmiti-la, embora
incapazes de se adentrar nas sutis disquisições das escolas rabi-
nicas. Os leprosos também são pessoas humanas e merecem ser
tratados como tais e não como animais que se afugentam. Os
pecadores também têm chance diante do Deus rico em miseri-
córdia. O jejum é apenas um meio e não um fim com sentido
de outrem está acima da observância ritual (homem da mão
Jesus ensina assim a encontrarmos a vontade de Deus não
no abstrato da ideologia dominante: «lodos fazem, todos dizem,
315
 é moda, é lei, sempre foi assim». Mas no concreto do amot às
pessoas, especialmente aos pequenos e desprezados, auscultando
suas necessidades, confiando em sua humanidade, dando chance
para um novo começo. A vontade de Deus assim buscada des-
perta a criatividade própria do amor, traz consigo uma nova
ótica para ver a realidade e, desta forma, rompe com os esque-
mas pré-estabelecidos da ideologia dominante e cria novas estru-
turas de relacionamento. Por isso mesmo a vontade de Deus é
critica do «status quo», é destruidora das ideologias dominante~.
4. A Igreja, seguindo a jesus, na busca
da vontade de Deus
Atualmente não é incomum ouvir acusações contra bispos,
padres e leigos que entendem, no entanto, simplesmente seguir
o Evangelho. A Igreja é acusada de subversão, de comunismo,
de intromissão indevida no político, de abandono' de sua missão
específica, espiritual. Nisto ela não está acima de seu Mestre.
Também ele foi acusado.
Que há por detrás dessas acusações? Interesse pela Igreja
e pela causa de Cristo? Ou outros interesses? Também no juízo
sobre essas acusações é preciso auscultar quem está buscando a
vontade de Deus no seguimento de Jesus: a Igreja engajadà na
tradução sócio-política do Evangelho ou seus acusadores, talvez
bem intencionados, mas levados pela ideologia dominante? Se a
vontade de Deus eterna e imutável é a concretização do amor,
estão no rumo da vontade de Deus aqueles que procuram cons-
truir o amor na concretidade das situações sócio-político-econô-
micas. Construir o amor contra o desamor reinante (e não contra
outra forma abstrata de desamor). Como Jesus, que denunciou
por gestos e palavras a escravidão do homem à Lei (que era
então a forma concreta do desamor). Não tardarão as acusa-
ções («louco», «possesso», «comunista» ... ) . Assim a voz da
ideologia dominante, condendando-nos, confirmará; por contraste,
que andamos na trilha de Cristo tendo encontrado a vontade
do Pai para o aqui e agora.
Francisco Taborda, S.J.
Curitiba, PR
316
Décimo Primeiro Domingo do Ano B
Pistas Exegéticas.
Primeira Leitura: Ez 17,22·24
«Sou eu, o Senhor, qlle abate a árvore soberba e exalta o humilde arbusto»
No cap. 17 Ezequiel ocupa-se do destino dos dois ú1timos reis de
Judá, Joaquim e Sedecias. O texto poético assume a forma de alegoria
ou parábola (v. 2). Melhor dizendo, temos aqui uma fábula, pois entram
em cena animais e plantas, que falam e agem como homens.
O texto original básico inclui a alegoria (vv. 3-10) e sua explica-
ção (vv. 11-15.19). Uma grande águia tirou a copa de um cedro e o
substituiu por um tronco de árvore (vv. 3-5). Isto é, Nabucodonosor
levou joaquim, da casa de Davi (=copa do cedro), para o exílio e
o substituiu por Sedecias, «tronco de árvore da terra» (v. 5). Este
tronco, por sua vez, prosperou e tornou-se uma videira frondosa. Mas
Sedecias mostrou-se ingrato e estendeu suas raízes em direção à se-
gunda·, águia, o Faraó do Egito, buscando apoio contra Babilônia. O
resultado, segundo o profeta, era uma punição exemplar de Sedecias
por ter violado a aliança com Nabucodonosor. De fato, Sedecias foi
punido (cl. 2Rs 25,3-5).
O texto básico sofreu expansões posteriores (17,16-18.20-21.22-24)
devidas ou ao próprio Ezequiel ou a seus discípulos. Estes compuse-
ram a segunda alegoria (vv. 22-24), que tem por finalidade desfazer
a impressão desesperadora deixada pela alegoria das duas águias. O.
autor (autores?) deste acréscimo está preocupado com o futuro do cedro,
ou seja, da dinastia davídica, cujo representante estava no exílio _de
Babilônia. Segundo ele, o próprio Deus, contrapondo-se às potências
terrestres e a seus planos (cf. 17,3.12s), intervirá em favor da dinastia
davidica. Tomará um galho da copa do cedro e o transplantará para
a montanha de Jerusalém. Este ramo tornar-se-á «um magnifico cedro»,
em cuja frondosa copa viriam aninhar-se as aves. Assim anunciava o
profeta o renascimento prodigioso da dinastia e do reino davídicos.
quase aniquilados por Babilônia. O texto reafirma assim a fidelidade
divina· às promessas feitas a Davi (cf. 2Sm 7), não obstante o aparente
fracasso deste «humilde arbusto> (v. 24).
O Evangelho deste domingo retoma, na parábola do grão de mos-
tarda (Me 4,30-32), a imagem profética de Ezequiel, para falar do
misterioso crescimento do Reino de Deits. A Igreja primitiva, cônscia
de suas insignificantes origens palestinas, maravilhava-se nesta parábola
com a prodigiosa expansão do Evangelho no mundo greco-romano.
Esta mesma força oculta do Reino de Deus age também hoje na
Jgreja, especialmente entre o povo humilde e nas Comunidades Eclesiais
de Base. Deus continua sendo ainda hoje fiel àS suas promessas, «aba-
tendo a árvore soberba e exaltando o humilde arbusto» (v. 24).
Blbllograifa: Comentários de W. Z 1 mm e r J 1 e de K. W. C a r I e y.
L. Garmus, O.F.M.
Petrópolis, RJ
317
 &lgunda Leitura: 2Cor 5,6-10
cgntexto. Em 2Cor 4,7-18 Paulo falar~ da fragllldade da vida ("em vasos de
barr_? , cf. On 2,7·), da morte ~o dia-a-dia, expressando ao mesmo tempo a con-
vlcçao da existência de uma vida Jmperecivel (4;14-18). Por nós mesmos somos
nada, com Deus podemos muito. ~m nosso texto (5,6-10) expllcita-se com detalhes
a expectativa parusiaca, porém ca e lá o mesmo tema é posto diversamente A
vida e a morte, em 4,7-18, são apresentadas segundo a fé e a devoção as coiihe-
cem, ao passo que,' em 5,1-10, os valores escal:olõgicos são descritos como tese
dogmática, qual história futura. Sei em 4,1 I-16, a morte diária nos une mais forte-
mente ao Senhor, em 5,6-10 a v da corporal significa a separação do Senhor. Em
4,J6ss, o Apóstolo disser3: cheio _de confiança que a morte fora vencida; agóra, em
5,õ-10, mostra-se apreensivo diante dela,• quando se aproxima e da qual ninguém
escapa. O tesouro guardado em vasos de barro é o ministério apostõ.ico.
É claro, isso não envolve contradição. De ~m lado hã a teoria e, do outro,
fala ª· _Prática. Isso ocorre nas Cartas dos Apostolos, visto que não são manuais
sistemat1cos, mas troca de vivências. Certas afirmações são dogmáticas enquanto
outras são constatações práticas da criatura humana. No contexto imédlatamente
anterior , (v. l )! Paulo compara nosso corpo a uma tenda que, cessando o acampa-
~ento, e desfe ta. O mesmo acontece com o corpo após a presente vida. A morte
e descrita como mudança. para outr.3: mor.ada, que não é bem o céu, mas 0 novo
corpo que Deus nos dara e que 1a esta preparadf?, desde a eternidade, junto a
Deus. Deus sabe e pode dispor, como e quando qmser de ta1 corporalidade nova
pela qual todo homem anseia. Para o Apóstolo esta cor'poralidade celeste se afigur~
con;io i:,ma ~ob,~eveste. O homem, com a morte, perde a velha corpora1idade, ficando
assim _despido enquanto não assumir a nova. Eis por que almeja a nova roupagem
para nao continuar desnudo - um estado precário! Paulo preferiria que o corpo
mortal fosse ~eyesti~o do celestial sem passar pelo "despir-se" - a morte, a qual
é um adver~an_o d1an!e do qual ? homem sucumbe, já que destrói a vida. O
homem em s1 nao dese1a p_.:rder a vida, antes anela por uma vida nova para sempre,
espera!J.dO que o mortal nao pereça, mas se metamorfoseie pela redenç; 0 em reali-
dade imortal (v. 4). Deus assim quis fosse o nosso destino: morrer ser trans-
fonn3:do. Para tanto deu-nos a garantia da fé e da esperança pela infusão do
Espinto Santo (v. 5).
Texto. A presente vida equivale a um exilio, longe do Senhor jesus
Cristo que, por sinal, nos espera (v. 6). l\.lorrer é retornar à pátria, a
Ele. Em conseqüência, esta vida é uma caminhada-, um estágio na
.esperança.
A idéia do v. 5 é um calmante para nossas inquietudes e preocupa-
ções; é natural em nós o medo de morrer, mas não é ineficaz pois
será plenamente satisfeito com a vida eterna, cujo penhor é o ~pirito
Santo. Se estamos com Cristo, com Ele ressuscitaremos (lCor 15,i2-23).
O mesmo divino princípio da ressurreição de Cristo transformará nosso
corpo de morte em corpo glorioso (Rm 8,11). Cristo glorificado,'' como
Senhor do Universo, está tota1mente em outra esfera de existência -
que o ser~ também de maneira 'duradoura para todo cristão, rumo à qual
se ~ncam1nha. Nesta terra, todos nos sentimos exilados, aguardando a
partida para o Senhor (cf. FI 1,21-25; 3,20s). Paulo não se preocupa
tanto por escapar da morte, quanto de viver com Cristo únicO bem
iPdefectível. ' até a segunda vinda de Cristo para receberem seu destino eterno, _
O v. 7 explica a frase precedente, traçando rapidamente a situa-
ção humana na presente vida: . andamos à luz da fé, ainda não ,vemos
a Deu~. Ser. c!istão . é estar ·com/em Cristo (2,14; 1314). Entr~tanto,
agar~ _isto so. _e poss1v:1 graças à fé 1 segundo a qua1 procedemos. Só
na v1sao beatifica, depois da separação corpo-alma, consumar-se-á nossa
união com Cristo (cf. Fl 3,20). «Hoje vemos como por espelho confusa-
mente; ~as então veremos face a face; hoje conhecemos ~m parte,
mas entao conheceremos totalmente ... » (lCor 13,12). Descreve-se ai
C.v. 7) a expectativa do cristão, quase uma inquietude, embora con-
fiante. Paulo, como todo cristão, aspira com ardor («eudokoí'imen»)
ausentar-se do corpo para ir, logo após a morte, habitar junto do
Senhor, o que seria lucro (cf. 1,21-25). Antes (w. 3-4) descrevia o
318
medo da morteJ como horror de estar despido - estado intermediário
entre esta vida e a futura. Agora (v. 8), esse receio, aliâs compreensível,
vem acompanhado de plena confiança, já que morrer significa ir morar
com . o Senhor, sem solução de continuidade. A união com Cristo dá
a tônica à nosstt existência toda: agora, ao morrer, na visão beatífica.
Logo, não há motivos para angústias cegas e desesperadoras. A mesma
idéia' aparece em lTs 4,17s: «Depois nós ... seremos arrebatados ...
sobre nuvens ao encontro do Senhor. . . e assim estaremos para sempre
com Ele» (cf. Lc 16,22s; 23,43).
A teoria sucede a prática (v. 9): seja na vida presente, agora e
aqui, como na futura, deve-se agradar a Deus, cumprindo sua von...
tade. A confiança cristã não é nem exa1tação nem sentimentalismo,
mas condiciona o dia-a-dia num esforço contínuo por agradar a Deus
(«euárestos» = atitude do servo que se esmera para granjear a estima
do patrão; cf. lTs 4,1; Rm 12,ls; 14,18; E! 5,10; FI 4,18; CI 3,20;
Hb 13,21). Se conseguirmos, já nesta vida, o favor de Deus, então
poderemos contar com Ele no céu, e o ausentar-nos do corpo ( =
morte) equiva1erá a habitar com o Senhor. Caso contrário, incorreremos
no seu juízo (v. 10; juízo particular). É muito importante para todos
conseguir as boas graças do Senhor para o dia em que haveremos
de comparecer perante o tribunal de Cristo, juiz universal de todos os
homens, com seus atos internos e externos. Ta1 juiz, no VT, é Javé.
No NT quem julga é Deus Pai (cf. Rm 3,6) e também Jesus Cristo
(e!. Mt 25,3Jss; ]o 5,22; Rm 2,16; 14,10; !Cor 4,4s; 2Cor 5,10). Se
Cristo possui tarefa idêntica à de Deus Pai, depreende-se daí a sua
divindade.
A recompensa será segundo o bom ou mau procedimento, - o que
não obsta àquilo que escreve em outro contexto: que o homem não
é justificado por suas próprias obras senão pela generosidade divina
(Rm 3,24). Entenda-se bem: se é Deus quem realiza a grande obra
da redenção, nem por isso o homem fica inativo (cf. Fl 2,12s). Ambos
- Deus e o homem - operam em conjunto. O dom de Deus (proposta)
representa para o homem tarefa e dever (resposta). Na obra da sal-
vação, Deus não age sozinho, mas é parceiro do homem, o qua1, se
não concorrer com sua parte, será repudiado. A pregação da graça
não dispensa o homem das boas obras, antes, obriga-o. Segundo Paulo,
todos teremos que dar conta do que fizemos nesta vida e, depois da
morte, já não haverá oportunidade para merecer o favor ou perdão
divino. Não se diz que as a1mas seperadas do corpo devam esperar
artes afirma-se claro o juizo particular, logo após a morte, exercido
por Cristo, sem esperar a parusia. O juizo particular é necessário para
que a alma possa entrar na familiaridade com ~risto.
Bibliografia: S e b e 1k1 e, K. H., Segunda Epistola aos Corlntios, trad. de
José/Irene H. Kloh, Vozes, Petrópolis 1967; Turra d o, L., Bíblia Cf!mentada. VI,
BAC, l'i\adrid, 1965; Ou ti é r r e z, P., Segunda Carta a los Conntlos, NT/11,
BAC, Madrid 1962; R e e s, W., Verbum Dei, iy, J!erder, Barce1ona 1959!
C o r n e 1 y, R., Commentarlum in S. Pauli Appsto.li Epistolas, 111, Paris 1909:
Os ty, E., Les Spitres de St. Paul aux Connth1ens. (J~j), Cerf, Paris 1949!
L "i o n n e t St Exegesis epistolae secundae ad Corinthios, PIB, Roma 1956,
z e d d a, $., p;ima leitura di S. Paolo, Paldeia, Brescia 1973.
Pe. Matheus F. · Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
319

Terceira Leitura: Me 4,26-34
«Com que compararemos o reino de Deus?»
Na Mesa da Palavra, Ano A/4 = REB 38 (1978/149), 420•ss;
430*ss; 439*ss, encontra-se um comentário do Sermão em Parábolas de
Mt 13, que é lido inteiramente nas Missas de três domingos. Do Sermão
em Parábolas de i\1c 4 lêem-se somente os vv. 26-34. Nas Pistas Exe-
géticas acima citadas J. Konings dá algumas informações sobre a .estru-
tura ou composição de Mt 13. J. Lambrecht (p. 29) sugere para· Me 4
uma divisão concêntrica (A-B-C-B'-A' e, dentro de B e C, duas vezes
a-b-a'):
A : Introdução: 4,1-2
B : A Parábola do Semeador: 4,3-20
a : O Semeador: 4,3-9
b: O Endurecimento: 4,10-12
a': A Explicação do Semeador: 4,13-20
C: Provérbios: 4,21-25
a: A Candeia e explicação: 4,21-22
b : Apelo dobrado para prestar atenção: 4,23-24a
a': A Medida e explicação: 4,24b-25
B': Parábolas das Sementes: 4,26-32
a : A Semente que cresce: 4,26-29
a': A Semente de mostarda: 4,30-32
A': Conclusão: 4,33-34
A leitura de hoje (4,26-34) faz, portanto, parte de um conjunto
literário maior. Pergunta-se se este conjunto foi criad'o par Marcos ou
se este o encontrou, pelo menos em parte, na tradição já existente?
A moldura de Introdução (4,1-2). e Conclusão (4,33-34) parece de
Marcos. A barca de 4,1 já se riienciona em 3,9 e volta de novo em
4,36. Também a multidão de 4,1-2 já está presente em 3,7-12 e 3,31-35
e volta em 4,36. A observação de 4,2a «(Jesus) lhes ensinou muitas
coisas ein parábolas» parece retomada em 4,33: «E com muitas parábolas
como esta anunciava-lhes a palavra». Por estes procedimentos literários
o evangelista marcou ·o iiiício e o fim do Sermão em Parábolas- e ao
mesmo tempo o inseriu na grande trama do evangelho todo.
O fim do v. 33b: «Segundo podiam entender» causa alguma difi-
culdade. Fora do contexto de Marcos pode ser interpretado em sentido
Positivo: Jesus adaptou-se aos ouvintes para que pudessem entender
melhor o Seu ensinamento. Ai, então, deveria ser atribuído à tradição
anterior a Marcos. Dentro do contexto de Marcos impõe-s·e antes um
sentido negativo e restritivo: «(somente) da maneira que eram capazes
de entender». Dos vv. 10-12 sabe-se que esta capacidade de - através
das parábolas - perceber o mistério do Reino e converter-se era mtiito
limitada. Por isso as parábolas precisam de uma explicação e esta era
reservada aos discípulos (cf. 4,10.13). Em 4,33b entendido em sentido
negativo e 4,34: ce não lhes falava .sem parábolas; a sós, porém,
explicava tudo a seus discipulo_s» o evangelista repete, pois, e genera-
liza a tese dos vv. 10-13.
Esta tese chama-se a teoria do endurecimento e a teoria do ensina-
mento em parábolas: Jesus pregava o reino de Deus de forma enigmá-
tica, isto é, em parábolas, para confundir e endurecer os ouvintes mal
320
dispostos e as explicava aos ouvintes bem dispostos. De onde vêm
estas teorias? Têm a sua origem na mente do evangelista Marcos, na
reflexão da comunidade cristã pós-pascal ou em alguma palavra ou
atitude de Jesus?
Não se duvida de que Jesus lançou mão do gênero literário das
parábolas para ser mais claro, ajudar a entender rnelher e adaptar-se
ao auditório e não em função de um ensinamento esotérico. Sobram
as outras hipóteses. A daqueles que opinam que Me 4,11-12 já existia
antes de Marcos e contém uma reflexão da comunidade e/ou uma
sentença de jesus proferida em um contexto histórico diferente. E a
daqueles que somente responsabilizam o evangelista Marcos pela forma
e pelo _conteúdo destes versículos.
Ambas as hipóteses supõem o problell)a grave da incredulidade dos
judeus frente à pessoa, à missão e à mensagem de Jesus. As primeiras
comunidades cristãs lutaram com este problema, como se pode deduzir
de passagens como Rm 9-11; Jo 9,39; 12,37-41; At 28,25-28. Uma leitura
destes textos mostra que Js 6,9-10 desempenhou um papel decisivo na
abordagem deste problema. Pode-se supor que tenha existido a opinião
de que uma «Vida de Jesus» ou um evangelho não seria completo sem
também falar em algum lugar deste problema. O quarto evangelista
escolheu· para tratar deste problema o contexto do fim - da vida pública
de Jesus. Logo depois da citação de Is 6,9-10, em Jo 12,37-41, segue-se
a última Ceia com o Lava-pés etc. Matcos escolheu o contexto do
início da vida pública, a saber, o Sermão em Parábolas. Apesar de
que Marcos em, por exemplo, 3,6 e 3,21-30 já tenha mencionado a má
vontade e o endurecimento de, entre outros, os fariseus e escribas, e
assim preparado a colocação do problema em 4,10-13, deve-se reco-
nhecer que o quarto evangelis~a foi mais .feliz quando com ele rematou
a vida pública.
A escolha de Marcos pode-se basear em um engano, a saber, em
uma tradução grega errada ou pelo menos ambígua de uma frase
aramaica~ A citação de Is 6,9 em l\ilc 4112 é introduzida pela frase:
«A vós foi dado o mistério. do reino de Deus, mas aos que são de
jora tudo se lhes propõe em parábolaS». Tentando-se reconstruir uma
tradução melhor desta frase a partir de uma suposta versão original em
aramaico., chegou-se a propor a leitura: .«A vós foi dado o mistério
do reino de Deus, mas aos que são de . fora tudo se lhes torna em
enigm~. Na tradução usada por Marcos a palavra hebraica mashal
ou o seu equivalente aramaico foi traduzjda com parabole. Esta tra-
dução restringiu muito o alcance da sentença porque a palavra, a1ém
de poder ter o sentido de parábola, significa também, por exemplo,
provérbio, aforismo, dito pitoresco, comparação, alegoria, enigma etc.
A tradução «parábol~ levou o evangelista - por uma associação
assaz infeliz -- a inserir esta sentença em seu Sermão em Parábolas
e provavelmente o tenha feito inventar as mencionadas cteoria do
ensinamento em parábolas» e «teoria do endurecimento».
No Sermão em Parábolas Marcos apresenta três parábolas: a do
semeador (4,3-9), da semente que cresce (4,26-29) e do grão de mos-
tarda (4,30-32). Estas últimas são geminadas, como em Mt 13,31-33
e Lc 13,18-21 as parábolas do grão de mostarda e do fermento. Nestas
parábolas Jesus não compara o reino de Deus com o próprio grão de _
mostarda ou com a semente, mas com aquilo que acontece ao grão .
321
e à semente ou, melhor ainda, com a árvore que se desenvolve do
grão e a colheita produzida pela semente. O terlium comparationis está
no contraste entre o início aparentemente insignificante e o fim im-
pressionante. De fato sublinham-se, no caso do grão de mostarda, tanto
a pequenez do início como o tamanho final. A mesquinhez do grão
de mostarda era proverbial. Marcos o descreve como «a menor de
todas as sementes da terra» (4,31). Mesmo assim pode se tornar um
arbusto de mais ou menos três metros de altura. Marcos a chama até
de «a maior de todas as hortaliças• (4,32). Mt e Lc fazem dela uma
«árvore». Os três evangelistas narram como peculiaridade que as aves
vêm abrigar-se nos seus ramos. Trata-se de uma imagem bíb1ica, usada
por. Daniel (4,9.11.18) e Ezequiel (17,23; 31,6), onde uma árvore que
abriga os pássaros simboliza .um reino grande que abrange todos
os povos.
Na parábola da semente pode-se destacar a descrição detalhada
do processo de crescimento como portadora de uma mensagem secun-
dária. O lavrador a ele assiste «sem que ele saiba como» a semente
germina e cresce. Ela cresce .:por si mesma>. Assim acentua-se de
maneira especial que a vinda do reino é misteriosa, sem causa palpável,
realizada por Deus. Por uma alusão implícita a Jl 4,13 em Me 4,29:
«se lhe mete a foice, porque a colheita chegou» a palavra colheita
ganha o sentido simhólico que muitas vezes tem no Antigo e Novo Tes-
tamento, a saber, a de «juízo final». Em Ap 14,15.18.20; 19,15 alude-se
ao mesmo texto de JI 4,13 neste sentido.
A parábola ensina, pois, que o reino de Deus vem com a mesma
certeza com que a semente uma vez semeada germina e cresce e produz
frutos. Esta certeza que, apesar das aparências em contrário de fra-
gilidade e hostilidade, o reino de Deus está chegando na pessoa, na
mensagem e na missão de jesus e que este começo garante a consu-
mação, inspira no crente a mesma atitude que marca a do lavrador.
Este, sintonizado com as forças e mistérios da natureza, segue o seu
ritmo: deita-se e se levanta, até que chegue a hora da colheita. Da
mesma maneira, quem estiver sintonizado com as forças e mistérios do
reino não se deixa desanimar nem paralisar pelas aparências em con-
trário de que nada adianta. . . «Não tenhais medo, não desanimeis,
pequenino rebanho, pois foi do agrado do vosso Pai dar-vos o reino»
(Lc 12,32).
Bibliogra/la: Além de comentários e da bibliografia sobre as parábolas citada na
lífeda da Palavra, Ano A, p. 388: ·· J. La m b r e e b t, Parabels in lífc 4, em T11T 15
(1975), 26-43; R. S tu h 1 ma n n, Beohachtungen und Ober1eg11ngen zu ,uarkus JV,
26-29, em NTS 19 (1972-1973), 153-162.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
322
Tema Principal
O REINO E O DESIGNIO INFALIVEL DE AMOR ACERCA DA CRIAÇÃO
Sugestões para a Homilia
Intr-0dnção
As parábolas, gênero literário preferido de Jesus, nos abrem
para o significado verdadeiro da expressão Reino de Deus. Sa-
bemos que o cerne da pregação de Jesus se concentrou em torno
do anúncio do Reino de Deus, presente já em nosso meio, e
ainda para ser finalizado no futuro. Compreenderemos as pará-
bolas da semente que cresce sem que o agricultor pense nela
e do grão de mostarda que, de pequeno, se revela como a maior
de toda& as hortaliças, se anteriormente explanarmos a expressão
Reino de Deus.
Corpo
1. Reino de Deus como design/o de felicidade sobre toda a criação
Há os que identificam Reino de Deus com a Igreja. Estes
apenas dizem uma meia-verdade. A Igreja não se identifica
totalmente com o Reino; o Reino está nela, mas também fora
dela; a Igreja é o maior sacramento do Reino, vale dizer, o
maior sinal e instrumento do Reino de Deus. Reino de Deus é
o desígnio de amor e felicidade que Deus vai construindo .ao
largo de toda a história. A criação é o lugar de realização
do Reino de Deus; a Igreja se encontra dentro da criação. Este
seu desígnio vai se realizando, apesar dos fracassos humanos
que não conseguem, entretanto, desviar do rumo da viagem.
Tudo o que de grande, de bom, de belo, de virtuoso, de justo,
de santo, de sábio e de honesto se construir entre os homens,
desde _os seus primórdios mais escurqs até nas civilizações mais
distantes de hoje, é concretização do Reino de Deus e reali-
zação do desígnio de Deus acerca de sua criação. Não cabe
ao homem destruir este desígnio de Deus. Ele é infalível e
sempre vitorioso. O que o homem pode, é furtar-se, não querer
entrar na procissão de Deus e militar contra. Mas isso não
estraga o desígnio divino, apenas prejudica o próprio homem.
Entendendo desta forma a realidade do Reino de Deus,
compreendemos a parábola de Jesus que o compara com a se-
mente que germina e cresce quer o agricultor durma ou vele;
saiba ou não da semente que ele um dia lançou à terra. A semen-
323
te tem seu ritmo e segue, infalivelmente, seu próprio destino. tempo de colheita» (Me 4;29). Então será o fim e Deus terá
Assim Deus tem seu projeto de glorificação para toda a cnaçao. levado sua criação para O· termo feliz em sua eternidade. Aju-
Vai realizá-lo, apesar de alguns e, quem sabe, até muitos, se damos a madurar o Reino pela nossa vida honesta, procurando
oporem a isto. Por causa desta vitória certeira, o Reino de Deus sempre o melhor. Cada ser humano resume, em pequeno, o que
é boa-nova, fonte de alegria e motivo de esperança. acontece, em grande, com a história. Quando estivermos pes-
soalmente maduros podemos ser colhidos por Deus; podemos
2. O designio de Deus privilegia os pequenos e os pobres partir para a posse do Reino. Nossa vida deve marchar para
O Reino de Deus abarca a todos os homens. Mas ele encontra uma perfeição cada vez mais completa. Oxalá, por nossas vir-
uma realização privilegiada em alguns. São os pobres, os doen- tudes, o Reino se acelere e a criação chegue antes ao ponto
tes, os marginalizados, os coxos, os desprezados da terra. que Deus lhe apontou!
Enquanto houver tais situações o Reino não se realiza, porque Leonardo Boff, O.F.M.
Reino implica superação de tudo o que divide, diminui, ames- Petrópolis, RJ
quinha e encurta a vida. E há gente que é explorada e violada
em sua dignidade e por isso é feita pobre. Há outros que não
são aceitos por causa de sua situação de saúde: os coxos, os
cegos, os empestados; há ainda aqueles que são discriminados
socialmente, por causa de preconceitos que foram se formando
durante muitas gerações como as discriminações por causa da
cor, do sexo, da raça, da religião etc. Os homens discriminam
e assim emperram a vinda do Reino de Deus. Mas Deus «que
ama os ingratos e maus» (Lc 6,35), que disse «bem-aventurados
os pobres porque deles é o Reino de Deus» (Lc 6,20), que anun-
ciou por primeiro sua boa-nova aos cegos, coxos, encarcerados
e pobres (Lc 4,18-21) não os discrimina; pelo contrário, de-
clara que o Reino começa a sua realização por eles. Eles são
como a semente de mostarda que é pequena, mas guarda dentro
de si a grandeza de um futuro promissor. Eles são os principais
portadores do Reino de Deus, seus primeiros destinatários.
Desta forma se entende que o Reino de Deus não vem pelo
estardalhaço, mas se anuncia pela presença discreta e humilde da
virtude; assim como os pobres que quase pedem desculpas por
sua presença, não erguem a voz de vergonha, não contam pelos
critérios deste mundo, mas na verdade escondem um tesouro
dentro deles, depositado aí por Deus, assim se realiza o Reino.
Efetivamente, os caminhos de Deus não são os caminhos dos
homens. Mas se quisermos deixar que o Reino aconteça em nós
devemos compreender a lógica de Deus e viver segundo ela.

Conclusão

O Reino de Deus está crescendo dentro do mundo. Não

sabemos a que altura está seu crescimento. jesus disse que
«quando o fruto está maduro, mete-se-lhe a foice, porque é

324 325
1
Décimo Segundo Domingo
do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Jó 38,1.8-11
«0 Senhor respondeu a ]ó»
Com 38, lss começa a última parte· do Livro de ]ó. Ela contém a
resposta de Deus à discussão entre Jó e seus amigos. Simplificando
demais, pode-se dizer que os amigos atribuíram a desgraça que sobre-
veio a Jó a uma culpa dele, consciente ou inconsciente. jó não aceita
esta explicação. E censura os amigos por se terem deixado levar pelas
aparências e por um julgamento fácil: «A desgraça somente pode ser
castigo de Deus! Há, pois, culpa! Reconheça isso!» ]ó permanece firme
e resiste até o fim às insinuações maldosas e extenuantes de que sua
miséria seria conseqüência de culpa própria e que, portanto, teria que
conformar-se com ela, aceitando-a como castigo de Deus. Recusando-se
a fazer o jogo das explicações fáceis dos amigos, apela para Deus
mesmo: «Que o Todo-poderoso me responda!» (31,35).
A primeira vista, os cc. 38ss não parecem ter nada de uma resposta
ao caso de Jó. Falam de Deus criador, de sua providência universal
e absoluta transcendência. Mas justamente por isso - pelo contraste
entre o caso particular de ]ó e a transcendência divina - o Livro
de ]ó representa um dos passos decisivos rumo à teologia e à antro-
pologia teológica. O Deus da Bíblia é ao mesmo tempo, como criador,
transcendente a todas as criaturas que Lhe devem a sua existência e
o seu ser; e - pela providência e obra de manutenção - imanente
às mesmas. Afirmando ao mesmo tempo os dois pólos - da trans-
cendência e da· imanência de Deus - ensina que jamais se pode
inserir Deus na série das causas segundas como um dos seus elementos.
Vaci1ar na fé em :Deus-criador porque não se consegue enxergar como
este caso ou esta desgraça não contradiz à sua providência, seria
submeter Deus aos cálculos e critérios humanos. O mesmo aplica-se
à felicidade terrestre: atribui-la a Deus pode ser um argumento humano
demais para embasar a fé n'Ele. Tais atitudes são um «atentado» à
transcendência divina e, ao mesmo tempo, à autonomia humana.
Deus revela-se e responde a ]ó «do seio da tempestade». A leitura
da Missa cita aquela parte da obra da criação que descreve como Deus
domina as forças da água. Nos mitos orientais e ainda na religiosidade
popular do tempo e '"'embiente de JesuSi estas forças representariam os
poderes do inferno (cf. Pr 8,27-29; Jr 5,22; Jó 7,12; 9,13; 26,12; Me
4,35-40: a 3• Leitura de bojei). O autor quer dizer: se toda a obra
divina de criação é, em última análise, obra de salvação, por mais
misteriosa que seja, então o homem, um ser pequeno dentro do uni-
verso criado, não tem motivo para desesperar-se, nem para reclamar
e menos ainda para cair em um fata1ismo de «Deus o quer». O autor
do Livro de Jó nega-se, pois, a dar uma resposta míope e superficial
à problemática de Jó, mas lhe dá como pano de fundo o mistério de
Deus vivo e verdadeiro.
Muitas vezes esta resposta não satisfaz. . . Por quê? Por falta de
fé, de visão, por comodismo, por fazer o jogo dos exploradores? Uma
326
religião ou religiosidade que aplica a verdade, que Deus récompensa o
bem e castiga o mal, à realidade observada a olho nu, éorre o pe-
dgo de se tornar e de ser manipulada como ópio do povo. Ou por
consagrar como divina uma ordem ou situação que não vem de Deus
mas dos homens, ou ainda está à espera de salvação divina. Ou por
atribuir à justiça divina o que muit$ vezes é conseqüência de injus-
tiças e omissões humanas. Lido desta maneira, o Livro de Jó é um
exemplo inspirado de «conscientização».
' Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Segunda Leitura: 2Cor 5,14-17 ,
Contexto. Depois de falar de nossa peregrinação à pátria celeste (vv. t-10).
Paulo retoma a defesa de seu ministérJo apostólico, tema candente - em 2Cor, e
continua a desenvolver a teoto~ia do apostolado. Seu ministério está' a serviço da
responsabilidade de ultimar no1para o mundo a reconciliação com Déus, já reali-
zada por Cristo (vv. IS..20). NOs vv. 11-13 descreve-se o zelo sincero- do Apóstolo
que, também, comparecerá ao tribunal (v. 11)), - zelo que se estriba no temDr de
Deus e nãD cessa de procurar convencer e conquistar os homens pela pregação, -
zelo consciente e sincero, rnanifest~ -a Deus e aos CorintiDs, desint'eressado, pois
não busca a si rnesmD (v. 12). Adyerle do perigo de colocar-se a segurança nas
exterioridades: qualidades vistosas, origem israelita, lei mosaica, eloqüência, dia-
lética, - quando, ao invés, o cristão deveria apegar-se aos valores internos do
coração: retidão de caráter, desprendimento, união com Cristo, carismas... Se,
ãs vezes, esteve fora dos sentidos, isto é, em êxtases e visões, em entusiasmos
rellgloso-missionãrios - assim o acusavaml - foi para Deus. Os dons qile recebeu,
os pôs a serviço de Deus. Entretaiito, isso foi por momentos, porque a maior
parte de sua vida transcorre em plena posse de seus sentidos, na clarividência
e circunspecção, no bom senso. Sua vida não lhe pertence, é de Deus~ e da Igreja.
Texto. O presente trecho gira em torno_ da obra de reconciliação
realizada por Cristo (vv. 14-17). Se Paulo é tomado de• um poder
estranho, a ponto de parecer incansável e excessivo, isso não é loucura
nem misticismo exaltado, nem falta de bom senso. Aconteceu que foi
o amor de Cristo por nós que o impulsionou, urgiu, arrebatou e avas-
salou, como força interna dinâmica que refreia o egofsmo e convida
a servir. E a convicção viva da morte expiatória de Cristo. A caridade
cristã se alimenta da contemplação do mistério da Cruz. Ê Cristo que
vive nele: cs:Eu vivo, mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim;
a minha vida presente na carne, eu a vivo na fé do Filho de Deus,
que me amou e se entregou por mim» (OI 2,20). O amor de Cristo
se manifestou de modo tão sublime, visto que Ele, único, morreu por
todos. O amor de Cristo por nós (geuitivo objetivo e subjetiva) exige cor-
respondência: nosso amor por Ele. Paulo não os concebe separadamente.
~orrer por todos» pode '. significar morrer «em favor» e para
1 OL.:U salvação de todos (e!. Me 14,25); como também «Substituição»: morreu em
lugar daqueles que, pecadores, estavam condenados à morte por terem
transgredido a lei divina. Jesus; morrendo na cruz, expiou essas tran&-
gressões. Cristo resgatou-nos d~ maldição da Lei, fazendo-se por nós
maldição (Gl 3,13). Cristo morreu por todos, substituindo a todos.
Logo, todos morreram. Na cruz Ele nos incluiu a todos, representando
a humanidade inteira. Sobre Ele recaiu e foi executada :·a sentença
divina contra os pecadores. Va1e a asserção paulina: <Estoti crucificado
com Cristo~ (Gl 2,19). A morte de Cristo é a morte de todos! Esta
afirmação constitui o eixo da doutrina soteriológica: um só homem -
Jesus Cristo - morreu e ressuscitou como representante da humani-
dade, segundo o princípio da 'solidariedade (cf. Rm 8,3s; Gl 3,13s).
327
Entre nós e Cristo acontece dupla corrente: uma, de pecado, que vai
de nós a Ele e outra, de justiça, que vem de Cristo a nós. A morte
e ressurreição es~á- vincu!a~a a efusão do Espírito Santo, da qual de-
pende a ressurre1çao espiritual agora e a ressurreição corporal futura.
. A morte com Cristo gera também a comunhão com a vida (v. 15).
V1vemo.s porque J;sus _ress~rgiu da morte (Rm 6,8). Quem vive, agora,
uma vida );!Ova, Já nao VIVe para si, _mas consagra-se com sua vida
~quele que por ele morreu e ressuscitóu. O cristão, como Jesus, deve
v1ver para º· outro, porquanto tem compromisso com a vida de jesus.
É o q~e ensina Paulo: «Nenhum de nós vive ou morre para si mesmo;
quer vivamos, qu;r_ morramo.s, pertencemos ao Senhor (e!. Rm J4,7s).
Morte e ressurre1çao de Cristo, apesar de fato histórico de outrora,
acont~cem em cada um de nós no batismo, quando nos incorporamos
a CrJSto, morto e ressuscitado (Rm 6,3-11). Se o cristão morreu mis-
ticamente em Cristo, morto fisicamente, deve testemunhar sua gratidão,
morrendo moralmente a si mesmo, a seu egoísmo consagrando a vida
a serviço d.e Cristo. ' (IJo 3,20).
No v. ·16, da tese fundamental - '·todos morreram - deduzem-se
novas conclusões. Como a vida anterior jâ passou, não é licito ju1gar
os outros pelo passado, conhecê-los de modo humano, segundo a carne.
~carne» não entende o pecado, mas o; caráter passageiro das realida-
des terrenas e profanas: ~esc:ndência, "'«Status», prestígio social, feitos
e posses, o que nada_ mrus unporta para o homem novo em Cdsto
(v. 17; cf. OI 6,15; Ef 4,24; Cl 3,9-IO). «Conhecer segundo a carne>
é fazê-lo segundo as aparências exte~as ou considerações puramente
humanas, seria o conhecimento do Cristo..Messias que tivera segundo os
critérios dos fariseus que o educaram, (cf. OI l,3s; !Tm J,13); não
se trata do conhecimento pessoal do Jesus histórico. Agora, convertido
e am~durecido, o conhece como criatura nova, única a pod"er julgar
as coisas de Deus, segundo o aspecto . interior da fé e da graça (cf.
!Cor 2,14s).
De modo análogo argumenta contra os adversários que o rebaixa-
vam por não ter vivido, como os outros apóstolos, com o jesus terre...
no, e por ter sido escolhido depois da ressurreição. Eis o seu raciocínio:
todas as relações com o Jesus da história deixaram de ser essenciais
para o desempenho do ministério, porque não conferem privilégios nem
preferência5' O chamado com base nessas relações pouco vale face à
dependência do Cristo glorificado que, como Espírito, atua na Igreja
(3,17; cf. OI 1,11-17). O que dissera negativamente (v. 16), agora o
declara de· modo positivo (v. 17): em ;.Cristo todos morreram, mas de
sua morte brotou nova vida - ontológica e espiritual - para todos
os cristãos tjue nele morreram. A Igreja é criatura nova, - o cristão,
o homem novo. O velho mundo, com sua iniqüidade e egoismos1 acabou;
o novo, prometido por Deus e · suspirado pelos homens, já é uma
realidade. ·
. ~orno conciliar isto com a realidade de que ainda prosseguem as
miséTJas, os erros e pecados? Por outro lado, S. Paulo atesta que a
figura deste mundo passa (!Cor 7,31)-. Parece dever-se concluir que
só na consumação dos tempos o mundo passará. Até lá subsistirá na
qualidade de •velho mundo>. A morte, como último- inimigo a ser ani-
quiJado, ainda reina; o demônio contirÍua rondando com seus ardis e
o século adverso perdura (!Cor 16,26; 2Cor 2,11; OI 1,4). Inclusive na
lgreja há muitos pecados. Dai, torna-se imperioso advertir e prev~nir,
328
sem cessar, acerca do juízo. A criatura nova é um fato, mas ainda
está oculta em Cristo. A !é o' sabe e vive. Quando Cristo, afinal, se
manifestar em glória, também 'essa criatura nova se manifestará glo-
riosa (CI 3,3-4). Até então faz-se mister realizar todos os dias a nova
vida (Rm 6,4).
Paulo é realista. Nem é um simples profeta que anuncia a futura
salvação. Deve ele proclamar que- a salvação já é ato: •Este é o tempo
propicio, este o dia da salvação> (2Cor 6,2). Torna-se imperioso apro-
veitar esta salvação do tempo presente. Paulo anuncia tanto a salvação
já existente, como a consumação futura. Segundo Ap 21,5, Deus faz
novas todas as coisas. A renóvação do mundo pela salvação não é
um acontecimento que se realizou uma só vez no passado, mas um
fato presente e atual. Deus· vence o passado pelo perdão e recomeça
sempre com o homem, ,mesmo pecador, a obra da redenção porque1 se
nossa consciência nos censura1 · Deus é maior do que nosso coração
Bibliografia: Cf. 11'1 Domingo do Tempo Comum, Ano R (2' leitura), p. 319.
Pe. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Terceira Leitura: Me 4,35·41
«Que homem é este?•
A exegese dos milagres de Jesus admite várias abordagens. Nos
escritos do Novo Testamento pbde-se acompanhar, mesmo com dificul-
dade, um desenvolvimento da fé de Jesus para a !é em Jeshs. Eln Me
4,35-41 pode-se perceber algo da !é de jesus e entrever como ela está
à origem da !é n'Ele.
Qual é a situação? O lago da Galiléia é uma depressão muito
abaixo do nível do mar. Os ventos do Sul e do Norte, penetrando
pelo corte por onde entra e por onde sai o rio Jordão, provocam
repetidamente repentinas e violentas borrascas. Estas causam perigo
grave aos pescadores, mesmo aos atuais, equipados com barcos
motorizados.
Na narração da tempestade apaziguada predomina o contraste entre
a atitude de Jesus e aquela dos disc!pulos. Entre Jesus que dorme
tranqüilamente e os disc!pulos que lutam desesperadamente contra o
vento e as ondas. Jesus, que o dia int:eiro esteve preocupado em pregar
a Boa-Nova de Deus às multidões, agora dorme despreocupado, na
confiança de que Ele está na mão do Pai e que os elementos do
mundo não têm poder sobre Ele. Os discípulos estão preocupadíssimos
em como salvar a pele, travando uma luta tremenda com as forças
da natureza, desencadeadas pela tempestade e. . . se esqueceram de
Deus. Quando parece ter chegado o fim, acordam Jesus coht o grito
de desespero e de indignação: «Mestre, o Senhor não se iniporta que
a gente está morrendo?!> Os discipulos já dão a causa por perdida.
Eles se vêem entregues aos elementos e já se sentem suas vitimas . ..
A atitude de Jesus é radicalmente diferente. Ela mostra o que pode
um homem que se entregou totalmente à causa de Deus. Ele se le-
vanta, manda ao vento e ao mar, e segue-se uma grand~ bonança.
Jesus enfrenta os elementos com a mesma ordem com que expulsa
329

os demônios (cf. Me 1,25); Ele exorciza o demônio da tempestade.
Desta forma das palavras de jesus e de seu modo de agir frente aos
elem.entos da natureza não se deve induzir qúe existem demônios que
domma~ ... QS 7Ieme!1tos da natureza. Trata-se de resquícios da antiga
l ~osmoy1sao nutoló~1ca (cf. a Pista Exegética da t• Leitura!). Eles nos
mformam. a respeito da fé de. jesus. A reprimenda de jesus: <Por
que est~ts com. tanto _m~do? Ainda não tendes fé?», deve-se entender
1 n~ sentido:. «A1nda. nao !endes fé em Deus... como Eu tenho?», e
1 nao no senti_do: «Ainda nao tendes fé -em Mim?~ Jesus retira um yéti
1 É neste horizonte simbólico que se deve interpretar o episó-
1
de su:i .relaçao_ para co:n Deus, com o pai. E Ele convida os discípulos
a ass1mll~ a mesma atitude. A fé perfe,ita em Deus lança fora o temor
e comun1ca. o poder J!ara destemidamepte socorrer os homens. Trans-
parece aqm alg? da ll~erdade dos filhos de Deus. Esta fé não é mn
poder que p~r1?"te rea1izar qualquer obra milagrosa, mas para cumprir
o mand~to divino de socorrer em qualquer necessidade. O socorro que
jesus da, graças a sua fé em Deus, neste e em outros casos é antes
de tudo salvação do poder da morte. Neste caso o perigo' de vida
v~m das forças el~mentares da natureza. jesus as enfrenta com a Sua
fe e censura os discípulos por não terem esta fé.
Pelo socorro inesperado, o medo aos elementos transforma-se em
temor e perplexidade. perante jesus. Esta . perplexidade não provém do
f~to ~e q~~ a doutrina de Jesus a respetto da onipotência e da pro-
vtdên~ia div1~as é nova e diferente daquela dos contemporâneos. Neste
respeito a fe de jesus e deles não divergem. A diferença estã nisso
que jesus tem a coragem e ousadia de basear seu agir nesta fé
Entregando-se à ~ª'"'.ª de Deus, Ele age com soberana liberdade dian~
de tu~o que prejudica esta causa, arriscando mesmo a Sua vida A
salvaç~o desta tempestade e perigo de vida, como posteriormente a
salvaçao ~~ morte pela ressurreição, Lhe deram razão. Por isso a fé
de Jes~s pode ~ansformar~se na fé em Jesus. A nossa fé cristã, por-
tanto, e fe na .fe de ]es~S' e no Deus que O ressuscitou da morte. E. fé
que nos autoriza a arnscar a vida pela causa de Deus.
W BJbliograf!a: Especiall!lente: V. Taylor; The Qospel according to St J.!ark•
• b r u n d m. a n n, D1e Oeschichte jesu Christl· E
F u e b 5 Jesus Ünd deÍ
0 1au e, em: Zur Frage nach dem hlstorischen ]esils. · ' se abre ao resto do livro mediante a palavra sobre a Fé: é
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Sugestões para a Homilia.
Introdução
O simbolismo da água
O simbolismo da água, em especial nas culturas arcaicas
e antigas, foi assil)alado pela ambivalência. Elemento de onde
provém a Vida, foi ela visada também como a forma concreta
~ob a qual as po!ên.c!as da mort~ irrompem, tragando 0 homem
• Esta continuidade, por sua vez, exige que a mesma Fé de Jesus·
impotente. Na Bibha, as narrativas da Criação e do Dilúvio
assumem. este simbolismo em sua forma originária e universal;
a narrativa do Éxodo o faz já em escala histórica e 0 tema
330
subsiste presente na tradição posterior, aparecendo hoje, no livro
de Jó, em dimensão cósmica. Em todos os casos, o póder sobre
a água, forma concreta do poder sobre o caos, é atributo divino.
Corpo
1. A tempestade acalmada
dio evangélico da tempestade acalmada. Até então, segundo a
lógica do evangelista, o poder de Jesus se manifestara de ma-
neira intensa mas particular: ele visara os males e o pecado
do homem individualmente assumido, mesmo quando se defron-
tara com multidões. As águas revoltas do lago põein-no em
confronto com as origens deste mal, bem como com o seu caráter
universal. O contraste entre a sua atitude e a dos discípulos é a
chave para a compreensão da «boa-nova» que então se anuncia.
Neles, toma forma concreta o homem radicalmente impotente face
ao caos que origina a morte, o que se manifesta em seu esforço
inútil e no pânico em que este se dissolve. Em Je~us, o homem
novo, cuja vida transcende o poder do caos, pode adormecer
tranqüilo porque, uma vez desperto, esta sua transcendência se
manifesta como um poder que se exerce por meio da palavra,
tal Deus na constituição do Mundo.
2. De fora para dentro; da fé de Jesus à fé em Jesus
O ato de poder de Jesus é o momento de efetividade da boa-
nova que se quer anunciar. Situado no termo do «discurso em
parábolas», o milagre do lago tem um valor paradigmático que
nesta, em sua presença e medida, que reside a diferença e,
no limite, a contradição eJi~re Jesus e os discípulos, entre o
homem radical e uma humanidade a cujas raízes falta ainda a
devida penetração. , É esta Fé, confiar-se absoluto do homem
ao Absoluto de Deus, para quem nem mesmo o caos é limitação,
o núcleo evangélico que aqui se visa: oculta até então, ador-
mecida, mas já presente em Jesus, ela se manifesta agóra, não
como um valor meramente intimista, mas como palavra de poder.
Deste poder, a imposição da ordem à natureza é o primeiro
momento que pede necessária continuidade, não mais no universo
exterior, mas na interioridade pessoal e comunitária do homem .
seja uma realidade nos discípulos. Isto, porém, só pode ser
alcançado na medida em que os discípulos descobrirem na iden-
331
tidade de jesus o fundamento de sua Fé; por isto, o evangelho
tem também a forma de uma pedagogia que assinala o ritmo
e o andamento das ações, dos gestos e das palavras. Nesta
pedagogia, o milagre do lago se inscreve visando operar uma
passagem: a passagem do terror, sentimento do homem na imi-
nência de ser deglutido pelo caos, ao temor face ao poder ma-
nifesto em Jesus, temor que tem por. sua outra face a pergunta:
Quem é e5te homem, que tem um tal poder sobre o éaos?
3. A resposta à pergunta: •Quem é este Homem?»
A resposta a esta pergunta, o Evangelho a formula pro-
gressivamente e de modo sempre proporcional à experiência que
os discípulos fazem do Cristo. Pode~se dizer que, de uma forma
explícita, ·tem ela os seµs momentos extremos na confissão de
Cesaréia e na Fé da Comunidade que, desde os apóstolos, pro-
clama o ·.senhor Ressurgente. Entre estes dois momentos, um
duplo movimento se articula: de um lado, Jesus assume de tal
modo -Os seus, que os incorpora à sua interioridade; de outro,
ele se identifica de tal modo com eles, que neles permanece a
subsistir segundo a totalidade do seu mistério. É deste duplo
movimentp que S. Paulo nos dá conta quando afirma que o
cristão deve viver «para» o Cristo que «por» ele morreu e ressur-
giu. Isto seria impossível se a relação entre o Cristo e o cristão
fosse de simples exterioridade. Todavia, a superação de uma
relação simplesmente exterior, biofísica, só se faz a partir do
momento em que a Fé do Cristo brota do íntimo de cada homem
e, como fal, a sua forma primeira é a de uma interrogação.
Conclusão
Importa, portanto, reassumir e91 perspectiva pascal a per-
gunta do Evangelho e desta exigênçia o cristão professo e con-
fesso não está dispensado. Cabe-lhe renovar sempre a questão:
quem é o, Cristo, que, como Senhor ressurgente, «em mim» triun-
fa do ca.bs? No que pode consistir· o manifestar-se, o viver, o
morrer, o ressurgir do Cristo no Homem que é Hoje? Desse
modo, o : que principiou como que~tão, como questão se ergue
diante de nós e a nossa resposta tem que assumir a forma
da Vida, de uma Vida que se encarna no homem, não só
como ente natural, mas também e principalmente como ente social
e político sob as formas da Justiça ·e da Paz.
Benjamin de Sousa, O.S.B.
São Paulo, SP
332
Décimo Terceiro Domingo
do Tempo Comum
Pistas Exegéticas ·
Primeira Leitura: Sb 1,13·15; 2,23·25 ou Gn 4,3-10
«Sou eu res.ponstivel por. meu irmão?»
Por razões pastorais - a narração de Abel e Caim é muito mais
conhecida e comentada pelo povo do que o texto do Livro da Sabe-
doria - dá-se uma Pista Exegética da primeira.
A passagem narra o primeiro fratricídio. Ela pertence ao contexto
maior de On 3-4, ligando o pecado dos filhos à . qu.e~a dos pais. Estas
ligações de Gn 4 com Gn 3 não são de ordem h1s!or1ca, mas de ordt;~
literária e teológica. No texto atual percebe-se facilmente que o hagio-
grafo aproveitou-se de uma saga de um clã, que existiu antes e fora
do contexto bíblico atual. Do ponto de vista etnológico, a cultura su-
posta na narração de Gn 4 é muito mais ;volufda do .q~e aquela
suposta em On 1-3. A narração de On . 4 supoe u!"a opos1çao e~tab_e·
Jecida entre pastores e lavradores e menciona o surgimento da fabr1caçao
de instrumentos metais e musicais (vv. 21-22).
_ -Caim, expulso de sua terra, não está sozinho; o.utros .podem mat~-lo
(v. 14); seu clã protegê-lo-á (v. 15). .Ele é, pms, .<filho . de Adao>
somente em sentido largo; melhor, quanto ao espírito, pelo pecado
original que herdou. O valor perma!1en!e da narração ~DCOJ?-tra:se na
fé que _ neste sentido - somos irmaos dele ou, entao, 1rmaos de
Abel que, como o Cristo, morreu inocente.
A ligação com On 3 é sugerida pela descendência direta de Adão
(4,1-2) e por traços estilisticos (4,11= 3,17;. 4,9= 3,9;. 4,10= 3,~'9·
Do ponto de vista teológico, a saga é aproveitada para ilustrar a. vis_ao
teológica de que o pecado contra Deus leva ao pecado contra o 1rmao.
O homem expulso do paraisa experimenta que o pecado avança. como
uma avalanche: desde os primórdios o homem expulso do Jardim do
Éden é um cativo do pecado, um fratricida. O peca~o não é somente
rebeldia. contra o próprio Deus; mas o homem se opoe a Deus também
ao levantar-se contra o irmão.
Também o culto mostra uma evolução em comparação com Gn 3
(cf. v. 3). Não se explica por que De~~ rejeitou o sac~!icio .de Caim.
A narração supõe a culpa (v. 7) que v1c1a o culto ~e .Crum ~ mteressa-
se pela reação dele. Devido à rejeiç~o de seu sacnfíc10, C!llm torna-se
desanimado e rebelde (v. 5). Deus mtervém para que Cann mude de
idéia (vv. 6-7). A rejeição não é, pois, definitiva. «Se fizeres o bem!
1
não levantarás a cabeça? Mas se não fizeres o bem, o intru~o-pecado
está à espreita na porta. As suas ganas estão voltadas para ti, mas tu
dominá-lo-ãs». O pensamento destas frases analisa-se desta maneira:
Se tivesses boas disposições teu sacrifício seria benignamen.te aceito.
No caso contrário, o sacrifício mal disposto é cercado e espreitado pelo
cdemõnio-pecado:ti>. A imaaem que se usa aqui - em On 3 é aquela
da serpente 1 - é a de um monstro perigoso que estâ à espreit~ !'ª
0
•porta» rto coração. lPd 5,8 chama-o de «leão que ruge>. Este c~emoruo­
pecado• é levado pelo lmpeto de apoderar-se totalmente de Caim. Nem
333
 isto, porém, não acaba com a responsabilidade do homem tentado.
Sempre p-ode resistir. Caim, porém, não toma nota desta admoestação
de Deus (v. 8). Ele quer pecar contra Deus, sem vontade firme do
se libertar da armadilha do <demônio-pecado>. Com uma sensibilidade
comovente peJa tragédia CJ.ue encerra, descreve--se o primeiro homicídio.
A insinuação é evidente: pelo ôdio contra o irmão, o fratricídio jã está
encaminhado (cl. Mt 5,211). O lato de que Deus interpela Caim e lhe
pede contas de seu ato prova que respeita a personalidade humana,
mesmo que seja fratricida. Normalmente, isto é, no direito dos povos
nômades, cabe ao irmão mais velho cuidar e proteger o 111ais novo. A
resposta de Caim é altiva e egoísta, como sempre é o pecado: «Sou
eu responsável por meu irmão?» O sarcasmo de Caim que leva os
traços do liberalismo descomprometido com o semelhante - «.Cada
um para si e Deus para todos.»! - soa aindã. mais descarado do
que a desculpa de Adão (cl. 3,12). Corresponde à mentalidade fratricida
negar o laço fraternal para com a vitima. A interjeição <Que fizeste!>
(v. 10) não é uma pergunta de Deus que sugere ignorância do fato,
mas é uma exclamação. O sangue de Abel tem uma <VOZ> que «clama>
(cl. Hb 12,24). Trata-se do clamor para que justiça seja feita (cl.
Gn 18,20; 19,13; Dt 22,24.27; 2Mc 8,3), Homicídio é um pecado que
clama por vingança (Is 26,21; Ez 24,7s; jó 16,!Ss), como o de ficar
com o ordenado dos pobres (Tg 5,4). CI. o famoso dito: Clamitat ad
caelum vox sanguinis et Sodomorum, vox oppressorum, merces detento
Jabo-rum».
Encontram-se na Bíblia várias atualizações ou .z:releituras» de Gn 4.
A wais relevante é a de ljo 3,12ss: «Não laçamos como Caim, que
1
era do Maligno, e matou o seu irmão. E por que o matou? Porque
as suas obras eram más, e as do seu irmão justas>. Caim não matou
Abel porque era instrumento nas mãos do diabo, irresponsâvel pelos
seus atos. Foi a acumulação de mãs ações e injustiças (cl. vv. 7.8.10)
que o fizeram aos poucos vitima do mal. E de vítima do mal que ele
mesmo perpetrava, tornou-se instrumento do Maligno e escravo do pe-
cado (e!. jo 8,34.44).
Depois desta releitura de .Gn 4 em ljo 3,7-12 vem a aplicação (vv.
13-18): «Quem não ama seu -irmão é assassino>. Isto quer dizer, pros-
segue o texto: «Quem possuir bens deste mundo e vir o seu ifmão ( =
o irmão em Cristo) sofrer necessidade, mas lhe fechar o coração», é
assassino. Ele mata seu irmão, deixando-o morrer de fome, de doença,
de salário-fome, sem soc-0rrê-lo, nem combater as causas destas des-
graças, mas permanecendo de braços cruzados. A linguagem de joão
é clara, forte, sem equívocos. O hagiógrafo somente pode ter escrito
desta maneira porque viu a comunidade e a Igreja exposta ao perigo
de facilitar nas exigências do amor fraterno. Uma vez que é impossível
enfraquecer o sentido das paJavras de joão e de escapar à concreção
das mesmas,· somente resta reconhecer e confessar que, no sentido desta
palavra inspirada, na Igreja da América Latina e fora dela se alojam
muitos fratricidas.
Bibliografia: E. o., o comentãrlo de Oênesls de J. de P r a i n e.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
334
Segunda Leitura: 2Cor 8,7.9,13-15
Contexto O tema de 2Cor 8-9 é recomendar e organizar uma importante
coleta em êortnto em favor da Igreja palestlnense. Ao visitar (JS apóstol(ls e a
comunidade de Jer.usalêm, Paulo comprometeu~se a fazer coletas em suas comu-
ldad s (01 2 10) jâ em lCor 16 1-4 tratara do assunto e, cerca de um ano
~ ol: de redigldã. a 2Cor pode ânunclar a conclusão da referida coleta (Rm
1~25--28) que havia sido sitspensa por causa de uma crise comunitãria. Restabe-
Jeêida qÚe foJ a confiança mútua (e. 7), o Apóstolo pode fa:zir ~anqg~~ro~id!d~
edido de auxilio (v. 7), motivando os Co-tintlos com o exemp o a . _ )
~os macedõnlos (8,1-5), os quais, apesar das provações (pobreza, 1aersegu1çoes ,
além de pôr à disposição suas posses, ofereciam suas pessoas para a]u ar dna ~oleta.
Paulo exorta Tito a que teve a termo a coleta {V. 6) que, no fun o, e uma
graça de Deus. Trata-se talvez de uma coleta lni ctadati por TJtop j ~ sd~ ep~~~~
anterior em Corinto (7,6.13-15), ou, entã(l, de 1ncen var, a e 1 0
(lCor 16,1-4), uma coleta jã promovida e em andamento (v. 10; cf. 9,2).
Texto. o Apóstolo justifica a coleta em Ci:;rinto com os seguintes
motivos: _ visto que os macedônio~ ~oram t~~ zelosos e generosos
(v 8) espera igualmente que os Conntios participem em santa emula-
çã~ d~ mesma graça (8,7.10-11); - mostra Cr!sto como exe~plo de
bondade e doação (8 9)' - aduz ainda um motivo natural racmn~I, o
do equilíbrio entre abu~dância e penúria estriba~o aliás na .i:scr1tura
1
(8,14s; cl. Ex 16,18). Além de acudir às necessidades_ materiais, preà
tende provar que as comunidades, fundadas por ele? nao er~_ algo .
parte da igreja-mãe, como se dizia. Entre as comurud~~es cr~t~ hav!a
fraternidade, mas ele temia que a de Jerusalém, f~ce as calunias,_ nao
aceitasse a coleta (Rm J5,30s). Fá-lo de modo deli.cado, tei:_endo bnda_s
considerações sobre a caridade cristã: ·um verdadeiro s!rmao da c_ar1-
dade. Não fala de dinheiro nem de coleta ou e~m~las, senao de 4'.bênçao>,
obra de caridade, serviço em favor dos cristaos. carentes, graça de
Deus ... Se os cristãos de Corinto abundam em carismas -:- f~, palavra,
ciência _ devem todavia primar também pelas obras car1tat1vas.
_ A fé é um dom, não realização pessoal; é conheci~ento e posse
de doutrina, incluindo porém atitude de crença, ~e . adesao a alguém,
0 expressão de confiança dedicação e sacnfic10. - A palavra,
~.:ifestada à Igreja e por eÍa aceita, foi-nos confiada par~ ser p~o­
fessada e ensinada a outros co~ ? -fito de conyencê-los; e dout~1n~
transmitida gratuitamente aos Corintios pelo Espln~o de form'! pl~r~va
lente _ A ciência é compreensão da fé e autêntica sabedorJa _d1v1~a,
conf~rida a quantos a buscam de boa vontade. cPalavra» e «~1ênc1a>
aparecem junto aqui, em 2Cor 11,6! em _lCor 1 ? e 12 8 - formulas
1 1
que exprimem conceitos bem conhecidos e entendidos.
Realçam-se os dons do zelo e da caridade ,por virem no final da
- como fossem um acréscimo. A caridade é o amor f~men­
:~~~e;~iª~aulo, cultivado e retribuído pelos. Coríntios. . Zelo e carit~de
caracterizam as relações entre ele e a comunidade, culminando em o tas
•t ti' as o v s _ excluldo do texto litúrgico - conota a espon a-
cari a v e· liberalidade
· .
neidade que devem remar em quem parti c1·pa da. coleta·.:
não é preceito nem imposição, nem se quer armar um laço a com~
dade (!Cor 7,Íl5), _ apenas se record~ a solicitude do;; mace~ômos,
visando comprovar a sinceridade da .car1da~e q~e autentica a fe e a
ciência (Ijo 3,17s). Com eleito, a caridade e. uniao _no amor. com DeuÓ
de quem deriva todo amor. Paulo atenua o imperativo aute~or. O v.
traz a "ustilicativa da caridade social: o amor de Jesus Cristo. Paulo,
face ao~ problemas da comunidade, apela para o exemplo de. Cristo
que amou, se humilhou, obedeceu etc. Insiste no aspecto teológ1_co das
realidades humanas. Cristo resignou momentaneamente de sua glóna para
335
 fazer-se um de nós, partilhando de nossa pobreza para com isso
conferir-nos a riqueza de sua redenção - a graça de Nosso Senhor
jesus Cristo.
Não raro, apela-se para o mistério da Encarnação, a fim de exortar·
nos ao aJtrufsmo, à renúncia e ao sacrifício (Rm 15,3.7; Ef 3,8; Fl 2,5-11;
Hb 12,2). Se Cristo nos enriqueceu, cabe a nós agora repartir carido-
samente. A ·conduta do cristão deve ser uma seqiiência dos gestos de
Cristo. Para os cristãos da primeira geração a vida de Cristo, pobre
e humilde, era wn modelo perfeito de amor fraterno. Três razões levam
à generosidade: - a graça concedida às comunidades da Macedônia
(8,1), - a graça conferida aos Coríntios que será eficaz (8,6s), -
o exemplo de Cristo (8,9). Oraça, aqtú, é a capacidade de sacrifício e
de renúncia como dom divino. Nos vv. 10-12, o Apóstolo se esmera por
evitar qualquer sinal de coação ou imposição e tenta mostrar a conve-
niência e o proveito da referida coleta, bem como a constância para
levá-la a cabo, não bastando. a boa vontade inicial. Como remate apela
à boa vontade dos Corintios, os quais haviam começado espontanea-
mente, no ano anterior, a dita coleta (vv. 10-15). Não importa a
quantidade e qualidade, mas a boa vontade. No v. 7 Paulo, entusias-
mado com os Coríntios, intima-os (com imperativo) a serem ainda
mais generosos que os macedônios, aceitando tamanha ~raça.
A contribuição, para ser agradáveJ a Deus, deve ser segundo as
posses (v. 12; cf. 12,41ss) e generosa. cEuprósdéktos> ( = agradável)
é termo técnico para qualificar o sacriflcio (6,2; Rm 15,16; JPd 2,6).
Não se exige o impossfve~.' A doação seja proporcionaJ, visando à
eqüidade na distribuição dos bens vitais. Não é bom ficar em necessi-
dade para aJiviar os outros. A abundância material de uns deve suprir
a escassez de outros. Exige-o a comunhão dos santos. Na Macedônia
deram mais do que realmente podiam. O próprio Paulo decidira sacrificar-
se pelos outros (12,15), já que sua morte seria lucro para a vida da
comunidade (4,12). Haverá compensação: a comunidade de Corinto ajuda
a de jerusalém com bens materiais e a de jerusalém retribtúrá com
os espirituais (Rm 15,27). Alguns exegetas (Spicq, Plmnmer, Lietzmann,
Windisch ..• ) entendem permuta só de bens materiais: hoje é Corinto
que subsidia, - amanhã, Jerusalém.
Com efeito, o Apóstolo promete que a ajuda material terá seu
retorno sobre os doadores pela ação de graças que a comunidade de
jerusalém renderá a Deus (9,12): cosmose entre matéria e espirito
no âmbito da comunhão dos santos> (Ricciotti). Para encerrar (v. 15),
cita o VT, quando alude ao maná: uns recolhiam mais, outros menos;
entretanto, no final, todos tinham a mesma quantia, o suficiente (Ex
16,18). O que aconteceu no . deserto, por milagre, deve agora repetir-
se por amor fraterno nas comunidades cristãs: o intercâmbio de bens
entre os <santos> do NT. .É o principio de igualdade aplicado na
Igreja primitiva (AI 2,45s). A igualdade em Ex 16,18 (LXX) é para
Paulo figura da dupla igualdade, material e espiritual, que resulta da
esmola: a riqueza material de uns se transfere aos pobres e a abun-
dância espiritual destes reverte para bem daqueles que dão esmola.
Bibliografia: Cf. Jlo:> Domingo do Tempo Comum. Ano B (2• leitura),: p. 319.
P. Malheus F. Oiuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
336
Terceira Leitura: Me 5,21-43
«Minha filha, a tua fé te salvou>
Jl!os três primeiros evangelhos, o relato da ressurreição da filha
de Jruro (vv. 21-24; 35-43) entrelaça a narrativa da cura da hemorroissa
Cvy. ?5-34; veja Mt 8,18-26; Lc 8,40-56). Em outras palavras, entre a
pruneira e a segunda parte da história da reanimação da filha de jairo
foi introduzido o relato da cura da mulher enferma.
Marcos oferece, sem dúvida, a versão mais primitiva do aconteci...
menta. Seguindo sua tendência literária, a descrição é viva e plena
de detalhes - detalhes que são eliminados pelos demais evangelistas,
que aqui como alhu~es se concentram sobre o essencial. Mateus, por
exemplo, simplifica o relato de Marcos omitindo Me 5,26 (o sofrimento
da mulher nas mãos de vários médicos e os gastos que fizera sem obter
resultado algum), Me 5,30 (o misterioso poder que saira de jesus sem
que EJe conhecesse a razão), Me 5,31 (o comentário dos discípulos),
5,32 (Jesus lançando um olhar em volta à busca da mulher); bem
como, mais tarde, O primeiro evangelista eliminará Me 5,35.37.4142.
Marcos acentua aparentemente o poder taumatúrgico do Cristo, Mateus
acentua a estreita r.elação entre fé e milagre. lsto se torna notório
na inversão que o primeiro evangelista faz. Em Me, a cura precede
a afirmação sobre a fé. Mateus faz da afirmação da fé a causa da
cura. Se Marcos ressalta mais o poder extraordinário de Jesus de curar
os doentes e ressuscitar os mortos, Mateus seguindo uma orientação
mais catequética e pedagógica afirma que a fé deve preceder o milagre.
Marcos dispõe o assunto de tal forma a levá-lo a um clímax: Inicia
com o pedido de um dos chefes da sinagoga de impor as suas mãos
ã sua filha «prestes ·a morrer». Jesus o acompanha cercado por nume-
ro~a multidão. Mas eis que no caminho acontece um grande milagre,
po1~ uma mulher que o toca se vê livre de sua hemorragia crônica.
O 1nt;rvalo . que daf resulta serve para preparar a situação para novo
e maior mllagre. Entrementes, a filha de Jairo morre. E assim, em
lugar de uma cura, sucede uma ressurreição. É a este suspense e culmi-
nância que visa a disposição e seqüência de Marcos.
Para ~ compreender melhor a idéia do evangelista convém notar a
.expressão que aparece no pedido do pai: «para que ela se salve e
viva:. (v. 23). O vocábulo grego correspondente a «salvar> pode ser
entendido seja num sentido de cura corporal, seja num sentido de sal-
vação eterna. O me!fmo se dá com o verbo «viva». A vida para um
hebreu significa a um tempo bem-estar e salvação. Jesus doa a vida
corporal, símbolo de uma outra vida, a vida eterna. O gesto de cura
encerra, por conseguinte, o sinal da doação da vida. perene e impe-
recível. Este conceito, claramente expresso no quarto. evangelho (no
relato da ressurreição de Lázaro em ]o li, por exemplo), já está la-
tente em Marcos.
A mesma idéia aparece no relato da cura da hemorroíssa: Wlinha
filha, a tua fé te salvou> (v. 34). A fé simples, a filial confiança, da
mulher, não apenas restitui-lhe a saúde, mas a conduz à salvação
plena. Baseado sobre a fé, jesus confirma à mulher a salvação que
faz já vislumbrar a redenção integral do homem no sentido pleno do
termo. Em outras palavras, a afirmação do -Cristo não só atesta a
bondade e o poder em relação à enferma, mas a vontade salvífica
de Deus.
337
 Os temas da fé e da vida prosseguem nos vv. 35-43. jesus diante
da noticia da morte da filha de ]airo encoraja o pai dizendo: «Não
temas; crê somente> (v. 36). A verdadeira fé não deve capitular nem
sequer diante da morte. E esta ressurreição, por sua vez, é sinal da
outra vida que lhe será dada: «A criança não morreu, dorme> (v. 39).
A morte não passa mais de mn sono passageiro. Sob as luzes da fé
a morte é algo transitôrio e dela o cristão acorda pelo poder de
Deus. A Igreja primitiva conservou este modo de falar dos «adorme-
cidos> (At 7,60; 13,36; !Cor 7,39; 11,30), na expectativa da ressurreição
(!Ts 4,13-16; !Cor 15,20-21).
Marcos, conseqilentemente, embora em menor escala que Mateus e
João, associa os conceitos de fé e milagre, e milagre e vida eterna.
O milagre não é um benefício puramente individual desligado da fé
e do plano salvífico de Deus. É antes um acontecimento no qual o
homem percebe . a presença de Deus e é levado à f<! e a uma vida
nova. O milagre não é apenas precedido pela fé, mas se constitui em
um apelo que Deus faz ao homem. Ele não pos5ui uma finalidade em
si mesmo. Tem (por finalidade a conversão do indivíduo e a vida que
nem sequer a morte pode suprimir.
Veja os comentários de V. Ta y 1 o r, R. Se b na ç k e n b u r g,
BJbllograjia:
C. F. D. Moule, H. Wansbroug e G. 5. SJoyan.
Pe. Gabriel Selong, S.V.D.
Rio de janeiro, RJ
Tema Principal
NOSSO DEUS É O DEUS DA VllJA
Sugestões para a Homilia
httrodução
O Evangelho deste domingo nos relata a ressurreição da
filha de jairo, um dos chefes da sinagoga, e a cura de uma
mulher que padecia de fluxo de sangue. jesus se apresenta como
senhor da vida. Ele não é um curandeiro, mas alguém que des-
venda e revela que a destinação do homem é a vida em ple-
nitude e a libertação de toda sorte de males, principalmente do
pecado e da morte.
Corpo
1. A ânsia de viver
Todos nós experimentamos uma profunda ânsia de vida. Não
suportamos a idéia do sofrimento flsico que ameaça nossa vida.
Debatemo-nos· com os tormentos interiores e com as dores psi-
338
quicas que nos prostram. Muitas vezes assistimos o duro espe-
tãculo da morte. Ela é para nós um mistério. Não é possível
que essa ânsia de vida que existe em nós seja ilusória! Temos
sede de vida. Vemos nossos amigos e nossos parentes nos aban-
donarem ceifados pela morte. juntamente com esse desejo de
vida sabemos que nós estamos também destinados à morte. Ela
vem como um ladrão, quando menos se espera. Ela se apre-
senta como um absurdo e como um contra-senso. Por que o
sofrimento? Por que a morte?
O pensamento cristão nos ensina que Deus não criou a
morte, mas ela é fruto do pecado do homem. Desde as pri-
meiras pãginas do Gênesis lemos esta explicação da fé israelita.
O pecado do homem introduziu a morte e a separação, o ódio
e a destruição no coração da história. Os sãbios de Israel afir-
mam que Deus não ·é o autor da morte; esta não lhe dã alegria
alguma. Criou tudo para a existência, para a vida. Os homens
de todos os tempos são chamados à vida pela força do Senhor.
Mas o pecado do homem tudo destrói.
2. Os efeitos do pecado
Hã dentro de cada um de nós uma dupla lei. Não queremos
o mal e é o mal qu'e praticamos. Queremos o bem e praticamos
o mal. Esta experiência foi feita por Paulo, o apóstolo. Ela é
universal. Pensamos em ganhar a vida, construir a vida na me-
dida em que nos tornamos senhores de nossa história indepen-
dentes de Deus. Queremos viver à nossa maneira. Imaginamos
que derrotando e destruindo os outros estamos salvando nossa
vida. Queremos ganhar a vida através de uma série de empreen-
dimentos e expedientes nos quais nos colocamos em primeiro
plano. Mais ainda. Nossa maneira de querer viver visa o ime-
diato, o momento presente. Acontece que querendo viver inten-
samente não atinamos com o sentido mais profundo do existir.
Queremos trazer um amanhã definitivo que está no horizonte
de Deus para o hoje de nossos momentos. Há um brilho externo
em nossa vida. Acontece mesmo que pisamos outras existências,
destruímos sonhos de vida dos outros, paramos em nós mesmos.
Esquecemos que somos peregrinos da terra da vidà que é Deus.
Ele é a terra onde correm leite e mel e onde há fontes que po-
derão matar a sede infinita que arde em nós. Muitos de nossos
contemporâneos fazem seus arranjos existenciais de gozo e de
fruição do momento presente. Instalam-se no tempo mortal. Tudo
isso é fruto do pecado, dessa desordem que existe e habita em
nós. O pecado individual se associa a um pecado 'social. Vemos
339
então estruturas, grupos, organismos que coordenam o mal e O cristi~ni~'?º ~ a fé daqueles que crêem que a última
institucionalizam a morte. Morte que significa muitas vezes im- p~lavr~ da h1stona nao é a morte, mas a vida. Há uma relação
possibilidade de muitos de terem um amanhã melhor, condições m1stenosa entre morte e vida. A morte encerra gennes de vida
desumanas de vida, espezinhamento do homem pelo homem. His- porque d~sde o dia em que a terra recebeu o corpo morto do
tórias de milhões de pessoas são histórias pobres e existências Senhor ficou com sementes de vitória. No coração dos sofri-
truncadas por causa da faina e do ímpeto de grupos a possuírem ?1entos físicos, espirituais, individuais e comunitários a fé cristã
coisas e bens, prestigio e poder. Em nome da vida matam a vida. JO~a m1'.a luz de esperança de vida. Lutamos para que 0 mal
S~J~ .extJrpado da face da terra, mas temos certeza que a plena
3. «Menina, digo-te, levanta-te/> v1tona .sobre a raiz do mal que é o pecado nos é dada somente
Jairo acercou-se de Jesus. Lançou-se aos pés desse Mestre por Cnsto.
itinerante. Sua filha está nas últimas. Há uma atitude de con-
fiança no Mestre. Por detrás desse pedido há uma atitude de Conclusão
fé. Não busca «Um curandeiro». Mas aproxima-se do Senhor
da vida. Aquela mulher que tinha fluxo de sangue toca as vestes Os milagres de Jesus são sinais. Curando o corpo frágil dos
do Mestre. Há uma entrega de sua pessoa confiantemente ao homens c~ama atenção para a salvação eterna que traz. As
Senhor. Ela se sente indigna. Jairo prostrado e a mulher teme- curas re.a_hzadas ~or seu poder querem dizer que os últimos
rosa são modelos de fé. Crêem que o Senhor pode curá-los. te_mpos Jª foram_ maugurados. Marcos insiste que esses sinais
Crêem que a doença e a própria morte não podem dominar nao devem ser divulgados ainda. Eles ganharão seu pleno senti-
esse Senhor que se apresenta como caminho, verdade e vida. do quando chegar o momento da paixão, morte e ressurreição
A menina doente e depois morta, a mulher curvada pelo peso do Senhor.
Frei Almir Ribeiro Guimarães, O.F.M.
de sua enfennidade e debilitada com os sofrimentos do corpo Petrópolis, RJ
são exemplos da humanidade que não pode construir seu amanhã
definitivo. São modelos daqueles que aprenderam a jogar-se em
Deus, daqueles que sabem que nada podem. No coração de
séus sofrimentos experimentam uma incapacidade radical e uma
impotência total de se verem livres de suas limitações. Jogam-
se no Senhor. Ser um homem de fé é construir o hoje e o
amanhã à luz de Deus. É crer que o Senhor que passa pode
curar nossas feridas exteriores e transfonnar nossas lágrimas
em cantos de alegria.
A mulher vai curada e a menina levanta-se e se põe a
andar. O vocabulário do evangelista Marcos é proposital. Há
um dinamismo de vida. O homem que se deixa tocar pela sal-
vação e força que vem do Senhor já não precisa ficar prostrado.
Levanta-se, ergue-se, caminha. Essas expressões fazem alusão
à ressurreição. Dias virão em que o próprio Mestre terá que
enfrentar a dura realidade do sofrimento e da morte. Não tinha
necessidade disso, mas como se tinha tornado homem, tornou-
se homem até o fim. Tornar-se-á um leproso diante do qual
temos vontade de cobrir o rosto. Tornar-se-á feito um galho
seco contorcido e sem beleza. Dando um grande suspiro, sus-
penso entre o céu e a terra, ele, o Mestre e Senhor, enfrentará
também a dura realidade da morte. Ai assim se tornará defini-
tivamente o Senhor da vida. Ressuscitará.

340 341
 Décimo Quarto Domingo
do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Ez 2,2-5
•Quer te ou~am ou não, saberão que há um profeta entre eles.
A leitura faz parle da longa narrativa da vocação de Ezequiel
(cc. 1-3). Dominado pela magnifica visão da glória divina, o profeta
estava prostrado por terra. Mas a voz de Deus lhe ordena que se
ponha de pé para ouvir o encargo da missão (2,1). Ezequiel sente-se
invadido e dominado pela força do espirita de Deus (cf. 3,12.24; 8,3;
11,1), à maoeira dos juízes (jz 14,6.19; 15,14) ou dos antigos profetas,
Elias (!Rs 18,12; 2Rs 2,16) e Eliseu (2Rs 2,15). C?mo seus pre.de-
cessores imediatos (jr 1,7; Am 7,15; Is 6,8s), Ezeqwel tem con:ic•ên-
cia nítida de ser um enviado de Deus. Sabe que deve falar aos israe-
litas, isto é, taoto aos que ainda se achavam em Judâ aotes da qued.a
de jerusalém, como, especialmente, aos exilados (3,15). Mas desde logo
a voz previne o profeta a respeito da oposição que sofrerá da parte
desta cnação rebelde~. Esta rebeldia, segundo o profeta (2,3), vem
desde os tempos do Egito (cf. Ez 16 e 20).
Diaote do povo insensível aos seus apelos (2,4s), Ezequiel deverâ
apresentar-se como encarregado de uma missáo divina («tu lhes dirás>)
a ser autenticada com a fórmula corâculo do Senhor Deus>.
Ezequiel a exemplo dos demais profetas, tem certeza de ser um
enviado de 'Deus. Quando fala não o faz por interesse pessoal, mas
por imperativo divino. Como outros profetas foi por isso rejeitado :
incompreendido (Ez 33,30-33; cl. Is 6,9s; 28,9-22; jr 11,19-21), po!S
a pretensão de falar em nome de Deus é sempre vista com desconfiaoça
por parte do homem. Teve de denunciar o pecado e anunciar o castigo
(Ez 4-24), e depois reanimar o povo abatido (~ 37), na certeza de
que o Senhor estava com ele. Teve de lutar sozinho contra a corre~­
teza da opinião pública, acoshtmada a ouvir as palavras agradáveis
dos falsos profetas1 anunciadores de uma ilusória seguraoça (Ez 13).
Só com o passar do tempo, quando os fatos históricos dessem razão
(Ez 24,25-27; 33,21-22)° a Ezequiel, é que o povo <ficaria sabendo que
houve um profeta entre eles» (2,5).
Como aconteceu com Ezequiel e outros profetas, haveria de acon-
tecer com jesus. Também ele foi investido pelo Espírito no momento
do seu batismo para anunciar a boa-nova do Reino. Os primeiros a
rejeitá-lo foram seus próprios conterrâneos de Nazaré (cf. Me 6,1-6).
Somente após os fatos pascais é que a figura de jesus seria reabilitada. ·
Blbllografia: Comentãrlos de W. Z l m m e r 1 i e K. W. C a r J e y.
L. Oarmus, 0.F.M.
Petrópolis, Rj
342
Segunda Leitura: 2Cor 12,7-10
Contexto. O atrevimento e exibição de seus opGsltores, os falsos apóstolos,
levaram Paulo a admitir como razoável o g;oriar·se, não em si como - eles, mas
em Cristo (10,18). No cap. 11, porém, parece lmltá-Jos, assumlndo sua linguagem
de vangtór!a, contrariando o que censurara, pouco antes, como loucura (11,7).
Mais vezes começa a glorla1-se para, em seguida, desistir, porque percebe que a
insensatez é demasiada (10,7s.J3; 11,5.16.19.21.23.30; 12,1.11) - atitude que é
"segundo a carne", não segundo o Senhor, allâs uma vergonha (11,21s). Contudo,
vencendo a resistência prõJ!rla-e levado pela paixão, enumera as prerrogativas huma-
nas e divinas (11,21-12,10). Imita seus opositores: comporta-se como um fanfarrão
que procura suplantar os rlvais pelo elogio de si próprio ou pelo insulto e Ironia.
Entretanto, mesmo a titulo de vruiglórfa, acaba dizendo a verdàde, convencendo
com tal expediente literário os amJgos e aniquilando os adversãrlos. Defende sua
missão, sua pessoa, diante dos que o acusam. Revela sua orlgem, seus sacriflclGS
e sofrlmentos, suas visões. e revelaç5es (12,1·9-a): sabe-se que foi" objeto de muitas
outras (At 9,3--9; 16,9; 18,9; ~.18; 27,23; JCor 9,1; 15,8; OI 1,12; 2,2) - algumas
das quais conhecldas de todos, como a da conversão. Apesar de fa:tar no plura1,
limita-se a descrever uma só visão (vv. 2-4), à qual empresta peculiar importância,
confidenciando-a como algo desconhecido. Não dá expressamente o nome do vidente,
mas o contexto no-lo aponta claro (v. 7). A visão teve lugar 14 anos antes e, se
a Carta foi escrita lá pelo ano 57~ podemos situá-la nos anos 43-44, no inicio de
seu múnus apostólico. Ele recorda o tempo-.!.. não a modalldade (no corpo ou fora
dele). O "39 céu" designa o lugar onde ueus está e é terminologia astronômica
daquele tempo, que dividia o céu em 3 partes: atmosférico, astral e superior
{empJreo). Corresponde ao "paraJso" (v. 3), de sabor mais hebraico (Gn 2,8),
usado por Cristo como lugar dos justos após a morte (LC· 23,43). Nesse u39 céu"
Paulo ouviu palavras inefâveis ~ue o homem não pode pronunciar (v. 4) e diz-se
incapaz de descrever o que ai contemplou. g o ponto máximo da contemplação
direta de Deus nesta vida.
Texto. Depois dessas manifestações, Paulo recua, temendo que o
considerem mais do que é: um homem em Cristo. Talvez ninguém
recebeu tantos dons extraordinários como ele. Em vez de revelar o
seu mundo divino, detém-se em seu mundo humano e fraco. No v. 5
distinguira em si dois homens: - o cristão, que é divino e se apóia
na união vital com Cristo, e - o humano, com suas debilidades. Afirma
que poderia gabar-se das revelações divinas, mas prefere ufanar-se
de suas fraquezas, que são coisa própria (vv. 5-6). Além disso declara
algo importante: perante seus privilégios, para não incidir na soberba,
como contrapeso, foj...}he posto um como espinho na carne, em voga
nos condenados, que o pungisse, - um enviado de satanás para o
esbofetear (v. 7), quase uma disciplina divina, mas dolorosa. Segundo
exegetas, tal «espinho na carne> seria alusão a uma enfermidade cor-
poral que o fazia sofrer sobremodo, física e moralmente, impedindo-lhe
o bom desempenho de sua missão apostólica; muito se escreveu_ e pouco
se pode afirmar sobre a natureza dessa doença: lebre? oflalmia? ata·
ques de nervos? Parece tratar-se da mesma doença de OI 4,13-14.
Padres da Igreja, seguidos por modernos, julgam ver aí expressas as
perseguições por que Paulo passou. Há quem sugira que o «espinho
na carne» designaria sofrimentos de origem mística (estigmas?) ou
até as tentações da carne. Todas são posições justificáveis.
Não é de estranhar-se que o «:emissário de satanás» se coadune
-com tal «:espinho ou aguilhão ná carne>, já que entre judeus era normal
atribuir míticamente as doenças ao demônio (cf. Lc 13,16; jó 2,6s).
De resto, é verdade que o demônio se aproveita de tudo para fazer-nos
o mal e infundir-nos pessimismo apostólico (cf. 2,11; 11,14; Ef 6,12): O
verbo «esbofetear)!) conota humilhação, desprezo, visando prevenir da
vaidade. Em 1Cor 4,13 Paulo se declara rebatalho da humanidade, espe-
cialmente se atendermos às suas perseguições e constantes fugas cá e lá.
Paulo pediu por bem três vezes ao Senhor - como jesus no
Oetsêmani (cf. Mt 26,44) - que se lhe tirasse o vexame (v. 8). O n• 3
é número perfeito, indicando pluralidade: «três vezes» é cmuitas vezes>;
343
 a decisão do Apóstolo, estribada nas palavras do Senhor (12,9), sen-
trata-se de oração habitual e freqüente, visto que as perseguições tam- tença válida para todos: submeter-se sem reservas e com alegria à
bém eram numerosas. Ora cao Senhor», a Jesus glorioso, cheio de determinação do Senhor, fazendo da palavra e vontade divinas a norma
poder sobre as potências do mal (Mt 12,29; Cl 2,15). Assim Paulo e fundamental de vida.
a Igreja rezam a Cristo, coisa pacifica para nós hoje. Entretanto não
sempre o foi: nos primórdios da cristandade, a oração era dirigida BiMiografia: Cf. 11" Domingo do Tempo Comum, Ano B (2ª leitura), p. 318.
de preferência a Deus Pai, sem excluir Jesus Cristo, porquanto os
cristãos são os que invocam o Nome do Senhor Jesus Cristo (At 9,14) P. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
e a Igreja é a comunidade dos que suplicam ao Nome de Nosso Senhor Santa Maria, RS
Jesus Cristo (!Cor 1,2). Não é excluído tenha pedido a graça em três
ocasiões concretas. O Apóstolo questiona o sofrimento e luta por com- Terceira Leitura: Me 6,1-6
preender o sentido de tal opressão, pede socorro. Só na 3' vez é que
aparece a resposta. «Não é -'ele o carpinteiro, filho de Maria?>
1
TodaviaJ tal qual Jesus, houve de aceitar a dura prova, confortado Com a missão dos doze começaJ em Me 6,7ss, uma parte nova do
t com as palavras do mesmo Jesus: «Basta-te a minha graça, pois é evangelho. Há indícios literários de que a primeira parte está incluída
justamente na tua fraqueza que se revela a força em plenitude> (v. 9). entre 1,21-27 (Jesus na sinagoga de Cafarnaum) e 6,1-6 (Jesus na
Resposta sublime que resume a doutrina que se inculcava ao longo sinagoga de Nazaré). Uma sinopse põe estes indícios em relevo:
da carta. «Minha graça» - é o poder divino conferido grahtitamente
para reforçar o espírito e a carne tão débeis. Ocorre aquiJ implicita- Me 1,21-27 Me 6,1-6
mente, a antítese bíblica «carne-espírito>. Paulo sente-se fraco («carne>)
diante de tantos inimigos, por isso clama, corno o salmistaJ pela liber- 1 A (v. 21): Chegaram a Ca- 1 B (v. 1): Saiu dali e foi para
tação de seus inimigos. Cristo, com poderes divinos de Ressusci- farnaum. sua terra. E seus discípulos O
tado, lhe oferece a força de seu Espírito, com o qual poderã vencer. seguiram.
Ê força não da carne mas do espíritoJ não do homem senão de Deus, Aos sábados ia à sinagoga (v. 2) : Quando chegou o sá-
que atua nele e em todos nós, quando o pedimos. Tal graça se torna ensinar. bado, ele começou a ensinar
plena, perfeita, não em si mesma mas em sua dinâmica. Aqui o mi- na sinagoga.
lagre do Cristianismo : realizam-se maravilhas com instrumentos tão insig.. (v. 22) : Ficavam e&pantados Todos que o estavam escutan-
nilicantes - hoje, ontem, amanhã. A vida de Paulo é o que deve com o ensinamento dele ... do ficavam espantados.
ser a nossa. Não admira pois que, ne1a apoiadoJ volte a enumerar com 11 A (v. 23) : Estava na sinagoga 111 B: Diziam:
júbilo suas fraquezas para gloriar-se delas (v. 10); confia alegre na deles um homem com um espí- a': <Donde lhe vem isso?
força do Senhor que ampara a sua fraqueza, levando-o a dizer: eJá rito imundo que gritou : «O b': Que sabedoria é essa que
não sou eu, é Cristo que vive em mim; a minha vida presente na que tens tu conosco, Jesus Na- lhe foi dada?
carne, eu a vivo na fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou zareno? . . . Eu sei quem és: e': E estes milagres que se fa-
por mim> (GI 2,20) ou <Tudo posso naquele que me dã força> (Fl 4,13). o Santo de Deus!> zem por suas mãos?»
Com efeito, tais palavras servem de fundo pálido para real!ª' a
imagem do poder de Deus, que age pelo Evangelho para saJvaçao de 111 A (v. 27): 11 B (v. 3): <Esse não é o
todo o fiel. O· v. 10 amplia a lista das fraquezas de Paulo, de aspecto 1. Todo o mundo ficou admi- marceneiro, o filho de Maria,
moral próprias de quem é perseguido. As doenças corporais não figu- rado irmão ... ?> (etc.). E se escan-
ram 'expressamente, apenas como humilhação ou obstáculo à missão. dalizavam dele.
No desfalecimento humano de Paulo se patenteia o poder de Cristo e 2. e até perguntaram uns aos (v. 4) : Jesus porém lhes dizia:
do espírito. Quanto menos capaz, mais forte éJ porque aí intervém outros: «É só mesmo na sua terra ...
o Espírito de Cristo com sua força e poder. «Habite em mim>. . . como a: <Que é isso? que um profeta não é bem
o nuvem repousava sobre a Arca ou no Templo. A história de cada b: um ensinamento novo recebido».
santo ou apósto1o ostenta esta presença do Espirito e força de Deus e: e com autoridade I» (v. 5) : E ele não pôde fazer
no homem. Paulo é paradoxal: vive e sofre no mundo presente, mas nenhum milagre ali... (cf. e).
participa também do celeste e não se afasta de Cristo. (v. 6) : Ele se admirou da falta
Paulo sabe e entende pela fé que Deus é o autor e doador da de fé deles.
vida. Ora, a doençafmorte são o oposto da vida. Se Deus é o senhor Qual a significação ou função destas pequenas passagens dentro.
da vidaJ não a destrói. Logo, a doença/morte não prov-ém de Deus,
mas de satanás. Deus permitiu semelhante contrariedade para que PauloJ do Evangelho de Marcos, dentro da perspectiva teológica própria deste-
tão dotado não se ensoberbecesse. Até satanãs e o mal servem aos Evangelho? Precisa-se de um pouco de história da redação, prestando-
se atenção aos de.talhes e às pequenas diferenças.
planos divi~os e contribuem para a sa1vação dos homens: «Todas as
coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus> (Rm 8,28). 1 A + B: Em comparação com 1 A a introdução de 6,1-6 (/ B)
O v. IOb - <Quando sou fraco, então é que sou forte> - repete realça a presença dos discípulos. Eles foram eleitos em 3,13-19 e serão.

344 345
enviados em 1D1ssao Jogo depois, em 6,7-13. Comparando-se 6,7-13 com
1,21-27 e 6,1-6 vê-se Jogo que nestas passagens Jesus é visado como
protótipo do missionário cristão. O • êxito de Jesus é o êxito dos dis-
cípulos (6,13: «eles expeliam muitos demônios [cf. l,23-26.27c] e..•
curavam a muitos enfermos [cf. 6,5b]»). Os insucessos de Jesus
(6,4-5a.6a) são os insucessos deles (e!. 6,11: cSe em algum lugar
não vos receberem, nem vos escutarem ... J.). A missão· dos discípulos
é uma iniciação na sorte do Mestre ou, então, um treinamento para
segui-lo. A passagem reveste-se pois de um significado basilar. Codifi-
cando a história de jesus e de seus discípulos o evangelista apresenta
uma teologia da missão da comunidade e da Igreja à qual ele per-
tence e na e à qual ele escreve. A atividade missionãria da década de
sessenta a setenta depois de Cristo é revista e interpretada à luz da
pregação e da sorte de Jesus. Procedendo deste modo o evangelista
sugere e mostra que Jesus continua presente na pregação contempo-
rânea do Evangelho. . . e naquela de todos os tempos!
«Ficavam espantados>. A frase é literalmente a mesma em J A
(v. 22) e 1 B (6,2). O verbo plessein significa bater, atingir (e!. Ap
8,12). O verbo ekplessein, usado· em sentido metafórico, significa ferir,
chocar, espantar e no reflexivo ficar fora de si. No contexto de 1,22
e 6,2 o uso deste verbo indica que a figura de Jesus e a doutrina
dele questionam o auditório e exigem uma tomada de posição. Pode
ser .uma posição a favor ou contra ele, mas exclui-se uma atitude
neutra.
II A: A presença de Jesus «ch-0ca» também os espíritos imundos.
Eles se revelam e ... revelam também quem é Jesus. cEu sei quem és:
o Santo de Deus!» O espírito imundo sabe (cf. 1,27 - III A 2: os
ouvintes não sabem, mas perguntam-se!). Ele não se admira, nem se
pergunta, tampouco reage com fé ou descrença, mas «desmascara» jesus,
por assim dizer. Jesus de sua parte não entra em diálogo com o espí-
rito imundo, mas logo o expulsa. Por que motivo? Porque a declaração
dele não é uma confissão mas uma denúncia. Esta denúncia da parte do
espírito imundo não é livre mas forçada e Jesus exige uma adesão livre.
Ora, a própria liberdade da fé supõe a ambigüidade da personalidade
de Jesus. E esta ambigilidade é inerente ao fato de que Ele é Deus
e homem ao mesmo tempo. A sua humanidade esconde e ao mesmo
tempo revela a sua divindade. E, seja dito Jogo, na teologia de Marcos
é assim: quanto mais a divindade se esconde por trás da humanidade
de Jesus tanto mais ela se revela. A primeira confissão clara e autên-
tica da divindade de Jesus (15,39) segu.e, em Marcos, às palavras
<Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (Me 15,34).
Ora, o espírito imundo está altamente interessado em dissolver a
ambigüidade, o caráter paradoxal, de Jesus e em desencantar seu mis-
tério. Ele somente ganha em separar as coisas e distinguir bem o pro-
fano do sagrado. Porque esta distinção e separação desarmam o pro-
cesso histórico de encarnação do divino no humano que Jesus está
inaugurando. Separando o sagrado do profano e o divino do humano
a religião e a vida se tornam comportamentos estanques: a religiã~
torna-se uma presença meramente simbólica, relegada a um recinto sa-
grado {«na sacristia»!) e urna superestrutura que não <atinge>, não
cchoca» os homens. E a infra-estrutura ou o domínio do demônio
permanece <inatingido> e ele se mantém no poder (cf. Me 3,22-27). Jesus
expulsa os demônios e, com isso, devolve aos possessos a liberdade
346
Para crer ou não crer n'Ele; para participar ou permanecer fora do
Reino de Deus que estâ chegando· na Sua pessoa.
lJl A: Esta parle descreve o suspense em que os ouvintes se vêem
c!:'locados por Jesus. É uma situação de admiração (1) e de interroga-
çao (2). Nesta passagem inicial do evangelho o evangelista fica ·nisso.
~o que se segue, apresenta os dados que encaminham a resposta.
• Jil B e 11 B supõem tudo que separa 1,21-27 e 6,1-16. III B parece
igual a III A. Mas os detalhes são importantes. 1IJ A a: «Que é isso?>
1II B a: «Donde lhe vem isso?> Os leitores do evangelho acabam de
ler, por exemplo, a passagem de 3,22-30 que contém a alternativa: Jesus
age no poder de Satanãs ou do Espirito de Deus? E eles os leitores
são motivados para crerem que Jesus age no poder do Espírito. Em
l~I A b preserva-se a tonalidade da constatação: «Um ensinamento novo,
diferente daquele dos escribas» (cf. J,22s). Os leitores que crêem já·
sabem a resposta à pergunta de J1l B b': Que sabedoria é essa que
lhe .foi dada?» Eles acreditam que ela lhe foi dada por Deus. O mesmo
apl!ca-se a JJl A e e III B e': os milagres ou as <forças» são forças
divmas.
Marcos, porém, repete as perguntas de III A em lJl B, colocando-as
na boca dos nazarenos para contrastá-las com · a pergunta que estes
fazem: «esse não é um de nós . .. ".um marceneiro sem instrução?» «Os
contemporâneos de Jesus não crêem, porque csabe"ll» - pretendem
saber - a resposta e... se escandalizam. Esses nazarenos e conterrâ-
neos de jesus fazem, pois, o contrário do que fez o espírito imundo de JJ A,
mas... com o mesmo efeito! O demônio separa o sagrado do priífano,
evidenciando o divino e exclamando: «0 que tens tu conosco, :Jesus
de Nazaré?> (1,24). Os nazarenos separam ·o sagrado do profano o
divino do humano, dizendo: «Ele é nosso, Ele é nazareno como ~ós!
Não acreditem nisso, não, que E~e é um homem fora do comum!»
l!rocedendo desta maneira tambémt eles dissolvem a ambigüidade_ e a
lndole paradoxal da personalidade de Jesus e desarmam o processo
histórico da encarnação do sagrado no profano, do divino no humano
que Jesus inaugura. Cf. <E Ele não pôde fazer nenhum milagre ai»
(6,5a).
II B (v. 6): Agora é a vez de Jesus ficar admirado (cf. III A 1).
A sua própria gente é tão obcecad_!i e «possessa» pelas suas evidências
míopes que a figura, a doutrina e os milagres de Jesus não a conseguem
«atingir», <chocar». Percebe-se um certo clímax na atitude dos naza-
renos: «Todos ficavam espantado&» (J B); <0Eles ficaram escandalizados
com Ele> (II B); <(Ele ficou adrtlirado ºfoi com) a descrença deleS»
(II B, v. 6).
' Aqui, no procedimento dos· nazarenos, encontra-se o ponto nevrál-
gico da passagem. Colocados diante do mistério da personalidade de
Jesus (isto é, diante de /II B e II B ao mesmo tempo), o dissolvem,
enquadrando jesus nas categorias familiares de suas costumeiras idéias
acerca de Deus, dos homens e do mundo (// B). Eles não se deixam
atingir por novos dados (JIJ B). J~sus, porém, .não se deixa enquadrar
nem nas categorias da experiência humana - das ciências ou da fi1o-
~fia -, nem nas categorias que a história d3. religião oferece. Jesus
~scapa a ambas porque pertence a ·ambas de um modo superior e novo.
. o que o evangelista fez para ó seu tempõ e ambiente é tarefa con-
tinua da Igreja: rever-se e sua missão à luz do evangelho e da me-
mória de jesus. A religião cristã 'Dão consiste em construir e manter
347

uma fachada que enfeita o nosso mundo com recintos sagrados e sinais
religiosos e cristãos, nem em variar o ritmo da vida com certas c~le­
brações esotéricas e manifestações públicas religiosas que deixam o
próprio mundo, isto é, o homem e a sua história inatingidos (e!. MI
7,21-23; Lc 13,25-27; 6,46 e textos do AT como jr 7,4 e contexto).
De outro lado, um secularismo radical que identificasse a religião cristã
e a reduzisse a um puro humanismo esvaziaria o mundo e a história
humana de sua inspiração revelada. feita história em jesus de Nazaré,
o Verbo de Deus feito homem, en,camado, que estã presente e atua
de um modo misterioso e por isso paradoxal e amblguo através da
Igreja, dos sacramentos, do clero, ·dos religiosos e leigos.
Na teologia desenvolvlda entre' 1,21-27 e 6,1-6 o evangelista des-
linda bem claramente o que vem a ser a religião cristã. Encerra entrar
no processo histórico que jesus inaugurou; é participar da sorte d'Ele
e ir, o Seu caminho, que é o do divino no humano, do sagrado no
profano, do transcendente no imanente; em outras palavras é o caminho
da <secularização> do Reino de Deus e da <Santificação» do mundo
e do homem. Esta aproximação dinâmica dos dois pólos ganha a sua
expressão mais mordei:ite em 3,35: «Eis minha mãe e meus irmãos.
Todo aquele que faz a vontade de Deus é meu irmão, minha irmã e
minha mãe.. tl difícil dizer se é por acaso ou por composição literã-
ria impllcita ou explicita que entre 1,21-27 e 3,22-30 de um lado e
entre. 3,31-35 e 6,1-6 de outro lado há mais ou menos um mesmo
número de versiculos. Mas a unidade literária 3,20-35 estã bem no centro
das duas passagens (1,21-27 e 3,22-30: Jesus e os demônios; 3,31-35
e 6,1-6: jesus e os parentes), como o cume de uma pirâmide, onde
os extremos se tocam.
Os dois aspectos que estão ~m jogo podem ser resumidos ria
frase: a sacralização ou santificação do mundo efetuar-se-á pela secula-
rização do Reino. Esta dialética encontra uma confirmação nas duas
versões do mesmo dito de jesus: «Sede perfeitos como vosso · Pai
celeste é perfeito> (Mt 5,48); «Sede misericordiosos como também vosso
Pai é misericordioso> (Lc 6,36; cf. Lv 19,1 e as ações que se motivam
neste adágio: Lv 19,11-13). Também São joão combina os dois aspectos,
escrevendo: «Como tu me enviaste ao . mundoJ também eu os enviei
ao mundo. Santifico-me por eles, para que também eles sejam santi-
ficados pela verdade. (Jo 17,lBs). : eu não fui nunca bom falador, e desde que tu falaste com teu
B/bUograjia: Além de comentários, especlaJmente: E. O rã s ser, Jesus 'ln
Nazaretb (.M.ark 6,l-fla). Notes on the redactlon and theo1ogy of St. J;lru-k, em N'fS
16 ( 1969), 1-23. . e arriscada de denunciar os males e os abusos na «cidade dos
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Sugestões pàra a Ho~Jla
Introdução
Foi na China, no tempo logo depois da conquista comuniS-
ta, durante a perseguição cerrada contra a Igreja, e de modo
especial contra a legião de Maria, que mais empenho havia pela
fidelidade a Roma. Um rapaz foi preso, e a comunidade ficcin
348
1
. 1
muito preocupada, porque todos sabiam que ele, além de ini- i
bido e pouco falador, era muito medroso. Podia acontecer de
tudo. Por isso, a surpresa total, quando, depois de muitas horas
de tensão, ele foi solto e chegou, correndo e sem fôlego, à turma,
gritando: <<Ê vert;ladel É verdade!» - O que era verdade? -
«Ê verdade o que. Jesus falou, que não devemos ter medo,
quando somos levados diante dos tribunais, e .nem devemos
pensar no que falaremos, porque será o Espírito Santo que fala
e não nós mesmos (cf. Me 13, 11). Foi o que aconteceu. Eu
sou um medroso e não sei falar. Mas falei tão bem que ninguém
pôde contra mim, e não souberam fazer outra coisa, senão
soltar-me».
Corpo
Foi no Brasil, não há muito tempo, qne um homem, que eu
encarava como um dos mais corajosos e engajados na defesa
dos oprimidos, me confiou, com toda a simplicidade e franqueza:
«Para dizer a verdade, eu sou, por natureza, medroso e até
covarde. Mas a coisa me pegou e não me larga mais. É algo
que me leva. Não sei o que é. É algo mais forte do que eu».
Lembrei-me de Jeremias, o profeta cansado, que se sentia
seduzido e abusado; e que estava farto de falar em nome de
Deus. E disse: «Eu não me lembrarei mais dele, nem falarei
mais em seu nome. Mas aí ficava no meu coração como um
fogo abrasador, que devorava os meus ossos» (Jr 20,9). Quando
chamado para denunciar a injustiça e o pecado, ele tinha pro-
testado: «Ai, Senhor Deus, tu bem vês que eu não sei falar,
porque sou uma criança» (Jr 1,6). Tal qual Moisés; que, cha-
mado para libertar o povo, relutou igualmente: «Perdoa, Senhor,
servo, minha língua está mais embaraçada ainda» (Ex 4, 10).
E quantos outros profetas não recuavam diante da missão árdua
homens»!
Para todos eles, Deus se põe como garantia: Não penses
que depende de ti. Eu estarei contigo. Dizes que não sabes falar?
Mas, «quem fez a boca do homem? ou quem formou o mudo
e o surdo? quem dá a vista ou a cegueira? Não sou eu? Vai,
pois, e eu estarei na tua boca e te ensinarei o que deverás
dizer» (Ex 4,11-12). Assim Deus falou a Moisés. E assim ele
fala a todos os profetas, Jeremias, Isaías e todos os outros, e,
na leitura de hoje, a Ezequiel. Ezequiel também era um homem
comum, com medo e inibido. Mas Deus o levanta sobre os seus
349

pés: «Filho do homem, põe-te de pé e Eu falarei contigo. Eu
te envio aos filhos de Israel. . . filhos de semblante duro e de
coração indomável, e tu lhes dirás: Isto diz o Senhor Deus»
(Ez 2,3-4).
Nenhum profeta deve pensar que o êxito de sua missão
depende dele. Onde existe este perigo ou tendência, Deus pro-
videncia algum «remédio» preventivo, como no caso de Paulo, o
apóstolo - profeta fogoso e atrevido, que confessa: «Já que
as revelações eram extraordinárias, para eu não me encher de
soberba, foi-me dado um aguilhão na carne - um anjo de sa-
tanás para me espancar. Três vezes pedi ao Senhor que o afas-
tasse de mim. Respondeu-me, porém: Basta-te a minha graça,
pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder»
(2Cor 12,7-9).
Nesta últ.ima palavra temos a chave da força de toda pro-
fecia, como de toda ação de Deus na história humana. Não
na grandeza humana, mas na sua fraqueza e humildade, revela
Deus o seu poder. O que é loucura no mundo, o que é fraco,
o que é vil e desprezado, e o que não é, Deus o escolhe, a fim
de que nenhuma criatura se possa vangloriar diante de Deus
( cf. 1Cor 1,27-29). Podemos ver esta mesma «política» de Deus
em todos os profetas, seus eleitos, desde Abraão e Moisés, até
a pequena figura da «Serva do Senhor», que exclama e canta:
«Ele olhou a .humildade da sua serva» (Lc 1,48), e até o pró-
prio Filho de· Deus, que desceu na mais profunda humilhação
da cruz e da morte. A fim de que nenhuma criatura, nenhuma
carne se glorie diante de Deus!
Mas também, garantido e firmado este ponto, que não é a
criatura, não é o homem que pode realizar alguma obra de
Deus, dá-se a· segunda volta da chave: a garantia de que a
obra de Deus se realizará. Com o que é loucura no mundo,
Deus confunde o sábio; com o fraco confunde o forte; com o
que não ê reduz a nada o que é (cf. !Cor 1,27-28). Eu estarei
contigo. Minha palavra na tua boca. Nenhum dos vossos adver-
sários poderá Jesistir, nem contradizer.
Se, por um lado, o profeta chamado não deve pensar que
é a sua própria força que consegue alguma coisa, pelo outro
lado, não deve jamais duvidar do êxito da missão. Ele pode
não ser aceito na sua pátria. O próprio jesus conheceu esta
experiência (Jo 1,10-11), e falou neste sentido (cf. Mt 13,57;
Me 6,4; Lc 4,24; j o 4,44). Mas também o próprio jesus, mais
que qualquer outro profeta, viu, através do mais total fracasso,
realizar-se a grande obra, o grande plano de Deus. Sem honra
350
na sua pátria e na sua família, não aceito e até rejeitado e
morto pelo que era seu, realizou a salvação dos seus. josé de
Egito. jesus de Nazaré. Todo profeta chamado por Deus. E
uma constante e parece uma lei: pelo fracasso humano vem o
êxito divino, ou, pelo menos, na fraqueza humana realiza-se a
força divina.
Assim, se não há motivo de vanglória, também não há
motivo de desânimo. Não está ai a mensagem para todos nós?
Não somos todos nós, Cristãos, chamados a testemunhar, a falar
e a agir em nome de Deus, na cidade dos homens? Não há na
vida de todos nós 'aqueles «momentos proféticos», em que Deus
nos chama a salvar ou defender, ajudar ou assistir algum ser
humano, algum irmão, ou algum grupo de irmãos, que vêm so-
frendo injustiças, desprezo ou opressão seja de que tipo for?
Conclusão
Aí, não podem.os recuar, alegando que somos fracos, sem
jeito ou sem coragem. Pois é justamente em tudo isto que Deus
realiza e cumpre o seu Reino, sua promessa de libertação e sal-
vação. Mesmo que haja contradição, ou melhor, justamente quando
há contradição, é que devemos firmar a nossa atitude, lembrando-
nos de todos aqueles e aquelas que, com toda a sua fraqueza, se
entregaram e se dedicaram à missão cristã no mundo, não se
valendo de si mesmos, mas também não duvidando da ação e
da força divinas. Sabendo que para Deus não existe o fracasso.
Que para Ele fracasso e vitória são uma coisa só. Que o fra-
casso mais profundo foi o êxito definitivo do plano de Deus:
a cruz de jesus Cristo, transformada em ressurreição!
A. van den Berg, C.M.
,· Belém, PA
351
 Décimo Quinto Domingo
do Tempo Comum
l'istas Exegéticas
Primeira Leitura: Am 7,12·15
«Vai, .e profetiza ao meu povo de Israel!»
O texto que hoje lemos, do Profeta Amós, foi inserido no contexto
das cinco visões do profeta (7,1·3.4-6.7-9; 8,1-3; 9,1-4). Estas visões
mostram o amadurecimento de sua vocaçã-0 profética. Jnicialmente, Amós
reluta diante de Deus que o chamava, e lhe comunicava seu plano de
punir Jsrael pelos graves pecados (7,2.õ). Mas aos poucos compreen..
de que a infidelidade do povo, a violação dos .direitos humanos, era
tão grave, que não tinha mais cura: «Caiu, e não se levantará mais
a virgem de Israel>... (5,2). <Chegou o fim para o meu povo de
Israel> (8,2).
Tendo entendido esta terrível ameaça que pairava sobre Israel, Amós
não pode deixar de falar: «0 leão ruge, quem não temerá? O Senhor
Javé fala, quem não profetizará» (3,8)? Foi por isso que ele deixou
sua terra natal, Técua, a uns 20 km ao sul de Jerusalém, em Judá, e
i dirigiu-se ao Reino de Israel, onde começou a alertar as a ·.itoridades
1.
e o povo para o iminente castigo divino. De : nada mais adiantava
refugiar-se nos ,dogmas fundamentais da eleição de Israel: cDentre
todas as raças da terra só a vós conheço; por isso vos castigarei
por todas as vossas iniqüidades» (3,2) . • . «Acaso não sois vós para
mim, ó filhos de Israel, como os cuchitas? - oráculo do Senhor.
Se tirei Israel do Egito, não tirei também os iilisteus de Caitor, e os
sírios de Quir?» (9,7). De nada valem a prática· cultuai, os sacrifícios,
as visitas aos santuários (4,4-5; 5,4-6.2ls), pois- o que Deus quer é
que «jorre a ecjüidade como a fonte e a justiça como torrente que
não seca» (5,24).
No entanto,: o sacerdote Amasias, a serviço ·do santuário real de
Betel, permanecia surdo às denúncias das injustiças (2,4-16; 3,10; 4,1-3;
5,7.10-12 etc.). Mostrava-se mais preocupado com a inviolabilidade dos
dogmas tradicionais. Temia perder o seu cargo no santuário rea]. Por
isso denunciou Q profeta diante do rei: «Amós conspira contra ti no
meio dos israelitas:. (7,10). Depois, talvez receando que Amós fosse,
apesar de tudo, um verdadeiro profeta (c!. Dt 18,15-22), resolve expulsá-
lo do país, antes que Jeroboão o mandasse matar (7,12). Amasias con-
sidera Amós um dos tantos «VidenteS» ligados* aos santuários, vivendo
às custas das esmolas do povo que os vinha consultar. Como ousava
Amós, um estrangeiro, ganhar o pão no santuário real de Betel, e ao
mesmo tempo anunciar a morte do rei e o exilio do povo (7,11)?
r• Amós, porém, nega pertencer aos profetas profissionais que viviam
em corporações, tão numerosas no tempo de Elias e Eliseu (e!. lRs
18,19; 2Rs 2,1-7.15-16; 4,38 etc.). Ele não precisava ser um profeta
deste tipo para viver. Ele tinha duas profissões: era pastor e cultiva-
dor de sicõmoros (Am 7,14). ErivDeus que o chamava e o mandava
profetizar. Pot isso, contra Amasias que tentava cercear a palavra
divina csubverslva~ e se julgava com o direito de indicar a Deus a
maneira e o lugar de se revelar ao povo. Amós anuncia uma punição
toda especial (7,16s).
352
". ' O profeta é sempre, -e antes de tudo, um homem chamado e enviado
por D~us para falar em seu nome ao povo. Corno taJ, · sempre· toma
o partido de Deus, permanecendo livre para criticar e denunciar o• que
há de erra~o nas instituições civis, religiosas e sociais. Em nome de
Deus anuncia as suas intervenções punitivas ou salvíficas na história
humana, «porque o Senhor Javé nada faz sem revelar o seu segredo ·aos
profetas, seus servoS» (Am 3,7). Por isso os profetas continuam sendo
aind~ hoje, incômodos tanto diante da Igreja, como diante da sociedade:
~ontinuam sendo expulsos, perseguidos ou mortos numa tentativa -des-
tinada ao fracasso, de impedir que Deus seja o Senhor da História
dos homens.
L. Garmus, 0.F.M.
Petrópolis, RJ
Segunda Leitura: Ef 1,3-14
As c~rtas de Paulo logo após a saudação têm uma ação de graças
ou um hmo. A segunda leitura da missa de hoje é justamente o hino
introdutório da carta aos efésios, que de modo poético e sucinto, re-
SJJme toda a história da salvação. O texto pertence ao gênero literário
das bênçãos (cf. 2Cor 1,3; !Pd 1,3) muito freqüente na liturgia judaica,
bastando !embrar que a principal oração dos judeus são as <18 bênçãos>.
No próprio Novo Testamento encontramos outros sinais desse costume
nos hinos de Maria - Magnificat e de Zacarias - Benedictus.
O conteúdo do hino é uma meditação sobre o terna «Deus· e1n
Cristo». Estil~sti~a e gramaticalmente o texto divide-se na parte mais
longa e meditahva, que se refere_. ao «nós» e os últimos dois versí-
culos que se referem a «VÓS», em .forma de alocução. Deus é o sujeito
dos verbos, sua ação porém está marcada pelo ·«em Cristo» e é objeto
~e <lo~vor e glória> nas doxologias (vv. 6.12.14). A bênção de Deus
e. considerada nos seus aspectos- sucessivos ainda que não cróno-
lógicos, e inseparáveis: eleição (v. 4); prede~tinação (v. 5); redençâo
(':'.. 7); recapitulação (vv. 8-10); herança (1 J) dom do Espirito (v. 13).
Sao termos do vocabulário da Aliança do Antigo Testamento que Paulo
retoma e refunde passando da idéia de povo de Deus para ~ de Igreja
Corpo de Cristo. · '
Todas as bênçãos têm sua origem em Deus, por esta razão Pàulo
se. eleva ao plan? celeste, ~ .. lá se mantém em toda a epístola, 1;20:
Cnsto; 2,6: lgre1a; 3,10: f1e1s; e até os espiritos maus (6,12) para
demonstrar o caráter radical da vitória de Cristo. Ê o Deus não- só
criador, mas o Deus Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo que ~os aben-
ço~. ~aulo nos ass.?ci~ à confis~ão _de fé na Filiação divina de Jesus,
e indica que as bençaos em nos sao fruto da ação do Espírito ..1 por
conseguinteJ bênçãos espirituais. '
ELEIÇÃO: Fomos chamados desde sempre para uma vida santa
no amor, dom de Deus para conosco (Rm 5,5) e resposta nossa ao
seu do_m. O amor é a fonte das bênçãos divinas, porque por nós mes-
mos nao merecemos nada. Jesus não é a origem da nossa eleição, mas
quem nos deu a conhecer. .
· . PREDESTINAÇÃO: E sublinhada a iniciativa divina como absoÍuta.
Eleitos,.. somos predestinados a ser filhos, o que aumenta nossa res-
po~sabil!dade. Em swna ser santo ê viver como filho de Deus se-
gumdo o modelo de Cristo Deus fixou o ponto de partida e o· de
353
 chegada da nossa ação, ser filhos em Cristo, filhos no Filho, um com
Ele (OI 3,28).
O verslculo doxológico (v. 6) conclui o plano de Deus antes de
sua realização em Cristo, e mostra que tudo é dom, cgraça». A essa
graça, forma concreta de percebennos Deus, devemos louvor e glória.
Pelo seu louvor o homem rende graças ao Deus que tudo lhe dá. Não
que·. a glória de Deus possa ser aumentada, mas que ela deve ser
mamfestada no homem que o reconhece como Deus e o louva. A glória
de Deus é o fim da sua obra.
REDENÇÃO: Trata-se do fato histórico do Cristo que derramou seu
sangue na cruz, nos redimiu e remiu nossos pecados. O texto lembra
Cl 1,14.20 e est~ ligado à tradição da Ceia, csangue da aliança der-
ramado por mmtos> (Mt 26,28) e do gxodo (Ex 24 8) símbolo da
libertação plena em Cristo. O pecado é mostrado com~ ~ fato real
que causou o espargimento do sangue de Cristo.
RECAPITULAÇAO: A graça de Deus entre outras realidades nos
revelou o mistério de sua vontade, isto é, que seríamos salvos em
Cristo, e que Cristo se tornaria o cabeça do universo: Nele tudo serã
plenificado e recapitulado. O mundo criado será regenerado por Cristo
e reunido sob sua autoridade para ser levado a Deus. A revelação,
que: ·como fato histórico manifesta .uma resolução transcendental em
Cristo chega à pleuitude, tanto enquanto ele pela encarnação é ~eali­
zação plena da promessa vétero-testamentária (Gl 4,4), como o que
inaugur~ pela ressurreição, o novo tempo da 1greja, que chegará à
plenitude quando Deus for tudo em todos (!Cor 15,28) recapitulando
() mundo em Cristo.
HERANÇA: O povo de Israel considerava-se herança de Deus (Ex
34,9), e Paulo alarga o horizonte afirmando que a nova herança acon-
tece em Cristo, e se inclui, como membro da nova herança, a Igreja.
Não é de se excluir, porém, a herança como algo que o cristão rece-
berá de Deus. No Antigo Testamento era a terra prometida (D! 3,18),
no Novo Testamento é o céu (Rm 8,17; Gl 3,29; 4,7) do qual o
Espírito Santo é o penhor (v. 14).
O texto não deve ser entendido como se o «nós» se referisse aos
judeus, mas como o «nós> sendo os judeu-cristãos. A eles foi pregado
inicialmente o Evangelho, e feita a nova promessa de herança, mas de
modo nenhum foi excluído o «VÓS» a quem se deveria anunciar a pro-
messa, em seguida (At 13,36).
'A doxologia do v. 12 conclui a realização histórica da vontade sal-
vijica de Deus, quanto aos judeus que esperavam o Cristo. O verso
sêguinte porém abrirá a perspectiva desta esperança, mostrando que
iodas os homens esperavam a salvação e que Deus não faz -acepção
de pessoas (At 10,34).
ESPIRITO SANTO: Certamente a doação de seu próprio Espírito
.aos;. homens é a bênção, o dom maior que De.us pode dar ao homem.
Os gentios são convidados a participarem da promessa feita a lsrael,
' '!'inado e <Poluído~ por este gesto· de rejeição e se torna terra conde-
e recebem o Espírito Santo (At 11,44) que seria derramado sobre os
filhos de Deus (JI 3,1-5). O dom do Espírito coroa a execução do
desígnio de Deus e é uma garantia, uma caparra (2Cor 5,5), um selo
(2Cor 1,22), talvez melhor um pregosto da herança definitiva que virá
em plenitude na parusia. _ bete "martús", em Tb,VzNT 4 (1942), 477ss; F. H a u e k .. S. Se h u 1 z, o
· Se na primeira parte do hino o centro era a ação de Deus em
Cristo, nesta parte final o centro é o homem, objeto da atenção das
354
três pessoas divinas. E o homem novo que constitui esse povo adquirido
(Tt ~.14; lPd 2,9 eco de Ex 19,5; Dt 14,2) é o objeto de todas as
bênçãos de Deus. ·
Bibllogra/ia: H. C o n z e 1 m a n n - O. F ri e dr 1 eh Epistolas de Ia Cautividad
Madri 1972; H. Se h 11 e r, Lettera agll Efesinl, Bré'scla 1972· i\1. Z e r w 1 e k'
La Jettera agll Efesini, Roma 1966. • '
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
Paulista, ,pE
Terceira Leitura: Me 6,7-13
«Sacudi a poeira dos pés' em testemunho contra eleS»>
Na Pista Exegética de Me 6,1·6 (cf. Domingo passado!) já explicou-
se que, ao escrever a missão dos: doze, a atuação de jesus serviu de
modelo. Resulta de uma comparação dos dados deste passo com aquilo
que precede. Os doze recebem o poder de Jesus sobre os maus espí-
ritos (6,7c; cf. 1,27; 3,15 etc.). Jesus não foi bem recebido em Nazaré
(6,1-6); o mesmo pode acontecer- aos apóstolos (6,11). Os apóstolos
pregam a conversão (6,12) como Jesus (1,14-15). Expulsam como 'Ele
(cf. 3,22) os demônios (6,13a) e curam como Ele (e!. 6,5b) os doe11tes
(6,13b). Sem negar a historicidade desta missão, pode-se dizer ,que
nos elementos citados transparece inais a teologia-de-missão do evarige-
l_ista Marcos.
Contato com dados históricos encontra-se com maior probabilidade
nos elementos próprios desta passagem, isto é, nos versículos 8-11. Eles
admitem duas interpretações, uma que se pode chamar de «escatológica»
e outra de «frànciscana». Esta última focaliza a pobreza evangélica que,
livre de preocupações terrestres, se dedica integralmente à causa - do
Evangelho, confiando na providência de Deus e na bondade dos homens.
A interpretação escatológica deduz das palavras de Jesus que se
trata de uma missão de grande urgência. Como outrora Giezi, o servo
de Eliseu, na sua missão de vida: ou de morte (2Rs 4,29), assim os
apóstolos devem preocupar-se somente com o essencial. Mantimento e
~estuário são coisas secundârias; no momento urge é pregar a conversão
ao Reino de Deus que está chegando, antes que seja tarde. Não receber
ós emissários desta mensagem e não lhes prestar atenção têm conseqüên-
éias escatológicas que Marcos evoca nas injunções: «Saiam de lá, ,ba-
tendo o pó que ficou na sola do calçado. Isso serã um testemunho
contra eles». Pela retirada dos apóstolos os incrédulos são entregues
à sua própria sorte. Em não fazencl!) caso da pregação apostólica podem
ter perdido a última chance de participar do Reino. O gesto de ·até
bater o pó do calçado chama atenção pela seriedade do comporta-
mento deles: rejeitando os enússários, estes os privam de qualquer
vestigio de esperança. Até o pó que fica na sola do sapato é conta-
nada. No dia do juizo este gesto será alegado contra eles como tes-
temunho do descaso e da incredulidade deles. L
Bibliografia: AJêm de comentários, especialmente: H. S t r a t b m a n n, o ver•
verbete "poreúomai", em: ThWzNT 6 (1959), 577ss.
Raul Ruijs, O.P.M.
Petrópolis,- RJ
355
 Sugestões para a Homilia
Introdução
Na pluralidade das idéias e notícias, no surgimento de novos
profetas, no diálogo com os diversos humanismos, no contato
com novas religiões, na proliferação de seitas e misticismos, na
convivência com pessoas que não compartilham a fé cristã, é
necessário fazer uma pergunta fundamental:
Para que Cristo veio ao mundo? Para que serve a Igreja?
Qual é o papel do cristão em nosso tempo?
Corpo
!. A missão de jesus
, O projeto de Deus em relação ao homem é liberdade, dig-
nidade, salvação. Deus quer que o homem seja feliz como Ele
é feliz. Esse projeto se concretiza progressivamente num fabu-
loso dinamismo que culmina no envio do próprio Filho: «De tal
modo Deus amou o mundo, que lhe enviou seu filho único, para
que todos que crerem nele não pereçam, mas tenham a vida
eterna» (Jo 3,16).
Jesus, o Filho de Deus, viveu em plenitude o projeto do
Pai. Ele é o enviado para ser o revelador do Pai, o missionário
do Pai no gesto definitivo para salvar os homens. Neste envio
se realiza a passagem da eternidade do Filho de Deus para sua
entrada na história.
Jesus foi enviado para manifestar a vontade, a vida, a
bondade, a glória, a face do Pai. «Meu alimento é fazer a von-
tade daquele que me enviou» (Jo 4,34). No início de sua vida
pública define com clareza sua missão: anunciar e instalar neste
mundo a novidade do Reino: «Para isso é que fui enviado»
(Lc 4,43). Ele veio para dar a vista aos cegos, o ouvido aos
• surdos, o movimento aos paralíticos, a esperança aos desespe-
rados, o pão aos famintos, a vida aos mortos ...
Jesus foi enviado para comunicar um mundo inteiramente
novo, uma nova ordem de justiça e solidariedade, de AMOR e
fraternidade, de paz e liberdade, realizando o sentido pleno da
vida: «Eu vim para que todos tenham a vida e a tenham em
abundância» (Jo 10,10).
Jesus foi enviado para participar intensamente da vida dos
homens, libertando-os de tudo aquilo que oprime: egoismo, ódio,
divisão, sofrimento, violência, culpa, morte; numa palavra, o
pecado e suas conseqüências.
356
Jesus oferece uma libertação radical que representa a possi-
bilidade de uma vida nova já presente neste mundo. Jesus foi
enviado para reintegrar os pobres e pequenos, os marginalizados
e perdidos, os miseráveis e fracassados, os doentes e oprimidos,
os ofendidos e humilhados, os esquecidos e explorados, numa
só família como irmãos e amigos, amados pelo mesmo Pai.
Jesus veio para ser irmão, amigo - próximo de todos.
«Ü Filho do Homem veio procurar o que estava perdido»
(Lc 19,10). É o programa, o leitmotiv de toda sua vida e pre-
gação. Jesus assumiu esta missão numa fidelidade. total ao. Pai
e aos homens dentro do contexto histórico de sua época. Pela
ação corajosa e coerente, Jesus provocou o drama da incom-
preensão, do conflito, da oposição, da cruz.
2. Vocação da Igreja - missão do cristão
Jesus não quer ficar sozinho na missão evangelizadora:
missão de inaugurar o Reino de Deus de aldeia em aldeia, de
cidade em cidade. Ele tem necessidade de testemunhas, de co-
laboradores, de pessoas dispostas e disponíveis, corajosas e con-
fiantes, livres e esperançosas. Por isso chama, escolhe, transfor-
ma e envia os doze apóstolos.
Como o Filho foi enviado pelo Pai, assim também Ele enviou
os apóstolos (cf. Jo 20,21). Assim envia a cada fiel com a
missão de anunciar e testemunhar um mundo absolutamente novo:
«Chegou o Reino de Deus» (Me 1,15).
Eis o fundamento e o imperativo da vocação missionária:
comunicar aos outros a experiência que fizemos do Reino de
Deus.
Evangelizar é missão essencial, a vocação própria, a iden-
tidade da Igreja, tarefa que as profundas mudanças da socie-
dade atual tornam ainda mais urgente (cf. EN 14).
Evangelizar não é privilégio dos bispos, padres, religiosos.
Todo o Povo de Deus é chamado, convocado, enviado por Jesus
a fim de levar a energia explosiva do Evangelho a todos os
homens de todos os tempos, de todos os lugares.
E preciso superar de vez á visão individualista e clericalista
da Igreja, pois, em virtude do· batismo e da confirmação, todo
cristão deve ser sinal e portador do Reino e sentir-se respon-
sável pela irradiação da mensagem libertadora de Cristo.
Ser cristão não é questão de teoria, de sentimento, de moda,
de tradição familiar. Ser cristão é questão de opção, de entrega,
de testemunho, de convicção, de comunhão de vida.
357
 Não basta ser batizado, é preciso viver o batismo.
'Não basta ser embaixador, é preciso viver a missão.
Quais são as exigências para evangelizar com credibilidade?
a) O testemunho comunitário da unidade. Por isso, Cristo
os envia dois a dois. A força e o fruto da evangelização de-
pendem da identidade de nosso testemunho diante dos cristãos
e não-cristãos, de batizados e não-batizados. '
b) O testemunho de uma vida desapegada, despojada de
ambição, vantagens, proveitos, privilégios. O que importa, o que
é fundamental é Cristo e seu Reino. Tudo o mais é relativo e
secundário.
c) O testemunho autêntico e coerente do anúncio e da vi-
vência do Evangelho, provocando a conversão, a mudança pro-
funda de vidas e mentalidades, de valores e ambientes.
d) O testemunho encarnado e solidário, assumindo o com-
.de responsabilidade, de omissão e de exploração das classes lideres. O;
prom'sso e a luta contra os «demônios» que esmagam e des-
troem a dignidade do homem: os demônios do egoísmo, da ido-
latria do poder, do sexo, do lucro, da exploração, da violência,
da injustiça. Testemunho sempre a serviço do homem, a serviço
de um mundo mais justo, lutando «para que não haja crianças
sem nutrição suficiente, sem educação, sem instrução; que não
haja jovens sem a preparação conveniente, que não haja cam-
poneses sem terra para viver e desenvolverem-se dignamente, que
··clamam ao invés que Deus mesmo intervirá. Ele d~tuir4 os -Ucteus:
não haja trabalhadores maltratados nem diminuídos em seus di-
reitos, que não haja sistemas que permitam a exploração do
t.
homem pelo homem ou pelo Estado, que não haja corrupção,
que não haja quem tenha muito de sobra enquanto outros sem
culpa estejam em falta, que não haja tanta familia mal cons-
1•·
tituida, desfeita, desunida, insuficientemente atendida, que não
haja injustiça e desigualdade na repartição da justiça» (João
Paulo II, em sua viagem a Puebla).
Conclusão
A medida que nosso envio expressar coerência de vida e
ação, ele serã testemunho e apelo ao seguimento. Sem o tes-
temunho visível e atuante a evangelização serã como uma má-
quina de escrever sem fita: faz barulho, mas nada produz.
Clemente Kesselmeier, O.F.M.
Rio de Janeiro, RJ
358
Décimo Sexto Domingo
do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Jr 23,1·6
«ÍJeus é 11 nossa justlç111>
Os profetas do Antigo Testamento criticaram o presente (cf. vv.
l-2a) à luz da ação de Deus no passado (cf. vv. 5.7-8) e prometeram
um futuro melhor da parte de Deus (vv. 2b.6). Nas suas denúncias
responsabilizaram antes de tudo as classes que exerciam a liderança
política, judicial, econômica, militar e religiosa, aqui indicadas todas
na palavra «OS pastores» (vv. l-2a). Do povo em geral denunciam-se
especialmente as crenças e práticas heterodoxas e supersticiosas, junto
com os desvios morais etc. Estas heterodoxias e heteropráxis religiosas
e morais junto com os fracassos e desgraças nas gestões políticas,~
econômicas e militares são denunciadas como conseqüências da falta J
povo em geral é visto como vitima e como rebanho por elas transviadoj
e traido.
Uma vez que segundo esta visão e interpretação profética da reali· 1
dade - que pode ser historicamente condicionada - os lideres são ,
responsáveis pela (má) sorte do povo, os profetas dirigem geralmente •
a eles e contra eles suas profecias que, .neste contexto, assmnem a"!
forma e o conteúdo de denúncias e ameaças. Poucas vezes somente!
os profetas apelaram à res2ons'!ll;ilidade do povo para opor... e aos\
líderes, Jivtar-se deles e4'dmar a SuaSorte nas próprias mãos. Pro- 11
e lideranças erradas; salvará o povo e lhe dará novos líderes que
guiarão o povo com justiça (cl. vv. 3-4). -
Nesta perspectiva prof~tica surge a figura messiânica de um novo
Davi, mesmo nas profecias de um Jeremias que em geral deposita
pouca confiança nos homens (cf. v. 5). Os novos líderes, o rei messiâ- . '.
nico à frente, serão a «:encarnação» da justiça de ]avé (cf. v. 6b).
Receberá este nome «]avé - llbssa justiç11» porque em última análise •
o povo deve a Deus mesmo - e não aos líderes! - a salvação da j
opressão e do exílio (vv. 3.7-8), do medo e do temor (v. 4) e a
segurança (v. 6a), o direito e a eqilidade (v. 5b).
Nem neste contexto das profecias de um futuro melhor o povo ~
é chamado a tornar-se agente de sua própria história, mas antes é
visto como beneficiado de Deus, que o Sãlvarã'Cte suas tendências '";
pecaminosas e renovará seus corações pela infusão do Espírito _Esta
perspectiva da interiorização da justiça de Deus nos corações ~mem-
bros do povo talvez não esteja explicitamente presente em Jr 23,1-6
(cf. Ez 34 e 361). Mas implicitamente estã, porque o novo Davi serã
em um sentido muito intenso o princípio vital da vida do povo e a
alma da nação como o era outrora Sedecias (cl. Lm 4,20). Sedecias ·
signüica: «Minha Justiça é Javé (~idqij-jãhü)>. O nome que o profeta
atribui ao rei messiânico é: <Javé - nossa justiça Qabweh $idqênü)>~.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
359
 Segunda Leitura: Ef 2,13-18
Este trecho da carta aos efésios pode ser considerado o centro
teológico da carta. Paulo mostra a Igreja como o lugar onde os homens
das mais diferentes condições estão juntos. A Igreja não nasceu do
acordo ou da decisão dos seus membros, é anterior a eles, é fruto do
sangue de Cristo derramado na cruz.
Uma leitura mais atenta do texto nos mostra .uma estrutura de
paralelismos, tendo como centro os vv. 15b-16a: «a fim de criar em
si mesmo um só homem novo, estabelecendo a paz, e de reconciliar a
ambos com Deus em um só Corpo». O v. 13 diz que estáveis longe e
Cristo vos trouxe para perto, os vv. 17-18: os de longe e os de perto
(ambos) têm acesso ao Pai. O v. 13 é então o inicio de um itinerário
que se conclui no v. 18, trata-se da aproximação dos homens com
Deus. Os vv. 14-15a nos indicam o motivo desta aproximação: Cristo é
nossa paz, ele uniu ambos os povos, suprimindo no seu corpo a ini-
miza~e da lei. Os vv. 16b-17 completam o pensamento dizendo que
Cristo na cruz matou a inimizade e anunciou a paz aos de perto e
aos de longe. Assim no centro da perícope está a afirmação que Cristo
criou «em si mesmo um só homem novo estabelecendo a paz», recon-
ciliando ambos os povos «em um só Corpo», a Igreja. Pode-se então
considerar como ensinamento central a criação do homem novo, fun-
damento e fim da Igreja.
Jsaias 57,19 falava dos que estavam longe e dos que estavam
pertó. Para o profeta tratava-se da proximidade ou distância de Jeru-
salém, para Paulo, os que estavam próximos eram os judeus, e os
distantes, os pagãos. A cruz de Cristo aproximou gentios e judeus
(vv. 14-15) entre si e com o Pai (vv. 16-18). Essa união só foi gossi-
vel em Cristo, cabeça e motivo da unidade. Os dois grupos irreconciliá-
veis, judeus e pagãos, encontram-se reconciliados na Igreja, pelo sangue
expiador de Cristo.
O sangue de Cristo trouxe paz ao mundo, paz que inclui em si a
destruição dos muros que dividiam -os homensJ dos quais o muro do
Templo de Jerusalém que separava o átrio dos gentios era um sinal
vivo e concreto; e das leis de morte, das quais a judaica da pureza
e impureza se tornara um protótipo, por exigir sem dar condições
de observância. O v. 19 de Is 57 aludido no v. 13 tem aqui sua
exegese feita, no v. 17 ele será citado e no 19 desenvolvido.
Cristo restabeleceu a paz entre os homens e entre os homens e
Deus. Destruiu os muros que separavam os homens, e de uma vez por
todas cumpriu a lei pela morte de cruz (Cl 2,14). A paz messiânica,
prometida pelos profetas, tornou-se urna realidade pela morte de Cristo
(Cl 1,22) e na fundação da Igreja _(!Cor 12,12) .. o próprio Cristo,
pela boca sua e dos apóstolos, anunciou a paz realizada, congregando
os homens ao redor do único Espírito. Em outras palavras o Espírito
que vivifica a Igreja é o motivo da união entre os homens. O motivo
da vida nova é um só, o Espírito, por isso formamos um só corpo.
Desse corpo é parte integrante o homem novo.
I-Iomem novo que significa a transformação radical da existência
pelo batismo. O Antigo Testamento fa1a deste homem como fruto do
Espírito que Jhe dará um coração capaz de conhecer a Deus (Ez
36,26s),' praticamente acontece urna nova criação segundo a jus~iça. e
f Esta instrução e alimentação da grande multidão «de todas as
' ' .
a santidade (4 26) tendo sido aniquilada na cruz a raça do pnmeuo
360
Adão, corrompido pelo pecado, pelo ódio e pela divisão (cf. Rm 5,12s).
Este homem novo é a humanidade nova, para além das distinções de
raça, religião, cultura, classe social e cor (cf. Cl 3,lOs; Gl 3,27s). O
termo pode então ser aplicado de modo coletivo à 1greja, e pessoal,
ao batizado. Diria que o homem novo é protótipo e constitui a nova
criação, a Igreja, onde está presente a paz fruto do Espírito Santo,
dom de Cristo. Realiza-se a profecia de Is 56 e 27 onde se anuncia
que os filhos dos estrangeiros se unirão a Israel para louvar o Senhor.
Bibliografia: H. C o n z e 1 m a n n - O. F r i e d ri e h, Epistolas de la cautivldad,
Madrid 1972; H. Se h 11 e r, Lettera agli Efesini, Brescia 1972; M. z
e r w i e k,
La Ictlera agli Efesini, Roma 1966.
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.j.
Paulista, PE
Terceira Leitura: Me 6,30-34
«Jesus compadeceu-se deles» .. 1 '.
A passagem retoma o fio da narração, interrompida depois de
6,7-13, e narra a volta dos apóstolos da sua missão. Entre 6,13 e 6,30
inseriu-se a narração do martírio de João Batista (6,14-29), recurso
literário para sugerir um intervalo de tempo entre a missão e a volta.
Mas certamente também um recurso teológico para sugerir as «últimas
conseqüências» da pregação evangélica. Em Mt e Me João Batista pro-
vavelmente desempenha o papel de protomártir; nos escritos de Lc -
Evangelho e Atos dos ApóstolOs - Estêvão desempenha este papel
(At 6,8-8,13), dispensando-se de narrar no evangelho o martírio de
joão Batista.
Os apóstolos contaram a jesus o que tinham feito e ensinado. A
movimentação do povo (v. 31b) dá a impressão de que a missão teve
grande êxito. Como em 6,7-13 encerram-se nestes poucos dados as
coordenadas principais da missão apostólica e cristã futura.
Também o convite de Jesus para procurar com Ele a solidão pode
ter um sentido exemplar ou tipico. Jesus rodeado por Seus disc.pulos
«para comer» (v. 31c) é o símbolo da comunidade cristã futura em que
missão e união na oração e na comensalidade com o Senhor são elemen-
tos basilares.
Os vv. 33-44 representam um passo novo na atuação de Jesus.
Com os discípulos vieram grupos de moradores de toda a Galiléia para
conhecerem pessoalmente a Jesus, cuja Boa-Nova seus missionários lhes
pregaram. «Ao desembarcar, jesus viu esta grande multidão e compadeceu-
se dela, porque era como ovelhas que não têm pastor» (v. 34a) ..Esta
compaixão de Jesus concretiza-se desta vez no ensinamento prolongado
(v. 35: <até à tardinha») e na alimentação farta (vv. 41-44) desta
grande multidão» (v. 34). Há, pois, também aqui a dupla ação de
Jesus em palavras e ações, sublinhada pelos adjetivos grifados, e pelo
uso repetido de muitos (em vv. 31-35 seis vezes) e de todos (em
vv. 39-42 três vezes). ·
cidadeS» da Galiléia (v. 33) ocorreu na estação da primavera, «da relva
verde» (v. 39), isto é, da Páscoa (cf. Jo 6,4). O lugar onde este
povo se reúne em redor de Jesus é deserto (v. 35b); quer-se evocar
«O deserto» onde Moisés alimentou o povo com o maná (cf. Jo 6,31s)?
361

jesus multiplica os pães do seguinte modo: «Tomando os cinco pães ...
levantou os olhos para o céu, rezou a bênção e partiu os pães e deu
aos disclpulos para distribui-los... a eles... todos• (v. 41). Estas
formulações revestem um cunho litúrgico que evoca a associação com
as narrações da última Ceia e da celebração da mesma nas comuni-
dades cristãs.
A importância que a tradição eclesial atribuiu à multiplicação dos
pães· e à narração da mesma deduz-se dos elementos literários acima
realçados, dos textos paralelos e do fato de que também o quarto
evangelho a assume. Existem seis versões desta narração: Me 6,30-43;
8,1-9; Mt 14,13-21; 15,32-39; Lc 9,10-17; jo 6,1-15). Que também o
próprio evangelista Marcos estimou demais a importância desta comen-
saJid_ade para com Jesus resulta do fato que o tema «comer» e «PãW>,
além. de nas duas narrações da multiplicação dos pães (6,35-44; 8,1-10),
volta como um fio de ouro nas passagens que seguem (cf. 6,52; 7,2.5;
7,27; 8,14.16.19). Parece que Marcos quis ligar todas estas passagens
com o grande tema que precede a todas elas: «(Jesus) viu a gr?nde
multidão e compadeceu-se dela, porque era como ovelhas que não têm
pastor> (6,34a). Em todas elas jesus é apresentado como salvador
nas ·necessidades, que conSistem em' ignorância (6,34), fome (6,35-44),
vento contrário (6,48.51) e doença (6,55-56). Ele salva ensinando, ali-
mentando, acalmando o mar e curando as doenças. Em 6,34 caracteriza-
i se, pois, a situação mal-aventurada do povo que anda a esmo como
1. «:ovelhas sem pastor». Socorrendo-o jesus apresenta-se como o pastor
do rebanho. O detalhe de que jesus •deu ordens aos discípulos para
1 que ·fizessem sentar a todos em grupos na relva verde» pode ser uma
i referência intencional a Sl 22,2.5: «0 Senhor é meu pastor. . . em verdes
relvas ele me faz deitar. . . Preparais para mim a mesa à vista de meus
inimigos».
l
A afirmação categórica de que o povo «era como ovelhas sem
1 pastor», não faça esquecer que houve no tempo e ambiente de jesus
muita gente que pretendia ter um papel de liderança junto ao · povo
e de «pastor»: escribas, ra!Jis, fariseus, saduceus, sacerdotes, Sumos
sacerdotes, anciãos, o Sinédrio. . . l';la.is categórico ainda do que Marcos
é João afirmando que «todos que vieram antes de Jesus eram ladrões
e salteadores» (Jo 10,8) que <não cuidaràm senão de seu próprio
pasto» (cf. Ez 34,2). O critério da autenticidade dos pastores não se
encontra nos próprios pastore&, na consciência vocacional, nas boas
intenções deles; nem nas teorias (ou teologias) deles, mas na' sorre
do rebanho. Em Jesus surgiu para o rebanho descuidado do povo de
Deus um pastor qUe não se restringiu a dar palpites, mas que se com-
padeceu efetivamente das multidões. 'Ele se tornou para o povo aban-
donado e marginalizado - abandonado porque seus líderes se distan-
ciaram do povo e o povo de seus lideres - o pastor, que instruía o
povo e dele ctúdava. O cuidado pelo povo que se une à sua instrução,
concretiza-se na alimentação do povo faminto e nos outros socorros.
O aforismo «não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que
procede da boca de Deus», não funcionou, no caso de Jesus, ' como
paliativo nem como desculpa ...
A. narração da multiplicação dos pães não. realça de forma alguma
o caráter milagroso do fato. O intuito da narração é diferente. Ela
não quer focalizar a grandeza e o,• poder sobrenaturais de Jesus qu.e,
também, se manifestam ·através de seus milagres: Antes de tudo apre-
senta Jesus como o salvador em cujas mãos abertas para dar e socorrer
362
os necessitados se multiplicam os pães. Este Jesus, e não tanto o Jesus
milagreiro ou taumaturgo, é a rev~Iação por excelência da misericórdia
de Deus e da graça salvífica. É a comunhão com este jesus que traz
n salvação. É na comunhão com ·este jesus, com o seu ctúdado pelo
povo e com as suas mãos abertaS para dar e socorrer, que se ;pode
realizar ainda hoje - o milagre(?)· de - uma salvação efetiva do povo.
l
Bibliografia: Além de comentários, especialmente W. O r u n d .m a n n Die
Geschichte Jesu Chr{sti, p. 274ss; B. van J e r s e 1, (A .mesa do Senhor) em
Hei Heilig Land 17 (1964), 145-149; 1 d em, (Jesus, a Revelação da mlseriCórdla
de .qeus) (Me 6,34-56), na mesma revista, 11 (1958), 76s. O primeJro artigo
tarnbem em: J d em (Acerca de jesus), p. 118-132; j. D e 1 o :r m e jésus Jes
apõtres et la fonte (1\ilc 6,3()..34), em: AdS 11/47 (1970) 44-58· A' 'V e i 'ser
O que é milagre na 1Jlblia~ São Paulo :.1978. ' ' · '
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Tema frincipal
]AVE-NOSSA-JUSTIÇA.
COMO EXERCER UMA COMPAIXÃO INTELIGENTE, CRITICA,
EVAN_GELICA
Sugestões para a Homilia
Introdução
;
: A credibilidade de nosso Deus, que se revela em seu filho
]esus Cristo e nos quer como irmãos, está na defesa do Direito
e da Justiça onde estes são escamoteados por estruturas iníquas
ou espezinhados por regimes arbitrários.
É um Deus que se compadece do povo, .pois são como que
ovelhas sem pastor.
Corpo
Deus
1. jesus Cristo como encarnação, concreção da justiça de
Estes oráculos ( J·> leitura) contra os maus pastores, os
falsos profetas e guias do povo são duros, diretos, reais. Por
isso mesmo é que eles nos impressionam, nos interpelam e ques-
tionam como pastores, sacerdotes, agentes de pastoral, líderes
cristãos.
, Até onde, consciente ou inconscientemente, através de 11ossa
ação pastoral, nossos movimentos, promoções, organizações esta-
mos criando condiçfü~s para que o povo seja povo, to~e-se
agente de sua própria história? -
A Igreja como instituição, com tudo o que tem, possui e
pode - numa palavra: com todo o seu peso social - é pastora,
isto é, alguém que vai à frente, que se compromete com o povo,
363
 com a justiça? Ela é povo? É capaz de se despojar sempre
mais· de uma série de privilégios e regalias acumulados atràvés
da história, mas que, no nosso contexto de Terceiro Mundo~ de
América Latina, de Brasil, desacreditam-na perante milhões, de
pessoas (na sua maioria cristãos, filhos seus), esvaziando' seu
potencial evangelizador e libertador?
É interessante observàr que os verdadeiros profetas voltav\im-
se, sobretudo, em suas criticas; contra os que se arvoravam
como pastores, como líderes de então: as classes politicas, ~co­
nômicas, judiciais, militares e religiosas. É bem verdade que ··não
toleravam também as práticas e crenças heterodoxas e supersti-
ciosas, os desvios morais reinantes entre o povo. Mas a carga
mais pesada era contra os «pastores», a liderança de IS'rael !
Se a realidade é caótica, i~justa; se não há paz (2• lei-
tura), é •porque a realidade dos ~atos, a vida social, a organiza-
cão ·da convivência htunana como ela se estrutura e se articula
1~ ~a sua dimensão econômica (produção - distribuição da riqueza
e dos bens); na sua dimensão politica (regime politico -
'I
j divisão do poder e responsabilidades - participação nas decisões-
i chaves); na sua dimensão jurídica (Constituição do país - a
legislação reinante como objetivação da mentalidade ou da cons-
1 ciência coletiva), estão em função de uma pequena minoria e
' conseqüentemente em prejuízo cfa grande maioria, da multidão,
do povo.
.Em linguagem teológica: é. porque esta realidade, em si
mesma, se apresenta como injusta, pecaminosa, contrária à
vontade do Pai; é um an!i-Reinó.
2. A atitude de Cristo
Ele se compadeceu da multiaão de tal modo que se tornou
perigoso, incômodo e por isso Rrocuraram se livrar d'Ele!
Mas é justamente neste compromisso com a Justiça, com o
povo e seus direitos que se fundamenta sua força de credibili-
dade através dos tempos. Nisto Ele se apresentou como a encar-
nação da Justiça de Deus. O seu Deus é «Javé-Nossa-Jus!iça».
Vidé primeira leitura: Jr 23,5-6.
. Dai que a postura de Jesus tenha sido bem diferente 1 da-
quela dos profetas do AT. Dirigiu-se com preferêpcia às massas
popúlares, ao povo do interior, •às periferias sociais de então,
marginalizadas e manipuladas pelos que dispunham do poder,
inclusive do poder religioso (os 'sacerdotes· - escribas - fari-
seus sobretudo).
' O povo intuiu n'Ele algo de novo, de profundo; alguém
que· falava «com autoridade», se111 mentira, sem hipocrisia, sem
364
demagogia, com pureza de i.ntenção, veracidade de coração.
Deixou transparecer em si, mais por seu comportamento (orto-
praxia), que por sua doutrina (ortodoxia), este Deus-Justiça,
Deus-Pastor de seu povo, portador da verdadeira paz ..
Con_clusão
Dos Direitos Humanos aos Direitos dos Pobres
Defender os direitos humanos hoje, na América Latina,
impõe-se como tarefa prioritária. A Igreja, em muitas dioceses,
está ciente e envolvida nessa luta. Situações há em que, por
circunstâncias históricas, ela é a única voz que pode levantar-
se para defender os mais elementares direitos violados.
Para -evitar abusos, distorções e desmascarar o jogo daque-
les que, na América Latina,· dentro de uma visão liberal-
reformadora, buscam criar uma·· «face mais humana» do sistema
capitalista, seria menos ambíguo, portanto mais oportuno, mais
condiz.ente com a linguagem piblica, com Medellín e Puebla,
falar em direitos dos pobres ,(vide· «0 São Paulo», 23 a :29
de dezembro de 1978, «Evangelização e Libertação», p. 5).
Falar de direito dos pobres é falar do direito que têm os opri-
midos da América Latina de viver, de lutar por seus direitos.·
Como se dá isto na prátic_a? Como isto se torna «práxis»,
ação pastoral? Como este «mis~reor super turbam» de Cristo1 se
dá «hoje», no «aqui e agora» de nossa realidade? Como o h_oje
«kairológico» de Cristo, denso de libertação, de Páscoa, se tdrna
vida, realidade, por isso mesmo prenhe de credibilidade, no
hoje «cronológico» de nossa sqciedade complexa, co111 mecanis-
mos de funcionamento e reproçlução destas estruturas injustas,
ihumanas e antievangélicas? ·
Acreditar, valorizar e preparar agentes pastorais com u_rna
consciência mais eclesial do que eclesiástica, aptos para partici-
par nos mais variados tipos de experiências de organização,' de
comunicação pópular, de resistência e de luta: associações ' de
amigos de bairro, de favelas e de moradores dos loteamentos
clandestinos, chibes de mães, centros de defesa de direitos huma-
nos, centros de educação populá_r, mutirões, movimentos de custo
de vida ...
Trata-se de ter «compaixão da multidão», do povo, certo!
rtias de modo inteligente, crítico, evangélico, organizado. Enfim:
exercer uma «caridade política», segundo as exigências do ipo-
mento histórico! '
Frei Cristóvão Pereira, 0.F.M.
Vale do jatobá, Belo Horizonte, MG
365
 Décimo Sétimo Domingo do Ano B
Pistas EXegétlcas
Primeira Leitura: 2Rs 4,4244
«Ele os distribuiu e comeram»
1. Este passo pertence ao gênero literário das lendas profeticas.
A estrutura principal deste gênero consiste em três elementos: o oráculo
- o evento - a confirmação. Estes três elementos estão aqui juntos
no ~remate da lenda:
ordculo: «Eis o que diz o Senhor: Comerão e ainda sobrará»·
evento: <E (o servo de Eliseu) deu os (pães) ao povo>; ' nese de Efésios (cc. 4-6) é então conseqüência espontânea e conatural
confirmação: «Comeram e ainda sobrou, como o .Senhor tinha dito».
Esta pequena narração - apesar de mna repetição. quádrupla
(1. «Dá-os a esses homens, disse Eliseu, para que comam»; 2. «Seu
servo respondeu: Como poderei dar de comer a cem pessoas com isto»;
3. .'«Dd-os a esses homens, repetiu EJiseu, para que comam»; 4. «E
lhes deu e comeram») - tem um forte suspense por causa da seqüên-
cia: ordem de Eliseu - objeção 'do servo - repetição da ordem;
Somente neste momento segue~se o práculo: «Eis o que diz o Senhor-:
Com~rão. e ainda sobrará». Somen'e ~aqui, no finzinho, revela-se que jâ
a pnme1ra ordem não era mera palavra humana de um homem qual-
quer, mas mna palavra. cheia de vig,or, do homem de Deus Eliseu (v. 42a).
n:sve.nda-s.e de manetra surpr~enfe~t~ que o servo, cuja objeção ~
pr1me1ra vista se apresenta mruto realista, somente 1eva em considera-
ção uma parcela daqu"!a realidade mais abrangente em que o profeta,
«O _homem de Deus», vive e age.
2. Mesmo em mna tradução, basta a simples leitura desta lenda
para verificar que ela influenciou a redação das narrações evangéli-
cas. sobre a multiplicação dos pães de jesus. Qual era a intenção desta
referência e alusões _a 2Rs 4,42-44? Jesus veio para cumprir a Lei e
os Profetas. Era, pois, conveniente mostrar que Ele autenticava su3.
mi.São através de sinais que os profetas fizeram. O quarto evangelista
acentua esta perspectiva, anotando a exclamação do povo: «Este é
verdadeiramente o Profeta que hã de vir ao mundo!> (Jo 6,14). Este
evangelista relaciona o milagre de jesus tanto com a multiplicação de
pães de Eliseu, anotando que se tratava de pães de cevada (Jo 6,9;
cl. 2Rs 42), como com o Maná de Moisés (cf. · jo 6,3Jss). Eliseu era o
«substituto» de Elias. Este último junto com Moisés uniu-se a jesus na
montanha da transfiguração, revelando-se Jesus maior do que eles, sejá.
por causa da mensagem que pregou, seja graças aos sinais que feZ.
Estas perspectivas alargam os horizontes limitados da gente e ajudam
a avaliar devidamente a Jesus e ultrapassar os limites da realidade
corriqueira em que se costuma viver e se é· tentado a enquadrar
também o jesus e a fé cristã (cl. jo 6,15.26).
'
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
.,
366
Segunda Leitura: Ef 4,1·6
Paulo tem diante de si um dos três problemas que ameaçavam a
Igreja nascente, a discórdia (vv. 1-3), os outros dois eram a divisão
dos ministérios (vv, 7-11) e as heresias (vv. 14s), A esses perigos
ele opõe a unidade em Cristo (vv. 4-6) como único modo de superar
discórdias, ciúmes (vv. J2s) e heresias (v. 16), assim ele faz ·.mna
admoestação mais longa sobre a união dos membros da Igreja na
caridade e na paz.
A exortação é resultado da doutrina antes anunciada, ou seja, a
conduta é decorrência normal de uma opção de fé. Dogma e vida, fé
e ação estão permanentemente unidos. Assim na vida concreta da: co-
munidade deve-se manifestar a fé. Essa comunidade não é de origem
anônima, mas nasceu da única fé, a partir da qual os homens se
encontram unidos e reconciliados na paz (cf. Ef 2,13-18). A pare-
do que foi dito na primeira parte (cc. 1-3).
Paulo prisioneiro, por ter andado segundo sua vocação de apósto-
lo, anunciando Cristo, exorta os que estão livres a orientarem suas
vidas segundo o chamado que tiveÍ'am. Chamado esse por demais empe-
nhativo em razão de quem chama ,e para que se é chamado. Em suma,
o cristão foi chamado, escolhido e predestinado por Deus para ser
seu filho (Ef 1,4s), por isso deve andar de modo especial (cf. At
14,16). É interessante notar essa idéia do cristianismo como sendo um
caminho (cl. At 24,14; 9,2 etc.). ,
Passa-se a indicar, então, qual o modo de se trilhar o novo -ca-
minho: humildade, mansidão, generosidade e paciência. Como se vê,. são
virtudes concretas do bem viver, da vida em comum, que têm por
base a humildade, que não é esporádica, mas um constante renunciar
a ser o primeiro, a mandar, a fazer prevalecer a sua própria opinião
e que se caracteriza pelo semrJ • isto é, procurar o desprezível, _;agir
inobservadamente sem dar na vista, deixar morrer o seu eu. Como o
Cristo, entrar num processo de Kenosis.
Aqui como no Evangelhb (Mt 11,29), humildade vai de mãos dadas
com mansidão. Ser manso é não responder violêticia com violência
(Mt 5,4), é dar a outra face para ser batida (Mt 5,39), é não impor-se
pela dureza das palavras ou gestos.
Ser generoso, longânime é repartir o que se tem (At 2,44s; 4,32.34s).
Tudo isso no amor, que faz um suportar o outro. Afinal de contas
todos foram unidos num único povo por Cristo (Ef 2,14) e devem se
aceitar e amar como são. Vivendo na paz, dom de Deus que frutifica
pelo esforço d.o homem, realizarão_ concretamente na vida a união que
possuem no Espírito, fonte de unidade.
.. Mais uma vez percebe-se a necessidade de se demonstrar na vida
da comunidade o que motiva a existência dessa mesma comunidade, a
presença do Espírito, unificador, de Deus.
Os últimos dois versículos constituem uma breve aclamação, de
tríplice ritmo ternãrio (3x3). Provavelmente de origem batismal, onde
se insiste, sete vezes, sobre um só, uma só, fazendo ecoar aqui ·a fé
de lsrael na unicidade de Deus (Dt 6,4). A aclamação segue a ordem
inversa do Hino introdutório de Efésios (1,3-18), começando pela Igreja,
um só Corpo, indo até Deus Pai, criador.
Hã uma só Jgreja, porque _um só é o Espírito que a une e dá
consistência, e uma só é a esperança dos seus membros, a herança
367
entre os santos (Ef 1,18). Assim a esperança designa mais o que se
espera do que o fato de se esperar.
·Hã. um só Senhor. Essa era a confissão de fé dos primeiros cristãos
(FI «2,9-11). Desacreditar no batismo, seria descrer na base da unidade
eclesial. ·1
'Hã um só Deus. Aqui judeus e· cristãos têm sua fé comum, más
os cristãos vão mais a1ém considerando-o como Pai de todos os homens,
sem . distinção de raça ou credo (MI 5,45) e relacionando-se de modo
especial ,com ele, chamando-o Abbã, Papai (GI 4,6; Mt 6,9). " circunstâncias - a hora · avançada e a dificuldade do povo encontrar
;A unidade da Igreja segundo Efésios não é só fruto da boa vontade
dos"' homens, mas é antes de tudo .um dom da Tdndade que nós de-
1 dução hierática (vv. 3-4 e 5a, celevando os olhos ao cén>, illuitas vezes
vemos fazer por merecer. O Espírito' da unidade age em nós, deixemos
que i Ele produza seus frutos.
'
Bibliografia: A mesma do Do.mingo anterior.
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
Paulista, PE
Terceira Leitura: Jo 6,1·15
1. Contexto ·da perlcope
O 69 cap. de João forma um- conjunto; duas partes narrativas
(6,1-21 e 6,60-71) enquadram um «discurso de revelação> (6,25-59) de
jesus Cristo. Esta combinação de narração e discurso de revelação é
típica do quarto Evangelho. A narrativa exerce a função de sinal, o
discurso explica seu sentido. Jo 6,1-15 é o sinal que introduz o «Di&-
curso do Pão da Vidw (Jo 6,25-59). As outras partes narrativas, a
caminhada de jesus sobre as ãguas · (6,16-21) e a reação da multidão
e dos discípulos (6,60-71) funcionam como elementos secundãrios, re,.
forçando a estrutura símbolo-significado que se encontra no tema do
Pão~. De fato, na caminhada sobre as águas, Jesus se revela de modo
especial aos discípulos; ora, depois -do Discurso do Pão da vida, à
multidão fica inacessível à sua revelação (6,60-66), mas os discípulos,
liderados por Pedro, reconhecem em jesus as palavras da vida (6,67-71):.
..Portanto, se Jo 6,1-15 narra um milagre, a multiplicação dos pães~
devemos ter bem claro que este milagre não tem seu sentido último
em 'si mesmo. O importante não é saciar-se com pão (cl. 6,26, próximo
domingo), mas sim ver neste acontecimento um sinal daquilo que Jesus
é para nós (sentido cristológico e ~oteriológico).
2. ]o 6,1-15
Jo 6,1-15 é uma das perícopes , sinóticas do quarto Evangelho. A'
matéria é estritamente idêntica com . Me 6,34-44 par (primeira multipli~
cação dos pães). Aliãs, a per!cope que segue, jo 6,16-21, é idêntica com
Me 6,45-52 par, e depois do discurso de Jo 6,25-59, reencontramos à
ordem sinótica subseqüente à segunda multíplicação dos pães (Jo tem
só uma), comparãvel com Me 8,27-30. É inegável que jo reproduz
aqui a mesma tradição que a da seção dos pães -no evangelho de Me_.
Um estudo aprofundado levou-nos à redação dos evangelhos de Me e Mt.
Portanto, não nos interessa estudar Jo 6,1-15 por seu valor bisf-órico,
tratando-se de um relato derivado. .Mais importante é descobrir nesta
narrativa o ponto de vista teológico · característico do quarto evangelhQ.
368
Em primeiro lugar notamos que jo explicita a razão por que a
multidão segue a jesus: viram os seus sinais (v. 2). Esta atitude, a
mera procura de sinais, é' exatamente o que jesus criticará<' no discurso
de revelação (6,26ss). Em segundo lugar, a encenação 'é hierãtica,
quase litúrgica (num monte, na proximidade de Pãscoa; Jo 6,3-4).
Nisto joão difere dos sinóticos, que quase com um certo zhumor des-
crevem a ocasião da multiplicação dos pães como que .um excesso
,I de zelo de jesus: guardou a turma por demais tempo, é obrigado pelas
viveres - a fazer um milagre. Em joão não é assim. Depriis da intro..
gesto de oração), e sem .. nenhum Indicio da circunstâncias çonstrangen-
tes, jesus torna a iniciatiya de saciar o povo. Não se diz que o po;vo
estava lá escutando jesus,; Parece que foi reunido ali para .ser saciado.
Também não são os discípulos, como nos sinóticos, que;- chamam a
atenção de jesus para a· fome da multidão. Jesus parece só desejar
saciá-los. Os discípulos intervêm dµma outra maneira, b~m joanina,
como testemunhas que não entendem o que se passa. Com ambigüidade
tipicamente joanina, Jesus pergunta «donde» comprar pãq para ali-
mentar a multidão (v. 5). O leitor cristão, já conhecendo ;a catequese
cristã e todo o evangelho de João, sabe que o pão que; alimenta o
mundo é Jesus Cristo. «Donde?», em João, sempre sugere o origem
celeste. O resto do capitulo (cf. próximo domingo) tornai claro isto.
Filipe, porém, pensa em ..:.Pão material e faz um cálculo b~m ingênuo.
Do mesmo modo André, - que apresenta um menino tendo_. cinco pães
e dois peixes, mas fica_. desconfiado de que isto não será o sufi-
ciente... (v. 9). '
De toda maneira, J~sus manda os apóstolos Jazer a turnia se
sentar, Novamente, joão . difere dos Sinóticos num detalhe, importante.
Nos Sinóticos, Jesus manda os apóstolos saciarem a turma (idéia da
missão), e ele fornece a matéria-prima. Em João, ele mesmo, tendo
pronunciado a bênção da mesa, distribui o pão.
Depois de recolhidos :i os restos, João narra que o, povo . quis pro-
clamar Jesus rei. Notaram o caráter messiânico de seu ; gesto. Mas
Jesus lhes escapa. A razão ficará clara no Discurso, a partir do v. 25:
menos ainda que os Apóstolos, o povo tinha entendido o, sentido do
pão que Jesus lhes distribuiu. Ficou numa compreensão meramente
material.
Para a explicação da· presente narrativa é importante deixar trans...
parecer a dupla dimensão que marca as narrações joaninaS. Em si, a
narração contém algumas·· improbabilidades. Não apenas o .milagre em
si, mas também a encenação (por exemplo, Jesus só parece ter reunido
a turma para os alimentar). Mas o característico de joão é que ele
descreve, por um lado, D)ilagres fortes para, depois, mostrar que seu
sentido não está no seu aspecto material, mas na realidade espiritual
que este fato «extraordinário:P assinala. Ao mesmo tempo! reforça o
caráter milagroso e o rélativiza em função da missão reVelatória do
Cristo. A pregação deverá ter em conta esta dialética. Não poderã
perder-se numa evocação do milagre por si mesmo. Este não tem
valor por si mesmo. Teril valor somente com ·,referência àquele que
é Palavra e Filho de Deus. Por isto, no comentârio da presente perí-
,• cope, importa sobretudo mostrar a soberania de Jesus, co~forrne des-
crição do evangelista. Soberania que é realçada, em comparação com o
369
relato siilótico do mesmo lato. Exatamente como no milagre do vinho
em Caná, Jesus não se deixa mover pelas circunstâncias (cl. a resposta
diante de Maria em 2,4), mas domina a situação. Soberanamente, dã
um sinal. Aliâs, João faz questão de nunca chamar os milagres de
Jesus com outro termo que «sinal~, termo que, no AT, indica o agir
de Javé nos prodígios que acompanham a história de seu povo (sobre-
tudo em Ex e Dt). Jo 6,1-15 deve ser entendido como um ato de Deus
no seu Filho Jesus; ele faz as obras do Pai. Não é o efeito material
da multiplicação dos pães que importa, mas confrontar-se com Deus
em Jesus Cristo: este é o teor do discurso que segue (evangelho do
próximo domingo).
Em vez de contar a história, é importante mostrar a compreensão
do evangelista. A estória, todo o mundo a conhece. Mas devemos
dirigir a atenção a estas frases que mostram exatamente uma com.
preensão diferente da de todo o mundo. João, embora transmitindo
os milagres de jesus, não quer apresentar jesus como um milagreiro.
Por isto, aproveitando a notícia tradicional de que depois da multiplica-
ção Jesus se retirou à solidão (Mt 6,45s), João explicita a razã-0 desta
fuga. jesus quis soberanamente dar um sinal messiânico, isto é, um
sinal do dom eseatológico de Deus (que é ·sua própria pessoa, reve-
lador do Pai, como aparecerá mais tarde). Mas o povo o entende numa
perspectiva~ de messianismo político; não entende a referência do sinal
Nos vv. 14-15 se anuncia a palavra de Jesus diante de Pilatos: «sou
rei, mas meu reino não é deste mundo>. Este é o sentido profundo da
ambigilidade joanina: sob os sinais materiais esconde-se uma realidade
espiritual, tj_ue só se revela a quem procura jesus na fé em sua palavra; e
este recebe o verdadeiro alimento messiânico.
Tomo à liberdade de advertir contra uma posslvel utilização ideoló-
gica desta perlcope, no sentido de exortar os cristãos a se empenhar na
práxis da 1justiça social para fornecer pão aos que não têm. E evi-
dente que ~o cristão deve fazer isto, mas não é isto que o presente
evangelho quer ensinar. O evangelho toma como base o fato, trans-
mitido na tradição dos primeiros cristãos, de que Jesus multiplicou o
pão. Mas ensina, exatamente, que Jesus não se satisfaz com o con-
tentamento~ que este gesto causou na multidão. Um benefício material,
por importante que seja, não tem seu sentido em si mesmo, pãra o
cristão. Se fosse assim, absurda seria a existência dos que não recebem
os benefícios materiais. . . O benefício material significa que jesus é um
dom de Deus, que nele Deus está com sua gente. Que isto seja também
o significado último e verdadeiro de toda intermediação material (sócio--
econômica) do cristão. Se não for assim, Jesus terá que fugir mais uma
vez para a montanha . ..
3. Função na lifurgia
A 2• leitura (continua de Ef) não se integrando com a J• e 3',
pode-se dirigir a atenção à linha traçada pela 1' (2Rs 4,42-44) e a 3•.
O sentido . da aproximação é evidente: duas multiplicações de pão. Só
que as proposições são bastante diferentes: no 'AT, 100 pessoas são
saciadas com 20 pãezinhos; no Novo, 5.000 pessoas com cinco pães.
O NT deve superar o AT. O Antigo é prefiguração. O que aconteceu
com Eliseu no AT é uma façanha de profeta, «homem de Deus>. E
um sinal de sua autoridade. Mas o que Jesus faz é incomparável: é
370
um sinal da presença de Deus mesmo, operando nele. Ninguém faz
tais sinais (Jo 10,42).
O sentido da tipologia que une a !• e 3' leituras é precisamente
expressar a plenitude que chega em Jesus Cristo: até 'Moisés a LeÍ
e os Prole.tas; em Jesus Cristo, a graça e a verdade de Deus (Jo
1,17). o. sma! _dos pães é revelação da realidade messiânica divina,
eseatológica, última, de Jesus Cristo. Esta deve ser a mensagem da
liturgia deste dia.
Bibliografia: Ver 60 Domingo da Páscoa, Ano B (J.l Jeitura) .. p. 201.
Johan Konings
Porto Alegre, RS
Tema Prlnclpat
Só CRISTO NOS DA O VERDADEIRO PAO
Sugestões para a Homilia
Introdução
O tema deste domingo, a multiplicação dos pães, nos coloca
frente ao magno problema de todos os tempos: a fome e suas
c~nseqüências: a busca, do pão, a manipulação do pão, a absor-
çao das energias para assegurá-lo, a guerra por sua causa.
Po~que o pão é o símbolo de todo o alimento humano: do que
esta presente nas mesas e do que está ausente. Inclusive, o pão
pode emprestar ambigüidade aos «messias» de todos 9s tempos,
à~ teorias e ide_ologias ·e até às teologias. Por isso, ~risto dá o
pao e se faz pao, para aclarar os contornos da nossa realidade
e estabelecer uma unidade, fundamental para o bom uso do pão.
Corpo
t. O pão é um dom para todos
Segundo o Evang~lho Jesus toma a iniciativa de saciar o
povo materialmente, depois de tê-lo saciado espiritualmente, mos-
trando que as duas necessidades se alternam no homem. A ra-
dicalização numa das duas realidades esvaziaria e distorceria a
mensagem evangélica. A hannonia na busca conduz à ·verdadeira
meta do homem, dentro do plano de Deus. Na 1' e 3' leituras,
o pão é multiplicado pelo poder de Deus - uma vez através
do profeta, outra através do Cristo - a partir de um pouco
de matéria existente e -ampliada o quanto o exigiam as circuns-
tâncias: quando Deus intervém, nossa boa vontade. e nossos
dons são suficientes para ele desencadear qualquer processo de
371
multiplicação de forças e ampliação de sua presença. . . Interroga Condusão
os apóstolos para testar-lhes o pensamento, que sabia estar Cristo tem a solução agora, como a teve então, mas precisa
condicionado pelas soluções terrenas, insuficientes sempre ..• dos homens. Sabe que é um risco confiá-la aos homens. Mas
Como o pão é o símbolo de todo alimento, a multiplicação do corre este risco. Como pediu aos apóstolos distribuíssem o pão,
mesmo é o símbolo da multipilcação de nossas possibilidades pede a cada um de nós que continuemos tentando melhorar o
de colaboração e participação no esforço de Deus para dar mundo com o pão da palavra de Deus, vivida e ensinada, o que
pão material e espiritual à humanidade. Por nossa vez, somos ajuda e facilita a aquisição do pão material: cada um se ali-
símbolos desta preocupação de Deus. mente deste pão e leve aos outros os resultados, sobretudo a
2. O pão une os alimentados coragem de recomeçar sempre de novo a nossa caminhada e a
dos outros. E o pão de Cristo é tanto que, no final, haverá
O grupo ficou unido porque Cristo lhes deu pão, caso con-
sempre sobras no campo da história, isto é, a doutrina de Cristo
trário se haveriam dispersado à busca do mesmo. S. Paulo, na
não se esgota num periodo histórico, nem se circunscreve a um
Epistola aos Efésios, dirige veemente apelo à unidade, porque so-
grupo privilegiado, nem se enquadra totalmente numa teoria,
mos chamados a formar um só corpo e um só bloco de pensamen-
pois atravessa os tempos, por ser de sempre, uma vez que par-
to, uma vez que vivemos duma só fé e nos alimentamos de um
ticipa da eternidade e da amplidão de Deus.
só pão, que é o Senhor, sacramento do único Deus, o Pai. Cristo
fez com que os homens «Se assentassem» antes de lhes dar Frei Hugo D. Baggio, O.F.M.
o pão. Assentar significa colocar-se um ao lado do outro, sentir- Rio de janeiro, RJ
se unido, apoiado, na humildade de quem espera. A ordem de
Cristo - sua Palavra - acalmou os homens e os uniu num
todo esperançoso. Ele é a união. Se a luta pelo pão de cada
dia une e desune os homens, o pão-Cristo os une para juntos
procurarem uma solução. Na sua Palavra encontram a razão
da Juta pelo pão. E descobrem que são «Comensais» da mesa
dos bens e dons da terra e «Companheiros» na caminhada para
o supremo dom: a casa do Pai, caminhada que atravessa as
vicissitudes da história. A unidade leva à caridade, e a caridade
à justiça na posse do pão. '
3. Cristo limpa as ambigüidades
Frente ao prodígio, os homens querem fazê-lo rei. Mas rei
político, milagreiro, «padeiro-coroado», para dispor dele nas
horas de aperto: pouco trabalho e muito pão. Mas ele quer ser
o Messias, o Libertador, não das contingências históricas que
exigem trabalho para ganhar o pão, mas- da injusta distribuição
do pão, das guerras pelo pão, dos ódios entre os que o têm e
os que não o têm, da absolutização de esforços em torno do
pão, da ganância, da avareza, da escravização ao pão e por
causa do pão. «Foge», por isso, para a montanha: Cristo se
afasta das situações ambíguas e duvidosas, das intenções co-
mercializadoras. Nossa manipulação de -sua doutrina e nossa
interpretação ao nosso favor e o radicalismo com que a aplica-
mos aos nossos esquemas pode espantar o Cristo. Daí, o rótulo
é Cristo, a teoria, porém, é nossa, e a solução não é alcançada.

372 373
 Décimo Oitavo Domingo
do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Ex 16,2·4.12·15
«.Amanhã vos fartareis de pão e sabereis que eu sou o Senhor>
O livro do Bxodo divide-se em três partes: A Libertação ou O
Sxodo do Egito (1,1-15,21); Israel no Deserto (15,22-18,27); Israel
junto ao Sinai: a Aliança e a Lei (19,1-40,38).
Na descrição bíblica de Israel no Deserto o interesse teológico
predomina sobre o interesse histórico. Nos hinos que celebram a esta-
dia no deserto localiza-se o papel de Deus. Nestes hinos Israel é
objeto mudo e passivo do agir divino (cf. SI 135,16). Em outras cor-
rentes da tradição tematiza-se a reação de Jsrael à ação de Deus.
Nestes contextos constatam-se duas interpretações divergentes.
De um lado o tempo no deserto é visto como o tempo das relações
ideais, do primeiro amor entre Javé e seu povo (p. ex., jr 2,1-3).
Naquele tempo Israel pertencia totalmente a Javé, livre da antiga escra-
vidão e ainda salvo das tentações idólatras de Canaan. Deus carregou
o seu povo, cuidando até mesmo de suas vestes e de seu calçado ( cf.
Dt 29,5s). Esta interpretação transparece na parle sacerdotal de Ex 16.
De manhã lodos recolheram do maná. Mas de noite deu-se que cada
Um ajuntou para si e sua família exatamente tanto quanto precisava.
Não houve sobra nem houve falta. E a situação ideal que se realiza
quando Deus age e quando se deixa Deus agir ou quando se age como
Deus age. Deus dá a cada um o que precisa. Este sentido exemplar
do evento é sublinhado pelo detalhe que o maná não presta para
estocar-se. Ao ajuntar-se mais do que se precisa, estraga. S. Paulo
aproveita deste sentido em lCor 8-9, ou seja, nos capítulos sobre a
coleta das comunidades mais ricas para a comunidade necessitada de
Jerusalém. A confiança em Deus permite o amor ao próximo. Procurar
segurança nas riquezas deste mundo é desconfiar de Deus que é dono
e doador de ludo.
De outro lado vê-se na geração do deserto o tipo de Israel re-
belde contra Deus. Esta interpretação domina nos Salmos históricos
77 e 106 (cf. SI 77,8ss.17ss.40ss.56ss) e em Ez 20. Neste último texto
a estadia no deserto transforma-se até em tipo do julgamento que Deus
executará ao seu povo pelo exílio babilônico. Também esta interpre-
tação encontra-se em Ex 16, no tema da murmuração. Este tema é
uma constante em Ex 15-17 e Nm 14-17. Ele é retomado por jo
6,41ss.52.00s e !Cor 10,1-10.
A murmuração ou reclamação ·contra Deus e seus representantes
- no caso Moisés e Aarão - é, por assim dizer, a encarnação da fé
pervertida. A murmuração sempre tem um motivo concreto: sede, fome
etc. Mas no fundo ela é uma teimosia, porque o povo acha que tem
direito de reclamar contra Deus. A murmuração supõe a eleição da
parte de Deus. Ê o povo eleito e agraciado que - consciente ou
inconscientemente - alega a sua eleição como justificação de sua ati-
tude. Por isso, a murmuração contém algo de chantagem: «Oxalá
374
tivéssemos sido mortos pela mão do Senhor no Egito .. .> Da P"-'!e
de Deus a libertação · do Egito era pura graça. E graça não ena
direitos. Mas o povo alega a graça como motivo de reivindicação. Quando
0 povo murmura, o faz na suposição ~e. que seja frustrado e!Il_ um
direito. O texto não admite nenhuma duvida de que esta supos1çao e
reivindicação não têm cabimento, nem que por tal atitude Deus é sub-
metido a critérios humanos. A murmuração é um atentado contra a
soberania de Deus que vigora também diante de seu povo. ~ murmu-
ração encerra, pois, uma desqualificação de Deus da _parte do ~ºTem,
que Ele ligou a Si e a Quem o homem deve confiança, gratidão e
submissão ou obediência. Em vez disso, o homem levanta-se co~tra
Deus, seu benfeitor, como juiz. Nesta atitude revela-se. a perversi?~de
do homem. O texto bíblico, em que se censura esta atitude, é o JUlZO
de Deus sobre este homem,
Bibliografia: O. te S t r -o e t e, Exodus; O. von R a d~, Theologie des. .Allen
Testaments· X L é o n - D 11 f o 11 r o verbete "lncreduJidade , em Vocabularzo de
Teologia lÍlbll~a; K. R e n g s 1 o r 't, o verbete ugoggli2o", em ThWzNT l {1933),
727ss.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Segunda Leitura: Ef 4,17.20·24
A frase inicia] da Jeitura contém uma exortação..: que representa
bem a catequese mora1 dà comunidade primitiva. Sua base está no
Antigo Testamento (SI 4,5; Zc 8,16), mas foi so?retudo no j~daísmo
do séc. ] aC, por exemplo, em Qumrân_, onde. tais tem~s do~i!laram.
A idéia clássica da oposição entre dois caminhos, dois esp1r1tos, é
adaptada e sublinha-se o contraste entre o. antigo e o novo ~odo de
vida, «Outrora éreis trev~, mas agora sois luz» (~.8). A!51m, a~s
ter dado uma fundamentação doutrinal, Paulo dá instruçoes morrus
sobre o que se deve ser -e fazer. Há uma intima ligação entre esta
segunda parte da carta e a inicial. .
É interessante observai o ponto sobre , o. qual. Paulo insiste: ª.
sabedoria dos pagãos. já .na carta aos Corml1os (IC~r 1,20: «a. sa-
bedoria deste mundo é loucura») que relata a pregaçao dele apos a
decepção de Atenas (At 17,33: <então Paulo foi embora. dai~»), ele
mostrou que o conhecimento dos pagãos levou a nada, pois nao fora
suficiente para fazê-los descobrir a Deus (cf. Rm 1,18-32), mas levou-os
às maiores aberrações (cf. também Sb 13-14). No desprezo pela sa-
bedoria humana Paulo coloca-se na linha tradicional d~ Qoh7Iel: ~tudo
é vaidade» (1,2), no hebraico, «tudo é vão~. A busca das coisas vas . é
vaidade. A capacidade de. - compreensão do homem . move-se no vazio
quando ele exclui Deus; então o que ele pensa af1rm_ar é eng~o e
ilusão. A vaidade de muito saber afasta-o da verdadeira sabedoria.
O texto ·lembra então ; a catequese batismal que deu aos cristãos
a verdadeira sabedoria: Jesus. O texto original di~ apenas: «_aprender
Cristo», apresentando Cristo como objeto e contendo ~o ensin~m~n~o
(cf. Zerwi<ik). Desse modo Cristo opõe-se aos conhecunenlos ~nulets
dos pagãos. Aprender Cristo, é aprender um novo m~do de vida, e
não uma doutrina. Cristo é antes de tudo uma relaçao pessoal, que
modifica o homem muito mais que um. a doutrina que convence. \..[ ~"
tj•·"'~!: ~z rN(, D:J:~,Ç , (~
' , ' J ( .....,
1 " 1 ·:_ ' 1 Í'{i.ctÔ'l375
 Ê claro que Cristo uão está mais presente entre nós, desse modo
adere-se à pessoa dele através da palavra do pregador. Urge então
adquirir familiaridade, isto é, relação pessoal, com tudo que diz res-
peito a Cristo. \forna-se necessária uma meditação, um aprofundamento
de relação pessoa] com o próprio Cristo, para se entender sua pessoa
e seu ensinamento. Talvez no v. 21 esteja· toda a base da meditação,
da oração reflexiva tão cara à Igreja dos místicos. Ela aprofunda a
relação pessoal ·com Cristo.
A introdução do termo cem jesus» é •uma confissão paulina, que
jdentifica Cristo- e jesus, isto é, Cristo no Nazareno, em oposição a
certas correntes heréticas que os dissociavam. Nesse jesus toma-se co-
nhecimento da realidade do Deus feito homem que morreu e ressuscitoúJ
o verdadeiro Cristo é o Jesus histórico ( cf. Cl 2,6).
Nas últimas frasesJ Paulo retoma o seu tema tão querido (cf.
Rm 13Jl2; CI 3,8.10.l2)J o homem velho deve renovar-se, tornar-se
homem novo. Ê·. a catequese batismal repetida a todas as comunidades.
Ontem como hoje, o renovar-se pode ser ffitendido de fonna estática.
Para Paulo o renovar-se é dinâmico, é um mover-se contínuo, é uma
repetição criativa, é um vir a ser constante, pois o batismo é um com-
promisso que se renova a cada instante, e não algo que aconteceu
no passado. Se em nós estâ «impressa» a imagem de Cristo, essa mesma
imagem deve ser <expressa» na vida (Zel'Widk).
·Acontece uma nova criação (cf. Gl 3,27; Rm 13,14), e essa nova
criatura é o homem novo (2Cor 5,17; Ef 2,15). Seria como alguém
que tivesse recebido uma veste nova e n~o a usasse, o cristão que
batizado não agisse como tal, e seguisse a v~idade da sabedoria humana.
A verdade , do cristão não é uma teor~a, uma doutrina, mas uma
vida reta e santa segundo a de Jesus, o Cristo.
t lacionam este pão imperecível com Deus - já que o enviado de Deus
Bibliografia: A, mesma do Domingo anterior.
• Pe, Carlos A1berto da Costa Silva, S.C.J.
Paulista, PE
" e conservam para a eternidade. Importa uma só obra, a obra de
Terceira Leitura: Jo 6!24-35
I. O contexto da perícope
O presente 'evangelho traz a primeira parte do Discurso do Pão da
vida, parte honiilética do conjunto literário. da Multiplicação dos Pães
no evangelho de joão. Neste conjunto, a ·narrativa (jo 6,1-15, dom.
anterior) funcioria como acontecimento de revelação divina, que porém
só é visível aoS olhos da fé. Isto é o que explica a parte homilética,
o Discurso do : Pão da Vida (Jo 6,25-59). Tem três momentos: O
primeiro momento explica o sentido do <Pão da Vida> como sendo a
vontade e a obra de Deus (vv. 25-29). O segundo momento, que é
central, especifica mais profundamente o primeiro; mostra Jesus como
o Pão descido do Céu, aquele que é enviado pelo Pai para com sua
Palavra realizar o dom messiânico que a narração milagrosa assinalou
(vv. 30-51). Num terceiro momento, o evangelista introduz a linguagem
eucarística: o que se celebra na Eucaristia, onde os cristãos se ali-
mentam com o corpo do Senhor e se aliviam com seu sangue, é exata-
mente este dom messiânico do Pão descido do Céu, Jesus Cristo, reve-
lador do Pai, que permanece em nós pela adesão da fé (6,51c-58).
376
Porém, estes três momentos não são estanques. Transbordam um no
-outro .sem que a gente o note claramente.
O evangelho de hoje não é delimitado conforme os momentos que
distinguimos, porém propoiciona como que um clima'x, que termina
~om a frase central do segundo momento, frase central de todo o
discurso também: «Eu sou o Pão da Vida» (6,35).
2. ]o 6,24.35
O v. 24 é a conclusão da complicada transição · dos vv. 22-24,
eriados de todas as peças· pelo evangelista, que precisava recolocar
Jesus em contato com a multidão, da qual ele tinha fugido no outro
lado do lago (6,15). No v. 25, a multidão encontra Jesus e revela-se
admirada, mas de modo meramente sensacional: «Que . façanha fizeste
para chegares aqui sem nós o percebermos?» Esta expectativa sen-
sacionalista torna-se para Jesus a ocasião para lhes çensurar a falta
de visão de fé: «Procurai~me não por ter visto sinais (como ~revela­
ção do Pai), mas porque vos alimentastes bem». Procuram Jesus por
razões meramente mundanas. Jesus dirige sua atenção:. para um outro
tipo de pão, um pão que não perece. Note-se a semelhap.ça com a água
que sacia a sede para sempre em jo 4,14. Na sua . narrativaJ joão
avança «em dois trilhoS». Em ambos os textos (Jo 4 e 6), o leitor
é convidado para passar do trilho inferior ao trilho superior da narra-
ção. Se até aqui a narrativa pareceu ocupar-se com pão material,
agora o leitor deve sintonizar para um outro tipo de compreensão.
Este pão que não perece, ,o Filho do Homem - figura escatológica,
que o cristão identifica corp. Jesus - o dará. Pois ele tem garantia
do Pai (v. 27c). A resposta do povo em v. 28 mostra que eles re-
o dará. Mas expressam est~ intuição de maneira bem .judaica: querem
fazer «Obras»,. O judeu farisaico se salva por suas obras. A resposta
de Jesus é fina: não são jas muitas obras (do homem) que salvam
Deus, e esta é: acreditar ~no enviado de Deus. Há uma dificuldade
aqui: será esta a «obra dé Deus» no sentido de obra que agrada a
Deus, ou obra que é operada por Deus (o dom da fé como dom de
Deus). Ambas as interpretações são possíveis. Mas a frase do v. 44
parece favorecer a última.
Aqui, os judeus se sentem provocados. Pedem credenciais. Pedem
um sinal (provando que de fato não enxergaram o sinal de Deus na
multiplicação dos Pães). Mas Jesus não faz sinais a pedido. Fá-los
de maneira soberana, como revelação gratuita do Pai, e não para dar
satisfação aos judeus. Ê tradição firme dos evangelhos que Jesus recusa
1ais demonstrações (Mt 12,38-39 par; 16,14 par; Jo 2,18; cf. 3° dom.
Quaresma B). Portanto, parece que eles não viram o sinal, porque
tinham outro conceito de sinal, conceito que tem suas raízes no AT
(o profeta que se procura justificar por sinais, cf. Dt 18,21). Porém, o
mesmo livro do Dt (6,16) ·proibe exigir provas de Deus. Ora, Jesus
é lnais que um profeta. Ele é Deus. Por isto, não faz sinais a pedido.
Pelo contrário, numa resposta bem irônica, prepara o entendimento do
sinal que lhe acaba de fazer: Os judeus pedem um sinal como o do
maná no deserto. Jesus responde: não deveis dar demasiada atenção
ao papel dos «pais> nesta história, pois quem deu pão do céu (o
"517
manã) não foi ,Moisés, mas Javé. Com isto, qualquer judeu deve con-
cordar. Mas por baixo corre toda a sutileza das discussões rabínicas
que os primeiro_s cristãos travavam com seus compatriotas da sinagoga
judaica: o verdadeiro pão que desceu dos céus não foi propriamente
o maná, mas o Filho do Homem, que d~e do céu, e que é: jesus
Cristo. Jsto, porém, não é cJaro para quem não é iniciado na sabe-
doria da comunidade cristã. Por isto, os judeus aparecem como gente
sem compreensão, exatamente como a samaritana no cap. 4. Jesus
explica que o pão que desce do céu dá Vida ao mundo. Os judeus
ouvem a maiúscula na fala de jesus e respondem: que ele dê sempre
deste pão. Mostram sua abertura à fé, embora ainda com grande inge-
nuidade. Mas é. o suficiente para jesus se revelar como sendo o Piio
da Vida (v. 35).
Os primeiros cristãos viviam numa continua discussão com o ju-
daísmo rabínico -- aliás, eram provavelmente uma ramificação do mesmo.
Atrás de Jo 6,3o-35, reconhecemos esta discussão. Para os cristãos,
todos os temas maiores do AT falavam de Jesus Cristo. Também o
tema do maná. «Descer do cén» é o que torna o maná figura de jesus
Cristo. Assim, Moisés se torna antitipo (prefiguração) de Jesus, porque
por sua interceSsão desceu o pão do céu ·de Deus. De modo que os
judeus «ortodoxos» (no tempo de João, fim do 1° século, reunidos na
hegemonia farisaica) não mais podem valer-se de Moisés, pois este tem
sua plenitude em Jesus Cristo (e!. jo 1,17). Esta é a discussão que
está por baixo de Jo 6,31-35. Para nós hoje importa aprender a lição:
enquanto o entendimento farisaico do messianismo e do profetismo pode
ser caracterizado como sendo «deste mundo», auto-suficiente, sujeito
a categorias húmanas, a mensagem de Cristo é verdadeiramente de
Deus, soberana, transcendente. É espírito Versus carne. Ora, nós hoje
u,ão estamos em discussão com a sinagoga. Porém defrontamo-nos tam-
bém com um entendimento mundano, imaneÍlte e auto-suficiente da rea-
lidade salvadora, seja na sociedade de consumo, seja nas ideologias
que se dizem emancipacionistas e libertadoras, mas de fato limitam
o homem à materialidade. jo 6 desafia-nos para o reto entendimento
do messianismo. Será dom messiânico o pão material (descido do céu
da sociedade de consumo ou do paraíso ! comunista), ou Aquele que
traz a palavra do Pai e nos confronta com· a Verda_de da nossa existên-
cia. Escolher n nosso Pão da Vida, esta i! a lição perene de Jo 6.
3. Função na liturgia e na vida
Como no domingo anterior, a J• e 3• leituras indicam a dinâmica
da liturgia. · A 1' conta como Deus (não Moisés) fez chover pão do
céu. A 3' nos mostra a leitura cristã deste fato, a exegese tipológica
que os primeiros cristãos fizeram deste fato: o -manã (que significa:
«Que é») é prefiguração de Jesus Cristo,· o verdadeiro pão do céu.
Será bom aprof1mdar esta linha central, procurando entender por que
Jesus é pão descido do céu. Isto não está no trecho do evangelho
oferecido pela liturgia de hoje, mas no trecho imediatamente seguinte
(19' dom. comum). Contudo, é bom abrir já na liturgia de hoje os
olhos para o sentido profundo do Pão da Vida em Jesus Cristo: ele
é o verdadeiro Pão da Vida porque ele -nos faz conhecer o Pai, a
quem ninguém jamais viu (Jo 6,45-48). jesus nos alimenta porque ele
traz o céu no meio de nós.
378
A liturgia insiste no «descer do céu>. E uma maneira mitológica
para expressar o que, filosoficamente, indicamos pelo termo ctranscen-
dente>. Mas não é preciso evitar a terminologia mitológica, nem mesme>
depois dos satélites, pois olhar para cima é uma expressão natural do
homem para assinalar o transcendente, que não se limita à matéria
deste mundo1 embora esta ..eja seu csinal». O judaísmo que jesus cri·
ticou Jimitou.se a um materialismo de cunho religioso: um messianis-
mo sociológico e nacional, marcado pela figura de MoiSés. Os cristãos,
refletindo sobre os ensinamentos do seu Mestre, rejeitam tal leitura
da história. O verdadeiro dom de Deus é Jesus Cristo. mesmo, porque
ele faz ver Deus, e fá-lo no amor até o fim. Nós hoje devemos ficar
fiéis a esta releitura cristã. O único pão do céu é Jesus, e jesus
crucificado.
Bibliografia: Ver 611 Domingo da Páscoa, Ano B (3Q leitura), p. 201.
Pe. Johan Konings
Porto Alegre, RS
Sugestões para a Homilia
Jntrodllção
O tema da liturgia de hoje parece centrar~se sobre o modo
de relacionamento entre Deus e o homem - um relacionamento
que se apresenta sob a forma de busca por parte do homem e
de dom por parte de Deus. O dom precede a busca, mas nem
sempre o homem tem consciência disso. O que se interpõe como
obstáculo nesse relacionamento é a tentação do homem de
parar no meio do caminho, perdendo-se num mundo de objetos
ilusórios, que não respondem de fato à sua necessidade mais
profunda. Quando o homem, porém, consegue prosseguir até
o fim em sua busca, então a plenitude do dom de Deus se
instala em seu coração.
Corpo
A discussão que Jesus trava com os judeus no Evangelho
de hoje encerra toda uma psicologia sobre o modo como os
homens se deixam fascinar por coisas fáceis de serem obtidas
e também logo esquecidas. Muitos judens presenciaram ou ouvi-
ram falar do episódio em que Jesus saciara uma grande multi-
dã~ com um punhado de pães e peixes. Vieram então procurá-
lo, mas não puderam dissimular seus sentimentos, que Jesus
logo denuncia: eles vieram para fartar-se mais uma vez, ou
simplesmente levados pela curiosidade sensacionalista. Eles que-
riam ver prodígios, embora no fundo talvez duvidassem.
379
 Mas Jesus não se limita a apontar as intenções ocultas de
seus interlocutores. Ele os convida ao diálogo: «Trabalhem não
pela comida que se estraga, mas por aquela que permanece para
a vida eterna». Essa maneira de agir de Cristo reaparece sempre
nos Evangelhos. Partindo dos desejos ou das necessidades pre-
sentes dos homens, ele procura despertar ou reavivar as ne-
cessidades mais profundas, o desejo mais radical do ser humano,
que é a Vida que emana de Deus. E acrescenta que é ele
mesmo, o Cristo, que veio para trazer essa vida aos homens.
Assim acontece, por exemplo, nos milagres, especialmente nas
curas: ao curar os cegos, Cristo chama a atenção para o seu
poder de curar a verdadeira cegueira, que é aquela que afeta
o coração do homem. Também ao alimentar a multidão famin-
ta, Jesus manifestava a abundância de alimento que ele veio
trazer em termos de vida, de amor, de fé e de esperança.
Com efei.to, por trás do gesto de repartir o pão, havia o
subentendido: .«Nem só de pão vive o homem, mas de toda
palavra que sai da boca de Deus» (Mt 4,4). Ora, a Palavra
estava ali, era o verdadeiro pão que não perece, o Verbo de
Deus. Mas os homens estavam ainda cegos e surdos para o
subentendido. Eles se fixaram no pão. E como Cristo tentasse
«dilatar» o sentido do pão, ao evocar um alimento que não
se estraga, eles passaram ao aspecto mágico da questão: um
pão que nunca se estraga? Será um pão caido do céu? Como
o maná do deserto? Os judeus não captaram o símbolo, porque
estavam presos aos aspectos materiais dos fatos. Eles queriam
uma prova palpável e, entre a dúvida e a desconfiança, pediram
mais um sinal.
Essa situação sempre se repete. Ela já ocorrera no deserto,
quando os israelitas murmuravam contra Moisés e contra Deus.
Queriam alimento e queriam prodígios. Quando receberam o
alimento, esqueceram o prodigio, ou melhor, o dom de Deus.
Hoje permanece a mesma tendência. Nenhum prodígio satisfaz
a sede do homem. Estamos cercados dos «milagres» da ciên-
cia e da tecnologia, da medicina e da psicologia, do sexo e dos
tóxicos, e no entanto, quem está satil\feito? Falta algo de fun-
damental. Carlos Drummond de Andrade escreveu, certa vez,
que hoje em dia os milagres são tantos e tão variados que só
é verdadeiramente milagroso quem não os faz.
Respondendo aos judeus, jesus insiste em que não se trata
de fazer obras ou sinais. O verdadeiro sinal está, aí, diante
deles: «Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá fome
jamais; quem crê em mim não terá sede jamais» (v. 35). Quanta
380
ousadia nessas palavras! Elas provocam novamente aquela im-
pressão de superabundância que a multidão havia experimentado
na multiplicação dos pães: todos ficaram fartos, e ainda so-
braram doze cestos! Esse caráter de fartura e até de prodiga-
lidade do dom de Deus, é evocado também numa passagem
semelhante a esta, quando jesus dialoga com a samaritana à
beira do poço: «Quem beber da água que eu lhe der, diz
jesus, não terá jamais sede: a água que eu darej se transfor-
mará dentro dele numa fonte jorrando vida eterna» (Jo 4,14).
O homem é um ser constantemente insatisfeito. Essa sua
inquietação é a marca de sua vida como criatura, como ser
voltado para o infinito. Nenhum produto da natureza ou da
avançada indústria moderna pode satisfazer essa sede de infi-
nito. Mas todas essas coisas materiais são de algum modo me-
diações, para que o homem chegue até o seu fim último, trans-
cendente. O que acontece, porém, é que muitas vezes o homem
se atrapalha ao fazer das mediações o ponto final de sua busca.
Ele confunde os meios com os fins, o relativo com o absoluto.
Então vem a ilusão. E a desilusão. E o homem parece estar
sempre recomeçando a mesma busca, sempre voltando ao mesmo
ponto de partida, e cada vez mais descrente.
Assim acontece no mundo de hoje. Vivemos em uma so-
ciedade para a qual o desenvolvimento econômico se tomou o
único objetivo, a direção exclusiva em todos os ramos da ati-
vidade humana. já se falou em «Sociedade unidimensional», isto
é, uma sociedade onde todas as dimensões foram reduzidas a
uma só. O trabalho, a dignidade, a arte, a cultura, a liberdade,
o esporte, o amor, tudo isto é hoje traduzido e equacionado em
termos econômicos, tudo é transformado em mercadoria de com-
pra e venda. Enquanto se criam necessidades supérfluas nos
consumidores, já saturados, os recursos da natureza vão se esgo-
tando assustadoramente. Diante dessa realidade inédita, a voz
dos profetas de hoje se faz ouvir dentro e fora da Igreja:
«De tão pesada, a porca já não anda;
de tão usada, a faca já não corta»,
canta Chico Buarque. O que devia servir de mediação para a
felicidade verdadeira do homem transformou-se, ao contrário, em
obstáculo quase intransponível. Mais otimista que Chico, alerta
Dom Hélder:
«ótimo, que tua mão
ajude o vôo ...
381
 Mas que ela jamais se atreva
a tomar o lugar das asas».
(Mil razões para viver, Civ. Bras., Rio 1978, p. 28)
Conclusão
Percebendo o possivel engodo das mediações, São Paulo
recomenda na epistola de hoje, o «despir-se do homem velho»,
isto é, daquele (dentro de nós) que se vai corrompendo e ao
mesmo tempo se decepcionando na busca de bens que se perdl'!m.
Revestir-se do «homem novo», ao contrário, significa recusar-se
a absolutizar as coisas relativas e abrir-se assim ao Absoluto
para o qual elas apontam discretamente. Significa transformar
os bens materiais em dons que recebemos, e partilhamos fra-
ternalmente, numa celebração contínua das criaturas ao Criador.
O «homem novo» é aquele (dentro de nós) que não transige com
a falta de verdade e de justiça; o seu pão de cada dia é um
amor amadurecido e criativo que, ao invés de enfastiá-lo e
corrompê-lo, transforma-o aos poucos na imagem e semelhança
de seu Senhor.
Teresa Cavalcanti
Rio de Janeiro, RJ
382
Décimo Nono Domingo
do Tempo Comuin
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: 1Rs 19,4-8
Contexto. jezabe1, mais decidida do que Acab e apreensiva (vv. 1-2), ciente do
que ocorrera no .monte Carmelo - o desafio vitorioso de Elias contra os sacerdntes
de Baal e matança dos mesmos {18 2D-46) - notificou sob imprecação ao profeta
que, se não fugisse, ele teria o fim dos sacerdotes de BaaJ. Elias, diante da
ameaça, apavorou-se e fugiu às pressas do reino de Judã, rumo ao sul - Bersbeba,
no Negeb, em busca de segurança, visto que judã era governadp por josafã,
aparentado com Acab. Aí chegado, despediu o servo.
Texto. Elias, resoluto, continuou viagem deserto adentro, durante
um dia (vv. 5-8). A tarde, cansado, faminto e com sede, aborrecido
com a veleidade do povo e sem conforto divino, imprecando contra a
sua sorte e desejando a morte (Jó 31,30; Jn 4,8), jogou-se ao chão,
sob um arbusto espesso _e de boa forma, e adormeceu. Eis que um
anjo do Senhor (w. 5-8) o convidou a levantar-se e a comer. Olhando
ao redor, o profeta Wvisou um alimento misterioso: pão e jarra com
água. Comeu, bebeu e voltou a deitar-se. Novamente o anjo o acordou,
solicitando-lhe comesse e bebesse porque teria ainda muito a pere-
grinar. Elias obedeceu e viajou 40 dias e noites até chegar ao Hor-eb,
o monte do Senhor, - lugar em que Javé se revelara a Moisés (Ex 3).
O monte Horeb (fontes E, D) é aqui sinônimo de monte Sinai (fontes
j, P): ambos formam um todo maciço. Neles Moisés teve sua experiên-
cia com Deus (Horeb, Ex 3) em função da missão de libertador, -
recebeu a Lei (Sinai, Ex 19,1-23), - fez jorrar água da rocha. A
distância entre Bersheba e os montes Sinai/Horeb, por terra - caminho
seguido pelas caravanas, via Aqaba - é de 480 km, o qual para ser
vencido exigia 11 a 15 dias (Dt 2,1). Elias o percorreu em 40 dias.
A não ser que se trate de arredondamento ou de simbolismo, o profeta
presumivelmente caminhou só nas horas mais frescas e à noite. Como
o texto não alude ao alimento, pensou-se que Elias, durante esses
dias, teria feito penitência, rezando e jejuando, como o fizera Moisés
em circunstância análoga (Ex 24,12-18; Dt 9,9-11; Ex 34,28).
Aplicação. A Igreja vê nos vv. 6-8, referentes ao pão subcinerício-,
o Pão Eucarlstico, o qual empresta vigor ao cristão durante a pere-
grinação terrena (Cone. Trento, sessão J3•, cap. 8 - Denz 882; Cat.
Rom. II, 4,54; 3• resp. do J• noturno da festa do Corpo de Deus).
A Eucaristia, pão celeste preparado pelo amor divino mediante o fogo
dos tormentos e das humilhações da Paixão, nos sustém ao longo do
deserto desta vida até os pincaros da união com Deus no C·éu.
O descanso/refúgio que Elias quer é a morte, pois não se sente
melhor que os antepassados. Não espera poder fazer mais do que eles
para Javé. Então, para que viver? Boa lição para nós! Diante de
heróis como Moisés, Elias, se aceitarmos nossa limitação, com a ajuda
divina poderemos ser fortes como eles. O trecho evoca ainda a impar-
cialidade da história, a concepção antiga segundo a qual o «sheoh>
(residência dos mortos), embora privasse da atividade e alegria desta
vida (Is 38,11), todavia oferecia aos justos paz e descanso, sem as
aflições de agora.
A peregrinação de Elias significa uma volta às origens, um retomo
à fonte do javismo, onde_ outrora Deus se revelara a Moisés, enquanto
383
este ardia de indignação contra a prevaricação de Israel (Ex !9,16ss;
33,21ss). Agora é Elias que ai vai para buscar alívio e redescobrir a
imagem de Deus, uma concepção nova para o Povo Eleito não satisfeito
com a de Moisés. Israel evoluira em 500 apos. A missão do profeta
é restabelecer a doutrina da aliança em toda a sua pureza: para
tanto dirigiu-se ao lugar onde Javé fizera "aliança com seu Povo e
preferia morar (Jz 5,2ss), deixando atrás de· si o Povo infiel e clau-
dicante (!Rs 18,21). Atuando em Samaria, Elias embateu-se com nova
mentalidade! o reino do norte optara, desde. jeroboão, pela liberdade
sob o único Senhor Javé. Não queria maiS. viver ligado à dinastia
davidica, institucionalizada no reino do sul. Além dos ideais pollticos,
queria voltar às fontes autênticas da fé. Holtve cisma polltico e reli-
gioso. Se valeu em certos pontos, não deixou de ter sérios perigos:
pendor pardl a idolatria, instabilidade devida a1 carismáticos aventureiros,
contaminaçã~ com o paganismo, ecumenismo fácil, estabilidade econômica
que levou a confiar pouco em Deus, cuja presença era mais e mais
materializadã. Foi época de transição e de crise profunda, que vai
repercutir ein Elias, o qual assume _os ideais revolucionários positivos
no sentido de atualizar os valores. do passa~o, opondo-se aos abusos
do presente e redimensionando os termos da-, aliança no diálogo entre
Deus e os novos tempos. Era integrar os nôvos valores na existência
humana, superando a concepção de Deus que tiveram no deserto, séculos·
antes, pois ;,a civilização agora era outra. Elias, home·m de Deus e
crente (17,18), partilhou da crise do povo. A fim de vencê-la, dirigiu-se
ao Horeb, -Onde redescobriu a imagem divjria. Sentiu que sem nova
revelação ~o o conseguiria. Eis a nova im?gem de ]avé: um Deus
conosco, tr3!1scendente e inacessível, de atuaçªo imprevisfvel, que salva
em troca da fé. Elias conciliou o passado cmµ o presente.
BibUografiir: O a r o f a 1 o, S., li llbro dei Re, MartettJ/Turim 1960; p l r o t •
C ta m e r, La S. Blble, III, Paris 1949: M e s t e r s.~ C., O profeta Elias: Jnspha-
ção para boje, em RBB (1970). 590ss; A r n a 1 d J eh, L., Blblla Comentada,
AT/11, BAC/Madrld 1961; R o dr 1 g u e z Mole r ci, P. X., La S. Escritura,
AT/JJ, BAC/Madrld 1!l6B.
'
P. Matheus F. Gíuliani, 5.A.C.
Santa Maria, RS
..
t 1974; Biblla Comentada,· VI (111), BAC, Madrid 1975i Se b 1 J e r H., La Iettera
Segunda Leitura: E! 4,3Q,5,2
ó
Neste texto parenético de Efésios, Paulo mostra como deve ser
a vida nova e pura em Cristo. Ele não apr;esenta exemplos, mas um
catâlogo do, que deve ser evitado e do que ,!leve ser feito.
O ·Espirita Santo, motivo da união do Co;po de Cristo (4,4; l Cor
12,13), que é a Igreja, é entristecido por tudo o que prejudica a unidade
deste Corpo. Pelo batismo fomos selados no ·Espírito, isto é, passamos
a viver como propriedade e sob a proteção d'Ele, em vista do último
dia, dia do juízo em que será consumada a 'Obra redentora de Cristo,
-e Deus reconhecerá os seus e afastarã os estranhos. Possivelmente
o texto alude a Is 63, 1O, quaudo fala de entristecer o Esplrito. Em
Qumrân estava presente a idéia de que o Espírito dado ao homem podia
ser afetado pelo comportamento deste, para o bem ou para o mal.
Desde que o homem é templo de Deus, ele assume a responsabilidade
de não devastar o templo de Deus, e quem nele habita, senão perecerá
384
(!Cor 3,!0s). Conclui-se, então, que aqui o Espírito é considerado como
alguém que pode ser entristecido, e porque sabemos que teologicamente
tal fato não é possível em Deus, a explicação é que Paulo fala de modo
humano para se fazer entender.
Viver em Cristo ,-significa viver confonne o batismo que exclui O.;..
vicias do homem velho, aqui catalogados ( cf. GI 5, l 9-23): segundo o
Estoicismo e que chegou até Paulo pela mediação do ·judaísmo. Esses
vícios refletem a reação do homem de sentimentos vulgares diante de
uma ofensa recebida; o cristãoJ então, terá de superar estes impuisos.
Agindo como homem novo deverá per.doar quem lhe ofenden(Mt 6,12.14;
18,21.35), até os inimigos. (Mt 5,44) chegando ao ponto ·de oferecer
a outra face para ser batida (Mt 5,39), por uma razão que é causa
e exemplo, Deus que nos perdoou e nos amou primeiro (Rm 5,8;
ljo 4,10). Em outras palavras, Paulo expressa a idéia dominaute da
parábola do Servo cruel e do Pai-Nosso. Não se trata, portauto, de
um moral servU, mas de uma atitude que exige muita força interior,
para que o mal seja, no crlstão, vencido pelo bem (Rm ~2,21).
O perdão que Deus nos deu em Cristo <exige> e <faz possível> o
perdão reciproco dos cristãos. Os filhos diletos podem e devem imitar
a Deus (cl. Mt 5,44s), pois dele receberam a vida nova que se mani-
festa cada dia, e deve ser vivida no amor e na alegria. Que o cristão
seja perfeito, seja misericordioso como Deus o é (cf. Lc 6,36). Imitar
a Deus é viver como filho, pois não existe maior alegria ,para o Pai
que ver suas qualidades refletidas nos filhos. No caso de Deus, sua
graça imprime em nós as qualidades que desabrocham na prática das
virtudes. Imitar é viver como <0 Filho> que perdoou e ;deu a vida
por todos.
Passa-se da imitação de Deus à de Cristo, e para Paulo o modelo
não é a atitude humana de Jesus, como será o Cristo pobre para Fran-
cisco de Assis, mas o Cristo que, como sacerdote e vítima (Hb 10,5-14),
salva pela oferta livre de si mesmo na cruz. A imitação decorre, então,
da graça que nos é dada, e não que a imitação nos mereça a salvação.
Paulo, que viveu como imitador de Cristo, convida o~ cristãos a
fazerem o mesmo: «tornai-vos imitadores de Deus. i . andai no amor
como Cristo».
•
Bibliografia: C o n z e t m a n n H.·O. F r 1 e dr 1 eh, Epistolas de la Cautividad,
Fax, Madrid 1962; Sta a b K.·N. B r o x, Cartas de Ia Cautiv!dad, Herder, Barcelona
agll Efesinl, Paidê.la, Brescia 1973; Z e r w i e k M., Lettera agli ~ Efesini, Città
Nuova, Roma 196fi.
Pe. Carlos Alberto da Costa: Silva, S.C.J.
,Paulista, PE
Terceira Leitura: Jo 6,41·51 (gr.)
!. Contexto
A presente pericope faz parte do Discurso do Pão º!ia Vida, Jo
6,25-59 (cf. os domingos precedentes). Neste, distinguem-se ·duas partes:
1) sapiencial (v. 32-51b); 2) eucarística (v. 51c-58). Na primeira parte,
explica-se que jesus traz um dom que os judeus desconhecem, mas que
é assinalado pelo sinal do pão (Multiplicação dos Pães, ]o 6,1-15; cf.
v. 25s). E.ste dom do Pai é jesus mesmo, como revelador de Deus.
Nesta idéia situa-se a perlcope deste domingo.
385
 2. Exegese de ]o 6,41-51
A murmuração dos judeus (v. 41) mostra ao mesmo tempo incom-
preensão e meio entendimento, pois eles entendem pelo menos que Jesus
está falando de sua origem celeste, e rejeitam esta, porque eles o co-
nhecem como o filho de José. Ficam em categorias desta terra. Signi-
ficativamente, os interlocutores de jesns, até agora indicados como ca
multidão>, aparecem doravante como lhe sendo hostis e são chamados
cos judeUS>. Nisto reflete-se a discussão entre cristãos e judeus no
tempo da redação do 4• Evangelho. O murmurar dos judeus é um dado
bíblico: Jo 6,31ss é uma homilia (midraxe) sobre Ex 16,4ss. Ora,
naquele contexto encontra-se várias vezes esta atitude dos judeus (cf.
Ex 15,24ss).
«Ninguém pode vir a mim se o Pai não o atrair» (v. 44). Esta é
a resposta de João para o problema da incredulidade dos judeus. A
interpelação dos judeus, propriamente, não recebe resposta. Embora o
tipo de objeções que eles fazem seja corriqueiro na discussão com o
cristianismo do 1• século, não vale propriamente a pena responder.
Negam a messianidade de Jesns, uma vez porque conhecem sua origem
(6,41s e 7,27), outra vez porque não a conhecem (9,29). Este problema
rabínico sobre a origem do Messias não é o problema real. O problema
real é a incapacidade, que eles demonstram, de sair dos seus parâmetros
terrestres, daquilo que ca gente sempre pensou>. E 1! a este problema
que se referem os vv. 4311-44. Ora, será que Jo quer dizer que certas
pessoas são excluldas da fé em Cristo porque o Pai não os atrai? A
frase dá esta impressão. Contudo, parece-nos que Jo não enuncia ll1D
principio de predestinação, mas antes constata o seguinte: jã que eles
não vão ao Cristo, deve-se concluir que eles não são atraídos nem se
deixam atrair pelo Pai.
Nota-se, nestas frases, o paradoxo da fé. Por um lado, o homem
precisa ser atraido por Deus. Por outro, ele tem a responsabilidade da
fé (v. 47). Talvez a comparação com o encontro da amizade esclareça
um pouco este paradoxo. Na amizade, uma pessoa convida a outra à
medida que esta gosta de ser convidada; porém, gostando de ser con-
vidado, a gente não se pode impor e não adianta impor-se quando não
hã convite da outra parte .•. Assim, não se pode ir a Jesus se o Pai
não convida, mas este convite já responde a uma cbnsca de crer>,
uma disponibilidade da parte dos que querem ir a jesus. O ensina-
mento de Deus a todos (cf. infra), predito pelos profetas, é este con-
vite que Ele nos dirige para irmos a Jesus (v. 45).
cTodos serão ensinados por Deu11> (v. 45). A citação de Is 54,13
(cf. Jr 31,33s) mostra que Deus quer realizar uma revelação para
todos (nada de predestinação!). Ninguém é exclu!do da realização esca-
tológica da revelação, anunciada pelos profetas. A vinda de Jesus como
sendo o que desce do céu (cf. vv. 46 e 37s) é a realização desta
palavra. De si mesmo, ninguém pode crer. Mas quem se deixa conduzir
por este supremo e último ensinamento de Deus, vem a jesus. Vir a
jesus é ser atraido pelo Pai. O ensinamento escatológico de Deus,
quando acolhido, conduz o bomem a jesus. Implicitamente, signüica que
os judeus não aceitam para si a promessa profética. Atrás desta citação
está todo o método da exegese no 1• século dC. Lia-se, na sinagoga,
um trecho da Lei ou Torá (por exemplo, Ex 16,4s; cf. jo 6,31) e
mn trechq. dos profetas (por exemplo, Is 54,13; ci Jo 6,45). Depois,
come11tavam-se as leituras. :tl exatamente o que Jo faz nesta homilia.
386
O laço entre os dois temas seja talvez a imagem sapiencial da Sabedoria
como banquete, comida (cf. Is 55,1-3, etc.). Por este método homilético,
Jo 6,31-51 mostra que: I ') os judens não entenderam o sentido «espi-
ritual» (que os cristãos conhecem) de Ex 16,4ss; 2') eles não acolheram
a realização escatológica do ensinamento anunciado por Is 54,13 e
Jr 31,33ss. ,
· Quem pode realizar este ensinamento? Ninguém jamais viu o Pai!
(v. 46). Isto é um dogma para Jo (cf. 1,18). Somente o Filho, que
vem dele, pode mostrar o Pai para os homens. 1l o que anuncia Jo 1,18
e esclarece o episódio de Filipe, Jo 14,9.
Este crer em Jesus produz cvida eter110 (vv. 47-48). A fé é o
pressuposto para qualquer eficácia na ordem da salvação. Por issoJ ao
ler os vv. 52ss, não se deve pensar que a Eucaristia funcione auto-
maticamente como .cremedium immortalitati~. E preciso lembrar-se do
que os verslculos anteriores dizem a respeito da fé!
Para indicar a realidade salvífica, jo utiliza o termo «Vida eterna»-.
«Eterno» é sinônimo de «divinol>. O acento não cai na pós-existência,
?•pois da morte, mas na qualidade divina desta vida, desde já. Por
1sso, o tempo presente: quem crê tem (já) a vida eterna (cf. 5,24:
«. . . tem a vida eterna e não irã para o juízo>). Fé, como adesão a
Jesus Cristo, é vida de qualidade divina. O que acontece na pós-morte,
é a confirmação disso ai.
<Não pereça quem dele comer» (v. 50). Retomando o texto de
base de sua homilia, Ex l 6,4s, Jo comenta agora o que significa o
«comer> do pão descido do céu. Não é bem aquilo que os pais no
deserto fizeram. Isto era apenas uma fraca prefiguraçãó, pois eles
morreram (como também o maná dado por Moisés foi apénas uma
fraca prefiguração: cf. v. 321). Comer o pão do céu, como sinônimo
de crer em Jesus Cristo, significa alimentar-se para a vida eterna, ou
melhor, passar já da morte para a vida.
«A minha carae para a vida do 11111ndQ,, (v. 51c). O v. 51c já introduz
a parte eucar!stica do Discurso (vv. 52-58), mas é ainda marcado pelo
contexto dos vv. 32-51b, que explicam que Jesus é o pão que desce
do céu. A novidade do v. 51c é que agora é jesus quem dá o pão.
No v. 51a ele é o pão, em 51c ele o dá. Devemos dizer que o v. 51b
encerra a parte sapiencial do discurso, retomando, em forma de inclusão
literária, os temas iniciais dos vv. 32-35. Seria, então, melhor terminar
a !•itura com o v. 51b? Não necessariamente. O acréscimo de v. 51c
é interessante. porque identifica com maior precisão em que consiste
o valor salvlfico de Jesus como pão da vida. Por que serã acreditar
nele vida eterna? Porque sua vida teve o conteúdo de ser doação
até o fim. Assim, não só o Pai dã este pão mas Jesus mesmo na
doação de sua «carne> ( = existência humana)' para a vida do m~ndo
(«mundo» não no costmneiro sentido negativo, mas como objeto do
amor divino, cf. Jo 3,16). Que a existência de Jesus, na hora de sua
morte, se tornou dom para nós, é uma idéia que pertence à tradição
eucar!stica desde o inicio (cf. cpara muitoS>, Mt 26 28 e Me 14 24·
•
«para vos>, Lc 22,19 e 1cor 11,24). Não há dúvida: as' últimas palavras
' '
do v. 51 integram-se na tradição eucarlstica do 1• século.
3. Função na lllurgia do dia
Lendo-se toda a liturgia do dia, inclnsive as antifanas e orações,
se pode fazer a seguinte sintese: a fidelidade e a verdade de Deus nos
387
são reveladas pelo dom de Deus, que é o pão do céu e da irida eterna:
a irida de Jesus dada por nós. O evangelho ocupa o lugar-chave neste
pensamento: conduz ao seu sentido pleno a imagem da 14 leitura (Elias
confortado pelo alimento que Deus lhe fornece) e oferece uma base
para a imitação das atitudes de Cristo, enunciadas pela 2' leitura.
johan Konings
Porto Alegre, RS
Sugestões para a Homilia
Introdução
Referência ao passado e ao presente
Desde: o próprio anúncio da Conversão, inscrito na pregação
de João B;itista, o Novo Testamento proclama a necessidade de
uma nova , consciência. No IV Evangelho, esta necessidade está
sempre presente, tanto na pregação de Jesus quanto no discurso
do Evangelista. Todavia, ao fazer-se, este anúncio assume uma
forma mais adequada às devidas dimensões do mundo, mais
cosmopolita. Certamente, os interlocutores de Jesus continuam a
ser os judeus (palavra que tem um sentido peculiar por oposi-
ção a israelita), mas estes são divisados desde a diáspora e do
farisaísmo ' e colocados face a face com o mundo antigo e os
monumentos de sua cultura, sua organização · política, suas con-
cepções sobre o homem. Em razão disso . tudo, tanto a sua
narração quanto os discursos e diálogos de vário tipo nele
encontrados se desenvolvem em dois tempos: o passado, repre-
sentado pelos judeus, e o presente, encarnado no Império Ro-
mano, cujo' vulto se ergue hostil, como o ma~ifestará o processo
de Jesus. '
Corpo
l. jesus humano demais?
Esta dupla abertura ou referência constitui uma critica -
na acepçãó originária de discernimento -, R_Ue confere a tudo
nm peso e um valor que não o fecha sobre si mesmo, o que
é de máximo alcance teológico e pastoral. No caso especial do
capitulo VI o que se visa imediatamente é o passado: o judaís-
mo é posto em seu devido horizonte, o do. exodo, que trans-
parece por detrás dos símbolos do maná, dO' mar, da montanha,
da ·murmuração e do desafio da Fé. Trata-se de um passado
cujo valof'.salvlfico não é posto em questão, mas tem proclamada
388
a sua insuficiência e negado o seu caráter paradigmático e o
seu valor normativo para a ação de Deus. Esta irrompe segundo
uma liberdade absoluta e, no caso de Jesus, o que perturba os
seus ouvintes é o caráter ordinário, comum de sua origem huma-
na, incompatível com a pretensão de sµas palavras: ele não
corresponde ao ideal messiânico e, ao mesmo tempo, se arroga
uma origem divina à quar sua condição humana não serve de
mediação.
2. O corpo humano de jesus, mediação do Espírito
Em verdade, Jesus tem uma proposta que pretende superar
e não apenas cumprir o que os profetas prometeram: a Graça
e a Verdade transcendem a Lei, e o Espírito faz de tudo uma
nova criação. Ora, o Espírito é o princípio primeiro da Vida
e, desde o discurso sacramentar da Ceia, 'vai ser o Dom pascal
visado por Jesus. É voltado para este Dom que o capítulo VI
desdobra a sua mensagem; ela parte de sua remota origem: o
homem comum, Jesus de Nazaré, cujos pais são acessíveis ao
mais vulgar conhecimento, e de sua pretensão a possuir uma
palavra absolutamente nova, capaz do dom da Vida e deste
sob a forma de um Pão superior ao Maná, tanto quanto a
Verdade é superior à Lei.
3. A Eucaristia, dom presente e escatológico do E•pirito
A compreensão de tudo isto depende da Fé: é esta que
desvela Jesus como único mediador necessário e como o me"
diador em que a Vida está supersubstancialmente presente, de
modo a poder ser dada em seu Corpo e em seu Sangue. O
sinal do Pão, no qual o homem é chamado a reconhecer o Corpo,
obedece à mesma lógica da Fé na Ressurreição e só à luz
desta pode ser interpretado: importa transcender toda a visão
física. No capitulo VI trata-se de reconhecer no Corpo excessi-
vamente humano de Jesus de Nazaré o Pão da Vida; no capitulo
XX, trata-se de confessar o Senhor ressurgente para além da
visão de seu corpo e mesmo na ausência desta. No Dom de si
mesmo, o Cristo faz o Dom da Vida, mas não o faz de um
modo exterior; ao contrário, ele o faz no próprio princípio de
suá existência corporal, isto é, no Dom do Espírito. A Euca-
ristia é o Sacramento do Dom presente e escatol'ógico do Espí-
rito. É óbvio, este só pode ser alcançado na Fé e esta é susci-
tada naqueles que o Pai envia, pois só este envio torna capaz
da comunhão; isto não é uma limitação, mas um pressuposto
389
vital, ontológico. O que se visa através da Fé é alcançar a
unidade corporal com o Cristo no Espírito.
4. Recobrar o hwmuw em cada homem e na conmnidade humaaa
Feitas estas considerações, é possível divisar a importância
dos dois momentos dá Fé no discurso sobre o Pão da Vida: o
passado, representado pelos judeus, tem por referente a excessi-
va humanidade de Jesus; o presente eclesial e pascal, ao con-
trário, tem por referente a ausência desta humanidade em sua
aparência física: o excessivamente humano, entretanto, se reco-
bra em cada homem ,e na comunidade humana; novamente, é
necessário crer na mais comum humanidade para ser arrebatado
pelo Espírito, experimentar o excessivamente humano do homem
atual, reencontrado neste Jesus de Nazaré, para chegar, no Espí-
rito, dado sobre a Cruz, ao Senhor Ressurgente.
Na Eucaristia, na Ceia do Senhor, na perene Vigília de
seu Dom, estes dois momentos são compreendidos sob os sinais
do Pão e do Vinho: , nela, da humanidade nazarena dos con-
.vivas, é qne o Senhor quer ressurgir em seu Corpo Pascal, na
unidade do Esplrito em ato de Comunhão. E isto até perfazer-se
o desvelamento definit}vo da Palavra que veio sob a forma de
um tornar-se-homem.
. Benjamin de Souza, O.S.B.
São Paulo, SP
300
Vigésimo Domingo do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Pr 9,1·6
«A Sabedoria preparou a mes11>
O cap. 9 de Provérbios consiste em duas partes (9,1-6 e 9,13-18)
em que se contrastam entre si a Sabedoria e a Loucura, personificadas
como duas senhoras. (Os ditos de 9,7-12 são inseridos posteriormente
como um comentário ao v. 6.)
O passo pertence ao gênero literário das parábolas. Seu sentido
é transparente: <como há dois caminhos, o do bem e o do mal (Pr·
2,13; 4,11-19; SI I; 118,29; 138,24; Jr 21,8; Mt 7,13-14; cf. Is 55,8-9),
assim há dois apelos a que o homem pode dar ouvido ou dois ban-
quetes a que é convidado. O homem hã de escolher (cf. Eclo 15,14-18;
Dt 11,26-29; 30,15-20). Quem der ouvido ao convite da Sabedoria entra
no caminho da vida (v. 6), quem atender ao convite da Loucura, entra
na região dos mortos (v. 18).
A Sabedoria do Antigo Testamento, apesar de certas tendências
para hipostasiã-la, jamais se tornou uma sabedoria misteriosa, preier-
vada a um grupo fechado de iniciados. Ela estã ao alcance do povn,
é realista, fica com os pés no chão. O seu convite dirige-se a todos
( cf. vv. 3-5). :li possível que Jesus, na parábola do banquete (Mt
22,lss; Lc 14,16ss), se tenha inspirado neste passo.
Os convites ·da Sabedoria e da Loucura são introduzidos da mesma
maneira: «Quem for simples apresente-sei Aos insensatos ela disse ... >
(vv. 4 e 6). Pode ser que o autor por esta formulação tenha querido
sugerir a perplexidade e a ambigllidade diante das quais a vida coloca
os desprevenidos. A vida põe o homem sempre< de novo em uma encru-
zilhada. Ele tem de fazer a escolha certa e procurar subsidias que o
ajudem a acertar.
O próprio texto jã fornece tais subsldios. A Sabedoria é apresen-
tada como uma dona-de-casa sensata, dedicada e responsável que pre-
para a ceia e - permanecendo ela mesma· em casa como convém
(conforme os costumes da época e da cultural) - manda os empre-
gados chamar os convidados. A Loucura comporta-se como uma mulher-
da-vida que, sentada à porta da casa, alicia os estranhos que passam
(cf. 5,15-18) para afazeres que não suportam a luz do dia. São dois
tipos de comportamento diferentes que sugerem, por si mesmos, o
caminho certo e errado.
A primeira parte da parãbola (9,1-6) é muitas vezes adaptada à
liturgia eucar!stica para evocar a mesa do pão e do vinho preparada
pelo Senhor da vida.
BfbJiogra/Ia: H. D u e s b erg - P.A u v r a y, Le Livre des Pro'lltrbes. Blble
de Jerusalém; J. v a n d e r PJ o e g, Spreuken; O. v o n R a d, Teologia do
Antigo Testamento; Raul C. M. Rui J s, Salmo 1: da Forma ao Contetido, em
J. S a 1 v a d o r e.o., Atualidades Bibli,as, Petróp-olls 1971, p. 256-276.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
391
 Segunda Le!tum: Ef 5,15-20
Esta segunda leitura continua a reflexão de Paulo sobre a vida do
homem novo. Não se trata de uma reflexão moralista, mas do convite
a se tirar as conseqüências do compromisso assumido no batismo.
Mais uma vez o cristianismo é apresentado como um caminho a ser
percorrido (cl. At 9,2; 18,26). A fé seria o início de uma caminhada
que tem por meta a ressurreição em Deus.
O homem, uma vez iluminado (v•. 14) pela. sabedoria de Deus
(cf. !Cor 1,17-31), deve agir segundo essa mesma sabedorb, fazendo-a
frutificar para sua própria vantagem. A luz pode perder sua força, mas
também pode se fortificar pelo uso, o sábio vive segundo sua mente e
coração iluminados pela sabedoria. ·
O tempo é curto, e o cristão, embora assediado poi mil dificuldades
do mundo e dos homens que fazem este tempo mau t:(Qo 9,10), deve
tirar o maior proveito ' do tempo de vida que lhe foi concedido. O
tema sapiencial dos dias maus, onde dominam o pecado, as tentações
e as más ações do «homem velho», aqui como nos Sinóticos é apre-
sentado como dos últimos tempos, em oposição aos <tempos bon0» que
acontecerão - no século futuro. Trata-se de uma admóestação geral e
não especifica desta comunidade, a fim de que o cristão se prepare
para a parusia. O cristão sábio saberá tirar água das rochas, isto é,
auferir dos tempos maus um bem, no meio do mal ;:optar pelo bem,
escolher o melhor em cada situação. Como sâhio descobre a vontade
de Deus nas realidaes, também más, da vida e a norteia segundo essa
mesma vontade.
A úl!)ma parte da leitura parece referir-se às celebrações agápicas,
onde aconteceram abusos (cl. 1Cor 11,20-22). É notório que o homem
procura no álcool esquecer, ou falsamente superar, as dificuldades de
sua vida. Essa atitude de. fuga, ao contrário de resolver os problemas,
abre a porta para a irresponsabilidade e obscurece .. a sabedoria do
homem._ Paulo usa a terminologia da fuga, «embriagar~se~, para indicar
uma atitude de engajamento. O ·homem que se deixa embriagar pelo
Espírito Santo é o que abre espaço dentro de si para Deus. Não
creio que se precise apelar para a terminologia dos cultos dionislacos
para explicar · esse uso feito por Paulo. Ele faz apenas uma transpo-
'' sição semântica a partir~ da experiência de vida; sua e da comunidade,
. Possuído pelo Espírito Santo, o homem encontra palavras para
a exortação mútua e para louvar a Deus que o criou e salvou. A
boca do .homem cantará e falará do que seu coração, fonte de decisões
e . amor, .está .cheio, o Espírito Santo.
A .última frase, interpretada como participação na Eucaristia por
Schlier, significaria que : a comunidade. se reunia sob a proteção do
nome de Cristo (cf. !Cor 5,4). Paulo teria em mente, ao escrever esta
carta, as assembléias comunitárias que se reuniam para a Eucaristia, e
que durante a mesma liam suas cartas, louvando e agradecendo ao
Senhor.
Bibliografia: C o n z e 1 m a n n H.·O. P r J e d r i e h, Epistolas de Ia Cautividad,
Fax, Madrid 1962; S t a a b K.-N. B r o x, Cartas de la Cautividad, Herder, Barcelona
1974; Biblia Comentada VI (19),- BAC, Madrid. 1975; Se b 1 i e r H., La lettera
agll E/esinl, Paid~Ja, Brescfa 1973; Z e r w i e k M., LeHera agli Bfesinl, Città
Nu1>va, Roma 1966.
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.j.
Paulista, PE
392
Terceira Leitura: Jo 6,51-58 (gr.)
Cf. a Pista Exegética da Solenidade do Santíssimo Corpo e
Sangue de Cristo na Mesa da Palavra, Ano A, p. 271-275.
Tema Principal
MINHA CARNE P~RA A VIDA DO MUNDO
Sugestões para a Homilia
Introdução
Nessa curta. perlcope de João entrelaçam-se três mve1s de
afinnação. Um refere-se ao mistério histórico de Jesus. Outro
exprime o modo como o cristão da comunidade primitiva pode
participar dessa realidade pela fé. E num aprofundamento desse
filão; João introduz a participação através do sacramento euca-
ristico, com tudo que isso implica para a comunidade dos crís!ãos.
Esse mesmo processo devemos refazer hoje no nosso contexto
de cristãos latino-americanos. Reencontrar-nos com o Jesus de
Nazaré pela mediação da fé, do sacramei:ito e da conseqüente
prática da caridade.
Corpo
1. A verdade da «carn"" de jesus
Já desde os albores do cristianismo, os homens sentiram
dificuldades em aceitar a verdade desconcertante da humanidade
frágil do Verbo divino. Ou refugiam-se num jesus «mero homem»
(psilos anthropos dos ebionitas) ou preferem reter a aparência
humana de um deus vestido de corpo etéreo, irreal ( docetas).
João defronta-se certamente com grupos désse segundo tipo, de
caráter gnóstico. A carne de Jesus não passava para eles de
mero artifício para a divindade apresentar-se, sem que aquela
fosse verdadeiramente assumida. João reafirma nesses poucos
versículos a dupla verdade humana de Jesus: sua encarnação
na fraqueza da carne e sua morte oblativa. «Ü pão vivo descido
do céu» exprime craramente o mistério da Encarnação. Para
evitar qualquer resquício de dúvida, acres'centa que esse «pão
é sua carne:>. 'Usa precisamente o mesmo termo com que des-
creve a Encarnação: «E o Verbo se fez carne» (Jo 1,14). Não
• 393
 se pode perder em nenhum espiritualismo que diminua a histo-
ricidade humana, de carne, de Jesus.
Um olhar acostumado ao vocabulário sacrifical do Novo
Testamento, percebe também no texto de João a alusão à morte
de Jesus. Não somente se trata de alguém qne assumiu verda-
deiramente a humanidade, mas que não escapou ao grande des•
tino de todos os homens: morrer. Mais. Sua morte se faz num
sentido de entrega, de sacrifício. «É a minha carne para a vida
do mundo». A expressão «para a vida do mundo» significa,
pois, uma alusão clara à morte de sacriflcio na cruz conforme
o uso lingüístico da comunidade primitiva (Me 14,24; Lc 22, 19;
Rm 8,32; lCor 15,3; 2Cor 5,21), OI 1,4; 2,20; 3,13 etc.).
Expressão estreitamente ligada com a instituição da Eucaristia,
onde aparece claramente o contexto de sua morte (!Cor 11,24;
Lc 22,19).
Portanto, para João, qualquer reflexão sobre a fé em Jesus,
sobre o sacramento, tem como pouto de partida imprescindível,
. '' fundamental, o re-conhecimento da carne histórica de Jesus, de
i ~
seu existir humano, visível.
2. A ponte da fé e da sacramento
A realidade fundamentar é o Jesus da História, o nazareno,
que na fragilidade da carne viveu entre nós, morreu numa cruz,
como entrega de si ao Pai e aos homens. Como participar
desses mistérios? Como ligar-se com esse Jesus? Como viver
de sua vida, deixar-se possuir por ele? João responde a essas
perguntas apontando a dupla via de acesso a Jesus: fé e par-
ticipação eucarística. Na primeira parte do sermão trata mais
diretamente dessa aproximação a Jesus pela fé: «Eu sou o pão
de vida. Quem vem a mim ( = quem crê) não terá nunca fome;
quem crê em mim, não terá jamais sede» (6,35).
A perícope de hoje, concentra-se mais diretamente no se-
gundo meio de acesso aos mistérios históricos de Jesus: «se
não comerdes a carne do Filho do homem e se não beberdes
seu sangue, não tereis a vida em vós» (6,53). João situa o
leitor diante de uma dupla falsa intelecção desse acesso a Jesus.
Assumir o sacramento como metáfora, como mero símbolo de
algum vínculo qualquer. Aparece tal dúvida através da perple-
Y.idade dos judeus que se interrogam «como este homem pode
dar-nos sua carne para comer»? (6,52). E na resposta há um
reforço e não abrandamento. Jesus repete a expressão «comer
a carne do Filho do homem» e acrescenta outra expressão ainda
mais realista e de certo modo escaftdafosa para os judeus:
394
cbeber seu sangue». Não há dúvida que se trata de algo
bem visível, sacramental, real. Participação através de sinais
perceptíveis.
Esse aspecto foi muito retido pela tradição da Igreja, até
as raias do mágico. Esquece-se, porém, que João corrige uma
intelecção materialista, mágica do sacramento. É necessário um
comer físico. Mas ele é sinal, expressão, meio, para a verda-
deira realidade em questão «ler a vida em si» (53), «ter a
vida eterna» (54), «permanecer nele e ele permanecer em nós»
(56), «viver por meio dele» (57). Portanto, o fundamental é
viver de Cristo, é participar de sua vida, é permanecer nere,
é ter a vida dele. Ora, essa vida é aquela de que se falava antes :
«na historicidade da carne». A participação eucarística é a ponte
simbólica e mística que liga o fiel com o Jesus da História.
Coloca-o diante dos mistérios de Jesus, fá-lo participar deles,
como exigência para sua prática presente. Não é, pois, uma
participação mágica, de uma fisicidade meramente material de
receber o sacramento. Supõe o compromisso de vida: viver nele
e ele viver em nós. Essa ligação íntima de vida, que termina
na escatologia pela ressurreição final (6,54.58), exprime o cerne
da participação eucarística para João. Ela tende à união pessoal
com o Jesus Ressuscitado, que é o mesmo da Palestina, com
toda a sua vida de compromisso humano assumido nos anos
vividos entre nós. A vida que Jesus comunica é imperecíver,
porque nos coloca em união íntima com ele, que recebeu do
Pai - fonte da vida - a própria vida d'Ele. «0 Pai que é
vivo>>, «eu vivo através do Pai» (6,57) revela a natureza dessa
vida que Jesus comunica através da participação de sua carne
e sangue pela Eucaristia.
3. A eucaristia num contexto de «lllOrle»
A idéia central de João é de que Jesus é fonte de vida,
recebida do Pai vivo, e que no-la comunica através da man-
ducação de sua carne e bebida de seu sangue. Assim o . cristão
entra em comunhão com a sua vida, vivida na historicidade
da carne -na 'Pales'tina 'e glorificada na ressurreição, e agora
presente de 'modo misterioso, real à comunidade dos fiéis. A
força do pensamento de joão concentra-se na realidade da
«vida». Não se pode entender nem Jesus, nem a fé n'Ele, nem
a Eucaristia, sem a realidade da «Vida».
No nível simbólico, escatológico, do dinamismo de histori-
cizar-se, já vivemos, de fato, dessa vida na Eucaristia, na fé.
Contudo, isso acontece dentro de um contexto soi:ial profunda-
395
mente marcado pela morte. Vivemos num Continente, em que
a maioria das pessoas «morre antes do tempo». Umas nem
nascem. Outras morrem antes do 3• ano. E as grandes maiorias
morrem aceleradamente cada dia, minadas pela desnutrição, pelas
doenças, pela miséria, pela precariedade das condições humanas
de viver. E que significa celebrar aí, nessa situação bem con-
creta, o mistério da vida? Que significa a autodefinição de
Jesus: eu sou o Pão da vida?
Cada celebração só adquire sentido, na medida em que
aponta de modo simbólico e escatológico, jã realizado definiti-
vamente em Jesus, para a plenitude da vida. Todos somos cha-
mados a ela. Doutro lado, esse dinamismo escatológico tem
dupla dimensão: do «ainda não» e do «já». O «ainda não»
aparece-nos claro, ao constatarmos a distância que nos separa
dessa vida anunciada. Contudo, cabe-nos agora, na força do
Espírito, viver o «jâ» dessa vida, através de nosso testemunho,
de nossa prãtica. Esse «já» se realiza em todo lugar em que os
bens materiais sejam distribuídos socialmente para que mais
gente viva; que os bens políticos se democratizem, para que
mais gente se personalize; que os bens culturais, espirituais se
difundam, para que mais gente se plenifique. Cada celebração
do «Pão da vida» pelos cristãos se historiciza, não somente
através da vivência simbolicamente real da participação da rea-
lidade escatológica, mas também através de toda participação
de bens humanos, materiais, culturais, que termine no aumento
de vida dos mais necessitados. Cada eucaristia é um protesto
contra o reino da morte, pelo anúncio da ressurreição de Jesus
e nossa, e pela condenação de todos os mecanismos e estru-
turas geradores de morte, de miséria. A Eucaristia exprime,
enfim, o grande compromisso do cristão com a «Vida do mundo»,
já que ele recebeu o Pão vivo do Céu, a carne dada para vi-
vificar esse mundo, em todas as suas dimensões, até o pleno
desabrochar na plenitude final.
joão Batista Libãnio, S.J.
Rio de janeiro, RJ
1 outros deuses. Não é mais tão natural que Jahve seja o Deus de Jsrael.
396
Vigésimo Primeiro Domingo
do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Js 24,1-2a.15°17.18b
«Também nós serviremos a Jahve porque ele é nosso Deus:;.
Contexto literário de /s 24,1-2a.15-17.18b. Todo o capítulo 24,1-28
se compõe, do ponto de vista formal, de elementos narrativos e de dis-
cursos. As partes narrativas, vv. J.25s.28, lidas num puxar de fôlego,
não formam uma narração em si. Nos versículos restantes 2-24.27 se
encontram discursos divididos formalmente em duas partes: na primeira
um discurso de Iabve (vv. 2-13) e na segunda um diálogo entre Josué
(vv. 14s.19s.22s) e o povo (vv. 16-18.21.24). A leitura deste domingo,
portanto, se compõe de alguns elementos narrativos e de uma parte
do diálogo entre Josué e o povo (cf. Perlitt, p. 239-247).
A época da composição de ]s 24. Os elementos da moldura narra-
tiva (js 24,1.255.28) contêm dados da época pré-estatal de Israel, como
o Hder Josué e a reunião das tribos de Jsrael em Siquém. Lendo-se,
no entanto, com atenção js 24 percebe-se logo que este capitulo não
fundamenta a unidade de Israel, mas a supõe como já existente. Se
então js 24,1-28 não foi composto na época pré-estatal de Israel pode-
se perguntar: Quando surgiu esta passagem? O pano de fundo js 24
parece ser um século com uma situação politicamente muito instável
e com uma constante repressão da f-é em 1ahve. Isto nos leva a co-
gitar no tempo entre 701-609 aC. Este per!odo foi inicialmente marcado
pelo rei de Judá Manassés (696-841 aC). Este manifestou de tal ma-
neira a sua submissão e lealdade ao rei dos assírios, para se conservar
seguro no trono de Judá, que transformou o templo de labve em
Jerusalém, em um santuário dos deuses assírios. Por causa desta vas-
salagem pol!tico-religiosa, a qualquer preço, ele foi chamado pela fonte
literária deuteronornista o apóstata por excelência. E esta onda de
apostasias dos israelitas de Iahve cresceu tanto que nem o rei Josias
(639-608 aC), o iabvista ideal, conseguiu estancar. É sob este prisma
que se deve escutar e ler a nossa passagem js 24,1-2a.15-17.18b e todo
este capítulo do livro de Josué (cf. Perlitt, p. 271-279).
Comentários de }s 24,1-2a.15-17.18b. A terminologia e os temas
aqui tratados também revelam a época histórica supra-aludida. A expres-
são «todas as tribos de 1srael» no v. l manifesta o conjunto do povo
israelita e se restringe às diversas camadas literárias da obra histó-
rica deuteronomista. E a ladainha dos convocados por Josué para Siquém
(v. 1), que tem como finalidade revestir a cena com o cunho oficial
e autoritativo (cf. 2Rs 23,ls), nunca é encontrada fora da literatura
deuteronômica/deuteronomista.
E, além disso, o aposto Iabve, «Deus de Israel» (vv. 2.23), é
~bém dominantemente empregado nesta camada deuteronômica. E esta
enfatização é importante e tem suas razões bem óbvias porque o povo
israelita, convocado para Siquém e colocado diante de Jahve, já há
tempo não tem mais só experiências com lahve, mas também com
Por isso, Josué coloca os israelitas diante da decisão: servir a
Iahve ou aos deuses dos ancestrais ou aos deuses dos amorreus (v. 15).
397
O que quer dizer isto? Primeiramente a expressão «venerar os deuses
dos ancestrais não quer apenas aludir a um falo do passado que os
ancestrais do povo de Israel veneravam deuses. Mas a veneração de
deuses pelos <nossos ancestrais:r; «no outro lado do rio» aponta para a
Assíria na parle oriental do rio Jordão, que agora subjuga polltica e reli-
giosamente o povo israelita. Em jerusalém os deuses foram expostos
para veneração pública. E este é o perigo de vida e de morte para o
pov~ de Israel, para o qual se aler~a. Uma situação dessas só pode
aludir ao século VII aC. E, além disso, a constatação da veneração
dos deuses dos amorreus, «que vivem no meio de vó&» a oeste do
rio Jordão, também não quer ser apenas uma reminiscênci~ do passado
mas apontar i:ara outro perigo no presente, isto é, a opção pelos seus
deuses. A tôruca, portanto, não se encontra na alusão aos amorreus
como um povo do passado, mas no perigo polftico e religioso que re-
presentam para os israelitas no presente, cujos deuses podiam ser ve-
nerados por eles. Foi talvez a situação de vassalagem dos israelitas
aos reis assírios e. a convivência próxima dos amorreus com o povo
de Israel que obrigou o redator da fonte literária deuteronômica a
!•lar . clarament_e do perigo dos deuses estrangeiros para a religião
israelita, revestindo, porém, sua catequese com dados da história do
passado.
Esta pregação deuteronômica quer convidar os israelitas - e hoje
a nós - a uma clara e única opção por Jahve. Josué e sua familia
(v. 15) e os israelitas (v. 18) se decidiram por Jahve pois só ele
é Libertador verdadeiro e Protetor fiel (vv. 17s) no c~nho da vida
(cf. Perlitt, p. 247-260).
Bibliografia: Per 11 t t~. L.é Bundestheologie im Allen Testament WMANT 36
Neukircbener Verlag 1!169; me ar t b y, D. J., Treafy tJnd Covenant' An Bibl 21'
Roma 1963. ' · · •
Pe. Pedro Kramer, O.S,P.S.
Porto Alegre, RS
Segunda Leitura: Ili 5,21·32
Este texto de Efésios mais do que seu paralelo de CI 3 18s foi
sobremaneira estudado devido ao desenvolvimento dado à idéia d~ espon-
sallcio entre Cristo e a Igreja. Paulo aqui não procura desenvolver
uma moral cristã específica, mas dá um fundamento cristão para o que
ele encontra de válido na sociedade.
O autor lança as bases da nova re1ação entre os homens, o temor
de Deus, o temor de Cristo. O texto, em estudo, refere-se a lo.da a
comunidade, por conseguinte ao marido e à mulher e não só à muiher
como em CI 3,18. o V. 23 faz a aplicação, em relação à mulher do
principio enunci~do no v. 22, introduzindo, porém, uma clãusula ~ova
a esse fato social da época; trata-se da submissão ceamo ao Senhor».
à primeira vista, Paulo não rompe com o esquema social tradicional
~as ~ consideranno..s que o marido é comparado ao Senhor, a exigên~
eia feita a este é !ao grande ou maior que aquela de submissão feita
à mulher. Antes de ser um privilégio traia-se de uma responsabilidade
dada. ao homem, .imitar o Cristo, e não uma justificativa para qualquer
espécie de despotismo.
398
A carta manifesta claramente a alt!ssima concepção do matrimônio
cristão, já esboçada em !Cor 7,1-9, tomando por modelo a relação
Cristo-Igreja. A impressão· que se tem é de Paulo ter proposto o tema
do matrimônio, mas ter-se preocupado mais em desenvolver o da rela-
ção Cristo-Igreja, valendo-se das imagens cabeça-corpo, esposo-esposa.
No Antigo Testamento e nas tradições do Novo, o autor encontrou
os primeiros passos do desenvolvimento da doutrina do relacionamento
amoroso de Deus-Cristo com a comunidade. Oséias (2,4-25) desenvolveu
a idéia do adultério do povo de Israel em relação a Deus (cf. Is 54,5;
62,5s). Ezeqniel comparou o povo a uma jovem de quem Deus cuidou
mas foi traido (Ez 16). joão Batista chamou Cristo de . esposo (Jo
3,29), e o próprio Cristo se considerou como tal (Me 2,19s), como
também apresentou o seu Reino comparando-o a um banquete de núpcias
(Mt 22,1-14) e o Apocalipse (19,7) fala das bodas do Cordeiro.
Na comparação entre a realidade de Cristo e a dos homens, porém,
percebe-se imediatamente uma diferença marcante: Cristo, cabeça, é sal-
vador da Igreja, seu Corpo; Aqui, vê-se que toda comparação manca, e
que o mafrimônio humano é um débil sinal de uma realidade maior.
Por outro lado, pode-se ver esta realidade maior, como uma meta a
ser realizada em parte no matrimônio cristão. O marido que ama sua
esposa a ponto de dar a sua vida por ela, de algum modo <a salva>.
Cristo é cabeça da Igreja enquanto é seu chefe e a salva, isto é,
a ama como a seu próprio corpo, entregando-se por e1a; _por isso a
Igreja necessariamente lhe é submissa. Pode-se então concluir que se
o marido preenche esses requisitos, necessariamente a mulher encontrará
, sentido em lhe ser submissa em tudo, quer dizer, sem Caprichos ou
abusos.
Por um momento Paulo volta à situação anterior à fundação da
Igreja-comunidade. O anúncio da palavra e o batismo constituem a co-
munidade, transformam um grupo de pessoas em Igreja, fazem com
que desapareçam «manchas, rugas e coisas semelhantes», características
do homem velho, e nasça uma comunidade «Santa e irrepreensível>.
Cristo amoú os homens e deu a eles a condição de constituírem na
Igreja o seu Corpo e de serem a Igreja, sua esposa. O batismo e a
palavra purificam os homens (cf. jo 15,3; 13,6.11) e são uma expli-
citação do que seja o amor de Cristo pela Igreja. Essa mesma imagem
encontramos em Ezequiel (16,9), referindo-se a Israel que' pelo banho
se prepara para a Aliança, como também entre os orientais se preparava
a noiva, através de banhos rituais, para o casamento.
No texto de Oênesis sobre o matrimônio, Paulo encontra, habil-
mente passando do termo «carne> do Oênesis para «corpo> do texto,
uma prefiguração da união Cristo-Igreja, pois como o homem une-se
à sua mulher e constituem uma só carne, assim também a cabeça
estâ unida ao corpo, Cristo à Igreja. E esse é o grande mistério,
· escondido e agora revelado, como o da conversão dos pagãos (1,9s.33s;
Rm 16,25): Deus (<UllOU de tal modo os homens, que em Cristo se
uniu à humanidade, formando com ela, pela Igreja, um corpo onde
Ele é a cabeça e nós os membros. E claro que a Igreja não se iden-
tifica com a humanidade, mas na Igreja concretiza-se o plano que Deus
quis realizar com Ioda a humanidade.
Pode-se ver então no matrimônio cristão o reflexo da misteriosa
união de Deus -com a humanidade, e o casal cristão verã na relação
Cristo-Igreja o protótipo de sua vida.
.399
 Blbllograjfa: C o -n z e Jm a n n H.-0. P r J e d r 1 e h, Epistolas de la Cauüvidad,
P-ax1 Madrid 1962; S t a a b K.-N. B r o x. Cartas de la Cauiividad, Herder, Barcelona
l.974j Biblia 'Comentada V1 (lv), BAC, Madrid 1975; Se h 1 J e r H., La lettera
agll Bfesinl, - Paldêla, Brescla 1973; Z e r w i e k M., Letlera agli Efesini, Città
Nuova, Roma 1966.
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
•Paulista, PE
Terceira Leitura: ]o 6,60-69 (gr.)
1. Contexto
Jo 6,60-71 forma a conclusão da unidade literária constitulda pelo
cap. 6 de Jo. Nesta unidade, podemos distinguir três momentos: !) o
sinal, a multiplicação dos pães (w. 1-15); 2) depois de uma transição,
constitu!da pela perlcope tradicional da caminhada sobre as águas (w.
16-24), a explicação do sinal, o Discurso do Pão da Vida (vv. 25-59);
3) o resultado, a decisão para a fé ou a incredulidade (w. 60-71).
Para bem 'entender estes últimos vers!culos, é .preciso ter na mente
todo o capitulo. ,-
2. Exegese de ]o 6,60-69 •
<Dura é esta palavra. (v. 60). Considerando-se o contexto
imediato parece que a dificuldade da palavra de Jesus se refere ao
dar seu' corpo e sangue em comida e bebida (w. 52-58). Mas como
o termo . <palavra> (logos) significa também «discurso> e não há ne-
nhuma razão constrangente para pensar que a d_ificuldade se refira só
à última parte deste discurso, parece-nos que a objeção dos ouvintes
concerne ao discurso todo, que, depois da fórmula de conclusão no
v. 59J pode· ser considerado como um conjunto. jã na incompreensão
do v. 34 e• na murmuração dos vv. 4ls e 52 mostrou-se que o dis-
curso era djfícil. Era dillcil aceitar que Jesus vem do céu. Mais dillcil
ainda, responde ele, será admitir que ele volta para lá (v. 62). E so-
bretudo o voltar de jesus, isto é, a fé na ressurreição de Jesus Cristo,
que afasta .·os candidatos, ou, como ilustra a perícope, instaura uma
divisão entre os que crêem e os que não crêem.
A. resposta de jesus, nos vv. 62s, natura1mente não é uma resposta
à objeção, 'não resolve o «escândalo> (paradoxo) que eles enfrentam
(v. 61) .. Antes, determina melhor o momento decisivo, Não são estas
palavras diffoeis, mas sobretudo a cexaltação> de' Jesus (cf. Jo 3,14-16;
12,32s; 17,lss) que representa o paradoxo da ·fé. Mas é também a
partir desta': exaltação, qu_e a fé se torna possível (pelo dom do Espí-
rito, cf. 7,39 e 6,631). Mais ainda, ela é o conteúdo fundamental da
fé. lnterprefarlamos, portanto, o v. 62 no sentido de que o prôblema
da fé se cóloca em termos claros a partir da exaltação do Filho do
Homem.
«O espfrito é que vivifica> (v. 63). Para entender o mistério do
Filho do Homem que desce do céu, é necessária a exaltação, que dá
o Espírito. Só quem recebe o Esplrito, pode receber na fé o evento
da revelaçãÓ de Deus em jesus Cristo. Quem fica raciocinando no nível
da ccarne»,· 1isto é, dentro de parâmetros mefamente humanos {ccarne>,
cf., por exemplo, Js 40,6: ctoda carne é como erva>), não pode acolher
o que Jesus mostra de Deus. «A carne (notem bem: aqui, Jesus não
diz: «minha carne>, como em v. 56!) não serve de nada> (v. 63). Em
outros termos: humanamente falando, não é possível reconhecer em jesus
400
de Nazaré um enviado de Deus. A Jui de sua ressurre1çao e exaltação
por Deus é que o reconhecemos como tal e suas palavras se tornam
realidade divina para nós, cespírito e vida> (v. 63). Isto é muito sério:
Jesus não é mensageiro de Deus por. causa daquilo que humanamente
podemos apreciar nele (por exemplo~· sua inteligência, sua visão da
sociedade), mas por aquilo que é reyelado êm sua exaltação. Ora, a
«exaltação> de jesus, segundo jo, re~iza-se, antes de tudo, na cruz
(Jo 12,32s). É ai que Jesus se torna compreensivel... Quem não o
compreender naquele momento, nunca o compreenderâ! Neste sentido, o
• v. 63 provoca uma decisão pró ou contra, e é nos mesmos termos que
Pedro darâ a resposta - favorável - no v. 67. Portanto, depois do
ensinamento de Cristo, a «exaltação» não forma tanto um novo «escân...
dalo> (paradoxo), mas mostra (como também a alusão à sua doação
de vida em v. 5Jc) qual é o verdadeiro escândalo de jesus. O escân-
dalo de Jesus é que o Revelador de Deus é aquele que é elevado na
cruz e assim (e só assim) também na glória A carne de nada serve.
(Contrariamente a Schnackenburg, e r baseando-nos na -analogia com
3,6ss etc., entendemos sarx [carne] no v. 63 como referindo-se ao
homem em geral, e não meramente à éxistência humana de Jesus, como
oposta à sua glorificação. Porém, é possível que Jo, além de que.rer
dizer que as categorias humanas não adiantam, também tenha pensado
na existência «carnal» de Jesus, como não sendo em si decisiva para a
fé, jã que esta precisa do Espírito. · Contudo, a <Carne» de Jesus é
indispensável [cf. Jo 1,14; lJo 4,2 etc.].)
Nos; vv. 64-86, Jesus de~unc!a a incredulidade. C?s .vv. 64b_--65 e 70~
relacionam isto com a presc1ênc1a de .jesus quanto a 1ncreduhdade e a
traição de Judas. Como já foi dito (vv. 37 e 44), ninguém pode vir
a Jesus ·por força própria. A fé é dom do Pai. Aqui também mos!"a-~e
a necessidade da outra dimensão que 'não só a «carne,.. A presc1ênc1a
de Jesus não sjgnifica predestinação, mas antes, sua união com o ~ai,
que conhece quem recebe seu dom, e a soberania com que ele enfrenta
seu destino. O v. 66 pode ser uma resposta à objeção de que o sucesso
de Jesus diminuiu : é porque muitos não se deixam atrair pelo Pai.
«Tu' tens palavras de vida eterna>'" (v. 67). Na decisão, Pedro con-
firma o que foi provocado por Jesus no v. 63. Pedro reconhece que
só o Espírito vivifica, e que este se encontra na palavra de jesus. Na
situação de desafio é que o homem rtoma a sua decisão de fé, e é
nesta decisão que Cristo e sua palavra se tornam revelação para a
gente. Pedro chama jesus o Santo <!e Deus (v.. 69). Diferent~me_nte
dos Sinóticos, Jo evita dar a jesus um título tecrucamente mess1âmco.
Na Profissão de Fé de Pedro, nos Sinóticos, Jesus é confessado como
Cristo, ou seja, Messias. jo evita este titulo aqui, p~ra excluir qualquer
categoria «carnal». Pois os judeus pensavam o Messias em t_ermos bas-
tante ccarnais» (messianismo terrestre, l nacional etc.).
Restlmindo, podemos dizer que o importante, ·neste episódio, é notar
como súrge e .se decide a decisão da' fé. Ela surge no paradoxo, no
«escând3loJo, para pôr fim à ambição d.o nosso pensar e sentir humano.
Então, diante deste impasse é que a r,pessoa s~ entrega ou se recusa
àquele que, na sua cexaltação», se mostra ser aquele que vem de Deus.
'
3. Função na litürgia do dia
' l . •
A liturgia deste domingo é um tanto heterogênea. A 2' leitura não
participa da temática comum das duas outras. Na 1• é exigida a de-
401
c1sao dos israelitas pró ou contra Javé, resp. o javismo proposto por
Josué. Esta decisão tem razões humanamente plausíveis: Javé é quem
libertou Israel do Egito. A escolha pró ou contra jesus, sugerida por
jo no evangelho, não tem tais razões humanamente interessantes. Trata-
se de entregar-se a um modo de existir que não é nosso. Jesus não
fornece argumentos: a fé é a fé. Trata-se de aceitar esta vida de
jesus como sendo sua volta à existência na glória <antes da fundação
do cosmo» (Jo 17,lss), e de tirar dai a lição: este é o rumo da
«Vida eierna».
johan Konings
Porto Alegre, RS
Sugestões, para a Homilia
Introdução
Não sei quem escreveu, nem se jã foi escrito; mas se ainda
não foi, devia ser escrito: o romance do homem que tanto
amava uma mulher, que tudo, absolutamente tudo fazia para
conquistã-la. Esforçava-se por agradar-lhe, comprava presentes,
mandava flores, escrevia cartas, efundindo nelas seu coração.
E quando perto, inventava e sabia achar as mais belas palavras
e mais atraentes expressões de amor.
Havia, porém, no amor dele um ponto fraco. É que não
admitia nem permitia uma ,recusa, nem podia imaginar uma
resposta negativa aos seus apelos de amor. Com todas as inven-
ções e provas de seu amor, ele ia envolvendo a amiga, cercando-a,
acuando-a, obrigando-a, não deixando-lhe o espaço e a llberdade,
para nascer, desabrochar e crescer nela a resposta livre de amor;
mas impondo esta resposta, e;dgindo-a, extorquindo-a, até. . . até
descobrir que tinha nos braços apenas uma boneca, um mane-
quim, um robô, em vez de uma pessoa humana. Uma mulher
que dizia sim ao apelo dele, mas não era ela, era ele mesmo
que a fazia dizer. Era o sim dele mesmo. Não era ela que se
entregava: era ele que a tomava. Era conquista mesmo, não
fruto de liberdade. Não era amor.
Corpo
Hã um outro romance, que não é propriamente romance, e,
sim, uma história verdadeira: ,do Deus que tanto ama os homens,
que tudo, absorutamente tudo faz, para merecer e ganhar o
amor deles. Começa por criã-los, pondo-os na existência, pois
nem isto eles tinham. Em seguida, vai cumulando-os de bene-
flcios e de provas de amor, libertando-os da terra do Egito,
da casa da escravidão, faz.endo para eles grandes sinais e
guardando-os por todo o caminho que andam, e entre todos os
povos pelo meio dos quais 'passam (primeira leitura). Ele os
402
ama, e se entrega por eles, a fim de purificã-los com o banho
da ãgua e santificã-los pela palavra, para apresentã-los a si
mesmo gloriosos, sem manchas nem rugas ou coisa semelhante,
mas santos e irrepreensíveis (segunda leitura).
Nisto, 'el'e vai mesmo até o fim (Jo 13,1), como o amante,
apaixonado pela mulher amada. Sacrifica tudo e sacrifica até a
si mesmo, perseguindo o seu amor como um louco, procurando,
solicitando, suplicando, perdoando as infidelidades, e reatando
a relação (Oséias 1-3). Finalmente, no seu Filho, ele se entrega
até à morte, e morte de cruz (segunda leitura: Fl 2,8).
A história-de-amor de Deus aperfeiçoa o romance mais per-
feito, no que toca à auto-entrega do amante. Evita, poré~, o
ponto fraco de quase toda história de amor humana, porque não
prende, · não toma, não conquista, - para Deus não hã con-
quista de amor: amor e conquista são contraditórios, - nem
impõe ou força. Nisto encontram-se a primeira e a terceira
leituras. de hoje. Desde o Antigo Testamento até hoje, a ini-
ciativa é inteiramente de Deus. A iniciativa de Deus envolve
o romance - história, na sua totalidade, do começo até o fim :
lança o começo, e garante o fim. No entanto, dentro desta ini-
ciativa total, Deus oferece ao seu povo a fórmula da al'iança,
honrando ao máximo a sua dignidade de povo livre. Mistério
insondável: que dentro da iniciativa total e envolvente de Deus,
o povo, eleito pode e deve decidir, com toda a liberdade, deve
e pode dar o seu sim ou não ao amor-convite de Javé.
jesus encontra-se e mantém-se na mesma linha - linha
libertadora também sob este aspecto. Apela, convida, insiste,
corre atrás da ovelha desgarrada; mas não força jamais. ·A
resposta, ele a espera apenas. Uns aceitam: Zaqueu, a mulher
adúltera, Nicodemos (?). Outros não: o jovem rico, judas, os
chefes do povo. . . Jesus somente oferece, chama e. . . espera,
com a paciência do amor (cf. !Cor 13,4). Assim, nesta leitura
do evangelho: afastaram-se as muitidões, afastaram-se muitos
discípulos. Então, Jesus diz aos doze: «Não quereis também
partir?» É num contexto análogo, que Paulo exclama: «Õ abismo
da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são inson-
dãveis seus juízos e impenetrãveis seus caminhos! ~ . . Tudo é
dele e por ele e para ele. A ele a glória pelos séculos! Amém»
(Rm li,33-36).
E agora? Para nós? Parece haver uma dupla mensagem na
liturgia' de hoje. Em relação a Deus e a Jesus Cristo: É possível
resistir? Serã que se pode endurecer o coração?
E em relação à ação cristã no mundo : «Sede perfeitos,
como o vosso Pai é perfeito». Perfeito, de uma peça só: nunca
403
perdendo de vista a meta marcada, firme e constante até o fim,
mas com uma firmeza e constância sem violência. Quanto maior
o amor, menor a violência. Não é verdade que muita$ vezes
procuramos suprir a falta de amor pela força? A violência e
a força não são, tal qual o ciúme, fraquezas do amor, amor
falho? Os pais amam os filhos e desejam a felicidade deles.
Mas os filhos são recalcitrantes: não aceitam os conselhos dos
pais e não querem fazer o que leva à felicidade. Não se. tornam,
então, os pais facilmente mais rigorosos, exigentes, severos? E
a educação, fruto de amor, não se torna, muitas vezes, coação
e dominação? O agente social quer bem ao povo e deseja que
ele compreenda e defenda os seus direitos; mas custa tanto ...
Não se levanta então muitas vezes a tendência de usar 111étodos
cada vez mais fortes? O idealista engajado quer ver os opri-
midos livres da opressão; mas os opressores não quere111 enten-
dçr. Aí, a tentação de pegar nas armas.
As vezes, as armas levam a resultado. O seu alcance, porém,
como de toda violência, é sempre curto. As armas brutalizam e
violentam. O amor envolve, mas deixa livre. Deixa livre, como
só o amor pode deixar. A força do amor estã na sua aparente
fraqueza, que na realidade é paciência, ou «firmeza permanente».
Não devemos perguntar-nos, sempre de novo, se a nossa
ação é realmente inspirada pelo amor, pelo amor maior;? E re-
nunciar a toda a forma de violência? A renúncia consciente à
violência não tem nada de moleza. Não pode ter nada de mo-
leza: onde começa a moleza ou a passividade dos braços cru-
zados; cessou o amor. Pois o amor é ativo e não descansa. A
diferença entre amor e viol~ncia consiste em que o primeiro
prefere plantar a espada no próprio peito, antes que plantã-la
n9 do outro. Deus, para libertar o seu povo, os seus filhos
eieitos, acaba, não destruindo os opressores, mas sacrificando a
si mesmo. A espada, na mão de Deus, toma forma de cruz. Não
ficamos longe deste modelo, se, apesar de cristãos, manejamos
a. cruz como espada?
Conclusão
Responder honestamente, e em toda a liberdade, ao amor-
até-o-fim, e, ao mesmo tempo, colocar a ação do nosso amor
sob a luz do modelo divino; não serã este o duplo apelo da
liturgia de hoje? Aprender de Deus a força do amor, que não
força, mas liberta, e que, apesar disto, ou justamente por isto,
merece e receberá a resposta definitiva, segura e livre: a res-
posta do amor. ;;
Adriano van den Berg, C.M.
Belém, PA
404
Vigésimo Segundo Domingo
do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Dt 4,1-2.6·_8
«Escuta, Israel, as leis que te ensino para. que as pratiqueS>
Contexto lilerário de Dt 4,1-2.6-ll. Esta passagem deve ser situada
e lida no contexto de todo o capítulo. Isto porque Dt 4, além de
formar uma unidàde em si, não manifesta ser •urna continuação com
o que lhe precede, Dt 1-3, e nem com o que lhe segue, principalmente
Dt 5-26. Este capitulo, no entanto, apesar de sua posição especial
no Dt, forma com Dt 1-3 a moldura introdutória à lei deuteronômica.
A época da "origem de Dt 4,1-2.6-ll. Estes verslculos bem como
os demais que compõem Dt 4 são atribuidos à .fonte literária deutero-
nomista. E como tal Dt 4 deve ter surgido Ílo tempo em que os
israelitas sofriam as conseqüências do exílio na'. Babilônia (cf. Perlitt,
p. 32-35; Rad, O.· v., p. 7). Esta constatação é '.muito importante, pois
situa historicamente tanto os redatores desta fànte literária como os
seus destinatários.· Como exilados na Babilõniâ estão longe de sua
pátria, distante de mmtos de seus familiares e amigos, impossibilitados
de viver intensamente a sua fé em Jahve e expressá-la cultualmente com
liberdade já que São forçados a morar em terras estrangeiras, domi-
nados pelo imperialismo e religião babilônicos. É fácil de compreender
que estes exilados israelitas estavam profundamente chocados com tudo
que experimentavam, apesar de terem sido freqüentemente alertados,
sobretudo pelos seus profetas. Muitos caíram num fatalismo nocivo, e
outros, não raramente, apos.tatavam da fé em Jahve integrando-se à
maneira de viver d-0s babilônios. Esta caracte.rização sintética é o
pano de fundo pelo qual devemos ler e interprétar a nossa passagem
Dt 4,1-2.fi.-8 bem como todo o ensinamento COIJ!ido em Dt 4, que é
tardiamente exflico.
Comentário de Dt 4,1-2.ô-8. Tendo presente a situação em que vivem
os israelitas exilados, facilmente se entenderá o _convite tradicional em
Israel: .S'má Israel = escuta, Israel» no v. 1'. Os teólogos deutero-
nomistas também convidam os israelitas no exílio a prestar atenção.
Talvez agora eles dessem mais ouvidos às paiaVras de seus líderes do
que quando estavam na Palestina. E o apelo -~os exilados se refere
a um assunto por demais conhecido, isto é, a , escutar as normas e
as leis que Deus ensina para que as ponham em prática. Já aqui neste
versículo transparece claramente que não se trata do tempo em que
os hebreus ·tomaram pela primeira vez posse da Palestina. Pois a
catequese dos pregadores douteronomistas não versa sobre a explicação
das normas e lei~, como se fosse algo descorihecidO, mas fala sim-
plesmente sobre normas e leis que devem ser praticadas. Estas, no
entanto, não foram observadas quando os israelitas viviam na terra
de Canaã, por isso, segundo os catequistas deu'teronomistas, os israe-
litas foram expulsos de sua terra e levados pa'ra o exílio babilônico.
Mas, se as normas e leis forem cumpridas, Israel poderá tomar uma
segunda vez posse do país que labve, o Deus dos antepassados de
Israel, dá e nele poderá viver.
405
 A estas normas e leis os israelitas não devem acrescentar nada
e nem delas tirar algo, mas simplesmente guardá-las como lahve as
prescreveu (v. 2). Apenas a sua obediência fiel possibilitará a volta
dos israelitas à sua pátria. labve então poderá realizar um segundo
êxodo, desta vez da opressão babilônica.
Além disto a prática fiel das normas e leis de Deus revelará que
os israelitas são sábios e inteligentes diante dos povos (v. 6). E os
povos, no meio dos quais sobretudo os israelitas exilados viviam, vendo
concretamente observadas as normas e leis de lahve, e assim tomando
conhecimento delas, ficarão muito admirados e proclamarão que não
há outro povo tão sábio e inteligente como a grande nação israelita.
Os teólogos deuteronomistas, como se percebe aqui, procuram de todas
as maneiras convidar:_ os israelitas exilados a se converter a lahve
observando a sua Lei, pois para eles é o único meio para provocar
o fim do exilio. E eles continuam sua catequese com algumas per-
guotas bem diretas a seus destinatários. Através delas eles são exorta-
dos a pensar se há mua nação tão grande como a israelita cujos
deuses vivem tão próximos como Jahve está juoto de seu povo (v. 7).
Ou se há outra nação tão grande como a israelita que tenha normas
e leis tão justas como a Lei de lahve (v. 8). Estas perguntas diri-
gidas outrora aos israelitas, são hoje endereçadas a nós. E a' nossa
resposta é apenas uma confirmação intelectual ou também mua opção
vital?
Bibliografia: R a d O. von, Das filnjte Buch. Mose. Deuteronumium ATD 8
Oõttlngen 1968; Per J 1 t t, L., Bundestheologie lm Allen Testament W:iHANT 35'
!' f~~frchener Verlag 1969; K u t s eh, E., Verhelssung. imd Oesetz, BZÁW 131, Bern.ni
Pe. Pedro Kramer, O.S.F.S.
Porto Alegre, RS
Seguoda Leitura: Tg 1,17-18.2lb-22.27
A carta de Tiago é a J• das cartas «católicas> ou ccanõnicaS>,
tipo encíclica, dirigidas a várias comunidades; afim à carta aos Ro·
manos, possui estilo elegante, de caráter didático-gnõmico-sapiencial,
reunindo elementos da parênese hebraico-helenista: exortações morais
com a roupagem da diatribe cínico-estóica,
No começo de sua carta, Tiago aponta a provação/tentação como
fator de alegria e felicidade, porque leva à perseverança (vv. 2-3.12)
e esta, à perfeição (v. 4). Para que isto aconteça, precisa-se da sa-
bedoria de Deus, que a concede sem reserva e sem medida (v. 5),
contanto se peça com fé isenta de qualquer dúvida (vv. 6ss). As apa-
rências enganam. Só a vocação é motivo de glória, quando vivida na
humildade (vv. 9s). As riquezas são transitórias (v. li). A vitória
sobre as tentações acarreta grande recompensa (v. 12). A tentação
não provém de Deus, mas da concupiscência, fonte de pecado e de
morte (w. 13-18). Aos que pretendem responsabilizar, em última aná-
lise, a Deus pelas tentações e pecados, Tiago assegura que a causa
e a origem de todo o bem ( = graça) é Deus, criador e conservador,
- numa palavra, Pai. No v. 17 Tiago, a titulo de ilustração, apela
para imagens dos astros: Deus é pai das luzes, em sentido próprio
e aJegórico, criando e ordenando as luminárias do firmamento (imagem
do bem) para dissipar as trevas (imagem do mal). Como tal, estã
406
acima de qualquer ordem terrestre ou lei cósmica, imutável e perfeito
(sem eclipse) em seu ser e agir; logo, não pode ser autor do mal
e da imperfeição. Não aceitar esta realidade significa incidir na ten-
tação e fraquejar. No _VT é corrente contrapor a imutabilidade divina
às variações dos astros.
Assim corno Deus criou o mundo por um ato livre de sua vontade
(v. 18), assim também, como salvador bondoso, nos regenerou para
uma vida inteiramente gratuita, sem qualquer mérito nosso. Se em seu
beneplãcito nos salvou de maneira irreversível, como permitirá que os
remidos voltem a se perder? Portanto, se não é possivel desconfiar
do amor salvífico de Deus Pai, muito menos na tentação, quando
sua presença é nosso único amparo e base firme de nossa confiança.
A Palavra da Verdade - que no SI 118,43 é a lei mosaica e no NT
é a pregação do Evangelho (!Cor 4,15; IPd 1,3; Ef 1,13) - torna-se
o agente da salvação e filiação divina para quem acata a fé da Igreja
na redenção operada por Jesus Cristo e vive em comuohão com ela.
Tiago exprime a obra salvifica de Deus com mu termo raro: «apo!<Yein»
(= dar à luz). A Palavra da Verdade (= Evangelho) é como que o
princípio materno, por meio do qual Deus «dá à luz» o homem quando
disposto, conferindo-lhe vida nova. Não se trata do batismo, senão
apenas da mensageni salvífica da f·é. O batismo, depois, efetua e con-
suma esse renascimento mediante a fé na Palavra, uma como nova
criação (2Cor 5,17; OI 6,15; Ef 2,10; Jo 1,t2s; 3,3-8).
«Como que primlcias» (v. 18) indica o fim primordial do novo nas-
cimento: o cristão torna-se fruto primeiro, antes dos demrus ou a
parte melhor, - a criatura mais sublime (cf. Rm 16,5; !Cor 16,15).
De uma parte, Deus prepara para si ofertas mais excelentes - as
criaturas humanas - que lhe sejam agradáveis. Por outra, os renasci-
dos constituem a renovação escatológica do muodo já em germe na
Igreja (5,7ss), visando à transiormação de toda criação. As demais
criaturas aguardam ansiosas a redenção do homem (Rm 8,22s), motivo
de júbilo e de esperança. A dignidade de filhos de Deus implica nos
renascidos em responsabilidade: viver a Palavra da Verdade pela fé
atuante. Tiago, antes de explicitar normas cristãs, estabelece como fun-
damento o fato de termos renascido em Deus, filhos de Deus, primícias
do mundo remido. A ação de Deus em nós exige cooperação: estarmos
prontos para ouvir, tardos para falar e se irritar. A injustiça do
homem impede a justiça divina.
Para tanto, faz-se mister depor, além dos pecados de/contra a pa-
lavra, toda e qualquer maldade e pecado_, inclusive as manifestações
externas do mal (cólera etc.). Trata-se de receber com mansidão a
Palavra, formulada na pregação da Igreja e professada no batismo, a
qual produz, não porém sem o concurso humano, mansidão, arnabUidade,
cortesia, humildade e confiança - uma vida nova. :e. o que profetizara
Jeremias (31,33): <incutir-lhe-ei a minha lei, gravá-la-ei em seu cora-
ção>. «Receber a Palavra» na Bíblia é aceitá-la, compreendê-la e
obedecê-la. Exemplo disso é a atitude de Cristo para com o Pai. 1l
preciso aceitar a salvação oferecida por Deus, como ensinara jesus. A
<Vida pela Palavra» é a integração autêntica da. verdadeira vida cristã
de sempre, - Palavra que tem poder de salvar. contanto que seja cum-
prida, como fez Maria. É viver o que se crê. Ilude-se aquele que ouve,
aceita com prazer a Palavra, sem pô-la em prática. Tal fé não basta
para salvar-se, antes, tornar-se-á fatal.
407
! Uma religião sem as boas obras - santificação própria e caridade
ao próximo - é vã. Entre os primeiros cristãos deviam existir res-
quícios de formalismo; em conseqüência, Tiago quer esclarecer e reti-
ficar tal conduta. Para uma piedade autêntica não bastam prãticas
externas e ritualismos frios. Faz-se mister, além da integridade moral
(coração puro), uma vida ativa nas obras de caridade fraterna e de
misericórdia. Na Bíblia os carentes proverbiais são as viúvas e os
órfãos. A tese de Tiago é: nem santificação própria sem caridade
nem caridade sem santificação própria. } a Deus.
Bibliografia: K no e b, O., A carta do Apóstolo Tiago (trad. de E. Binder),
Vozes, Petrópolis 1970; S a 1 g u e r -0, O. P., E2lstola de Santiago Biblia Comen-
tada, VII, BAC/Madrld 1965; O a r o f a l o, S., La Sacra Bihbia/Le Epistole
Cattollchel Mariettl, Turim 1949; M u s ser, F., La lettera dl Giacomo, ln Commen-
tario teo ogico dei NT Pafdéla, Brescla 1970; O eh ar d, B., etc., Verbum Dei,
III (NT), p. 403ss, Ê:erder, Barcelona 1957; A 1 o n s o j., Carta de Santiago,
NT (JIJ). BAC/Madrld 1962; P f r o t - C J a m e r, La sãlnte Bible XII p 393ss
Paris 1951. ' ' ·
P. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Terceira Leitura: Me 7,l·Sa.14-15.21·23
cDeixando de lado o mandamento de Deus,
vds vos apegais à tradição dos homensz,
As «leis de purificação> desempenharam um papel importante na
mundivisão e na observância judaicas do tempo de Jesus. Israel devia
ser uma nação pura e santa e viver numa terra pura e santa, distinguindo-
se por esta pureza e santidade dos outros povos, dos pagãos. No ambien-
te de Israel a pureza é tanto uma pureza cultuai ou ritual como - so-
bretudo graças à influência da pregação profética - uma pureza moral.
Na religião do judaísmo tardio, a exigência da pureza cultual começou
a predominar demais sobre a dimensão interior da religião.
Pode-se perguntar em que medida o povo todo acompanhou este
proc~sso. Os costumes descritos em vv. 3-4 dizem respeito somente aos
~acerdotes ou também aos leigos? Seja corno for, a importância dada
a pureza Jegal trouxe no bojo urna discriminação infeliz. Para os fa-
riseus era impuro quen: pertencia ao epovo da roçfil) (o «am ha-arez»),
os saduceus, os samantanos e os pagãos. Para os essênios e qumra-
n!tas também os fariseus eram impuros e eles retiraram-se de jerusa-
lem e . do templo, achando-os profanados porque servidos por sacer-
dotes impuros. Para eles a sua comunidade no deserto era o novo
«santuário de Javé».
. . Na opinião d~s fariseus, a pretensão de jesus de ser um líder re-
hg1oso e de reunir em redor de si adeptos obriaava-o
0
a submeter-se
às convenções tradicionais, isto é, às estruturas e costumes vigentes
na «classe». Para eles a observância das «leis de purificaçãol> era uma
primeira exigência para admitir uma tal pretensão.
_ Ora! J~~s fez o ~ontrário. A questão da pureza ou impureza legais
nao atribui 1mportânc1a mesmo. Ele senta-se à mesa com pecadores e
p~blicanos, tidos como impuros. Não exige deles uma purificação cultual;
nao mostra reserva nem receio de ser contagiado pelo contato com
~les. Ele fala . com leprosos e toca nelesi permite que a hemorroíssa,.
impura n~ mais alto grau, toque n'Ele; e não chama a atenção dela
por ser impura e tê-lo maculado pelo toque da mão dela (e!. Me
5,25-34 e 6,56).
408
Na discussão com os fariseus trata-se explicitamente do problema
desta atitude de jesus. A réplica de jesus é veemente. Ele censura os
fariseus de hipócritas e desmascara o legalismo dos mesmos mediante
uma denúncia profética: a religião de vocês é invenção humana. Ao
sistema deles jesus opõe: cBem-aventurados os puros de coração, por- .
que verão a Deus» (cf. MI 5,8). Não é uma coisa exterior que faz o
homem impuro, nem são ritos externos que o purificam. A impureza
vem do coração e é o coração puro que faz o sacrifício agradável
Seria outro engano e hipocrisia a partir clisso entender a pureza
do coração como uma pureza moral. Puro de coração é aquele que
ê sincero. E sincero precisamente quanto à sua culpa. Pureza evangéJica
é sinceridade, veracidade. Como aquele publicano era puro de coração
- e não inocente! - e voltou justificado para casa depois de ter
'
reconhecido: «Ó Deus, tem piedade_ de mim, que sou pecador» (Lc 18 13; 1
cf. 23,39-43).
Por sua atitude Jesus derruba as fronteiras entre o profano e o
sagrado, o mundo dividido em coisas e costumes uns santos outros
profanos, uns divinos outros diabólicos, aos quais o homem estã entre-
gue apesar de si mesmo. Porque Jesus põe fim a tudo isso, à distinção
entre o profano e o sagrado como vendo de fora, Ele pôde procurar
e acolher os pecadores. Ele clirige-se a eles para que o coração do
homem se torne puro e livre. Nesta pureza e liberdade reside a salva-
ção do mundo e o início do sacrifício agradável a Deus. Salvando o
homem dos conceitos farisaicos do sagrado e desmascarando-os como
invenções humanas em que Deus não tem parte alguma, Jesus abre o
coração humano para o verdadeiro reino de Deus. Com isso também,
Jesus devolve ao homem a soberania sobre o mundo. Neste sentido
Me 7,19b: «Jesus declarava puro todo alimento> soa como uma re-
criação do mundo, comparável à criação do mundo pela Palavra de
Deus: «Deus viu que tudo era muito bom> (On 1,31). A maldade
vem do homem, do seu interior (Me 7,21-22). A salvação desta mal-
dade vem de Deus como uma graça e não da observância de ritos, de
costumes, de enclausuramento em recintos sagrados, vestes sagradas etc.
Bibliografia: Além de comentãrJos, especialmente: Ch. E. C a r 1 s t o n, The
Things tbat deflle (Mk 7,14) and tbe Law ln Matthew and Marlc, em NTS 15
(1968-1969), 75-96; \V. O r u n d m a n n, Dle Oeschichte ]esu Christi, Berlim 19592.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Tema Prlnclpal
A RELIGIÃO QUE PROCEDE DO INTERIOR
Sugestões para a Homilia
Introdução
O Evangelho deste domingo nos coroca diante de uma po- \,,
lêmica entre Jesus e grupos de fariseus e escribas. Aborda a
questão da religião interior e da justificação pelas prãticas inte-
409
 riores. Jesus nunca se pronunciará contra a observância dos pre-
ceitos da Lei que levam o homem a trilhar o caminho da feli-
cidade· e do encontro com Deus, mas se levanta violentamente
contra todos os que pensam estar «quites» com Deus através
'de certas práticas exteriores e feitas sem espírito intimo. É do
interior do homem que deve provir o relacionamento com Deus
e nunca apenas de ritos vazios.
Corpo
1. Os ritos e as práticas
Faz parte de nossa sinceridade de cristãos analisar cons-
tantemente a qualidade de nosso relacionamento e de nosso po-
sicionamento perante Deus e os homens. Somos homens religio-
sos na medida em que nosso ser mais profundo está orientado
para esse duplo amor que se resume num só: o amor do Senhor
e dos irmãos. A Igreja católica e seus membros dispõem de uma
série de expressões exteriores dessa adesão a Deus através de
Cristo. As diferentes formas dos sacramentos (batismo, comu-
nhão, matrimõruo etc.), as modalidades de orações vocais (Pai-
nosso, Ave-Maria etc.), as prescrições da participação domirucal
da missa, do jejum, da esmola etc., constituem al'gumas das prá-
ticas religiosas mais comuns. Sem querer ser pessimista e sa-
bendo que no seio da Igreja há hoje muita sinceridade, somos
obrigados a reconhecer que muitas vezes nossos católicos vivem
na casca das coisas. Sabemos que o Batismo nos coloca num
universo diferente, nos faz nascer para uma nova ordem de
coisas, faz com que morramos para o homem velho e nasçamos
para o mundo de Cristo. Muitos batizados, no entanto, são meros
ritos exteriores. Os cursos de batismo são insuficientes para que
os candidatos aos sacramentos possam atinar com o essencial
do rito. Os que pedem o batismo para os filhos pensam que
estão cumprindo sua «obrigação religiosa» de batizar as crianças
e se consideram «satisfeitos» interiormente. Reflexão análoga
deveríamos fazer com relação aos outros sacramentos que apa-
recem muitas vezes como «lranqüilizadores» da consciência e
«apaziguadores» interiores. É como se o homem tivesse medo
de Deus e colocasse certos ritos que funcionariam como pactos
que o homem faz com uma divindade exigente. Muitas «rezas»
e orações, a participação mais ou menos mecânica da missa
dominical se situam um pouco na mesma linha. Os ritos ficam
muito exteriores e se revestem de cunho até mesmo supersticioso.
Certos católicos pensam «varar» os céus com orações e preces
mágicas. Funciona muitas vezes o esquema dôs cultos pagãos.
410
2. :e do coração que procede nosso relacionamento com Deas
Estamos lutando pela implantação de uma prática ~islã
marcada pela autenticidade. Desejamos que todas as manifes-
tações exteriores de homenagem a Deus sejam provenie.n~es. do
coração. É a partir desse interior, desse âmago, desse no mbmo
onde somos nós mesmos que brota nossa , resposta às exigên-
cias e às intenções de Deus a respeito de nós e dos nossos
irmãos. Aqui deveriamos aprofundar o·. tema d~ cónversão~ A
conversão é muito mais do que uma «vida extenor de oraça0>>.
É antes de mais nada um esforço mais ou menos calmo e cons-
tante de mudança do coração. Morremos ao homem velh? e se
instala em nossa pele o homem novo do Evangelho nascido ~a
morte e ressurreição do Senhor. Há em nós uma transformaçao
interior lenta, gradativa, mas constante. A partir desse nó int~­
rior realiza-se nossa adesão ao mundo de Cristo. Nossas ati-
tudes são tais que vivemos no cli!11a da vida nova de. Cri~to.
Ao se aproximar da fonte do batismo o homem está mter10r-
mente convicto ile que este banho de purificação expnm1ra seu
desejo sincero e
Intimo de se vestir de Cristo._ Labutando e
trabalhando par.a construir uma terra de fraterm?a?e, homens
fracos se aproximam do pão da vida na Eucansba. Do~ram
seus joelhos diante de um sacerdote 110 sacramento da Pemtên-
cia e, não por uma disposição mecânica, mas porque quer~'.11 ~er
de Deus acolhem o gesto do sacramento da Reconc1haçao.
Cantam ~ louvam o Senhor em orações oficiais ou preces par-
ticulares porque querem que esse exterior corresponda a um
Intimo sentimento de adoração e de Jouvot diante do Senhor.
É do coração que procedem todas essas. manifestações. Não
admitirá esse homem novo estar diante de Deus, de um
lado, nos ritos exteriores e de outro conviver com incoerências
interiores. Nada' mais repugnante ao cristão sincero do que a
máscara. Em todas essas manifestações el'es cuidam de escapar
da frase de Is'aías retomada por Cristo no Evangelho deste
domingo: «Este::povo honra-me com os lábios, mas seu coração
está longe de niim, pois me dão um culto vão».
3. Tradições humanas ou exigências de sinceridade?
Como é difícil fazer desaparecer uma mentalidade dualista
que animou tanta gente no passado! N~o julga~?s nin~ém;
mas é necessário afirmar que esse domlmo da pratica rehgmsa
separado da vida não pode satisfazer profundamente o homem.
Não existe o culto de um lado e a vida do outro lado. Não
existe o domínio de Deus que se passa nas dependências dos
.. 411
 templos e nas formas rituais de um lado e a vida profissional,
fraterna do outro. Há uma interligação dessas duas realidades.
Todas as tradições humanas no campo da prática religiosa
podem e devem ser revistas. O homem contemporâneo, quando
sincero, quer ver coerência. Não admite rituais separados da
vida. De tempos para cá sentimos que a comunidade dos cristãos
sem negar a importância dos ritos e dos sacramentos, gestos
da fé, está convencida de que é necessário que a vida seja
marcada por um prolongamento de suas convicções Intimas e
é extensão da vida nova que borbulha em seu peito. Os que
se aproximam dos sacramentos e colocam os gestos dos ritos
estão profundamente interessados em dar um testemunho de
compromissamento com a verdade, com a justiça e com tudo
aquilo que possa manifestar Deus e seu louvor no coração da
realidade humana e cósmica. Os movimentos de comunidades
de base nos quais sentimos entre outras coisas uma vontade
de solidariedade com os irmãos e onde se experimenta, a vida
fraterna, as campanhas de diferentes tipos em vista dos direitos
do homem, os esforços intensos e sérios de lançar a fé na vida
e a vida na fé. Essa exigência de laços entre rito e vida provém
do Evangelho. Jesus sempre se mostrou altaneiro aos ritos exte-
riores e levou ao mais alto píncaro o critério supremo dÓ agir
do homem que é o amor.
Conclusão
O apóstolo Tiago na segunda leitura deste domingo nos
lembra que a religião pura e sem mácula, além de consistir em
nos mantermos puros interiormente, se dá na vida de caridade
expressa na visita aos órfãos e viúvas. Todo o contexto atual
da Igreja chama atenção para essa verdade da vida cristã que
passa pelo interesse efetivo pefos outros que para nós se chama
caridade e que foi derramada em nossos corações. Os ritos e
as expressões exteriores de religiosidade exprimirão esse «cora-
ção» do homem intimamente ligado a Deus e ao serviço fraterno
dos irmãos.
Almir Ribeiro Guimarães, O.F.M.
· Petrópolis, RJ
\
412
Vigésimo Terceiro Domingo
do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Is 35,4.7a
Os quatro versículos da 1~ leitura deste domingo formam um con-
junto homogêneo com todo o capihtlo 35 de Isaías. Embora curto este
capítulo, através de suas imagens e metáforas, t:az uma mensagem
cheia de alegria e felicidade. --Faz um contraste vivo com o . c_ap. 34
em que se descrevem os castigos e as desgr~ças que sobr.ev1rao aos
odiados inimigos do povo de Deus, os edom1tas. Pelo estilo e pela
temática assemelha-se muito à segunda parte de Isaías (Is 4ü-55). Por
isso muitos exegetas julgam que tenha sido composto na época ~o
exílio; mais precisamente, pelo fim do mesmo, quando. se r~acend1a
nos corações dos pios judeus a esperança do retorno - a Pátria e da
manifestação renovada do poder de Deus.
Todo o trecho vibra de explosões de alegria e júbilo, pela ma-
nifestação de Deus. Reanima os desesperançados, fortalece os f~acos,
porque l)eus vem. Vem com poder, em favor de seu povo. Ele vai dar
saúde a JS doentes, vai fazer brotar água no deserto, transformando-o
num jardim.
o v. 4 é um convite ao encorajamento, dirigido a pesS?as teme-
rosas e sem esperança. Certamente pessoas que sofreram muito e por
isso não conseguem mais ter motivos de esperança. Os contemporâneos
do Profeta estavam tristes, desanimados, diante,.. do prol?n?amento do
exílio e de tantos sofrimentos. Estas palavras tem o obJet1vo de rea-
nimar os pusilânimes, com a promessa da próxima intervenção divina
que vai trazer libertação e salvação. O Profeta, em nome ?e _Deus,
anuncia que Deus mesmo, em pessoa, vem restabelecer a 1usttça e
dar a cada um a sua recompensa. Entrevê-se na frase uma ameaça
dirigida provavelmente, à Babilônia.
1
Vv. 5-6. A chegada de Deus vai trazer consigo uma total trans-
formação da natureza. Tudo o que tiver defeitos será ;:orrigido. Ce~~ns,
surdos mudos1 coxos recuperarão suas faculdades, serao restabelecidos
em su~ saúde perfeita. Javé é o Deus da vida, e quando e onde Ele
chega, a vida desabrocha e se realiza em plenitude. Na resposta que
Jesus dá aos discípulos de João (Mt 11,5) recor;e a e.ste texto para
mostrar seu caráter de Messias. «És tu o que ha de vir, ou devemos
esperar por outro?» (Lc 7,20). Curando cox~s, dando vista a cegos,
fazendo ouvir e falar surdos e mudos, jesus dtz: o Deus que prometeu
intervir para libertar seu povo de todos os males já está n_o meio de
vós. Deus com seu Reino chegou. No Evangelho deste domingo lemos
a cura do surdo-mudo. E o povo entusiasmado exclama: «Ele fez bem
todas as coisas. Fez ouvir os surdos e falar os mudoS».
Certamente para um primeiro plano, para o qual o profet.a ~~de,
que é a restauração de Israel, estas. expressões têm um valor s1mbohco.
Com jesus elas vão tomar um sentido real, embora mesmo para jesus
as curas não tenham um fim em si mesmas, mas o de despertar a
fé para algo de muito mais importante que ele veio fazer.
Vv. 6-7a. Da metáfora da restauração da saúde, o Profeta salta
para outra, muito cara aos hebreus.: o das ~guas q~e jorram no ~eserto.
A escassez de água é uma reahdade muito sentida na Palestina. E
413
'1
1
1
1
como a ãgua é absolutamente indispensável à vida, nada melhor do
que esta imagem para representar o Deus da Vida: aquele que fez
jorrar ãgua do rochedo (Ex 17,1-7; Nm 20,2-11) vai fazer também
jorrar água no deserto e correr torrentes na estepe. E. assim Deus
manifesta seu poder fazendo desabrochar vida, onde antes só havia
sinais de morte.
Blbliograj/a: Comentários de C o r d e r o, M o r i ar t y, P 1 r o t - C J a m e r,
Pen na.
Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
Santa Maria, RS
Segunda Leitura: Tg 2,1-5
A fé em Jesus Cristo ressuscitado, na vida prática, tem exigências:
não se conciJia com a discriminação entre pessoas, no trato parcial com
ricos e pobres nas assemb1éias cristãs. Tiago ilustra sua asserção re--
lativa à acepçãQ de pessoas com exemplos tirados da vida prática
diária, salientando outra contradição na vida de fé. Quem dá prelêrên-
cia aos ricos, age mal. A fé - adesão intelectua1 e afetiva à pessoa
e doutrina de Jesus glorioso - liberta da adulação calculista ou louva-
minheira face aos grandes. Não se podem apreciar as pessoas só pelo
prestigio social. Valem especialmente pelo que são diante de Deus.
Entretanto, diante de Deus somos iguais, corno criaturas e c.:orno peca_..
dores. Tiago faz um paradoxo: de um lado, a verdadeira glória de
Cristo, - de outro, a vanglória dos abastados. Deus não olha para
o exterior, sonda o coração (lSrn 16,7). As categorias sociais, mera-
mente humanas, pecam não raro contra a justiça e o amor. Já não
podem ser aplicadas no trato diário entre cristãos.
O principio da não-acepção de pessoas é ilustrado com um exemplo
(vv. 2ss): um rico participa do culto, com lugar determinado, ao lado
de outros, pobres, sem lugar determinado. E quase praxe ter-se todo
cuidado pelos de elevado cstatus> social, destinando-lhes lugar de
honra, ao passo que os mais simples, os pobres, são bastante omitidos,
obrigando-se a ficar de pé ou a buscar um lugar qualquer no chão.
O trato privilegiado com os ricos, a negJigência para com os pobres,
nãp são atitudes cristãs, porque a Igreja é de todos, tanto para os
pobres como para os ricos. O cristão, que assim procede, é mau juiz1
pois se deixa levar pela prevenção e pelos partidarismos, traindo sua
vocação e missão. De resto, o próprio VT já ferreteava semelhantes
pessoas, as quais não se escapariam do juízo de Deus (cf. Lv 19,15;
Dt 1,17; 16.19; SI 82,2; Eclo 12,1; Pr 18,5; 24,33; Am 4,1; 5,10-15;
8,4-7; Is 1,17.23; 5,20-23; 10,1-3; Mq 3,9-12).
O Messias !ará deveras justiça (cf. Is JJ,3ss; Mt 5,3; 11,28; 22,16;
Lc 6,24; 16,19-31; 18,24s). S. Gregório Magno (PL 76,121 Is) aponta
jesus, corno exemplo de não-acepção de pessoas: não marcou presença
na cura do filho do oficial de Cafarnaum (jo 4,46-54), mas fez-s1>
presente na do servo do centurião (Mt 8,5-13) .. Como pode prevalecer
aquele que mede os homens segundo padrões que eles mesmos se
aplicam (Mt 7,1-2)? Como tornar atraente e persuasivo o Cristianismo,
se a vida prática contradiz os imperativos da fé e da caridade? Tal
conduta de favorecimento aos ricos e de restrições aos pobres não
é um dos principais escândalos para os de fora? Conviria questionar:
serã que não se aplicam estes padrões de vida na existência de nossas
comunidades cristãs como algo de natural e normal? Não estaremos
414
sendo inconseqüentes e, portanto, maus juízes? E não estaremos du-
vidando a quem servir: a Deus ou ao mundo? Se temos fé, vivemos
como não a tivéssemos.
Uma coisa está fora de qualquer discussão: Deus escolheu os
pobres para herdeiros do Reino (v. 5) em vez de enriquecê-los mate-
rialmente. Se Deus assim age, nós não podemos continuar insensatos.
Devemos imitá...Jo. Deus, em sua be:rievolência, não nega a ninguém o
seu amor, muito menos aos pobres e desamparados. Aliâs, aquilo que
o mundo julga estulto, Deus escolheu para confundir os fortes (cf. 1Cor
1,27), uma vez que tais pessoas, com o infortúnio, compreendem melhor
a necessidade da salvação, tornando-se mais suscetíveis à misericórdia
divina (cf. MI 13,22; Me 10,23; lTm 6,9s) e mais livres para amar
a Deus (cf. Mt 5,3ss; 19,16-30). É a esses que jesus dedicava de
preferência seu amor e sua mensagem: <Bem-aventurados os pobres
porque deles é o Reino de Deus> (Lc 6,20).
Tiago destarte é fiel testemunha do Senhor jesus. Nem por isso
os ricos ficam excluídos da salvação. A predileção especial pelos pobres
e marginalizados, nos evangelhos, é uma constante. Logo, devem ser
tidos como ricos na fé; com efeito, a verdadeira riqueza do homem
é sua eleição da parte de Deus, é a fé, a herança eterna (Mt 5,3;
2Cor 6,10; 8,9; Ap 2,9). Em virtude disto, sejam honrados e amados!
Se Deus os ama e honra, por que não nós? Por que não usar os
mesmos padrões? Infelizmente parece ocorrer o contrário em nossas
comunidades. Quanta indiferença para com os desprotegidosl «Como
pode amar a Deus1 a quem não vê, se não ama a seu irmão, a quem
vê> (cl. ljo 4,20)? Vale a censura de Tiago: «Vós desprezastes o
pobre> (2,6) 1 De fato, quanto jufzo temerário ao atendermos mais às
aparências!
Bibliografia: CI. 22':' Domingo do Tempo Comum, Ano R. p. 408.
P. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Terceira Leitura: Me 7,31-37
cB/e fez tudo bem feito»
A passagem do Antigo Testamento (Is 35,4-7a) foi escolhida por
causa da citação impllcita ou alusão que se encontra na terceira lei-
tura: eJesus) fez tudo bem feito. Fez os surdos ouvir e fez os mudos
falar> (Me 7,37). Este procedimento literário evoca toda a problemática
da relação entre o Novo e o Antigo Testamento. Tais referências a
textos do Antigo Testamento nem sempre querem dizer somente que
tal texto isolado, tirado de seu contexto, é uma profecia literalmente
cumprida por jesus. Muitas vezes tais referências são multo mais im-
portantes e querem insinuar: para captar o pleno sentido de um certo
ato ou de um certo modo de proceder de jesus é bom olhar todo o
contexto a que o texto citado pertence. Nestes casos as citações ou
a1usões ao Antigo Testamento são, pois, verdadeiras cpistas exegéticas»,
chaves para a devida interpretação do texto do Novo Testamento... e
vice-versa.
Tudo indica que se deve interpretar deste modo a alusão a Is
35,5s em Me 7,37. Qual é, então, o contexto de Is 35,5s? Estes ver-
s!culos pertencem à unidade literária e temática de Is 34 e 35. Estes
capítulos formam um assim chamado cdlptico //terdr/o>, um quadro de
415
 dois painéis. O primeiro paineL apresenta uma imagem bem. apoca-
líptica da futura desgraça que at;ngirâ os inimigos do povo de Deus.
O outro faz uma descrição paradislaca da futura salvação do povo eleito.
Em outras palavras, trata-se de um dlptico fortemente antitético da
ação escatológica de Deus. Referindo-se a desgraças concretas que todo
mundo conhece (pragas provocadas pela maldade dos homens: guerras,
derrotas, massacres; e pragas causadas pela natureza: fogo devastador,
'[ perigo de animais selvagens, secas e tempestades), ele lhes dá(rnedidas
cósmicas (cos céus se enrolarão corno um livro», isto é, se amassarão
como se amassa uma folha de papel). Usa-se o binômio lõha e bõhü,
usado em Gn 1,2 para dar urna idéia do caos que reinou no mundo
antes que se procedesse à distinção dos vários elementos. Este .binômio
usa·se somente mais uma vez na Bíblia, a saber, em ]r 4,23. Toda
esta obra de desgraça ou de redução ao nada prevê.se para «O dia
da vingança do Senhor, o ano de desforra para o defensor de Sião»
(Is 34,8). ··
, Este dia de vingança· para os inimigos do povo eleito será, para
este mesmo, um dia de salvação (Is 35,4). Para descrever esta sal...
vação, o autor faz o contrário daquilo que fez em cap. 34. Constrói
um mundo bom de que elimina:> tudo que é desgraça que afeta, seja "
a natureza (vv. 1-2.6b-9a), seja o homem (vv. 5-6aHl). Ele prevê, pois,
a recriação de um mundo paradisíaco, do '-próprio paraíso Esta re-
criação do paraíso é a manifestação da glória e da majestade do Senhor
(vv. 2b-c). . se tornou logo a mais importante confissão batismal. Este Jesus, que ·,
Ora aludindo a Is 35,5s, Me 7,37 quer dizer: em jesus realiza-se
esta re~riação; n'Ele é chegado o dia da salvação; n'Ele ~anif~sta-s;
a glória de Daus. (Lembre-se como, no Evangelho de ]oao, isto e,
em uma etapa mais avançada da tradição e da teologia, se interpretam
os milagres de Jesus como sinais e como manifestações da glória do
Pai!) Para tirar qualquer dúvida a respeito deste sentido dos milagres
de jesus, introduziu-se à alusão a Is 35,5s. com_ as poucas pal~vras:
<Ele fez tudo bem feito». Vê-se nesta afirmaçao uma evocaçao da
frase com que o autor de Gn 1 encerra a descrição da criação: «Deus
contemplou toda a sua obra e viu que tudo era muito bem feito» ( Gn
1,31). A obra de jesus é a nova criação, o início da renovação da
face da terra.
: Esta interpretação dos milagres ou sinais que Jesus fez provoca
uma interrogação. Se aqueles poucos e despretensiosos milagres com
que jesus veio em socorro aos doentes e pobres de seu tempo inau-
guraram (a realização de visões apocalípticas sobre) a renovação da
_face da terra, a chegada do reino de Deus e o «dia da séjllvação»,
isto não vale a fortiori de llill aproveitamento maciço das novas possi-
bilidades na área da técnica, da cultura, da medicina, da agricultura,
da comunicação em favor da humanidade? Corno, aliás, o contrário, isto
é o uso maciço destas possibilidades para fins egoístas e bélico~ amea-
ç~ -realizar a outra face do díptico 1 ( cf. A enciclica de joão Paulo II :
O Libertador do Homem, e.o., n<) 8: Redenção: renovada criação; n° 16:
Progresso ou ameaça?). ·
A teologia dos milagres de j~us, exposta acima, o evangeJ,sta pro-
vavelmente a teria encontrado na tradição existente, de que el~ lançou
mão quando escreveu o· seu livrinho sobre Jesus. O lugar qu~ ocupa
na, composição do evangelho de Marcos e a função que o evangelista
.atribui à narração deste milagre na estrutura do mundo podem •for-
necer uma pista para descobrir a teologia marciana deste fatp.
416
Costuma-se interpretar os gestos de jesus que acompanham a cura
do surdo-mudo (7,32-34) e do cego (8,23-25) como resquícios de gestos
e fórmulas mâgicas (cf. a transcrição da palavra: <E/falá»!). Mas é
bem provável que no segundo evangelho se revistam de um val~r
simbólico, sugerindo-se o lento progresso dos discipulos no reconheci-
mento de Jesus. Este reconhecimento é um «milagre> muito maior do
que os demais! Como confirmar esta hipótese?
Nas Pistas Exegéticas de Me 6,30-34 (cf. p. 346's) realçou-se que
Marcos quis ligar todas as passagens entre 6,30ss e 8,27ss pelo tema
«comer» e «pão> que, além de dominar nas duas narraçõ~s da mul-
tiplicação dos pães (6,35-44; 8,1-10), se retoma co~o um fio de. ouro
em 6,52; 7,2.5; 7,"ZJ; 8,14.16.19. junto com este fio de ouro vat um
outro, a saber, aquele da incompreensão dos discípulos (6,52;. 7,17-1~;
8,4.15-21). Na última passagem jesus lhes pergunta: < ... Amda .nao
entendeis, nem compreendeis? Ainda tendes o coração empedernido?
Tendo olhos não vedes e tendo ouvidos, não ouvis? Já não vos lem-
brais ... ? ..'. Como é que ainda não entendeis?» A pergunta grifada
afigura-se como uma citação implícita do Antigo Testamento. Ora, esta
queixa de jesus é precedida pela cura do surdo-mu.do (7,31-37) e se-
guida pela cura do cego (8,22-26) e. . . logo depois ~ar~os narra a )
confissão de fé de Pedro (8,27-30). Esta marca a primeira vez que J
os olhos de um homem se abrem para ver quem Jesus rea.lm~nte é,
e a primeira vez que uma boca humana profere aquela conf1ssao que l
cura o surdo-mudo e o cego é o Messias que abre o «coração endu-J
recido (6,52; 8,17) dos hom~s para ver. e reconhecer n'Ele. ~ Cristo
de Deus. Este reconhecimento é um «nnlagre>, da graça divina. Mt
16,17 exprime esta mesma teologia, mas com recursos literários total-
mente diferentes! A perspectiva em que Marcos colocou a cura do surdo-
mudo e do cego sobrevive desde os primeiros séculos na cerimônia do
rito batismal, que faz o sacerdote tocar (com saliva de sua boca) os
ouvidos e os lábios do catecúmeno, dizendo: «Effatá::ti.
Bibliografia: Comentârlos de Isaias e de Marcos. A. R 1 eh ar d s o n, Thi
Miracle Storles of the OospelS; A. \V e 1 s e r, O que é milagre na Blblia, S.
Paulo 1978; R. H. F u 11 e r, Interpreting the Miracles; C. H. D o d d, Accordlng
to the Scriptures •••
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Tema Principal
Como «fazer bem~ a Evangelização hoje? Como ser e anunciar o
Reino de Deus na atualidade de nossa realidade? Isto é: fazer os surdos
ouvirem e os mudos falarem e assim, ela, a Igreja «ser admirada>,
dar provas de veracidade e credibilidade. Ser força libertadora para
todos. Tanto para pobres como para ricos.
Sugestões para a Homllla
Corpo
1. A f1fopia escatológica - sua negação
Cristo prova que ela é possível e que n'Ele já começou
417
 Na primeira leitura, no cap. 35, !saias, em contraste com o
cap. anterior, 34, descreve com imagens vivas, dentro de um
estilo literãrio próprio ao gênero de vida de um povo nômade
e rural, o que serã no futuro quando o Messias vier e inaugurar
o seu Reino: «Então se abrirão os olhos do cego. E se desim-
pedirão os ouvidos dos surdos; então o coxo saltará como um
cervo e a língua do mudo dará gritos alegres». No Evangelho,
Marcos apresenta Jesus multiplicando gestos messiãnicos, por-
tanto, libertadores, evangélicos. Ele vai tomando topia esta uto-
pia descrita e sonhada pelo profeta, já na Antiga Aliança. E
por isso Ele é admirado, toma-se motivo de credibilidade, con-
vence, converte, liberta seus ouvintes!
Na 2• leitura, Tiago, homem prãtico, mais pastor do que
teólogo, estã às voltas com os problemas em sua Comunidade!
Há separações sociais, discriminações, distinção de pessoas, pri-
vilégios gritantes: os pobres são desprezados, os ricos temidos,
bajulados, incensados. O espírito de subserviência é prova da
fraqueza da crença de quem serve e de- quem é servido.
Na 3• leitura, Marcos, dentro do contexto do cap. 7, apre-
senta Jesus em discussão com os fariseus, leigos piedosos e
observantes. As tradições religiosas judaicas, como todo o AT,
recebem sangue novo. São criticados e purificados de tudo aquilo
que oprime, cega, sufoca a liberdade dos verdadeiros adoradores
do Pai! Surge uma nova Religião, uma nova Ética, um novo
modo de se posicionar perante Deus, que é Pai; perante os
homens, todos são próximo, filhos de Deus e portanto irmãos;
perante o mundo, as coisas, a Sociedade, a Lei, o Direito, a
Economia, a Política e a Família. Tudo isto são manifestações
do Reino de Deus quando libertam o homem e o tornam mais
consciente e responsável' de sua dignidade e vocação. São va-
lores conquistados por todos e que devem ser colocados a ser-
viço de todos e não de uma minoria privilegiada. . . Quem enten-
der isto, quem fizer isto, uão é mais surdo-mudo, coxo, leproso;
vai-se tornando um homem-novo e nele o ~eino de Deus, o novo
mundo já se torna realidade.
2. A evangelizarão como obra libertadora:
faz ver e ouvir melhor a realidade
!
Para nós, em específico, na América Latina, depois de Me-
dellln com suas três opções básicas: pelos pobres, pela liber-
tação integral e pelas Comunidades Eclesiais de Base, agora
retomadas, aprofundadas em Puebla, a Igreja vai-se convencendo
a si mesma, vai-se convertendo mais ao Evangelho e aos seus
desafios e compromissos sociais, coletivos comunitários e estru-
418
turais. Vai-se tornando menos surdo-muda, menos coxa, por
isso mesmo mais lépida, mais explícita e capaz. para evangelizar
hoje e agora, no «aqui» e no «agora» da realidade onde está
e deve estar como luz, sal, fermento, dimensão de verdade e
de «dia do Senhor». Ela é desafiada a ser profética e compar-
tilhar com todos aqueles que anseiam por uma Sociedade outra,
onde não haja ricos e pobres discriminados estruturalmente.
Onde uns exploram, às mais das vezes sem o saber (cegos -
cegueira), respaldados por mecanismos intrinsecamente injustos
(os ricos). Outros, a maioria, são pobres que nem percebem as
causas (cegos - cegueira), reais e estruturais, de sua situação
de explorados.
Conclusão
Na tentativa de motivar e sensibilizar os ouvintes para co-
nhecer e estudar o documento de Puebla, fica como sugestão:
apresentar os itens mais eloqüentes do n. 2 da 1• parte:· visão
pastoral da realidade latino-americana: «Visão sócio-cultural da
realidade latino-americana», deste documento intitulado «Evan-
gelização no presente e no futuro da América Latina - Con-
clusões da Conferência de Puebla».
Vai ficando mais claro para muitos, clero, leigos e interes-
sados (passam a ouvir e ver com mais lucidez!), que os pobres
e marginalizados são os primeiros destinatários do Evangelho;
eles são também os primeiros portadores e mensageiros da
Boa-Nova.
Para eles o Evangelho é mais denso de verdade, mais
prenhe de libertação 1 «Reconhecer isto, tanto para a hierarquia
como para leigos qne ocupam outro lugar social já é fruto de
compromisso de solidariedade com os pobres».
Nunca Tiago, Marx também, apostrofaram, de modo tão
candente, uma sociedade que condena a maioria dos seus membros
(para nós na América Latina esta maioria constitui a própria
Igreja ... !), a uma vida inumana como é ainda hoje a de nossos
países latino-americanos.
Se a voz de Medell!n como também a voz de Puebla, a voz
da Igreja que tenta e busca ser a voz do Evangelho, não forem
ouvidas, tanto pelos Estados como pela própria Igreja, a culpa
recaia sobre as nossas cabeças de pretensos cristãos 1 A nossa
postura de fé, como cristãos e como Comunidade cristã, por
paradoxal que seja, não nos libertou ainda da surdez e cegueira
de nossas injustiças e males sociais.
Frei Cristóvão Pereira, O.F.M.
Vale do jatobá, cidade industrial, Belo Horizonte, MO
419
 Vigésimo Quarto Domingo
i'
do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
'·
Primeira Leitura: Is 50,5-9a
Este trecho está em consonância com o Evangelho desse domingo,
em que Cristo, após a profissão de fé de Pedro, revela que ele terâ
que sofrer muito, ser rejeitado e condenado à morte pelos chefes
do povo.
O trecho de Isaías, proposto para a leitura de hoje, é o terceiro
dos conhecidos 4 poemas do Servo de Javé (Is 42,1-4; 49,1-6; 50,4-9;
52,13-53,12). E seu tema central é o sofrimento que o Servo terã que
suportar, não .um sofrimento qualquer, mas um sofrimento infligido
por seus adversários.
No v. 4, omitido na liturgia de hoje, mas que inicia o poema, o
Servo fala de sua missão profética, recebida de Deus. E alguém que
recebeu de Deus, como um dom, a facilidade de falar, para consolar
e aliviar os fracos e abatidos. Ele tem consciência· de sua capacidade
de falar bem, de convencer, ao contrário de Moisés que, por causa de
sua gagueira, queria esquivar-si! da missão. A eficácia de sua pala-
vra provém de Deus. Por isso o Servo mantém uma atitude constante
e dócil de escuta: «cada manhã ele desperta meus ouvidos para que
" escute como discípulo>.
V. 5. Insiste nesta atitude de escuta da mensagem divina. Não
reluta, nem foge como Jonas, mesm_o diante das circunstâncias mais
duras e antipáticas de sua missão. O Servo aceita a vocação com a
pesada carga de ultrajes e sofrimentos, sem um movimento de revolta.
Vv. 6-7. Aparecem aqui os ultrajes a que é submetido o Servo:
espancamentos, arrancamento da barba e escarros no rosto. Eles expri..
mem sofrimentos físicos e profunda humilhação. A barba, para os orien..
tais, era o símbolo da dignidade social. Arrancá-Ia, alem de sofrimento
físico, é um grande vexame. E escarrar no rosto constituía o máximo
da injúria (cf. Nm 12,14; Jó 30,10). O Servo, não só não reage vio-
lentamente, mas nem sequer desvia o rosto. Enfrenta as afrontas e
ultrajes com tranqüilidade e firmeza. Não se sente intimamente aba-
lado ou desamparado porque tem toda a sua confiança no Senhor, e
tem certeza que Ele virâ em seu auxilio.
Vv. 8-9. A esperança do triunfo final é alimentada pela certeza da
assistência divina. O Servo está tão seguro desta proteção (<aquele que
me justifica aí estâ») que pode desafiar seus adversários. Os dois vv.
são escritos na forma de um debate forense, no qual entram Javé como
juiz, os acusadores, que são também os acusados, e o Servo, acusado
inocentemente. O Servo tem a absoluta certeza que o Senhor irá
declará..Jo inocente. Ninguém conseguirá provar que o Servo é culpado.
E por isso s~us sofrimentos deverão encontrar outra explicação. Esta
aparece no 4' poema do Servo (Is 53,4-6.JO).
O Canto encerra.Se com uma nota de triunfo. O Servo, protegido
por Deus, ganha a causa. Seus adversários não só não conseguem o
seu intento contra o Servo, mas eles mesmos é que são condenados.
Esta derrota aparece nas metâforas do final do v. 9: <cairão em fran-
galhos como um velho manto, a traça os roerá>.
420
Assim, quando· Cristo anuncia que vai ter que sofrer muito, ser
rejeitado e condenado à morte pelos chefes do povo, está aplicando a
si mesmo esta passagem do livro de !salas. '
Bibliografia: Comentârfo.s de C o r d e r o, .Morlarty, '
PJ r o t•CI a m er,
Pen na.
Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
Santa Maria, RS
Segunda Leitura: Tg 2,14·18
O texto sob forma de diatribe ou controvérsia didâtica, aborda a
intenção ce~tral da carta de Tiago: o problema da relação entre fé
e obras. A fé sem. as obras não conta, é morta, não salva (w. 17.26) ..
E como ãrvore seca: não produz fruto. Já em 1,19-27 se dissera que
não basta escutar :a palavra sem cumpri-la e, em 2,1-13; ficou estabe-
lecido que não se pode crer em Cristo e ao mesmo tempo discriminar
pessoas. o confronto f<H>bras, o exemplo de Abraão, poderiam msmuar
que Tiago estaria rebatendo interpretações errôneas da ijoutrina de S.
Paulo quando ·assere que só a fé, sem as obras exigidas na lei ju-
daica' é que salva (Rm 3,4; GI 3-4). Contudo, o próprio S. Paulo já
resol;era a questão em Rm 6,1-23 contra tais postulados. Tudo indica
ser diferente a problemâtica e respectiva argumentação. Tiago diz que
a fé caso não organize a vida segundo o beneplâcito ctivino, é vã,
porq~e dessa forma não salva. Entretanto, Paulo está em outras cir-
cunstàncias: debate-se com a tese judaizante de que o homem é capaz,
por si, de operar a sua justificação perante Deus, observando a rigor
as prescrições da Lei mosaica; quer esclarecer que o _homem pecador
é incapaz de salvar-se com suas forças apenas, sem o auxilio da graça
divina, e que a fé deve ser informada pela caridade (Rm 2,6; 8,2-5;
12; 13,8-10; GI. 5,6.13.19-25; 6,1-16; !Cor 3,10-15; 2Cor 5,9), se quiser
enfrentar o ju!zo 'de Deus, o qual verificnrá os frutos da fé. E o
critério de julgamento.
Tiago não nega a fé, mas a supõe. Contudo, sem as correspondentes
obras, ela não traz proveito algum no plano da salvação, é ortodoxia
teórica e convicção platônica, A fé teologal - adesão total a Deus
- por natureza tende a realizar-se. Um fiel que não vive de acordo
com sua convicção, que não enquadra sua existência nos_ moldes do
gracioso dom divi~9, não merece tal apelativo, - o que_- combina com
a pregação de jesus: <Nem todo aquele que me diz: Sj!nhor, Senhor,
entr;u'ã no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade do Pai que
está nos céus» (Mt 7,21). Inclusive, quem não pratica sua fé, é réu
de castigo maior (cf. Lc 12,47),
Se a semente se orienta para o fruto, - a fé se ordena à prática.
Pouco ou nada adiantaria enaltecer no Cristianismo os l valores, entu-
siasmar-se com a _,doutrina, louvar a mensagem moral, s_e não se vive
tal fé. O que dará seguridade no juízo divino é a obediência, a de-
dicação, a fidelida<j_e, a perseverança no amor. Isso é q11e leva à bem-
aventurança eterna.
Tiago ilustra sua doutrina com uma parâbola (w. 15-16): o exem-
plo aduzido é chocante, desmascara o absurdo e a vaidade de seme-
lhante fé. A saudação de despedida e o conselho, na 'aparência fra-
421
 ternos (cide ,em paz... aquecei-vos... fartai-vos>), são hipócritas, a
negação do amor (2,8), o oposto da fé, um embuste. fraudulento, porque,
embora se conheça a obrigação de quem crê e se a reconheça exterior-
mente, nada é leito para realizá-la, mesmo na pior das carências do
.: i irmão. Como o homem se subtrai às exigências fundamentais de sua fé,
'
i' peculiarmente no .que tange à caridade 1 Diante disso, Tiago penetra
no âmago da questão, dênunciando o egoísmo, a presunção, a hipocrisia
face ao mandamento por excelência. Em decorrência, não hã senão
levar a sério o que Deus exige de nós. Nossa tibieza, nossa indiferença,
nossas ambigiiidades não podem prevalecer, sob o risco de perdermos o
•Céu. Diante do juiz supremo pouco valerá ter !alado bonito, mas sem
obras de caridade e de misericórdia (lJo 3,17s; Mt 25,31-46). O NT
as traduz em carência de vestuário e de alimento , (Lc 3,11; Mt 6,25;
lTm 6,8).
O v. 18 encerra uma objeção que, à primeira vista, poderia ser
procedente; outros exegetas preferem ver ai um desafio. O que vale
é a fé que se tem, pouco importando as obras sem a fé. De fato, a
fé é um grande valor, a base da salvação, o dom da vida nova e o
penhor da vida eterna. Entretanto, ninguém está dispensado de rea-
lizar esse dóm, essa vida nova na vida prãtica diãria. Não sendo
assim, a objeção envolve subterfúgio, pois só quem tiver fé e viver
segundo sua' convicção religiosa é que produzirá obras da fé; sem
elas a fé é morta, o dom salvflico de Deus fenece, As obras não são
a causa da lé, porém a manifestam. Segundo o Concilio de Trento,
a justificação envolve não apenas a remissão dos pecados, senão tam-
bém a renovação interior do homem, porque a fé sem esperança e
caridade não nos une a Cristo plenamente e nem vivifica os membros
de seu Corpo (Denz. 800). A verdadeira fé se traduz em obras não
da lei mosaica, mas do amor (Mt 7,21.24s; Lc 6,46; 12,47).
Bibliografia: Cf. 220 Domingo do Tempo Comum, Ano B, p. 408.
P. Matheus F. Oiuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Terceira Leitura: Me 8,27-35
«Tu és o Cristo>
1. Com estes últimos versiculos do capitulo oitavo nos encontramos
diante do próprio cerne de todo o evangelho de · Marcos. Os vários
momentos de~te conjunto, isto é, a confissão de 'Pedro (8,27-30), o
inicio das predições da Paixão e Ressurreição (8,31), a repreensão a
Pedro explicando o verdadeiro messianismo (8,32-33) e o seguimento
de Cristo (8,34-35) são fundamentais, decisivos para se entender a
teologia de Marcos. ' milado e compreendido sobre seus ensinamentos, pessoa e missão. ~
2. A confissão de Pedro (8,27-30) entrelaça as "duas grandes partes
do evangelho. A parte anterior (1,1-8,26) retrata,' desde o inicio, a
preocupação do evangelista em revelar aos disclpulos, às autoridades
oficiais, e ao povo aos poucos e gradativamente o mistério de Cristo.
Ela culmina i:om a auto-revelação de Jesus como Messias e com o
primeiro reconhecimento dos discipulos, na pessoa de Pedro, do messia-
nismo de Jesus (8,29). Introduz também o tema do Messias Sofredor,
422
que se irã desenvolvendo nos capltulos seguintes até o fim do evan-
gelho (8,31-16,8). Por isso, esta seção aparece como o centro de
convergência de todo o evangelho.
Percebe-se, pela leitura de Me 1-8, que Jesus foi insinuando na
mente dos discipulos a suspeita de que ele era o Messias, embora
dum modo um tanto estranho, oculto, secreto, através dos seus _ensina·
mentos e milagres. Não se compreenderia o seguimento de jesus
(1,16-20), sem, ao· menos, uma leve esperança de que nele se cum-
priam as antigas esperanças.
Até aqui (Me 8,26) o evangelista apresenta os principios da dou-
irina de Jesus, como faz um bom teólogo. Da confissão. de Pedro em
diante, quer levar o leitor à práxis, à vivência destes :princípios por
um seguimento decisivo e uma opção livre, engajante, mas decidida, a
ele. Portanto, verifica-se, neste momento (8,27-35), uma virada impor-
iante na própria vida de Jesus. Ele aparece não só como um rabino
ou taumaturgo, mas deixa-se identificar com o Messias, que inicia um
caminho que terminará em Jerusalém, onde é julgado, morto, sepultado
e entronizado na sua glória pela ressurreição. Começa-se a abrir os
clhos dos discipulos para a verdadeira dimensão messiânica de Jesus.
3. o inicio do caminho no seguimento de Jesus começa com a
profissão de fé messiOnlca de Pedro e a ordem dada por jesus para
qae guarde silêncio sobre a sua identidade (8!27-30) f~f. M_t 16:1!!-20;
Lc 9,18-21). Esta confissão se dã em Cesaréia de Filipe, 1dent1!1cada
<:om a antiga cidade de Pânias ou Pâneas, consagrada ao deus Pan,
deus dos pastores e dos rebanhos, donde o seu nome atual árabe
l!aniyas. Distingue-se da Cesaréia Marltima situada às margens do
.Mediterrâneo. Foi reconstruida por Filipe, filho de Herodes, o Grande.
Filipe foi tetrarca da Jturéia, com as regiões da Batanéia, Traconltida,
da Auranltida da Oaulanltida e de Pânias. Foi chamada Cesaréia em
honra do imperador Augusto. Está situada uns 40 km ai> nordeste do
lago de Oenesaré.
Segundo Me Jesus escolheu propositadamente esta regiao pagã, ro-
manizada para Q.ue os discípulos tomassem consciência da sua missão
messiânica porque assim estavam longe do fanatismo das multidões da
Oaliléia q~e identificavam o messias como um revolucionário, um liber-
tador nacionalista e terreno. E pediu silêncio para evitar falsas Inter-
pretações, porque os discipulos e menos ainda o povo compreendiam
as verdadeiras dimensões do messianismo de Jesus.
Portanto para Me não há tanto uma preocupação geográfica ou
topográfica, 'mas teolÓgica. Cesaréia de Filipe significa o _Início da
~amlnhada de Jesus para Jerusalém; abre-se uma perspectiva nova,
universalista do seu messianismo, livre dos preconceitos e condiciona-
mentos da mentalidade judaica. Esta caminhada inicial não é geográfica,
mas de fé. Só através da fé, mesmo inicial, se consegue seguir Jesus.
A pergunta de Jesus: «Quem os homens dizem que eu sou?> (v. 27)
foi uma espécie de teste para avaliar quanto os disclpulos tinham assi-
uma pergunta dirigida ainda hoje a cada homem. Os homens (OI
anthropoi) são aqueles que estão fora do circulo formado ao redor
de Jesus (1,17). A resposta dada pelos dis~fpulos reflete uma diver-
sidade de identificação, mas conclui-se que, segundo a opinião pública,
jesus não aparecia como um homem qualquer; contudo, -"ainda não era
identificado como o Messias, Servo Sofredor. Por isso, fala-se de João
Batista, Elias, ou um dos profetas (cf. 1,2-8; 6,14-15),• opiniões ina-
423
 dequadas ao messtamsmo de jesus. Agora se entende a ln/ase da per-
gunta de jesus: cE vós, quem dizeis que eu sou?:> (v. 29). Nota-se
claramente que os disc!pulos aparecem em contraste com os chomellS>.
O cvós> assinala aqueles a quem foi confiado o segredo do Reino de
Deus, em contraste com os cde fora>. , ·
A resposta de Pedro cTu és o Cristo> (v. 29) em seu nome e em
nome dos outros discípulos, revela simplesmente a convicção de fé
no messianismo de jesus sem qualquer outra atribuição. Os acrésci-
m~s dos outros evangelistas «filho do Deus vivo> (Mt 16,16), co
~nsto de DeuS> (Lc 9,20), co Santo de Deus> (Jo 6,69) são expressões
t1yadas d~ _AT que, segundo a exegese hodierna, não querem dizer
ainda a dmndade de jesus. Pedro é o primeiro homem que reconhece
oú, ao menos, que reconhece abertamente jesus como o Libertador
esperado.. J'.az um ato de fé na messianidade de jesus mas ainda não
na sua divindade. Portanto, trata-se duma confissão . de fé inicial fraca
incipiente, mas verdadeira, ponto de partida para o seguime~to d~
jesus. A aceitaç~o da personalidade total de jesus· se darâ . só depois
• da Páscoa, depoIS da ressurrejção. Me quer levar o leitor a encontrar
um .inicio n~ ~u.a cainin~ada de fé atrãs de jesus. «Cristo> (em grego
Christós) sigrufica «ungido> como Mashlakh em hebraico. Donde se
'1 pode traduzir> <Tu és o Messias> (note o artigo). Pode entender-se
~elhor esta expressão à luz da Páscoa, quando as comunidades primi-
tivas, sobretudo as fundadas por Paulo, aplicavain a jesus o apelativo
de Cristo. . O evangelista insiste em dizer que jesus <!alava abertainente> (v.
A imposição dum severo silêncio (v. 30) torna~se muito compreen-
sível porque jesus não podia revelar publicainente, durante sua vida
terrena e de maneira total, o mistério da sua identidade, antes de ter
1 1
demonstrado, ,por sua morte. e ressurreição, o sentido real de todos
os seus tltulos. Caso contráno, · para aquela gente despreparada a di-
vulgação pública geraria mal-entendidos. Assim Me apresenta um jesus
1 que respeita o progresso da fé dos seus seguidores. Entende-se, então,
a reação tipiça de jesus diante dos ti1ulos messiânicos populares car-
regados de nacionalismo e política. Ademais, só com esta fé se pode
falar de Jesus, pois nem os discipulos tinham entendido que ele era
o Filho do homem, Servo de Javé. Esta perlcope parece pobre em
relação a Mt; mas ela é entendida a partir das intenções teológico-
cristológicas e não eclesiológicas de Marcos. Mt tinha preocupações
eclesiológicas ao passo que Me não as tinha.
4. Com o v. 31 começa a segunda parte do evangelho de Me a
qual forma uma unidade indivisivel com a primeira. Tal seção inÍcia
com a primeira predição de jesus sobte seus futuros sofrimentos. :E
a caminhada do Filho do homem.
Este primeiro anúncio (8,31-33) (e!, Mt 16,21-23; Lc 9,22) não
poderá ser separado da primeira parte do evangelho como nem da
segunda.· O episódio constitui uma junção que ar.ticula as duas me-
tades do evang~lho, semJ contudo, pensar-se numa seqüência lógica.
Como também nao podemos separar esta primeira predição das outras
duas .<:f. Me .9,31 e ~0,33-34?, porque as três seguem o mesmo esquema
(prediçao, mal-entendido e instrução). A intenção iundamental de Me
estã em corrigir qualquer idéia falsa que pudesse afetar a messianidade
que acaba d~ ser reconhecida na confissão de ~edro. Segundo Me,
jesus tratou de dar a. seus discípulos alguma idéia daquilo que o espe-
raya. !!um futuro próximo. Talvez a triplice predição .pertença à tradição
prumtiva porque está colocada dentro dum quadro bastante artificial. Me
424
serviu-se' desta tradição elaborando-a .na perspectiva de· sua teologia.
Ele quer levar o leitor a ir aos poucos ainadurecendo na sua fé
messiânica, · no seguimento dum Cristo Messias-Sofredor. Durante a ca-
minhada não se pode tergiversar apesar das circunstâncias adversas,
dos acontecimentos contrários, das decepções e oposições.
O anúncio é introduzido com a .expressão «é necessârio> (dei)
que alude ao cumprimento das Escrituras e por isso possui uma cono-
tação bastante apocaliptica e designa a inelutabilidade na consumação
da história da salv~ção ou na realização do plano de Deus a respeito
de Cristo. :E claro que não se trata dum fatalismo mas a salvação
de toda a humanidade depende da morte do Filho do Homem.
Me coloca este. primeiro anúncio dos sofrimentos, da morte e da
ressurreição de jesus numa perspectiva profética pela aplicação do ti-
tulo «Filho do Homem> a Cristo na mesma dimensão do messianismo
e da profecia do Servo de Javé (cf. a 1• leitura: Is 505-9). Me une
a idéia da vinda gloriosa do Filho do Homem (Dn), ju~ escatológico,
com a de Servo de Javé (Is). Percebe-se neste modo de falar de Me:
c:sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos saCerdotes e
pelos escribas, ser morto e ·ressuscitar depois de três dias> (v. 31)
resqulcio duma elaboração cristã posterior à Páscoa. :E a mentalidade
e teologia dos primeiros cristãos relembrando os últimos acontecimen-
tos da vida de jesus
32), sugerindo que jesus agora deixa de manifestar-se ocultamente a
seus ouvintes para falar de seus sofrimentos e sua rejeição em termos
claros e inequívocos, isto é, sem metáforas, a ponto de Pedro se
chocar vivainente. Este se pôs a repreendê-lo (v, 32) dando prova
que, embora tenha reconhecido em jesus a messíanidacte; contudo não
compreende que esta missão traz consigo o sofrimento e a morte de
jesus e de seu seguidor. Pedro ainda está preso a um messianismo
terrestre e por isso recusará o primeiro ensinamento sobre o messias
cristão sofredor e advertirá mais uma vez jesus, para :que abandone
o seu caminho. 1
Diante desta atitude repentina, temperamental, ardeÍlte de Pedro,
jesus vê mais uma oportunidade para corrigir a idéia dum falso messia-
nismo e ao mesmo tempo lhe faz lembrar as várias tentações que passou
em seu caminho. Nesta perspectiva entendem-se os gestos e as pa-
lavras duras de Jesus dirigidas a Pedro e aos discipulos: <voltando-se
e olhando para seus discípulos, repreendeu Pedro e lhe disse: 'Afasta-te,
satanás, pois não sabes as coisas de Deus, mas as dos homens' (v. 33).
Este pormenor gráfico «Voltando-se e olhando para seus discipulos>
indica que a resposta de jesus dirigida a Pedro deve ser ouvida também
pelos demais. Dizendo a Pedro: «Afasta-te, satanás», jesus estava
vencendo mais uma vez a tentação dum falso messianismo e optava
com mais decisão pelo messianismo de sofrimento e de morte. Cristo
amadurecia conscientemente na sua idéia messiânica. Enquanto Pedro
(satanás: adversário), os disclpulos e os homens (seus inimigos) se
alinham contra o plano salvífico de Deus, Jesus · escolheu seguir a
vontade de Deus.
5. Depois de Me traçar para o leitor o verdadeiro caminho que
o Cristo devia percorrer passando pelo sofrimento e chegando à glo-
rificação, agrupa uma série de sentenças isoladas sobre o compromisso
dos seguidores de· Jesus (8,34-9,1) (e!. Mt 16,24-28; L"c 9,23-27). A
!é sempre corresponde o seguimento. O ideal: seguir jesus
425

Pode-se ver neste agrupamento de inslru;ões sobre o discipu/ar]J)
uma elaboraçãb e preocupação da comunidade primitiva, que, ouvjndo
as pregações ilos apóstolos, era convidada a participar do Mistério da
Paixão de Cristo. Me recolheu tal tradição e a agrupou segundo a
sua intenção teológica. Assim se entendem melhor tais exigências à
luz da Páscoa.
jesus diz cse alguém quiser .. .>, porque está dirigindo-se a pessoas
livres e não obriga ninguém, mas se alguém se decidir é para valer.
Não convida só os discipulos, mas todos para segui-lo.
Duas conµições, segundo Me, são necessárias para o seguimento
de jesus: renunciar a si mesmo e tomar a cruz. Renunciar encontra-se
em Is 31,7 e indica o gesto dos israelitas infiéis que, esclarecidos pela
Uerrota dos assirios rejeitaram seus ídolos de ouro· e prata fabricados
1
por suas mãos. Este termo enérgico (aparnesástho) mostra bem gual
'! i deve ser a atitude do disclpulo que se entregou a Cristo; nada mais
conta para ele; uma coisa só importa: viver e agir para aquele a
quem se entregou inteiramente. Portanto, renunciar quer dizer arriscar
a própria vida por amor dos bens escatológicos -0ue jã estão ao alcance
das mãos. Tomar sua cruz aqui significa arrepender-se e entregar..se
totalmente a .Deus; arriscar a própria vida na sua palavra; assumir
os sofrimentos· e as dificuldades da vida que terminam na ressurreição;
realizarJ entãoJ o plano de Deus, isto éJ caminhar cada dia no cumpri-
mento dos próprios deveres buscando realizar o próprio ideal nos acon-
ci tecimentos; acompanhar o Cristo na caminhada da fé sem tergiversar.
Este é o verdadeiro martírio. Depois de assumir tudo issoJ o discípulo,
i
1
então, segue o mestre.
O v. 35 explica e completa o verslculo anterior. Salvar a alma (tén
psychen autou sósai) significa salvar a vida, a própria pessoa (corres-
ponde a néfesh: ser vivo, pessoa); portanto, significa que há urna
fase escatológica da existência humana que nenhum sacriflcio se torna
excessivo pará alcançã-Ja. Perder a vida por amor de Cristo e por
causa do Evangelho quer dizer em Me a presença e a identificação
de Cristo com a proclamação evangélica, a Boa-Nova da salvação
messiânica.
Bibliografia: . P 1 r o t - C 1 a m e r. La Sainte Bible, t. JX, Letouzey et Anê,
Paris 1950; B u r n i e r, M. P., O.P., Perscrutando as Escrituras, fase. V, São
Maroos {JV). Ed. Vozes, PetrCpolis 1060; Ma e r tens, T.-P r J s que, J., Gula
da Assembléia Crlstil, vol VJJ, Ed. Vozes, Petrópolis 1970; V ã r 1 o s, Comentcirio
ao Evangelho de Siío Marcos, Ed. Vozes, Petrópolis 19'18i C a 11 e, P. de la,
Teologia de Marcos, Ed. Paulinas, São Pauto 1978; V á r J os, Comentdrio Blbllco
"San Jerónimo",, t. Ili, NT, J, Ed. Crlstlandad, Madrid 19'12.
Constantino Bombo, O.F.M.Cap.
Piracicaba, SP
Sugestões para a Homilia
:1
Jntrod11ção
«E vós, quem dizeis que eu sou?» (Me 8,29). É a pergunta
que Jesus faz para todos os seus discipulos a cada momento,
em cada época histórica. 1i o desafio lançado, sempre de novo,
426
'
em cada cultura , que entra em contato com o Evangelho. Como
dizer quem é Jesus?
Haverá aqueles a quem parece supérflua a pergunta. Não
está nossa fé em Cristo de uma vez por todas baseada na so-
lidez da confissãe> de Pedro? Não basta repetir: «Tu és o
Messias»? E, se necessário, ainda acrescentar: «Tit és o Filho
de Deus», «Tu és e> Senhor», «Tu és e> Verbo consubstancial
ao Pai» etc., etc.? Por que repetir a pergunta: «E vós, quem
dizeis que eu sou?:o Porque a questãe> não é tãe> simples como
parece. Basta !'ermos ce>m atenção e> Evangelhe> de hoje.
Corpo
t. A resposta de Pedro é amblgua
A pergunta de Jesus Pedm responde: «Tu és o Messias».
Nada mais ortodoxe>, diriamos nós. E, no entanto, Jesus proibe
severamente os discípulos de falarem a alguém a seu respeito
nestes termos. Sinal de que a confissão de Pedro nãe> corres-
ponde à verdade. Se tivermos dúvida, basta continuar a leitura
do evangelho. Dentro dos esquemas de Pedro não cabem o
sofrimento, a rejeição e a morte do Messias.
Qual é propriamente o problema? É um equlvl)co quanto à
forma de conhecer uma pessoa. Uma pessoa não se conhece por
titules. Pessoas se conhecem num contato vital, histórico. Coisas,
sim. Coisas se conhecem etiquetando-as. Quem conhece melhor
as rochas do que o mineralogista? Ele as examina e põe uma
etiqueta «quartzo», «basalto», «granito». . . E a rocha está defi-
nitivamente conh~cida. Nunca vai mudar. Pode pôr o fragmento
de rocha no mostruário do museu de mineralogia e deixá-lo
Já. No mâximo será necessário mudar a etiqueta, quando os
anos a tiverem ·,feito desbotar a ponto de se tornar ilegível.
Mas quem tiver a tarefa de repôr as etiquetas, ,repetirá pura e
simplesmente a mesma coisa. Objetos se conhecem assim:
etiquetando-os, referindo-os a uma designação já conhecida.
Quem quiser conhecer uma pessoa dessa maneira, vai por
maus caminhos. A pessoa não é fixa, tem sua história. A pessoa
se faz através de sua história, no intercâmbio com o outro. Só
conhecemos al'guém, convivendo com ele, vendo como reage em
diferentes circunstâncias, deixando que o tempo nos diga quem
ele é. Ao sermos apresentados a alguém, ainda não podemos
dizer que o conhecemos. Apenas sabemos o nome. Uma pessoa
só se conhece a partir de sua história, de suas relações e reações.
427
p
Na diferença entre esses dois tipos de conhecimento está o plena participação social e política~ (n. 898). Deveremos
1 problema da confissão de Pedro. Apesar da convivência com reconhecê-l'o no rosto de indígenas e afro-americanos, no rosto
de camponeses e operários, no rosto de marginalizados nos aglo-
~ .
jesus, ele não o quer conhecer por sua história, mas por um
título: o Messias. Não que o título não coubesse a jesus. Cabia- merados humanos, no rosto de subempregados e desempregados,

Ir.í'
t

!
lhe. E mesmo a partir de sua história até aquele momento. Uma
das características do rei messiânico era seu amor pelos pobres,
de jovens desorientados, de crianças golpeadas pela pobreza
ainda antes de nascer, de anciãos (leia-se todo o · n. 20 do
Documento de Puebla).
1 i sua atitude de não fazer acepção de pessoas, mas julgar se-
i. gundo o direito e a justiça. Mas o titulo continha muito mais
na mentalidade corrente de então: o dominador dos povos pa- Conclusão
,', gãos, o vingador da honra de Israel, o rei temporal e guerreiro ...
E Pedro pensava em tudo isso ao proclamar a messianidade Na medida em que nos pusermos a serviço de todos esses
de .J_esus. Catalogava-o como se catalogam coisas. E por isso manifestações históricas do rosto sofredor de jesus - esta-
não acertou. Tanto é assim que, quando Jesus lhe indica o seu remos mostrando que conhecemos a jesus à maneira como se
caminho histórico que passa pel'o sofrimento, pela rej.eição e conhecem pessoas. Nessa medida não estaremos apenas cata-
pela morte, Pedro não consegue compreender. julga estar pe- logando a jesus como um fenômeno impessoal no universo da
rante um momento de desânimo de jesus. história das religiões, mas estaremos «implodindo» todos aqueles
titulas com o conteúdo da experiência histórica do Jesus vivo
2. A jesus se conhece na história entre nós.
Francisco Taborda, S.j.
jesus, no entanto, se dá a conhecer por sua história. Po- Porto Alegre, RS
demos proclamá-lo Messias, o Cristo, o ungido de Deus, o
escolhido, desde que saibamos relativizar esse título a partir
i';i da história real de jesus. E essa história «implode» a concep-
ção tradicional de Messias. O rei escolhido por Deus não é o
triunfador soberano aos moldes dos desejos humanos. Mas aquele
que se torna triunfador exatamente por solidarizar-se com os
desprezados ' da terra, com os condenados à morte, com os
marginalizados, com os pobres, com os que não têm graça nem
formosura ( cf. 53,2).
«E vós, quem dizeis que eu sou?» Vós, latino-americanos,
brasileiros do último quartel do sécul'o XX. Podemos repetir a
confissão tradicional, como o fizeram os bispos latino-americanos
em Puebla: «Tu és o Filho de Deus», «o Verbo nascido do
Pai antes de todos os séculos», «o centro ·da história», «O
único mediador». Mas, se não quisermos cair no mal-entendido
da confissão de Pedro (segundo a versão de São Marcos),
deveremos saber reconhecê-lo no rosto do pobre, como também
o soube a Conferência Episcopal de Puebla. Deveremos reconhecê-
lo na «imensa maioria de nossos irmãos» que «Vive uma situa-
ção de pobreza e até de miséria que se vem agravando», «ca-
rentes dos mais elementares bens materiais, em contraste com
o acúmulo de riquezas em mãos de uma minoria, às vezes à
custa da pobreza de muitos». Reconhecer a Cristo naqueles que
«não só estão privados de bens materiais», mas também «de

428 429
 Vigésimo Quinto Domingo
do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Sb 2,12.17-20
«Se o justo é filho de Deus, Deus o assb»tirá>
A leitura de hoje pertence à unidade literãria 1,16-2,24; e esta
pertence à primeira parte do livro, que abrange cc. 1-5. Nesta parte
o autor previne os judeus, seus correligionários, sobre a tentação do
paganismo. (0 livro foi escrito no Egito para os judeus da diâspora
que aí moravam.) Esta tentação consiste na vida desregrada que se
pode viver no paganismo e que encontra um aliado nas paixões e na
concupiscência do homem.
O autor mostra uma certa habilidade em imaginar-se na situação
de outros para, a partir daí, analisar a mentalidade dos mesmos. Em
2,1-20 analisa a mentalidade de judeus apóstatas e aborda lógica e
psicologicamente o modo de pensar e de viver deles e a sua atitude
frente a judeus que lutam para continuar fiéis e conseguem jsso.
A passagem 1, 16-2,24 trata do tema: «Quem se entrega ao pecado,
merece a morte». Embora dirigindo·se a judeus fiéis contra judeus
apóstatas (cf. 2,12c e d), suas palavras valem para todos que hão
de lidar com gente que não respeita a Deus. Neste sentido o texto, como
toda a primeira parte do livro (cc. 1-5), reveste-se de um valor para-
digmático sempre atual. O ímpio chama a si a perdição (1, 16) em
conseqüência de seus princlpios (2,1-5), de seu modo de viver (2,6-9)
e de sua atitude hostil contra os justos que não compartilham estes
princípios, nem este comportamento (2,1().20). Em 2,21-24 o hagiógrafo
formula a sua própria doutrina.
Os princlpios dos ímpios são marcados pelo materialismo. Mesmo
que não sejam ateístas teóricos, querem banir Deus e toda dimensão
espiritual de sua vida (2,1-5). A vida deles é conforme com estes princf-
pios: se o homem todo não é mais do que a sua existência terrestre, ele
hã de gozá-la o quanto puder (2,6-9), sem importar-se com ninguém
(2,toss). O último, porém, é imposslvel. Sempre há lã os justos, que
por sua mera presença importunam e incomodam a consciência dos
aproveitadores. Uma vez que é impossível negar a existência e a
presença deles, importa eliminá-los.
A procura dos prazeres da vida é uma conseqüência lógica dos
principias dos ímpios. A atitude hostil contra os justos não. Esta é
uma conseqüência psicológica. Os hnpios não estão totalmente certos
dos princípios que propalam com tanta bravura. E não o podem estar.
Por esta razão vivem em uma inquietação embaraçada, que experi-
mentam ma_is agudamente ao perceberem a vivência convicta de prin-
cípios opostos. Não podendo refutar estes, recorrem à gozação, des-
moralização e perseguição daqueles que os subscrevem. São tentativas
malogradas para salvar as aparências e calar por algum tempo a cons-
ciência perturbada.
Nos w. 1().20 a retidão dos oprimidos ocupa o primeiro plano.
V. 10: Se os pobres, as viúvas e os de idade avançada concordassem
com os principias pecaminosos e o comportamento licencioso dos ímpios,
430
'
ninguém os incomodaria. O autor menciona estes três grupos, comumente
empurrados para a margem da sociedade, para realçar a mentalidade
covarde e impiedosa dos ímpios. É precisamente para estes grupos
que, na Sagrada Escritura, se pede repetidamente piedade e respeito
particulares.
V. 11: Os impios estão cheios de desprezo pelos fracos e proclamam
o direito do mais forte. Este recurso ao direito do mais forte é uma
tentativa de se legitimar a subversão da ordem estabelecida por Deus.
Vv. J2-16a: Quando a injustiça é transformada em regime clegi-
timo>, a perseguição e a eliminação dos ju~tos. não tardam.. A mera
presença destes jã representa uma contestaçao mtolerãvel: ExISte um.a
oposição 1otal e intransponível entre os modos de ver, Julgar e agir
dos justos e dos ímpios.
Vv. 16b-20: Hã também uma oposição entre a disposição de espírito
dos justos e dos ímpios. Da parte dos justos tranqüilidade, firmeza e
paciência resultado da certeza de que têm Deus do seu lado. Da parte
dos ímpi~s insegurança, desconfiança e pânico que levam ~ toda esp~
cie de perseguições, através das quais desesperadamente poem Deus a
prova nas suas vítimas.
O valor paradigmãtico desta parte do Livro da Sabedoria (cc. 1.-5)
foi muito explorado pelos primeiros cristãos. Eles encontraram aí mwtas
pistas para entender devidamente a paixão e morte de jesus. Pode-se
perguntar se contém uma profecia de um messias sofredor. Muitos·
Padres motivados por alusões como se encontram em Mt 27,39-43 (cf.
Tg 5,5"6) deram à passagem uma interpretação messiânica. Os compo-
sitores do novo lecionário litúrgico trienal, ao procurarem no Antigo
Testamento um texto que concordasse com a segunda predição da
paixão, morte e ressurreição de jesus _(Me 9,31), r~correram. a _Sb
2,12.17-20. Mas não se precisa desta relaçao de •P!ofecia -: realizaçao»
para se explicar a semelhança entre a sorte dos 1ustos, ob1eto das re-
flexões de Sb 1-5 e a sorte de jesus de Nazaré, narrada nos Evan-
gelhos. Jesus mor;eu como um homem inde~jado ~ p~rseguido, porque
era justo como os justos, e seus perseguidores 1mp1edosos como os
impios de Sb 1-5.
O detalhe pelo qual estes justos ganham, em Sb 1-5, o nome de
dilho(s) de Deus» (2,13.18; 5,5) que têm <Deus por pai» (2,16) também
atraiu a atenção dos primeiros cristãos para_ estes capítulos de Sb e
desempenhou um papel importante no reconhecimento e na confissão
da filiação divina de jesus. Em Sb 2,13 o justo é chamado «pais Theou»,
titulo também do servo-de-Javé-sofredor de Is 52,13-53,12 (cf. Is 42,l;
52,13). Em Sb 2,18 chuios Theou» (cf. 5,5). Nos Atos dos Apóstolos
Lucas ainda usa os dois titulos para falar de jesus (cf. At 4,27.30).
São sinais de uma cristologia antiga desenvolvida a partir dos Cânticos
do Servo de Javé Sofredor e de Sb 1-5. Resqufcios desta cristologia
primitiva acham-se em Didaqué 9,2-3; 10,2-3 e 1Clem 59,2-4.
Documentos recentes da Igreja, como o de Puebla (por exemplo,
n• 20), mostram que nem os Cânticos do Servo de Javé, nem Sb 1-5,
nem a (interpretação da) paixão e morte de jesus de Nazaré nada
perderam de seu valor paradigmãtico.
Bibliografia: A. O r u b b e 1, Wljsheid; E. Os ty, Le Livre de la Sagesse.
Blble de Jérusaiem; E. S eh i 11 e b e e e k x, ]ezus, Bloemendaat 1974.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
431
 Segunda Leitura: Tg 3,16·4,3
No capitulo 3, Tiago se ocupa de mais outra falha na vida cristã:
os pecados da língua, do não-controle no falar. Segue-se um apelo para
que se domine a língua, sujeitando-a ao espírito de fé e caridade, -
o que é uma obrigação. Havia, com efeito, entre os judaizantes, quem
primasse em aparecer como mestres, nem sempre sinceros e responsá-
veis, sujeitos a abusos. O apósto1o adverte: a perfeição implica em
não pecar por palavra (3,2ss), em refrear a língua, cujo poder é
tremendo (3,5ss), sendo fonte de males por vezes incontroJáveis (3,7s).
O órgão da fala deveria, ao invés, louvar a Deus e abençoar os
homens (3,9-12). É antinatural ser a lingua fonte de bem e de mal,
.
·1 i
'
como não pode a mesma bica jorrar água doce e salgada ao mesmo
tempo.
O contexto próximo investe contra a sabedoria mundana, contra o
·1
ciúme, contra a dissensão e suas raízes - egoísmo, amor-próprio, mau
i coração (3,13-4,12) - convidando para a verdadeira sabedoria, a do
!'
i
aJto (3,13.15.17ss), e para a conversão a Deus e ao próximo. Ciúme,
rancor, orgulho, vanglória, partidarismos, contendas... levam à per-
turbação, ao vício, à animalidade, à discórdia, à cisão - ambiente
1 próprio de quem serve a Satanás, em oposição ao Espírito de Deus
que é verdade, unidade, concórdia . e amor. Estes constroem e unem,
aque1es destroem e dispersam.
Nos vv. 17-18 Tiago descreve a fonte e os produtos da verdadeira
sabedoria, que vem do alio (Sb 1,4; 7,25ss) e tende a efetuar o bene-
plácito divino no mundo - o crescimento interno e externo da 1grej a.
Tal sabedoria não se exalta, não se arroga direitos, mas quer servir,
dar bons frutos - o reverso da sabedoria mundana, auto-suficiente e,
por isso, destinada ao malogro (cf. !Cor 3,18s). Como discernir a
sabedoria autêntica? Para tanto apontam-se vários sinais. A sabedoria
do alto é pura, sem hipocrisia (Sb 7,22-27), não tem ambição e nem
paixões, sem exibicionismos, evitando o erro; - só pretende agradar
a Deus, sem egoísmos ou segundas intenções; - é capaz de abrir
espaços em si mesma e na comunidade ao Espírito, isto é, dócil; - é
bondosa, misericordiosa e indulgente (SI 85,5; !Pd 2,18) para com
todos, sabe perdoar e ajudar aos necessitados (1,27; 2,14-16); - re-
nuncia a direitos e privilégios, se o bem comum o exige; - abstém-se
de dissensões, de particularismos, de parcialidades, esmerando-se em
promover a paz e a unidade na Igreja (e!. Pr 3,17; Rm 8,6). Quem
procede assim é sábio, filho de Deus, porque imita a Cristo que se
propôs servir e não ser servido, com palavras e obras (virtudes cristãs).
O elogio à sabedoria é análogo ao de Paulo à caridade (!Cor 13).
O v. 18 perodia a 7' bem-aventurança (Mt 5,9) : pera ser tal sábio,
só mesmo um grande amor! A verdadeira sabedoria produz a justiça
na paz. A discórdia destrói, somente a caridade constrói a comunidade.
A amizade do mundo é inimizade contra Deus (4,lss). O espirito
mundano com suas ambições é a causa de tantos males e dissensões
(4,1-5,6; lTm 6,10). As paixões é que são a raiz da sabedoria inau-
têntica (e!. Rm 7,23; !Pd 2,11) e do hedonismo, cujos frutos são des-
critos aqui com hipérboles do estilo exortativo e doutrinário, as quais
não necessariamente se devem tornar ao pé da letra. Linda a an4lise
psicológica de Tiagol As expressões se ressentem da terminologia mi-
litar, - o que poderia insinuar a existência de e-estado de guerra>
432
nas comunidades. A erigem das contendas são as injustiças sociais
que produzem contraste entre ricos e pobres (2,1-9; 5,1-6). Os pobres,
ao reivindicar seus direitos, presumivelmente falharam quanto ao modo,
dando oportunidade a violências, descontentamentos e discórdias. No
fundo, sobrevivem ainda motivações terrenas e egoístas nos cristãos.
Toda dádiva boa provém de Deus (1,17); logo, a Ele deverá o
homem ordenar sua vida para haver paz em si e na comunidade.
Sem a paz de Deus não haverá paz no homem, o que implica em desa-
pego, ausência de egoísmo, controle das paixões. A salvação só pode
vir de dentro ou de cima. Tiago não impede que os pobres reclamem
seus direitos primários, mas indica o caminho a seguir: soJicitar esses
dons a Deus com confiança, isto é, uma vida realizada, rica, segura,
que resu1te em alegrias e satisfação, próprias de quem cumpre a von-
tade de Deus. Acontece que o homem decaido, não raro, julga-se dono
exclusivo de sua vida, desgastando-a em desmandos morais.
Empregam-se aqui termos cruentos: «homicídio», «guerra». Algumas
versões atenuam, sem base, o «phoneite» (assassinar) com a variante
«phthoneite» (invejar). Não é provável que se trate de homicídio con-
creto, mas alusão àquilo de Jesus: «Todo aquele que odiar seu irmão
é homicida> (MI 5,21s; ljo 3,15).
Se a vida do cristão não muda para melhor é porque não se pede
a Deus tal favor, que o daria generosamente (1,5). Quem pede recebe
(Mt 7,7s). O v. 3 responde a uma objeção tácita: se se pede e não
se recebe, é porque se pede mal, isto é, não para superar a fragilidade
humana, senão para satisfazer às paixões. E oração desorientada, sem
reta intenção: em vez de pedir que se faça a vontade de_ Deus, que
se realize seu Reino (Mt 6,33), pedimos que se faça a nossa, mani-
pulamos a bondade de Deus a serviço de nosso egoísmo. Como Tiago
desmascara a tentação de muitos cristãos, que não levam a sério seu
cristianismo, deixando-S;e envolver pelo mundano! Ter fé é entregar-se
sem reservas a Deus: «Faça-se a tua vontade, não a minha» (cf.
Me 14,36).
Bibliografia: Cf. 22~ Domin~o do Tempo Comum, Ano R, p. 408.
P. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Terceira Leitura: Me 9,30-37
«. . . aquele que serve a todo~
Em uma leitura contínua lê-se, nos próximos doming-os, Me 9,30-
10,52. Incluindo-se a segunda parte da leitura de domingo passado
(8,31ss), corresponde praticamente à Parte Central do Evangelho de
Marcos. Vários autores o dividem em três partes, com uma introdução
(1,1-13):
1: 1,14-8,29: O mistério do Messias: a revelação de Deus e a cegueira
dos homens.
Ponto alto: a confissão de Pedro: •Tu és o Messias> (8,29).
li: 8,30-10,52: O mistério do Filho do homem: o seguimento de jesus
no caminho que leva de Cesaréia de Filipe a jerusalém.
Pontos altos: as predições da paixão e 10,45.
433
III: 11,1-16,8: A revelação do mistério: ação, paixão e !IlOrte, e ressur-
reição de Jesus em Jerusalém.
Pontos altos: a confissão do centurião «Este homenl era o Filho
de Deus> (15,39) e o querigma pascal (16,6).
Na Parte Central estes autores descortinam uma estrutura tripàrtida:
A: A Primeira Predição da Paixão e o que lhe segue
- Primeira Predição da Paixão (8,31-32a);
- Incompreensão da parte dos discípulos (8,32b-33);
- Instrução de Jesus sobre o verdadeiro seguimento (8,34-9,1):
- O que segue (9,2-29).
B: A Segunda Predição da Pai:c,ão e o que lhe segue
- Segunda Predição da Paixão (9,30-31);
- Incompreensão da parte dos discfpulos (9,32-34);
- Instrução de Jesus sobre o verdadeiro seguimento (9,35-37);
- Outras instruções (9,38-10,31).
C: A Terceira Predição da Paixão e o que lhe segue
- Terceira Predição da Paixão (10,32-34);
- Incompreensão da parte de Tiago e João (10,35-40) e dos outros
dez (10,41);
- Instrução de Jesus sobre o verdadeiro seguimento (10,42-45).
Encerramento da Parte Central e transição para a última Parte (que
traz a revelação do mistério!): Jesus abre os olhos de um cego
(10,46-52).
:•
A estrutura interna da passagem que se lê hoje (Me 9,30-37) é
semelhante àquela de Me 8,27-35 (e!. domingo passado!). Jesus aada
sozinho com os discípulos respectivamente pelas aldeias de Cesaréia de
Filipe (8,27) e através da Galiléia (9,30). Jesus instrui os dtsclpul~s
acerca de seu fim doloroso (8,31 e 9,31). Pedro (9,32b-33) e os demrus
apóstolos (9,32) mostram incompreensão para com esta instrução de
Jesus.
A discussão no caminho sobre a questão quem (dos discípulos)
seria o maior (no reino messiânico de Jesus) (9,33-34) é relutada
por Jesus (9,35-37) como uma preocupação que não sintoniza com a
'Causa, se quiser, e-política:. (do reino) de Deus, mas com a dos homens
(e!. 8,33).
Jesus sublinha sua instrução com um gesto simbólico, abraçando
urna criança e explicando de que maneira um discípulo se aproxima,
seja d'Ele mesmo seja do Pai, a saber, pelo amor aos pequenos
(9,36-37). É neste amor aos pequenos que o disc!pulo de Cristo
e.renuncia-se a si mesmo, torna a sua cruz, segue Je$US e perde a sua
vida por amor de Jesus e da Boa-Nova> (cf. 8,34-35).
No contexto da terceira predição da paixão Marcos adotarã de
novo este mesmo esquema (cf. respectivamente: 10,32; 10,33-34; 10,35-41;
10,42-45).
Pode-se ainda constatar como nesta parte volta o tema da incom- ·
preensão dos discípulos, já presente na primeira parte (cf. 6,52; 7,17-18;
8,4.15-21; cf. também a Pista Exegética de Me 7,31-37, acima, p. 403').
E.m um primeiro passo, esta incompreensão é ultrapassada pela con-
fissão de Pedro (8,27-30), que consiste em uma identificação de jesus
434
com o Messias esperado. Ele volta de novo em 8,32s; 9,6.10.32: 10,13-14
etc.). Nesta Parle Central, porém, a incompreensão diz respeito à v~­
dadeira missão de jesus, à sua paixão e morte. Doravante acrescenta-se
ao tema da incompreensão o do medo (cl. 9,32; 10,32).
Através desta estruturação de sua mensagem, o evangelista Marcos
repete por três vezes (8,27-35; 9,30-37; 10,32-45) que não é suficiente
reconhecer em Jesus o Messias e aclamá-1'0 como salvador ou liber-
tador. A profissão de fé batismal (<Tu és o Cristo>: 8,29) em que
culmina a Primeira Parte do evangelho é somente o início de uma
metanóia constante e de uma mudança contínua de mentalidade e de
maneiras de agir através das quais o cristão sintoniza sempre mais
os seus critérios com os critérios que jesus revelou pai Suas palavras
e Suas obras; e a sua vida à vida de jesus, que é toda disponibilidade
ao Pai e fideJidade aos homens, aos quais é enviado como servo,
corno servo sofredor (9,35; 10,43-45).
Bibliografia: Os comentãrlos de T a y 1 o r, S eh w e 1 z e r e M a 11 y (em:
The ]erome. Bibllcal Commentary); Fr. Nelrynck, A Tradição das Sentenças
de Jesus. Um estudo baseado em Me 9,33-50, em: Concilium 1966/10, p. 57s; L.
Sou b l g ou, O Plano do Evangelho segundo São Marcos, em RCB 12 (1975),
JM..96; K. K e r te 1 g e, A Epifania de jesus no Evangelho de Marcos, em: J.
Se h r e i n e r - O. D a u t zen b e r gj Forma e Exigéncias do Novo Testamento,
S. Paulo 1977 p. 228-255; L. A 1 g s 1, A Composição do Evangelho de Marcos,
em: T. B a 1 f ar i n i, e.o., lntroduili.O à BlbUa com ontologia exegética, vol. IV,
Petrópolis 1972, p. 110-127.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Tema Principal
PARA QUE SOFRER?
Sugestões para a Homilia
Introdução
Sofre o homem de hoje e sofre muito. Sofre apesar das
prodigiosas descobertas no campo da medicina. Sofre apesar
do avanço tremendo do progresso científico. Basta um ligeiro
olhar ao nosso redor, basta ler os jornais e as notícias diãrias
da TV, basta entrar nos pequenos ou grandes hospitais de nossa
cidade para sentir o drama do sofrimento.
Corpo
1. O fato
Sofre a criança que mal acaba de nascer. Sofre o adoles-
cente na primavera da vida. Sofre a jovem esposa que perdeu
o primeiro filho. Sofre o pai com uma grande familia a sus-
tentar. Sofre o operãrio com o peso do trabalho. Sofre o co-
435
lono com as colheitas destruídas. Sofre o velho com o aban-
dono e a solidão. Sofrem as famílias enlutadas pela perda de
entes queridos nas últimas enchentes e catástrofes.
Quantas crianças com mãos trituradas. Quantas pessoas que
ficaram aleijadas. Quantas faces enrugadas pela tristeza. Quantos
corações rasgados pelas unhas da ingratidão. Quantas vidas que-
bradas pelas pedras da brutalidade. Quantos pobres esmaga-
dos pelos sistemas políticos e econômicos. Quantos gritos aba-
fados dos oprimidos e humilhados.
O mundo continua sendo um mar de dores. É o sofrimento
de milhões que morrem de fome. O sofrimento de milhões pros-
trados pela miséria. O sofrimento de milhões que vegetam no
subdesenvolvimento.
Ninguém escapa da Via-Sacra. A dor acompanha-nos do
berço ao túmulo, como a sombra acompanha o nosso corpo.
Terrível mistério do sofrimento que envolve a história humana!
2. Para quê?
Para que tanto sofrimento? Como ver um sentido no so-
frimento absurdo dos inocentes? Para que este menino que há
semanas geme terrivelmente queimado? Para que 270 pessoas
que foram enterradas na sepultura do próprio avião? Para que
esta mãe concerosa condenada tão cedo a morrer? Para que
esse operário que caiu dos andaimes, quebrando a espinha
dorsal? Para que essa moça paralítica há mais de 20 anos?
Para que tanto sofrimento no mundo que a tantos faz revoltar,
blasfemar ou enlouquecer?
3. Tentativa de resposta
A resposta não é fácil. O sofrimento foi um escândalo na
própria vida de Jesus a tal ponto que suou sangue e sentiu
sua alma angustiada até a morte e pediu ao Pai para que
afastasse o cálice da dor. r até o Vietnã, até Uganda, até a Nicarágua, até as vítimas do
A paixão e a morte foram realidades incompreensíveis para
a inteligência dos discípuros. Como o Filho do Homem poderá
ser assassinado? Como, se Ele veio para que nós vivêssemos
a plenitude da alegria?
«Eles não entendiam essas coisas ... » Me 9,32.
O sofrimento é realmente um desafio para a nossa fé cristã.
Jesus não procurou a paixão, o sofrimento, a morte. A
predição de sua rejeição é o sinal, a demonstração do com-
promisso radical de fidelidade no amor ao Pai e aos homens,
solidarizando-se sempre com aqueles que eram desqualificados
436
e deserdados neste mundo. O sofrimento de Jesus é a conse-
qüência lógica da coerência de sua vida, atitude e mensagem.
Cristo viveu, testemunhou e anunciou a novidade total do amor
sem limit~s e sem fronteiras, sem 'Jnedida e sem cálculos. Amou
apesar da prepotência dos poderosos, apesar do ódio dos ini-
migos, apesar do egoísmo dos incomodados, apesar da indi-
ferença dos instalados. Mas seu amor esbarrou contra o muro
da injustiça, da adversidade, da opressão, da resistência, da
maldade, · da malícia, do pecado.
Jesus jamais fugiu de sua missão libertadora, continuou
amando <1pesar de, apesar dos pesares e apesar de tudo. Tes-
temunhou até a última gota de seu',sangue que sempre, em qual-
quer situação, na presença de qualquer pessoa se deve e se
pode amar e confiar no amor do pai, mesmo no extremo aban-
dono, na mais terrivel solidão, no' vazio e no aparente absurdo
da morte. Permaneceu firme em comunicar o amor-doação, na
maneira mais profunda e universal, assumindo nossos sofrimen-
tos, chorando nossas lágrimas, sofrendo nossas dores, morrendo
nossa morte.
Só a partir do olhar para o Crucificado nossa existência
tantas vezes atormentada encontra um sentido pleno. Só a partir
da cruz de Cristo encontramos força e coragem para não re-
signar e lutar contra o sofrimento e contra suas causas na vida
familiar e social, nos sistemas econômicos e politicos, nas estru-
turas profissionais e industriais.
A partir do Calvário aceitamos o desafio, as crises, os
dramas, os sofrimentos, as cruzes que nascem do engajamento
pelos injustiçados e desumanizados, pelos violentados e opri-
midos, pelos expulsos e exilados deste mundo.
Em nome do Crucificado não podemos jamais marginalizar
a história da tragédia humana desde o massacre das crianças
inocentes de Herodes até o holocausto dos judeus, até Hiroxima,
trânsito infernal.
A luz do Cristo crucificado e ressuscitado podemos e de-
vemos assumir a responsabilidade de enxugar as lágrimas, de
aliviar o sofrimento, de acalmar as angústias, lutando pela jus-
tiça bem concreta na família, no trabalho, no bairro, em qual-
quer lugar, porque pela sua PASCOA todos os males foram
fundamentalmente vencidos.
437
r
Conclusão
1 Para todos aqueles que hoje sofrem, se sentem oprimidos,
têm fome e sede de justiça, de dignidade, de respeito, de liber-
dade, Cristo traz uma esperança. «Vinde a mim todos que estais
sobrecarregados, oprimidos, angustiados, sofitários, vinde a mim,
eu vos aliviarei».
Nenhuma lágrima cai no vazio. Nenhum esforço se perde
durante â vida. Não existe nenhum sofrimento absolutamente
absurdo, desde que nós façamos dos nossos sofrimentos uma
comunhão com Ele.
O que salva o mundo é o amor. Nossa paixão tem sentido
porque prepara a ressurreição. Nosso sofrimento tem sentido
porque é caminho de libertação. Nossa morte tem sentido por-
t que prepara a vida eterna, pois «tudo contribui para o bem
daqueles que amam a Deus» (Rm 8,28).
Frei Clemente Kesselmeier
Ipanema, Rio de Janeiro, RJ
438
Vigésimo Sexto Domingo
do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Nm 11,25-29
«Quem dera que todo o povo do Senhor fossem profetas!»
No cap. 11 dos Números aparecem duas tradições distintas: a
javista (w. 4-13.15.IS-24a.31-35) e a elofsta (w. l-3.14.16.17.24b-30).
O autor javista ocupa-se da murmuração do povo, que sente desejos
de comer carne. Moisés pede ao Senhor uma solução para o problema
da fome. Manifesta, ao mesmo tempo, seu cansaço em bancar sozinho
a «babá do povo~. Deus, então, anuncia carne em fartura para o dia
seguinte (w. 18-24a).
Neste relato o redator entrelaçou o episódio eloista dos 70 anciãos.
O cansaço manifestado por Moisés (vv. l lss) serviu como razão para
o Senhor lhe prometer 70 auxiliares carismáticos (vv. 16s). A tradição
eloista conhece outro lato semelhante (cf. Ex 18,13-27). Teria sido
jetro, o sogro de Moisés, que, ao notar sua estafa, lhe sugeriu a
criação de juízes auxiliares. Moisés deveria reservar-se apenas as ques-
tões mais importantes. ~ evidente, pois, o interesse do texto desta
missa (Nm 11,25-29) na origem do carisma profético. O próprio Deus
tira parte do espírito profético de Moisés e o passa aos seus 70 novos
colaboradores. Estes, apenas recebem o espírito, começam a cprofetizar».
Esta expressão no profetismo das origens (e!. ISm 10,10-13) significa
centrar em transe>, ccair em êxtase>. Mostra-se aqui o interesse da
tradição eloísta em legitimar o movimento profético, bastante desen-
volvido no Reino de Israel, atribuindo-lhe a origem aos tempos de
Moisés. O texto hebraico, porém, constata que os anciãos «não con-
tinuara= a profetizar (v. 25), termo ,que o texto da Vulgata entende
mal e traduz por cnão pararam maisl> de profetizar.
Josué, o futuro substituto de Moisés e lider do povo (Nm 27,12-23
= P), mostra-se cioso da autoridade de Mo.isés. Não o preocupam tanto
os 70 anciãos, que participavam do poder delegado - e, portanto,
controlável - de Moisés. De lato, eles profetizavam na tenda de
reunião, no santuãrio, à sombra do poder sacerdotal. Josué estã mais
preocupado com dois outros. homens, que não pertenciam aos 70 (cf.
v. 16). Sobre eles também desceu o espírito. Ao contrário dos 70, que
logo cpararam>, estes continuavam profetizando, fora da tenda, sem o
controle de Moisés e dos sacerdotes (v. 27). Josué, intérprete da von-
tade dos sacerdotes que detinham o controle da religião, chega a pedir
a Moisés que os proíba de continuar profetizando (v. 28). A resposta
de Moisés, porém, vale pua todos aqueles que, na Igreja, revestidos
do carisma sacerdotal, querem controlar o carisma profético: «Quem
dera que todo o povo do Senhor fossem profetas, e o Senhor lhes
concedesse o seu espírito> (v. 29) 1
As manifestações carismãticas sempre têm causado inquietação à
hierarquia da Jgreja. .a que os verdadeiros carismáticos, os profetas,
não se enquadram facilmente nos esquemas estabelecidos; são inova-
dores, mexem com as estruturas e com a própria segurança da insti-
tuição. Tanto Moisés, como Cristo no Evangelho de hoje (Me 9,38-40)
439
e o próprio joão Batista (cf. jo 3,26ss), porém, souberam afastar a
tentação de circunscrever a manifestação do Esplrito dentro dos estrei-
tos limites de uma estrutura controlável.
Também hoje os verdadeiros profetas, apesar da Inquietação que
possam causar à hierarquia, devem ser acolbidós como parte do povo
de Deus em marcha para a terra prometida, que é a realização do
Reino de Deus. Como Eldade e· Medade, também os profetas contem-
porâneos estão «inscritos>, fazem parte dos deslgnios de Deus. O
carisma profético não está a serviço de veleidades pessoais, mas da
aliança de Israel com seu Deus. É neste sentido que os profetas con-
tribuem também hoje para renovar a fidelidade da Igreja a Cristo.
Bibliografia: O. L o h f J n k, Dfe Angst vor dem OeJst. Eine HomUJe zu Num
11,16s.24-2~. em Blbel und Leben., 11 (1970), 114-117.
L. Garmus, Q,p;M.
Petrópolis, RJ
Segumla Leitura: Tg 5,1·6
No contexto imediato anterior, Tiago, com estilo profético sobre
o juízo, investe contra uma atitude contrária à mensagem cristã: a
temerária confiança em si mesmos dos comerciantes (4,13-17), quando,
áo invés, só Deus é o senhor do futuro. Agora (5,1-6) é a vez dos
ricos, avarentos e exploradores: injustos, dos hedonistas desumanos:
estão sob o juízo inexorável de Deus, porquanto não seguem sua
consciência (4,7; cf. Rm 14,23). Como um profeta, Tiago repete os
«ais::t> que jesus proferira contra os ricos, os fartos, os glutões, os
exploradores do próximo (cf. Lc · 6,20s; livro de Enoc 94,7-14; 98,2-15).
Desde a ressurreição de Cristo; o mundo está em julgamento e os
ressuscitados procedem a uma gtande inversão de valores: o terrestre
cede ao celeste. Os ricos - devem ser certos cristãos - ·já foram
sentenciados (vv. 2ss) em sua insegurança e pobreza, razão pela qual
deveriam lamentar sua triste sorte (v. !). Tudo aqnilo que 'constituia
a sua seguridade e o seu poder, foi efêmero, desiludiu. Tais riquezas
consistem em viveres, vestuãrio e metais preciosos. «Fermgem> e «tra...
ças» (vv. 2-3) testemunharão contra a dureza e a avareza dos ricos,
os quais preferiram ver estragadas e carcomidas suas coisas' a dá-las
aos carentes (cf. Eclo 29,13). Ferrugem/traças simbolizam também o
remorso, a ruina do rico. Segundo o pecado, serão castigados (Sb
11,7). jesus exortava a não acumular bens que a ferrugem e a traça
corroem (Mt 6;19s; Lc 12,33). Tais pessoas perder-se-ão, porque de-
sitmanas e insensatas: além de dissipar no fasto os seus bens, diante
dO que Jesus fez e sofreu, não levaram a sério e não quiseram reco-
nhecer a nova ordem messiânica e escatológica, quando o julgamento
foi já instaurado (v. 5: o «dia da matança>). Antes, permaneceram
na sua, como se o mundo durasse indefinidamente, como se Deus não
os julgasse. Pobre e Insensato aquele que, após o evento pascal, não
se prepara para o juízo divino e busca sua segurança e auto-suficiência
nos valores deste século, os quais vão tornar mais terrível· a cólera
divina - centesourastes nos últimos dias> (v. 3) 1
Os vv. 4-6 ensinam que há uma triplice injustiça clamando a Deus
por vingança: defraudar o salário, abusar dos bens no hedonismo,
explorar e oprimir o pobre. Parece referir-se Tiago, em primeiro lugar,
440
aos que pôssuem terras e, a seguir,1 também aos de outros setores
de trabalho. O' salário vem à baila, qile, além de minimo, vinha sendo
retido. A Lei mosaica pleiteava e garantia o salârio mlnimo, a ser
pago no final do dia (Lv 19,13; Dt 24,14s; Mq 3,3-5; jr 22,13; Tb 4,14;
]ó 24,9; Eclo 4,1-6) - sem o que 'º trabalhador passaria fome. O
salário defraudado era comparado a .um clamor que, como o sanguê
de Abel, pedia vingança ao céu (Gn 4,10; Ex 2,23s; Dt 24,15; Js 5,8s).
Deus mesmo promete sua ajuda aos "injustiçados que lha pedem (Ex
22,26). O v. 4 está repleto de reminiscências do VT. Os ricos, insensíveis
aos gritos dos pobres, abusam de SLµlS posses no prazer e no luxo:
Banquetes e ociosidade os engordam cómo animais destinados à matançà
(cf. jr 46,21; 12,13; Os 4,11; Pr 23,20.29s). Recorde-se a parábola
do rico epulão e de lázaro (Lc 12,16-21; 16,19-31).
Não ~só. Os ricos, com seu poder, odeiam e massacram o pobre
em contendas judiciais, lesando seus direitos, inclusive os da liberdade
e da vidà (2,6ss), e explorando a boa-fé dos operários cristãos, que
procuram itudo suportar em nome de Jesus. Esta situação era favorecida
pela parcialidade e corrupção dos juízes. Pense-se na ruína social e
econômica: dessa gente simples. O Eclesiástico identifica a exploração
do operáiio ao homicldio (Eclo 34,22-27). Os proMas protestam contra
semelhantes repressões (Mq 3,1-3.9-10; Am 5,12; 6,12). Os abastados
normalmente são egoistas sem escrúpulos, a quem o direito e a justiça
não contam, visando o aumento de suas posses e hedonismo (Fl 3,19).
Não se comovem com o estado infra-humano de seus servidores inde~
fesos, ao contrârio, valem-se deles para enriquecer mais, explorando-os
a lodo vapor. Os ricos foram julgados e os pobres, graças à sua
confiança· em Deus, foram justiçados. O Criador faz justiça a todos
os pobres, não Só aos cristãos. Tal justiça divina não nos isenta de
contribuir para superar as injustiças , sociais, embora a última espe.;;
rança esteja em Deus.
O cjitsto» condenado não é jesus, mas o cristão pobre, oprimido
e persegilido, coletivamente (cl. Sb 2,10.12.18; Is 57,1; SI 94,21), o
qual confia em Deus e não será por Ele abandonado. O pecado dos
ricos é tanto mais grave e odioso, quanto menos defesa tem o pobre~
'
Bihliogr9/ia: Cf. 220 Domingo do Tempo e.comum, Ano R, p. 408.
P. Matheus P. Giuliani, S.A.C;
Santa Maria, RS
Terceira Leitura: Me! 9,37·42M.46-47
~«. . . quem não é contra nds está a nosso fcwon
Existe um certo nexo entre os ditos de jesus que se lêem hoje.
Ele, porém, não é de ordem lógica, ma's literária e consiste em palavras...
chaves que facilitam a memorização. .'A proposta que aqui se faz de
uma conexão e subdivisão 1emática somente visa dar uma sugestão
àqueles que preferem basear a homilia no Evangelho. Com esta res-
salva pode-se resumir o conteúdo dos diversos ditos na frase: não
prejudicar' em nada o Espírito de Je~us quando este atua, seja ford
da igreja· (vv. 38-40), seja dentro qela (vv. 41-42) seja dentro d~
cada um (vv. 43-48). Ressaltando a palavra-chave mais importante destas
sentenças.' pode·se dizer, em outras palavras: não escandalizar-se do
bem que,. acontece fora da igreja (vv. 38-40); .não dar escândalo a
441
 ninguém que pertence à Igreja (vv. 41-42); erradicar de nós tudo que
causa escàndalo (vv. 43-48). Ou ainda: em Jesus Deus quer atingir
todos os homens: os de fora (vv. 38-40), os mais pequeninos de dentro
(v. 42) e co homem todo> (vv. 43-47);
Vv. 38-40: João reclama que se proíba toda a atividade. em nome
de Jesus a quem não pertence reconhecidamente ao grupo dos dis-
clpulos. Jesus opõe-se com muita clareza a este exclusivismo. João
guer ver a atuação do Esplrito de Deus e de Jesus enquadrada em um
grupo bem definido, para evitar dispersão de forças, perda de pres-
tigio, confusão... Jesus rejeita , esta tendência. Para Ele o, bem não
tem fronteiras, nem religiosas, nem sagradas, nem denominacionais, nem
ideológicas .•. O homem não tem o direito de encurtar a mão de Deus
e de se projetar como instrumento exclusivo dela.
Associando esta versão deste dito com a versão de Mt 12,30 dá-se
que todos - querendo ou não, consciente ou inconscientemente -
agem como seguidores ou advereãrios da causa do Senhor, mesmo os
que não se tiverem unido a Ele, exteriormente. Poder-se-ia falar de um
«cristianismo extra-eclesial:t ou «anônimo> e aplicar este termo a todos
que procuram o bem. Não se p_ode fiar nas aparências e baseando-se
nelas dividir os homens em seguidores ou adversários de Jesus. Nin-
1
guém, pois, se escandalize da presença ativa do Espírito de Deus e
do Senhor Jesus fora da Igreja. Em •vista da atitude dos cristãos
1 diante ae todos aqueles que não, pertencem à Igreja ou dela .se distan-
ciaram, isto é de máxima importância. Deus e o Senhor são maiores
do que a Igreja. , deza da fé cristã. Que não honra ao infinito do mistério divino.
Vv. 41-42: Todos os disclpulos de Jesus, mas especialmente os
menores dentre eles~ merecem o máximo respeito. Como sempr.e, jesus
defende especialmente os pequenos. Ele mostra a máxima consideração
para com eles e a exige de todos. Em v. 41 e 42 formulam-se dois
casos extremos: um gesto à primeira vista tão insignificante como
oferecer um copo de água já será recompensado; o escàndalo dado
a um dos mais insignificantes será ca5tigado. Trata-se da recompensa
e castigo eternos. Veicula-se desta maneira a pretensão escatológica
de Jesus em suas últimas conseqüências de extremas misericórdia e jus-
tiça divinas. Um laço anônimo com Jesus (v. 40), um gesto simples
de simpatia (v. 41), um prejuízo causado a um dos menores (v. 42)
são decisivos aos olhos de Deus que perscmta as profundezas do
coração.
Vv. 43-48: Estes dois extremos excluem imobilismo. Se Deus estã
presente em Jesus, o homem há de buscá-lo com todo o seu ser e
afastar de si tudo que o possa separar do Senhor. Na época da pu-
blicação do Evangelho as perseguições contra os cristãos podem ter
atribuído aos ditos de vv. 42-47 'uma grande atualidade e exigido uma
interpretação bastante literal: melhor é entrares mutilado para a Vida
do que.. . negar o Senhor e apostatar da fé. Em todas as circunstâncias,
no entanto, o cristão há de erradicar tudo que possa prejudicar sua
adesão ao Senhor.
BlbliograjJa: Al!m de comentários: .A. M l eh e l, verb. "mlkrõs", em :ThWzNT 4
(1942), 650s; B. S t ã b 1 i n, verb. "skánda1on", em ThWzJVT 7 (1964), 3385; B.
v a n I e r s e 1, /ilk 9.~ em Jd.,1 Een Begin, Bllthoven 1973, p. 69-74: Pr.
N e i r 'Y n e k, A Tradição das Sentenças de jesus. Um estudo baseado em Me
?,33-50, em Conciliam 1966/10, p. 57Ss.
Raul Ruijs, O.P.M.
Petrópolis, RJ
442
Sugestões para a Homilia
Introdução
Deus é grande. Sua presença enche o mundo. «Ü céu e a
terra est~o cheios de vossa glória~ - cantamos no «Santo» da
missa. «A terra está cheia de seú amor>> - diz um salmo. E
S. Paulo afinna que Cristo subiu ao céu para encher o mundo
com a énergia de sua ressurreição (cf. Ef 4,10). A Palavra
de Deus. hoje nos convida a olharmos para esta presença viva
e atuante de Deus no mundo e na história.
Corpo
Muita gente acha que Deus está só na Igreja, O mundo
para eles é vazio de Deus. Aí Deus está ausente. O mundo é
o reino dos homens e, quem sabe, até mesmo das forças do
Maligno..
Essà é uma mentalidade estreita. Que não faz jus à gran-
1
É como· .a da rã: no fundo de se u poço pensa que o céu tem
o tamanho da abertura redonda do poço.
Ora, a Igreja não é a cadeia de Deus. Menos ainda seu
túmulo. Deus se encoutra certamente ua Igreja. Mas sua pre-
sença e sua ação salvadora desborda a Igreja por todos os
lados. O Reino de Deus é maior que a Igreja que é seu sa-
cramentei. Deus e seu amor se estendem por toda a terra. O
Espírito ·do Senhor enche o mundo. «0 Verbo é a luz que ilu-
mina todo o homem que vem a este mundo» - diz S. joão no
prólogo de seu evangelho. '
De tato, a presença de Deus' no mundo é como a do sol.
Ela se 'esparrama sobre todos Índistintamente. jesus mesmo
disse: O Pai é tão bom que faz levantar-se o sol sobre os
bons e sobre os maus. Os benefícios de Deus são como os
do sol: :generosos e discretos ao 'mesmo tempo.
É mania de muita gente, mesmo da Igreja, dividir o mundo
em duas categorias: os bons e os· maus; nós e os outros. Essa
é uma visão simplória da realidade. É o maniqueísmo. Esse
método é muito cômodo. Dá-nos segurança e nos garante contra
o medo de nos enganarmos. Há gente que pensa como joão
no Evangelho de hoje: quem não está conosco é contra nós,
está no .erro e perdido. Mas Jesus mostrou que não devia ser
.assim. Mostrou que todos os que_' praticam a bondade, o amor,
a justiça - todos esses perteucem ao seu grupo. Decidindo
443
 pelo homem decidiram por Deus. Seguindo os pobres, estão Igreja praticavam essa lição. S. Justino, por exemplo, diz:
seguindo Jesus Cristo. Podem não saber disso, mas tal é a «Aqueles que viveram segundo o Verbo são cristãos, mesmo
realidade que nos ensina o ,Evangelho de hoje. Jesus mostrou se passaram como ateus. Assim, por exemplo, entre os gregos,
que todas as pessoas que procuram fazer o bem estão unidas Sócrates, Heráclito e seus semelhantes».
e devem se unir. E isso, mesmo se não se acham nii mesma
religião. O importante é anfar os irmãos, lutar ao lado dos Conclusão
oprimidos.
Entretanto, encontra-se muito cristão que pensa assim: esse Ouçamos, por fim, esse lindo depoimento de um homem
homem é ateu, então é mau, ,é pervertido, não merece confiança. muito querido de nosso tempo, o Papa João. Quando era ainda
Ou: essa pessoa é protestante, então está errada, é falsa etc. arcebispo de Veneza, foi um dia visitar a Câmara Municipal.
Ora, para conhecer uma pessoa temos de usar o critério Aí viu sentados ·políticos socialistas e comunistas. Dirigindo-se
que Jesus nos ensinou: olhar para suas obras. Pelos frutos se a eles, falou assim: «Só quem faz o bem é que é cristão. Quero
conhece a árvore. É assim também que Deus vai reconhecer dizer, a única maneira de ser cristão consiste em fazer o. bem.
os seus no fim do mundo. Não será pelo seu dizer: se são ou Por isso digo que me acho aqui à vontade, pois se acaso alguém
não são cristãos. Será pelo seu fazer: pelas obras que tiverem houver que não se considere cristão, o é de fato, embora não
· praticado. Quem é cristão? Não é o que se diz cristão. É o creia, se faz o bem».
aquele que faz o que Jesus fez. CI. Bo!f, O.S.M.
De fato, Jesus avisava: Tomai cuidado com os lobos vesti- Rio de janeiro, RJ
dos com pele de ovelha. E atacava da maneira mais forte a
hipocrisia, a falsidade: a atitude dos fariseus que faziam de
tudo para parecerem justos ·quando de fato não passavam de
homens corrompidos.
Pensemos. Quanta gente. há neste mundo que tem. bondade
de coração. Quantos sofrem perseguição com coragem. Quantos
têm fome e sede de justiça. Quantos lutam para melhorar o
mundo. Muitos há que se sacrificam pelos outros. Mqitos dão
de si, de seu tempo, de seu, dinheiro, de sua habilidade para
libertar os sofredores de seu~ sofrimentos. E isso a g~nte pode
encontrar em todas as partes do mundo: em países católicos
e em países não-católicos. São pais e mães de familia, operá-
rios e sindicalistas, analfabetos e doutores, estudantes e campo-
neses. Muitos há que se entfegam a grandes causas: .a causas
que são as do povo mais pobre e explorado - o Cristo. do povo.
Tudo isso é graça. É presença secreta de Deus em nosso
mundo. Todo gesto de bondade e amor é reflexo da bondade
e do amor de Deus. O cristão é chamado a honrar essa ma-
nifestação de Deus nas práticas da justiça e do amm:, seja lá
por quem forem feitas.
Os profetas sabiam ver a ação de Deus também presente
nos outros povos. Assim foi Jonas com Nínive. Assim Jsalas
com Ciro. O Novo Testamento faz a mesma coisa. Assim, o
Apocalipse diz que a multidão imensa dos redimidos 'provinha
«de toda nação, raça, povo• e lingua» (7,9). Os Padres da
444 445
 Vigésimo Sétimo Domingo
do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Gn 2,18·24
«Não é bom que o homem esteja só .. .> (v. 18) - é narração
popular haurida das fontes ]E; a criação da mulher já constava de
Gn 1,27 (fonte P). A filosofia constata e propugna a sociabilidade do
homem. O mesmo fará a revelação: o homem não vive sozinho, estâ
em função da comunidade. A passagem explana o sentido da relação
matrimonial homem-mulher: de fato, desde o inicio, a mulher esteve
intimamente ligada ao homem, como um auxiliar semelhante a ele, um
vis-à-vis, um complemento ou um reflexo do homem (cf. Eclo 4,9-12;
36,26). Trata-se não apenas de comunidade externa para o trabalho
e o sustento, como também de comunhão interna no pensar e agir,
culminando na união flsica e psicológica de ambos. A mulher, no
contexto, figura coino um ser humano, superior aos animais: o pri-
meiro homem, com efeito, não encontrara entre estes uma companheira
ideal. Não obstante a utilidade deles, Adão curtia uma solidão imensa.
A narração da origem da mulher põe em relevo mais • igualdade
do homem e da mulher do que o modo de como foi criada. «Ser to-
mada do homem> (v. 23) mostra em concreto que a mulher possui
personalidade perfeita humana. O «sono de Adão>, a «costela:> possuem
simbolismo; jã Orlgenes e Agostinho o haviam reconhecido. O Cardeal
Caetano, no século XVI, atesta que não se trata de sentido literal, mas
misteriosamente alegórico-parabólico. «Sêlã'> pode significar costela, cos-
tado, vida. Parece mais consentâneo com a alegoria conservar a acepção
de ccostela>, porque, enquanto estã ao lado e perto do coração, co•
nota amizade e, pelo seu .número, torna pJausível a imagem ctirar uma
costela>. Seja como for, a mente do hagiógrafo é: homem e mulher
perfazem unidade indissolúvel, a mulher não se concebe senão como
parte do homem. Eva foi tirada do costado de Adão para manifestar
que entre homem e mulher deve existir comunidade perfeita. No texto
são expressos 3 elementos: - um vínculo sólido entre homem e mulher,
pelo qual, amando sua mulher, ama-se a si mesmo (Ef 5,28s); - a
dignidade ~special do homem a quem a mulher se equipara (Ef 5,23;
!Cor 11,7; lTm 2,12s); - a igualdade de natureza entre ambos (!Cor
11,12), algo surpreendente para aquele tempo.
Adão (v. 23) ergue um hino de júbilo à bondade divina por ter-lhe
dado Eva, com o que reconhece a identidade de natureza dos dois.
c:Osso de meu osso, carne de minha carn6 não indica tanto a origem
material ou a igualdade de natureza, quanto a intimidade da união ma-
trimonial (cf. Gn 29,14; jz 9,2; 2Sm 5,1; 19,12s). O simbolismo não
contradiz os fatos. Antes, o evento antigo leva o hagiógrafo a uma
adjunção etiológica: eis por que - remontando às origens - o homem
deixarã tudo, pai e mãe, para unir-se à sua mulher e os dois serão
uma só carne (cf. Mt 19,4s). O apelativo «DJulher> deve-se a trocadilho
de palavras ciã> (vir) e ci!§ah> (virago) - o que confirma o simbo-
lismo da narração.
Gn 2,18-24 é mais que simples fábula, alegoria ou lenda. No início
houve um fato que perdura: a comunidade familiar, querida por Deus
446
desde sempre, rompe com os laços sagrados da tribo, reafirmando sua
prioridade. É o plano salvífico de Deus. Adão e Eva são apresenta-
dos como arquétip·o, como causa exemplar, simbolizando o desejo divino
concernente ao matrimônio, instituição sagrada e indissolúvel. O texto
não alude, menos ainda prova, o modo exato e biológico de como a
mulher foi tirada do homem. Por outro lado, a alegoria não exclui a
realidade dos eventos. É simbólica a maneira de narrar a criação de
Eva, não a sua formação «a partir> do primeiro homem,- isto é, à sua
imagem e semelhança. Ela não foi tirada biologicamente de uma parte
do homem, mas como realidade humana e espiritual, pois o homem
não é completo sem ela. É a complementação mútua. A expressão doi
tomada do homem> (23) não diz causalidade material, mas exemplar
e final: Eva foi constitulda segundo o exemplar-Adão e destinada a
complementá-lo. Ambos são 2 seres da mesma natureza que um mesmo
amor deve unir, .porquanto Eva é para Adão um «outro-ele-mesmo>.
O «SODO> de Adão, enquanto Deus formava a mulher, pode insinuar
que a criação de Eva é obra misteriosa e exclusiva de Deus, sem
qualquer palpite do homem.
O autor, como teólogo, projeta sobre os primórdios a realidade
atual do matrimônio, não lhe interessando a : origem genética masculi-
na e feminina. Sublinha o relacionamento homem-mulher, instituldo pelo
Criador e, portanto, fundamentalmente bom. A sã exegese exclui antro-
pomorfismos (cirurgia em Adão) e recurso ao mito hermafrodita ou
andrógino. Prescinde ainda do problema relativo ao mono/poli-genismo,
atendendo mais a considerações religiosas: união çom Deus e com o
cônjuge. Toda comunhão de vida, afinal, provém de Deus. Trata-se da
unicidade de um evento primordial, carregado de simbolismo religioso,
que se estende a toda a humanidade.
BlbJiografla: D e Pra i n e, J., La Bible et J'orl_glne de l'homme, Desclée,
Bélgica 1961; Si m'ó n - Pra d o, Praelectlones, VT/l, Marietti, Turim 1949;
Testa, P. E., Genesi (S. Bibbla/Oarofalo). J.t. Marietti, Turim 1968; Ar na 1 d i eh,
L. Origem do homem e do mundo, Lisboa 1!158; P 1rot-C1 ame r, La S. Bibte,
J.1 Paris 1953; B a 11 ar i n J, O al b ia t 1, Mor a ld 1, Introdufão à BlbUa,
11·1, Vozes 1975. ·
P. Matheus P. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Segunda Leitura: Hb Z,9·11
O texto da segunda leitura de hoje é tirado da primeira parte da
carta aos Hebreus, onde o autor indica qual o verdadeiro lugar de
Cristo no contexto da criação. Muitos tentaram fazer de Cristo uma
criatura como as outras, ou apenas um mensageiro ilustre de Deus. A
carta aos Hebreus porém afirma peremptoriamente ser Cristo superior
também aos Anjos, que numa certa teologia judaica eram considerados
como mediadores entre Deus e os homens, até da própria Lei Mosaica
e por conseguinte · da salvação pela Lei.
Hb 2,9-11 faz parle da afirmação de que a redenção veio por
Cristo e não pelos Anjos, assim as palavras cpor um pouco menor
que os anjo~ deverão ser interpretadas como referindo.se ao tempo
de sua vida terrestre, onde na sua condição kenótica Cristo, assumindo
a condição de homem, assumiu uma condição inferior à dos Anjos.
Certamente o homem de Nazaré, limitado no espaço e no tempo, era
inferior aos espíritos superiores, mas será que podemos separar, de
447
fato, o homem, Jesus de Nazaré, do Cristo Verbo Encarnado? Talvez
seja melhor dizer que o Verbo assumiu uma condição inferior, nm
aspecto inferior (cf. FI 2;7) permanecendo Deus. É o _mistério do Cristo!
Condição da situação kenótica de Cristo foram seus sofrimentos e
morte, mas em contrapartida ele foi elevado ao ser coroado de honra
e glória. Ao abaixamento corresponde uma elevação. O texto deve, então,
ser colocado na linha do Hino Kenótico de FI 2,6-11, e do livro de
Jó, onde o justo sofredor aparece exaltado por DeUSJ
O fato do homem Jesus dar a vida por nós foi 'uma graça, a nós
concedida por Deus. Ele ·poderia ter salvo o homem de maneira diversa,
mas o fez pelo gesto que indica um amor maior, á doação da vida
(cf. Jo 15,13). Assim a' morte de Cristo foi um afo de benevolência
de Deus, não uma derrofa, mas uma exaltação do Cristo (cf. Jo 12,32).
Pela morte na cruz, Cristo fez-se sacerdote e vítima,ntornou-se o nosso
único e Sumo sacerdote,'' porque semelhante em tudo a nós, tanto no
sofrimento como na morte (cf. Hb 2,l7s). Assim 'pelo sofrimento e
morte, o Cristo foi elevado à perfeição>, isto é, foi constituido Sumo
Sacerdote, - esse é o sentido do verbo nos LXX e Hb o usa para expri-
mir o mistério da glorificação de Cristo (2,10; 5,9; 7,28), tentando
explicar e justificar o que foi escândalo para a comunidade primitiva
(cf. lCor 1,23), o Cristo morto numa cruz. ·•
Há entre Cristo e os homens uma comunhão' profunda. O que
aconteceu a Cristo não 'é indiferente aos homens. Para queL1 vivia ou
vive nos sofrimentos e p'erseguições esse anúncio é fonte de esperança.
Nosso destino está irremediavelmente ligado ao de Cristo, porque os
homens como Cristo têm~ uma origem comum, Deus;·· e como sua per-
feição incluiu o sofrimento, nós também temos de participar dele.
Cristo nosso guia e salvador é o exemplo, e 'guiada por ele a
comunidade se aproxima de Deus. Ele é assim nosso irmão pela encar..
nação (v. 14) e pela morte (v. 17), pois foi solidário conosco em tudo.
J· •
Bibliografia: S t r a t h m ~ n n H., La Bplstola a los Ílebreos, Fax, Madrld
1971; K u s s O., Lettera agli Ebrel, Morce11iana, Brescia 1966; Blblia Comentada,
BAC, Madrid 19'15; S e b i e r se P. J., Lettera agli Bbrel, Città Nuova, Roma
1968. : tado com a resposta que deram. Esta, porém, é somente uma d:15 r~
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
Paulista, PE
Terceira Leitura: Me 10,2-12(16)
;·
«Já não: são dois, mas wna Só carne:;
Os evangelhos sinótiJos testemunham em dois grupos de textos que
Jesus tomou posição na" questão controvertida do divórcio. O primeiro
grupo consiste em ditos isolados de Jesus, como Mt 5,32 e Lc 16,18.
O outro grupo aparece 'na forma de uma controvérsia (Me 10,2-12 e
MI 19,5-9). Parece que Marcos ou a tradição por ·ele usada uniu os
dois grupos. Ainda percejle-se com facilidade como o .v. 10 liga entre si
a controvérsia (vv. 2-9) e o dito (vv. 11-12). ; Jesus, porém, não se deixa eng8:nar. Prime!ro diz que Dt .24~1 ~ão
A versão da controvérsia de Mt 19 sempre dominou a interpretação
da versão de Me 10. Porque a última certamente .. corresponde mais
às palavras originais de Jesus, vale a pena considerá-Ia mais de perto.
Geralmente pensa-se que Jesus teria interpretado Dt 24,1 sobre a
lei a respeito da carta de divórcio como uma concessão (cf. Mt 19,81).
448
Isto porém é antes a interpretação contemporânea (cf. Me 10,4) a
que' Jesus ~e opõe com a frase: cEla é uma lei que Moisés deu de-
vido à vossa dureza de coração» (cf. Me 10,3.5). O modo como, no
Antigo Testamento, se usa a expressão cxdureza de coração» não admite
que Jesus tenha concordado com a interpretação judaica. Esta expressão
indica a desobediência obstinada a Deus, seja da parte do povo de
Deus, seja da parte de seus adversários e inimigos. Deus reage a esta
atitude de rebeldia seja através da ira, castigando; seja através do
amor, perdoando ou prometendo a renovação espiritual do coração; mas
jamais através de concessões.
Quando Jesus diz que Moisés deu a lei que exige uma carta de
divórcio antes de despedir a esposa «.devido à dureza de coração», isto
não significa que Ele veio ao encontro desta, mas que agiu de encontro
à mesma. A dureza de coração é o alvo da lei, uma agravante e não a
razão prévia escusatória por que ela é dada. Não se deve esquecer
que o judeu que queria dar uma carta de divórcio à esposa, não so-
mente devia endossá-la ele sozinho, mas procurar ainda dois outros
homens que deviam assinar como testemunhas. O marido é, pois, obri-
gado a reconhecer com toda formalidade que seu casamento foi um
fracasso e que tinha violado a ordem estabelecida por Deus. Dando
esta lei, Moisés, pois, não enfraqueceu esta ordem ~tabel~cida por
Deus mas tirou um procedimento errôneo e uma práxis leviana, que
lesav~ gravemente os direitos da mulher, da clandestinidade, anoni-
midade e leviandade. A carta servia de testemunho diante de Deus e
da sociedade.
Os verbos que se usam na versão marciana da controvérsia con·
firmam esta interpretação. Os fariseus perguntaram a Jesus «se era
permitido ao homem repudiar a mulher» (v. 2). Jesus indaga-os _qual
é a respeito do matrimônio a ~o?tade de Deus revela_da na Let . de
Moisés: «Ü que vos ordenou Moises?:> (v. 3). Isto é, digam qual e .ª
Lei de Moisés, vocês que se ufanam de conhecer tão bem esta Lei!
A interpretação costumeira, influenciada pela versão ~e M.ate~, pensa
que Jesus teria perguntado por Dt 24,l e que os fariseus tenam acer-
postas possíveis e não a mais acertada. A resp.osta ce~ta tena sido
antes aquela que o próprio jesus dá logo depois, referindo-se a Gn
1,27 e 2 24. Estes textos também pertencem a «Moisés», isto é, ao
Pentateuc~ (cf. Lc 24,27.44) e são uma verdadeira «lei». Em vez de
responder corno convinha a peritos na Lei, rec?rrer~ a uma resposta
evasiva, alegando a prescrição da carta de divórcio de Dt 24,.1 q~e
interpretam como concessão: «Moisés permitiu escrever carta d.e divórcio
e despedir a mulher» (v. 4). Procedendo deste modo, mediante este
subterfúgio mostram que conhecem a vontade de Deus a fundo, mas
preferem ,;iegar a casu!stica deles desenvoMda em redor de Dt 24,1,
que aparentemente fornece um fundo legal a esta cas~istica. Suger!Ddo
que aquela lei seria uma permissão que goza da autoridade de Moisés,
opõem Moisés a Moisés <para pôr Jesus à prova» (v. 2).
é uma permissão mas uma lei. Depois, que Mo;sés deu esta l~i . «d~Vtdo
à vossa dureza de coração». A dureza de coraçao com que Mo1ses lidou,
em última análise, não é diferente daquela com que Jesus se defrontou:
a recusa de respeitar a vontade clara de Deus e de submeter-se a ela.
Por isso, o cvossa dureza de coração» aplica-se, com toda força, aos
449
fariseus com quem Jesus está lidando. Por fim, Jesus se refere à lei
inicial: cDesde o princípio da criação não vigorou outra lei: Deus os
fez homem e mulher... etc.> (vv. 6-8). A expressão <desde o principio
da criação» é, no texto grego canônico, urna referência cronológica.
Pode ser que no original aramaico jesus tenha aludido mais claramente
ao clnfcio do Livro da Criação::r>, isto é, aos primeiros capítulos do
Gênesis, atribuído a Moisés.
Se esta interpretação for certa, não é mais tão fácil admitir que
Jesus tenha feito uma distinção entre algum tempo da história da huma-
nidade em que a vontade de Deus tivesse vigorado em todo o seu
rigor; que esse tempo tivesse sido seguido por um outro, em que
foram admitidas concessões; e que este último tempo tivesse chegado.
ao seu fim em jesus, por ter urgido o rigor original. Fora de qualquer
dúvida, Jesus pôs fim à casu!stica hipócrita e às tradições humanas
de seu tempo em lavor da vontade de Deus.
BibUograjla: A1ém de comentãrios consultou-se especialmente: H.
Ehe nach dem Neuen Testament, em NTS 15 (1~1969), 365-388.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Tema Principal
DEUS CRIOU A FAMJLIA E CRISTO A RECRIOU
Sugestões para a Homllla
Introdução
Falando em Puebla, dízía João Paulo II : «nosso Deus, em
seu mistério mais íntimo, não é uma solidão, mas uma família,
uma vez que tem em si a paternidade, filiação e a essência
da família que é o amor». A palavra deste domingo é a fala
de Deus sobre a família, fala que, em todos os tempos, é a
recriação da importância da família na tessitura hístórica do
homem. Por isso, a família se toma um ponto de referência para
todas as instituições, pois sua «saúde» se reflete sobre o todo
e sua problemática se derrama sobre as demaís ínstítuições. Não
se pode promover ou atacar a instítuíção familiar sem causar
repercussões correspondentes sobre a sociedade. Daí, a Confe-
rência de Puebla dedicar atenção especial à família, despertando
a Igreja para sua responsabilidade no tocante à família, recor-
dando o embasamento teológico da família humana.
Corpo
t. A familia querida por Deus
O Oênesis conta como Deus se deu conta da solidão do
homem, ainda que cercado dos esplendores da natureza recém-
450
saída de suas mãos criadoras. Nada era igual. Todos os seres
foram criados na coletividade. Só o homem o foi na individua-
lidade. Assim o homem, assim a mulher. Por isso emprega Deus
«técnica» igual para criar o primeiro casal. Os dois se trans-
formam na sementeira que povoará a terra, mas para tanto
deixarão o grupo donde saíram para formar o novo grupo:
a família. O homem colocado na família era associado ao plano
criador e conservador de Deus, plano inicial, puro e intacto,
onde o homem podia aparecer tal qual era, sem esconder partes
do corpo ou mascarar atitudes internas. Os tempos mudaram:
o homem se cobriu de roupa e de máscaras e envolveu a família
em suas tramas, dificultando, sempre mais, que ela realizasse
plenamente o projeto que Deus tínha sobre ela.
O r e e v e n,
2. Cristo recria a familia
Foi nesta família alterada que Cristo assumiu a carne para
realizar seu plano salvífico, numa missão comparada à dos
Anjos (2• leitura): enviado para anunciar e pôr-se a servíço.
O plano da salvação não podia fugir do plano da criação. Deus
age dentro de uma lógica: coloca Cristo no seío da família,
totalmente sujeíto aos organismos sociaís, os quais viera recon-
duzir ao primitívo esplendor e não anular. Entrando na família,
colocava a instituição familiar, em cheio, dentro do mistério
salvífico. Mostrou ser a família a única organização capaz de
superar as inconsistências da história, porque na sua simplici-
dade resume e abrange tudo quanto Deus pode esperar do ho-
mem, porque a família não é apenas a matriz da vida bíológica,
mas o laboratório das personalidades, pois é ela que é a «for-
madora de personalidade, educadora na fé e promotora do de-
senvolvimento» (joão Paulo II). Não basta cuidar da família.
:E preciso chamá-la à sua verdadeira função histórico-teológica.
Não basta evangelizar a família. Necessário se faz torná-la evan-
gelizadora: integrá-la na construção da Igreja que se renova.
3. Ação estável reclama estabilidade de compromisso
Quem «repudiar», diz Cristo: o verbo lembra uma rejeíção
nascida de sentimentos internos, do desamor, do desprezo, do
desligamento. Cristo recorre às duas leis: a de Moisés e a de
Deus: a primeira ele a explica, baseado na dureza do coração
do homem, dureza que hoje recebe o nome de íncompatíbili-
dade, diferença de gênios, necessidades históricas, cópia de outras
civilizações. A segunda ele ratifica, reafirma e vítaliza, porque
é esta a querida por Deus. E não procura figuras. Fala claro:
451
violar a lei de Deus é cometer adultério, infidelidade (contra
a fé, a promessa). É quebra, não apenas de um compromisso
entre um homem e uma mulher, mas entre um par com Deus
e mais ainda: é a destorção de um plano de Deus pelas arti-
manhas do homem, que faz prevalecer seu egoismo e sua sen-
sualidade sobre uma responsabil'idade social. É o homem se
fechando em si mesmo. Adultério é a traição a uma vocação.
Por isso, Deus chamava o povo eleito de adúltero, sempre que
abandonava os caminhos da aliança. Aliança é entrega, doação,
pessoal, total, íntegra, irrevogável, fecunda, única e irrepetível,
íntima e carregada de amor e responsabilidade, como é a união
entre Cristo e a Igreja. Dai nascem as verdadeiras dimensões
do relacionamento homem-mulher, da sexualidade, da paternida-
de responsável, do lugar exato da mulher, da educação, da
função eclesial e social do grupo familiar.
Conclusão
Cristo recriou e santificou a família. Conduziu-a de volta
à fonte de toda a santidade, para que ela, por sua vez, fosse
torrente de santidade. Por isso diz Puebla: «Ü casal santificado
pelo sacramento do matrimônio é um evangelho da presença
pascal do Senhor. A família cristã cultiva o espirita de amor
e de serviço. Quatro relações fundamentais da pessoa encontram
seu pleno desenvolvimento na vida de familia: paternidade, fi-
fiação, fraternidade, nupcialidade. Estas mesmas quatro relações
compõem a vida da Igreja: experiência de Deus como Pai,
experiência de ser filhos no Filho, com Ele e por Ele, e a expe-
riência de Cristo como Esposo da Igreja ... » (Puebla, n• 431).
Mais do que nunca está a familia convocada a aclarar sua ação
e a acreditar, mais uma vez, em sua força renovadora, como co-
munidade evangelizadora insubstituível. Dai, todos os movimen-
tos e iniciativas em prol da familia significam tentativas de trazer
soluções ao conturbado quadro social de nossos dias. Nela co-
locamos nossa esperança e nosso esforço no sentido de pre-
parar os candidatos ao matrimônio, de dirigir os casados e
colaborar na melhoria das circunstâncias envolventes, para que
a família seja verdadeiramente a imagem de Deus, consciente
de sua vocação e de sua mi.~são.
Frei Hugo D. Baggio, O.F.M.
Rio de janeiro, RJ
452
Vigésimo Oitavo Domingo
do Tempo Comum
Pistas Exegétfcas
Prlmelra Leitura: Sb 7,7·11
Sb 6-9, parte central do Livro, disserta sobre a sabedoria: natu-
reza, excelência (6), necessidade, propriedades (7), valor (8). A pe-
rícope encerra com uma preciosa oração para impetrá-la (9). Em espe-
cial precisam dela os reis, cujo poder vem de Deus (6). Quem a
busca, gozará de seus beneficias. E como é elogiada (6,22-25) l Sendo
que a sabedoria não é dom natural, nem privilégio decorrente da
nobreza ou dignidade rea11 Salomão, mortal como qualquer outro,
valeu-se dos meios para obtê-la (v. 7). Recorreu antes de tudo .à
oração e Javé lhe conferiu sabedoria e prudência. O homem recebe a
existência, não a cria por si mesmo, porquanto o nascer e o morrer
independem dele.
A csabedoria» pode ser a ciência especulativa, - a «prudência»,
a inteligência bem aplicada, a ciência prática, que ensina a todos o
caminho para alcançar a legitima sabedoria. No v. 8 inicia o hino de
louvor à sabedoria, conferindo mais originalidade e inspiração poética
à prece elevada por Salomão, em Oabaon (IRs 3,9-14), com um li-
rismo especial, com termos e comparações escolhidas. Estimou-se a sa-
bedoria mais do que as pedras preciosas, ouro e prata, que rião são
mais do que areia e lodo, - mais do que a saúde (v. 10), a qual,
em certas ocasiões, não é fácil conservar sem o saber e a prudência
conferidos pela sabedoria. Foi preferida à formosura, tão instável e vã,
\• se comparada com a sabedoria, cujas conseqüências e frutos são du-
radouros, um tesouro inesgotável.
A llatureza nada oferece de melhor do que a luz, entretanto a
sabedoria a supera, porque esta cede às trevas, quando ao invés o
resplendor daquela brilha sempre (lRs 3,13; Pr 6,23; Sb 7,10). Em
Oabaon, Deus ofereceu em sonho a Salomão tudo o que desejasse;
o rei não pediu nem vida longa nem riquezas, apenas um coração
1 sábio para governar seu povo (d. lRs 3,9). Para o homem, ouro e
prata são valores; saúde e beleza, ainda mais. Todavia, acima de tudo
está a sabedoria.
A sabedoria ou é o próprio Deus ou está persorii!icada. Com efeito,
é mais luminosa do que o sol e, comparada com a luz, é mais clara
(7,29). Deus fez a luz (On 1,3) e Deus é a luz (ljo 1,5; ]o 8,12). A
sabedoria é reflexo da luz eterna (7,26), logo, não se extingue. São
João (Jo J,9) garante que a Sabedoria, feita homem em jesus Cristo,
é a verdadeira luz que ilumina todos os homens. Na vida futura não
haverá nem dia nem noite, pois o Cordeiro será luz inexaurível e
perene (1,15; Ap 21,5). Nesta passagem o sãbio nos fornece um cri-
tério excelente para julgar se, de fato, possuímos o espírito de sa-
'' bedoria e de Deus, que nos habilita a constatar se amamos, se de-
sejamos a Deus mais do que as outras coisas, se depositamos nele
nossas esperanças e grandéza, se, embora privados de tudo, nos sen-
timos felizes em possui-lo.
Com a sabedoria (v. 11), Salomão, em prêmio pelo desinteresse,
recebeu todos os bens, em especial glória e riquezas, em virtude das
453
quais passou para a história como o sábio por excelência, o maior
rei de Israel. Tudo isso lhe trouxe grande felicidade, graças à sua
amizade com Deus e à posse de tantos bens materiais e espirituais
(cf. JRs JO; 2Cr 9). O sãbio não despreza os bens terrenos, Sendo
bons, os compara com a sabedoria, preferindo-a àqueles. Nos livros
dos Reis e Crônicas, os bens são: riqueza, glória, poder rea]. No livro
da Sb são bens superiores aqueles da sabedoria, porquanto sua mãe
é a própria sabedoria: gozam da mesma dignidade (v. 12). Tais bens,
riqueza incalculável da sabedoria, valem mais do que tudo neste mundo,
porque pertencem ao plano divino e garantem a amizade divina (v. 14).
A sabedoria é em nossa alma principio de todo entendimento, do bom
senso e da virtude.
Blbliograj/a: Pérez R o dr i g u e z, O., Sabldurla, Blblia Comentada, IV,
BAC, Madrid 1968; Vi I e b e zb ]., La S. Escritura, AT/JV, BAC, Madrid 1959;
Pirot-Clame!J La S. Bl Ie, IV!-. Paris 1964; Barucq, A.-Orelot, P.,
~·sabedoria", em yocab. de Teologia tdblica, Vozes 1978.
P. Matheus F. Oiuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Segunda Leitura: Hb 4,12-13
O texto da segunda leitura de hoje está como que deslocado dentro
do cap. 4, pois é colocado pelo autor como prova de que Cristo é
superior a Moisés. No contexto da Carta, porém, ele é um reflexo da
afirmação de que «nestes dias, que são os últimos, (Deus) falou-nos
por meio de seu Filho» (l ~). . ~ ele então um aprofundamento, . em
forma de hino do valor e s1gm!1cado da Palavra de Deus, anunciada
aos judeus, q.;'e, no deserto, por sua cdureza de coração::r> (v. 7) não
a ouviram. Para o cristão, o texto é um convite à docilidade, um con-
vite à não-imitação do que fizeram os judeus.
Trata-se da Palavra de Deus, não tanto enquanto Logos, mas como
revelação que manifesta sua vontade, promessas e castigos. Essa pa-
lavra transmitida pelos Profetas e por Cristo, é viva e operante nos
fiéis '(cf. 12,13), é a palavra que não volta sem ter produzido seu
efeito (Is 55,11). Ela não é impotente como a humana, é como um
ser vivo. O próprio Deus atua nela e por ela enquanto cria e ordena
o universo (cf. Gn 1,3; Is 40,26). Em suma, é viva porque eficaz, não
sendo só uma mensagem inteligível dirigida aos homens. :a uma rea-
lidade dinâmica, um poder que opera infalivelmente os eleitos visados
por Deus.
Ela penetra nos recônditos do homem, como uma espada. Para
exprimir tal, o autor usa os termos alma e espírjto, significando prin-
cipio da vida flsico-pslquica e espiritual respectivamente (TOB). Ei_n
outras palavras ela questiona o coração, o profundo do homem, pois
o conhece, e manifesta o Deus interlocutor pessoal do homem. Para
a Palavra não existe segredo no nosso intimo.
Esse fraseado de Hb não é estranho, mas corrente no Antigo
Testamento onde Is 49,2 e Sb 18,14 comparam a palavra de Deus
a uma esPada que corta, e Sb 7 )2 a apresenta como onisciente.
No Novo Testamento, GI 3,8.22 fala da Escritura. como se fosse uma
pessoa que atua como um ser vivente (c!. Pd 1,23); E! 6,17 compara
a Palavra de D~us à cespada do Espírito~ e Ap 1,16 fala da cespada
454
de duplo talho> que sala da boca do Filho do Homem. No judafsmo,
Filon foi um dos que especularam sobre a Palavra (cf. !Moisés 15,10).
Na moderna hermenêutica insiste-se no fato de a palavra ser viva enquan-
1o é atualização daquilo que foi, no passado, dito ou escrito por alguém.
Ela faz presente, vivifica o ensinamento, a mensagem de alguém, sobre-
-tudo quando lida, anunciada, proclamada.
Essa Palavra então, julga o homem (cf. jo 12,48: Ap 19,13) nos
1) seus maiores segredos, assume uma função judicial. Seremos julgados
num confronto direto com a Palavra de Deus. Nosso destino depende
da nossa atitude de docilidade ou não a essa palavra.
O v. 13, porém, poderia também ser interpretado como referindo-se
a Deus, pois em grego clogoS> e cTheos> (palavra e Deus) são masculi-
nos e os possessivos poderiam se referir a qualquer um dos dois. Nesse
caso a Palavra de Deus esmiuçaria o homem que compareceria para o
julgamento, como que nu diante de Deus. Como um lutador à mercê
do adversário, ou um animal a ser imolado que não reage, tais os
sentidos do verbo grego. Em suma, ninguém pode escapar da sentença
de Deus.
O homem na sua liberdade pode desprezar ou transcurar essa
Palavra, mas, quando ele menos esperar, essa Palavra transcurada e
desprezada o cbamarã às contas.
1
Bibiiograjla: S t r a t b m a n n H., La E Isto/a a los Hebreos, Pax, Madrid
1971; K u s s, O., Lettera agli "i!brel, Morceufana, Brescia 1966; BlbUa Comentada
(Vlb), BAC, Madrid 1975; Se b i e r se, P. J., Lettera aglt Ebrei, Clttà Nuova,
Roma 1968.
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.j.
Paulista, PE
Terceira Leitura: Me 10,17-24(30)
«. . . do que um rico entrar no reino de Deun-
Nas predições da paixão (8,31; 9,31; 10,33) jesus revela a sua
verdadeira missão. Esta não corresponde às expectativas do povo, nem
dos entendidos na religião, nem dos discfpulos. Por isso, seguem-se
sistematicamente instruções que se dirigem aos últimos (cf. a Pista
Exegêtica de Me 9,30-37; p. 433). Nestas instruções Jesus coloca a
existência cristã sob o signo da cruz.
A leitura de hoje pertence às instruções que se seguem à segunda
predição da paixão (9,31). Na primeira delas localiza-se a relação
mútua dos disclpulos que é marcada pela atitude de serviço (9,33ss) ;
na segunda exige-se coerência dos discípulos consigo mesmos (9,43ss);
na terceira aborda-se, em forma de controvérsia, a questão do matri-
mônio (I0,2-12). Na última trata-se da disposição fundamental para
receber o Reino (J0,13ss); esta inclui um desapego total frente às
realidade terrestres (I0,17ss).
A passagem que se lê hoje pode, pois, ser chamada uma instrução,
em forma de narração, sobre a relação entre os discipu1os e co mundo>,
entre o Reino de Deus e as realidades terrestres. A interpretação cos-
tumeira encontrava neste texto o argumento clãssico para o conselho
evangélico da pobreza. Mas atualmente estã perdendo terreno. Aborda-se
nesta passagem uma atitude cristã fundamental (e!. Lumen Oentium,
n• 39ss).
455
 O homem - somente Mt o chama de «Jovem>! - ajoelhando-se
diante de jesus, O saúda como cBom Mestre>. jesus replica: <>Por
que me chamas bom? Só Deus é boml> Esta resposta não nos informa
primeiramente sobri: a autoconsciência de jesus qe tal maneira que
criaria problemas de ordem cristológica. Antes ela Jã é mna adver-
tência ao homem que pensa encontrar facilmente 'demais o bom no
seu caminho. Meslll)> que o interlocutor tenha tido boas intenções e
não tenha querido · adular jesus, o caso faz pensar em alguém · que
se aproxima de uma autoridade religiosa ou eclesiástica, beijando-lhe
a mão e dizendo que é muito santo etc. A única resposta adequada
em uma situação dessas seria: «Por favor! Só Deus é Santo! O que o
Sr. quer de mim?:> (cf. At 10,25-26; 14,8-18). Mediante sua resposta jesus
transforma a capla/io benevolentiae em um compromisso: reconhecendo
em Mim .o bom mestre, quando somente Deus é bom, hã de assumir
as conseqüências. ;:
O homem qws saber de jesus - deste cBom Mestre» tão diferente
dos crabis> -, o que se deve fazer para alcançar 'a vida eterna. jes~s
o remete ao Decãlogo. Um detalhe interessante é que nesta versao
marciana dos mandamentos do Decálogo encontra-se uma referência ao
mandamento de Dt '24,14, que diz respeito ao pagamento de um orde-
nado justo: «Não reter (a saber: o ordenado):> (cf. Lv 19,13). Esta
creleitura:o ou atualização do Decãlogo é relevante! Mais importante,
porém é o seguinte. A quem conhece bem o Decãlogo - e supõe-se
que e;te conhecimento seja partilhado por qualquer' criança catequizada
- não escapará que jesus introduz a pergunta «Que farei para alcan-
çar a vida eterna?» com a asserção: «Conhece os mandamentos».
Citando-os somente alega, no entanto, os mandamentos da segunda
tãbua; isto é, aqueles que tratam da relação mútua entre os homens
e referem o homem ao seu próximo. Nesta resposta não transparece,
da parte de jesus, nenhuma preocupação para coin. os .deveres estri-
tamente religiosos a respeito do culto, do Sábado, da legislação acerca
do dizimo da pureza ritual etc. Por quê? Deve ter um motivo. Se
uma crianÇa recitasse o Decálogo da maneira como jesus o fez, não a
corrigiríamos obserirando-lhe que tinha esquecido 'o mais importante?
Onde procurar, então, o motivo da resposta :<deficiente» de Jesus? Serã
porque os ricos tendem a sobreestimar demrus ~s ll)andamentos .da ~rt­
meira tábua, em detrimento dos outros, espec1alni.ente das exigências
da justiça? Porque estão inclinados a sossegar a voz da consciência
por meio da defesa. dos direitos de Deus e dos dev"!'es para com EI.e,
apresentando-se assj_m ao povo como os defensores .fedei por exc;I_ênc~a
e os infatigãveis PJOmotores da religião e de seu.s valores espmtua1s
e culturais? Nesta ,hipótese jesus teria focalizado .u.ma certa hipocrisia,
isto é, uma falta ~e crítica que se manifesta em. uma subestima da
segunda parte dos . mandamentos, acompanhada e .camuflada por uma
superestima da prjmeira parte, salvando-se as aparências de serem
muito religiosos. A atitude de jesus, apontada aqui, seria, então, coe-
rente com a Sua atitude em outras .ocasiões. Em outras oportunidades,
Ele subordinou a lei do Sábado (o terceiro mandamento) à exigência
do amor (cf. Me 2,23-3,6); desmascarou a hipocrisia contida na <pro-
messa:> feita em beneficio do templo de jerusalém, para esquivar-se das
obrigações dt> quarto mandamento (cf. Me 7,8-13); ou quando declarou
o segundo mandamento do amor ao próximo igual ao primeiro (cf. Me
12,28-34). Mesmo que jesus não tenha fundado uma nova moral, é
456
claro que aqui como em outros textos transparece ' seu combate ao ri-
tualismo legalista e ·à hipocrisia contida nas tradições dos homens. Pro-
metendo a vida eterna a quem observa a segunda parte do Decãlogo,
jesus retoma a sua atitude critica diante da «tradição>, que O faz
aceitá-la quando ela leva ao amor e O faz rejeitã-la quando prejudica
o amor.
O homem rico _não parece satisfeito com a resposta de jesus. Não
esperava a simples- e quase fria referência aos mandamentos (da se-
gunda tábua), mas, uma orientação nova a respeito de um caminho
mais seguro ou mais «Santo> à vida eterna que ultrapassasse a Lei.
Ele certamente não. procurou o que todo mundo cansa de saber desde
sempre tão velho que é e que, mesmo assim, é sempre novo porque
inobservado. Ele esperava ouvir deste novo mestre o novo desconhecido.
Decepcionado pela resposta de jesus - a quem ele procurou com
expectativas tão elevadas: ajoelhou-se diante d'Ele e O saudou como
«Bom Mestre>! - retirou-se desiludido do próprio jesus. Sua decepção
exprime-se na sua :resposta: «Mestre, tudo isso tenho observado desde
a minha juventude!> Ela evoca à lembrança o depoimento de Paulo:
<quanto à lei fui fariseu... vivia irrepreensivelmente> (PI 3,5-ô).
jesus parece ter apreciado a franqueza ingênua do homem. Ele
mostra-se um idealista verdadeiro, que não está satisfeito com o ca·
minha muito batido da costumeira observância piedosa das leis: «não
matei, não roubei, não. . . etc.» Jesus simpatizou com ele e lhe res-
pondeu com a mesma franqueza, sem rodeios lhe revelando e propondo
o que ele estava procurando, a saber, a radical novidade de Seu
caminho evangélico: «Só te falta uma coisa I> C9m isso jesus não
quis dizer que, para herdar a vida eterna, faltava\- somente um ato a
mais a fazer, que estaria na mesma linha das demais observâncias.
Era dever tradicional dos ricos dar esmolas de 1.suas posses e so-
correr os' pobres. jesus propõe mais. A ordem p~ra dispor de tudo
que ele tem e para doá-lo aos pobres, Ele acrescenta: «depois venha
Me seguir». É este «Seguir» que conduz à vida. A renúncia às riquezas
e o socorro aos pobres são somente condições ptévias indispensáveis
para poder seguir jesus.
O rico que chamou jesus de Divino Mestre encontra aqui a res-
posta à sua pergunta. Ele há de tornar-se pobre para, desprendido de
tudo, seguir jesus na Sua disponibilidade total pelo Reino. Estã aqui
a novidade que o homem procurava. A aceitação de$ta novidade, porém,
desestruturaria o homem. Ele não dá conta do recado. Era de muito
boa vontade, mas nesta hora decisiva há de reconhecer que toda a sua
santa observância ·de até agora não passava de presunção. Ele não
era capaz ou, melhor, ela não o capacitava a largar tudo e ser radi-
calmente obediente à nova proposta que Deus lhe faz. Esta metanóia,
esta mudança de mentalidade e de comportamento que o desligaria ra-
dicalmente de seu passado e o colocada livre de tudo no caminho do
futuro eterno. vai além de suas forças. Ele, em última análise, mostra-se
preso, seja às suas observâncias legalistas, seja às suas riquezas. Seguir
Jesus, no entanto, imp1ica abandonar atnbas as seguranças, tanto as
espirituais como as materiais. Em outras palavras, a novidade que Jesus
propõe supõe um homem novo.
Quem pode soltar estas cadeias e libertar o homem destes laços?
É essa a pergunta que se coloca em vv. 23-27. ,Na exegese recente
houve várias tentativas de se atenuar a comparação do camelo que
passa pelo fundo de uma agulha. Estã-se voltando atrás. Os funda-
457
mentos exegéticos para isso são fracos. Ela ilustra, sem tirar nem pôr,
a sentença de Jesus: <Aos h.omens, sim, é impossível, não a Deus>~
A entrada no Reino é ação de Deus nos homens. Esta ação é salvação
gratuita, é libertação dos laços que prendem o homem a este mundo.
Na conversa com os discípuJos - o homem rico já se foi -
jesus os admoesta, dizendo «Filhinhos . .. > Em um clima de confidência,
mantido até v. 30, Jesus desvenda o mistério do Reino e faz os discí-
pulos sentirem que· eles Lhe pertencem como «filhos de Deus, movidos
pelo Esp!rito de Deus> (cf. Rm 8,14), e que neles operam os dons
do Espírito Santo que csão disposições, em nós postas de maneira per-
manente, para seguirmos, com a sua graça, o impulso que o próprio
Deus nos dá, para lá da medida humana, mesmo · virtuosa, a fim de
agirmos plenamente como filhos de Deus, seguindo as perspectivas e
a medida de Deus> (Y. Congar, p. 47s).
A referência à onipotência de Deus liberta os disc!pulos do peso
do imposs!vel (vv. 24.26). Ela provoca a intervenção de Pedro. Sur-
preendido pela verificação do fato de que Deus operou neles o que é
impossível aos homens, ele constata: «Nós abandonamos tudo e te se-
guimos l» Eles, os discípulos, largando as barcas, as redes, os meios
de sustentação honestos, a casa dos pais e parentes para seguir jesus,
fizeram o que Jesus está exigindo l Atraldos pela palavra e comporta-
mento de Jesus foram liberados dos laços. Pedro, em nome de todos,
interpreta isso como resultado da ação de Deus neles.
A resposta de Jesus a esta constatação encerra três momentos.
Primeiro diz-se que· este desapego e esta seqüela livremente assumidos
serão largamente recompensados. Todos que se desprendem recebem
o cêntuplo daquilo que abandonaram. O Reino de Deus em que entram
é a grande plenitude de que Deus dispõe em favor deles ( cf. Lc
12)32). Em segunda instância, a resposta reparte esta recompensa di-
vina sobre dois tempos, o tempo presente no aquém e o tempo futuro
no além. Quem segue Jesus encontra a felicidade já aqui na terra,
apesar das perseguições, e no Reino de Deus vindouro, porque «OS
sofrimentos da vida presente não têm proporção alguma com a glória
futura> (cf. Rm 8,18).
Bibllograjla: Atém de comentàrlos, .e..o., W. O r u n d ma n n, Die Geschichte
]esu Chrlstl; R. B u 1 tm a n n, Theologie des Neuen Testaments; T. W: Ma n s.o n,
O Ensino de /esus; C. M. e s t e :r s, Fundamentação Evangélica da Vida Religiosa,
Publicação da CRB; Y. C o n g ar, Situação da pobreza na vida cristã no seio
de uma clvlHzação do bem·estar, em Conc/Uum 1966 {5); S. L é g asse, Apelo
ao Rico, em j. D u p o n t - A. O e o r g e - S. L ê g as s e - B. R 1 g a u x - Ph.
Se 1 d e n s ti e k e r, A Pobreza Evangélica, S. Paulo 1976, p. 67-93.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Sugestões para a Homilia
Introdução
A Igreja Latino-americana fez em Puebl'a solenemente uma
opção preferencial pelo pobre. Para muitos cristãos tradicionais
poderã parecer modismo falar de pobre. Ou julgarão até tratar-
458
l se de um desvio de certos padres: falam mais do próximo que
de Deus. O evangelho de hoje nos dã o que pensar neste sentido.
Corpo
1. A alitúde fundamental frente ao Reino
O Reino de Deus foi o centro da pregação de Jesus. Jesus
''}' pregou o Reino, viveu o Reino, morreu pelo Reino. E a ressur-
reição confinnou que sua mensagem vinha de Deus, que sua
vida correspondia à mensagem e que sua morte fora conseqüên-
• cia de uma vida que compendiava a boa-nova do Reino .
'
i'
Reino de Deus significa pôr a Deus em primeiro lugar na
sua vida. Não. «Primeiro lugar» é pouco ou, pelo menos, é
amblguo. Se se diz «primeiro lugar», pensa-se logo num segundo
lugar, num terceiro, num quar\o. . . Ora, por mais que se enume-
' rem «lugares», todos estarão em última anãlise no mesmo plano.
l
São em si intercambiãveis. O que era segundo, pode passar a
primeiro; o que era terceiro, também. Não hã diferença essencial,
mais profunda. Por isso não basta dizer que o Reino significa
i
pôr Deus em primeiro rugar. Logo viria a pergunta sobre o
segundo, terceiro ... , décimo lugar. Está a riqueza em segundo
lugar (ou mesmo em vigésimo)? Então não se faz grande dife-
rença entre Deus e a abundância de bens materiais. E pode
chegar o momento de trocar as posições. Falar que Deus deve
estar em primeiro lugar na vida ainda não é suficiente.
O homem rico do evangelho de hoje certamente punha Deus
em primeiro lugar, pois observava os mandamentos. Mas, como
a riqueza estava em segundo lugar, no mesmo nível que Deus,
l ela jã era idolatrada. Não tardou o momento em que Deus
passasse ao segundo lugar, como um ídolo entre outros ...
Reino de Deus significa, portanto, mais que Deus em pri-
meiro lugar. Significa pôr a Deus no primeiro e único lugar
l
1'
de nossa vida. Deus não pode ter concorrentes que lhe possam
disputar o lugar. Deus em primeiro lugar, sim, mas num pri-
meiro lugar que é único com refação a tudo o mais. «Vai,
vende o que tens ... » Como na parábola do tesouro escondido
1 e da pérola preciosa: o Reino significa pospor todos os valores
ao valor supremo, Deus (cf. Mt 13,44-46). E isso sempre, em
qualquer hipótese, frente a qualquer valor.
Essa a atitude fundamental frente ao Reino. A atitude de
r f
quem só quer Deus em sua vida. Não é espiritualismo desen-
camado? Não, porque o Deus de que aqui se fala não é um
Deus abstrato, criado por nossa imaginação, nias o Deus vivo
459
r
'
'
que se manifestou em Cristo. Aquele Deus, cuja «glória ê a
realização do homem» (Santo Irineu de Lyon). O Deus que
é amor. A atitude fr<mte ao Reino é a de quem pospõe todos
os valores ao respeito à dignidade do homem. A fraternidade
é o modo concreto de viver o Reino. É, portanto, aquilo que se
deve procurar acima de qualquer outro valor.
2. O Reino, a riqueza e a pobreza
Na figura do homem rico o evangelho de hoje nos mostra
alguém que não compreendeu o Reino. Mas não por falta de
inteligência. Simplesmente por falta de disponibilidade para pôr
Deus acima de todos os valores. O rico do evangelho era um
homem bom. Cumpria com seus deveres legais para com o
próximo (todos os mandamentos que Jesus cita e o homem
afirma que os cumpre são obrigações para com o próximo).
Mas o amor a Deus e ao próximo estavam apenas em primeiro
lugar em sua vida. Em segundo lugar vinha a riqueza. No mesmo
plano e nivel que o amor a Deus e ao próximo. Tão no mesmo
plano que era passivei conflito. Tão no mesmo plano que bastava
o minimo deslize e a riqueza vencia a Deus.
Mas não por acaso. Jesus mesmo tira a conclusão para
quem tiver dúvida: a riqueza é assim mesmo. Ela é para o
homem a grande concorrente de Deus. A expressão mais pal-
pável da auto-afirmação do homem. E nessa riqueza estão
incluidas todas as formas de ter, não só o dinheiro, também
o saber, o poder. Como a riqueza lhe dá tudo, o homem pensa
perder tudo, se a deixar. Por isso não se atreve a abandoná-la,
nem mesmo por Deus. Uma palavra radical como a de Jesus
deixa-o contristado e ele se vai pesaroso. Pesaroso, sim, porque
quereria amar a Deus, quereria participar da alegria do Reino,
quereria fraternidade. Mas sem perder nada.
Essa atitude é muito «normal». Por isso Jesus chama os
pobres de bem-aventurados, porque deles é o Reino ( cf. Lc
6,20). Não tendo nada para pôr em segundo lugar, no mesmo
plano que Deus, o pobre está por «natureza» mais aberto a
sacrificar tudo por Deus e pela fraternidade. Ele não tem o
que perder (pois nada tem). Só tem a ganhar com um mundo
novo, mais fraterno, que seja aproximação do Reino.
Por isso Jesus prega a boa-nova aos pobres (cf. Lc 4,18).
Porque para eles é boa-nova a mensagem de fraternidade. Se
passarem a ser tratados como irmãos, nada perderão. Só ganha-
rão: de desprezados e explorados passarão a ser reconhecidos
.f
em sua dignidade.
460
A opção preferencial pelos pobres é profundamente evangé-
lica. Os pobres são os primeiros destinatários do Evangelho,
pois para eles, mais do que para ninguém, o Reino é uma boa
notícia, é Evangelho. Para o rico, como o do evangelho de hoje,
é má notícia. Ele precisa deixar seus privilégios para que os
pobres se tornem seus irmãos na realidade e não só na decla-
mação retórica. Para abraçar o Reino, o rico deverá tomar o
partido do pobre. Querer que os pobres tenham o que lhes é
direito humano e, portanto, - traição da classe! - que os
ricos tenham menos, até que se estabeleça igualdade, que é a
expressão concreta da fraternidade.
A opção evangélica pelo pobre não exclui ninguém. É o
que o Documento de Puebla não se cansa de repetir. Mas como?
Opção por uns não é uma forma de excluir os demais? Sim
e não. Opção pelos pobres é pôr os demais a serviço dos pobres.
E «pobres» é o nome teológico dos que sociologicamente cons-
tituem as classes populares. O «rico» (não apenas o magnata,
mas todo aquele que tem um pouco mais de instrução, um pouco
mais de meios, força para trabalhar), o «rico» poderá entrar
no Reino, enquanto estiver disposto a pôr aquilo que tem a
serviço do pobre, para que o pobre seja concretamente irmão,
com todas as chances e direitos que os demais. Chances e di-
reitos não apenas abstratamente, no papel, mas na realidade.
Conclusão
A «Mensagem aos Povos da América Latina» que os bispos
elaboraram no final da Conferência de Puebla expressa magni-
fica e claramente o que é no concreto a opção preferencial pelo
pobre sem exclusão dos demais: «Convidamos a todos, sem
distinçãó de classes, a aceitar e assumir a causa dos pobres,
como se estivesse aceitando e assumindo a sua própria causa,
a causa mesma de Jesus Cristo». AI temos a tradução J'atino-
americana atual e autorizada do «vai, vende o que tens, dá aos
pobres ... »
Francisco Taborda, S.j.
Porto Alegre, RS
461
 Vigésimo Nono Domingo
do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: 1s 53,10-11
Para o domingo das missões a liturgia escolheu nm curto trecho
de Isaías, extraido do conhecidissimo quarto cântico do Servo de Javé.
O Cântico todo abraoge Is 52,13-53,12. Este poema é o mais longo
dos quatro, o mais denso de conteúdo e o mais diflcil, em razão da
profundidade de seu pensamento e dos elementos inéditos que traz.
O preâmbulo, Is 52,13-15, parece ter a finalidade de prevenir o escân-
dalo que vai provocar a descrição dos inauditos sofrimentos a que o
Servo vai ser submetido e que são descritos no cap. 53. Por isso
Is 52,13-15 inicia anuociando um triuo!o sem precedentes, aotecedido,
porém, por sofrimentos também sem precedentes, a tal ponto de deixar
pasmados os próprios reis.
No c. 53,1-9 descreve com muitas palavras e imagens a humilhação,
os sofrimentos e castigos que ca!ram sobre ele, mas ao mesmo tempo
repete, à saciedade, que ele sofreu isto inocentemente; e mais: sofreu
em nosso lugar, assumiu o castigo que tocava a nós. Dito isto no
Antigo Testamento, é algo de inaudito 1
O v. 10 começa afinnaodo que todo este sofrimento e castigo não
era obra do acaso ou de uma fatalidade histórica, mas deslgnio de
Deus. O Servo assume livremente, aceita este plano de Deus. E justa-
mente esta aceitação livre vai fazer que o seu gesto seja extrema-
mente fecundo: cterã uma posteridade duradoura>.
A morte do Servo tem o caráter de nm csacriflcio expiatório...
Aqni o texto hebraico usa a palavra casham• que é um termo técnico
para desigoar o sacrif!cio de reparação oferecido pelo pecado (e!.
Lv 5,15). O animal era sacrificado em lugar do pecador e para tornâ-
lo puro e santo diante de Deus. Os sofrimentos e a morte do Servo
têm o caráter de um verdadeiro sacrif!cio expiatório. Para que este
sacrifício seja eficaz deve ser ·aceito por Deus. Ora, o Servo oferece-se
a ' si mesmo voluntariamente, porque sabe que é do plaoo de Deus. E
sendo do plano de Deus, é aceito e é eficaz. E é por isto que o v. 10
termina afirmaodo: ce a vontade do Senhor será por ele realizada».
O v. 11 supõe uma correção: o verbo cver. deve ler como objeto
ca luz>. O texto Hebraico não o tem, mas os LXX e os manuscritos
de Qurnrân assim_ o trazem. Preferimos, por isso, a tradução de Vir-
gulin: ~or causa da angústia da sua alma verá a luz, e de seu ccr.
nhecimenlo há de saciar-se> (cf. Ballarini, Inir. à Bíblia, 11/3, p. 203,
Vozes). O sentido da frase é de retorno à vida, ou de alcançar uma
plenitude de vida que vai enchê-lo de gozo e felicidade. Ê certo que
não se fala expressamente de ressurreição, mas os pensamentos expressos
apontam para isto. Temos que levar em conta que na época em que
o poema é composto (século VI aC) a ressurreição é ainda impensável.
«Justificará a muitos.. O Servo não tem apenas a missão de salvar
o povo eleito. Mas ele justificará uma multidão pecadora. O tenno
hebraico crabbim>, muitos, ou multidão, parece que abre proposital-
mente o leque dos beneficiados com o sacrifício do Servo. No v. 8 afir-
mava-se que ele era cmorto pelo pecado de meu povo~. Ao passo que
462
nos vv. 11 e 12 usa-se o tenno mais vago e mais amplo crabbim>,
multidão. O contexto todo indica um sentido universalista: esses «mnitos~
são todos os pecadores. '
O sentido misslonário é evidente. Os sofrimentos e a morte do
Servo inocente, aceitos livremente, são a fonte perene da salvação para
todos os homens. Graças ao sacriflcio voluntário do Servo, todos os
povo, raças e nações têm acesso à vida e à salvação.
l )
Bibllograjia: Comentários de Cor d e r o, Mor 1 ar ty, Pen na, Piro t-
e 1 a m e r; F eu 11 J e t, Etude d'Exegese et de ThêoI. Bibl., Ani:len Testament,
p. 119-119.
Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
Santa Maria, RS
Segunda Leitura: Hb 4,14-16
O autor de Hb, até 4,14, faz introdução, evocando cá e lá os
princípios cristológicos da parte central: 4,14-10,18. A parte final
10,19-13,25 - contém exortações próprias para a situação concreta da
comunidade. O nosso texto (4,14-16) ressalta a figura de Cristo, como
sumo e eterno Sacerdote da Nova Aliança - mil dos ternas centrais
da Revelação. Cristo sacerdote está junto a Deus Pai e está presente
aos homens, porque se tornou um deles (2,7), solidarizaodo-se com
eles e infundindo-lhes conforto e seguraoça, porque passou pela pro-
vação/tentação (2,18) e cumpriu a missão do Pai através da obediência
• e da dor, chegando assim à perfeição. Dai a breve e comovente exorta-
'' ção à confiança.
O v. 14 se parece à conclusão de nm tratado sobre o sacerdócio de
Cristo e demonstra a superioridade do Pontilice eristão sobre o sacerdócio
dos levitas. Diversamente do sacerdócio levitico, j.Sus é apontado como
o «grande Sacerdote> (cf. 13,20) que penetrou nos céus para expiar
os pecados, sendo nosso mediador. Quem escreveu Hb não tinha uma
concepção orgânica do céu como lugar preciso (cf. 9,11). «Céus» para
ele é uma espécie de corpo intennediário, além do qual está o trono
de Deus.
«Jesus» é nome humano de quem é também denominado «Filho de
Deus», designação de sua condição divina - objeto essencial da pro-
fissão de fé sobre o qual Hb quer chamar a atenção de seus leitores,
introduzindo-os no campo teológico com a exortação de permanecerem
firmes na fé (3,1; 10,23). Trata-se de uma fónnula mais ou menos
fixa, presumivelmente a do batismo, na qual estaria a revelação escri-
ta. Não sabemos com precisão quais seriam os tennos de tal pro-
fissão cristológica, além do nome cjesus> e do titulo cFilho de DeuS».
Nenhum símbolo de fé, que atribulsse a jesus o qualificativo de apósto-
lo ou pontlfice, chegou a nós. Nosso texto evocaria um hipotético hino
li!úrgieo? A profissão é certa, não porém o hino, já que o autor de
Hb parece ter assumido, como ponto de partida, um dos símbolos ba-
tismais para construir, sobre ele, a nova teologia do sumo-sacerdócio
de Cristo.
Hb aqui nos apresenta mn lato consolador: o Salvador não é
apenas um ente celeste, inacessível, capaz de incutir desânimo nos
fiéis. Pelo contrário, nosso Pontlfice pode compadecer-se de nossas
enfermidades (5,2; 7,28) ·porque foi tentado como qualquer nm de
463
nós. A primeira vista, pareceria não haver grande diferença entre nós
e Ele, mas, bem logo, o autor acrescenta uma expressão - cexceto
o pecado> - a qual interpõe uma distância infinita. Hb se esmera por
sublinhar a ausência total de pecado no Sumo Sacerdote que se sa-
crifica (4,15; cf. 7,26· 9,14), embora, no contexto imediatamente ante-
rior tenha salientad~ que a humanidade estã sujeita a perigos, a
tent~ções, como nós. A diferença entre as duas posições se denota com
clareza; entretanto sua percepção teológica caberia a um estudo su-
perior da cristologia.
f se prestou atenção à composição destas passagens. As três predições
Certos, assim, de que nosso estado não é desesperador (v. 16),
nós podemos e devemos dirigir-nos a Deus, cujo trono - graças a
jesus - não incute mais temor, antes, é manancial de graça. cAJcan-
çar misericórdia> e «achar graça» são expressões equivalentes. A cer-
teza e a segurança dadas pela fé nos transformam. Se, antes, estãva-
mos oprimidos e quase esmagados pelo terrível poder de Deus (cf.
12,18-21), - agora, graças a jesus, possuímos nova liberdade e a
certeza de que a misericórdia e a graça de Deus nos ajudarão cem
tempo oportuno», neste instante decisivo da salvação que viv.emos, quando
tudo estã em jogo (cf. 3,13).
Em 3,6 como em 4,16 e 10,19.35 aparece o termo grego «parresla>,
que é traduzido como «Confiança>. De início, cparrêsi~ designou a
liberdade de falar no plano po!ltico, em tempos da democracia ãtica,
podendo o cidadão cpleni juris> dizer tudo que sentia; aplicado a um
escravo, porém, tornava conotação moral: «libertinagem», csem-vergo-
nhisrno». A verdadeira «J)arrêsia» distinguia o amigo sincero do adula-
dor. Em Flávio josé e em Filo, o vocábulo qualifica o relacionami;nto
do homem com Deus: quem estâ sem remorso e sem culpa estâ IJVre
diante de Deus, é seu amigo. No NT pode ter o sentido profano de
«direito> «autorização> (Fm 8) ou de dato público e notório» (Jo
7,4.26), 'bem como o de <falar abertamente sem enigmas> (Jo 11,14;
16,25.29; Ef 6,19) ou ainda a franqueza de anunciar o Evangelho (At
2,29; 4,13.19.31; 28,31). Na carta aos Hebreus (3,6; 4,16; 10,19.l!5)
o termo evoca a imagem do cristão, seguro de que Deus o abnga
favoravelmente. Deus é o Senhor Supremo, ao passo que o homem
é um escravo, privado de qualquer direito, inclusive de falar com liber-
dade. Que o homem tenha acesso junto a Deus é algo de inaudito, que
só pode acontecer a quem está em/com Cristo. Tal sentido aparece
também em Ef 3,12.
Bibliografia: K u s s, O.. La letfera -agll Bbrei (Regensburger Neues Testament,
trad. de o. Rinaldl) Morcelllana, Brescla 1966; Se h 1 e r se, P. J., Epistola
aos Hebreus, Vozes, '1970 (trad. de W. P. Martins); N 1 e o 1 a u, M., carta a
los Hebreos, La S. Escritura, NT/111, BAC, Madrid 1962; T urra d o, L., Epistola
a los Hebreos, Blblla Comentada, VI, BAC, .i\iadrJd 1965; R 1 e e l o t ti, O.z.. Le
Jettere dl S. Paolo, Milão 1931; B ove r, J. M., La teologia de S. Pablo, 11AC,
Madrid 1946; Pra t, F., La théologle de S. Paul, Paris 1908; S p f e q. e., L'tpltre
aux Hébreux J/JI, Paris 19õ2s; L é o n ªD u f o u r, X., Vocabuldrlo de Teologia
Bfblica, Vozés 197S.2• (verbetes: sacerdócio, culto, sacrlficlo).
P. Matheus F. Oiuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
464
Terceira Leitura: Me 10,85(42)-45
«Assim não há de ser entre VÓS>
A passagem de hoje segue-se à terceira predição da paixao. jâ
da paixão (Me 8,31; 9,31; 10,32-34) revelam que a verdadeira missão
de jesus não corresponde às expectativas messiânicas tradicionais que
eram triunfalistas e hostis à idéia de sofrimento. Seguem-se-lhes inva-
riavelmente incompreensões da parte dos disclpulos (8,32-33; 9,32-34;
10,35-41) e instruções de jesus sobre aquilo que marca os Seus ver-
dadeiros dilícípulos (Me 8,34-9,1; 9,35-10,31; 10,42-45). Marcos compõe,
portanto, segundo o esquema: como é o mestre, .assim serão os discf...
pulos (cf. a Pista Exegélica de Me 9,30-37, p. 433).
A primeira predição da paixão segue-se a contestação de Pedro
(Me 8,32-33); à última, o pedido de Tiago e joão. Estes três discípu-
los gozaram de uma posição de destaque entre os doze (e!. Me 1,29;
3,16-17; 5,37; 9,2; 13,3; 14,33). A contestação de Pedro diz respeito
à primeira parte das predições, aquela que fala da paixão e morte
de jesus. O pedido dos Zebedeus liga-se à segunda parte, ou seja, à
predição da ressurreição; eles querem segura? para si, já já, as me-
lhores posições na glória de jesus.
jesus reage energicamente à contestação de Pedro, rejeitando como
uma tentação de Satanás a insinuação de que Ele possa chegar· à glória
sem passar pela Cruz. Aos Zebedeus e demais clisclpulos jesus esclarece
que não poderão participar da Sua glória sem primeiro terem partici-
pado de Sua humilhação. Em outras palavras, o caminho que condu-
zirá os discípulos à glória é igual ao caminho que levou Jesus à
glória; tanto o Mestre como os discípulos hão de passar pelo caminho
da Cruz, aqui símbolízado pelo câlice e pelo batismo.
Os filhos de Zebedeu pedem a jesus que laça a vontade deles.
jesus, porém, lhes fala da vontade do Pai, que domina .a. Sua própria
sorte e a de Seus discípulos, tanto quanto à parte da paixao (10,38-39)
como quanto à parte da glorificação (10,40). Ao pedido que brota
da mentalidade «seja feita a nossa vontade> (10,35-37) jesus contrapõe,
pois, uma atitude que corresponde à terceira súplic:i do Pai~n~o:
cseja feitêl. a Vossa vontade»-. Preparando-se, no Jardim das Oliveiras,
para a Sua paixão, Jesus retoma a imagem do cálice e reza no espi-
rito desta mesma súplica: «Abba, Papai! Tudo te é possível: afasta
de mim este cálice; mas não seja o que eu quero senão o que tu
queres> (Me 14,36). Somente no prolongamento do caminho da Cruz,
que não se consegue percorrer a não ser alimentado e sustentado
por esta oração, despontará a glória e a realização da segunda súplica
da oração dominical: «Venha - a nós - o Vosso Reino~.
Em v. 41 entram em cena os outros dez disclpulos. Vendo o perigo
de serem postergados pelo pedido dos colegas Tiago e joão, mostram-
se contrariados. Mediante este verslculo de transição ligam-se outros
ditos de jesus à instrução precedente. O alcance destes ultrapassa o
dos ditos de vv. 38-40 (como o de 8,34-38 d de 8,331). O câlice e o
batismo podem, de lato, ser interpretados como slmbolos do martírio
e, pois, das últimas conseqüências de paix~o e morte, às quais pode
levar o seguimento de jesus. Entendidos assim, os ditos de vv. 38-39
podem ter encontrado o seu lugar na tradição por causa das perse-
guições. Em vv. 42-45 tod~ a vida cristã de todos os cristãos, em todas
465
 as situações possiveis, é vista pelo prisma do seguimento de Jesus,
dimensionando-a em termos de serviço a exemplo do serviço de Jesus.
Estas coordenadas de serviço alicerçam uma comunidade regida por
princípios frontalmente opostos aos princípios que vigoram nas so-
ciedades terrestres e politkas. O principio do poder e do direito do
mais forte é visto como a força-motriz da história dos povos. Aponta-
se o aspecto demoníaco desta ordem de coisas em que se usurpa o
poder, oprimindo os homens. Na formulação desta critica percebe-se
uma nota de ironia por causa do uso do verbo dokein em: «OS que
parecem (ou: pre!emlem) reinar sobre os povoS>. Em Lc 22,25 realça-
se mais claramente esta ironia, dizendo deles que «gostam de passar
por benfeitores>.
1 jesus decididamente não quer que na Sua comunidade se copie este
1 tipo de relações: «Entre vós não deverá ser assim l> Na Sua comuni-
dade jesus não aceita a luta competitiva pelo poder e pela autoridade.
\ Ele substitui a hierarquia do poder pela hierarquia do serviço; a
imposição e subordinação pela fraternidade. A grandeza dos Seus dis-
cípulos está na capacidade de servir e na dedicação ao serviço. Longe
deles <ganhar o mundo> e as honrarias do mundo pelo poder e pela
imposição. O caminho deles é o do serviço ao mundo, sacrificando-se
pelos outros. Neste serviço não perdem a sua vida, mas a ganham
(cf. Me 8,35-36).
jesus afasta Seus discípulos da luta pelo poder e os dirige no
caminho do serviço, porque Ele mesmo não veio para deixar-se servir
e ganhar poder, mas para servir e dar a Sua vida para muitos, isto é
para todos, pelo mundo inteiro. No seu discip.ulado, os discípulos expe-
rimentam o serviço de jesus na forma de instrução pela palavra e pelo
exemplo, em que Ele mostra uma dedicação e um cuidado preferenciais
pelas vítimas daquele tipo de sociedade que critica. Feita vitima da
mesma, pela ressurreição as comunidades cristãs são dadas ao mundo
e à humanidade como amostra grâtis da convivência humana como Deus
a quer, contanto que sigam o exemplo de jesus.
Bibltografla: Além de comentários cf. R. R u 1 j s, Estruturas Eclesiais no
Novo Testamento à Luz da Vontade de Jesus, em RBB 33 (1973/129), 35--60 e a
bibliografJa ai citada.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Sugestões para a Homilia
Introdução
A comunidade católica comemora, hoje, o dia das missões.
Este é um dia de penitência e de esperança. De penitência, por-
que temos muito a rever, a fazer autocrítica, perante empenhos
missionários que nem sempre corresponderam ao estilo evangé-
lico. Muitas vezes a Igreja chegou às terras de missões trazida
pelas caravelas dos conquistadores cujas armas submetiam o
povo nativo e facilitavam a imposição da fé cristã. No Brasil,
muitos missionários defenderam os direitos dos índios, mas quase
466
nada se fez em prol dos negros trazidos da África como escra-
vos. Eis aí um pecado que deve nos servir, agora, de exame de
consciência: temos falhado diante daqueles que, hoje, são des-
respeitados em seus direitos? Temos sido omissos frente ao
clamor dos oprimidos? Se rezamos •Pai, perdoai as nossas
ofensas» é para que não nos transformemos em fariseus con-
vencidos de que não têm pecado ...
Corpo
!. Uma Igreja servidora e pobre
O Evangelho de hoje nos fala do pedido que os filhos de
Zebedeu, Tiago e João, fizeram a Jesus, o Messias: queremos
sentar à direita e à esquerda de seu trono. Essa imagem triun-
falista, de uma Igreja poderosa, por vezes predominou em nossas
missões. Porém, Jesus mostra que só terá parte com ele aquele
que for capaz de beber o cálice que el'e bebeu, ou seja, aquele
que se faz servo e não poderoso, humil'de e não orgulhoso,
aberm aos pobres e não egoísta e avarento, capaz de colocar-se
em atitude filial diante do Pai e não pennanecer em postura
auto-suficiente.
Hoje é um dia de esperança porque enxergamos de uma
outra maneira a tarefa missionária que nós, leigos e clérigos,
somos chamados a realizar enquanto Igreja. «Terras de missões»
não são apenas os recantos longínquos da Africa ou da Asia.
É esta terra na qual vivemos, onde o cristianismo se tornou um
pressuposto cultural adaptado a uma realidade social dividida
em classes antagônicas. Terra de missão é o nosso coração,
por vezes endurecido às exigências mais prementes de nosso
povo e fechado aos apelos de justiça que o Senhor nos faz
pela hoca dos oprimidos.
Nesse sentido, devemos rever nossa atitude missionária e
nos perguntar: temos anunciado a fé por nossa maneira de
viver? Temos experimentado a bem-aventurança da fome e da
sede de justiça? Temos sido cristãos capazes de convencer o
próximo da boa novidade que é o Evangelho? Ou somos simples
cidadãos cumpridores de seus deveres, freqüentadores da igreja
aos domingos, capazes de recorrer a Deus na hora do aperto?
Estamos mais próximos dos discípulos de Jesus ou do grupo dos
fariseus?
É no serviço libertador aos pobres que a Igreja encontra,
atualmente, o terreno mais fértil para plantar a semente do
Evangelho. Se ela, em Puebla, faz «opção preferencial e soli-
467
11
'
dária pelos pobres» não é por querer abandonar os ricos, mas
sim por saber que os ricos só se convertem na medida em que
são interpelados pelos pobres. Freqüentemente, ao fazer-se rica
com os ricos, foi mais fácil a Igreja corromper-se do que
convertê-los ...
1
1
! 2. Tem mais autoridade aquele que serve
Jesus disse a seus discípulos: «Vocês sabem que os que se
dizem governadores mandam no povo e são os líderes que do-
minam. Mas entre vocês não pode ser assim» (Me 10,42). A
missao da Igreja é servir e não mandar. Nela, tem mais auto-
ridade aquel'e que mais serve, que imita o exemplo de Jesus.
É por isso que a maior autoridade da Igreja, o Papa, possui
o título de «Servo dos servos de Deus».
Servir a quem e por quê? Servir aos que mais necessitam
de nossa ajuda - os oprimidos. É da missão evangelizadora
" da Igreja, conforme foi definido em Puebla, a luta pela liberta-
1 ção integral - portanto, não apenas espiritual, religiosa, mas
também política, social, econômica e cultural. É claro que o
1 projeto social a ser construído não é tarefa da Igreja e nem
l
cabe a ela definir como deve ser o processo libertador. Mas,
de sua índole evangélica, decorre a exigência de ser «a voz
dos que não têm voz» e de anunciar «a libertação aos cativos,
a vista aos cegos, a alegria aos que estão sofrendo». E, como
1 Igreja, esta não é uma tarefa só dos bispos e dos padres. É
;j uma tarefa também dos leigos, que são Igreja. A cada vez que
~! um de nós se cala dian.te da injustiça ou se omite diante da
necessidade do próximo, estamos negando a nossa fé e man-
chando a face de nossa Igreja. Eis ai a· causa do atraso missio-
nário, pois nem sempre nós cristãos somos coerentes em fazer
aquilo que pregamos e cremos.
Conclusão
Peçamos ao Senhor que nos ajude a assumir, COJ11 vigor e
decisão, a nossa vocação missionária, como servos de um mundo
novo enraizado na justiça, na paz e no amor. Permita Ele que
a vida de cada um de nós seja semente dessa realidade nova,
a fim de que as futuras gerações possam colher os frutos da
«gloriosa liberdade dos filhos de Deus».
Frei Betto
Belo Horizonte, MO
468
Trigésimo Domingo do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: Jr 31,7-9
Os capítulos 30 e 31 de Jeremias constituem uma unidade literária
originariamente independente. De fato, em 30,2 o profeta recebe a
ordem de escrever num livro todas as palavras que o Senhor lhe
falou. O tema geral deste «livro~ está sintetizado em 30,3: «Mudarei
a sorte de meu povo, Israel (e Judá), a fim de reintegrá-lo na posse
da terra que havia dado a seus pais>. O redator, talvez o secretário
de jeremias, Baruc, após a destruição de jerusalém, colocou estes dois
capítulos logo após Jr 29, pois em Jr 29,32 o profeta já anuncia a
nova felicidade que Deus concederá ao seu povo.
O conteúdo de Jr 30-31 (muito próximo a 3,1-4,4) contém oráculos
que pertencem com probabilidade aos primeiros anos da atividade de
Jeremias. Originariamente se dirigiam estes oráculos aos exilados do
Reino de Israel, levados ao exílio na Assíria, um século antes de ]e-.
remias, em 722. De fatO, com o declínio do Império Assírio, sobretudo
a partir da morte de Assurbanipal (626aC), reacenderam-se em Judá as
esperanças de uma reunificação com Israel, após o retorno dos exilados,
«O resto de Israel» (31,7). Jeremias, procedente de Anatote, uma vila
da tribo de Benjamim, etnologicamente ligada a Israel, sentiu também
com ansiedade o retorno dos israelitas. O próprio rei josias, aproveitando-
se da fraqueza da Assíria, jâ tinha até anexado a maior parte dos
territórios da Samaria, pertencentes ao antigo Reino de Jsrael (cf.
2Rs 23,15-20).
É neste contexto histórico que o profeta Jeremias, movido mais
por razões de ordem teológica que politica, pronunciou os orâculos
de restauração dos capítulos 3Q..31. Recebeu a ordem de lançá-los por
escrito, talvez, para enviá-los aos israelitas exilados na distante Assíria.
A estes exilados de Israel Jeremias promete o fim do cativeiro e o
retorno à sua terra, com a reunificação do reino davídico. Usando de
uma expressão tão cara ao último profeta do Reino de Israel, Oséias
(cf. Os 11,1), Jeremias promete que Deus, cheio de amor paterno,
tratará Efraim ( = Israel) novamente como seu filho primogênito (Jr
31,9).
A leitura de Jr 31,7-9 ao lado do evangelho da cura do cego
Bartimeu leva a liturgia a nos apresentar ·Cristo como o verdadeiro
restaurador de Israel. Cristo é quem traz a salvação a todos os de-
serdados, reintegrando-os no povo de Deus. A compaixão de Jesus
para com o cego de Jericó revela este amor paterno de Deus em
relação a todos os homens, especialmente os deserdados.
BJbllografla: A. W e 1 ser, Der Prophet ]eremia, Kap. 25,1-52,34 i1bersetzt
und erkUlrt (ATO, 21), Ooettlngen 1955; j. S k i n n e r, Jeremias: Profecia e
ReligUio, ASTE, S. Paulo 1966.
L. Oarmus, O.F.M.
Petrópolis, RJ
469
 Segunda Lelltna: Hb 5,1·6
•
Hb 5,1-10 desenvolve o tema de 4,14-16: o sacerdócio de Cristo.
jesus é com todo direito nosso Pontífice e Sumo Sacerdote. Um pon-
ti!ice que saberá entender a miséria humana, visto que dela fez expe-
riência (vv. 1-3). Sua eficácia é infalível, graças à iniciativa e vocação
dívina (v. 4). Cristo foi instituído sacerdote por Deus de maneira única
(vv. 5-6). Assomam aqui as características do sacerdócio para que seja
legitimo e eficaz (vv. 1-4), as quais são aplicadas a Cristo (vv. 5-10).
São elas: - pertencer à raça humana, - representá-la na:quilo que
se refere a Deus, oferecendo dons e sacrifícios pelos pecados, - ca-
pacidade de apiedar-se da·. ignorância e da limitação daqueles a quem
representa, - escolha ou chamado divino. : O 2' texto - «Tu és sacerdote eternamente... > -"é messiânico,
O autor de Hb não se ocupa tanto do sacerdócio em abstrato, mas
visa ao sacerdócio levitico com termos e idéias familiares a seus leitores
judeus. Entretanto, o apresenta com certo aspecto de universalidade,
referente à humanidade atual, ferida pelo pecado original jesus desem-
penha a rigor o seu múnus mediante o sofrimento e a obediência
(vv. 7-10). Como principio geral, todo pont!fice vem dos homens; esco-
lhido dentre os mesmos, está a serviço deles para as cois~s de Deus,
qual mediador. Para servi-los em suas relações com Deus, deverá ofe-
recer «dons e sacrifícios» pelos pecados. Não se entende claro se «dons
e sacrifícios~ indicam respectivamente sacrifícios incruentos (Lv 2,1-16;
6,7-10) e cruentos (Lv 3,1-5.26), - ou se os csacriflcios cruentos~ são
parte dos dons, - ou ainda se ambos os termos designam sacrifícios
cruentos. De qualquer modo, o pontifice é capaz de compadecer-se,
porque ele também está cercado de fraquezas (v. 2; cf. 4,15; 7,28),
- o que impede de irar-se contra os pecadores; antes, é levado a
comedir-se, a ter sentimentos de moderação ( «metriopathei~), - a
atitude de quem, após experimentar a fraqueza, sabe julgar com suavi-
dade as transgressões humanas, sem ofender-se ou indignar..se, sem
deixar de interceder por eles ou de assisti-los.
Tal compaixão tem sentido face aos pecados cometidos por igno-
rância ou por lapso (cf. Lv 4,2.13.22.27; 5,2-4) e não àqueles que se
fazem conscientemente, de mão erguida, cuja conseqüência era a expul-
são da comunidade (Nm 15,305). Note-se que, na Bíblia, os pecados
de inadvertência ou fraqueza são, por vezes, graves; todavia, não cons-
tituem uma recusa consciente, voluntária e temerária da poderosa graça
de Deus. O pontifice não está acima dos pecadores, mas no meio deles.
Por isso é que deve ele oferecer sacrifícios pelo)> pecados próprios e
do povo (v. 3; cf. Lv 9,7; 16,16s.24.33).
No sacerdócio o que deveras conta é a ·iniciativa divina. Como
outrora Aarão (Ex 28-29; Lv 8; Nm 3,10; 16,18), assim também agora
Cristo é chamado, escolhido por Deus. Sem este chamado o sacerdote
não preencheria 3, função primordial do sacerdócio, que é de ser me-
diador entre Deus e a humanidade, jã que, longe de aplacar a Deus,
iria antes provocar sua justa ira (3,JO; 16,40). É uma ho~a, sim, mas
de suma responsabilidade, razão pela qual ninguém pode apropriar-se
dela por conta própria (v. 4). Foi o que Jesus fez (v. 5): não se
arrogou tal dignidade, respondeu fielmente ao chamado do Pai. Aqui
está o ponto central que o autor de Hb quer frisar: Cristo não é
sacerdote da linhagem de Aarão. Com dois argumentos bíblicos esta-
belece que o sacerdócio de jesus se justifica tanto pela sua dignidade
metafisica de Filho de Deus - <Tu és meu Filho, eu hoje te gerei»
470
J
(1,5; SI 2,7; cf. 2Sm 7,14) - quanto pela Palavra de Deus que o
constituiu sacerdote - «Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem
de Melquisedec> (SI 109,4). • ·
O t • texto - «Tu és meu Filho ... :> - visa aqui o sacerdócio de
Cristo. Anteriormente fora alegado para assegurar a superioridade dele
sobre os anjos (1,5). Paulo o aduz para provar a sua ressurreição
(At 13,33; Fl 2,9). Entretanto, estes sentidos não se repelem, antes
se plenifícam: o Messias, cuja exaltação é proclamada por S. Paulo,
era também sacerdote (SI 109,4). E. que o fundamento ontológico do
sacerdócio de Cristo e sua dignidade excelsa repousam no fato de ser
Jesus ·verdadeiro homem e verdadeiro Deus.
aplicando-se com propriedade a jesus, sacerdote eterno, em especiÍIJ
a partir da ressurreição, sem negar que o fosse jã antes. A carta aos
Hebreus vai explicitar esta citação no cap.. 7'. Cristo é sacerdote segnndo
a ordem de Me1quisedec, superior a Abraão, personagem misterioso que
prenuncia algo de importante no futuro. Como tal, o sacerdócio de
Cristo é superior ao de Aarão e ao de Levi, suplantando-os de longe.
jesus é o grande Sacerdote, eterno e perfeito, que a humanidade espe~
rava e de que tanto necessitava.
Bihliogrufià: Cf. 29!:> Domingo do Tempo Comum, Ano R, p. 466.
P. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Terceira Leitura: Me 10,46-52
•Coragem! Levanta-te que Ele te chama»
O milagre deste passo no evangelho de Marcos é o último da vida
pública de jesus feito em favor de um homem (cf. Me 11,14.20ss;
15,38) e desempenha um papel especial na composição deste evangelho.
Ele situa-se em Jericó, última parada de jesus e Seus discípulos na
viagem que os conduz da Galiléia (cf. 10,1) a Jerusalém (cf. 10,32.46;
11,1), onde celebrarão a Páscoa. A multidão que os acompanha ao
sair de Jericó compõe-se de moradores desta cidade e de romeiros
que por motivo da Páscoa se dirigiam a Jerusalém. Esta movimentação
acompanhava-se de um clima de euforia festiva e de entusiasmo inspira-
do por expectativas messiânicas. Chegando em jerusalém jesus será acla-
mado com as palavras «Hosana! Behdito quem vem em nome do Senhor!
Bendito o reino de nosso pai, Davi, que estâ chegando l Hosana nas
alturas!» (11,9-10), aclamação que em parte se inspira no Salmo pro-
cessional 118, que constava do repertório destes dias, e cujo canto ali-
mentava e · expressava estas expectativas mess,iânicas. Jesus é, po!~,
recebido na capital e no santuário nacional como o messias prometidn
da casa de Davi. '
Segundo o evangelho de Marcos somente os demônios, graças a
recursos particulares, e os discípulos estiveram, até agora, a par do
caráter messiânico da missão de jesus. E jesus lhes proibira divulgá-lo.
O cego Bartimeu pôde aclamar Jesus como «Filho de Davi» ou porque
o segredo messiânico se tornara conhecido, ou porque o próprio Bar-
timeu, interpretando as obras de Jesus à luz das Escrituras (cf., por
471
exemplo, Is 29,18; 35,5; 42,7; 61,1), chegara à conclusão de que ]esns
era o Messias esperado. De qualquer forma, na composição de Marcos,
o reconhecimento e a aclamação coletivos de Jesus como Messias em
jerusalém são preparados pelo reconhecimento e pela aclamação indi-
vidual de Bartimeu. Não mais proibindo o reconhecimento público de
Sua dignidade messiânica, jesus o endossa através da cura do cego.
Desta maneira o passo serve, na composição de Marcos, de transição
daquilo que precede para aquilo que se segue imediatamente depois
em c. li.
Do ponto de vista da teologia da fé cristã a interpretação deste
milagre é óbvia. Corno a confissão de Pedro, também a aclamação de
jesus como Messias da parte da multidão e do próprio Barlimeu são
ligadas à cura de um cego ( cf. 8,22-26 antes de 8,27-30; 11,46-52 antes
de 11,1-!0), ilustrando-se que a fé supõe a luz interior da graça. Esta
mesma teologia encontra-se em textos como Mt 16,17, a bem-aventurança
que, em Mt, comenta a confissão de Pedro: «Feliz és tu, Simão, filho
de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue quem te revelou, mas
o Pai que está nos céUS>j e corno lCor 12,3b: « ... ninguém pode
dizer 'Jesus é o Senhor', senão no Espírito Santo»; ou ]o 6,44.65:
«Ninguém poderá vir a mim se não o atrair o Pai». Quando confessamos
nossa fé em jesus, jã somos porta-vozes do Espírito Santo, porque «O
próprio Esp!rito dã testemunho a nosso espírito» (Rm 8,16).
O Bartimeu é um homem sem recursos, cego e pobre, à mercê da
providência humana e divina, até que Jesus se aproxime e ele saiba
procurá-1'0. Apesar das tentativas de muitos para silenciá-lo e mantê-lo
longe de Jesus e da possibilidade de salvação que n'Ele se lhe descor-
tina (cf. v. 48a), ele não desiste e grita alto até ouvir a voz de Jesus
que o chama. Sendo atendido por Jesus, ele é salvo de uma dupla
cegueira, a física e a espiritual E, de olhos abertos, csegue Jesus
pelo caminho» (v. 53), como discípulo.
.:Desta maneira a narração é uma ilustração de três temas da
pregai;ão cristã: fé, salvação messiânica e díscipulado> (Fuller, p. 71).
A fé de que fala esta estória milagrosa não é fé em um curandeiro,
mas fé cristã, fé que salva. A salvação é messiânica, isto é, atinge o
homem todo, nem somente a dimensão corporal, nem somente a di-
mensão espiritual, mas o homem integral. Ela o liberta de uma depen-
dência humilhante para uma entrega livre de si à pessoa de Cristo
pelo seguimento: c:Coragem! Levanta-te que Ele te chama»!
Bibliografia: A. R 1 eh a r d s o n, The Mlracle Stories of the Gospels, Londres
1963, especialmente p. 88-90; R. H. P u 11 e r, Die Wunder ]esu in Exegese un'!
Verkilndlgung, Düsseldorf 1968, especialmente p. 70s; A. W e 1 ser, O que e
milagre na Biblia. Para Pocê l!ntender os relatos dos Evangelhos, São Paulo 1978.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
Tema Principal
A tradução latina do Novo Testamento traduz a palavra sumo
sacerdote (archiereüs) por «pontifext>, pontífice, que etimologicamente
vem de pontem facere, construir urna ponte (sobre um rio), ligando
as beiradas e dando passagem de um lado para outro, e vice-versa.
472
Esta etimologia pode-se explorar para explicar a frase da Segunda
Leitura: ctodo pontífice é escolhido entre os homens e constituído a
favor dos hml!ens como mediador nas coisas de Deus> (Hb 5,1). No
decorrer das Sugestões para a Homüitz. não somente se tenta escla-
recer o sacerdócio de Cristo ou da hierarquia da lgreja, mas de todos
os cristãos. Por isso, formula-se como tema principal_:
SOMOS UM POVO DE PONTIFICES, DE CONSTRUTORES DE PONTES
ENTRE DEUS E OS HOMENS
Sugestões para a Homilia
Introdução
Pontes que não servem
(Citam-se var1os casos reais que podem ser aproveitados conforme
o interesse de cada lugar e região).
- Pode acontecer em algum lugar que a gente encontre uma
ponte construida no mcio do Jeito de um rio, mas sem estrada. A
rodovia atravessa o rio em outro lugar. As razões de uma tal curiosi-
dade se entendem. O prefeito de um partido político construiu a ponte.
E o prefeito da oposição que depois construiu a rodovia não quis
que ela passasse pela ponte do outro partido.
- Por ocasião de .sua visita ao Brasil, .uns cinqüenta anos atrás,
o rei da Bélgica doou ao Brasil uma ponte sobre o Rio São Francisco1
para a estrada-de-ferro. Mas até agora não se construiu a fenovia.
- Todo mundo conhece os problemas da ponte Rio-Niterói e o
caso daquela ponte no Paraná, que no dia da inauguração desabou.
- Em Minas Gerais, perto de Belo Horizonte, o povo deu a um
dos viadutos o nome de Viaduto das Almas, por causa dos muitos
desastres que ali ocorreram.
Esta história de pontes faz pensar. Urna ponte não serve se não
tiver estrada. E a estrada não serve, se não tiver pontes e viadutos
para atravessar os rios e abismos. Esta é a razão por que as pontes
sobre rios e abismos sempre são pontos estratégicos. No tempo de
guerra o que mais se vigiam são as pontes e os viadutos.
O que vale nesta reaJidade de pontes e estradas, aplica-se também
à realidade espiritual1 aos caminhos que levam a Deus e às pessoas
que constroem estas estradas e pontes.
O construtor de pontes espirituais entre Deus e os homens
chama-se «pontífice». «Pontífice» agora é somente usado para o
Papa e os bispos. Mas no seu sentido figurativo pode também
ser usado para os padres e ainda para todos os cristãos. Por-
que todos juntos somos chamados a ser uma ponte de ligação
entre Deus e a humanidade.
473
 Corpo
)
J. Não somos guardas de uma ponte entre Deus e os. homens
Muita gente pensa · que o Papa, os bispos e os padres são
uma espécie de guardas que devem cuidar que a ponte entre
Deus e a humanidade permaneça intacta. Aquela ponte seria,
então, a igreja católica; ou o culto da igreja.
Nesta teoria, os bispos e os padres devem cuidar que o
povo seja servido quando precisa batizar os filhos; quando estes
estão na idade para fazer a primeira comunhão; quando devem
ser crismados. Também precisa-se do padre para celebrar a
Missa de Sétimo Dia; para fazer o casamento e a encomendação
da alma.
Muita gente nem quer saber o que o padre, afinal, está
fazendo; nem por que ele faz isto ou aquilo. Nem se pergunta,
se serve ou não serve. Só exige que o padre faça o que sempre
se tem feito. E, nesta hipótese, de bom grado paga o serviço
prestado.
.Muita gente pensa, assim mesmo e fica aborrecida quando
o padre quer explicar o que ele está fazendo e por que ele faz
isto ou aquilo. Acham ludo isso complicação e amolação.
Este povo que pensa assim esquece que os bispos e padres
não estão a serviço de uma instituição ou de uma organização
ou de um culto, mas a serviço dos homens que eles hão de
representar junto a Deus.
Muita gente pensa: bom é aquele padre que /cuida da
beleza do culto e se esgota na construção de igrejas bonitas e
sabe impor respeito pela religião e pela Igreja católica.
Mas pode ser que o tal padre esteja defendendo e guar-
dando uma ponte pela qual não passa estrada ou passa uma
estrada que acaba diante de abismos e rios intransitáveis.
Então, pode-se melhorar a ponte e consertár as estradas,
gastar esforços e dinheiro, mas não adianta nada.
2. Não vivemos em cima de uma ponte
entre o mundo de Deus e o mundo dos homens
Muita gente pensa que a Igreja é uma espécie de ponte ou
de balsa entre o mundo de Deus e o mundo dos homens. E que
a gente seria mais cristã na medida que estaria mais afastada
daquela parte da ponte ou do rio que está mais perto do mundo
dos homens, do mundo do mal e do pecado. Quanto mais longe
do mundo dos homens, tanto mais perto do mundo de Deus.
A gente seria mais cristã e o padre seria mais paÍire quanto
menos estivéssemos ligados com os homens e as preocupações
474
humanas e mundanas e quanto mais dedicados a Deus e às
coisas de Deus.
Ora, esta teoria foi aquela dos fariseus. Falaram mal de
Jesus porque procurava a companhia de pobres e pecadores, de
impuros e publicanos. Nesta teoria a gente vai inventar coisas
como línguas · e vestimentas sagradas: como eram o latim, as
batinas, as fitas e uniformes. . . Mas uma língua que ninguém
entende é como uma ponte sem estraqas ou uma rodovia sem
viadutos. Não serve para nada a não ser para vanglória. É
muito esquisito querer viver em um a111biente sagrado ao qual
o povo de Deus não tem acesso. É tão. estranho como construir
uma casa.. ao longo de um trecho de uma rodovia entre dois
abismos nias sem viadutos.
3. Nós mesmos somos a ponte
Nós cristãos, padres e leigos, não somos guardas de uma
ponte entre Deus e os homens. Nem vivemos em cima de uma
ponte que ligaria entre si o mundo de Deus e o mundo dos
homens. Nós mesmos somos aquela ponte, a ponte de ligação
entre Deus e os homens.
Nós somos um povo de pontifices, de construtores de pontes
entre Deus e os homens. Devemos, mediante nossa vida, tigar
entre si o mundo de Deus e o mundo dos homens. Não devemos
sair do mundo, mas ser a presença de Deus no mundo.
Não devemos fugir do mundo dos homens, mas ser para
o nosso próximo a estrada que o leva ao mundo de Deus.
Como diz a segunda leitura: somos tomados do meio dos homens
e colocados em beneficio dos homens, para que possamos re-
presentar, isto é, tornar presente os homens junto a Deus e
Deus junto aos homens.
Não devemos fechar os nossos olhos para o mal que existe
no mundo. Pelo contrário. Devemos abrir os nossos próprios
olhos e os olhos de todos que não vêem.
Não devemos fugir do mundo e deixá-lo perder-se no seu
pecado e na sua desgraça. Devemos ir à procura de todos que
precisam de nossa ajuda material e de nosso apoio moral e
espiritual.
No mundo inteiro há gente que grita: «Jesus, Filho de Davi,
tenha pena de mim!» «Cristo, filho de Deus, tenha pena de
mim!»
Não devemos mandar que estas vozes se calem, mas que
sejam ouvidas. Devemos proclamar como faz o profeta da se- 1
gunda leitura: 1
475
j
 «0 Senhor salva o Seu povo! Ele os conduz às correntes
de água e os reúne dos lugares mais distantes da terra. Ele
se compadece dos cegos e ,paralíticos e abre o Seu coração para
os aflitos».
Conclusão
Deus nos ama e, por meio de nós, quer amar todo mundo.
Jesus é o grande pontífice, que na Sua humanidade construiu
a ponte entre Deus e os homens: esta ponte é a Igreja e a
Igreja somos nós, cristãos. Nós somos a ponte entre o mundo
de Deus e o mundo dos homens. Devemos cuidar das vias de
acesso, dos aterros. . . Demos passagem a Deus que está à
procura dos homens e aos homens que estão à procura de Deus.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
/ povo de Israel, o grupo de teólogo e catequistas deuteronômicos reage
476
Trigésimo Primeiro Domingo
do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira leitura: Dt 6,2-6
«Escllfa Israel, ]avé, nosso Deus, é o único».
Contexto literário de Dt 6,2-6. A leitura deste domingo se compõe
de duas partes de moldura; Dt 6,2s faz parte do conjunto Dt 5,1.32-6,3
que emoldura o núcleo central que é o Decálogo. E Dt 6,4-6 participam
da unidade Dt 6,4.5-9 emoldurando de um lado Dt 6,10-13. O texto de
hoje, portanto, faz parte de dois conjuntos que emolduram núcleos dife-
rentes (cf. PERLITT, p. 78s; MERENDINO, p. 186s).
A época da composição de Dt 6,2-6. Para Perlitt o texto desta
leitura pertence à fonte literária deuteronômica. E esta supõe que tenha
surgido no séc. VJI a.C. Este século, no entanto, se caracteriza pela
dominação dos isra-e1itas pela potência internacional que é a Assíria. Este
reino impôs sua vontade aos israelitas não só no campo político, mas
também no religioso. Isto é, nos santuários mais importantes de Israel
se cultuavam as divindades assírias, colocando Javé em segundo lugar.
No culto oficial, portanto, Javé não estava no centro mas fora degradado
e preteridb pelo panteão assirio. A ·esta apostasia de Javé, o Deus do
exigindo uma conversão, conclamando os israe1itas a uma veneração
única e exclusiva de Javé, pois só Ele é o Deus do povo israelita. A
luz deste pano de fundo vamos agora ler, meditar e interpretar a leitura
deste domingo.
Comentário de Dt 6,2-6. Moisés é aqui apresentado, exortando pri-
meiramente os israelitas ao temor de Deus. O que quer dizer «temer a
Javé»? Aqµi tem o sentido de testemunhar a soberania e exclusividade
divina de Javé. Este temor de Deus, no entanto, se revela concretamente
no relacionamento inter-humano, na prática fiel e constante da justiça
para com todos. E isto transparece na outra recomendação que convida
a observar todas as leis e os mandamentos de Deus. Este apelo, no
entanto, não se dirige só a alguns, mas a todas as gerações, isto é, a
todos sem nenhuma exceção e sempre. Esta é a condição para que a
vida dos israelitas na terra de Canaã seja longa e feliz.
Com o v. 4 começa a nova introdução. E esta se inicia com o
tradicional convite Xemá = «escuta!» Para que o insarelita deve abrir o
ouvido e atentamente escutar? Para esta profissão de fé: «]avé é nosso
Deus, Javé é o único Deus». Esta afirmação existencial, razão de consolo
e de identidade de muitos israelitas, ·era, ao mesmo tempo, questiona-
mento para a elite oligárquica de Israel, pois dava mais atenção à voz
dos deuses assírios do _que a Javé, o Deus de sua história. Já que Javé
é o único Deus do povo de Israel, então é também Ele a única e exc-lu-
siva realidade do amor do israeJita. Por isso que ]avé deve ser amado
de todo o coração, de toda a alma e com todas as forças.
477
 Aqui se percebe que amor e temor de Deus são a mesma coisa.
Porque amar única e exclusivamente a Javé, significa temê-lo, isto é,
reconhecê-lo, contemplá-lo e servi-Jo como o único Senhor. Amar e
temer só a ]avé quer dizer repulsa absoluta de qualquer outra realidade
que é colocada ou se põe no lugar de Deus. Esta profissão de fé deve
estar gravada profundamente no coração de cada israelita. Ela deve ser
a sua única convicção para sempre.
O texto fála que esta catequese básica é para «hoje». Isto é, ela
deve nortear sempre e em toda parte a vida do povo de Israel e de
todo aquele que acredita neste Deus Libertador. Esta catequese deve
ser sempre atual; ela dev:e ser presença constante na existência de cada
israelita.
Bihliogra}ia: L. P e r 1 i 1, Bundeslheo/ogie im Allen Teslament, WMANT 36
Neuklrchener Verlag, l!Jfi9; R. P. t\t e r e n d ln o, Die Zeugnisse,- die Sat2ungen und
die Rechie. Ueherlfrferungsgeschit:IJl!iche E1111iigungen zu Deut 6, ln: Bausteine hihUcher
Theologie; fs für O. j. Bo11erweck. BBB 50 (1977) 185-208.
Pedro Kramer, O.S.F.S.
Porto Alegre, RS
Segunda leitura: Hb 7,23°28
Contexto. Hb 7 apresenta Melquisedec (Gn 14,lSs), rei e sacerdote,
como figura profética de Cristo (v. 1-3), superior a Abraão e a Levi
(v 4-10), realçando o sacerdócio de C_risto que suplantou o 1evítico
(v. 11-25). O sacerdócio do AT foi est~belecido segundo a prescrição
de uma lei humana, enq_uanto o de Crpsto, à semelhança daquele de
M·e-Jquisedec, se impôs pelo poder de sua imortalidade (v. 16): este
eterno, aquele passageiro. Nos v. 1-10 o autor falara diretamen1e de
MeJquisedec, indiretamente de Cristo. Agora (v. 11-25), refere-se direta-
mente a Cristo e indiretamente a Melquisedec.
Abolido o antigo sacerdócio, ficou abolida também a correspondente
Lei mosaica (1' aliança), notória por sua debilidade e inutilidade,
embora tenha suscitado melhor esperança de chegar a Deus (vv. 18s).
Com isso Jesus inaugurou definitivamente uma nova etapa religiosa,
muito mais elevada e santificadora. Para demonstrar essa mudança,
dá-se ênfase ao texto do 'SI 109,4 que fala do sacerdócio de Cristo
«segundo a ordem de Melquisedec», com o que se patenteia a conti-
nuidade com o que antecedera (v. 11.15.17.21).
Texto. O novo sacerdócio apresenta algumas características: 1) não
é um sacerdócio segundo a ordem de Aarão, mas segundo a de Melqui-
sedec (v. 11), porquanto não é hereditário e perdura eternamente na
mesina pessoa (SI 109,4); - 2) ele infunde uma esperança melhor, a
qual nos possibilita ir a Deus com maior confiança, pois, surge do
perdão e da reconciliação com Ele (v. 19; Rm 5,1-2; 8,14s; Ef 2,18); -
3) foi instituído por Deus· «com juramento», o que não acontecera
com o levítico (v. 20s; SI 109,4), em outros termos: o sacerdócio de
Cristo é mais exce1en1e que o de Aarão, porque instaurou uma aliança
mais perfeita (v. 22); um juramento se justifica em decisões de grande
importância e para ressaltar a es1abilidade do que se jura (v. 23-24).
- 4) O sacerdócio de Jesus é uno, permanente, integro e imutável, ao
passo que o Jevítico era múltiplo, transitório, perecível, não atingindo a
478
meta finaJ. Para o autor de Hb .a multiplicidade e a mudança indicam
insuficiência.
Em conseqüência, Cristo sacerdote nos é consolo, porque pode salvar
plena e perfeitamente a quantos o aceitarem corno mediador para ir a
Deus. Porque sempre vivo, está pronto a interceder por eles (v. 25). O
sacerdote israelita, ao invés, morria; a interc'essão perpétua de Cristo
consiste em que Ele, no céu, está continuamente mostrando ao Pai a
sua humanidade, oferecida e imolada por nós, enquanto diante do Pai
nutre em si o desejo ardente e eterno de nossa redenção.
Os v. 26-28 concluem a pericope concernente a Melquisedec, reto-
mando quanto se dissera de Jesus, em especial de sua total isenção de
pecado. Adernais, servem de transição para os_ capítulos seguintes, onde
se ilustra o Pontifice eterno, cujos pr-edicados foram anunciados em Hb
7,1-25. Cristo é o Sumo Sacerdote, eterno e perfeito, de que a humani-
dade necessitava. Tais versículos são como um hino que -brota da
humanidade reconhecida por ter, enfim, encontrado o Sacerdote perfeito.
Aparecem aqui, em síntese, as qualidades descritivas da sublime figura
de Cristo, sacerdote supremo:
1. Sempre o ministério sacerdotal foi ê~isa série;; para qualquer
sacerdote se exigem santidade e separação dos pecadores (Lv 10; 21,6-15;
22,2-9; Ez 30,19s; SI 23,3s). Entretanto, Jesus o foi infinitamente mais
(v. 26): - «santo» já em sua concepção (Lc 1,35). - «inocente» em
seu relacionamento com os homens, sem malícia, simples e reto, -
«imaculado» por sua pureza interior, - «separado dos pecadores» por
não ter pecado, - «elevado acima de todos os céus» porque transcen-
dente, na ordem espiritual, a todas as criaturas. Intérpretes há que
vislumbram nessa expressão a ascensão, quancJo Jesus se apartou defi-
nitivamente do mundo pecador. ~
2. Cristo não necessita oferecer diariamente vítimas por seus
pecados e pelos do povo, como acontecia com- os sacerdotes da antiga
Aliança. Com efeito, Jesus não teve pecado para expiar e pelos do povo
foi suficiente uma vez por todas oferecer-se a si mesmo (v. 27). Eis
a diferença entre os dois sacerdócios: o Ievítico sacrificava todos os
dias, antes por seus pecados, depois pelos do povo; - o de Cristo
sacrificou uma só vez e somente para o povo, porquanto não carecia
pessoalmente de expiação por estar sem pecacto. Com sua ação sacer-
dotal continua ( = diária), não precisa reiterar· sacrifícios, porque o seu
é único, perfeito, definitivo. O sacrifício «diári~», segundo uns, seria o
anual, no dia da expiação (Yôm Kippur), embora houvesse, no AT, o
holocausto vespertino que também possuía caráter expiatório (Ez 29,38-42;
Nm 28,3s). O autor de Hb, por vezes impreciso no expressar-se, parece
prescindir da questão de tempo; o sacrifício «diário> conotaria a sua
freqüência. É o sacrifício da cruz, plenamente eficaz em termos de
redenção, conttastando com o do sacerdócio Jevitico, sempre repetido e
incapaz de realizar a salvação. As missas que, por ordem de Jesus, se
multiplicam .diariamente, são um memorial do Calvário, aplicando-nos os
méritos infinitos do sacrifício da Cruz. No v. Z1 se 'diz claramente, pela
primeira vez, que Jesus é a um tempo sacerdote e vitima.
3. Os sacerdotes da Lei mosaica eram homens, sujeitos a fraquezas
morais e à morte. Agora, porém, na era do juramento (vv. 20s), Deus
estabelece em definitivo, como Sumo Sacerdote, o FILHO que é eterna-
mente perfeito (v. 28). Aqui há o contraste entre a precariedade da
479
 Lei e a perfeição da nova aliança, entre «homens» (fra~o~) e «Filho»
(forte vitorioso como sacerdote), possuidor daquela v1z1nhança co_m
Deus 'que empresta ao seu sacerdócio urna eficácia infinita. Jesus . nao
é apenas homêm, senão _,também Filho de Deus. O termo «p.erfetto»,
aplicado a Cristo, pode significar que Jesus, com s.eu~ sofrt!11_entc:s,
levou a cabo a obra salvífica do Pai ou aii;ida a sua propr1a gl.~rif~caçao
(ascensão); Ele tornou-se, <&perfeito:.1> ·em virtude de sua expenenc1a em
assumir a dor habilitando-se inteiramente e para sempre a exercer a
sua função eU-: favor dos.-_ homens - a salvação.
Biblionrafia· L T u r r a d o Biblia Comentada, BAC/Madrid, 1955; O. K u s s,
La Letterâ Al!il ihrt'i, i\\o"rcemiina/Brescla, 1966; F. J. Se hEi e ~,se, ~J!f s~olaBAªC~
Hl!hrt'US Vozes Petrópolis 1970· J'1. N i e o 1 a u, La Sagrada scri ura, 1•
i' P.iladrid.' 1962; -F. A. D a 1't1 e r.' A Carta aos Hebreus, Paulinas, São Paulo, 1980.
l1 1. Ver 0 comentário dos g., e 11}9 Domingos do Tempo Comum, Ano B.
' um doutor da lei, como Lc' é o único a citar um exemplo de conversão
P. Matheus F. Oiuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
Terceira leitura: Me 12,28b-34
<&Qual é o primeiro de todos os n1andamentos?»
/
1. O contexto
A pregação do Cristo não foi pacífica. Desde o inicio, suscitou a
oposição na sua própria terra (controy~rsias g~Ji/aifas: 1 Me 2, 1-~.3.5)
e também na capital espiritual e pohtica do 1uda1sm~ (controvers1!'s
hierosolimitanas: Me 11-12). Destas últimas, podemos dizer que cons1&-
tem na revelação pública de jesus diante de hostiJidade crescente de
seus adversários. A secçãO começa com a entrada triunfal de Jesus na
cidade santa (Me· 11,1-1 I)', logo mitigada pelas s~as instruções sobre a
figueira estéril (11,12-14 e
20-26) e pela expulsao d?S vendedores __ do
templo (11,15-19). Os priiiciJ?es dos sacerdotes, os. escribas e os anc1aos
contestam-lhe então a autoridade de fazer tudo isso (11,27-33). _ vam definir qual preceito era o maior.
Depois da paráboJa dos vin~ateiros homicidas CI.2,.1-12) -: a1usao
clara à paixão e morte do Messias -, temos. uma serie de seis cenas
dirigidas aos grupos mais irilportantes da sociedade:
- os fariseus: teólogos leigos progressistas, mais ligados ao povo
(v. 13); 1 .
- os herodianos: políticos partidários do rei I-Ierodes Anhpas, com
os quais os fariseus fizeram aJiança (v. 13);
- os saduceus: teólogos conservadores pertencendo ao alto clero
(v. 18);
- os escribas: moralistas e professores da Lei (v. 28,- 35 e 38);
- os ricos: pertencem à classe alta e abastada da sociedade (v. 41).
jesus dirige-se a todas as autoridades civ~s ·e reli~iosas que .exerce_m
uma. influência importante. na sociedade. As 1ntervençoe~ d? Cristo sao
• nitidamente controversísticas, menos justamente a do pr!me1ro dos man-
damentos peJo menos na recensão marciana ( 12,28-34).
É i~portantíssimo notar que Jesus vai encerrar ª..
parte das. contro-
vérsias hierosolimitanas com a parábola da pobre viuva. Os ricos, os
480
políticos, os teólogos (conservadores e progressistas) se fecham à vinda
do R'E!ino de Deus (salvo o escriba no trecho proposto hoje: a e-xceção
confirma a regra!) enquanto os pequeninos e os pobres representados
pela pobre viúva (12,41-44), abrem-se totalmente a Õeu; porque- prati-
cam sem medida o grande .mandamento do Amor e da misericórdia.
2. Comentário do texto
A «disputa» entre ]esUs e os escribas nos é narrada pelos três
sinóticos: Mt 22,34-40; Me 12,28-34 e Lc 10,25-28 (p. 18,18-19; 20,39-40).
Mt e Lc se enquadram mais num contexto de controvérsia porque,
segundo eles, o legista interroga ao Cristo para <&prová-lo» (Mt 22,35 =
Lc 10,25).
Me é o único dos evaÍtgelistas a relatar um episódio -elogioso para
de um rico (19,1-10) ! Em Me, o escriba nos é apresentado de modo
simpático; torna-se até uni discípulo entusiasta de jesus. Por isso, o
diálogo enlre o Cristo e o legista não é nada conflitivo. Apresenta-se
em duas partes bem distintas:
- resposta de Jesus ao escriba (v. 28-31);
- resposta do escriba a Jesus (v. 32-34).
2.1. Resposta de jesus ao escriba (v. 28-31)
Os escribas pertenciam quase todos ao farisaismo. Daí entendemos
melhor porque o nosso doutor da Lei ficou feliz da vida depois. de ter
ouvido Jesus calar a boca dos saduceus que não acreditam na ·ressur-
reição (12,18-37) na qual, pelo contrário, acreditam os fariseus (cf.
At 23,6-8).
Entusiasmado, o escriba faz uma pergunta freqüentemente debatida
nas escolas rabínicas: «Qual é o mandamento, o primeiro de todos?»
(v. 28b). Com efeito, os rabinos contavam um total de 613 mandamentos,
365 enunciados positivamente e 248 _negativamente. Nesta selva procura-
O famoso rabino Hillel (+ 20 aCn) já tinha dado a sua resposta:
<&Aquilo que é detestável P,ara ti, não o faças a teu próximo: esta é
toda a Lei, o resto só é comentário». Um outro rabino, Aqiba, dizia
a mesma coisa de modo positivo desta vez: «Amarás ao teu próximo
como a ti mesmo: é o princípio fundamental de toda a Lei».
O célebre Tratado das-:'" Duas Vias, um pequeno código de móral de
origem judaica mas adaptado ulterior1nente pelos Cristãos (foi traduzido
em grego. pela Didaché e ftambém em latim sob o título de Doctrina
Apostolorum), abre-se sobre o tema sapiencial das <&duas vias» (SI ª1,6;
Pr 4,18-19; 12,28; 15,24; E_clo 15,17; 33,14), uma levando à vida, a outra
levando à morte (Dt 30,15-20). O tratado começa definindo a «via da
vida» de modo positivo: «Tal é a via da vida: primeiro, an1arás ao
Deus quem te fez; segundo, ao teu próximo como a ti mesmo»º (1,2).
Continua de maneira negativa: «Tudo o que querias que não te aconte-
cesse, tu também não o faças a outrem» (1,3a). Encontremos no primeiro
evangelho, de maneira dispersa, quase todos os elementos essenciais
do Tratado das Duas Vias: Mt 5,14-48 (o sal e 3 luz - o cumprimento
da Lei - a radicalização da Nova Lei - os maus desejos - a repu-
diação - o juramento - a vingança - o amor dos inimigos); 7,12-14
481
'~
:
I
(o preceito áureo - as duas vias); 19,16-26 (o jovem rico); 22,34-40 (o
gfande mandamento). Exerceu também uma influência menor em S.
Paulo: Rm 12,16c-21 (vencer o mal com ·o bem); 13,8-10.12 (quem
ama aos outros cumpre a Lei); OI 5,13-14 (o amor cumpre Ioda a
Lei); !Cor 12,31b e 13,4-7 (qualidades do amor). ·
Voltando à resposta de Jesus Cristo no Evangelho de Me, consta-
tamos que não inova nada; a)ia.se à esco1a de Hillel e ao Tratado das
Duas Vias. Encontramos entretanto uma importantíssima inovação nos
outros sinóticos, quando jesus iguaJa os dois mandamentos um ao outro
(dizendo que «o segundo é semelhante» ao primeiro: Mt 22,39a) ou
quando os funde simplesmente num único (L~ 10,27). A versão marciana
deixa ·aparecer uma anomalia: à pergunta d,o escriba («Qual é o man-
damento, o primeiro de todos?» - v. 28b), jesus responde citando dois,
preceitos! «0 primeiro» (v. 29a) é uma citação do famoso «escuta Israel»
de Dt 6,4-5) e «o segundo» (v. 31a) é uma retomada de Lv 19,18. Há
entretanto uma . inábil tentativa de fusão dOs dois mandamentos num
só, com a conclusão do v. 31b: «Não há outro mandamento maior
(singular) do que estes ·(plural)». '
2.2. Resposta do escriba a jesus (v. 32-34)
A segunda parte da narração, própria a Me. também é estranha:
como explicar o v. 34 («E jesus, vendo que falara sabiamente. lhe
disse: 'Não estás longe do Reino de Deus'») se o legista se contenta
com uma pseudo-resposta, citando literalmente o que o próprio Cristo
acabou de dizer?
Na realidade, Me 12,32-34 assemelha-se mais com Lc 10,25-28 do
que com Me 12,28-31 por três principais motivos:
2.2.1. A resposta do escriba não estabelece mais a distinção entre
os dois mandamentos que sãoJ desta vez, citados um na seqüência do
outro, unidos pela conjunção de coordenação e. Por outro lado, é o
doutor da Lei, e não mais o Cristo, que cita Dt 6,4-5 e Lv 19,18.
Entendem-se melhor então as felicitações de Jesus pela sua boa resposta.
2.2.2. Houve entretanto uma pequena modificação na resposta do
legista: o termo «entendimento» (v. 33) substitui o de «alma» (v. 30).
O vocabul~rio mais «intelectual» lembra o de Lc e de Paulo.
2.2.3. Enfim, Me introduz um elemento novo: amar a Deus de todo
o coração e ao próximo corno a si mesmo «é muito mais do que todos
os holocaustos e sacrifícios» (v. 34b). É um tema caro ao profetismo
(Os 6,6; IS 15,22; SI 40,7-9), retornado duas vezes por Mt (9,13b;
12,7). A adição marciana equivale à da parábola do «Bom Samaritano»
que Lc conta imediatamente depois da pergunta do legista (Lc 10,29-37).
A atitude misericordiosa do Samaritano~ Jesus opõe a atitude legalista
do sacerdote e do Jevita que deixaram de praticar o grande mandamento
do amor sob o insidioso pretexto de não incorrer numa impureza ritual
que os impediria de oferecer holocaustos e sacrifícios no templo!
Bibliografia: Veja 99 Domingo do Tempo Comum, Ano B, p. 300.
Pe. Hugues d' ANS
Lins, SP
482
Tema principal
Amor x Idolatria
Sugestões para a homilia
Introdução
Amar a Deus, amar ao próximo. Há coisa mais repetida em
sermões, conferências, retiros, palestras, encontros? Haveria ne-
cessidade de lermos o Evangelho deste domingo, para mais
uma vez repetirmos e ouvirmos repetir o mandamento do amor?
E, no entanto, é necessário proclamá-lo sempre de novo e
aprofundar também teoricamente a centralidade do duplo man-
damento para a vivência cristã. O texto do Evangelho deste
domingo e a leitura do Deuteronômio propiciam aprofundar a
raiz teo-lógica do amor a Deus e ao próximo.
1. Amor a Deus x idolatria
. Ao responder à pergunta sobre o maior mandamento,' jesus
cita o texto do Deuteronômio que todo judeu piedoso repetia
como profissão de fé e compromisso de vida. O amor total e
absoluto a Deus é fundamentado na unicidade de Deus'. Javé
é o único Deus, por isso não dispersarás teu coração, honrando
a outros deuses. Centrar a vida em Deus é o programa que
Dt 6 apresenta ao povo de Israel.
A relação com a unicidade de Deus leva-nos a opor o amor
a Deus exigido pelo Deuteronômio à prática da idolatria. Ido-
latria é adorar o não-adorável, absolutizar o relativo, pôr como
valor supremo da existência o que é um valor não-último. Se
Javé é o único Deus, toda tentativa de centrar a vida em' outra
realidade que Javé, o Deus libertador, é idolatria.
Mas a idolatria já não é algo ultrapassado? Os israelitas
do tempo do Deuteronômio poderão ter sido tentados pela
idolatria dos povos vizinhos e dos povos dominadores e vito-
rioso~ de então. Os contemporâneos de jesus também poderão
ler sido tentados pela religião dos gregos e dos romanos. Mas
nós hoje, em nosso mundo cristão ...
Exatamente nós hoje somos - e fortemente - tentados e
até compelidos à idolatria. Porque idolatria não requer templos
483
 .
1.
~
que se considerem formalmente tais, nem estátuas que se ad?rem.
A idolatria está presente na vida, quando o valor determinado
de nossa existência é qualquer bem que não seja o Bem supremo
nem conduza a ele.
O Documento de Puebla recorda o perigo moderno da ido-
latria e apresenta a riqueza, o poder e o prazer como os três
1. idolos predominantes em nossa cultura .. A sociedade capitalista
em que vivemos converte a riqueza em ídolo, levando as pessoas
a absolutizá-la e a concentrar todo seu esforço em obtê-la ou
cobiçá-la. O dinheiro é o valor supremo dessa sociedade. Daí
a predominância do capital sobre o trabalho e a brecha crescente
.' entre ricos e pobres. Para assegurar a .ordem centrada no cap1-
tal, esiabelecem-se regimes de força, mais ou menos disfarçados.
O poder é um meio de garantir a alguns poucos o acesso tran-
qüilo à acumulação de ·capital. O prazer, por sua vez, é válvula
de escape nessa luta de vida e morte pela posse do deus supre-
mo e, ·ao mesmo tempo, prova do poder desse deus que tudo
compra, inclusive o «amor» (entendido dentro de uma perspec-
tiva egocêntrica como prazer erótico). Os três · constituem a
trindade suprema do panteão capitalista.
i
1
Amar a Deus sobre todas as coisas tem assim sua face
1 concreta hoje na atitude crítica ao copsumísmo desenfreado e
no combate à compreensão e realização capitalista do mundo.
. Os templos dos ídolos de hoje são as grandes lojas e supermer-
cados . onde tudo se oferece a quem tem; os palácios, onde se
admi;lstra um poder discricionário; os cinemas e casas de diver-
são, onde se vende um sexo despersonalizado e barato.
2. Amor ao pr6ximo x idolatria
jesus acrescenta ao primeiro mandamento um segundo que
lhe é inseparável: o amor ao próximo. Aqui parece que nos
apartamos da problemática da idolatria, Total engano. Qua~do
se idolatra algo, põe-se o finito no lugl'r do infinito, o relahvo
no Juuar do absoluto. Que decorre dai, na prática? O finito, o
relati;o é sempre limitado, isto é, afirma-se em oposição ao
outro. Para um corpo ocupar determ.i,nado lugar no espaço,
outros precisam ceder, ser deslocados, comprimir-se, porque,
sendo. finitos, delimitados, são eles mesll\os enquanto não começa
o outro. Um ente desse tipo, elevado à condição de ser supremo,
continua com a mesma tendência: tudo deve ceder para que
ele se possa afirmar como valor supremo. Por isso, todo ídolo
esmaga, suprime a quem não o serve, consome seus próprios
484
adoradores. E insaciável.
Mas não apenas os próprios adoradores são vitimas. Tam-
bém outros a quem os adoradores não duvidam em sacrificar
para poderem aproximar-se mais do seu deus.
E o que acontece também na idolatria capitalista vigente.
Para acumulação de capital nas mãos de poucos, sacrifica-se
toda uma população, não se respeitam as pessoas humanas,
negam-se os direitos mais elementares como o direito à alimen-
tação suficiente, à moradia decente, à saúde etc. Em defesa da
ríquez<1 privada de poucos, regimes de força não duvidam em
torturar, seqiiestrar, exilar, matar. Ou pelo menos não dão prio-
ridade à eliminação da fome, da falta· de habitação, da carência
em educação. . . O incentivo ao sexo barato e impessoal faz da
pessoa mero instrumento, coisa que se usa, se troca e se joga
fora.
Em uma palavra: os ídolos capitalistas exigem sacrifícios
humanos. Vidas humanas em hecatombe lhe são oferecidas cons-
tantemente. Assim se mostra como também o amor ao próximo
só se consegue manter a partir da adoração e do amor ao único
Deus verdadeiro. Ao concluir sua palavra ao escriba, jesus une
os dois mandamentos que ele antes distinguira: «Outro manda-
mento maior que estes não existe» (Me 12,3lb). O amor a Deus
e o amor ao próximo são um só, inseparáveis como as duas
faces de uma moeda. A adoração ao Deus verdadeiro traz consigo
uma atitude e uma atuação de amor eficaz ao próximo. Se isto
não acontece, precisamos perguntar que ídolo estamos adorando
sob o nome de Deus. A idolatria traz consigo desrespeito ao
próximo, por mais que enfatizemos nossos propósitos de amá-lo.
3. Reino de Deus x idolatria
Quando o escriba reconhece o acerto da resposta de jesus
e que no amor - e não em atos rituais ( cf. Me 12,33) -
reside priméiramente a adoração a Deus, o Senhor o elogia:
«Não estás longe do Reino de Deus» (Me 12,34). De !ato.
porque o Reino de Deus, tema central da pregação e da vida de
jesus, é reconhecer a Deus como único absoluto no concrc!:i
da vida. O Reino acontece, quando pospomos a ele todos os
demais valores. O Reino acontece, quando Deus é o valor domi-
nante na existência (cf. MI 13,44-45). O Reino é, portanto, por
excelência adoração a Deus e rejeição aos ídolos. Como conse-
qüência, o Reino se concretiza, onde a pessoa humana é respei-
tada e amada como irmão (e não postergada e odiada como
485
 concorrente). Por isso mesmo, o Deus do Reino não .é apresen-
/ tado por Jesus como Pai qne perdoa, que acolhe o fraco, o
pobre, o pequenino. O Reino se realiza, onde o Deus, do Reino
está em primeiro lugar, é o supremo da existência. E o Deus
do Reino é Pai, que será vivido como valor dominante através
da vivência da fraternidade. Afirmar do único Absoluto que ele
é Pai, vem a ser afirmar que o valor supremo de nossa vida é
amor: amor filial com relação ao Pai, amor fraterno com relação
aos irmãos. Tudo o que foge a isso é idolatria.
O escriba, reconhecend,0 a identidade entre adoração a Deus,
amor a Deus e amor ao próximo (ou negativamente entre idola-
tria e morte do irmão), não está longe do Reino de Deus. E
Jesus o declara abertamente, porque aqui está a medida de
nossa religião. Estamos ligados a Deus, adoramo-lo de verdade,
quando o amor ao proximo é realidade em nossa vida. Senão
todo gesto· ritual de adoração é oco. Como também haverá muitos
que se pensam ateus e, no entanto, são verdadeiros adoradores
do Pai em Espírito e verdade ( cf. Jo 4,23).
Ter por Cristo acesso ao Pai é seguir o caminho de Jesus:
ser para os outros. O resto é retórica.
Francisco Taborda, S.J.
Curitiba, PR
1 vem em socorro. E como? Por intermédi~ de uma viúva pobre e pagã
486
Trigésimo Segrmdo Domingo
do Tempo Comum
Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: 1Rs 17,10..lli
<Durante muito tempo a viúva teve o que comer>
Como 2Rs 4,42-44 (e!. p. 366) também esta narração (17,7-16)
é uma lenda profética. Comentando-se 2Rs 4,42-44 indicaram-se os
elementos principais deste gênero literário, a saber: oráculo - evento
- confirmação. Encontram-se estes elementos em v. 9 (oráculo) . e
v. 10 (evento); vv. 13-14 (orâculo); v. 15 (evento); v. 16 (confirmação
de que no evento se realiza o oráculo).
·Esta mesma estrlltura literária usa-se em lendas com um conteúdo
totalmente diferente. No caso de 2Rs 4,42-44 e lRs 17,7-16 existi! se-
melhança nos motivos. Em 2Rs 4,42-44 é o motivo da multiplicação
dos pães, encontradiço -também no Novo Testamento. Na p. 366
mostrou-se que os evangelistas, ao narrarem a mulliplicação dos pães
de Jesus, retomaram certos detalhes de 2Rs 4,42-44 ou, então, aludem
ao maná. Assim insinuam que Jesus está na linha dos grandes profetas
do Antigo Testamento e ao mesmo tempo os ultrapassa. Fenômeno
semelhante verifica-se, comparando-se rns· 17,7-16 com 2Rs 4,1-7 (mul-
tiplicação milagrosa por intermédio de, respectivamente, Elias e Eliseu).
No comentário de !Rs 19,1-18 (c!i p. 383) pode-se constatar
como, pel<> mesmo procedimento literárfo, quis-se sugerir que Elias
estã na linha de Moisés. <rNesses paralelos de motivos vemos como
dois homens, Elias e Moisés (etc.), são ··vistos e apre!;entados sob o
mesmo prisma, isto é, com o olhar da eXperiência · religiosa que nunca
perde de vIBta o diálogo entre Deus ·e o homem, mesmo quando
parece narrar particularidades históricas.'. • Nesses contos ou nessas
lendas não devem ter sido comunicados acontecimentos históricos únlcos,
mas uma determinada figura profética. :. é entendida e apresentada
como portadora de uma afirmação teológica> (Hermann, p. 101).
Qual é a mensagem particular de lRs 17,7-16? O profeta Elias e
outros profetas de Javé contemporâneos ·foram perseguidos sob insti-
gação da rainha Jezabel, filha de Jttobaal, rei de Tiro na Fenícia. O
rei de Israel, Acab, sob influência da Rainha, aquiesceu demais em
permitir o culto idólatra de Baal, deus da fertilidade. Mesmo assim
o pais é vítima de uma fome. Elias interpreta esta fome como um
castigo de Javé por causa da idolatria. Ora, para escapar à perse-
guição e à fome, o profeta de Javé refugia-se na pátria da rrunha
jezabel, isto é, em terra pagã. É aí, nesta terra pagã, que Javé lhe
- contraste da rainha poderosa 1 - que: presta ouvidos à palavra do
profeta e acredita no Deus dele.
Este jogo de contrastes e de pamdo;<os evidencia bem que as leis
do gênero literário e as limitações de certos motivos e esquemas não
diminulram em nada a expressividade dos recursos literários da. lenda
profética. Em outras palavras, os autores do Antigo Testamento sou-
beram contar histórlasl -Nestes paradoxos· transparece uma .ironia sur-
preendente. O profeta fugitivo esconde-SE: na pátria de JeZabeil Este
487