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Quarto Domingo do Tempo Comum verâ buscar as orientações para sua vida, e não nns falsos tipos de
profetismo
L. Oarmus, O.F.M.
Pistas Exegéticas Petrópolis, RJ
Primeira Leitura: Dt 18,15-20
Segunda Leitura: teor 7,32·35
«0 Senhor te suscitará um profeta como eu:
é a ele qne devereis oU11iT> «Eu quisera qne estivésseis Isentos de preocupaçõM>

O cap. 18 do Deuteronômio trata dos direitos dos sacerdotes levi- Aqui Paulo prossegue justificando por que a virgindade é melhor.
ticos (vv. 1-8), das falsas expressões de profetismo (vv. 9-14), do ofí- Em si ela é melhor por causa das dificuldades presentes (v. 26) de
cio do profeta em Israel (vv. 15-20) e do critério para distinguir o viver como cristão, da tribulação da carne (v. 28) e da preocupação
verdadeiro do falso profeta (vv. 21-22). pelas coisas do mundo (vv. 33s). Em outras palavras, resume a carga,
As origens do profetismo, considerado legítimo, em Istae1 são pro- as ansiedades ligadas ao estudo matrimonial, enquanto impedem uma
jetadas por Dt 18,15-20 para o perlodo da peregrinação no· deserto, entrega mais plena ao serviço de Deus. Reassume o Apóstolo, como
no contexto anterior, a -idéia de «poupar», mas acresce uma novidade:
para contrapor-se às expressões proféticas que Israel encontrou depois a de «Cuidado> e a de «agradar». Quer ver o cristão livre de cuida-
em Canaã (18,!1-14). A pesquisa histórica mostrou, contudo, que o pro- dos tanto negativos (o que não lazer) com<> positivos (o que lazer).
fetismo de Israel passou por uma longa evolução. Suas origens mais E um desejo seu, não um preceito. O cristão deve estar acima das
remotas provêm d8s formas mais primitivas de profetismo, como as coisas do mundo, ficando assi.m livre dos «cuidados» mundanos. Os
existentes na Mesopotâmia e em Canaã. cmdados' do batizad<> são as coisas do Senhor (v. 28). Como o Após..
A adivinhação, a magia, o espiritismo em suas mais va ~adas for- tolo apr_ecia o estado de liberdade e de libertação 1
mas atestadas em Canaã são tentativas humanas de entrar em contac- O casado .cmd0» das coisas do mundo e do Senhor: está como
to com o sobrenatural. 'conhecê-lo e, se possível, controlá-lo. Parã o que «dividido~, serve a dois senhores, devendo «agradan> ao Senhor e
Deuteronômio, porém, Deus já fez conhecer sua vontade, expressa na ao cônjuge (Lc 14,20). E quanto se exige para «agradar>! Se os espo-
Aliança do Sinai, da qual Moisés é o Intermediário pedido pel<> próprio sos se esmerassem em pertencer totalmente ao Senhor, não haveria o
povo (v. 16). O desejo de o homem saber se serâ ou não feliz, tam- cservir a dois senhoreS». Isto é exigir demais, e. não parece a norma
bém Jã foi respondido: Se observar a Lei da Aliança o homem serâ geral. Paulo está cônscio. Dai, o andar precavido e atê um tanto cé-
abençoado e feJiz; se .a desobedecer, será amaJdiçoado. tico. Não deixa, porém, de apontar um ideal alto, levado que é pelo
Conseqilentemente, o Dt vê a instituição profética como uma con- seu amor ardente ao Senhor, embora procure moderar-se (e!. v. 35).
tinuação do oficio mediador de Moisés. Como Moisés deu a conhecer Entretanto almeja que os esposos pertençam plenamente ao Senhor,
a vontade divina contida na Lei do Sinai, assim o profeta tem a obri- sem reservas nem desvios. Paulo quer livrar o cristão das preocupações
gação de tornar conhecida esta mesma vontade ao povo (v. 18). cPor- terrenas · para que possa servir mais facilmente ao Senhor e ser «.santo
que o Senhor Javé nada faz sem revelar o seu segredo aos profetas no corpo e no espírito>, quase separado do mundo, consagrando total-
seus servos> - diz uma glosa deuteronomlstica em Amõs (3,7). mente a Deus seu pensar e seu existir (v. 34). Para evitar que al-
Mas o· profeta, apesar de ser ccomo Moisés», não é um simples guém d~ ênfase demasiada a suas palavras, acrescenta com delicadeza
repetidor da Lei. Ele é um intérprete da Lei, um intermediário entre que nãot se trata de fazer violência, nem de armar cilada a quem quer
Deus e os homens que deve vigiar e promover sempre de novo a fi- que seja, mas apenas de indicar o que é melhor (vv. 7.35).
delidade à Aliança. A exemplo de filias que foi retemperar sua vocação Ao :cuidado pelas coisas do mundo c.ontrapõe-se o cuidado pelas
no Monte Horeb (!Rs 19,3-18), tC>do o profeta busca seu vigor na coisas elo Senhor. Ao estar «dividido» opõe-se o «pertencer indivisa-
Aliança do Sinai. mente> ao Senhor. Tem-se a impressão de que o «para ser santa no
Sendo o profeta um intermedlãrio entre Deus e os homens, o fiel corpo e no espírito> conota tal indivisibilidade do coração. Não se
deve atender aos seus apelos (v. rn). O profeta, por sua vez, sob pena pensé, contudo, que os casados .não possam ser santos. O Apóstolo se
de morte, deve ser fiel à inspiração e vontade divinas. esforçou por encontrar um termo que exprimisse a pertença, expllcita e
Quando em nossos dias, por desejo de obter saúde, alcançar felici- ~clusiva, a Deus. Optou pela expressão supra: «santa no corpo e no
dade, ou por simples curiosidade, não poucos cristãos entregam-se a espírito>, E o que parece dizer o versículo 35.
práticas de astrologia, espiritismo, umbanda e outras mistificações, este Paulo não se refere àqueles que gostariam de casar, mas não o
texto do Deuteronômio ganha uma renovada atualidade. Deus já fez podem..Todavia, hã quem veja no v. 34 uma alusão a esta gente:
conhecer sua vontade nos seus mandamentos.. Por meio de Jesus Cristo, ao lado · das virgens, cita as solteiras, as não casadas. Se bem que
que ensina com autoridade (e!. Me 1,27), traçou o caminho da felici- estas «mulheres não casada&> podem ser as viúvas (e!. vv. 39-40) ou
dade nas bem-aventuranças do Evangelho. A mensagem de Cristo é ainda as mulheres pagãs que, antes do batismo, viviam em uniões ilí-
sempre de novo atualizada pelos legltimos pastores e pregadores de citas. Nada impede que se trate dos celibatãrios por necessidade, os
sua Igreja. E na vontade de Deus assim expressa que o cristão de- quais, na !é, fazem da sua impossibilidade real de casar uma voca-

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ção positiva em prol do Senhor. «Cuidar das coisas do SenhoD, dito tema da exousia msmua a autoridade divina da atuação de jesus. É
com tanta espontaneidade, é um convite, um apelo a reconhecer e rea- um ternio que se relaciona com o mistério de Jesus no evangelho
lizar esta vocação positiva. de Me: no AT, a exousia é dada por Deus ao Filho do Homem (o
A rapjdez do tempo (v. 29) é mais um motivo para sacrificar-se termo é tlpico do livro de Dn; v. esp. Dn 7,12.14.26.27). É a exousia
em buscar o melhor. De fato, o mundo passa rápido (v. 31) e o tem- escatológica, que põe fim ao reino de Satã e instaura o Reino de Deus.
poral é de menos valor. Por conseguinte, faz-se mister viver sem apegos. Por Isso também a doutrina que acompanha esta exousla é uma dou-
BibUogra/la: CI. Segundo Domingo do Ano B, 2~ Leitura, acima p. 13.
trina nova, não no sentido de um «último grilo> que àgrade ao ouvido,
mas no sentido de inaugurar uma realidade nova; em oposição aos
Matheus F. Giuliani, S.A.C. cúltlmos gritos>, jesus tem realmente algo para dizer, algo que não se
Santa Maria, RS ouvia antes: a irrupção do Reino de Deus. É neste quadro que deve-
mos entender a história de exorcismo, que forma o núcleo da narração.
Reciprocamente, o exorcismo ilustra também a emoldura>, o ensinamento
Terceira Leitura: Me 1,21·28 de jesus. Aqui, como em muitos outros textos, Me diz que Jesus ensina,
mas não o quê. Somente na segunda parte do evangelho, Me especifica
cUma nova doutrina, com autoridade> que Jesus fala, para os seus disclpulos lntimos, de seu' sofrimento, mor-
te, ressurreição. Quanto ao ensinamento para o público amplo, porém,
!. O conjunto Me 1,21-39 só é especificado, uma vez, que ele lhes ensinava a respeito do Reino
(4,ls). O conteúdo do ensinamento de Jesus não parece preocupar o
Me 1,21-39 é tradicionalmente chamado •o dia (ou: o sãbado) de evangelista Mc1 contrariamente a Mt e Lc, que inseriram nos seus evan-
jesus em Ca!arnau~. Começa com a entrada de Jesus em Cafarnaum, gelhos a «Fonte das . Palavras de Jesus~ (Logle!UJue/le). O que o
onde, logo de manhã, participa do culto do sãbado, na sinagoga (1, preocupa é o anúncio de que Jesus é o Messias. Ora, exatãmente esta
21-22). Nesta ocasião -expulsa um demônio (1,23-26) e provoca a admi- dimensão de missão divina é destacada pelo exorcismo na slnanoga de
ração do povo por causa de sua autoridade (1,27-28). Hos1 oda-se na Cafarnaum, durante o ·ensinamento de Jesus.
casa de Simão e André, onde cura a sogra de Pedro (1,29-31). De-
pois do pôr do sol, isto é, terminado o repouso sabático, o povo lhe
traz enfermos de todos os lados, aos quais cura (1,32-34). Anoitece. 3. Explkação de vv. 23-26
De madrugada, Jesus retira-se para rezar; diante da tentativa dos dis-
cipulos de levâ-lo novamente à multidão que espera curas, Jesus res- Me 1,23-26 não é uma mera história de exorcismo. É uma epifa-
ponde que deve realizar sua missão em outr-08 lugares da. Galiléia nia de Jesus. Enquanto o povo desconhece a verdadeira dimensão de
(1,35-39). Exatamente vinte e quatro horas. Jesus e os disclpulos reconhecem sua função messiânica só a partir de
Não é preciso dizer que este e dia> não é um relatório d~ . polfcia. 8~27 (e ainda na incompreensão: 8,33; 9,32), os que estão Implicados
Me sintetiza aqui, de maneira pessoal, uma série de dados da tradição: diretamente com Deus, seus adversários, os demônios;, o sabem desde
a permanência (certamente mais demorada que um dia) de Jesus em o começo (Me 1,24; 3,11; 5,6). E como os disclpulos, mais tarde, serão
Cafarnaum, sua partic;pação'_ na sinag-oga, sua atividade benéfica junto proibidos de dizer quem j.esus é (por exemplo, 8,30; 9,9), assim tam-
aos doentes e «endemoninhados:., os laços de amizade, talvez de pa- bém os que foram libertos do seu demônio (3,12; e!. 1,34). Isto vale
rentesco, com Simão, André, Tiago e João ( cf. também o , episódio também para outras curas (8,26), porque, afinal, qualquer doença era
precedente, Me 1,16-20), a oração de Jesus e a sua vida viandante. vista como uma intervenção do Maligno (cf. Jó 1,6-2,10). Considerar
Pode-se suspeitar que esta unidade literária conheceu um primeiro es- a enfermidade como estado abençoado por Deus, é uma atitude do
boço já na pregação, colocando num dia tudo o que Jesus fazia nos Novo Testamento (!Cor 12,9). Em relação com isto devemos observar
dias da sua vida pública. Contudo, a maneira em que atualmente os que muitos fenômenos patológicos eram explicados, na: Antigüidade, co-
diversos episódios são ligados entre si deixa reconhecer a mãó de Me. mo possessão demoníaca. AqUi, importa que a cura -é uma ocas1ão para
se manifestar pela boca do endemoninhado o fundo da autoridade
(2xousla) de Jesus. Assim, esta história é caracterizada pelo jogo de
2. ExpliCação de 1111. 21-22.27-28 luz e sombra que é tlpico do evangelho de Me. Jesus é revelado como
Messias e Filho de Deus, mas sempre com uma certa reserva, porque,
Os vv. 21s.27s formam uma moldura («inclusão>) em redor do exor- de fato, nem os homens e nem mesmo os discípulos o compreenderam antes
cismo, que constitui o núcleo da narração. Moldura importante, porque de sua Ressurreição. (É útil comparar esta história com a de Me 5,
mostra que sentido o evangelista quer dar ao exorcismo. jesus ensina, 2-15 e com o sumário de 3,11-12). As palavras do demônio demonstram
e isto provoca admiração, pois ensina com autoridade (exousia), e não uma semelhança notável com o vocabulário das narrações sobre os pro-
como os escribas que ensinavam «conforme disse rabi x a rabi y> . .. fetas Elias e Eliseu: e!. IRs 17,18; 2Rs 3,13 (= Me 1,24a); e o titulo
Jesus fala de Deus de primeira mão (v. 22). Ora, no v. 27 aparece de «Santo de Deus> (1,24), cf. 2Rs 4,9. O modo de narrar a história
que o exorcismo é a confirmação desta exousia (mesmo termo!·que, em alinha jesus - com os poderosos profetas, embora os ultrapasse. Na
2,10, é utilizado para perdoar pecados; em 3,15; 6,7, para, expulsar Log/enquelle de Mt e Lc conservou-se uma palavra de' Jesus que ilustra
demônios; em 11,28ss, para expulsar os vendilhões do Templo). Este bem o que Me deixa transparecer nesta narração: expulsar demônios
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é revelar a força do Reino (para quem quiser entender) : Lc 11,20 = A nossa sociedade está doente. Prova disso são os me-
Mt 12,28. O poder do Maligno, que atinge a todos, mas se manifesta nores abandonados; os viciados de álcool e de drogas; os po-
especialmente nos endemoninhados, é rompido. A conclusão do povo liciais dos esquadrões da morte; as mulheres de casas de
mostra que as multidões não ficaram insensíveis a esta dimensão divina
da obra de jesus; porém, não compreendem; apenas ficam pasmados tolerância; os desempregados, acidentados e encostados; os es-
(v. Z7). De toda maneira, Jevam adiante o fato e a fama do tauma- moleiros; as crianças subnutridas; os analfabetos; os crimino-
tnrgo (v. 28). sos: ladrões, falsários, assassinos. . . Todas estas categorias de
~claro que Me não traz uma descrição psicológica daquilo que pessoas representam um problema para a nossa sociedade.
ocorreu lá na sinagoga, e seria despistar a atenção do assunto perder-
se -em considerações psicológicas do tipo de perguntar qual a enfermi- 1
dade, como o homem conhecia Jesus etc. Inclusive, é passivei que numa
mesma narração se combinem traços de vârios fatos. A intenção da !
narração é teológica1 querigmática: suscitar admiração por aquele a i 1. Quem é culpado e quem é vitima?
quem até os demônios obedec·em. A quem obedeceriam, senão a Deus?
Existe uma tendência manifesta para moralizar e condenar
4. Lugar na liturgia este tipo de gente. Rotulam-se de malandros; gente que não
A liturgia relaciona o presente evangelho com a leitura de Di 18,
presta para nada; uns sem-vergonha; aproveitadores e parasi-
15-20. Por esta aproximação destaca-se o caráter profético da atividade tos; gente perdida mesmo e possuída do demônio. . . Ao emi-
de Jesus. Este está sobretudo na exou~ia. Quem .não escuta as palavras tir estas opiniões subentende-se que os demais, inclusive a gen-
que o profeta fala em nome de Deus, Deus lhe pedirá contas! (Dt te, são os bons cidadãos, vitimas destes vagabundos.
18,15). É, portanto, a revelação da autoridade divina em jesus Cristo
que forma o terna central da liturgia de hoje, e que se deverá co- Muitas vezes não se tem a menor idéia de que tais julga-
mentar especialmente. A partir do evangelho, pode-se mostrar que a mentos possam ser precipitados, errados e muito injustos. Nem
autoridade de jesus se revela na sua atuação, que é um atestado ga- se desconfia de que jogar a culpa nos outros seja outra forma
rantido pelas próprias forças malignas, atestado não apenas para a para se desculpar e tirar o corpo fora, quando se trata de
atuação, mas também para o ensino do qual esta atuação faz parte; resolver estes problemas de nossa sociedade.
pois jesus ensina por pa1avras e atos, à maneira dos profetas.
Bibliografia: Geral: Cf. domingo precedente. Especifica: Ã'l I n e t te d e T 111 esse,
Está mais do que na hora para admitir que todas aquelas
O. Le secret messlanlque dans l'évanglle de Alarc, Cerf, Paris 1968, 75ss; S c h m 1 d, categorias de pessoas malvistas e malquistas não sejam cau-
J. (Com. de Ratisbona, 2), excurso sobre exorcismo ad J\ilc l ,21ss.
sas, mas vítimas das doenças da nossa sociedade. Vítimas da
Johan Konings maldade anônima coletiva que criou a sociedade em que vive-
Porto Alegre, RS mos, a mantém em pé e a transformou em um mecanismo dia-
bólico em que uma minoria vive à custa da maioria. Antes e
Tema Principal em vez de julgar seria bom fazermos um exame de consciência
. ' e perguntar-nos se e em que medida fazemos parte deste me-
EXPULSAR DEMôNIOS É LIBERTAR DO MAL canismo que esmaga tanta gente. Existe grande perigo que olhe-
E DEVOLVER A LIBERDADE
mos o cisco nos olhos dos outros e não vejamos a trave no
nosso e que apontemos para os outros com dedo sujo.
Sugestões para a Homilia
2. jesus não moralizou, mas libertou
Introdução
Chagas de nossa sociedade Podemos aprender da atitude de Jesus. Ele não conde-
nou a ninguém. Não rotulou ninguém de pecador, mas libertou.
A nossa sociedade é complexa. Tão complexa, que somos Libertou os pecadores do peso do pecado, perdoando. Libertou
tentados para confiar a outros, mais competentes do que nós, os doentes da doença, curando. Libertou os possuídos pelo de-
a solução dos problemas. mônio, expulsando.
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O Evangelho de hoje nos narra o primeiro ensinamento e Nós não podemos recair no comportamento dos escribas.
o primeiro milagre de jesus. O milagre é uma expulsão de um Eles se comportavam como donos da Lei de Deus. E julgavam
demônio. Olhemos o estado daquele homem e a atitude de jesus. todo mundo, bom ou mau, conforme esta Lei. Rotulavam todo
O homem estava de tal modo «possuído» que tinha per- mundo e, muitas vezes, estavam prontos para aplicar o castigo
dido a sua própria personalidade. Quando ele gritou: «Ai! Que prescrito pela Lei. Como ,no caso daquela mulher adúltera que
temos nós contigo, jesus de Nazaré?:., ele não agiu nem falou jesus salvou com aquela observação: «Quem de vocês estiver
por conta própria, mas era o espírito imundo que falou e agiu sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra». Que nós
nele. Este homem não tinha culpa em agredir jesus, mas era não sejamos escribas, mas cristãos. Não vamos jogar pedras
vítima da influência nefasta do demônio. Por entender isso, je- em ninguém. Reconheçamos que muitos dos vícios enumerados
sus não ficou com raiva dele, não o xingou nem castigou. (criminalidade juvenil, embriaguez e tóxicos, prostituição, de-
Aqui como nos outros textos dos Santos Evangelhos, os semprego ... ) são muito mais conseqüência de falta ,de liber-
possuídos do demônio não são descritos nem tratados por Je- dade do que de falta de moralidade. Os poderes do Mal que
su~ como homens moralmente maus que se perderam por pró- escravizam o homem de hoje, muitas vezes se encarnam em
pna culpa, mas como vítimas involuntãrias e sem defesa dos mecanismos, estruturas e orientações erradas da religião, dos
poderes satânicos. São estes poderes satânicos que agem e fa- jornais e revistas, de filmes e novelas, do analfabetismo, do
lam neles e reconhecem em jesus «o santo de Deus» e se apa- nível de vida subumano, do baixo salãrio, do alto custo de
voram diante do Filho de Deus feito homem. Os demônios não vida. . . Estes poderes e os vícios que daí resultam não se
suportam a presença de Deus tão perto da gente. Eles denun- combatem eficazmente moralizando, acusando, e condenando os
ciam a divindade de jesus, para que todo mundo se apavore indivíduos, mas libertando-os e transformando os mecanismos,
diante d'Ele e fuja d'Ele. jesus não aceita esta deuúncia, este estruturas e instituições ou leis erradas de que são vitimas.
testemunho dado pelos poderes do Mal. Ele quer que a gente
descubra e aceite a sua pessoa livremente. Em vez de acusar Conclusão
o possuído de maldade, Jesus o liberta do poder do Mal que
estava controlando suas ações e palavras. Libertando o homem «S para sermos livres que Cristo nJJs llbertoU>
do poder do Mal, jesus lhe devolveu a liberdade. De tal modo
que, doravante, possa agir por conta própria. Assim jesus res- Dizem que a Igreja e o Cristianismo estão perdendo ter-
tituiu a este homem a possibilidade de ser ele mesmo, de ser reno no Brasil, e no mundo. Se for verdade, certamente se
gente, e de - querendo - abraçar livremente a fé e entrar deve ao fato de que não somos mais como era jesus que en-
no Reino de Deqs. sinava com autoridade, isto é, não somente falando mas tam-
bém agindo e libertando.
Agindo desta maneira jesus se colocou na linha de Moisés
e dos grandes líderes do povo de Deus que, chamados por Nós, cristãos, aqui reunidos, somos a Igreja de Jesus. Pelo
Deus entre os irmãos, libertaram o povo da escravidão do Egi- Seu Espírito que habita em nós somos chamados a vivermos
to, dos trabalhos forçados, da sede e da fome, das influências a liberdade dos filhos de Deus, libertando os nossos próximos
nefastas de cultos e crenças supersticiosas e de estruturas, ins- dos poderes demoniacos que estrangulam a nossa sociedade e a
tituições e leis que escravizam o homem. transformam para muitos de nós em um verdadeiro inferno, do-
mínio de espíritos maus. O divino Esp!rito Santo nos impele
para libertarmos os homens das condições escravizantes em que
3. Não sejamos escribas que moralizam~ mas cristãos que libertam se encarna este domínio e para devolver-lhes a liberdade de
pensar, de agir, de falar e de optar. Conduzindo-os a esta li-
Os contemporâneos que presenciaram este ato de Jesus per- berdade - e não os acusando de pecado ou ameaçando-os com
guntaram: «Que é isto? Eis um ensinamento novo, e feito com penas eternas - é que se criam as c-0ndições necessârias para
autoridade!» Admiravam-se desta maneira porque jesus os en- a vinda do Reino de Deus.
sinava como quem tem autoridade, e não como os escribas. Oau1 Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
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Quinto Domingo do Tempo Comum do Evangelho; antes, suportou todo tipo de privações para não opor
dificuldades ao mesmo. Aborda o tema da liberdade cristã como um
grande valor, sem que seja o único e o mais elevado. Pode-se razoa-
. Pistas Exegéticas velmente - e Paulo o fez! - renunciar .ao exerclcio da liberdade sem
contrariá-la e negá-la. · ,
Primeira Leitura: Jó 7,1-4.6-7 Além disso, insere aqui uma autodefesa contra aqueles que o de-
preciavam por não ter acompanhado o Senhor em sua vida mortal.
<Minha vida é um sopro> Tem direitos e poderes, porque Jesus o chamou pessoalmente e lhe
apareceu como ressuscitado (15,1-8), capacitando-o para o ministério
O trecho é uma queixa amarga de Jó. Ele é um homem sem sos. (9,11-14). O contexto psicológico mostra-o 11ezyoso: provam-no os ana-
sego. Vivendo em desgraça, depois de ter conhecido , a felicidade ele colutos, as inter.rupções bruscas. A singularidade de sua vocação o im-
procura a . causa de su~ desventura. _Coerente consigO mesino, ele se pele a mais: anunciar o Evangelho (v. 16) não é para ele glória,
reconhece inocente. Mantém esta certeza contra as aparências a força
da tr~di.ção -e as insinuaÇões dos amigos, que pretendem fazer' de Deus mas compromisso imenso, uma vez que foi capturado por Cristo. Não
o paliativo dos problemas do homem. Jó não aceita de modo nenhum basta proclamá-lo, como o fizeram os outros, já que !ora perseguidor
a sugestão de seus . amigos para reconhecer um pec~do que não fez da Igreja. Se ?nunciar o Evangelho é uma «imposição>, exclui com
ou J?ara, pelo menos, admitir que esteja sofrendo por uma culpa es- este vocábulo qualquer atentado à livre e espontânea liberdade, à cor-
quecida. Ele pede contas a Deus: «Não há culpa! De onde me vem dialidade. Voluntariamente e de todo o coração empenha a sua liber-
esta desgraça?» Entretanto vê os seus dias passarem Sem receber uma dade. Entre diberdade> e cnecessidade> há estrita relação: «imposição>
resposta satisfatória. jó · anseia por ela «como o escravo espera o fim ou «necessidade?, aqui, não se opõem à «Uberdade>, antes, esta se
consuma naquelas. O âmago da liberdade consiste justamente naquela
do trabalho forçado e o assalariado o pagamento>. Mas tudo parece
indicar que para ele já não haja mais esperança e que terminará sua
• necessidade com que o homem ama e reconhece a Deus como única
vida na desgraça, sem recurso, nem apelação. realidade, digna de todo o seu amor e dedicàção. Bem entendidas, di-
berdade> e •necessidade> envolvem unidade. Em Cristo conciliam-se ine-
Mesmo assim, ]ó pefmanece firme na sua atitude. Não se conforma favelmenle obediência e amor filial. Aceita ~brigações ou imposições,
com a sua desgraça sem culpa e não aceita a religião - a imagem equacionando-as, à sua condição e autoconsciência de Filho. Se o ho-
de Deus - de seus amigos, porque o levaria a reduzir o Deus de mem se conforma afetiva e efetivamente com· tais cimposições>, na fé
sua fé a um passe par/out ideológico ou a ópio do povo. Teimando e no amor, ela~ deixam de ser uma imposição vinda de fora.
na· fé, Jó não espera a última palavra ·de seus amigos, mas de Deus:
<Lembra-te ... » (v. 7). Esta prece encontra-se nos salmos de súplica e cAi de miní se eu não anunCiar o EvangelhÕ> 1 - não é ameaça
lamentação. «Recordar ou lembrar-se significa aqui: permanecer fiel ele- vinda de fora, senão um impulso muito mais forte vindo de dentro -
tivamente, agora, a uma atitude de benevolência mostrada no pas~ado> o do amor. Resistir-lhe seria o maior fracasso. O v. 17 demonstra
(DEB, 968)>. <Lembra-te> é a primeira palavra que Jó dirige a Deus. como deve ser nossa tareia de evangelização: na liberdade e no amor.
~a Bíblia, esta expressão encerra quase sempre uma prece para pe- Só assim será eficaz e agradará ao Senhor. Fazê-lo a contragosto ou
dir a Deus de permanecer fiel à sua Aliança. Aqui se .trata da aliança apenas como um dever, imposto e não aceito, é gesto de escravo, de
de Noé: que Deus não. se esqueça da condição de sua criatura! Que proletário, de imaturo - o que não corresponde ao plano de Deus,
faça cessar seus sofrimentos! Que reconheça sua inocência! Que lhe nem merece qualquer recompensa. A idéia de , «recompensa:. conota cer-
explique o mistério de sua infelicidade!» (de Vaulx, 31). Jó prefere ta sensação penosa ou, ainda, mentalidade interesseira. A cglória:. para
h.wnilhar-se a si mesmo e ser humilhado pelos outros,~ mas permanecer Paulo .não é algo de p~ram~nte exterior, como nós entendemos hoje,
firme na sua fé em Deus (cf. 2,9), a reduzir Deus às D\edidas da gente. mas sun o testemlUlhO mter1or da boa consciência. Nada espera de
humano pela pregação do Evangelho, pois o faz gratuitamente. Aliãs,
Bibliografia: O comentário de E p p 1ng-Ne11 s; o verbete "Memória", em: é natural esperar por um prêmio, ainda mais se é Deus. Ta1 esperança
DEB, 967-971; J. de V a. u 1 x, Vle humalne vJe de malheur 7 (Jb 7), em: AdS
11/36 (1974) 28-32. . • ·3 não tem nada de calculism01 o que viria desmerecer a idéia de prêmio.
Em certas faix~ de piedade cri~tã, a motivação da recompensa por
Rà'.ul Ruijs, O.F.M. vezes representou um papel um tanto suspeito. Todavia, não se deve
Petrópolis, RJ cair no outro extremo, como se toda idéia de recompensa fosse indig-
na do homem. Esta atitude colocaria o homem acima da pregação de
Jesus e d.o~ apósl?lo~, fora da pedagogia . de Deus e da p~icologia hu-
Segunda Leitura: lCor 9,16-19.22·23 , mana. Re1ettar a 1dé1a de recompensa seria orgulho, anularia a relação
fundamental do homem para com Deus, repeliria a graça divina.
«Eu me fiz servo de tudos» Paulo resigna de seus direitos, como apóstolo, por razão de ordem
pa~toral (vv. 19ss), fazendo-se de forma livre "o servidor de todos para
Paulo !alara 'nos vv. precedentes (1-14) de seus direitos, como cativar a todos; Antes propusera o princípio da liberdade cristã face
apóstolo, posto que, por razões pastorais e de conveniência não os às carnes sacrificais (c. 8). Agora o salvaguarda contra abusos da
usufruiu. Tenciona evitar a mais lé:ve aparência de passar b~ à custa parte dos auto-suficientes, mostrando em sua .vida como deve ser usa-

262 263
1
2. Os vv. 29-30
do; sua regra de vida, livremente escolhida, é a antitese - «livre de
tudo>. ; • •servo de todos>. Obedece assim ao preceito de jesus: .Se A história aparen1emente insiguilicante de Me 1,29-32 é valiosíssima,
alguém quiser ser grande; seja vosso servidor:. (Me 10,43s). Sabe que porque a única ·razão por que foi conservada ·é: que ela aconteceu. De
só assim estará de acordo com o Evangelho - sintése de tudo que fato, em comparação com os exorcismos e milagres espetaculares, curar
é cristão: caridade, humildade, imitação... seja qual for o Dome que a febre de alguém parec~ insiguilicante. Mas aconteceu, e foi conser-
se lhe queira dar. O verbo «ganhar», metáfora derivada do comércio, vada por causa de sua ligação com o chefe dos apóstolos, Pedro. já
é sinônimo de csalvar», passando à terminologia missionária. Note-se S. Lucas achou' a história fraca demais e fez da cfebre» (Me 1,30)
o cquanto maiS> do coração apostólico de Paulo. A Igreja terá que uma <grande febre> (Lc 4,38); e acrescentou um «trabalho> de jesus
orientar-se mais e mais por este programa missionário: todos a Cristo. contra a febre (Lc 4,39). Nada disto em Me. Parece que o que im-
O verdadeiro apóstoló se identifica com os que deseja salvar: co- porta é atestar como o mistério de jesus penetrou na vida de Pedro
mo Cristo se fez homem- para salvar os homens, assim Paulo cfez-se e sua familia. Pois a sogra respondeu ao gesto de jesus: «começou
tudo para salvar a todoS>... E uma formulação temerária, digna só a servir-lhes» (diakoneln), verbo tipico para traduzir o modo de se-
dos grandes santos. Não se trata de um ativismo desmesurado. Paulo guimento de mulheres (cf. Me 15,41; Lc 8,3; W,40; jo 12,2) com rela-
tem em mira assinalar a dificuldade que têm os fortes de considerar ção a jesus (seguimento que os outros rabinos não permitiam). Por-
os fracos. Não importa qual seja esta fraqueza. Em todo. o caso, os tanto, para os que acusam o evangelho de antifeminismo, é bom ob-
pobres possuem direitos perante Deus e a Igreja. Por· sinal, jesus es- servar que um 'dos primeiros fatos relatados é a admissão de uma
colheu os pequeninos e declarou felizes os pobres. Sabe, porém, que mulher na companhia de jesus, respondendo a um beneficio que foi
ele, a Igreja, nunca atingirão a todos. Entretanto, a wiião destes pau... mais do que uma cura e vitória sobre as forças do Maligno: um convite.
cos tem significação para os demais, em virtude dã lei básica da
economia da salvação -.; a da satisfação vicária de uns pelos outros.
O Concilio Va1icano enunciou: <A Igreja é o sacramento da salvação 3. Os vv. 32-34
para a humanidade> (LO 1). Referindo-se' ao costume popular de se reunir diante da porta de
«Faço tudo pelo Evangelho .. .> Tesume toda sua vida apostólica, pessoas interessantes, Me descreve uma cena ·(um «Sumário», como di-
seu entusiasmo pelo Rein9. <Para tomar parte nele ... > - é que Paulo zem os exegetas) de curas diversas de jesus (cl. Me 3,10-12). Embora
não apenas zela pelos outros, mas pensa também na sua própria saJ... o autor não o :diga expressamente, seu imitador Mt o entendeu bem:
vação. Ninguém está tão. seguro de sua salvação que. possa dedicar- é a realização das profecias sobre Deus consolando seu povo (Is 35,
se exclusivamente à salváção dos outros. Nem os Apóstolos. A eleição 4-6) e do Messias tomando sobre si as nossas enfermidades (Mt 8,16ss,
própria é o pressuposto 'para o serviço dos irmãos e 'vice-versa. Aqui cf. Is 53,4.11).
es1~ a mais au!ê~tica solidariedade de todos na Igreja; unindo os que Encontramos aqui novamente o que já caracterizou a cura do en-
enSJnam e adnurustram com os que ouvem e recebem. Esta distinção demoninhado na perlcope antecedente ( cf. dom. passado) : a briga de
já não vale no plano da santidade e da graça, onde os papéis po- jesus com o demônio (afinal, os antigos consideravam todas as doen-
dem inverter..se. ças como forças do Maligno; cf. Le 13,11-16'. e MI 12,22). Novamente
Bibliografia: Cf. Segundo Domingo do Ano B, 2• Leitura, acima p. 13. também a proibição que eles falem (<segredo messiânico»). E. quem
nos 'revela o sentido escriturístico deste segredo messiânico é MI, no
Matheus P., Giuliani, S.A.C. seu texto paralelo (Mt 12,16-21): jesus realiza a profecia do Servo de
Santa Maria, RS Javé, que cnão :1evanta a· voz nem grita> (Is' 42,1-4), que não preciSa
de publicidade. Os espíritos malignos reconhecem jesus, porque sua apa-
rição lhes concerne diretamente: signmca o fim dó reino deles; O
povo porém não reconheceu plenamente a significação da atuação de
Terceira Leitura: Me 1,29·39 jesus; fica na admiração e incompreensão (para os primeiros cristãos,
Isto deve ter sido uma das explicações por que deixaram jesus mor-
<De madrugada retirou-se para um lugar deserto. E ali orav11> rer; cf. At 3,17; é somente por sua ressurreição que jesus se revela
como Messias e. Pilho de Deus ao comum dos mortais, Inclusive os
1. O conjunto disclpulos).

Estamos sempre no . dia de Cafarnaum (cf. comentário do 4• do- 4. Os vv. 35-39


mingo comum). O autor não apresenta uma história elaborada como no
texto anterior, mas uma série de pequenas noticias_: a_ cura' da sogra Em termos ·de composição literária, os vv. 35-38 formam um epi-
de Pedro, curas de diversos tipos, a retirada de jesus; e um sumário sódio completo; . o v. 39 é transição para o episódio seguinte. A indi-
de sua atividade através da Galiléia. A unidade deste material é es- cação do tempó. no v. 35 faz parte da estrutura redacional que Me
tabelecida pelas indicações cronológicas inseridas por : Me (depois do impõe ao cdia âe Calarnaum> (cf. supra). jesus se retira num lugar
culto, v. 29; ao anoitecer; v. 32; de madrugada, v. 35); deserto. O termo . cdeserto> evoca o lugar onde Deus encontrou seu

264 265
povo, conforme o AT; o lugar também onde o profeta Elias procurava jesus deve animar os seus fiéis para, de modo criativo - fazendo
o rosto de Deus; é o lugar originário da Aliança e da Salvação (a tal tudo novo - vencer o sofrimento lá onde lho for dado e significar
ponto que os antigos judeus compararam também o exllio babilônico assim que Deus está conosco.
com a escravidão do Egito e sua libertação como uma nova traves.. Pode-se destacar também o conteúdo de c:um dia de jesus>, exem-
sia do deserto). Além deste sentido tipológico (assumir os momentos plo de um dia do cristão: proclamação da boa-nova, assumindo as en-
mais autênticos da Aliança entre Deus e seu povo) a oração de jesus fermidades dos homens, e tudo isto, baseado numa íntima auscultação
em lugares isolados (cf. Me 6,46; sistematizado por Lc: 3,21; 5,16; da vontade do Pai, na oração, disposto a cir a outras cidadesl>.
6,12; 9,18.28; 11,1). tem ainda o sentido de o distinguir dos rabinos
e fariseus, que cultivavam sobretudo a oração pública, como . aparece Bibliografia: Ver 31> Domingo do Tempo Comum, 3 1 leitura, acima, p. 250.
na tradição de Mt 6,5-6. Uma séria advertência também à Igreja de johan Konings
nossns dias, que está esquecendo a oração da solidão (e por isto sua Porto Alegre, RS
oração pública fica tantas vezes sem gosto). Me diz que Simão (e os
que estavam com ele) «perseguiu» Jesus lá no seu lug_ar de oração -
marca da sua incompreensão, comparável à de Me 8,31-33. O seguimen- Tema Principal
to obediente transformou-se numa persecução em busca de sucesso (v.
37) - embora certamente justificada com as melhores intenções (com· A primeira leitura e o evangelho deste domingo nos falam do tema
paixão com o povo, etc.). jesus, porém, não entra n_a deles e coloca do sofrimento. Jó apresenta.se completamente impotente diante das des-
a sua missão acima da tentação do imediato; jesus não é como nós, graças que caem sobre ele. Não tem explicações para o sofrimento que
que negJigenciamos o importante por causa do urgente. . . A semente o aflige. Passa o dia no sofrimento e espera a chegada da noite. Sem
do Reino não é para ser extraida da terra na hora em que caiu; deve poder dormir anela pela chegada da manhã. Marcos, num relato vivo
desaparecer para se multiplicar. Deve também se ramificar em outros e sintético, nos mostra Cristo na casa de Simão e André curando en-
lugares (v. 38). O lugar do profeta não é na sua própria terra (Am fermidades.
ô,12-15; Lc tematiza esta idéia no episódio 4,16-30, porém situado em CRISTO, OS CRISTÃOS E O SOFRIMENTO
Nazaré e não em Cafarnaum; o sentido fica o mesmo).
A conseqüência desta fidelidade de jesus à sua missão, mesmo
contra o gosto do povo, é sua volta pela região da Galiléia (v. 39),
onde ele realiza as mesmas coisas que em Cafarnaum: anunciar o evan· Sugestões para a Homilia
gelho e expulsar os demônios, o que são duas faces da mesma realidade.
Introdução

5. Lugar na liturgia Cotidianamente deparamo-nos com a realidade do sofrimen-


Da presente leitura (escolhida por ser continuação do domingo an· to. Um ente querido nosso nos deixa, familias vivem dramas
terior) a liturgia salienta a idéia do sofrimento; este é o tema co. sérios com os filhos, lares são desfeitos, inquietações morais e
mum da t• e 3' leitura (a 2', como geralmente, segue uma linha inde- materiais se abatem sobre os homens, a violência pareee nos
pendente, a da leitura contínua das cartas de Paulo). Jmporta destacar tirar o gosto de viver, povos inteiros vivem o drama da guer-
o dinamismo visível dentro do tema do sofrimento: ]6 expressa a im- ra que mata seus filhos e destrói bens adquiridos com suor,
pressão geral do AT, que o sofrimento, no fundo, não tem sentido
claro para a pessoa humana. Pode ser permitido por Deus como pro. milhões de seres humanos vivem a fome de pão e a miséria
vação (assim o explicam os dois primeiros capítulos de jó), mas de de bens, deparamo-nos com nossas próprias limitações e pe-
toda maneira, os que estão em pó e cinza não cantam a glória de cados. A doença e a enfermidade flsicas se apresentam como
Javé ... Falta, no AT, uma perspectiva positiva do sofrimento. No NT, fardos pesados que mal e mal conseguimos carregar. Por que
esta se abre desde o início da atuação de Jesus; faz parte da Boa.Nova. tudo isso?
jesus toma sobre si o sofrimento de todos, como destaca Me 1,33.
Proclama, no sofrimento, a vitória sobre o Maligno, último culpado do
sofrimento, conforme os antigos. Podemos extrair dai uma aplicação Corpo
para a atualidade: o sofrimento, também hoje, parece, à primeira vista,
uma fatalidade - às vezes culpa do individuo, muitas vezes, porém, 1. Teria sentido o sofrimento?
conseqilência de fatores que escapam ao controle dos indivíduos e mes-
mo dos grupos humanos, ainda que sejam seus intermediários. Con·
tudo, embora não haja lugar para exaltação ingênua, devemos dizer Normalmente falando o sofrimento é um absurdo e a morte
que em Cristo o sofrimento é assumido por Deus mesmo; não lhe é
estranho nem insuperável. Mas também esta vitória sobre o sofrimento
precisa ser intermediada pelos homens: o esplrito que deu força a
1' um enigma inexplicâvel. Jó faz exatamente essa experiência hu-
mana da impotência do homem frente ao sofrimento. A vida
na terra é uma luta e o ser humano vive suspirando por uma
266 267
f

sombra onde possa descansar. Primeiramente devemos dizer que como tal precisa ser debelado. Nesta linha podemos afirmar que
o homem é criatura. Como criatura, pertencendo ao mundo os cristãos se esforçarão, enquanto estiver a seu alcance, por
criado, ele é limitado. Está sujeito ao desgaste do tempo. De- extirpar toda sorte de sofrimento da face da terra.
ficiências físicas e defeitos interiores uão podem ser atribuídos Mas qual a resposta de Deus ao sofrimento na história
ao Senhor, mas ao fato de o bom.em ser criatura. Até certo de Jesus? Ela é misteriosa, mas forte;. O símbolo . do cristia-
ponto podemos compreender que a natureza chegue mesmo a
1 produzir aberrações de seres que nascem com defeitos físicos
ou morais. Não precisamos e não devemos atribuir isso logo
nismo é uma cruz, instrumento de suphcm e de sofrimento, e o
Cristo que sempre impressionou a todos os homens é o Cristo
das dores da sexta-feira santa. Deus não tem outra resposta a
l
1
l
a Deus. Mas não resta a menor dúvida de que as pessoas que
vivem em enfermidades ou que se defrontam com seus filhos
que nascem doentes ficam perplexas. Em segundo lugar deve-
não ser esta: na luta de todos os dias, na cata da verdade, do
bem da defesa do homem e na instauração do Reino de Deus,
Jesu~ teve de guardar a fidelidade que o le~ou até o d?m de
1 remos dizer que nossos defeitos morais provêm de nosso co- sua vida no alto de uma cruz. E desde entao todo sofnmento
ração que é dividido, dilacerado, rasgado, pecador. Infligimos encerra um valor de redenção. A paixão e morte de Cristo fi-
males aos outros e os outros nos oferecem nossa porção de so- caram sendo símbolÓ e penhor da vida por mais paradoxal que
frimentos. Muitos males têm como única fonte o coração mau essa expressão possa ser. Viver as limitações, ·.os dramas, as
do ser humauo, marcado pelo egoísmo, pelo desejo de ter, pelo frustrações, as dores da vida pode signifii:ar para o cristão,
esquecimento do outro. Quando os homens conjugam suas forças como significou para Cristo, mistério de Vida. A resposta. de
para fazer o mal tornam a vida de muitos um verdadeiro vale Deus ao sofrimento humano é que ele mesmo, em seu Filho,
de lágrimas. se tornou sofrimento. Ele não tinha beleza nem formosura, era
O homem do Antigo Testamento compreendeu que o mal desprezado como um condenado. Mas o grão de trigo preci-
não provém de Deus e, no relato do pecado original, mostra sava morrer para poder dar fruto.
que o mal nasce do coração dos primeiros homens e de todos
aqueles que os sucederam no tempo. Muitos dos piedosos de
Israel como os orantes dos salmos e Jó ficaram, no entanto, 3. O cristão e o sofrimento
perplexos e não encontraram explicação satisfatória que justi- ,·
ficasse a presença do mal. Nossos contemporâneos, muitas ve- Cabe ao cristão lutar com todas as veras para extirpar os
zes, têm dificuldade em crer em Deus precisamente pelo pro- sofrimentos físicos da face da terra. A medicina, a técnica deve
blema do mal que assume dimensões e proporções cósmicas em poder continuar seu trabalho em vista da minoração de todo e
nossos dias. · qualquer sofrimento do corpo e da mente humana. Engajar-se
na linha de uma luta pela extirparção do sofrimento da face
2. A resposta de Deus em Crifilo da terra é colocar-se na linha de Cristo que não aceitou o so-
frimento como um fatalismo e como algo bom. Importaria que
Qual seria a resposta que Deus tem a dar a este problema nações e governantes envidassem todos os esforços para que
em seu Filho, Cristo Jesus? Primeiramente devemos afirmar que as conquistas da técnica cirúrgica estivessem ao alcance de mui-
Jesus de Nazaré se mostra compassivo diante de toda espécie tos. É missão dos cristãos apoiar e promover todos os orga-
de sofrimento. São incontáveis os casos relatados pelos evan- nismos nacionais ou internacionais que defendam a saúde e que
gelistas: ele chora diante do túmulo de Lázaro, ressuscita o fi- lutem por melhores condições de alimentação e de higiene. Ê
lho da viúva de Naim, cura os leprosos do caminho, acolhe tarefa da Igreja denunciar todas as engrenagens dominadoras
corações doloridos co.mo o da mulher pecadora, expulsa demô- que façam o homem sofredor e infel~. O mal moral do pec.a.do
nios e, como nos diz Marcos no evangelho deste domingo, cura é responsável pelo sofrimento de muitos. No mundo reconc1ha-
a sogra de Pedro. Insinua assim que sua missão é curar o do de Jesus Cristo o coração novo do homem não causa mais
mal. No mundo novQ que está instaurando toda. lágrima deverá sofrimenao aos outros. Nessa nova ordem de coisas, nesse mun-
ser enxugada e os homens não terão mais que defrontar-se com
a realidade da morte. O sofrimento para Cristo é um mal e ...
~
do marcacl,o pelo fraternismo, os males advindos do egoísmo e
da ânsia do ter seriam supressos•
268 269
• •
Uma vez feitos os empenhos necessanos para debelar o Sexto Domingo do Tempo Comum
mal físico e evitar os sofrimentos advindos do coração do ho-
mem fica àinda o mal presente entre nós. Cabe então ao .~ris­ Pistas Exegéticas
tão saber assumi-lo à maneira de Jesus de Nazaré. Nunca po-
deremos extirpar totalmente do cristianismo a sombra da cruz Primeira Leitura: Lv 13,1-2.45-46
de Cristo. Os grandes homens da fé foram aqueles que sou- <Ele serd levado a Aarão, o sacerdote»
beram assumir suas limitações e se associaram aos sofrimentos No Novo Leciondrio Trienal das Missas Dominicais e Festivas há
de Cristo. Nisto consiste exatamente nossa participação no Mis- somente duas leituras de Lv e elas são lidas nas .Missas do sétimo res-
tério Pascal. pectivamente sexto Domingo do Ano A e B, que nem sempre são ce-
lebradas. A leitura .de hoje consiste em quatro versicu1os de um con-
Conclusão junto literário de cento e dezesseis versículos (13,1-14,57). Esta ma-
neira de tirar textos de seu contexto pode dar uma impressão injusta
sobre o tratamento que no povo de Deus do Antigo Testamento se
. . O últin:io culpado. pelo sofrimento é o Maligno. Com a vi- dispensava a pessoas com doenças da pele. Teria sido um tratamento
tona de Cnsto o Mahgno e a morte foram derrotados e inau- discriminatório, uma expulsão sumária e impiedosa, que documentaria
gurou-se uma nova terra. Nunca percam os cristãos de vista o uma mentalidade muito primitiva.
fato de que o jnsto sofredor se acrisola e se prepara, pas- Contra esta impressão está o fato de que se dedicam quarenta e
quatro versículos à descrição das consultas que, antes de se chegar
sando por entre as coisas que passam, para a trar.sfiguração à segregação formal da sociedade (vv. 45-46), hão de ser feitas por
de seu ser. ninguém menos do que «Aarão, o sacerdote, ou por um dos seus fi-
Almir R. Guimarães, O.F.M. lhos sacerdotes> (v. 2). Acrescente-se que este capítulo que trata da
Petrópolis, RJ segregação é seguido por um outro dedicado à readmissão à sociedade
das pessoas curadas de Suas doenças. Antes de serem readmitidas, as
pessoas são submetidas a vários exames, de novo aos cuidados dos
sacerdotes. A própria reintegração na comunidade é urna celebração
circunstanciada com purificações, unções -eom óleo e sacrifícios. No povo
1'
de Deus do Antigo Testamento, pois, não se fez pouco dos leprosos
e outros enfermos da pele. Mais, talvez, do que no novo povo de Deus.
Diz-se que se podem questionar os motivos deste tratamento com-
plicado. As concepções depositadas nas leis de Lv 13-14 documentariam
cuma menta1idade muito primitiva, ou até supersticiosa» (OAC, Vol. 2,
p. 252). Resquícios de superstição podem-se encontrar na prescrição de
soltar um pássaro vivo (cf. 14,7.53). «A religiosidade popular dos se-
mitas- viu facilmente a causa da doença na presença de maus espíri-
tos alados. Os pássaros ocupam o lugar deles: um deles é sacrificado
e o outro é solto> (Cazelles, 69). Mas estes resquícios de superstição
pertencem a um ritual muito arcaico que funciona em Lv 13-14 e no
resto de Lv em um contexto literário e teológico novo. As diversas
camadas literárias e teológicas superpostas na história da tradição e
redação de Lv dificultam o devido entendimento do livro e da legisla-
ção sacerdotal a respeito da pureza e impureza cultuais. Expressa-se
nelas ainda um tremor como que existencial diante das realidades limí-
trofes da existência humana, a saber, aquelas que se relacionam com
a sua origem (sexualidade e nascimento; d. Lv 15 e 12) e o seu fim
(en!ermidllde e morte; c!. Lv 13-14). cEstas realidades experimentam-
se carregadas de forças misteriosas, transcendentes ao homem, que lhe
\ podem representar uma ameaça. Dai normas bem concretas para afastar
estes perigos. Em um estádio posterior, quando, no culto, se experimen-

í
1.
tam as possibilidades de entrar em contato com a divindade, todo este
complexo é visto em luz nova, a saber, como contrário a De~ de tal
modo que a pureza conforme as normas já conhecidas exige-se agora
para poder parti~ipar do culto> (Vink, p. 48).
270 271

'
I'
'
Que a lepra era cons;derada uma investida >dos poderes da morte Os vv. 23-33 resumem a solução concreta e prática ao caso de
na vida humana deduz-se dos sinais de luto que deve manifestar, a consciência criado com as · carnes imoladas aos ídolos. Estas podem
saber, «as vestes rasgadas» (v. 45). Sentiu-se que quem ou aquilo ·que ser comidas, jâ que nada envolvem de sagrado. Entretanto, surgindo
traz as marcas da morte é incompatível com a presença de Deus vivo a possibilidade de escândalo ou de desedificação para alguém, deve-se re-
e há de ser mantido longe da fonte da vida, para que esta não pe- nunciar à própria liberdade em favor da caridade. Tudo é licito, po-
riclite. «Fundamental para o entendimento de Lv como um todo há de rém nem tudo é conveniente, nem tudo edifica; ninguém busque o seu
ser a grande noção do que significa o culto nas tradições sacerdotais: próprio interesse, senão o do outro (w. 23-24). A caridade não busca
a possibilidade de segurança em uma existência de todos os lados amea- as suas coisas (13,5) e, quem as busca, não procura as de jesus Cris-
çada; esta possibilidade é dada por Deus e através dela abre-se ca- to (FI 2,21). Quanto às carnes imoladas aos ldolos: estes não são
minho para aprOximar-se de Deus, cuja cólera e pragas, do contrário nada, aquelas nada encerram de sagrado. Não havendo intenção ido-
destruiriam o homem inclinado ao mal» (Vink, p." 14). ' látrica e nem razão de escândalo, podem-se comer tranqüilamente (vv.
Dentro do mesmo contexto literário de Lv., a teologia alcança a 25ss). No contexto próximo anterior '(w. 28-30), põem-se restrições à
1
profundidade de, c. 19. Neste capitulo a pureza-, ou a santidade não é liberdade, quando intervém o escândalo de outrem menos esclarecido.
vista como uma qualidade cultuai exigida legalmente de coisas e pes- Com isto, nada se abstrai ao principio da liberdade de consciência.
soas, mas corno, um atributo de Deus. Revelado~ dinamicamente na his- É apenas uma renúncia do mesmo em favor da consciência mais fra•
tória da salvação, desde a libertação do Egito ;(cf. 19,36), ele é pro- ca dd próximo, um ato de sensibilidade e de amor. Para que, em caso
posto ao homem' como exemplo e -arquétipo do ,agir humano. Revelado de e§cândalo, dar ocasião a que os' fracos critiquem minha liberdade
e comuriicado ao homem como principio de ação divino-humana o faz de co,nsciência? Para que dar ocasião a que me censurem, quando posso
participar da aç~o salvífica de Deus que atinge a todos, mas de pre-
r
comer dando graças a Deus? ;
ferência os mais: necessitados e margina1izados, tl quem pertencem tam- O v. 31 mantém-se na mesma direção do conselho anterior: não
bém os leprosos. A cura dos leprosos faz parte da esperança mes- dar ocasião a escândalos e a criticas. A glória de Deus é que deve
siânica, do judalsmo do tempo antes e durante; a vida de jesus (c!. ser o critério de nossa conduta. O mundo religioso de Paulo (v. 32)
Mt 11,5; Lc 7,ZJ.). . compreende agora pagãos, judeus e l(rjstãos. Até ali a divisão para ele
Bibllogr4fla: Os comentãrlos de V 1 n .k e C a z e 1 J e s; P.-M. O a 1 o p 1 n La fora: _pagãos e judeus. A Igreja de Deus, em Corinto, contradistingue-se
sltuatlon tlu Iépreux dans l'Ancfen Israel (Lv 13,1·2.4~6), em: AdS 11/37 ci97t) tanto do mundo pagão quanto do judaico. Com liberdade apostólica
42-47; S t r a e k·B í 11 e r b e e 1c, IV/2, p. 745-763 (Excurso sobre lepra e leprosos). (v. 33), Paulo se oferece qual modelo de renúncia, qual pai que fala
Raul Ruijs, O.F.M. a seus filhos. Quer agradar a todos, intenta não a sua vantagem mas
Petrópolis, RJ a dos outros, em função da salvação;
!Cor 11,1 liga-se melhor ao capitulo to, do qual é uma conclusão
Segunda Leitura: 1Cor 10,31-11,1 geral: A importância teológica, ascética e histórica é notável: - a
imitação dos santos é vâlida e licita· na medida em que eles reprodu-
«Sede meus imitadores, como eu mesmo ô sou de CristD> zem ·a vida de Cristo e servem parà imitâ-lo, tornando-se, em conse-
1 qüência, a imitação dos santos: um caminho para chegar a Cristo; -
No contexto aborda-se o assunto das carnes sacrificadas com suas a imitação dos santos, proposta pela Igreja, tem aqui a sua origem,
questões práticas, ·o .qual precisa de uma decisão (10,14-11,1). Não é na imitação de si que Paulo exige de seus fiéis; - Cristo assume
possível fazer conviver a participação no Corpo de Cristo (w. 14-17) aqui um sentido histórico, abraçando toda a sua vida terrena, a qual
com o ser comensal do demônio (w. 18-22). Paulo trata de explicitar nos é apresentada como causa exemplar, em prãtica na Igreja desde
autenticamente a liberdade face aos casos particulares (w. 23-30). Ele os apóstolos. A frase: •Sede meus imitadores ... • contém o principio
não é dos que <se detêm milito em conselhos ::-casuísticos particulares. da imitação no sentido do seguimento, e o do seguimento na linha da
Prefere dar atenção mais ampla e profunda ao~ assunto em geral sob imitação. A comunidade olhará para o exemplo vivido pelo Apóstolo,
o prisma do universal. Trata-se de ver o que deva prevalece; em já bastante conhecido. dmitar> é ouvir a Palavra e observar como
qualquer circunstância. O problema são as carnes sacrificais: podem ela é concretizada na vida: ambas as partes se ilustram mutuamente.
ser comidas pelo cristão? jesus dera o exemplo. Atrás da conduta e palavras do Apóstolo as-
O Apóstolo manda que se aplique o que é essencial para um soma a figura de jesus. Com efeito, ele resumiu em si a vida de
cristão a qualqtier comida e bebida ou atividade, sem deter-se, oomo Cristo, não se comprazendo a si mesmo (Rm 15,3) e se entregando
quer que seja, só em atos religiosos. Para o cristão, tudo estâ -funda- à morte por todos, embora não o percebessem. Assim entendeu Cristo
mentalmente relacionado a _Deus; logo, o batiZado deve glorificar a a sua missão: cumprir a profecia sobre o Servo de Javé (Is 53). Pode-
Deus em tudo; Onde estiver, faça o que fizer - coma ou beba exerça se concluir que Paulo sempre teve em mira este padrão, embora nem
atividades humanas, faça uso correto das coisas que o Cri;dor lhe sempfe o expressasse abertamente.
confiou - o cristão encontrará Deus em tudo isso e terá motivo para
render-lhe homenagem e gratidão. Inclusive, setltirá a maior felicidade
ao descobrir qu·e, assim; está se realizando da· maneira mais sublime • P. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Santa Maria, RS
isto é, glorificando a Deus. , '

272 273
~,

t Terceira Leitura: Me 1,40-45


«Movido de compaixão jesus lhe disse: Quero, s2 purificado>
1. Explicação do contexto
manuscritos diz que Jesus fez isto movido por compaixao (v. 4la), e
seria perfeitamente normal; alguns manuscritos, porém, lêem eirado>; nes.
te caso, sua ira poderia ser dirigida: a) contra o espírito imundo, causa
da doença (cf. l,24s); b) contra a dureza da Lei; ou e) menos pro-
vavelmente, contra o homem que veio até ele sem autorização dos sa-
Quanto ao contexto é mister observar que a cura do leproso (Me cerdotes (se jesus fosse tão observador da Lei, não teria tocado no
1,40-45) segue logo dePois do -e:dia de Cafarnaum» e s~rve para ilus- homem). f: provável que a lepra era considerada como um espírito imun-
trar o desenlace daquele dia, a salda de Jesus ~a ~ua cidade (1,~8) e do: a formulação de v. 43 poderia tão bem servir para a expulsão de
sua atuação na região da Galiléia (1,39). É a primeira de uma. série de um demônio, como para a cura da lepra. Tem-se a impressão de que
ilustrações, todas elas bastante elaboradas e, por fim, resumidas pelo Me ou a sua tradição, depois de ter mencionado a purificação da le-
csumário> da atividade de Jesus em Me 3,7-12, antes da escolha d.os pra (v. 42), a contam novamente como se fosse um exorcismo, pois o
seus disc!pulos Intimas, os apóstolos. Todos os :xemplos que Me cita v. 43 se traduz, literalmente: «E profundamente comovido contra ele,
na seção 1,40-3,6 são marcados por uma novi?ade J?rovocadora. O expuJsou-o imediatamente». É possível que Me, ao elaborar os dados
resultado não se faz esperar: as autoridades decidem livrar-se de Je- tradicionais da história, tenha interpretado esta frase como despedimento
sus (Me 3,6). Os títulos dos episódios mostram seu caráter provocador: do homem, conservando, por descuido, o termo «profundamente comovi-
Jesus cura um leproso, impuro por excelência (l,4o..4?); Jesus perdoa do contra ele», originariamente relacionado com o espírito imundo. Tam-
pecados (2,1-12); Jesus chama um pecador ao seguimento (2,13-14); bém nos vv. 44-45 aparece uma certa tensão entre tradição e redação.
Jesus tem comunhão de mesa com publicanos e pecadores (2,15-18).; O mostrar-se aos sacerdotes parece uma maneira tradicional para ter-
jesus critica o jejum em nome da realidade nova (2,18-22); J~sus. cn- minar semelhante história: confirmação da cura mediante a prática pres-
tica a mesquinhez com que é encarado o sábado (2~28);. i;na1s mnda, crita pela Lei. Porém, tal ordem não se combina facilmente <:om «Vê
ele opera uma cura no dia de sábado (3,1-6). Razoes su!1c1entes para que não digas nada a ninguém» (v. 44), expressão característica do
provocar o ódio das autoridades (3,6). Só duas considerações a r~s­ segredo de jesus, que Me gosta de salientar no seu evangelho. Pois
peito desta seqüência: 1) O evangelho de Me é, realmente, uma «His- jesus não é o Messias conforme os conceitos humanos, mas o Filho
tória da Paixão de jesuS» provida de uma longa introdução, como disse de Deus, cuja atuação fica um mistério para os homens (cf. 4° dom.
Kãbler· as ralzes de sua Paixão e Morte jã estão af. 2) A atuação comum). Também, é de se perguntar se Me entendeu as últimas pa-
salv!fi~a de Jesus não tem nada a ver com paternalismo bondoso ( dis- lavras do v. 44, «em testemunho para eles», no sentido óbvio, de que
tribuir milagres); os seus milagres, embora certamente sejam encar_na- o homem devia testemunhar sua cura; ou no sentido que condiz com
ções do amor humano de Deus. são, ao mesmo tempo, provocaçoes, a tendência teológica do contexto todo (cf. supra), de que este teste-
desinstalação dos conceitos estabelecidos, destruição de tabus (leprosos, munho seja contra eles e sua preocupação legalista; é neste último
publicanos ... ) . Jesus vence o e anátema> do AT, a exclusão de pessoas sentido que a mesma expressão é empregada nos outros textos de Me
e coisas por medo. Ele é a novidade que irrompe e vence. As antigas (6,11; 13,9-10). Neste caso, conforme o entendimento de Me, o homem
provisões tornam-se obsoletas. Não se coloca vinho novo em odres não deveria fazer publicidade a respeito de jesus como taumaturgo,
velhos (Me 2,22): esta é a idéia central, o que se pode constatar quan- pois isto só Jeva a ambigüidade e mal-entendido; mas seria testemu-
do se considera a estrutura literária, que concentra tudo em redor da nha do Evangelho, da boa-nova que se realizava na atuação de jesus,
comunhão de mesa com os pecadores, ocasião em que jesus proclama superação das antigas disposições legais, pusilânimes embora de origem
oficialmente a nova economia do Reino: mosaica. Seja como for, desde que o homem aparece entre os cidadãos,
a notícia corre cerno fogo na palha. . . jesus, evitando o tumulto da
1,39: sumário multidão - e, apesar de isto condizer também com a teologia de Me,
1,40..45: cura do leproso não devemos duvidar que corresponde à realidade histórica, em que a
2,1-12: perdão dos pecados
2,13-22: Jesus com os pecadores
2,23-28: questão do sábado
ir vocação
co!'vívio
<vmho novo•
teologia de Me está inspirada. . . - se retira nos lugares desertos, lu-
gares da nova salvação, superior à que começou no deserto do Sinai,
com Moisés; pois atinge também aqueles que a Lei de Moisés ex-
3,1-6: cura em dia de sábado cluia do povo ...
3,7-12: sumário
3. Lugar na liturgia
2. Explicação de Me 1,40-45
A ligação com a primeira leitura é evidente. A própria liturgia
A presente narração é fortemente marcada pela intenção teológica de sugere a dinâmica de ver a radical novidade que a presença e atua-
Me, ao ponto de provocar algumas dificuldades; o pregador tenha cons- ção de jesus significa. Para a homilia pode ser interessante explicar
ciência disto. O começo é normal, porém parece que o leproso tr""'!" que o AT não é apenas a situação que jesus encontrou ao assumir
gride a severa separação que a Lei mosaica impôs (Lv 13, e!. t• lei- sua missão, mas a situação de sempre, ao redor de nós e em nós
tura). A ra~ão desta transgressão está na conlianFa que. o hon;ie~ t~m mesmos: discriminação dos mais deserdados, marginàlização como se se
em Jesus (v. 40b). Jesus, por sua parte, transg!1de mmto m'!'s. o m- tratasse de lepra à antiga... Nesta situação deve ressoar a palavra
terdito: ff)CQ no leproso, tomando-o pela mão. O texto da mmorrn dos de fé: cSe queres, podes purificar-me>, prescindindo de todos os dis-

274 275
positivos legais; e a palavra da exousia, da autoridade misteriosa do sinistra da dor e da m1sena. Por isso cura, atende aos pobres,
Filho de Deus: e.Quero, sê purificadol>. põe de pé aleijados e ressuscita mortos. Estamos diante de si-
Bibliografia: OeraJ: Cf. 30 Domingo Comum. Especifica: M 1 n e t te d e T l 1- nais que apontam para o advento do Reino.
1 esse, O. Le secret messlanique dans l'évangile de .M.arc. Cerf, Paris 1968, p.
41-51, 54-69(!); T r 111 J n g, ,V. (N.T. - Comentãrlo e Mensagem, 2/1), p. 59-62; Entretanto o Reino de Deus não consiste só em curas. Mui-
Se h m 1 d, J. {Comentãrfo de Ratisbona, 2), ad 1,45 (lepra) e 8,3 (proibição de
falar). tos ontem e hoje alimentaram e continuam alimentando uma
Johan Konings compreensão milagrosa da nova ordem querida por Deus. Pre-
Porto Alegre, RS
gam um cristianismo reduzido às necessidades básicas do ho-
Tema Principal mem, da saúde, do amor, do dinheiro. Criam-se tendas dos
milagres, inventam-se orações fortes e organizam-se bênçãos mi-
COM JESUS JA SE INAUGUROU A NOVA SITUAÇÃO DO HOMEM lagrosas. Estas formas nascem da indigência humana, clamando
por salvação. Jesus com seu Reino quer atender também a isto.
Sugestões para a Homilia Mas não coloca em tais eventos o peso de sua pregação. Os
Introdução
milagres são sinais da presença do Reino, não são o Reino já
realizado; são antecipações que nos dão o gosto da verdadeira
O Reino de Deus se constrói contra o Reino deste mundo. realidade que ainda está para chegar. Mais importante do que
Assim como o mundo se encontra, não agrada a Deus. Ele é ver milagres é converter o coração, abri-lo para a justiça, sen-
decadente, pois é marcado pela miséria física, pela desintegra- sibilizá-lo para o serviço aos outros. Quem procura viver as
• ção da personalidade, pela marginalização de pessoas. Há in- bem-aventuranças - ser pobre, solidário com os que choram,
suficiências que pertencem ao processo do mundo dentro da manso, faminto e sedento de justiça, misericordioso, limpo de
evolução, distante ainda do seu estádio definitivo quando culmi- coração, pacífico, paciente na perseguição - este já começa a
nar em Deus. Estas insuficiências têm que ser assumidas como viver no Reino de Deus. Nele já está se realizando o novo céu
realidades inevitáveis a quem peregrina e ainda não habita a e a nova terra. Evidentemente nem tudo já foi inserido no
pátria da identidade e da perfeição. Mas há males que nascem Reino, porque a criação continua ainda a gemer, os homens
da maldade humana, da insensibilidade face à dor do próximo a sofrer e as estruturas sociais a marginalizar. Mas o princi-
e do egoísmo que discrimina pessoas e marginaliza situações. pal já ocorreu.
É -0 caso narrado no presente evangelho: o leproso é afastado Porque é assim entendemos que Jesus peça ao leproso
do convívio humano como se fosse habitado por um espírito curado que não diga nada a ninguém. Havia o risco real de
mau; não lhe bastava a solidão da lepra; sofre sob a solidão que os judeus entendessem o Reino apenas como a satisfação
do desprezo e da irrisão. Esta situação não agrada a Deus. das necessidades primordiais do corpo.
Reino de Deus, cerne da pregação de Jesus, implica numa
r<1dical sanação da condição presente do mundo. No Reino de 2. O Novo Testamenlo já foi inaugurado mas o Anligo ainda não aeabou
Deus não haverá mais choro nem lágrima, não vigorará mais
enfermidade nenhuma nem discriminação de qualquer sorte. En- Com Jesus, particularmente com sua ressurreição, o ·Reino
fim irromperá a plenitude da criação e a absoluta realização jâ se faz realidade dentro de nosso velho mundo. Por isso di-
do homem todo inteiro. zemos que vivemos sob o regime do Novo Testamento. Existe,
objetivamente, um fermento novo dentro da massa deteriorada
Corpo da criação com força de tudo transformar. Entretanto conti-
1. Com jesus o Reino já irrompeu porque leprosos são curados
nuamos a viver também dentro do Antigo Testamento. Este
não é um tempo passado e já superado. Ele constitui uma con-
Com Jesus jâ começou a se realizar de forma visível e dição humana ainda imperfeita, ainda pervadida de pecado,
consciente o Reino de Deus. Os milagres todos visam mostrar ainda necessitada de libertação. Neste sentido encontramo-nos
esta boa-nova. Eles não querem tanto evidenciar que Jesus é até o presente no advento. Os tempos são maus. Continuam
o Enviado do Pai quanto deixar claro que Ele é o mais forte os leprosos que para nós hoje seriam as classes empobrecidas
que vence o forte. Ele revela que tem poder sobre a dimensão e marginalizadas.
276 277
Face aos males que marcam a nossa condição de Antigo Sétimo Domingo do Tempo Comum
Testamento devemos, à imitação de Jesus e do evangelho des-
te domingo (Me 1,40-45), alimentar três atitudes. A primeira Pistas Exegéticas
é de compaixão e até de indignação. Jesus se comoveu diante '
do leproso. Não ficou insensível. Contra o que a lei prescrevia, .frlmelra Leitura: Is 43,18·19.,21·22.24b·25
obedeceu à lei do coração e do amor: estendeu a mão e tocou
<Sempre sou Eu quem devo não mais me lembrar de teus pocado11>
no enfermo (v. 41). Quem não é sensível às necessidades do
irmão, não poderá amá-lo. Devemos até alimentar uma indig- Os comentários consultados dividem Is 43 em vários oráculos iso-
nação ética face às misérias humanas, especialmente com res- lados, alegando' como critério a fórmula introdutória: cEis o que diz
peito àquelas provocadas pela injustiça como o empobrecimento o Senhor> (43,1.14.10),. Certos indicies literários e temáticos jusfüicam
e a violação dos direitos do pequeno; quem n~o se indigna, tratar estes oráculos junto com aqueles de Is 44,1-5 e 6-8 (c!. a mesma
fórmula em 44,2 e 6) como uma unidade em que cada oráculo desem-
possui um coração pequeno; e um coração pequeno é incapaz penha uma função. Estes indicies são, por exemplo, a repetição da in-
de comprometer-se com o oprimido e arriscar sua vida pela terpelação: «Vós sois minhas testemunhas» (43,10.12; 44,8); a mesma
libertação dos irmãos humilhados. Na raiz de toda vontade de maneira repetidà: com que Deus se apreseiit~ em 43,11 e 25: cSou Eu}
mudança e de toda lutá pela justiça se encontra a chama viva sou Eu . .. » Em uma repetição progressiva desenvolve-se o tema da
libertação da e8cravidão do Egito e aquela do cativeiro babilônico.
da indignação ética. Fala-se destas libertações em 43,2; 43,16-20 e 44,3-4. Em 43,2 em ter-
A segunda atitude é a súplica: «Senhor, se quiseres, tu po- mos muito gerais e metafóricos; em 43,16-20 em termos diretos, alu-
des limpar-me» (v. 40). É a situação de Antigo Testamento dindo-se claramente aos eventos históricos; em 44,3-4 em termos es-
que clama pela irrupção do Novo. Deus é senhor da vida e pirituais. Certamente nos oráculos de c. 43, mas possivelmente também
no oráculo de e. 44 encontra-se o contraste que deriva da diferente
da morte, da saúde e da enfermidade. Ele pode inaugurar a situação histórico-geográfico-climática. O profeta lembra o primeiro êxo-
ressurreição e antecipar·· a situação libertada do homem no Rei- do (43,16-17) e profetiza um novo êxodo (43,19b-20). Para possibilitar
no de Deus. «Se tu queres ... » Não podemos forçar. . . Pode- o primeiro êxodo, Deus abriu um caminho pelo mar parando as águas
mos suplicar. E Deus que escuta o gemido dos filhos queridos, (43,16); no novo êxodo Deus fará o contrário e abrirá um caminho
pelo deserto, fazendo nele jorrar água (43,19b-20), O deserto evoca a
muitas vezes, se compadece e nos poderá dizer: «Eu quero, sê associação de calor que queima tudo, isto é, de fogo. Por isso o con-
limpo» (v. 41). Talvez não seja uma intervenção miraculosa, traste em 43,2 assemelha-se ao contraste entre os dois êxodos: «Se
mas o médico adequado, o remédio exato, a reação excelente tiveres de -atravessar água, estarei contigo. . . Se caminhares pelo fogo,
do corpo, o tempo propício. Para alguém que tem fé, trata-se não te queimarás ... ~ No oráculo de 44,1-5, omite-se a alusão ao pri-
meiro êxodo e ,espiritualiza-se o novo êxodo: <derramarei água sobre
de um sinal que aponta para a realidade do Reino de Deus. o solo sequioso. . . derramarei meu espírito sobre tua posteridade . ..
A terceira atitude é a paciência histórica. Pode ocorrer que (43,3). Quase se diria: o novo êxodo é visto como um batismo em
a súplica não foi atendida na Iinlia de nosso desejo. Ao in- ãgua e espírito 1
vés de participarmos das sementes da ressurreição, somos con- Nestes orâcUlos não somente presta-se :atenção à parte que cabe
vidados a compartilhar da paixão do Senhor. Carregamos a a Deus, à diviria ação salvífica no passado' e no füturo, mas também
à parte que cabe ao povo. O seu desenvolvimento está ligado à inter-
dor, sofremos a doença e penamos na noite da tentação como pelação: cVós sois minhas testemunhas>. Ser testemunha encerra, neste
Jesus. Somos peregrinos e mergulhados nas promessas do An- contexto de Js 4344, não somente ter sido testemunha ocular e auricular
tigo Testamento. Ainda assim podemos viver da• esperança do de certos eventos, mas também de dar testemunho dos mesmos; Encerra,
Novo Testamento, pois é pela esperança que somos salvos (Rm pois, além do conhecimento, o reconhecimento ou a gratidão e a ex-
pressão pública deste conhecimento e reconhecimento para que também
8,24). Precisamos da paciência histórica e integrar em nossa
outros cheguem a este (re)conhecimento (cl: 43,10.21). Em outras pa-
vida as forças da morte, na certeza de que a morte já foi ven- lavras, o povo que se beneficiou dos eventos testemunhados é chamado
cida e certos das palavras do Senhor: «na vossa paciência pos- a expressar o conhecimento e reconhecimento em celebrações de ação
suireis as vossas vidas»- (Lc 21,19). de graça, em louvor do autor destes eventos. Deus esperava esta cele-
bração (43,21). ~Mas esta expectativa foi frustrada (43,8.22-24). O povo
Leonardo Boff, O.F.M. não somente não celebrou no seu culto a stia gratidão e o seu (re)c~
Petrópolis, RJ nhecimento, a sua grata lembrança (d. 43;18) dos eventos passados,
louvando e agradecendo a Deus que os realizou, mas fez até o con-
J trário, entristeceu a Deus e causou-lhe canSaço. ·

278 279
Em uma antitese Jiterariamente genial e teologicamente comovente o
autor contrasta a ·memória do povo com a memória de Deus. Porque por Cristo mais de 50 vezes na fórmula camém amém>, para introdu·
o povo falhou na memória dos eventos salvíficos do passado realiza- zir suas afirmações categóricas ao ensinar.
dos por Deus e cuja celebração traz no bojo a esperança de eventos A liturgia tornou-se deste modo uma . confissão de fé naquele que
salvilicos ainda maiores (ci. 43,18-19a), o povo perdeu a sua dignidade cumpriu sua palavra, e ao qual elevamos nossa oração de ação de gra-
e os tltulos de sua glória (cf. 43,L3.4.6b-7.14.15) e se perdeu em pe- ças e louvor. :e a resposta do homem fiel, à fidelidade de Deus em
cados e iniqüidades (43,24h). Para se recuperar e para se salvar da jesus Cristo. Dai conclui-se que daremos testemunho da glória de Deus,
situação ingrata do cativeiro, conseqüência da ingratidão e da não-lem- só assumindo na vida o engajamento de fidelidade expresso pelo «amém>
brança do bem que Deus lhe fez, Deus há de esquecér o mal que o da oração. '
povo fez, há de não-lembrá-lo, hã de perdoá-lo (43,25). E estes pe- O motivo, porém, por que nossa palavra e ação é certamente o «sim»,
cados não são de ontem nem de anteontem: «Jâ teu primeiro pai pe- a verdade, não •está em nós, mas no dom que recebemos de Deus, o
cou .. .> (43,7). Esplrito Santo. :e Ele que nos dá a certeza da verdade. Sua unção,
Mas Deus perdoa rneS.mo, resgata de novo e agOra, sim, depois seu selo, que em Joel 3,1·2 fora prometido a todos, tornou-se realidade
de ter «batizado» o povo .em água e espírito (cf. 44,31), a reação à no batismo, onde faz do homem filho de Deus e membro do povo
ação de Deus será melhor, será perfeita. Por um novo recurso lite- messiânico, e por seus dons leva o batizado, e de modo especial o
rário muito rico de forma e conteúdo o autor estabelece uma ecola1ia apóstolo, a ser ..1 um mensageiro fiel da merisagem de Deus em Cristo.
entre o primeiro e o penúltimo oráçulo desta unidade literária Em A formulação do texto paulino é claramente trinitária e reflete uma
43,l Deus afirma: «Eu te chamo pelo nome: tu és ··meub Em 44,5 convicção profunda, presente na Igreja nascente, embora não seja ainda
vem a resposta correspondente: •Eu sou do Senhor» (#,5). Esta eco- clara a per~oni!icação do Espírito.
lalia não suporta a interferência de vozes de outras ·divindades. Nem O Espírito em nós é então a garantia (5,5; E! 1,13-14) da verda-
da parte de Javé que é «O primeiro e o último> e fora de quem não de que nos foi ·dada por Deus e pregosto da alegria celeste prometida
há outro Deus (44,6), nem da parte do povo para quem não existe por Deus aos que são fiéis, aos que são «Sim, amém> (Ap 2,10).
«outro rochedo> de salvação, além de Javé (44,8). BJbJlograjia: C a n t 1 n a n t J., Les EQlttes de St. Paul explfqm!es, Paris ]970;
t H é r J n g j., La seconde épltre de Saint Paul aux Corlnthiens, N!uchate1 1958.
Bibliografia: Os comentários de Schoors, Penna e Fohrer. J. D. Smart,
Hlstory and Tbeo1ogy in Second Isalah, London 1967. 1'
Raul Ruljs, O.F.M. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
Petrópolis, RJ , Paulista, PE

Segunda Leitura: 2Cor 1,18-22 Terceira Leitura: Me 2,1·12


«0 Filho do Homem tem poder de perdoar pecados na terr11>
«Deus t! testemunha fiel•
A Critica ou História das Formos («Formgeschichte.) divide os
Paulo mais uma vez reafirma a fideJidade de Deus para com os Evangelhos Sinóticos em um grande número· de gêneros literários. Dis-
homens. Jesus Cristo por . sua vida levou a efeito tudo o que Deus tinguem-se, primeiro, a tradição doutrinal e a tradição narrativa. Na
prometera, e desse modo foi o «sim definitivo» de Déus aos homens, primeira conservam e transmitem-se palavras :de Jesus; na segunda, obras
nele exprimiu-se plenamente a fidelidade de Deus, nele·' não há mudan- de Jesus e eventos que Lhe dizem respeito.• As Narrações de Milagres
ça mas só verdade. jesus ignora a duplicidade, sua palavra é certa pertencem claramente à tradição narrativa. Mesmo assim a cura do pa-
e definitiva. O que se exige do homem, isjo é, que seu sim seja sim, rall!lco de Me 2,1-12 e textos paralelos (Mt 9,1-8; Lc 5,17-26) faz parte,
e seu não, não (Mt 5,37; Tg 5,12), é o que Paulo afirma de Deus. conforme alguns exegetas, da tradição doutrinal; conforme outros da
Em Cristo realizaram-se todas as profecias, nele Deus deu a sua tradição narrativa. Esta divergência remonta aos grandes pioneiros da
resposta aos homens, cumpriu e confirmou o que prometera. jesus Cris- História das Formas, Dibelius e Bultmann. .Ambos separam como forma
to é o «amém de Deus. (cf. Ap 3,14) a seu plano salvlfico. Ele é a literária própria· aquelas narrações muito brews, cujo enredo serve para
realização, concretização, visualização e reveJação do mistério escondido pôr em realce itma sentença lapidar de jesus. Dibelius as chama de
desde os séculos em Deus (Rm 16,25). Desse modo :a fidelidade de paríliligma e as· classifica na tradição narrativa. Bultmann as chama de
DeuS' garante a de Paulo, pois seria contraditório se ele desmentisse apoftegma e as coloca na tradi1ão doutrina/; O que deve prevalecer na
sua mensagem com uma atitude de duplicidade. Deus é exemplo para a classificação, a ·forma Jiterária ou o conteúdo doutrinal? E claro que,
vida do homem, e como ele foi fiel a sua palavra, também o homem em urna classificação literária, devia prevalecer o critério literário. Deste
novo deve sê-lo, dizendo seu sim pela fé. Esta mesma fé, por outro ponto de vista, Dibelius está mrus certo. Mas o que interessa a nós
lado, é que leva a comunidade a concluir suas oraçõeS:, com o «aména é, sem dúvida, o conteúdo doutrinal. Ora, Ô' que a Critica das Formas
(cf. Rm 16,27; !Cor 14,16; Ap 5,14; 22,20). Em ou:tras palavras, o e a critica literária em geral nos ensinam é que não há conteúdo sem
sim da vida, que é a fé, ~coa no amém da oração. c- forma, nem forína sem conteúdo. Uma anãl_ise mais aperfeiçoada ensi..
AMÉM, uma das quatro palavras aramaicas conservadas na litur- nou que em Me 211-12 (par.) está-se diante de uma fusão de duas for·
gia do Novo Testamento : significa «sim, realmente é assim,_ isto é mas literárias, a saber, uma narração de milagre, que narra a cura
verdade>; afirma a fidelidade do Senhor e a fé do bom.em, e foi usada do paralítico (2,l-5a.11-12) e uma contruvérsia de jesus com os escri·
bas sobre o poder de perdoar pecados (2,5b-IO). Duas vezes repete-se
280
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a locução c(Jesus) disse ao paralltico .•. ~, a saber, em vv. 5a e lOb. Este triplice paralelismo literário acentua como a Palavra de Je-
Se a gente, na leitura, pula diretamente de v. 5a para v. 11 tem-se sus está carregada de poder. A triplice reação das multidões, por sua
mna perfeita narração de milagre com todos os seus traços caracterís- vez, corresponde aos fenômenos constatados:
ticos. Pela inserção da controvérsia dentro da narração do milagre re- As multidões: cTodos ficaram admirados / e glorificaram a Deus, /
sultou uma fusão de duas formas literárias, uma narrativa e outra . dizendo: cNunca vimos coisa iguall~
doutrinal. Nesta fusão predomina de tal maneira a sentença cO Fi- - Na segunda forma literária atribui-se a jesus o titulo Filho do
lho do Homem tem poder de perdoar pecados na terra>, que a cura Homem. Este titulo tem muitos sentidos, conforme os contextos literá-
do paralítico passa · ao segundo plano e somente serve de pano de 1. rios e teológicos em que se encontra, seja no Antigo Testamento, seja
fundo ou de enredo para ressaltar o poder de perdoar. Em outras pa- nos escritos judaicos não-biblicos, seja no Novo Testamento. Para es-
lavras, o conjtlnto literário novo afigura-se como mn paradigma ou pecificar o sentido do termo em Me 2,10 destaca-se a aposição ena
apoftegma. terra». Conforme o Livro de Daniel e os livros apocalfpticos não-b!bli-
A esta altura já se pode perguntar: Por que arrumar tanta con- cos o Filho do Homem é mn ser celeste, cuja revelação na terra está
fusão em cima de uma narração à primeira vista tão . simples, singela reservada ao fim do mundo. Em Dn 7,13-14 insiste-se muito no poder
e transparente? A gente faz isso em virtude do adágio aeima citado: com que este Filho do Homem é revestido~ O poder que ele recebe
não há forma sem conteúdo, nem conteúdo sem forma. Destacaram.se é conforme o contexto Dn 7,10, o poder do juiz escatológico. Afirmar,
em Me 2,1-12 três formas, a narração da cura do paralltico, a con- c~mo faz Me 2101 que o cFilho do Homem tem poder na terra» en-
trovérsia sobre o poder de perdoar e a fusão das duas. Qual é o cerra .ensinar q~e para o m1mdo e a humanidade, já começaram os
conteúdo delas? últimos tempos e 'que os poderes do mundo novo jâ invadiram o velho
- A primeira forma, : a narração da cura do paralítico, mostra mundo e que este já está caducando. Ora, o que surpreende é que Jesus
jesus como messias, que inaugura os tempos messiânicos, preditos pelos exercita este poder não para julgar e condenar, mas pa_ra perdoar.
profetas, em que os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres · Isto significa que a hora da prestação de contas é precedida por um
é anunciado o Evangelho• (Mt 11,3-5; Lc 7,22; cf. Is 35,5-6; 42,7; 26,19; per!odo de graça e de misericórdia. Esta doutrina sempre desagrada e .
29,lSs; 61,1). A norração do milagre (Me 2,l-5a.11-12) transmite esta escandaliza aos . escribas e fariseus cujas concepções de Deus e da jus-
mensagem com muito vigor. jesus é procurado pelas multidões (v. 2). tiça divina estão enquadradas nos parâmetros da rlgida e inflexível re-
Ele lhes •anuncia a Palavra>, isto é, a Boa-Nova. O evangelista Mar- tribuiçãu do bom ou do mau comportamento humano. A doutrina da
cos repetidamente declara que jesus pregava e ensinava (d. Me 1,39; controvérsia entre jesus e os escribas contida em Me 2,5b-10, em última
2,2.13; 6,2.6b; 6,34; 10,1; 11,17; 12,35). Ora, em todos estes casos a análise é aquela de At 1042-43: cEÍe (jesus ressuscitado) ordenou-nos
gente não fica sabendo o Que jesus ensinava, qual era o conteúdo des- que anunciássemos ao Pov'o e atestâssemos ser ele o juiz dos vivos e
1e ensinamento. Em vez de interessar-se pelo conteúdo do ensinamento dos mortos estabelecido por Deus. A ele todos os profetas dão o tes-
de jesus, o evangelista Marcos dá muito valor ao fato de que jesus temunho de que todo aquele que nele crer receberá, por seu nome, a
«ensinava uma nova doutrina com pudeT» (1,22.27). Parece que pará remissão dos pecados». De fato, aplica-se a_gora, no tempo da lgreja,
este evangelista a novidade se encontrava neste poder. Ele queria d.e- a Jesus, Filho do Homem celeste em virtude de sua ressurreição, a
monstrar que a palavra e . o ensinamento de jesus não eram falação, afirmação de Me 2,10 de que «O Filho do Homem tem poder de perdoar
palavra vazia, frase de efei~o, tapeação do povo simples ou propaganda pecados na terrfl> e que perdoa a todos que nele crêem como perdoou
polltica. Narrando a purificação de um leproso (1,40-45), a cura de mn ao paralitico de. Me 2,5. Alguns exegetas estão co1;1vencidos de que ~c
paralítico (2,3-5a.11-12), a .vocação de um publicano (2,14) e dos doze 2 10: cpara que saibais», não se dirige aos escnbas da controvérsia,
(6,7-13), a multiplicação dos pães (6,35-44~, etc., depois de ter alir~ Dias aos leitoreS' do Evangelho, isto é, a nós'. Argumentam que é muito
mado que «Jesus ensinava», torna-se evidente que o evangelista Marcos improvável que Jesus tenha apresentado aos escribas uma prova de
mostra muito mais interesse pela força da Palavra de Jesus e pela re- que Ele tem o poder de perdoar pecados•. Toda a tradição neotesta-
perc.ussão que tinha sobre os ouvintes da Palavra dr;> que pelo seu mentária desmente esta suposição e converge na certeza de que Jesus
conteúdo. Ao evangeJista Marcos interessava o fato de que em jesus sistematicamente recusou tais provas aos escribas. A versão de Mateus
de Nazaré, no Seu ensinamento, na Sua pessoa e no Seu poder, Deus confirma esta hÍpótese, uma vez que, no fim do paradigma, escreve que
mesmo tem irrompido no mundo; isto é, que n'Ele Deus agiu para salvar. ca multidão ... ·'glorificou a Deus, que deu tal poder aos hOm•TIS>. A
A narração da cura do paralítico realça de uma maneira eloqüente Biblia de jerusalém anota neste lugar: cNotar o plural:. certamente Mt
a fé dos que trouxeram o paralltico até perto de jesus. Não se desa- pensa nos ministros da Igreja, que receberam de Cnsto este poder
nimaram ao verem o acesso a jesus dificultado pelas multidões. Impedi- (18,18)>.
dos de se aproximarem de -jesus pelo caminho de fora da casa, fizeram - No atual texto de Me, Mt e Lc as duas formas literárias da
volta, subiram o telhado,_ abriram um buraco no telhado, desceram o narração de um milagre (2,l-5a.11-12) e da controvérsia de jesus com
paral!tico e o levaram a jesus pelo interior da casa. jesus não resistiu os escribas (2 5b-IO), confundiram-se na forma literária do paradigma
a tanta fé n'Ele. E deu-se o estalo da cura. Existe correspondência li- ou apoftegma. ' Esta nova forma tem o seu próprio conteúdo. A cura
terária perfeita entre as palavras de jesus e os efeitos que evocam: do paralitico vai a~ompan~ada do perdão do pecado~ ma.is do que pro-
jesus: clevanta / pega a tua padiola / e vai para casa>. va · e'Sta cura exterior é sinal e sacramento da cura interior. Devolvendo
O paralítico: cse levantou / pegou a padiola / e foi-se à frente de a 'vista aos cegós, ·a pureza aos leprosos, a força aos paralíticos, a au-
todo mundo>. dição aos surdos, a fa1a aos mudos e a vida aos mortos, jesus salva

282 283
da desgraça da marginalização e devolve o pleno gozo da comunhão tuas faltas e não mais me lembrar de teus pecados,. (Is 43,
e. com~icaç~o n.a _convivência humana. Ora, todas estas salvações e 25). Deus, naturalmente, não se cansa com as nossas iniqüida-
libertaçoes sao sinais de uma salvação muito mais profunda e abran-
1 gente, porque - pelo perdão dos pecados - devolve ao homem a co- des e nem vive atormentado por causa de nossos pecados, mas
munhão eom Deus. Jesus celebra esta salvação repetidamente durante o profeta usa desta linguagem para dar corpo e ecoar um mal-
a sua !"ida terre~tre _nas refeições com os pecadores e publicanos. São estar que a consciência do fiel deveria estar sentindo diante de
verdadeiras antec1paçoes do banquete celeste, como o exercício do po- suas infidelidades ao amor que experimentava da parte de Deus.
1 de~ de perdoar antecipa o juízo final. Marcos mencionará logo de-
pois de Me 2,1-12 uma tal refeição na casa do publicano Levi, cha-
Deus, para o povo, era uma promessa de vida segura e salva-
mado para ser apóstolo (Me 2,13-17). A reação dos escribas e fariseus ção messiânica. Não coloca o profeta, na boca de Deus, os
é a mesma. Nã? admitem esta revelação de Deus, deste Deus que es- anseios de felicidade e abundância com as quais o povo so-
colhe os parallticos e pecadores e que perdoa, liberta e salva de ver- nhava? Segundo Ele, o deserto vai florir e a estepe serã habi-
dade e ataca o mal não somente nas suas conseqüências, mas o atinge tável; o povo será alimentado e cantará Seus feitos.
nas suas causas. Esta teologia não encara jesus somente como tau-
m~turgo, nem as curas como milagres; para ela os milagres são si- A queixa de Deus, no entanto, é concretizada pelo pro-
nais de que o novo mundo não surge pela condenação e destruição feta porque o povo O esqueceu. Esqueceu-se dos grandes feitos
do velho mund_?, mas atra!és de sua recuperação e salvação, que passa ocorridos em sua história, já não O honrava com holocaustos e
pela recuperaçao e salvaçao do homem e do coração humano. nem Lhe oferecia sacrifícios. O povo, que com Ele fizera uma
B/bllograjla:,, Os comentários de S eh m l d, T a y J o r, S e b w e i z e r; B. van aliança de fidelidade, agora se ajoelhava diante de falsos ído-
I e r se 1, em: Een begln", Btltboven 1973, p. 40-46; O. O ai d e Le para}ytlque
pardonné et guérJ {Me 2,1-12), em: A't!S II/38 (1970) 79-BS· H. S ç h 11 e r-H. los, nep;ando-Lhe amor, esquecido de seu juramento. Diante dis-
K ah 1efe1 d, Mk 2,1-12, em: EuE 3 (1970) 339-347. '
to, a queixa e a pergunta de Deus: Por que, Israel?
Raul Ruijs, 0.F.M. Se voltarmos os olhares sobre nós mesmos e nos colocar-
Petrópolis, RJ mos no lugar do Povo Eleito, talvez escutássemos a voz de
Deus ecoando em nossa consciência as mesmas promessas e
Tema Principal nos acusando com as mesmas queixas. Quantas vezes nos dei-
xamos seduzir por falsos deuses e colocamos nossa confiança
JESUS FOI «SIM> E e O «SIM> DE DEUS em enganosas e fugazes esperanças! Quantas vezes esquecemos
Sua presença e quantas vezes abjuramos o caminho de Seu
Sugestões para a Homilia amor, tornando-nos infiéis à nossa consagração batismal! Quan-
tas vezes O negamos, para seguir e acalentar a obra de nossas
Introdução mãos! Vivemos como se não tivéssemos sido marcados com o
Não é fãcil dizer sim, principalmente quando este sim en- sinal da cruz e como se não fôssemos o templo vivo da San-
cerra um ato de fé e nos leva para a morte de nossos sonhos. tíssima Trindade! Que espécie de sim dizemos nós? O «não»
Mas é momentoso dizê-lo quando ele representa a nossa sal- que somos e que entristece nosso espírito desqualifica nossa
vação. Deus espera e pede que o digamos. Para facilitá-lo, Deus identidade de cristãos e filhos de Deus e torna justificáveis as
vem ao nosso encontro com seu amor e faz-nos Seu sim per- queixas do nosso Deus.
manente e cheio de graça. Em Cristo, o sim de Deus coincidiu
totalmente com o sim do homem. É por isso que nós, tendo 2. O sim do homem jesus
uma vez, por Adão, dito não a Deus, dizemos agora, por Cris- São Paulo definiu jesus de forma simples e definitiva: Ele
to, como afirma São Paulo, sim à glória de Deus (2Cor 1,20). foi «Sim» e «amém» para Deus. Ele foi só e sempre sim. Os
apóstolos, na convivência com o mistério de Jesus, chegaram a
Corpo admirá-lo pela fidelidade a seu caminho e intransigência aos
caminhos de Deus, cuja vontade, que Ele só e sempre queria
1. A promessa e a queixa de Deus fazer, Lhe norteou a pregação do Reino dos Céus. Mas não só
Comecemos por escutar a queixa de Deus que se confessa os apóstolos; o povo também experimentou a força da fideli-
atormentado pelos pecados do povo e cansado com suas ini- dade de Jesus e creu em seu poder. Quando o acesso normal
qüidades: «Sou sempre eu - Cliz Deus quem deve apagar a Cristo se encontrava bloqueado, as pessoas não hesitavam em
284 285
' :i

buscar meios extraordinários para d'Ele se aproximar. E fize- Oitavo Domingo do Tempo Comum
ram, como diz o evangelho de hoje, baixar, pelo teto da casa,
um paralítico para que Cristo o curasse no corpo e no espí- Pistas Exegéticas
rito. O resultado foi que a multidão se encheu de profunda ad-
miração e se pôs a louvar a Deus, dizendo: «Nunca vimos Primeira Leitura: Os 2,16b·17b.21·22 (Vulgata: 2,14b.15b.19-20)
coisa semelhante» (Me 2,12) !
cConduz/./a-ei ao deserto para falar-lhe ao coração>
O sim de Jesus fez-se no dia-a-dia, na dificuldade da fé,
no suor de sangue, na obediência da cruz. Não devemos pen- i;ste texto de Oséias inaugura um novo modo de falar do relacio-
sar que para Jesus tenha sido fácil ou facilitado o caminho de nam~µto Deus-HomemJ que se tornou corrente na tradição profética
Deus. O contrário é a verdade. Quanto mais· próximo de ;Deus posterior (cf. Jr 2,1-3; 2,32; 3,1-20; Ez 16; 23), foi adotado no Novo
Testamento pelo próprio Cristo (cf, Me 2,19-20) e mais tarde pela mís-
Ele vivia, tanto mais sensível se fazia às exigências incontor- tica cristã.
.
·' náveis de Seu amor. Mas Cristo não fugiu ao confronto com os Trata-se da imagem tão expressiva do amor matrimonial. Nesta ima..
planos do Pai e, como diz o· evangelista, pôs-se a rezar inten- gem Deus é sempre apresentado como o esposo e o povo de Israel
samente quando o cálice amargo de Sua vontade não podia como a esposa. Deus é quem toma a;; iniciativas, escolhendo Israel sem
méritçi nenhum e estabelecendo com e.la uma aliança de amor. Cumu1a-a
passar sem que Ele o bebesse. E o resultado foi que, quando de bens, dando-lhe beleza, riquezas e sustento, além dos filhos. Ela,
se encontrava na cruz, aparentemente abandonado por Seu poréni, respondeu-lhe com a infidelidade. Deus, sempre fiel, tentou de
Deus, sozinho diante de Sua mãe impotente para o ajudar, com rnuitâs ·naneiras reconduzi-la à fidelidade, tentativas em geral frustradas
os discípulos em fuga e imobilizado por três cravo' , venceu pela ·perversidade do povo. Finalmente, decidiu punir Israel de uma ma-
neira exemplar com o exílio, na esperança de uma renovação mais
mais uma vez Sua obediência, Ele renovou Seu «Sim . e con- profunda.
fessou que tudo estava bem e consumado. É comumente aceito que Os 1-3 não seria uma pura e simples
Na extrema experiência da dor e da morte, quando nada imagem Jiterãria, mas que corresponde a fatos concretos vividos pe1o
mais conta senão a força da fé, o homem conhece a verdadeira Profeta. Segundo informações de um biógrafo, Oséias deve ter-se casado
realmente com Gomer, uma prostituta a serviço de um santuário cana-
razão pela qual viveu e colhe o fruto do caminho por ele per- neu (1,2s). Gomer, depois de ter dado três filhos ao Profeta (1,4-8),
corrido. Jesus, que só e sempre fora sim a Deus, encerrou sna tornou-se-lhe infiel, como no-lo informa o próprio profeta (3,1-3). Mas
vida com um sim, entregando a Deus o Seu esp!rito. E nós? Oséias continuou assim mesmo a procurá-la, na esperança de trazê-la
Para que sim derradeiro estamos marchando? Que sim esta- de volta ao lar. Deus serviu-se desta triste experiência matrimonial de
Oséias para fazer-lhe compreender o1 doloroso drama da crônica infi-
mos dizendo? Que sim esperlfllJ.OS dizer quando estivermos em delidade de Israel ao seu esposo Javé. Desta infidelidade do povo eleito
nossa cruz? · e das providências punitivas e salvíficas tomadas por Deus, fa1a-nos
o Profeta (2,4-17). Suas palavras foram depois (2,18-25) reinterpreta-
Conclusão das talvez pelo mesmo biógrafo, ou redator, que escreveu Os 1,1-6. O
As promessas de Deus são de vida e Seus feitos são de nosso texto, portanto, compreende palavras autênticas de Oséias (2,16b.
17b) '·ao lado de acréscimos de um redator (2,21-22).
salvação. Não de vida e salvação apenas eternas. Os milagres As palavras autênticas de Oséias (vv. 16b.17b) concluem um lon-
de Deus já começam no tempo e Cristo os realizou a bem de go processo de Javé contra seu poVo. Após convocar os filhos para
Seus irmãos. Também nós somos chamados a operar o bem denunciar o adultério da mãe (v. 4), o próprio Javé inicia um processo
e a sermos instrumentos do milagre do amor. Talvez não con- em que denuncia a infidelidade de Israel (v. 7). Depois anuncia as me-
sigamos restabelecer a saúde f!sica de um paralítico e nem, abrir didas punitivas que tomará a fim de •fazê-la retornar a si: tornar-lhe-à
inacessíveis os ídolos, seus amantes (v. 8), destruirá seus lugares de
os olhos de um cego. Mas podemos encher de luz um coração culto, acabará com suas festas e devastará a terra (vv. 8-9.11-15) para
abatido e reerguer o ânimo de quem se encontra desesperan- mostrar-lhe como é desprotegida e fraca (v. 12). Feito este trabalho
~ado. Se não podemos ser a força, podemos, ao menos, ser o preparatório de caráter destrutivo, Deus empreenderá uma tarefa posi-
mstrumento do milagre. Ou, como diz Isaías: Por nossa 'ação, tiva, a de reconquistar o coração de sua esposa. Para que isso seja
possível, deverá afastá-la dos atrativos do culto cananeu, conduzindo-a
do deserto brotará uma fonte e a estepe se encherá de vida ao deserto (v. 16b). Foi ali que deu-se, segundo Oséias, o primeiro
e alegria. encontro de amor entre Deus e Israel (9,10; 11,1-4; 13,4-6). Foi o pe-
Frei Neylor J. Tonin, O.F.M. riodo ideal em que se estabeleceu a aliança. Tempo em que Israel con-
Petrópolis, RJ fiava em Javé e o seguia docilmente. •A decadência iniciou-se depois da
286 287
conquista, quando Israel deixou-se contaminar pelo culto idolátrico. Por si mesma, pois foi ditada por Cristo e escrita por Paulo, não com
. isso Oséias considera o deserto rião tanto como um lugar de provação tinta mas com o Espírito, e não sobre pedra mas n,o coração dos
(cf. Ez 20,33-34), mas como o lugar propício para Israel voltar ao fiéis (e!, Ez 11,19; 36,26).
amor de sua juventude (Os 2,17b), que marcou o início da vida de As comunidades fundadas por Paulo, obras do Espírito por meio
,: dele, são apresentações e recomendações vivas que tornam inúteis as
Israel (11,1). Ali no deserto Deus <lhe falará ao coração> (e!. Gn cartas humanas, como a Aliança no Espírito tornou inútil: a Aliança An·
34,3; Rt 2,13) para recuperar-lhe a confiança e o amor.
liga escrita sobre pedra (cf, Ex 24,12; 31,18; 38,28s). A comunidade de
1 1
Percebe-se assim que a finaiidade última do juízo punitivo de Deus Corinto será então, por sua operosidade, uma apologia viva de Paulo, e
é o ret-0rno ao «primeiro amor», a restauração da comunhão de amor
e
essa argumentação será t~to mais válida se os opositores forem os
com Deus. É nesta linha que se movimentam os vv. 21-22. Eles . anun- judaizantes, que tão bem conheciam a Antiga Aliança.
ciam para os tempos escatológicos (cf. «naquele dia>, v. 18) uma nova Conclui-se então, que a confiança de Paulo vem da graça de Deus
aliança que abrangerá tanto homens como animais. Será uma aliança presente nele. Sem a graça não se pode fazer, nem pensar coisa al-
matrimonial inteiramente nova e definitiva. Javé já não tratará 1 Jsrael guma para a vida eterna. :com a graça, Paulo tem coragem de ir até
como a esposa adúltera (2,4-15), mas estabelecerá com ela um· novo Deus e se apresentar diante dele, tendo a consciência , de estar apto,
;• noivado, como se fazia então eom urna moça virgem, pagando ao pai porque Deus o habilitou para ministro do Espírito que dã a vida. Paulo
" o preço correspondente. Deus promete a <fidelidade> e Israel «conh&-
cerá» o Senhor (v. 22), iniciando, ambos urna nova vida.
põe-se assim na linha ministerial de Cristo e dos apóstolos, em oposição
aos ministros da lei mosaica e de qualquer outra lei, que ,exige mas não
Nestes poucos versículos estão traçadas as duas linhas mestras de dâ condições de ser observada (Rm 7,5). Pela morte de Cristo foi se-
qualquer renovação espiritual: o ~retorno, no silêncio e na austeiidade, lada uma nova Aliança, fundamentada no Espírito, e dela Paulo é mi-
às origens inspiracionais e a necessidade de wna constante atualização. . nistro (e!. Lc 22,20; !Cor 11,25). Nessa Aliança realiza-se a passagem
Os fariseus apegaram-se unilateralmente à tradição. jesus, o espoSo da do que era escrito, para o que deve ser vivido no coração do homem
nova aliança (cf. Me 2,18-22), soube valorizar o que de autêntica· tinha (Jr 31,31). ,
o judaísmo, permanecendo sempre aberto para o «Espírito qu ~ vivifica>, Blbllografla: C a n t J n a n t! J., Le.s Epltres de St. Paul expllqu!es, Parl5 1970;
·e atualizando <a letra morta> da 'Lei (cf. 2Cor 3,6). Por isso, em Cris- H é r t n g, j., La seconde ép tre de Saint Paul aux Corlnthlens, NeuchãteJ 1958i
to «tudo se fez novo> (cf. 2Cor 5,17). De la Potterte-S. Lyonnet, La vida según el Esplrltu, S~Iamanca 1967.

Bibliografia: Comentário de N. W .. W o 1 f f, Dodekapropheton li Hosea (BK, Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
XJV/1) 3o ed. Neuklrchen-Vluyn 1976; S. V J r g u li n-0. D a Spin e to i i, Os , Paulista, PE
Doze Pr.ofetas~DanleJ, Jntrod. à BJblla, vol. 11/4, Petrópolis 1978, 46--72.

L. Garmus, O.F.M. Terceira Leitura: Me 2,18-22


Petrópolis, RJ «Enquanto o esposo estiver com eles não pudl!ni, jejuar>
f 1. A passagem divíd&-se em duas parles: a explicação de uma ati-
Segunda Leitura: 2Cor 3,1b·6 tude dissidente (2,18-20) e duas pequenas parábolas (2,21' e 22).
Na primeira parte mencionam-se três grupos de «crentes> que exis-
«Sois uma carta de Cristo> tiam no judafsmo da Palestina do primeiro século: os discípulos de
joão Batista, os (discípulos dos) fariseus e os discípulos' de Jesus. Des-
Paulo fala do seu ministério apostólico, mostrando que não tem venda-se o sentido desta primeira parte seja a partir da reconstrução
nenhuma pretensão, a não ser servir à palavra. Acusado de ser vai- da situação histórica concreta que levou à pergunta e à resposta sobre
doso, ele mostra que não se orgtJlha de nada, pois sua segurança pro- o jejum, seja a partir do 'contexto literârio em que se encontra atual-
, vém apenas do fato de saber-se ministro de uma aliança superior. Sua mente nos evangelhos sinóticos.
capacidade, que o leva a ter certeza de agir corretamente, vem de: DeusJ 2. A tentativa de reconstruir a situação histórica concreta da vida
de quem ele recebeu este dom. terrestre de jesus sublinha' que o tempo do verbo de Me 2,18 cestavam
Na época, havia muitos falsos profetas, dai a necessidade de cartas jejuando> indica um determinado jejum e _não um costume. Ela encara
de apresentação (e!. At 18,27; Rm 16,1; CI 4,10; 3Jo !l-12) exigidas a menção dos (discípulos dos) fariseus como um acréscimo posterior.
dos pregadores pelas comunidades cristãs. Paulo não admite tal exi- Esta hipótese tem certos apoios na comparação dos textos de MI, Me e
gência, pois sendo suficientemente: conhecido dos coríntios, acha que jâ Lc. E também alega que · um autor que conhecesse bem o ambiente
deu provas suficientes de que era um verdadeiro profeta, anunciador palestinense do tempo de Jesus não usaria a expressão cdiscipulos dos
da palavra de Cristo e não um embusteirq. Para ele o que importa fariseus», porque os fariseits não eram «mestres> ou «rabis> e não ti·
é já ter demonstrado que Deus l}Je confiou uma missão, dai não serem nham «discípulos» como João Batista e Jesus, a não ser que fossem
justas as exigências de cartas e 'lS acusações de falso elogio (e!.- 5,12). também escribas. Nesta teoria, a maneira de mencionar- «os discípulos
Paulo desenvolve, então, uma idéia já presente em lCor 9,2: «o de joão> encerraria que o fundador, João Batista, jâ estáva morto.
selo do meu apostolado sois vós~. Sua carta de recomendação é a O conjunto destes dados - tratar-s&-ía de um determinado jejum
própria comunidade. Carta esta inscrita nos corações e lida por todos dos discípulos de João Batista - levou à hipótese de que a própria
que têm oportunidade, e que contém a prova de sua autenticidade em morte de João Batista teria sido o motivo do jejum de seus discípulos.

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conquista, quando Israel deixou-se contaminar pelo culto idolátrico. Por si mesma, pois foi ditada por Cristo e escrita por Paulo, não com
. isso Oséias considera o deserto rião tanto como um lugar de provação tinta mas com o Espírito, e não sobre pedra mas rip coração dos
(cf. Ez 20,33-34), mas como o lugar pr-0pício para Israel voltar ao fiéis (cf. Ez 11,19; 36,26).
amor de sua juventude (Os 2,17b), que marcou o inicio da vida de As comunidades fundadas por Paulo, obras do Espírito por meio
" Israel (11,1). Ali no deserto Deus <lhe falará ao coração> (cf. On dele, são apresentações e recomendações vivas que tornam inúteis as
cartas humanas, como a Aliança no Esplrito tornou inútil, a Aliança An-
34,3; Rt 2,13) para recuperar-lhe a confiança e o amor.
tiga escrita sobre pedra (cf, Ex 24,12; 31,18; 38,28s). A .comunidade de
Percebe-se assim que a finalidade última do juizo punitivo de Deus Corinto será então, por sua operosidade, uma apologia viVa de Paulo, e
' 1
é o ret-0rno ao «primeiro amor», - a restauração da comunhão de amor essa argumentação será t~to mais válida se os opositores forem os
com Deus. É nesta linha que se movimentam os vv. 21-22. Eles . anun- judaizantes, que tão bem conheciam a Antiga Aliança.
ciam para os tempos escatológicos (cf. «naquele dia», v. 18) uma· nova Conclui-se então, que a confiança de Paulo vem da graça de Deus
aliança que abrangerá tanto homens como animais. Serã uma aliança presente nele. Sem a graça não se pode fazer, nem pensar coisa al-
matrimonial inteiramente nova e definitiva. Javé já não tratará 1 Israel guma para a vida eterna. :com a graça, Paulo tem coragem de ir até
como a esposa adúltera (2,4-15), mas estabelecerá com ela um· novo Deus e se apresentar diante dele, tendo a consciência de estar apto,
noivado, como se fazia então eom uma moça virgem, pagando ao pai porque Deus o habilitou para ministro do Esplrito que dã a vida. Paulo
o preço correspondente. Deus promete a <fidelidade> e Israel <conh&- põe-se assim na linha ministerial de Cristo e dos apóstolos, em oposição
cerá» o Senhor (v. 22), iniciando, ambos uma nova vida. aos ministros da lei mosaica e de qualquer outra lei, que .e:dge mas não
Nestes poucos versículos estão traçadas as duas linhas mestras de dâ condições de ser observada (Rm 7,5). Pela morte de Cristo foi se-
qualquer renovação espiritual: o 'retorno, no silêncio e na austeiidade, lada uma nova Aliança, fundamentada no Espírito, e dela Paulo é mi-
às origens inspiracionais e a necessidade de wna constante atualização. . nistro (cf. Lc 22,20; !Cor 11,25). Nessa Aliança realiza-se a passagem
Os fariseus apegaram-se unilateralmente à tradição. Jesus, o espoSo da do que era escrito, para o que deve ser vivido no cor~ção do homem
nova aliança (cf. Me 2,18-22), soube valorizar o que de autêntico· tinha (Jr 31,31). ·
o judaísmo, permanecendo sempre aberto para o «Espírito qu ~ vivifica>, Blbllogra/la: C a n t J n a n t! J., Le.s Epltres de St. Paul expllqu!es, Pari! 1970;
e atualizando ca letra morta> da Lei (cf. 2Cor 3,6). Por isso, em Cris- H é r t n g, J., La seconde ép tre de Saint Paul aux Corinthtens, Neuchãtel 1958;
to «ludo se fez novo> (cf. 2Cor 5,17). D e 1 a P o t t e r 1 e-S. L y o n n e t, La vida según el Esptrltu, S~lamanca 1967.

Bibliografia: Comentário de N. W,, W o 1 f f, Dodekapropheton 1; Hosea (BK, Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
XJV/l) 3o ed. Neuklrchen-Vluyn 1976; S. V J r g u l J n-0. D a S p ln e to i i, Os · Paulista, PE
Doze Profetas~DanieJ, JntJod. à Blblla, vol. Jl/4, Petrópolls 1978, 41).72.

L. Oarmus, O.F.M. Terceira Leitura: Me 2,18-22


Petrópolis, RJ «Enquanto o esposo estiver com eles niíJJ put/J!ni, jejuar>
1. A passagem divide-se em duas partes: a explicação de uma ati-
'
Segunda Leitura: 2Cor 3,lb·6 tude dissidente (2,18-20) e duas pequenas parábolas (2,2F e 22).
Na pdmeira parte mencionam-se três grupos de «crentes:. que exis-
«Sois uma carta de Crisio> tiam no judaismo da Palestina do primeiro século: os discípulos de
João Batista, os (discípulos dos) fariseus e os discípulos· de jesus. Des-
Paulo fala do seu ministério apostólico, mostrando que não tem venda-se o sentido desta primeira parte seja a partir da reconstrução
nenhuma pretensão, a não ser servir à palavra. Acusado de ser vai- da situação histórica concreta que levou à pergunta e à resposta sobre
doso, ele mostra que não se orgtJlha de nada, pois sua segurança pro- o jejum, seja a partir do 'contexto literário em que se encontra atual-
, vém apenas do fato de saber-se ministro de uma aliança superior. Sua mente nos evangelhos sinóticos.
capacidade, que o leva a ter certeza de agir corretamente, vem de: Deus, 2. A tentativa de reconstruir a situação histórica concreta da vida
de quem ele recebeu este dom. r terrestre de Jesus sublinha' que o tempo do verbo de Me 2,18 cestavam
Na época, havia muitos falsos profetas, dai a necessidade de cartas jejuando» indica um determinado jejum e _não um costume. Ela encara
de apresentação (cf. At 18,27; Rm 16,1; CJ 4,10; 3Jo 9-12) exigidas a menção dos (disclpulos dos) fariseus como um acréscimo posterior.
dos pregadores pelas comunidades cristãs. Paulo não admite tal exi- Esta hipótese tem certos apoios na comparação dos textos de MI, Me e
gência, pois sendo suficientemente· conhecido dos coríntios, acha que jâ Lc. E também alega que · um autor que conhecesse bem o ambiente
deu provas suficientes de que era um verdadeiro profeta, anunciador palestinense do tempo de jesus não usaria a expressão cdisclpulos dos
da palavra de Cristo e não um embusteirq. Para ele o que importa fariseus», porque os fariseits não eram «mestres:. ou «rabis> e não ti·
é já ter demonstrado que Deus l}Je confiou urna missão, dai não serem nham «discípulos» como joão Batista e Jesus, a não ser que fossem
justas as exigências de cartas e 'lS acusações de falso elogio (cf. · 5,12). também escribas. Nesta teoria, a maneira de mencionar. cos discípulos
Pauto desenvolve, então, uma idéia já presente em l Cor 9,2: «o de joão> encerraria que o' fundador, joão Batista, jâ estáva morto.
selo do meu apostolado sois vóS~. Sua carta de recomendação é a O conjunto destes dados - tratar-s&-ia de um determinado jejum
própria comunidade. Carta esta inscrita nos corações e lida por todos dos discípulos de joão Batista - levou à hipótese de que a própria
que têm oportunidade, e que contém a prova de sua autenticidade em morte de joão Batista teria sido o motivo do jejum de seus discípulos.

288 289
,,

A passagem assim analisada e interpretada transportaria os leitores para original. Tanto no contexto anterior corno posterior aparecem os fa-
urna situação bem concreta da vida de jesus. iUma vez que Jesus mesmo riseus (cf. Me 2,16 par Mt e Lc; Me 2,24 par Lc), que contestam o
fora batizado por João Batista e alguns dos disclpulos de jesus tinham comportamento de Jesu~ e de Seus disclpulos. No contexto anterior
sido antes discípulos de joão Batista (e!. Jo 1,35-40), a morte do an- apresenta-se Jesus tomando refeição na companhia de publicanos e pe-
tigo mestre poderia ter sido também para eles motivo de luto (de cadores. Por associação antitética ligou-se a este contexto o texto do
que fala explicitamente Mt 9,151) e de jejum, O gesto de não acompa- jejum. Em vez de banquetear-se em companhia de pecadores e publi-
nhar os discípulos de João Batista neste luto e jejum teria tido cer- canos, jesus e os Seus discípulos fariam melhor em acompanhar gente mais
tamente algo de surpreendente e até de chocante e provocante. Jesus piedosa como os fariseus e os discípulos de joão Batista no jejum. Sabe-
às vezes recorria de propósito a tais atitudes e gestos .simbólicós. Por se que os fariseus jejuavam duas vezes por semana (e!. Lc 18,12). Os
exemplo, quando toma refeições nas casas de pecadores e publicanos; disclpulos de João Batista podem ter observado um jejum semelhante.
quando chama uma criança para servir de modelo ·aos discípulos; quan- No contexto anterior~ jesus respondeu à contestação de Seu comporta-
do entra em Jerusalém sentado em um jumento; quando lava os pés dos ment.o com um provérbio popular: «Não são os que têm saúde que
discípulos, etc. Se a hipótese for certa justifica-se plenamente a per- precisam de médico, mas os doentes» (Me 2,17 par). O mesmo faz
gunta que se teria feito na ocasião: «Por que os discípulos de joão agora, dizendo: «Os convidados de um casamento podem jejuar quando
jejuam e os teus não?» Ela expressaria uma clara surpresa e um cer- estão com os noivos?» Em outras palavras, Jesus declara: «Agora é
to estranhamento. Em vez de justificar o comportamento surpreendente tempo de lesta e não de jejum. jejum já era!» Lançando mão de um
de Seus discípulos por um recurso a desculpas descmbaraçadoras, a provérbio popular, Jesus o aplica à situação nova, criada por Sua pre-
resposta de jesus translumbra o âmago da situação em que eles se en- sença, por Suas palavras e obras: os disclpulos que ·n'Éle acreditam
contram. Apesar dos pesares, apesar da morte de joão Batista, eles participam já da alegria messiânica; a chegada do Reino torna a prá-
não podem jejuar, porque estão em plena temporada messiânica. Não tica do jejum obsoleta e um rito de penitência que jâ não tem razão
hã dúvida de que esta interpretação é bastante paradoxal. Atitudes pa- de ser porque pertence à Aliança Antiga.
ralelas encontrar-se-iam em textos como Mt 8,21 par Lc 9,59-62: <Je- Esta mesma mensagem da novidade dos tempos messiânicos que faz
sus disse a alguém: 1 Segue-me'. Esse respondeu: 1Permite-me ir pri- estourar como inadequadas as estruturas, instituições, costumes, ritos e
meiro enterrar . meu pai'. Ele replicou: 'Deixa que os m{)rtos enterrem legislações antigos, é expressa nas parábolas do remendo novo em fa..
os seus mortos; quanto a ti, vai anunciar o Reino de Deus'. Um ou- ~enda já gasta e de vinho novo em odres velhos.
tro disse-lhe ainda: 'Eu te seguirei., Senhor, mas permite-me primeiro 4. Uma nova atualização teria sido inserida no texto pelo acrés--
despedir-me dos que estão em minha easa'. Jesus, porém, lhe respon- cimo de Me 2,20: «Dias virão, porém, em que o esposo lhes será fi ..
deu: 'Quem põe a mão no arado e olha para trás não é apto para o rado; e então jejuarão naquele diru>. Nesta hipótese a palavra cesposo:ti
Reino de Deus'>. Como a prisão de João Batista marca, nos evange- teria um sentido nitidamente alegórico e indicaria Jesus. A frase quer,
lhos sinóticos, a iniciativa de Jesus para começar a Sua vida pública . e então, justificar a reintrodução da prática do jejum na Igreja primitiva.
a proclamação da chegada do Reino de Deus (cf. Me l,14s; Mt 4,12-17), O texto paralelo de Lc diz em pluraJ, no fim da frase, «naqueles diaS>;
assim a morte do mesmo não teria sido motivo para interrompê-Ia. Even- isto é, naquela época. Marcos tem o singular «:naquele dia>. Isto pode
tos como a mórte de João Batista, do próprio jesus e o mart!rio de encerrar uma alusão direta à sexta-feira, em que os cristãos jejuavam
Seus discípulos. representam os paroxismos das dores messiânicas. A de- em memória da morte de Jesus, enquanto os fariseus e talvez os dis--
vida explicação. e interpretação de gestos simbólicos como este de Me clpulos de joão Batista jejuavam nas segundas e quintas-feiras.
2,18-19 encontrar-se-iam ·em textos como Mt 5,10-12; Lc 6,22-23; Jo
3,28-30; Hl,20-22, onde também se encontra uma combinação paradoxal Blbllografla: Os comentá.rios de Me de Ta y 1 o r. Se b w e i z e r, Se h m 1 d;
P. B enol t-M.-E. B o 1 s mar d, SJ!!opse des Quatre Evanglles en français, Pa-
de humilhação e engrandecimento, de luto e ile alegria, contida também ris 1972, 2 Vol.; J. A. z 1es1 e r, The Removal of the Brldgeroom: A Note on
no adágio que diz <o sangue dos mártires é semente do Reino~. Mark JI.18-22 and parallels, em: NTS 19 (1972-1973) 190-194; O. O a 1 d e, Questfon
sur Je jeilne (Me 2,tS-22), em: AdS JI/39 (1912) 44-!54; J. Jeremias, As Parã-
Geralmente considera-se Me 2,20 par como um acréscimo posterior, boJas de Jesus, S. Paulo 1916. ·
inserido para justificar o jejum dos cristãos em épocas mais recentes. Raul Ruijs, O.F.M.
Mas não se po_de excluir que a morte de João Batista tenha sido para Petrópolis, RJ
jesus uma Iiçã_o e até uma ocasião para dizer: «Agora é a vez de ·Tema principal
vocês, discípulos' de João Batista, para jejuar em luto. A vez dos Meus
disclpulos também virá. Mas enquanto estou com eles convém não im-
portuná-los>. N.esta suposição o texto bem poderia ser uma espécie de A novidade do Evangelho do Reino·
paralelo de Lc 13,31-33: «Na mesma hora, ,aproximaram-se alguns fa-
riseus que lhe disseram: 'Parte e vai-te daqui, porque Herodes quer te Suge_stões para a homilia
matar'. Ele respondeu: 'Ide dizer a esta raposa: Eis que eu expulso
demônios e realizo curas hoje e amanhã; ~ no terceiro dia vou ter-
minar. Mas hoje, amanhã e depois de amanhã, devo prosseguir o meu O jejum constituía,. no Oriente Antigo, uma prática consa-
caminho . .. '» grada que se inscrevia nas prescrições relativas a certas solenida-
3. O contexto literário em que se encontra a passagem nos evan- des e a determinadas situações, tais como a morte e a expiação.
gelhos sinóticos encerra uma reinterpretação e atualização do conteúdo É no horizonte desta tradição que Jesus é questionado. Ele o é

290 291
pelos discípulos de João e pelos fariseus, ou por pessoas que mente novo é incompatível com o velho: ou o realiza, suprimin-
percebiam e estranhavam a omissão de seus discípulos a respeito do-o em sua forma caduca ou, se tenta a, composição, rompe-o
desta disciplina. Esta é a notícia que o evangelho de Marcos nos e_ t~do se. perde. N~ Rein.o não há lugar para uma tal compo-
transmite, para dela tirar uma conclusão mais importante para s~çao. Apos quase vmte seculos de história, a posição dos cris-
representação a se formar da identidade de Jesus do que para taos bem pod7 ser a dos discípulos dos fariseus e de João (ou
se resolver a questão do jejum. Todavia, como esta demarca o ~aqueles que interpelaram Jesus). Se assim for, o Espírito, que
significado da mensagem, é importante compreendê-la. e sempre novo porque criador, será incompatível com ela. O
Questão sobre uma observância consagrada, a interpelação «Mystérion." transcende o tempo e a ·situação ou conjuntura dos
feita a Jesus é séria e traz implícita uma censura, se não uma contemporaneos de Jesus; esta se refaz na iniciação de cada
sentença condenatória. A resposta dada tem a habilidade de não homem, de cada grupo social, de cada povo que se defronta
pôr em dúvida o valor, mas a oportunidade da observância. com o Evangelho: e, então, a opção exige total liberdade face
':: Com efeito, ninguém pensaria em jejuar durante uma celebração à novidade do Reino. Não há observância a preservar, por
de núpcias, se é amigo do esposo. Mas a resposta não se fecha sagradas que possam parecer. E necessário que o cristão o
sobre a questão; com ela, Jesus atribui-se um antigo símbolo homem, esteja sempre pronto a revestir o traje nupcial e a 'ser
da aliança entre Javé e seu povo. Em sentido amplo, significa odre apto para o vinho novo do Reino. Este, por sua vez, há
ele que sua presença histórica corresponde a verdadeiras núp- de o transformar no próprio Corpo do Cristo, esposo no Esposo,
cias, excluindo práticas fúnebres e expiatórias. Em Jesus de Um na Unidade de Deus.
'
Nazaré, se perfaz o esponsal entre Deus e seu povo. Todavia, Francisco Benjamin de Souza Netto
isto não se faz de forma vaga: Jesus é, ele próprio, o Esposo São Paulo, fevereiro de 1981
1
i :i e esta novidade altera as relações Deus-homem. E «no homem»
1l 1 Jesus que Deus é Esposo de seu povo. Arauto do Reino, Ele é
pessoalmente a realização deste: o objetivo e o subjetivo encon- ).
tra_m_ a sua identidade na história da Salvação. A questão sobre
o Je!um ce~e lugar ao «Evangelho» e é neste ceder lugar que
ela e resolvida: para a consciência das comunidades primitivas,
par~ as quais o jejum permanece uma prática, haverá jejum na
medida em que cada geração experimentar e celebrar a «ausên-
i cia» de Jesus como primeiro momento do Evento Pascal, seja a
um título privado, seja, antes de tudo, na vivência eclesial.
Este o significado central do Evangelho. O seu alcance é
dado pelas parábolas da veste e do vinho. A novidade do Evan-
gelho, do Reino e de Jesus é incompatível com as instituições
~ antigas: ela as rompe porque é a sua realização e, como tal,
as suprime no ato de as levar à plenitude: «para um vinho novo,
1 odres novos», para o novo homem, vestes novas. O simbolismo
1
da veste abre-se, no sacramentário cristão, ao simbolismo batis-
1 mal; o do vinho, ao eucarístico. A condição do cristão nem pode
constituir um remendo, nem pode caber no homem velho, já
1 que o seu elemento é o vinho novo do Reino, vinho no qual é
dado o princípio mais originário da vida, o Espírito. Em suma,
f só há lugar no Reino para práticas suscitadas e inspiradas
1
por sua própria novidade: ele não comporta o transplante de
1

observâncias.
A atualidade da mensagem é patente: todo o verdadeira-

292 293
1

1
'1
existência, isto é, sua identidade de povo que luta para preservar vivas
suas tradições do passado; e que se une para ter forças contra aqueles
Nono Domingo do Tempo Comum que os querem prlvar do mais sagrado que é a livre expressão de sua
fé no Deus Javé.
Esta orde.m do Senhor para descansar no , sábado para santificá-lo
tem dimensões sociais muito profundas. Neste ·rdia todos deviam parar
Primeira leitura: Dt 5,12-15 seus trabalhos, isto é, também os dependentes do israelita fiel a Javé
,,
como o filho, a filha, o servo, o boi, o jumento, qualquer animal, inclu-
«Observarás o sábado, santificando-o» sive o estrangeiro que mora entr.e eles. A santificação do sábado por-
tanto só será perfeita quando todos pararem :-:de trabalhar no sábado
Contexto literário de Dt 5,12-15. Dt 5 se compõe de duas partes: e assim poderão em liberdade cultuar seu Deus Javé.
Dt 5,5b-22a que é uma citação, o assim chamado Decálogo, e Dt Esta greve como descanso no sábado terá seguramente êxito, pois
5,1-5a.22b-32 que é a mpldura do D·ecálogo, como introdução e conclusão. parte da determinação do Deus Javé que é poderoso. Pois Ele já demons-
A leitura deste domingó, portanto, é uma parte ou uma das dez pres- trou sua soberania na história libertando os hebreus do Egito, com
crições do Decálogo. mão poderosà e braço estendido. E com isto se relembra a experiência
A época da composição de Dt 5,12-15. Para Perlitt o Decálogo se grevista tão linda dos hebreus no Egito quando de lá fogem, deixando
tornou naquilo que ele é agora no Livro do Deuteronômio, isto é, 1:1ma as construções e os trabalhos nas roças incompletos, pefa metade.
citaçãô contendo uma ~érie de prescrições, antecipadas po"f um discurso Esta leitura mostra onde reside a força Esta está com o povo
de Deus, no tempo da pregação e da teoJogia deuteronômicas. Ou como unido a Deus e entre si. Um povo assim unido e organizado é capaz
ele diz alhures que o lugar original do Decálogo deve ser procurado no de quebrar ª' violência, a opressão e a exploração de qualquer multi-
contexto da teologia deuteronõmica (PERLITT, p. 92.98}. Então, com nacional que tem seus adoradores em qualquer país do Terceiro Mundo.
outras palavras, Dt 5,12-15 como um elemento do DecáJogo surgiu no Preservemos ou reconquistemos o dia do descanso, santificando-o, reu-
séc. Vil a.e. nindo-nos em· assembléia em torno do nosso Deus, Libertador dos
E este séc. VII a.C. é politicamente marcado pela dominação dos fracos, dos pequenos, dos doentes e dos explorados.
israelitas pelos assírios. , Esta hegemonia assíria teve suas repercussões
no c_arnpo reJigioso e social do· povo de Israel. A elite israelita nada Bibliografia: L. P e r 1 i t, Bundestheologie im Allen TestamenJ, W.i\\ANT 36,
fez contra a ereção do panteão assírio no templo do Deus Javé. O Neükirchener Verlag, 1969.
governo israelita para se manter no poder se submete cegamente ao Pedro Kramer, O.S.F.S.
regime externo assírio, negando assim as convicções religiosas e sociais 1 Porto Alegre, RS
mais genuínas do povo de Israel como povo de Deus Javé. E é à luz
deste pano de fundo histórico, sinteticamente descrito, que se deve ler Segunda leitura: 2Cor 4,6·11
e interpretar a primeira leitura deste domingo.
Comentário de Dt 5,12-15. Esta parte contendo uma prescrição de
observar o sábado, santificando-o, expressa um protesto de uma parte «Nós, embora vivamos, svmos sempre entregues
do povo de Israel contra os assírios e contra a liderança israelita que à morte por causa de je.suS».
«simplesmente dança como eles tocam». Uma porção do povo israelita de Jesus~.
no entanto, fiel ao Deus Javé, rec.Jama a folga semanal no sábado para Nosso texto inicia-se estabelecendo uma ligação entre o Deus que
poder se dedicar mais a Deus. E esta exigência é revelada como ordem criou a luz rio início da criação e o Deus da luz da fé que brilha em
de Javé. Assim ela justifica o descanso no sábado que é, ·na realidade, nossos corações. O Deus da criação é o mesmo da redenção e da palavra
uma espécie de greve. Javé exige o repouso sabático e por isso os proclamada. Assim a oposição ao Evangelho de Paulo é uma oposição
veneradores de seu Deus devem parar seus trabalhos neste dia. O sábado ao próprio D~us que iluminando a alma comunica o conhecimento divino
é santificado, pois neste dia os adoradores do Deus Javé se reúnem da glória que. contemplamos velado no rosto de Cristo. Em outras pala-
para o culto, onde escutam a Palavra de seu Deus, recordam e celebram vras, a luz Que contemplamos é o conhecimento da glória de Deus.
as maravilhas· libertadoras que Deus fez por eles na história do Deus origem ·de toda luz e glória, brilha no rosto de quem crê, como
passado e também está disposto a realizá-las no presente. E é neste brilhou no rOsto de Moisés e para Paulo na estrada de Damasco
culto, celebrado aos sábados, corno parada após os seis dias de trabalho (OI 1,15s). .
durante a semana, que os fiéis a Javé se organizam e percebem a sua A idéia se integra perfeitamente. na teologia da luz, enquanto ex-
identidade que os diferencia dos assírios e dos israelitas que apostataram pressa a fé e a glória de Deus que gera a luz e é a própria Juz;
de Javé. joão dirá que jesus veio ao mundo como luz de Deus (c!. jo 1,Ss).
Este sábado portanto, exigido como prescrição de Javé, era uma Com tudo isso o Apóstolo procura explicar a origem da fé, que não é
greve, pois neste dia se repousava; e ele era santificado porque se só decisão do homem, mas primeiro uma atuação de Deus sobre o
aproveitava a folga sabática para se reunir no culto. Aí o povo israelita homem.
fiel a seu Deus se organizava criando uma consciência comum para. se O paradoxo, g,ue se segue, tenta explicar essa realidade maravilhosa
opor aos que lhe queriam roubar o sentido da vida, a razão de sua

294 295
dentro de nós que é a ,:fé, cujo conteúdo é transmitido pelo ministério
apostó1ico. Somos nada, tporém com a ajuda de Deus somos n1uito. Isso
explica porque a fragiJidade do ministro não implica na fragilidade da
mensagem transmitida, mas pelo contrário ressalta a grandeza e o poder Terceira leitura: Me 2,23-3,6
divinos na difusão do Evangelho. ·
O Antigo Testamento conhece o barro como sinal da fragilidade 1. O contexto
do homem (Gn 2,7) limitado e sujeito a mil misérias. O tesouro trazido
é então o ministério apostólico confiado por Deus a pessoas que vivem Em Me 2,1-3,6, ternos uma série de cinco discussões de jesus com
não a realidade da glória, mas de sofrimentos e perseguições. Paulo os seus adver.Sários (escribas e farisells), todas situadas pelo evangelista
tenta explicar esse contraste aos coríntios. Quem vê o vaso não suspeita em Cafarnaum (2,1). Para distingui-las das «controvérsias hierosolimi-
do tesouro contido. O vaso precisa dos maiores cuidados. -Se se rompe, tanas» que se localizam em jerusalém (11-12). são conhecidas como
1 o tesouro ficará sem proteção e se perderá. Dai decorre que apesar da sendo o primeiro grupo das «controvérsias galilaicaS» (2,l-3,35). Com-
1 fragilidade, o vaso é importante, e precisa dos maiores cuidados. A põem um conjunto de narrações centradas sobre um acontecimento susci-
imagem, é claro, vale para todos os discípulos.
O homem exterior, que sofre humilhações e sofrimentos, traz con-. tando discussões polêmicas:
sigo um tesouro precioso, isso significa que se o evangelizador fosse J) O paralitico perdoado e curado (2,l-12);
capaz de agir por si só a obra seria atribuída a ele e a -ação de Deus 2) Vocação de Levi e acolhida dos pecadores (2,13-17);
ficaria desconhecida e obscurecida. Na fraqueza do homem transparece 3) Pergunta sobre o jejum; o velho e o novo (2,18-22);
a grandeza de Deus. A 'força do Apóstolo é a força extraordinária de 4) As espigas apanhadas e a observância ·do sábado (2,23-28):
Deus que supera toda expectativa, ele como qual cristão experimenta a 5) Cura do homem com a mão seca num dia de sábado (3,l-6).
própria miséria e a poderosa ajuda de Deus, reconhece que nele opera
um.a força sobrenatural, divina e gratuita. O que Paulo sofre vai além A estrutura das quatro primeiras controvérsias é sempre idêntica:
dos limites das possibilidaQes humanas, mas não é derrotado porque a) enunciado do fato que vai motivar a discussão de jesus com
Deus está com ele.
Em seguida, por antiteses que lembram as lutas dos atletas na os fariseus e os escribas;
arena, Paulo descreve a situação real do ministro do evangelho, sempre b) os adversários do Cristo o acusam;
c) Jesus responde com uma autoridade que não aceita a discussão,
protegido do pior pela providência, que o faz não ser derrotado e citando um ditado popular ou um precedente tirado das Escrituras:
ressurgir quando parece destruído. A fraqueza humana se contrapõe a
força divina, este é o milagre da fé: o golpe mortal do inimigo não l) «0 Filho do homem tem na terra podêr para perdoar pecados
acontece nunca. O apóstolo traz a «necrosis» de Jesus no corpo para (2,10);
que também a vida de Jesus se manifeste nele. Como Cristo padeceu 2) «Os sãos não necessitam de médico, mas, sim, os que estão
em seu corpo, o apóstolo padece e participa da morte dele, está entregue doentes; eu não vim chamar os justos, mas sim os pecadores
a uma morte continua. (2,1,7);
Assim a vida do apóstolo' é uma reprodução dos dois aspectos da 3) «Podem porventura os filhos das bodas jejuar enquanto está
vida de Cristo: sofrimento e glória. A união existencial do apóstolo com eles o esposo? () Mas dias virão' em que lhes será tirado
com o Cristo acontece em todos os momentos, no sofrimento (cf. Cl o esposo, e então jejuarão naqueles dicis> (2,19-20);
1,24) e na participação da glória, já presente pela manifestação de uma 4) «0 Filho do homem até do sábado é S'enhor» (2,28) ;
pujante vida interior que o faz resistir às tribulações. Essas destroem 5) <É lícito no sábado fazer o bem ou lazer o mal? Salvar a vida
o homem velho para que' o novo possa ressurgir. Como Jesus, também o ou matar?~ (3,4).
apóstolo, pela morte entra na vida; vive em sua própria vid.a e ministério
a paixão de Cristo que prega. Após o perigo/derrota/morte vem a As controvérsias centrais (2-3-4) tratam cada uma de comida; devem
transformai;ão para a vida/ressurreição. ter a mesma origem. A primeira e a última discussão foram acrescen-
A morte, como a r~ssurreição de Cristo, se manifesta na vida do tadas posteriormente; em si não são bem controvérsias mas milagres
cristão ou apóstolo, e ~o caso específico o sofrer do apóstolo é em suscitando a oposição por causa de circunstâncias anexas polêmicas (o
favor dos fiéis. O esgotar-se no trabalho apostólico torna-se fonte de poder de perdoar os pecados - a observância do sábado).
vida para os fiéis. Uma profunda comunhão de sofrimento e vida une A quarta e a quinta controvérsia também foram modificadas: a
Cristo, os discípulos/apóstolos e fiéis. Batizados na morte, com Ele polêmica surge não ·mais porque os discípulos colheram espigas nas
1 ' ressuscitaremos. , plantações alheias nem porque jesus curou uma mão seca, mas porque
fez isto num dia de sábado. A mudança de acento indica um ambiente
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.j. judeu.cristão tentando amenizar o jugo do preceito sabático e justificar
Paulista, PE o domingo como sendo «O dia do Senhor».
Enfim, também é significativo no meio judaico, o simbolismo do
número cinco: cinco livros do Pentateuco, cinco coleções de Salmos,
cinco pães para cinco mil pessoas ... -e aqui cinco controvérsias.

296 297
2. Comentário do texto 2.1.4. Ampliação do ensinamento de Jesus (v. 27)
2.1. As espigas apanhadas (2,23-28) A resposta decisiva de jesus tem a mesma força que a do v. 10
(«O Fi1ho do 'flomem tem na terra poder de perdoar os pecados») mas
Esta quarta controvérsia acrescenta-se às três precedentes sem ne- aqui temos uma insistência especial: «O Filho do homem até do sábado
nhuma ligação precisa. Tem entretanto a mesma estrutura que as duas é Senhor». É · claro que para Me. jesus identifica-se com o Filho do
controvérsias anteriores: homem; iguala-se a Deus porque reivindica o título de «Senhor» e afirma
sua autoridade sobre a instituição divina do sábado. O v. 27 não é uma
!) Relato dum lato (v. 13-15. 18a. 23); simples conseqüência dos anteriores, é muito mais: a idéia-força ilumi-
25 A respeito do qual surge uma acusação contra Jesus sob.a forma nando o episódio das espigas apanhadas e do milagre da mão seca.
duma pergunta (v. IB. 18b. 24); . O pensamento de jesus não é totalmente novo nem isolado. Já 1Mc
3) Resposta autoritária de jesus (v. 17. 19-20. 25-26); 2,39-41 é uma ilustração da relatividade do mandamento sabático quando
4) Ampliação do ensinamento de Jesus (v. 21-22.27). a sua observação traz perigo de morte ou, pelo menos, gra\·es conse-
qüências para a pessoa humana. Rabinos posteriores a Jesus tiv~ram
2.1.1. O fato (v. 23) também um raciocínio análogo; temos por 'exemplo, da parte de um
Em Mt 12,l e Lc 6,1, o delito dos discípulos consiste em apanhar deles, o seguinte comentário de Ex 31,14: «Ü sábado vos foi confiado,
e comer espigas num dia de sábado. Me' escreve para leitores vindos mas vocês não foram confiados ao sábado».
de ambiente pagão e, como para eles seria muito difícil entender a
reação tão dura dos fariseus a respeito dum gesto tão ligeiro, Me 2~2. Cura .do homem com a mão paralisada (3,1-6)
«exagera» um pouco o· fato: os discípulos «abriram-se um caminho» A quinta e última controvérsia galilaica, como a primeira. consiste
apanha!ldo espigas. Isto torna a reação dos fariseus um pouco mais numa narração de mi1agre muito sóbria. As secções estritamente paralelas
compreensivel
i' de Me e Mt 12,9-14 dão o texto seguinte:
2.1.2 Acusação dos fariseus (v. 24) «E entrou numa sinagoga e estava ali um homem tendo a mão
seca e disse ao homem: «Estende a mão», e ele a estendeu e a
Os casuístas fariseus tinham estabelecido uma lista de 29 trabalhos sua mão .ficou boa.»
proibidos durante o sábado. Entre eles havia uma série de trabalhos ,•
agricoJas como arar, seriiear. colher, ceifar, moer, etc ... Para eles, o Podemos .comparar este episódio com o de 1Rs 13,4-6 (gesto de
gesto dos discipulos de Jesus ê um desafio e uma ofensa à observância estender a mão seca) e Ex 4,6-7 (mão restituída).
sabática (cf. Ex 34,21 ). Entretanto, a narração marciana .não se interessa aqui no fato
milagroso mas sim na controvérsia que este vai suscitar porque Jesus
2.1.3. Resposta autoritária de Jesus (v. 25-26) curou num sábado. Houve então um deslocamento para a observância sabá-
tica (v. 2.4) obtendo ao mesmo tempo um grupo de cinco controvérsias.
O Cristo responde segundo a dialética rabinica do qal lvahomer Os dois outros sinóticos relatam também o mesmo acontecimento.
(isto é, do «leve e pesado»): uma interrogação seguida dum argumento Me 3,16 e Lc 6,6-11 têm basicamente. urna narração idêntica enquanto
a forliori. No caso presente. jesus formula uma outra pergunta a partir Mt 12,9-14 mostra-se mais independente, referinda:--se a um outro mi1agre:
de um fato bíblico, a estótia dos pães (sagrados) da proposição consu- o do homem hidrópico (Lc 14,1-B).
midos por Davi e seus . companheiros, na época de Abiatar, o príncipe A expressão «outra v-ez» (v. 1) liga o fato à cura do homem com
dos sacerdotes. A partir da realidade de um acontecimenfo maior espírito imundo, também na sinagoga de Cafarnaum (1,21.23). Nos dois
deduz-se a legitimidade de um fato bem menor. . . O que fez Davi era casos, Jesus viola cientemente, numa casa de oração, o preceito do
muito mais grave do que a ação -dos discípulos. Se o primeiro foi até descanso sabático. Na famosa Jista dos 29 trabalhos proibidos havia
aconselhado peJo Sumo Sacerdote Abiatar, quanto mais perdoável a igualmente o de tratar os doentes, sa1vo em perigo de morte (o que
atitude dos discípulos acompanhados pelo «Mestre do Sábado» (v. 28) ! não é absolutamente o caso aqui). Parece que ninguém duvida do poder
Notemos que a argumentação de jesus aqui não é perfeita: taumatúrgico de jesus, nem os fariseus presentes. A preocupação deles
a) em ISm 21,2-7, o Sumo Sacerdote é Abimelek, o pai de Abiatar. é outra: ficam «espionando-o para ver se curaria num dia de sábado
Me menciona o nome do filho talvez porque deve ter presenciado a para o acusarem» (v. 2); farão a mesma coisa outra vez quando jesus
cena (lSm 21,1-6) e é bem mais conhecido; atribui-se então ao filho entrar na casa de um dos principais fariseus, igua1mente num dia de
fatos famos_Q_s ocorridos a seu genitor. sábado, e curar o homem hidrópico (Lc 14,1-2).
b) o qtie era proibido a Davi e _aos seus companheiros era o Enquanto os fariseus se escondem, a transgressão de jesus é decla-
simples fato de consumir os pães sagrados da proposição, seja ou não rada pública. Não tem medo de sua opção. Por isso, o Cristo coloca
num dia de sãbado! o doente bem no meio da assembléia, num gesto provocador para os
fariseus, quietinhos mas atentos. Porém, Jesus adivinha os maus propó-
sitos daqueles que pretendem ser os guias do povo. Por isso toma a.

298 299
1
'j iniciativa interpelando-os, em alta voz, diante de todos: «É licito no
sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar a vida ou matar?~ (v. 4).
jesus coloca a única e verdadeira pergunta. Não se preocupa em saber Tema principal
se ele está trabalhando ou não, numa interpretação meramente legalista A liberdade de Jesus
e externa do mandamento divino. Trata-se de saber se a gente age por
amor ou não, pela justiça ou pela opressão, pela libertação ou pelo Sugestões para a homllla
cativeiro. Partindo dum_ caso particular, Jesus estende-o ao campo dos
princípios: como podemos agir mal fazendo o bem? A Jiceidade de um
ato não depende de princjpios externos mas sim da con&ciência reta e O homem moderno descobriu a liberdade e a considera o
esclarecida de quem age. E se a lei torna-se um ·obstáculo~ a lei perfeita primeiro dos valores da vida. Num primeiro momento encantou-se
da caridade leva a vantagem: «Amarás ao teu próximo como a ti mesmo» com a liberdade em sua dimensão individual, expressa politica-
(OI 5,14). Santo Agostinho dirá mais tarde Ama et fac quod vis, •Ama mente pelas democracias liberais, socialmente pelo liberalismo
e faze o que queres».
Enquanto Jesus salva uma vida fazendo o bem, os· fariseus agem econômico, cientificamente pela psicologia, filosof,icamente pelas
mal querendo matar a Jesus. Não respondem nada à sua pergunta porque diversas correntes da filosofia moderna, em especial o existen-
a bondade desarma; nã.o tinham resposta diante de tanta evidência! Por cialismo. Hoje se acentua mais sua dimensão social, que vem à
outro lado, sabendo que não gozam do apoio popular, preferem calar-se consciência e à prática nos diversos movimentos de libertação
para não perder o seu prestígio. Mas a raiva deles é proporcional à
sua derrota. Não se dão por vencidos. Sabendo perfeitamente que o povo política, econômica e social. Nada mais atual,, portanto, que
não os acompanharia nas suas leis opressivas, eles vão até aliar-se com eonsiderarmos sob o prisma da liberdade a Boa-Nova de Cristo.
os amigos e partidários do rei Herodes que não tinham afinidades polí- O evangelho deste domingo (e também as leituras) nos convi-
ticas e religiosas com eles: «Tendo saído, os fariseus imediatamente dam a tanto.
puseram-se a conspirar com os Herodianos para matá-lo» (v. 6). Sem
eles, com efeito, não se podia agir ·eficazmente contra jesus. É o mesmo
Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia e da Peréia (de 4 a.e. a 39 d.C.) 1. jesus, homem livre
que mandou prender e decapitar a joão Batista, o primo do Messias.
Os Herodianos ainda vão aparecer ao lado dos fariseus na armadilha do As curas operadas por Jesus em dia de sábado pertencem a
tributo que se deve ou .não pagar a César (12,13-17). suas atividades e atitudes mais características. Nelas Jesus mos-
As cinco primeiras controvérsias galilaicas encerram-se então de
modo dramático com o v. 6 sublinhando a seriedade e a gravidade do tra provocativamente SUll liberdade frente à lei .iudaica. Provoca-
conflito surgido entre Jesus e seus inimigos. Temos aqui um prelúdio tivamente, pois Jesus poderia ter evitado o conflito. Que custaria
aos três anúncios da paixão (8,31-33; 9,30-32; 10,32-34). admoestar os discípulos a se dominarem e suportarem a fome
por algumas horas a mais, para não colher as espigas em sá-
Pe. Hugues d'ANS bado? Que exemplo de «prfldência» ele não nos daria, se dis-
Lins, SP
sesse ao homem da mão seca: «Espera um pouco que pelas seis
da tarde, passado o sábado, vou curar-te»? Que custaria a esse
Bibliografia: Gerard S. S 1 o y a n, S.T.L., Evangelho de jlarcos, Ed. Paulinas,
São Pau1o, 1975; Gilberto O o r g u 1 h o e Ana Flora A n d e r s o n, O Evangelho e
homem esperar mais algumas horas? E ele não haveria de
a Vida de Marcos, Ed. Paulinas, 1978; Oscar B a t ta g 1 1 a, Francesco U r ·i e e h i o compreender a extrema fidelidade do taumaturgo que assim lhe
e Angelo La n e e 11 o t ti, Comentário ao Evangelho de ,uarcos, Ed. Vozes, Petrópolis,
1918; P. B e no 1 t e Al.-E. Bois mar d, Synopse des quatre Evangiles en trançais: falasse? Se Jesus tivesse agido assim, ninguém reclamaria, não
tomo 1: Textes, 1965; tomo 2: Commentaire, 1972; "Traduction Oecumfnique de la
Bible" (TOB), Nouveau Teslament, E:d. du Cerf - les Bergers et les Mages, ·haveria conflito. Seria um modelo de «prudência», (pastoral) ...
Paris, 1977. ' Só que Jesus não nos quis ensinar «prudência». O que o
caracteriza, é a liberdade. Líberdade frente às mais sagradas
instituições da sociedad.e em que vivia. Enfrentando a mentali-
dade então vigente, Jesus, com sua liberdade, não estabelece,
no entanto, o princípio da anarquia, da negação. pela negação,
da arbitrariedade arvorada em lei suprema. Sua liberdade não
é libertinagem ..

300 301
.... -.
1
1

2. O amor, princípio da liberdade todos são iguais: o israelita e o estrangeiro, o pai e os filhos,
o senhor e os servos e até mesmo os animais.· No contexto
social da época se trata de que o proprietário dê descanso a
O que distingue liberdade de libertinagem é que a primeira todos os seus «pertences». A razão teológica desse benefício
tem uma norma, uma medida. Mas pôr a liberdade sob uma social é a grande intervenção social de Deus na história de
norma, não é coarêtá-la e assim negá-la? Poderíamos comparar Israel: também o israelita, hoje senhor, fora um dia «pertence»
a liberdade com uma abertura infinita. E a capacidade de abra- do faraó. Javé lhe concedeu a liberdade. A gratidão se mani-
çar o que quer que se lhe apresente como bem (mesmo falso). festa na correspondência entre sua atitude agora e a de Javé
Qualquer medida ·que se lhe queira impor, será restrição, será outrora. Hoje ele deve dar liberdade aos seus no dia consagrado
negar a liberdade. A «genialidade» da liberdade de jesus está a Javé. Entretanto, a lei da liberdade sabática tornou-se, após o
em que ele nos faz descobrir uma medida que não restringe a exílio, lei da escravidão sabática. A instituição do sábado perdeu
liberdade, mas, por ser medida, tampouco transforma a liberdade o sentido originário de benefício ao homem para. se tornar em
em lihertinagein. jugo que esmagava o homem. Por isso jesus a rejeita. Ela dei-
Se liberdade é abertura infinita, só o infinito pode ser sua xou de ser criadora de liberdade, porque já não visa ao bem
medida: uma norma que não restringe. jesus viveu sua liberdade do outro.
diante do Pai, em favor dos homens. Por isso foi livre, divina e
infinitamente livre, sem com isso dar luz verde à libertinagem. 3. Ser livre num mundo escravo
Ponto culminante da primeira narração da perícope de hoje
(espigas) é a afirmação: «Ü sábado foi feito para o homem A liberdade de jesus, baseada no amor, tem seu custo -
e não o homem para o sábado» (Me 2,27). O clímax da segunda e um alto custo - , quando deve ser realizada num mundo
narração (homem da mão seca) está na pergunta: «E permitido escravo. Se não acrescentássemos esse aspecto, não estaríamos
fazer o bem ou o mal em sábado? Salvar uma vida ou matar?» falando da liberdade concreta de jesus, que lhe custou a vida.
(Me 3,4). Ambos nos indicam qual a norma da Hberdade de Ser livre num mundo escravo é ser livre na contradição, na
jesus: a realização verdadeira do homem, a opção ética pelo oposição. E nadar ou remar contra a correnteza. E os homens
homem. não costumam suportar quem assim age. O homem escravo
Mas jesus não entende esse antropocentrismo num sentido mata quem quer chamá-lo à liberdade. Por isso não é de estra-
egoísta, da vantagem própria. O homem não é norma da liber- nhar que já no fim da perícope deste domingo, Marcos narre
dade como eu. Esse egofsmo limitaria a abertura infinita da do conluio entre fariseus e herodianos para prender a jesus
liberdade e introduziria nela a arbitrariedade. O homem é norma ( cf. Me 3,6). Apresenta-nos as forças religiosas e políticas
da liberdade como tu, como ser de relações, como filho e irmão unidas nessa conspiração. Religião e política, duas instituições
(filho de Deus e irmão nosso), Não é a si próprio que jesus que, postergando sua finalidade primeira, podem endurecer suas
visa com sua liberdade: ele defende o direito dos discípulos à estruturas esquecendo a Deus e ao homem,. a quem deveriam
alimentação, ele defende o direito do homem da mão seca à servir. E, no momento em que esquecem a alteridade, passam a
saúde. Em outras palavras: a medida da liberdade de jesus é escravizar.
o outro, o respeito ao outro, o amor ao outro. A única medida A vida de jesus, que é liberdade, leva à morte de jesus,
que mede e não coarcta, porque o amor é infinito. Mais tarde uma morte em conseqüência da liberdade. Por isso, é através
Santo Agostinho haveria de resumir lapidarmente a raiz da liber- eia morte e da perseguição que a vida de jesus se manifesta no
dade de jesus e do cristão: Ama et fac quod vis («ama e faze discípulo (cf. 2Cor 4,11).
o que queres»). «Assim em l)ós opera a morte; em vós, a vida» (2Cor 4,12).
Como o amor vem de Deus, jesus por sua liberdade frente A morte de jesus - e com ela a perseguição e a morte do
à Lei, volta ao espirita da Lei de Deus e, especificamente, ao cristão - é morte que traz vida, é morte para que se tenha
sentido que a lei sabática tinha em suas origens. A leitura do vida. Por mostrar e viver a liberdade, jesus é condenado. Sua
Deuteronômio que ouvimos neste domingo, nos mostra o sen- morte nos liberta, porque é conseqüência de uma vida que nos
•.
tido humanitário e social da instituição sabática. No sábado ensinou o caminho da liberdade: o amor a Deus que se expressa

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1
'1
no amor ao homem respeitado em sua dignidade fundamental
de filho, irmão e senhor. Décimo Domingo do Tempo Comum
Onde há escravidão (política, econômica, social, psicológica,
cultural, religiosa ... ), pretende-se impedir o homem de expan-
dir-se e realizar-se como pessoa, como irmão, como filho de Pistas Exegéticas
Deus. Onde o homem é impedido de realizar-se como filho, Deus
não é adorado como Pai, em espírito e verdade. Por isso, a Primeira 1eitura: Gn 3,9-15
problemática da escravidão (de todas as escravidões) não é
Contexto. Nos cc. 1-2 do Gênesls o autor descrevera a criação do mundo e do
alheia à dimensão religiosa p1ópria à Igreja. Pelo contrário lhe homem valendo-se de várias fontes. O e. 3 ocupa-se da sua condição de pecador. O
pecado' IJiarca a desordem na criação. originando o mal fisico e moral. A humanidade
é intrínseca. Como dizia Berdiaeff, minha fonie para mim é um está sujeita ao mal moral nas suas múltiplas expressões. O hagiógrafo aborda o fa_to
problema material; mas a fome do outro é, para mim, um pro- como teólogo. insinuando que o mal flsico e moral não estava no plano original de
Deus; ao sair de suas mãos, o primeiro estava numa situação .diversa da atual.
blema espiritual. Contudo, a limitação humana e a Intervenção do demônio introduz1~a!" 1:'º mundo o
pecado e suas terrivels conseqüências. Nosso texto pertence à trad1çao 1avlsta, com
A Igreja (nós que somos Igreja) só estaremos no caminho nuances de antromorfismo, de pitoresco, de imaginativo e descritivo. Como sempre,
na Biblia, faz-se mister discernir o que é roupagem literária daquilo que é conteúdo
de Cristo, na medida em que o seguimos na liberdade frente a teológico.
Nos vv. J-6 de Gn 3, o assunto ê a Serpente (= demônio), a tentação e o
Ioda instituição e estrutura escravizante, livres frente a elas não pecado; a seguir apontam-se os efeitos do pecado, o encontro do homem com Deus
f\'V. 7-14), o qual profere três sentenças contra os autores do pecado (vv. 14-19).
para tirarm9s vantagens pessoais (libertinagem), mas para liber- Por fim. proclama-se Eva "mãe dos viventes", sendo os primeiros pais expulsos do
tarmos o outro, nosso irmão, e assim sermos Jivres com ele. paraiso como castigo pelo pecado (vv. 20-2-1).
Porque, se a medida da liberdade é o amor, nunca se é livre
sozinho.
Gn 3,9-15
Francisco Taborda, S.J.
Curitiba, PR Texto. Nossa pericope (vv. 9-15) é narração popular de tipo antro-
pomórfico. A presença de Javé no paraíso e seu diálogo com os primeiros
pais realçam a mudança essencial havida no homem frente a si mesmo
e a Deus. Adão e Eva, antes amigos de Deus, agora se escondem. É o
lado psicológico ·do pecado: o escrúpulo, o medo, a insegurança, o senti-
mento de culpa. Para designar o desequilíbrio emocional, resultante do
pecado, o autor apresenta os protoparentes com vergonha de comparecer
nus diante do Senhor, com quem antes conversavam tão familiarmente,
apesar da nudez. Ao sentimento de pudor une-se o de remorso. Rompe-
ram-se as relações e Deus, juiz universal, pede contas, insinuando,

~
porém, desde o inicio, como criador e pai, que vai reatá-las, embora
fora do paraíso. Ao pecado segue-se o julgamento divino, salientando-se
a astúcia da Serpente. A proibição e respectiva ameaça fora dada
diretamente a Adão. É a ele que Deus se dirige em primeiro lugar com
um lacônico «onde estás:t-? Adão tenta justificar-se, culpando, traindo
sua esposa e, afinal, responsabilizando o próprio Deus por lhe ter dado
uma companheira tão fiágil e tentadora. Inclusive parece querer atenuar
1 sua culpa, dizendo que aceitara da companheira apenas urna fruta. cEis
a soberba! Não aceita o pecado. Em lugar de humilde confissão, a
l desordem, a confusão»! (Agostinho, PL 34,449).
O Senhor, então, se dirige à Mulher que, por sua vez, acusa a
Serpente. A excusa dela é mais procedente, pois reconhece ter sido
1 ludibriada pelo Maligno. O juiz divino leva em conta essa atenuante,
sem porém 'f!ximí-la do pecado. É a história do homem: peca, não
aceita, busca pretextos, culpa os outros, vai à cata de atenuantes ...
mas Deus lhe pedirá contas.
t A Serpente é um ser inteligente e maldoso, que encarna o êspírito
do mal e conhece o preceito divino, instigando o homem a desobede-
cer-lhe. E, nessa desobediência, o livro sagrado vê a causa de todo mal.

304 305
r
O autor sacro, usando a imagem da serpente, adapta-se a tradições seduzida e vencida a primeira mulher e sua descendência, teria estabe-
populares com o fito de tornar mais acessível sua mensagem religiosa. lecido uma amizade perpétua entre ambas. Todavia, no plano divino,
A cobra é talvez o animal que mais repugnância e aversão instintiva dar-se-ia o contrário, visto que, desde então, se declarou uma guerra
provoca. Deveras parece um bicho «maldito»; ela sempre foi um réptil para sempre entre a Serpente e Eva, com as respectivas descendências,
por natureza, mas o hagiógrafo, teologizando, vê nessa atitude e no culminando com a vitória da Descendência da Mulher, vitória da própria
«comer o pó» uma humilhação, um indício de abatimento e derrota, humanidade após ter sido vencida em Eva. É a maldição e o castigo
ao passo que o caminhar ereto é sinal de realeza; os ofídios não se da Serpente, de início aparentemente vencedora - vitória que, na ver-
nutrem de pó, como pensavam os antigos (Js 65,23.25; SI 71,9; Mq dade, foi princípio de uma derrota maior e definitiva.
7,17). «Comer o pó» simboliza a derrota da Serpente, não como simples Quem é a !vfulher? Os mariólogos insistem em ver nesse texto Maria,
animal, embora divinizado cá e lá, mas como instrumento de Satanás, em sentido próprio e literal, aduzindo inclusive argumentos de certo
autor, com Edão e Eva, do pecado. valor, mais teológicos ou piedosos do que exegéticos. Entretanto, o
V. 14. Deus não permite pretextos à Serpente, não dialoga com texto e o contexto sugerem que a «inimizade» se trava entre a Serpente
ela, por ser inexcusável, indigna em força de seu ódio a Deus e de vencedora e a Mulher (Eva) vencida. Contudo, a Providência divina
sua inveja para com o homem. Sem mais a declara «maldita~ entre fará com que a Mulher vencida agora seja, no futuro, vencedora em
(= mais do que) todos os anim:;.is e feras dos campos; em 3,17 será sua descendência; aqui a grande humilhação da Serpente: ser suplantada
amaldiçoada a terra, - em 4, 1, Caim. Maldição eficaz que se manifesta por Eva que antes fora vencida pelo demônio. A inimizade futura entre
no «andarás de rastos sobre o teu ventre e comerás o pó ... » a que a a Mulher e a Serpente, com as respectivas linhagens, não surge em
serpente é condenada. «Andar de rastos» e «comer o pó» são metáfo~as decorrência do pecado atual de Eva, senão por uma especial intervenção
estribadas na realidade física, mas que encerram um profundo sentido do juizo de Deus após o pecado: o castigo da Serpente consistirá em
moral: o natural se torna castigo e símbolo de profunda e repugnante que a Mulher, agora seduzida e escrava do mal, se torne por decreto
humilhação e derrota (Lv 1l,41s; Is 49,23; Mq 3,17). divino o seu maior inimigo, frustrando os planos diabólicos.
A sentença divina é aplicada segundo a ordem da transgressão: à Portanto, o contexto exige que a luta, em sentido literal, se trave
Serpente (arrastar-se e lamber o pó), à Mulher (incômodos da mater- entre a Serpente e Eva com suas descendências. A vitória caberá a
nidade) e a Adão (o peso do trabalho). Nos vv. seguintes (14-19) há esta última. Naturalmente, On 3,15 possui caráter mariológico. Com
dramatização teológica. NB: Babilônios, egípcios e cananeus represen- efeito, «Mulher» ('ishshã) aplica-se Jiterariamente a Eva (sentido direto),
tavam a deusa-serpente - típica e plenamente a Maria (sentido indireto, implícito). A patrística
"andando ereta"; é bem possivel que o hagiógrafo, exibindo-a condenada a dá-lhe sentido mariológico a partir do paralelismo Eva-Maria: assim
"arrastar-se", queira opor-se aos cultos e mitologias dos povos que a faziam como Eva é a mãe dos homens, Maria é a mãe espiritual dos redimidos
th.>usa da fertilidade e fecundidade (cf. 2Rs 18,4).
e, paradoxalmente, a imprudência e a desobediência de Eva foram repa-
A participação no primeiro pecado pareceria ter estabelecido ami- radas pe1a obediência e fidelidade de Maria. Outros SS. Padres não
zade entre a Mulher e a Serpente, mas pelo contrário tal amizade, uma vêem ~laria nesse texto (Basílio, Gregório de Nazianzo, joão Crisóstomo,
vez ludibriada, transforma-se em ódio, cujo sinal é a nossa atitude face Agostinho); aqueles que aceitam ser o texto mariológico, fazem-no
a uma serpente: não sossegamos até esmagá-la. Semelhante amizade baseando-se não na luta/inimizade com a Serpente, mas no paralelismo
não é apenas entre a mulher e a Serpente, senão também entre as Eva/Maria, análogo ao de Adão/Cristo proposto por Paulo (Rm 5,12s).
respectivas descendências - é perpétua - até que a Descendência da Tudo parece indicar que o sentido mariológico está mais no termo
Mulher lhe esmague a cabeça, embora a Serpente continue ameaçando «descendência» do que em «mulher».
e ferindo seu calcanhar. Quem é a descend€ncia? A linhagem da Serpente, em sentido coletivo,
No texto hebraico fala-se apenas da hostilidade ('êbã = luta habitual, é o conjunto das forças do mal que, aliadas à Serpente, lutam contra
implacável, profunda, sangrenta; cf. 35,21s; Ez 25,15; 35,5) entre as Deus. Paralelamente à descendência da Mulher, como coletividade, seriam
descendências da Serpente e da Mulher. Sendo a serpente figura do as forças do bem que promovem o Reino de Deus e lutam contra seus
i Inimigo, o texto contrapõe os homens ao demônio e sua caterva; pela inimigos, vencendo-os.
1 diversidade dos ferimentos: na cabeça (tão importante) e no calcanhar Contudo, muitos há que dão ao termo sentido pessoal individual: a

l
(órgão de menos valor) - ele deixa entrever a vitória final do homem. descendência da Mulher seria alusão direta à pessoa do Messias, jesus,
O texto grego (LXX) se refere à linhagem da- Mulher com um pronome real vencedor da Serpente. Mais óbvio, porém, admitir-se o sentido
masculino - «autós», este, ele - o que levou os intérpretes atribuírem coletivo: a posteridade da Mulher (Eva) são todos os seus descendentes,
tal vitória a um Descendente por excelência da Mulher, dando assim ao a quem caberá a vitória. Entretanto, dentro desta coletividade emerge o
texto sentido messiânico, sufragado por alguns SS. Padres. O texto representante máximo, Jesus Cristo, o Messias, Rei vencedor do mal.
1 latino da Vulgata {S. jerônimo), por sua vez, substitui o pronome Logo após, em lugar de destaque e fora de série, está Maria.
masculino pelo feminino - «ipsa», esta/ela - versão que, associada Os vaticínios subseqüentes do AT vão concretizar e especificar esta
ao paralelismo Eva/Maria, forne&u base à intepretação mariológica do profecia geral, fonte de esperança para os homens pecadores.

t versículo em questão, referente à primeira mulher.


On 3,15 constitui-se na primeira promessa de redenção feita à hu-
manidade pecadora - o Prato-evangelho. O demônio acreditara que, Bibliografia: R. de Vau x, La Oenêse {Bj), Cerf/Paris, 1951; F. As e n si o,
Génesis fla S. Escritura), AT/I, BAC/J\\adrid, Hl67; C o 1 u n g a-Cor d e r o, Bihlia
Comentada, 1, BAC/i\\adrid.1960; P l r o t-C 1 ame r, La Sainte Bihle. 1/1, Paris, 195.1;

306 307
. ,
l P. E. Testa, La Sacra Bibbia, Oenesi i, J\\arietti/Turim-Roma, 1969.
P. Matheus F. Giuliani, S.A.C.

Segunda leitura: 2Cor 4,13-5,1


Santa Maria, RS
simbólica do conceito de transformação do homem exterior em interior.
Paulo usa uma terminologia bíblica compreensível para o nômade e o
sedentário, para explicar a nova corporeidade que o Espírito nos dará
{cf. 1Cor 15,44s), um corpo dom de Deus que supera e escapa a nossa
compreensão material.

Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.


«Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus ressuscitará também a nós». Paulista, PE
O apóstolo supera todos os sofrimentos pela força da fé, dom de Terceira leitura: Me 3,20-35
Deus e dá testemunho apesar de toda oposição. A fé é apresentada
como condição necessária para a proclamação da verdade e Paulo cita 1. O contexto
o Si 116,10 para mostrar que o mesmo espírito de fé e de confiança
em Deus que tinha o salmista, ele também o tem no Senhor ressuscitado.
Assim a consciência da fraqueza não o oprime, pois já experimentou No domingo passado, analisamos o início das chamadas controvérsias
as maravilhas da fé que fundamenta sua esperança. galilaicas (2,l-3,35), constituído por um conjunto de cinco discussões
Ele espera um futuro glorioso pois o Deus que ressuscitou Jesus entre Jesus e seus adversários. Hoje vamos estudar o segundo grupo
Cristo ressuscitará também os fiéis, e a comunhão pessoal que há das controvérsias, contendo duas novas acusações gravíssimas contra
atualmente entre os cristãos sobreviverá de alguma .forma na vida futura. o Cristo (3,20-35). O díptico é ligado por duas dobradiças: um sumário
Paulo triunfará junto com seus ouvintes; juntos, todos participarão do (v. 7-12) e a instituição dos doze (v. 13-19).
cortejo de Cristo, não haverá mais distinção entre fiéis e apóstolo. Essa O sumário é um pequeno resumo ·idealizado da atividade milagrosa
expressão carinhosa de Paulo estimulava os cristãos de Corinto a espe- do Cristo reunindo as multidões entusiasmadas, não só da Galiléia mas
rarem na sorte gloriosa, pois a ressurreição de Cristo era uma garantia de todas as regiões habitadas pelos Judeus (notemos a ausência da
da ressurreição da Igreja. Samaria!) Tem tanta gente que Jesus corre até o risco de ser compri-
Esse texto paulino mostra, então, a ressurreição do cristão como mido! Diante deste triunfo popular e da cegueira dos eruditos (os
algo de futuro, excluindo que ela tenha já acontecido no batismo (cf. escribas e os fariseus), o Cristo rompe definitivamente com a sinagoga
CI 3,1-2,12), corno significando um tempo cronológico no passado. para pregar doravante nas casas de amigos ou, simplesmente, ao ar
Todos os sofrimentos de Paulo são em favor dos cristãos e produzem livre: num barco, num monte, em baixo duma árvore, na estrada ...
uma força interior que faz superabundar a graça. Pelo sofrimento do Até os espíritos impuros reconhecem a sua filiação divina (v. l l).
apóstolo o Evangelho ganha terreno; amarguras e perigos abrem um Jesus vai também instituir o grupo dos Doze para enviá-los a pregar
caminho para a verdade de Deus. Como o sentido da existência humana o Evangelho, com o poder de expulsar os demônios.
é proclamar a glória de Deus, e quanto mais pessoas crerem em Jesus
Cristo mais serão os que darão glória a Deus, o fim último da atividade
apostólica é aumentar o coro dos que dão glória a Deus. 2. Comentário do texto
A parte física, corruptíveJ do homem pode se consumir e sua força
vital ser aniquilada, o homem interior, espiritual criado em nós no O trecho proposto peJa liturgia de hoje tem urna perfeità estrutura
batismo, porém, é imortal, animado pela fé e o Espírito Santo. Cada em quiasma na qual as diversas conclusões aparecem na ordem inversa
dia de novo recriado pela força do amor de Deus, ele assume a imagem de sua introdução:
de seu criador (cf. CI 3,10) torna se nova criatura. A esperança
é portanto maiOr que as tribulações, pois a força interior da graça A - Os parentes de Jesus querem prendê-lo. v. 20-21
levará à vida da glória, à salvação definitiva, tornando nosso corpo B - Primeira acusação: está possuído de Belzebú ! 22a

i
glorificado (cl. Rm 8,11; JCor 15,22-28). · C - Segunda acusação: exorciza pelo príncipe dos demônios! 22b
O texto pode ter também uma interpretação diretamente missionária. D - Logion sobre Satanás. 23-26
Paulo consome sua existência realizando sua vocação apostólica, o C' - Resposta à segunda acusação. Z7
homem interior, porém, ganha cada dia mais força e energia pela ação B' - Resposta à primeira acusação. 28-30
do Espírito que o realimenta. ' A' - O verdadeiro parentesco de Jesus. 31-35
A idéia de Paulo, por_ém, não é dizer que o sofrer mereça por si
li só a recompensa eterna, pois a glória é um dom. De fato só pela graça
de Deus é que o cristão mira a morte como passagem para a vida.
2.A. Os parentes de jesus querem pren.dê-lo (20-21)
E o fato dos bens eternos serem invisíveis não significa uma diminuição Só o segundo evangelista narra este pequeno episódio no qual os
de valor, mas que o invisível é eterno, pois a fé vai além da fatuidade parentes de Jesus («os seus») emi_tem um julgamento altamente pejo-
(Hb 11,1). rativo e desrespeitoso («ele está fora de si})); querem até agarrá-lo
Nesse contexto, a comparação de nossa vida com uma morada/tenda porque parece ter perdido a razão. Os outros evangelistas preferiram
a ser substituída por um edifício, obra das mãos de Deus, é a aplicação deixar de lado este trecho que poderia ser prejudiciável à pessoa de

308 309.
1
Jesus Cristo. ·d- si mesmo).
Corno já o notamos no sumario (v. 7-12), Jesus prega à multi ªº'. A argumentação de Jesus é clara: se o mal serve para fazer o bem,
fora da sinagoga, numa casa, provavelment.e a de Simão e André C1 29 age contra si mesmo autodestruindo-se! Uma vez posto o principio geral,
2 1) onde o Cristo devia sentir-se bem a vontade. Todavia há tanta Jesus vai responder a cada urna das acusações feitas, começando pela
g~nte que nem podem tomar as refeições! última.

2.B. Primeira acusação: está possuído de Belzebú! (22a) 2.C'. Resposta à segunda acusação (27)
o.
Escribas vindo especialmente de jerusalém, para acusar o Cristo, O logion sobre «O forte» é uma reminiscência das palavras de João
começam a ~spalhar um boato: Jesus faz suc~sso porque fez um pact? Batista: «Após mim vem aquele que é mais forte que eu» (1,7a). A
com 0 príncipe dos demônios, chamado ind1ferenterne~te de ~e~ze~u, força era uma das virtudes do Messias (Is 11,2; 49,24-26; 53,12); mani-
Santanás ou Belial (2Cor 6,15): todos estes nomes designam o 1n1m1go festa-se na luta de Jesus contra o Espírito do Mal.
que se opõe à vinda do Reino de Deus, o Espíri.to do Mal. . Na alegoria contada aqui, «o forte» é o príncipe dos demônios.
Mais uma vez Me é o un1co dos evangehstas a mencionar esta Jesus é mais poderoso que Satanás. Lc é mais explícito: «Sobrevindo
acusação assim co~o a procedênCia hierosolimitana dos escribas. outro mais forte do que ele, vencendo-o, tira-lhe toda a sua armadura
em que confiava, e reparte os seus despojos:i> (Lc 11,22). Se jesus
2.C. Segunda acusação: expulsa os demônios pelo poder do principe expulsa os demônios, é sinal que acorrentou Satanás (Ap 20,1-3).
dos demônios (22b)
2.B'. Resposta à primeira acusação (28-30)
Os doutores da Lei espalha~ ainda outra mentira: jesus exorciza
porque o próprio demônio age nele! Liberta os homens com a força A glosa do v. 30 indica claramente que jesus refere-se à acusação
que escraviza! de estar possuído de espírito impuro.
A resposta de Jesus é um dos textos que melhor ~i:nbam a força
2.D. Logion sobre Satanás (23-26) de perdão presente -em Deus. O fogion começa com a ·:P@ã.v,ra hebraiCJt
«amen» ( = «em verdade») que tem um sentido afirmativo reforçado.
Chegamos à parte central do quiasma; é também a mais desenvol- ~D Cristo diz «aos homens tudo será perdoado, os pecados e até as
vida. Pela primeira vez, Me diz que o Cristo vai respon.der em parábolas. blasfêmias que blasfemarem» (v. 28). ImpQssível perdoar mais!
A parábola é um gênero literár~o de forma comparativa, carr~gado de Porém, diante de tanta bondade divina, há entretanto o famoso
imagens inteJigíveis só pelos iniciados. Boa parte delas - e o caso pecado contra o Espírito que parece abrir uma exceção. Em que consiste
aqui - referem-se à vinda do Reino de Deus. exatamente? Conforme o contexto imediato, é. o seguinte: quem atribuir,
O Jogion compõe-se de três comparações começando cada uma por de má fé, às forças do mal o bem gerado por Jesus Cristo exclui-se a si
«E se . .. ». Primitivamente, estas partes deviam ter a mesma estrutura; mesmo do plano salvifico de Deus. Não é Deus que recusa o perdão,
esta foi ligeiramente modificada por algumas adições marcianas: é o pecador que recusa em acolher a salvação oferecida gratuitamente
pelo Pai através do Espírito Santo que age em jesus. É a própria
- «tal reino» (primeira comparação, v. 24c); pessoa que se fecha, radical e voluntariamente, por causa da cegueira
- «tal casa» "(segunda comparação, v. 25b); e dureza de coração (3,5). Tal recusa de conversão impede o perdão.
- «mas tem fim» (terceira comparação, v. 26c). Nisto consiste a blasfêmia contra o Espírito ou, em outras palavras, o
O Jogion original devia então apresentar esta forma: pecado eterno (v. 29).

- «E se um reino estiver dividido contra si mesmo, 2.A'. O verdadeiro parentesco de jesus (31-35)
não pode subsistir;
E se uma casa estiver dividida contra si mesma, Os três sinóticos contam este episódio, seja antes do ensino em
não pode subsistir; parábolas (Mt/Mc), seja depois (Lc).
E !$e Satanás se levantar contra si mesmo, Em Me, a chegada da mãe e dos «irmãos» (= os primos) de Jesus
não pode subsistir». (cf. Mt 12,46) constitui uma seqüência direta aos v. 20-21. jesus está
pregando na casa de André e de Simão. Por causa da multidão, Maria
A «Casa» da segunda comparação deve ser entendida no' sentido e os outros familiares não podem falar pessoalmente com o Cristo. Por
metafórico de <familia» (cl. 2Sm 7,11-12). causa disto, mandam alguém avisá-lo de sua presença.
As duas primeiras condicionais indicam uma simples eventualidade É um fato muito banal do qual Jesus vai aproveitar-se para mostrar
(ean + subjuntivo) enquanto a última focaliza uma realidade (ei + que veio reunir todos os homens numa só família. A dureza aparente
indicativo). . da sua resposta desaparece se considerarmos que Jesus está falando
A última parte do Jogion é um pouco surpreend~nte porque deixa não com os membros da sua família mas sim à turba. Em termos
a gente imaginar uma pluralidade na pessoa de Satanas; para tornar a atuais, o Cristo diria que a sua familia não se restringe aos vinculas
comparação mais plausível, Me acrescentou o verbo «se .Jevantou» (contra do sangue: reúne todos aqueles que fazem a vontade de Deus (paren-

310 311
.,
j
1
1
tesco espiritua1), o Pai de todos os homens e de todas as mulheres. de fato impondo «sua» (falsa) verdade como verdade universal.
Com efeito, o Espírito que o Filho veio trazer é um espírito de comunhão Todos - na medida em que não têm espírito critico ou, falando
e participação no próprio Amor de Deus que se exerce soberanamente
perdoando. É SÓ acreditar e agir de maneira conseqüente! cristãmente, na medida em que não procuram discernir a von-
Pe. Hugues d'ANS tade de Deus - acabam assimilando os valores propostos pela
Lins, SP classe dominante da sociedade, esquecendo os verdadeiros valo-
res. É o que se chama «ideologia dominante». «Ideologia»·,
Bibliografia: Veja 911 Domingo do Tempo Comum, Ano B.
porque é uma falsa consciência da realidade e dos genuínos
Tema prlnclpal: interesses da sociedade; «dominante», porque sub-repticiamente
imposta pelos dominadores.
Vontade de Deus x ideologia dominante Hoje existem inclusive meios poderosíssimos de inculcar a
ideologia dominante: os meios de comunicação de massa. Por
· Sugestões para a homilia exemplo, a TV, através das novelas (mas não só), leva ao
conhecimento dos mais afastados rincões do Brasil o modo de
Introdução vida da classe alta da zona sul do Rio. Mas não só dá a
conhecer, senão que o apresenta como norma], como algo a ser
O Evangelho deste domingo nos apresenta Jesus julgado por desejado por todos e que qualquer um, com um pouco de sorte,
seus contemporâneos. Quem é este homem que desrespeita o dia pode atingir. O ideal do dinheiro, do poder, do sexo fácil e
sagrado, que anda em companhia de pecadores ~ de ignorantes, despersonalizado é transmitido como ideal humano para todos.
que se arvora em autoridade sobre a Lei e a tradição? Os Na luta por esses pseudovalores tudo serve. Pouco interessa a
contemporâneos de Jesus têm uma resposta. De onde eles a honestidade dos meios. A problemática do operário, do lavrador,
tomam? Em linguagem sociológico-filosófica se pode dizer: da do favelado, enfim, da imensa maioria da população brasileira
ideologia dominante. aparece rarissimamente na novela. E, quando aparece, é na
perspectiva distorcida pelos interesses dos dominadores: não
são apresentados em suas lutas e reivindicações, mas tentando
1. Ideologia dominante: «todos pensam assim» «Subir» ao «ideal» por meios ilícitos ou por golpes da sorte.
Desta forma é 1inoculada a ideologia dominante: a vida é assim,
Quando emitimos um parecer espontâneo, quando medimos uns estão por cima com dinheiro, poder e prazer, e os outros
os valores que se nos apresentam, temos alguma medida, algum por baixo procurando imitá-los, mesmo que consigam apenas
critério para o julgamento. Muitas vezes dizemos: «Está claro. uma caricatura do ideal alcançado pela classe alta. Sorte de uns,
É óbvio. Todo o mundo pensa e faz assim». Será que a opinião azar dos outros. - Quem tem vantagem em que se pense assim?
da maioria é razão suficiente para nossos julganientos e nossas Os que estão por cima.
ações? Já perguntamos algum dia por que «lodo o mundo pensa A imposição do esquema de vida e pensamento dos pode-
assim»? rosos não é exclusiva de nossa sociedade. É própria de toda
O cristão devia ser pessoa dotada de espírito crítico que sociedade de classes, seja no mundo capitalista ou no socialista,
não aceita, sem mais, o que «lodo o mundo pensa e faz». Devia seja hoje ou no tempo de Jesus.
levantar a suspeita de que por trás do óbvio, do comum, há No tempo de Jesus a classe dominante impunha como
alguma malícia escondida, fruto do pecado humano. Se assim esquema de conduta a observância estrita da Lei Mosaica em
o fizéssemos, haveríamos de descobrir que coisas aparentemente moldes farisaicos, embora na própria classe dominante houvesse
tão naturais e óbvias, apenas ocultam um esquema de pensa- os laxos na observância legal (saduceus). A Lei para os fari-
. ·I
mento e de. ação que vem a dar em vantagem para alguns seus era interpretada não como ajuda à realização do homem,
membros da sociedade, os mais poderosos. mas como valQr em si. Essa interpretação da Lei e sua obser-
De fato, em toda sociedade onde há um esquema de domi- vância requeriam uma ciência muito complexa, inacessível ao
nação, os dominadores procuram fazer com que todos pensem povo simples e que, portanto, o mantinha eternamente depen-
que a verdade está do lado deles. Como são poderosos, acabam dente dos sábios e poderosos. Em vez de assumirem sua res-

312 313
ponsabilidade diante de Deus, as pessoas do «povão» tinham redor, disse: 'Eis minha mãe e meus irmãos! Quem faz a von-
que perguntar às classes dirigentes o que deviam fazer para tade de Deus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe'»
agradar a Deus. Desta forma, assimilavam os valores das clas- (Me 3,34s).
ses superiores e julgavam seus semelhantes segundo os padrões A vontade de. Deus é a razão por que Jesus rompe o círculo
farisaicos. E tudo isso era considerado natural, normal. Dava-se fechado da ideologia dominante. Mas não é também a vontade
exatamente o fenômeno da «ideologia dominante» de Deus que os fariseus buscam em sua interpretação da Lei?
A diferença está em que, enquanto os fariseus a buscam no
2. jesus julgado pela ideologia dominante abstrato da letra, Jesus a encontra na necessidade concreta do
homem e nas circunstâncias cambiantes da existência. A vontade
O Evangelho deste domingo nos apresenta dois juízos sobre de Deus é eterna e imutável (e nisso os fariseus tinham razão),
Jesus: o de seus parentes e o dos escribas vindos de Jerusalém: mas apenas enquanto o amor, lei suprema, é eterno e imutável.
Os parentes de Jesus são gente simples, pessoas do povo, oriun- O amor, no entanto, precisa concretizar-se nas situações variá-
dos da miserável Nazaré. Mas seu juízo sobre' Jesus coincide veis da história. E aqui está o elemento tipico da busca da
magnificamente com o dos doutores: «Ele está louco», pensam vontade de Deus segundo Jesus.
os parentes. «Ele está possesso», supõem os doutores. Em última análise é uma questão de perspectiva. Os fariseus
Por que? Percorrendo o Evangelho de Marcos até o ponto vão à Lei, procurando confirmação para a situação vigente que
desta narração, podemos compreender. Jesus anuncia o Reino eles pretendem imutável e eterna e por isso. procuram solidifi-
ele Deus ( cf. Me l, 15) e, no entanto, reúne em torno a si cá-la em Deus. Mas desta maneira interpretam a Lei desde o
homens ignorantes, pescadores ilettados que não conhecem a , lugar social dos poderosos. Jesus busca a vontade de Deus na
Lei (cf. l,17 e 20). Toca no leproso (cf. 1,41), o que era abso- necessidade histórica do homem e, por isso, desde o pobre e
lutamente proibido ·pela Lei. Perdoa os pecados, direito exclusivo marginalizado, e.julga a letra da Lei. A vontade de Deus, também
de Deus ( cf. 2,5s). Chama para ser discípulo um pecador para Jesus, é imutável e eterna: a realização (a salvação) de
público, cobrador de impostos (cf. 2,14). Toma_ refeições com • todos os homens. Mas, como os homens são históricos, deve ser
pecadores, num sinal visível e patente de confraternização ( cf. procurada no partidarismo pelos que não têm vez. O texto de
2,15s). Não jejua conforme a tradição (cf. 2,18). Defende seus Marcos, identificando «quem faz a vontade de Deus» com
ignorantes discípulos que desrespeitam o sábado (cf. 2,23s). aqueles que estão ao redor de Jesus (cf. Me 3,34s), põe no
Quebra ele mesmo o mandamento do descanso sabático ( cf. seguimento histórico de Jesus a chave para encontrarmos a
3,ls). Em resumo: Jesus não segue os padrões -vigentes, <<nor- vontade de Deus.
mais», de conduta de um judeu fiel e muito mais de um rabino. Tudo o que o Evangelho de Marcos narrou de Jesus, até
Jesus não vive como todos vivem ou esperam que ele viva, não este ponto, está repleto de desobediência à letra da Lei. E, no
repete o que todos fazem e dizem, não reproduz a ideologia entanto, tudo recende a amor pelo homem concreto. Jesus não
dominante. Pelo contrário, com ações e p:ilavras, contradiz separa em compartimentos estanques o que é de Deus e o que
frontalmente a interpretação corrente da Lei. é do .homem. Os pescadores da Galiléia também são chamados
Qual é o veredicto daqueles que fazem eeo à ideologia por Deus, capazes de ouvir sua mensagem e transmiti-la, embora
dominante? Não pode ser de Deus. O «deus» da ideologia domi- incapazes de se adentrar nas sutis disquisições das escolas rabi-
nante exigia outra atitude que a de Jesus. Logo só pode ser nicas. Os leprosos também são pessoas humanas e merecem ser
louco ot1 possesso. Louco, porque enfrenta os poderosos; pos- tratados como tais e não como animais que se afugentam. Os
sesso, porque desrespeita a Lei de Deus (embora esta já não pecadores também têm chance diante do Deus rico em miseri-
seja de Deus, pois foi privada do espírito). ,. córdia. O jejum é apenas um meio e não um fim com sentido
( em si mesmo. O sábado é para o homem (espigas) e o bem
3. A vontade de Deus, contra-ideológica de outrem está acima da observância ritual (homem da mão
' seca).
Ao julgamento de seus contemporâneos ideofogizados, Jesus Jesus ensina assim a encontrarmos a vontade de Deus não
contrapõe a vontade de Deus. «Olhando os que estavam ao seu no abstrato da ideologia dominante: «lodos fazem, todos dizem,

314 315
é moda, é lei, sempre foi assim». Mas no concreto do amot às Décimo Primeiro Domingo do Ano B
pessoas, especialmente aos pequenos e desprezados, auscultando
suas necessidades, confiando em sua humanidade, dando chance
para um novo começo. A vontade de Deus assim buscada des- Pistas Exegéticas.
perta a criatividade própria do amor, traz consigo uma nova
ótica para ver a realidade e, desta forma, rompe com os esque- Primeira Leitura: Ez 17,22·24
mas pré-estabelecidos da ideologia dominante e cria novas estru- «Sou eu, o Senhor, qlle abate a árvore soberba e exalta o humilde arbusto»
turas de relacionamento. Por isso mesmo a vontade de Deus é
critica do «status quo», é destruidora das ideologias dominante~. No cap. 17 Ezequiel ocupa-se do destino dos dois ú1timos reis de
Judá, Joaquim e Sedecias. O texto poético assume a forma de alegoria
ou parábola (v. 2). Melhor dizendo, temos aqui uma fábula, pois entram
em cena animais e plantas, que falam e agem como homens.
4. A Igreja, seguindo a jesus, na busca O texto original básico inclui a alegoria (vv. 3-10) e sua explica-
da vontade de Deus ção (vv. 11-15.19). Uma grande águia tirou a copa de um cedro e o
substituiu por um tronco de árvore (vv. 3-5). Isto é, Nabucodonosor
levou joaquim, da casa de Davi (=copa do cedro), para o exílio e
Atualmente não é incomum ouvir acusações contra bispos, o substituiu por Sedecias, «tronco de árvore da terra» (v. 5). Este
padres e leigos que entendem, no entanto, simplesmente seguir tronco, por sua vez, prosperou e tornou-se uma videira frondosa. Mas
o Evangelho. A Igreja é acusada de subversão, de comunismo, Sedecias mostrou-se ingrato e estendeu suas raízes em direção à se-
de intromissão indevida no político, de abandono' de sua missão gunda·, águia, o Faraó do Egito, buscando apoio contra Babilônia. O
resultado, segundo o profeta, era uma punição exemplar de Sedecias
específica, espiritual. Nisto ela não está acima de seu Mestre. por ter violado a aliança com Nabucodonosor. De fato, Sedecias foi
Também ele foi acusado. punido (cl. 2Rs 25,3-5).
Que há por detrás dessas acusações? Interesse pela Igreja O texto básico sofreu expansões posteriores (17,16-18.20-21.22-24)
e pela causa de Cristo? Ou outros interesses? Também no juízo devidas ou ao próprio Ezequiel ou a seus discípulos. Estes compuse-
sobre essas acusações é preciso auscultar quem está buscando a ram a segunda alegoria (vv. 22-24), que tem por finalidade desfazer
vontade de Deus no seguimento de Jesus: a Igreja engajadà na a impressão desesperadora deixada pela alegoria das duas águias. O.
autor (autores?) deste acréscimo está preocupado com o futuro do cedro,
tradução sócio-política do Evangelho ou seus acusadores, talvez ou seja, da dinastia davídica, cujo representante estava no exílio _de
bem intencionados, mas levados pela ideologia dominante? Se a Babilônia. Segundo ele, o próprio Deus, contrapondo-se às potências
vontade de Deus eterna e imutável é a concretização do amor, terrestres e a seus planos (cf. 17,3.12s), intervirá em favor da dinastia
estão no rumo da vontade de Deus aqueles que procuram cons- davidica. Tomará um galho da copa do cedro e o transplantará para
truir o amor na concretidade das situações sócio-político-econô- a montanha de Jerusalém. Este ramo tornar-se-á «um magnifico cedro»,
em cuja frondosa copa viriam aninhar-se as aves. Assim anunciava o
micas. Construir o amor contra o desamor reinante (e não contra profeta o renascimento prodigioso da dinastia e do reino davídicos.
outra forma abstrata de desamor). Como Jesus, que denunciou quase aniquilados por Babilônia. O texto reafirma assim a fidelidade
por gestos e palavras a escravidão do homem à Lei (que era divina· às promessas feitas a Davi (cf. 2Sm 7), não obstante o aparente
então a forma concreta do desamor). Não tardarão as acusa- fracasso deste «humilde arbusto> (v. 24).
ções («louco», «possesso», «comunista» ... ) . Assim a voz da O Evangelho deste domingo retoma, na parábola do grão de mos-
tarda (Me 4,30-32), a imagem profética de Ezequiel, para falar do
ideologia dominante, condendando-nos, confirmará; por contraste, misterioso crescimento do Reino de Deits. A Igreja primitiva, cônscia
que andamos na trilha de Cristo tendo encontrado a vontade de suas insignificantes origens palestinas, maravilhava-se nesta parábola
do Pai para o aqui e agora. com a prodigiosa expansão do Evangelho no mundo greco-romano.
Francisco Taborda, S.J. Esta mesma força oculta do Reino de Deus age também hoje na
Curitiba, PR Jgreja, especialmente entre o povo humilde e nas Comunidades Eclesiais
de Base. Deus continua sendo ainda hoje fiel àS suas promessas, «aba-
tendo a árvore soberba e exaltando o humilde arbusto» (v. 24).
Blbllograifa: Comentários de W. Z 1 mm e r J 1 e de K. W. C a r I e y.

L. Garmus, O.F.M.
Petrópolis, RJ

316 317
&lgunda Leitura: 2Cor 5,6-10 medo da morteJ como horror de estar despido - estado intermediário
entre esta vida e a futura. Agora (v. 8), esse receio, aliâs compreensível,
cgntexto. Em 2Cor 4,7-18 Paulo falar~ da fragllldade da vida ("em vasos de vem acompanhado de plena confiança, já que morrer significa ir morar
barr_? , cf. On 2,7·), da morte ~o dia-a-dia, expressando ao mesmo tempo a con-
vlcçao da existência de uma vida Jmperecivel (4;14-18). Por nós mesmos somos com . o Senhor, sem solução de continuidade. A união com Cristo dá
nada, com Deus podemos muito. ~m nosso texto (5,6-10) expllcita-se com detalhes a tônica à nosstt existência toda: agora, ao morrer, na visão beatífica.
a expectativa parusiaca, porém ca e lá o mesmo tema é posto diversamente A
vida e a morte, em 4,7-18, são apresentadas segundo a fé e a devoção as coiihe- Logo, não há motivos para angústias cegas e desesperadoras. A mesma
cem, ao passo que,' em 5,1-10, os valores escal:olõgicos são descritos como tese idéia' aparece em lTs 4,17s: «Depois nós ... seremos arrebatados ...
dogmática, qual história futura. Sei em 4,1 I-16, a morte diária nos une mais forte-
mente ao Senhor, em 5,6-10 a v da corporal significa a separação do Senhor. Em sobre nuvens ao encontro do Senhor. . . e assim estaremos para sempre
4,J6ss, o Apóstolo disser3: cheio _de confiança que a morte fora vencida; agóra, em com Ele» (cf. Lc 16,22s; 23,43).
5,õ-10, mostra-se apreensivo diante dela,• quando se aproxima e da qual ninguém
escapa. O tesouro guardado em vasos de barro é o ministério apostõ.ico. A teoria sucede a prática (v. 9): seja na vida presente, agora e
É claro, isso não envolve contradição. De ~m lado hã a teoria e, do outro, aqui, como na futura, deve-se agradar a Deus, cumprindo sua von...
fala ª· _Prática. Isso ocorre nas Cartas dos Apostolos, visto que não são manuais
sistemat1cos, mas troca de vivências. Certas afirmações são dogmáticas enquanto tade. A confiança cristã não é nem exa1tação nem sentimentalismo,
outras são constatações práticas da criatura humana. No contexto imédlatamente mas condiciona o dia-a-dia num esforço contínuo por agradar a Deus
anterior , (v. l )! Paulo compara nosso corpo a uma tenda que, cessando o acampa-
~ento, e desfe ta. O mesmo acontece com o corpo após a presente vida. A morte («euárestos» = atitude do servo que se esmera para granjear a estima
e descrita como mudança. para outr.3: mor.ada, que não é bem o céu, mas 0 novo do patrão; cf. lTs 4,1; Rm 12,ls; 14,18; E! 5,10; FI 4,18; CI 3,20;
corpo que Deus nos dara e que 1a esta preparadf?, desde a eternidade, junto a
Deus. Deus sabe e pode dispor, como e quando qmser de ta1 corporalidade nova Hb 13,21). Se conseguirmos, já nesta vida, o favor de Deus, então
pela qual todo homem anseia. Para o Apóstolo esta cor'poralidade celeste se afigur~ poderemos contar com Ele no céu, e o ausentar-nos do corpo ( =
con;io i:,ma ~ob,~eveste. O homem, com a morte, perde a velha corpora1idade, ficando
assim _despido enquanto não assumir a nova. Eis por que almeja a nova roupagem morte) equiva1erá a habitar com o Senhor. Caso contrário, incorreremos
para nao continuar desnudo - um estado precário! Paulo preferiria que o corpo no seu juízo (v. 10; juízo particular). É muito importante para todos
mortal fosse ~eyesti~o do celestial sem passar pelo "despir-se" - a morte, a qual
é um adver~an_o d1an!e do qual ? homem sucumbe, já que destrói a vida. O conseguir as boas graças do Senhor para o dia em que haveremos
homem em s1 nao dese1a p_.:rder a vida, antes anela por uma vida nova para sempre,
espera!J.dO que o mortal nao pereça, mas se metamorfoseie pela redenç; 0 em reali- de comparecer perante o tribunal de Cristo, juiz universal de todos os
dade imortal (v. 4). Deus assim quis fosse o nosso destino: morrer ser trans- homens, com seus atos internos e externos. Ta1 juiz, no VT, é Javé.
fonn3:do. Para tanto deu-nos a garantia da fé e da esperança pela infusão do
Espinto Santo (v. 5). No NT quem julga é Deus Pai (cf. Rm 3,6) e também Jesus Cristo
(e!. Mt 25,3Jss; ]o 5,22; Rm 2,16; 14,10; !Cor 4,4s; 2Cor 5,10). Se
Texto. A presente vida equivale a um exilio, longe do Senhor jesus Cristo possui tarefa idêntica à de Deus Pai, depreende-se daí a sua
Cristo que, por sinal, nos espera (v. 6). l\.lorrer é retornar à pátria, a divindade.
Ele. Em conseqüência, esta vida é uma caminhada-, um estágio na A recompensa será segundo o bom ou mau procedimento, - o que
.esperança. não obsta àquilo que escreve em outro contexto: que o homem não
A idéia do v. 5 é um calmante para nossas inquietudes e preocupa- é justificado por suas próprias obras senão pela generosidade divina
ções; é natural em nós o medo de morrer, mas não é ineficaz pois (Rm 3,24). Entenda-se bem: se é Deus quem realiza a grande obra
será plenamente satisfeito com a vida eterna, cujo penhor é o ~pirito da redenção, nem por isso o homem fica inativo (cf. Fl 2,12s). Ambos
Santo. Se estamos com Cristo, com Ele ressuscitaremos (lCor 15,i2-23). - Deus e o homem - operam em conjunto. O dom de Deus (proposta)
O mesmo divino princípio da ressurreição de Cristo transformará nosso representa para o homem tarefa e dever (resposta). Na obra da sal-
corpo de morte em corpo glorioso (Rm 8,11). Cristo glorificado,'' como vação, Deus não age sozinho, mas é parceiro do homem, o qua1, se
Senhor do Universo, está tota1mente em outra esfera de existência - não concorrer com sua parte, será repudiado. A pregação da graça
que o ser~ também de maneira 'duradoura para todo cristão, rumo à qual não dispensa o homem das boas obras, antes, obriga-o. Segundo Paulo,
se ~ncam1nha. Nesta terra, todos nos sentimos exilados, aguardando a todos teremos que dar conta do que fizemos nesta vida e, depois da
partida para o Senhor (cf. FI 1,21-25; 3,20s). Paulo não se preocupa morte, já não haverá oportunidade para merecer o favor ou perdão
tanto por escapar da morte, quanto de viver com Cristo únicO bem divino. Não se diz que as a1mas seperadas do corpo devam esperar
iPdefectível. ' até a segunda vinda de Cristo para receberem seu destino eterno, _
O v. 7 explica a frase precedente, traçando rapidamente a situa- artes afirma-se claro o juizo particular, logo após a morte, exercido
ção humana na presente vida: . andamos à luz da fé, ainda não ,vemos por Cristo, sem esperar a parusia. O juizo particular é necessário para
a Deu~. Ser. c!istão . é estar ·com/em Cristo (2,14; 1314). Entr~tanto, que a alma possa entrar na familiaridade com ~risto.
agar~ _isto so. _e poss1v:1 graças à fé 1 segundo a qua1 procedemos. Só
Bibliografia: S e b e 1k1 e, K. H., Segunda Epistola aos Corlntios, trad. de
na v1sao beatifica, depois da separação corpo-alma, consumar-se-á nossa José/Irene H. Kloh, Vozes, Petrópolis 1967; Turra d o, L., Bíblia Cf!mentada. VI,
união com Cristo (cf. Fl 3,20). «Hoje vemos como por espelho confusa- BAC, l'i\adrid, 1965; Ou ti é r r e z, P., Segunda Carta a los Conntlos, NT/11,
mente; ~as então veremos face a face; hoje conhecemos ~m parte, BAC, Madrid 1962; R e e s, W., Verbum Dei, iy, J!erder, Barce1ona 1959!
C o r n e 1 y, R., Commentarlum in S. Pauli Appsto.li Epistolas, 111, Paris 1909:
mas entao conheceremos totalmente ... » (lCor 13,12). Descreve-se ai Os ty, E., Les Spitres de St. Paul aux Connth1ens. (J~j), Cerf, Paris 1949!
L "i o n n e t St Exegesis epistolae secundae ad Corinthios, PIB, Roma 1956,
C.v. 7) a expectativa do cristão, quase uma inquietude, embora con- z e d d a, $., p;ima leitura di S. Paolo, Paldeia, Brescia 1973.
fiante. Paulo, como todo cristão, aspira com ardor («eudokoí'imen»)
ausentar-se do corpo para ir, logo após a morte, habitar junto do Pe. Matheus F. · Giuliani, S.A.C.
Senhor, o que seria lucro (cf. 1,21-25). Antes (w. 3-4) descrevia o Santa Maria, RS

318 319
dispostos e as explicava aos ouvintes bem dispostos. De onde vêm
Terceira Leitura: Me 4,26-34 estas teorias? Têm a sua origem na mente do evangelista Marcos, na
reflexão da comunidade cristã pós-pascal ou em alguma palavra ou
«Com que compararemos o reino de Deus?» atitude de Jesus?
Na Mesa da Palavra, Ano A/4 = REB 38 (1978/149), 420•ss; Não se duvida de que Jesus lançou mão do gênero literário das
430*ss; 439*ss, encontra-se um comentário do Sermão em Parábolas de parábolas para ser mais claro, ajudar a entender rnelher e adaptar-se
Mt 13, que é lido inteiramente nas Missas de três domingos. Do Sermão ao auditório e não em função de um ensinamento esotérico. Sobram
em Parábolas de i\1c 4 lêem-se somente os vv. 26-34. Nas Pistas Exe- as outras hipóteses. A daqueles que opinam que Me 4,11-12 já existia
géticas acima citadas J. Konings dá algumas informações sobre a .estru- antes de Marcos e contém uma reflexão da comunidade e/ou uma
tura ou composição de Mt 13. J. Lambrecht (p. 29) sugere para· Me 4 sentença de jesus proferida em um contexto histórico diferente. E a
uma divisão concêntrica (A-B-C-B'-A' e, dentro de B e C, duas vezes daqueles que somente responsabilizam o evangelista Marcos pela forma
a-b-a'): e pelo _conteúdo destes versículos.
A : Introdução: 4,1-2 Ambas as hipóteses supõem o problell)a grave da incredulidade dos
B : A Parábola do Semeador: 4,3-20 judeus frente à pessoa, à missão e à mensagem de Jesus. As primeiras
a : O Semeador: 4,3-9 comunidades cristãs lutaram com este problema, como se pode deduzir
b: O Endurecimento: 4,10-12 de passagens como Rm 9-11; Jo 9,39; 12,37-41; At 28,25-28. Uma leitura
a': A Explicação do Semeador: 4,13-20 destes textos mostra que Js 6,9-10 desempenhou um papel decisivo na
C: Provérbios: 4,21-25 abordagem deste problema. Pode-se supor que tenha existido a opinião
a: A Candeia e explicação: 4,21-22 de que uma «Vida de Jesus» ou um evangelho não seria completo sem
b : Apelo dobrado para prestar atenção: 4,23-24a também falar em algum lugar deste problema. O quarto evangelista
a': A Medida e explicação: 4,24b-25 escolheu· para tratar deste problema o contexto do fim - da vida pública
B': Parábolas das Sementes: 4,26-32 de Jesus. Logo depois da citação de Is 6,9-10, em Jo 12,37-41, segue-se
a : A Semente que cresce: 4,26-29 a última Ceia com o Lava-pés etc. Matcos escolheu o contexto do
a': A Semente de mostarda: 4,30-32 início da vida pública, a saber, o Sermão em Parábolas. Apesar de
A': Conclusão: 4,33-34 que Marcos em, por exemplo, 3,6 e 3,21-30 já tenha mencionado a má
vontade e o endurecimento de, entre outros, os fariseus e escribas, e
A leitura de hoje (4,26-34) faz, portanto, parte de um conjunto assim preparado a colocação do problema em 4,10-13, deve-se reco-
literário maior. Pergunta-se se este conjunto foi criad'o par Marcos ou nhecer que o quarto evangelis~a foi mais .feliz quando com ele rematou
se este o encontrou, pelo menos em parte, na tradição já existente? a vida pública.
A moldura de Introdução (4,1-2). e Conclusão (4,33-34) parece de A escolha de Marcos pode-se basear em um engano, a saber, em
Marcos. A barca de 4,1 já se riienciona em 3,9 e volta de novo em uma tradução grega errada ou pelo menos ambígua de uma frase
4,36. Também a multidão de 4,1-2 já está presente em 3,7-12 e 3,31-35 aramaica~ A citação de Is 6,9 em l\ilc 4112 é introduzida pela frase:
e volta em 4,36. A observação de 4,2a «(Jesus) lhes ensinou muitas «A vós foi dado o mistério. do reino de Deus, mas aos que são de
coisas ein parábolas» parece retomada em 4,33: «E com muitas parábolas jora tudo se lhes propõe em parábolaS». Tentando-se reconstruir uma
como esta anunciava-lhes a palavra». Por estes procedimentos literários tradução melhor desta frase a partir de uma suposta versão original em
o evangelista marcou ·o iiiício e o fim do Sermão em Parábolas- e ao aramaico., chegou-se a propor a leitura: .«A vós foi dado o mistério
mesmo tempo o inseriu na grande trama do evangelho todo. do reino de Deus, mas aos que são de . fora tudo se lhes torna em
O fim do v. 33b: «Segundo podiam entender» causa alguma difi- enigm~. Na tradução usada por Marcos a palavra hebraica mashal
culdade. Fora do contexto de Marcos pode ser interpretado em sentido ou o seu equivalente aramaico foi traduzjda com parabole. Esta tra-
Positivo: Jesus adaptou-se aos ouvintes para que pudessem entender dução restringiu muito o alcance da sentença porque a palavra, a1ém
melhor o Seu ensinamento. Ai, então, deveria ser atribuído à tradição de poder ter o sentido de parábola, significa também, por exemplo,
anterior a Marcos. Dentro do contexto de Marcos impõe-s·e antes um provérbio, aforismo, dito pitoresco, comparação, alegoria, enigma etc.
sentido negativo e restritivo: «(somente) da maneira que eram capazes A tradução «parábol~ levou o evangelista - por uma associação
de entender». Dos vv. 10-12 sabe-se que esta capacidade de - através assaz infeliz -- a inserir esta sentença em seu Sermão em Parábolas
das parábolas - perceber o mistério do Reino e converter-se era mtiito e provavelmente o tenha feito inventar as mencionadas cteoria do
limitada. Por isso as parábolas precisam de uma explicação e esta era ensinamento em parábolas» e «teoria do endurecimento».
reservada aos discípulos (cf. 4,10.13). Em 4,33b entendido em sentido No Sermão em Parábolas Marcos apresenta três parábolas: a do
negativo e 4,34: ce não lhes falava .sem parábolas; a sós, porém, semeador (4,3-9), da semente que cresce (4,26-29) e do grão de mos-
explicava tudo a seus discipulo_s» o evangelista repete, pois, e genera- tarda (4,30-32). Estas últimas são geminadas, como em Mt 13,31-33
liza a tese dos vv. 10-13. e Lc 13,18-21 as parábolas do grão de mostarda e do fermento. Nestas
Esta tese chama-se a teoria do endurecimento e a teoria do ensina- parábolas Jesus não compara o reino de Deus com o próprio grão de _
mento em parábolas: Jesus pregava o reino de Deus de forma enigmá- mostarda ou com a semente, mas com aquilo que acontece ao grão .
tica, isto é, em parábolas, para confundir e endurecer os ouvintes mal
321
320
e à semente ou, melhor ainda, com a árvore que se desenvolve do Tema Principal
grão e a colheita produzida pela semente. O terlium comparationis está
no contraste entre o início aparentemente insignificante e o fim im- O REINO E O DESIGNIO INFALIVEL DE AMOR ACERCA DA CRIAÇÃO
pressionante. De fato sublinham-se, no caso do grão de mostarda, tanto
a pequenez do início como o tamanho final. A mesquinhez do grão
de mostarda era proverbial. Marcos o descreve como «a menor de Sugestões para a Homilia
todas as sementes da terra» (4,31). Mesmo assim pode se tornar um
arbusto de mais ou menos três metros de altura. Marcos a chama até Intr-0dnção
de «a maior de todas as hortaliças• (4,32). Mt e Lc fazem dela uma
«árvore». Os três evangelistas narram como peculiaridade que as aves As parábolas, gênero literário preferido de Jesus, nos abrem
vêm abrigar-se nos seus ramos. Trata-se de uma imagem bíb1ica, usada para o significado verdadeiro da expressão Reino de Deus. Sa-
por. Daniel (4,9.11.18) e Ezequiel (17,23; 31,6), onde uma árvore que bemos que o cerne da pregação de Jesus se concentrou em torno
abriga os pássaros simboliza .um reino grande que abrange todos do anúncio do Reino de Deus, presente já em nosso meio, e
os povos.
ainda para ser finalizado no futuro. Compreenderemos as pará-
Na parábola da semente pode-se destacar a descrição detalhada
do processo de crescimento como portadora de uma mensagem secun- bolas da semente que cresce sem que o agricultor pense nela
dária. O lavrador a ele assiste «sem que ele saiba como» a semente e do grão de mostarda que, de pequeno, se revela como a maior
germina e cresce. Ela cresce .:por si mesma>. Assim acentua-se de de toda& as hortaliças, se anteriormente explanarmos a expressão
maneira especial que a vinda do reino é misteriosa, sem causa palpável, Reino de Deus.
realizada por Deus. Por uma alusão implícita a Jl 4,13 em Me 4,29:
«se lhe mete a foice, porque a colheita chegou» a palavra colheita Corpo
ganha o sentido simhólico que muitas vezes tem no Antigo e Novo Tes-
tamento, a saber, a de «juízo final». Em Ap 14,15.18.20; 19,15 alude-se 1. Reino de Deus como design/o de felicidade sobre toda a criação
ao mesmo texto de JI 4,13 neste sentido.
A parábola ensina, pois, que o reino de Deus vem com a mesma Há os que identificam Reino de Deus com a Igreja. Estes
certeza com que a semente uma vez semeada germina e cresce e produz apenas dizem uma meia-verdade. A Igreja não se identifica
frutos. Esta certeza que, apesar das aparências em contrário de fra- totalmente com o Reino; o Reino está nela, mas também fora
gilidade e hostilidade, o reino de Deus está chegando na pessoa, na dela; a Igreja é o maior sacramento do Reino, vale dizer, o
mensagem e na missão de jesus e que este começo garante a consu- maior sinal e instrumento do Reino de Deus. Reino de Deus é
mação, inspira no crente a mesma atitude que marca a do lavrador. o desígnio de amor e felicidade que Deus vai construindo .ao
Este, sintonizado com as forças e mistérios da natureza, segue o seu
ritmo: deita-se e se levanta, até que chegue a hora da colheita. Da largo de toda a história. A criação é o lugar de realização
mesma maneira, quem estiver sintonizado com as forças e mistérios do do Reino de Deus; a Igreja se encontra dentro da criação. Este
reino não se deixa desanimar nem paralisar pelas aparências em con- seu desígnio vai se realizando, apesar dos fracassos humanos
trário de que nada adianta. . . «Não tenhais medo, não desanimeis, que não conseguem, entretanto, desviar do rumo da viagem.
pequenino rebanho, pois foi do agrado do vosso Pai dar-vos o reino» Tudo o que de grande, de bom, de belo, de virtuoso, de justo,
(Lc 12,32).
de santo, de sábio e de honesto se construir entre os homens,
Bibliogra/la: Além de comentários e da bibliografia sobre as parábolas citada na desde _os seus primórdios mais escurqs até nas civilizações mais
lífeda da Palavra, Ano A, p. 388: ·· J. La m b r e e b t, Parabels in lífc 4, em T11T 15
(1975), 26-43; R. S tu h 1 ma n n, Beohachtungen und Ober1eg11ngen zu ,uarkus JV, distantes de hoje, é concretização do Reino de Deus e reali-
26-29, em NTS 19 (1972-1973), 153-162. zação do desígnio de Deus acerca de sua criação. Não cabe
Raul Ruijs, O.F.M. ao homem destruir este desígnio de Deus. Ele é infalível e
Petrópolis, RJ sempre vitorioso. O que o homem pode, é furtar-se, não querer
entrar na procissão de Deus e militar contra. Mas isso não
estraga o desígnio divino, apenas prejudica o próprio homem.
Entendendo desta forma a realidade do Reino de Deus,
compreendemos a parábola de Jesus que o compara com a se-
mente que germina e cresce quer o agricultor durma ou vele;
saiba ou não da semente que ele um dia lançou à terra. A semen-
322 323
te tem seu ritmo e segue, infalivelmente, seu próprio destino. tempo de colheita» (Me 4;29). Então será o fim e Deus terá
Assim Deus tem seu projeto de glorificação para toda a cnaçao. levado sua criação para O· termo feliz em sua eternidade. Aju-
Vai realizá-lo, apesar de alguns e, quem sabe, até muitos, se damos a madurar o Reino pela nossa vida honesta, procurando
oporem a isto. Por causa desta vitória certeira, o Reino de Deus sempre o melhor. Cada ser humano resume, em pequeno, o que
é boa-nova, fonte de alegria e motivo de esperança. acontece, em grande, com a história. Quando estivermos pes-
soalmente maduros podemos ser colhidos por Deus; podemos
2. O designio de Deus privilegia os pequenos e os pobres partir para a posse do Reino. Nossa vida deve marchar para
O Reino de Deus abarca a todos os homens. Mas ele encontra uma perfeição cada vez mais completa. Oxalá, por nossas vir-
uma realização privilegiada em alguns. São os pobres, os doen- tudes, o Reino se acelere e a criação chegue antes ao ponto
tes, os marginalizados, os coxos, os desprezados da terra. que Deus lhe apontou!
Enquanto houver tais situações o Reino não se realiza, porque Leonardo Boff, O.F.M.
Reino implica superação de tudo o que divide, diminui, ames- Petrópolis, RJ
quinha e encurta a vida. E há gente que é explorada e violada
em sua dignidade e por isso é feita pobre. Há outros que não
são aceitos por causa de sua situação de saúde: os coxos, os
cegos, os empestados; há ainda aqueles que são discriminados
socialmente, por causa de preconceitos que foram se formando
durante muitas gerações como as discriminações por causa da
cor, do sexo, da raça, da religião etc. Os homens discriminam
e assim emperram a vinda do Reino de Deus. Mas Deus «que
ama os ingratos e maus» (Lc 6,35), que disse «bem-aventurados
os pobres porque deles é o Reino de Deus» (Lc 6,20), que anun-
ciou por primeiro sua boa-nova aos cegos, coxos, encarcerados
e pobres (Lc 4,18-21) não os discrimina; pelo contrário, de-
clara que o Reino começa a sua realização por eles. Eles são
como a semente de mostarda que é pequena, mas guarda dentro
de si a grandeza de um futuro promissor. Eles são os principais
portadores do Reino de Deus, seus primeiros destinatários.
Desta forma se entende que o Reino de Deus não vem pelo
estardalhaço, mas se anuncia pela presença discreta e humilde da
virtude; assim como os pobres que quase pedem desculpas por
sua presença, não erguem a voz de vergonha, não contam pelos
critérios deste mundo, mas na verdade escondem um tesouro
dentro deles, depositado aí por Deus, assim se realiza o Reino.
Efetivamente, os caminhos de Deus não são os caminhos dos
homens. Mas se quisermos deixar que o Reino aconteça em nós
devemos compreender a lógica de Deus e viver segundo ela.

Conclusão

O Reino de Deus está crescendo dentro do mundo. Não


sabemos a que altura está seu crescimento. jesus disse que
«quando o fruto está maduro, mete-se-lhe a foice, porque é

324 325
1

Décimo Segundo Domingo religião ou religiosidade que aplica a verdade, que Deus récompensa o
bem e castiga o mal, à realidade observada a olho nu, éorre o pe-
do Tempo Comum dgo de se tornar e de ser manipulada como ópio do povo. Ou por
consagrar como divina uma ordem ou situação que não vem de Deus
Pistas Exegéticas mas dos homens, ou ainda está à espera de salvação divina. Ou por
atribuir à justiça divina o que muit$ vezes é conseqüência de injus-
Primeira Leitura: Jó 38,1.8-11 tiças e omissões humanas. Lido desta maneira, o Livro de Jó é um
exemplo inspirado de «conscientização».
«0 Senhor respondeu a ]ó» ' Raul Ruijs, O.F.M.
Com 38, lss começa a última parte· do Livro de ]ó. Ela contém a Petrópolis, RJ
resposta de Deus à discussão entre Jó e seus amigos. Simplificando
demais, pode-se dizer que os amigos atribuíram a desgraça que sobre- Segunda Leitura: 2Cor 5,14-17 ,
veio a Jó a uma culpa dele, consciente ou inconsciente. jó não aceita
esta explicação. E censura os amigos por se terem deixado levar pelas Contexto. Depois de falar de nossa peregrinação à pátria celeste (vv. t-10).
Paulo retoma a defesa de seu ministérJo apostólico, tema candente - em 2Cor, e
aparências e por um julgamento fácil: «A desgraça somente pode ser continua a desenvolver a teoto~ia do apostolado. Seu ministério está' a serviço da
castigo de Deus! Há, pois, culpa! Reconheça isso!» ]ó permanece firme responsabilidade de ultimar no1para o mundo a reconciliação com Déus, já reali-
zada por Cristo (vv. IS..20). NOs vv. 11-13 descreve-se o zelo sincero- do Apóstolo
e resiste até o fim às insinuações maldosas e extenuantes de que sua que, também, comparecerá ao tribunal (v. 11)), - zelo que se estriba no temDr de
miséria seria conseqüência de culpa própria e que, portanto, teria que Deus e nãD cessa de procurar convencer e conquistar os homens pela pregação, -
zelo consciente e sincero, rnanifest~ -a Deus e aos CorintiDs, desint'eressado, pois
conformar-se com ela, aceitando-a como castigo de Deus. Recusando-se não busca a si rnesmD (v. 12). Adyerle do perigo de colocar-se a segurança nas
a fazer o jogo das explicações fáceis dos amigos, apela para Deus exterioridades: qualidades vistosas, origem israelita, lei mosaica, eloqüência, dia-
lética, - quando, ao invés, o cristão deveria apegar-se aos valores internos do
mesmo: «Que o Todo-poderoso me responda!» (31,35). coração: retidão de caráter, desprendimento, união com Cristo, carismas... Se,
A primeira vista, os cc. 38ss não parecem ter nada de uma resposta ãs vezes, esteve fora dos sentidos, isto é, em êxtases e visões, em entusiasmos
rellgloso-missionãrios - assim o acusavaml - foi para Deus. Os dons qile recebeu,
ao caso de Jó. Falam de Deus criador, de sua providência universal os pôs a serviço de Deus. Entretaiito, isso foi por momentos, porque a maior
e absoluta transcendência. Mas justamente por isso - pelo contraste parte de sua vida transcorre em plena posse de seus sentidos, na clarividência
e circunspecção, no bom senso. Sua vida não lhe pertence, é de Deus~ e da Igreja.
entre o caso particular de ]ó e a transcendência divina - o Livro
de ]ó representa um dos passos decisivos rumo à teologia e à antro- Texto. O presente trecho gira em torno_ da obra de reconciliação
pologia teológica. O Deus da Bíblia é ao mesmo tempo, como criador, realizada por Cristo (vv. 14-17). Se Paulo é tomado de• um poder
transcendente a todas as criaturas que Lhe devem a sua existência e estranho, a ponto de parecer incansável e excessivo, isso não é loucura
o seu ser; e - pela providência e obra de manutenção - imanente
às mesmas. Afirmando ao mesmo tempo os dois pólos - da trans- nem misticismo exaltado, nem falta de bom senso. Aconteceu que foi
cendência e da· imanência de Deus - ensina que jamais se pode o amor de Cristo por nós que o impulsionou, urgiu, arrebatou e avas-
inserir Deus na série das causas segundas como um dos seus elementos. salou, como força interna dinâmica que refreia o egofsmo e convida
Vaci1ar na fé em :Deus-criador porque não se consegue enxergar como a servir. E a convicção viva da morte expiatória de Cristo. A caridade
este caso ou esta desgraça não contradiz à sua providência, seria cristã se alimenta da contemplação do mistério da Cruz. Ê Cristo que
submeter Deus aos cálculos e critérios humanos. O mesmo aplica-se vive nele: cs:Eu vivo, mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim;
à felicidade terrestre: atribui-la a Deus pode ser um argumento humano a minha vida presente na carne, eu a vivo na fé do Filho de Deus,
demais para embasar a fé n'Ele. Tais atitudes são um «atentado» à que me amou e se entregou por mim» (OI 2,20). O amor de Cristo
transcendência divina e, ao mesmo tempo, à autonomia humana. se manifestou de modo tão sublime, visto que Ele, único, morreu por
Deus revela-se e responde a ]ó «do seio da tempestade». A leitura todos. O amor de Cristo por nós (geuitivo objetivo e subjetiva) exige cor-
da Missa cita aquela parte da obra da criação que descreve como Deus respondência: nosso amor por Ele. Paulo não os concebe separadamente.
domina as forças da água. Nos mitos orientais e ainda na religiosidade ~orrer por todos» pode '. significar morrer «em favor» e para
popular do tempo e '"'embiente de JesuSi estas forças representariam os 1 OL.:U salvação de todos (e!. Me 14,25); como também «Substituição»: morreu em
poderes do inferno (cf. Pr 8,27-29; Jr 5,22; Jó 7,12; 9,13; 26,12; Me lugar daqueles que, pecadores, estavam condenados à morte por terem
4,35-40: a 3• Leitura de bojei). O autor quer dizer: se toda a obra transgredido a lei divina. Jesus; morrendo na cruz, expiou essas tran&-
divina de criação é, em última análise, obra de salvação, por mais gressões. Cristo resgatou-nos d~ maldição da Lei, fazendo-se por nós
misteriosa que seja, então o homem, um ser pequeno dentro do uni- maldição (Gl 3,13). Cristo morreu por todos, substituindo a todos.
verso criado, não tem motivo para desesperar-se, nem para reclamar Logo, todos morreram. Na cruz Ele nos incluiu a todos, representando
e menos ainda para cair em um fata1ismo de «Deus o quer». O autor a humanidade inteira. Sobre Ele recaiu e foi executada :·a sentença
do Livro de Jó nega-se, pois, a dar uma resposta míope e superficial divina contra os pecadores. Va1e a asserção paulina: <Estoti crucificado
à problemática de Jó, mas lhe dá como pano de fundo o mistério de com Cristo~ (Gl 2,19). A morte de Cristo é a morte de todos! Esta
Deus vivo e verdadeiro. afirmação constitui o eixo da doutrina soteriológica: um só homem -
Muitas vezes esta resposta não satisfaz. . . Por quê? Por falta de Jesus Cristo - morreu e ressuscitou como representante da humani-
fé, de visão, por comodismo, por fazer o jogo dos exploradores? Uma dade, segundo o princípio da 'solidariedade (cf. Rm 8,3s; Gl 3,13s).

326 327
Entre nós e Cristo acontece dupla corrente: uma, de pecado, que vai
de nós a Ele e outra, de justiça, que vem de Cristo a nós. A morte sem cessar, acerca do juízo. A criatura nova é um fato, mas ainda
e ressurreição es~á- vincu!a~a a efusão do Espírito Santo, da qual de- está oculta em Cristo. A !é o' sabe e vive. Quando Cristo, afinal, se
pende a ressurre1çao espiritual agora e a ressurreição corporal futura. manifestar em glória, também 'essa criatura nova se manifestará glo-
riosa (CI 3,3-4). Até então faz-se mister realizar todos os dias a nova
. A morte com Cristo gera também a comunhão com a vida (v. 15). vida (Rm 6,4).
V1vemo.s porque J;sus _ress~rgiu da morte (Rm 6,8). Quem vive, agora, Paulo é realista. Nem é um simples profeta que anuncia a futura
uma vida );!Ova, Já nao VIVe para si, _mas consagra-se com sua vida
~quele que por ele morreu e ressuscitóu. O cristão, como Jesus, deve
salvação. Deve ele proclamar que- a salvação já é ato: •Este é o tempo
v1ver para º· outro, porquanto tem compromisso com a vida de jesus.
propicio, este o dia da salvação> (2Cor 6,2). Torna-se imperioso apro-
É o q~e ensina Paulo: «Nenhum de nós vive ou morre para si mesmo;
veitar esta salvação do tempo presente. Paulo anuncia tanto a salvação
quer vivamos, qu;r_ morramo.s, pertencemos ao Senhor (e!. Rm J4,7s). já existente, como a consumação futura. Segundo Ap 21,5, Deus faz
Morte e ressurre1çao de Cristo, apesar de fato histórico de outrora, novas todas as coisas. A renóvação do mundo pela salvação não é
acont~cem em cada um de nós no batismo, quando nos incorporamos um acontecimento que se realizou uma só vez no passado, mas um
a CrJSto, morto e ressuscitado (Rm 6,3-11). Se o cristão morreu mis- fato presente e atual. Deus· vence o passado pelo perdão e recomeça
ticamente em Cristo, morto fisicamente, deve testemunhar sua gratidão, sempre com o homem, ,mesmo pecador, a obra da redenção porque1 se
morrendo moralmente a si mesmo, a seu egoísmo consagrando a vida nossa consciência nos censura1 · Deus é maior do que nosso coração
a serviço d.e Cristo. ' (IJo 3,20).
No v. ·16, da tese fundamental - '·todos morreram - deduzem-se Bibliografia: Cf. 11'1 Domingo do Tempo Comum, Ano R (2' leitura), p. 319.
novas conclusões. Como a vida anterior jâ passou, não é licito ju1gar
os outros pelo passado, conhecê-los de modo humano, segundo a carne. Pe. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
~carne» não entende o pecado, mas o; caráter passageiro das realida- Santa Maria, RS
des terrenas e profanas: ~esc:ndência, "'«Status», prestígio social, feitos
e posses, o que nada_ mrus unporta para o homem novo em Cdsto Terceira Leitura: Me 4,35·41
(v. 17; cf. OI 6,15; Ef 4,24; Cl 3,9-IO). «Conhecer segundo a carne>
é fazê-lo segundo as aparências exte~as ou considerações puramente «Que homem é este?•
humanas, seria o conhecimento do Cristo..Messias que tivera segundo os
critérios dos fariseus que o educaram, (cf. OI l,3s; !Tm J,13); não A exegese dos milagres de Jesus admite várias abordagens. Nos
se trata do conhecimento pessoal do Jesus histórico. Agora, convertido escritos do Novo Testamento pbde-se acompanhar, mesmo com dificul-
e am~durecido, o conhece como criatura nova, única a pod"er julgar dade, um desenvolvimento da fé de Jesus para a !é em Jeshs. Eln Me
as coisas de Deus, segundo o aspecto . interior da fé e da graça (cf. 4,35-41 pode-se perceber algo da !é de jesus e entrever como ela está
!Cor 2,14s). à origem da !é n'Ele.
De modo análogo argumenta contra os adversários que o rebaixa- Qual é a situação? O lago da Galiléia é uma depressão muito
vam por não ter vivido, como os outros apóstolos, com o jesus terre... abaixo do nível do mar. Os ventos do Sul e do Norte, penetrando
no, e por ter sido escolhido depois da ressurreição. Eis o seu raciocínio: pelo corte por onde entra e por onde sai o rio Jordão, provocam
todas as relações com o Jesus da história deixaram de ser essenciais repetidamente repentinas e violentas borrascas. Estas causam perigo
para o desempenho do ministério, porque não conferem privilégios nem grave aos pescadores, mesmo aos atuais, equipados com barcos
preferência5' O chamado com base nessas relações pouco vale face à motorizados.
dependência do Cristo glorificado que, como Espírito, atua na Igreja Na narração da tempestade apaziguada predomina o contraste entre
(3,17; cf. OI 1,11-17). O que dissera negativamente (v. 16), agora o a atitude de Jesus e aquela dos disc!pulos. Entre Jesus que dorme
declara de· modo positivo (v. 17): em ;.Cristo todos morreram, mas de tranqüilamente e os disc!pulos que lutam desesperadamente contra o
sua morte brotou nova vida - ontológica e espiritual - para todos vento e as ondas. Jesus, que o dia int:eiro esteve preocupado em pregar
os cristãos tjue nele morreram. A Igreja é criatura nova, - o cristão, a Boa-Nova de Deus às multidões, agora dorme despreocupado, na
o homem novo. O velho mundo, com sua iniqüidade e egoismos1 acabou; confiança de que Ele está na mão do Pai e que os elementos do
o novo, prometido por Deus e · suspirado pelos homens, já é uma mundo não têm poder sobre Ele. Os discípulos estão preocupadíssimos
realidade. · em como salvar a pele, travando uma luta tremenda com as forças
. ~orno conciliar isto com a realidade de que ainda prosseguem as da natureza, desencadeadas pela tempestade e. . . se esqueceram de
miséTJas, os erros e pecados? Por outro lado, S. Paulo atesta que a Deus. Quando parece ter chegado o fim, acordam Jesus coht o grito
figura deste mundo passa (!Cor 7,31)-. Parece dever-se concluir que de desespero e de indignação: «Mestre, o Senhor não se iniporta que
só na consumação dos tempos o mundo passará. Até lá subsistirá na a gente está morrendo?!> Os discipulos já dão a causa por perdida.
qualidade de •velho mundo>. A morte, como último- inimigo a ser ani- Eles se vêem entregues aos elementos e já se sentem suas vitimas . ..
quiJado, ainda reina; o demônio contirÍua rondando com seus ardis e A atitude de Jesus é radicalmente diferente. Ela mostra o que pode
o século adverso perdura (!Cor 16,26; 2Cor 2,11; OI 1,4). Inclusive na um homem que se entregou totalmente à causa de Deus. Ele se le-
lgreja há muitos pecados. Dai, torna-se imperioso advertir e prev~nir, vanta, manda ao vento e ao mar, e segue-se uma grand~ bonança.
Jesus enfrenta os elementos com a mesma ordem com que expulsa
328 329
subsiste presente na tradição posterior, aparecendo hoje, no livro
os demônios (cf. Me 1,25); Ele exorciza o demônio da tempestade.
Desta forma das palavras de jesus e de seu modo de agir frente aos de Jó, em dimensão cósmica. Em todos os casos, o póder sobre
elem.entos da natureza não se deve induzir qúe existem demônios que a água, forma concreta do poder sobre o caos, é atributo divino.
domma~ ... QS 7Ieme!1tos da natureza. Trata-se de resquícios da antiga
l ~osmoy1sao nutoló~1ca (cf. a Pista Exegética da t• Leitura!). Eles nos
mformam. a respeito da fé de. jesus. A reprimenda de jesus: <Por Corpo
que est~ts com. tanto _m~do? Ainda não tendes fé?», deve-se entender
1 n~ sentido:. «A1nda. nao !endes fé em Deus... como Eu tenho?», e
1. A tempestade acalmada
1 nao no senti_do: «Ainda nao tendes fé -em Mim?~ Jesus retira um yéti
1 É neste horizonte simbólico que se deve interpretar o episó-
1

de su:i .relaçao_ para co:n Deus, com o pai. E Ele convida os discípulos
a ass1mll~ a mesma atitude. A fé perfe,ita em Deus lança fora o temor dio evangélico da tempestade acalmada. Até então, segundo a
e comun1ca. o poder J!ara destemidamepte socorrer os homens. Trans- lógica do evangelista, o poder de Jesus se manifestara de ma-
parece aqm alg? da ll~erdade dos filhos de Deus. Esta fé não é mn neira intensa mas particular: ele visara os males e o pecado
poder que p~r1?"te rea1izar qualquer obra milagrosa, mas para cumprir do homem individualmente assumido, mesmo quando se defron-
o mand~to divino de socorrer em qualquer necessidade. O socorro que
jesus da, graças a sua fé em Deus, neste e em outros casos é antes tara com multidões. As águas revoltas do lago põein-no em
de tudo salvação do poder da morte. Neste caso o perigo' de vida confronto com as origens deste mal, bem como com o seu caráter
v~m das forças el~mentares da natureza. jesus as enfrenta com a Sua universal. O contraste entre a sua atitude e a dos discípulos é a
fe e censura os discípulos por não terem esta fé. chave para a compreensão da «boa-nova» que então se anuncia.
Pelo socorro inesperado, o medo aos elementos transforma-se em Neles, toma forma concreta o homem radicalmente impotente face
temor e perplexidade. perante jesus. Esta . perplexidade não provém do ao caos que origina a morte, o que se manifesta em seu esforço
f~to ~e q~~ a doutrina de Jesus a respetto da onipotência e da pro-
vtdên~ia div1~as é nova e diferente daquela dos contemporâneos. Neste
inútil e no pânico em que este se dissolve. Em Je~us, o homem
respeito a fe de jesus e deles não divergem. A diferença estã nisso novo, cuja vida transcende o poder do caos, pode adormecer
que jesus tem a coragem e ousadia de basear seu agir nesta fé tranqüilo porque, uma vez desperto, esta sua transcendência se
Entregando-se à ~ª'"'.ª de Deus, Ele age com soberana liberdade dian~ manifesta como um poder que se exerce por meio da palavra,
de tu~o que prejudica esta causa, arriscando mesmo a Sua vida A
salvaç~o desta tempestade e perigo de vida, como posteriormente a tal Deus na constituição do Mundo.
salvaçao ~~ morte pela ressurreição, Lhe deram razão. Por isso a fé
de Jes~s pode ~ansformar~se na fé em Jesus. A nossa fé cristã, por- 2. De fora para dentro; da fé de Jesus à fé em Jesus
tanto, e fe na .fe de ]es~S' e no Deus que O ressuscitou da morte. E. fé
que nos autoriza a arnscar a vida pela causa de Deus. O ato de poder de Jesus é o momento de efetividade da boa-
nova que se quer anunciar. Situado no termo do «discurso em
W BJbliograf!a: Especiall!lente: V. Taylor; The Qospel according to St J.!ark• parábolas», o milagre do lago tem um valor paradigmático que
• b r u n d m. a n n, D1e Oeschichte jesu Christl· E
F u e b 5 Jesus Ünd deÍ
0 1au e, em: Zur Frage nach dem hlstorischen ]esils. · ' se abre ao resto do livro mediante a palavra sobre a Fé: é
Raul Ruijs, O.F.M. nesta, em sua presença e medida, que reside a diferença e,
Petrópolis, RJ no limite, a contradição eJi~re Jesus e os discípulos, entre o
homem radical e uma humanidade a cujas raízes falta ainda a
Sugestões para a Homilia. devida penetração. , É esta Fé, confiar-se absoluto do homem
ao Absoluto de Deus, para quem nem mesmo o caos é limitação,
Introdução o núcleo evangélico que aqui se visa: oculta até então, ador-
O simbolismo da água mecida, mas já presente em Jesus, ela se manifesta agóra, não
como um valor meramente intimista, mas como palavra de poder.
O simbolismo da água, em especial nas culturas arcaicas Deste poder, a imposição da ordem à natureza é o primeiro
e antigas, foi assil)alado pela ambivalência. Elemento de onde momento que pede necessária continuidade, não mais no universo
provém a Vida, foi ela visada também como a forma concreta exterior, mas na interioridade pessoal e comunitária do homem .
~ob a qual as po!ên.c!as da mort~ irrompem, tragando 0 homem
• Esta continuidade, por sua vez, exige que a mesma Fé de Jesus·
impotente. Na Bibha, as narrativas da Criação e do Dilúvio seja uma realidade nos discípulos. Isto, porém, só pode ser
assumem. este simbolismo em sua forma originária e universal; alcançado na medida em que os discípulos descobrirem na iden-
a narrativa do Éxodo o faz já em escala histórica e 0 tema
331
330
tidade de jesus o fundamento de sua Fé; por isto, o evangelho Décimo Terceiro Domingo
tem também a forma de uma pedagogia que assinala o ritmo
e o andamento das ações, dos gestos e das palavras. Nesta do Tempo Comum
pedagogia, o milagre do lago se inscreve visando operar uma Pistas Exegéticas ·
passagem: a passagem do terror, sentimento do homem na imi-
nência de ser deglutido pelo caos, ao temor face ao poder ma- Primeira Leitura: Sb 1,13·15; 2,23·25 ou Gn 4,3-10
nifesto em Jesus, temor que tem por. sua outra face a pergunta:
«Sou eu res.ponstivel por. meu irmão?»
Quem é e5te homem, que tem um tal poder sobre o éaos?
Por razões pastorais - a narração de Abel e Caim é muito mais
3. A resposta à pergunta: •Quem é este Homem?» conhecida e comentada pelo povo do que o texto do Livro da Sabe-
A resposta a esta pergunta, o Evangelho a formula pro- doria - dá-se uma Pista Exegética da primeira.
A passagem narra o primeiro fratricídio. Ela pertence ao contexto
gressivamente e de modo sempre proporcional à experiência que maior de On 3-4, ligando o pecado dos filhos à . qu.e~a dos pais. Estas
os discípulos fazem do Cristo. Pode~se dizer que, de uma forma ligações de Gn 4 com Gn 3 não são de ordem h1s!or1ca, mas de ordt;~
explícita, ·tem ela os seµs momentos extremos na confissão de literária e teológica. No texto atual percebe-se facilmente que o hagio-
Cesaréia e na Fé da Comunidade que, desde os apóstolos, pro- grafo aproveitou-se de uma saga de um clã, que existiu antes e fora
do contexto bíblico atual. Do ponto de vista etnológico, a cultura su-
clama o ·.senhor Ressurgente. Entre estes dois momentos, um posta na narração de Gn 4 é muito mais ;volufda do .q~e aquela
duplo movimento se articula: de um lado, Jesus assume de tal suposta em On 1-3. A narração de On . 4 supoe u!"a opos1çao e~tab_e·
modo -Os seus, que os incorpora à sua interioridade; de outro, Jecida entre pastores e lavradores e menciona o surgimento da fabr1caçao
ele se identifica de tal modo com eles, que neles permanece a de instrumentos metais e musicais (vv. 21-22).
subsistir segundo a totalidade do seu mistério. É deste duplo _ -Caim, expulso de sua terra, não está sozinho; o.utros .podem mat~-lo
(v. 14); seu clã protegê-lo-á (v. 15). .Ele é, pms, .<filho . de Adao>
movimentp que S. Paulo nos dá conta quando afirma que o somente em sentido largo; melhor, quanto ao espírito, pelo pecado
cristão deve viver «para» o Cristo que «por» ele morreu e ressur- original que herdou. O valor perma!1en!e da narração ~DCOJ?-tra:se na
giu. Isto seria impossível se a relação entre o Cristo e o cristão fé que _ neste sentido - somos irmaos dele ou, entao, 1rmaos de
fosse de simples exterioridade. Todavia, a superação de uma Abel que, como o Cristo, morreu inocente.
relação simplesmente exterior, biofísica, só se faz a partir do A ligação com On 3 é sugerida pela descendência direta de Adão
momento em que a Fé do Cristo brota do íntimo de cada homem (4,1-2) e por traços estilisticos (4,11= 3,17;. 4,9= 3,9;. 4,10= 3,~'9·
Do ponto de vista teológico, a saga é aproveitada para ilustrar a. vis_ao
e, como fal, a sua forma primeira é a de uma interrogação. teológica de que o pecado contra Deus leva ao pecado contra o 1rmao.
O homem expulso do paraisa experimenta que o pecado avança. como
uma avalanche: desde os primórdios o homem expulso do Jardim do
Conclusão Éden é um cativo do pecado, um fratricida. O peca~o não é somente
rebeldia. contra o próprio Deus; mas o homem se opoe a Deus também
Importa, portanto, reassumir e91 perspectiva pascal a per- ao levantar-se contra o irmão.
gunta do Evangelho e desta exigênçia o cristão professo e con- Também o culto mostra uma evolução em comparação com Gn 3
fesso não está dispensado. Cabe-lhe renovar sempre a questão: (cf. v. 3). Não se explica por que De~~ rejeitou o sac~!icio .de Caim.
quem é o, Cristo, que, como Senhor ressurgente, «em mim» triun- A narração supõe a culpa (v. 7) que v1c1a o culto ~e .Crum ~ mteressa-
fa do ca.bs? No que pode consistir· o manifestar-se, o viver, o se pela reação dele. Devido à rejeiç~o de seu sacnfíc10, C!llm torna-se
desanimado e rebelde (v. 5). Deus mtervém para que Cann mude de
morrer, o ressurgir do Cristo no Homem que é Hoje? Desse idéia (vv. 6-7). A rejeição não é, pois, definitiva. «Se fizeres o bem!
modo, o : que principiou como que~tão, como questão se ergue 1
não levantarás a cabeça? Mas se não fizeres o bem, o intru~o-pecado
diante de nós e a nossa resposta tem que assumir a forma está à espreita na porta. As suas ganas estão voltadas para ti, mas tu
da Vida, de uma Vida que se encarna no homem, não só dominá-lo-ãs». O pensamento destas frases analisa-se desta maneira:
Se tivesses boas disposições teu sacrifício seria benignamen.te aceito.
como ente natural, mas também e principalmente como ente social No caso contrário, o sacrifício mal disposto é cercado e espreitado pelo
e político sob as formas da Justiça ·e da Paz. cdemõnio-pecado:ti>. A imaaem que se usa aqui - em On 3 é aquela
da serpente 1 - é a de um monstro perigoso que estâ à espreit~ !'ª
0

Benjamin de Sousa, O.S.B. •porta» rto coração. lPd 5,8 chama-o de «leão que ruge>. Este c~emoruo­
São Paulo, SP pecado• é levado pelo lmpeto de apoderar-se totalmente de Caim. Nem

332 333
isto, porém, não acaba com a responsabilidade do homem tentado. Segunda Leitura: 2Cor 8,7.9,13-15
Sempre p-ode resistir. Caim, porém, não toma nota desta admoestação
de Deus (v. 8). Ele quer pecar contra Deus, sem vontade firme do Contexto O tema de 2Cor 8-9 é recomendar e organizar uma importante
se libertar da armadilha do <demônio-pecado>. Com uma sensibilidade coleta em êortnto em favor da Igreja palestlnense. Ao visitar (JS apóstol(ls e a
comunidade de Jer.usalêm, Paulo comprometeu~se a fazer coletas em suas comu-
comovente peJa tragédia CJ.ue encerra, descreve--se o primeiro homicídio. ldad s (01 2 10) jâ em lCor 16 1-4 tratara do assunto e, cerca de um ano
A insinuação é evidente: pelo ôdio contra o irmão, o fratricídio jã está ~ ol: de redigldã. a 2Cor pode ânunclar a conclusão da referida coleta (Rm
1~25--28) que havia sido sitspensa por causa de uma crise comunitãria. Restabe-
encaminhado (cl. Mt 5,211). O lato de que Deus interpela Caim e lhe Jeêida qÚe foJ a confiança mútua (e. 7), o Apóstolo pode fa:zir ~anqg~~ro~id!d~
pede contas de seu ato prova que respeita a personalidade humana, edido de auxilio (v. 7), motivando os Co-tintlos com o exemp o a . _ )
~os macedõnlos (8,1-5), os quais, apesar das provações (pobreza, 1aersegu1çoes ,
mesmo que seja fratricida. Normalmente, isto é, no direito dos povos além de pôr à disposição suas posses, ofereciam suas pessoas para a]u ar dna ~oleta.
nômades, cabe ao irmão mais velho cuidar e proteger o 111ais novo. A Paulo exorta Tito a que teve a termo a coleta {V. 6) que, no fun o, e uma
graça de Deus. Trata-se talvez de uma coleta lni ctadati por TJtop j ~ sd~ ep~~~~
resposta de Caim é altiva e egoísta, como sempre é o pecado: «Sou anterior em Corinto (7,6.13-15), ou, entã(l, de 1ncen var, a e 1 0
eu responsável por meu irmão?» O sarcasmo de Caim que leva os (lCor 16,1-4), uma coleta jã promovida e em andamento (v. 10; cf. 9,2).
traços do liberalismo descomprometido com o semelhante - «.Cada Texto. o Apóstolo justifica a coleta em Ci:;rinto com os seguintes
um para si e Deus para todos.»! - soa aindã. mais descarado do
que a desculpa de Adão (cl. 3,12). Corresponde à mentalidade fratricida motivos: _ visto que os macedônio~ ~oram t~~ zelosos e generosos
negar o laço fraternal para com a vitima. A interjeição <Que fizeste!> (v 8) espera igualmente que os Conntios participem em santa emula-
(v. 10) não é uma pergunta de Deus que sugere ignorância do fato, çã~ d~ mesma graça (8,7.10-11); - mostra Cr!sto como exe~plo de
mas é uma exclamação. O sangue de Abel tem uma <VOZ> que «clama> bondade e doação (8 9)' - aduz ainda um motivo natural racmn~I, o
(cl. Hb 12,24). Trata-se do clamor para que justiça seja feita (cl. do equilíbrio entre abu~dância e penúria estriba~o aliás na .i:scr1tura
1

Gn 18,20; 19,13; Dt 22,24.27; 2Mc 8,3), Homicídio é um pecado que (8,14s; cl. Ex 16,18). Além de acudir às necessidades_ materiais, preà
clama por vingança (Is 26,21; Ez 24,7s; jó 16,!Ss), como o de ficar tende provar que as comunidades, fundadas por ele? nao er~_ algo .
com o ordenado dos pobres (Tg 5,4). CI. o famoso dito: Clamitat ad parte da igreja-mãe, como se dizia. Entre as comurud~~es cr~t~ hav!a
caelum vox sanguinis et Sodomorum, vox oppressorum, merces detento fraternidade, mas ele temia que a de Jerusalém, f~ce as calunias,_ nao
Jabo-rum». aceitasse a coleta (Rm J5,30s). Fá-lo de modo deli.cado, tei:_endo bnda_s
considerações sobre a caridade cristã: ·um verdadeiro s!rmao da c_ar1-
Encontram-se na Bíblia várias atualizações ou .z:releituras» de Gn 4. dade. Não fala de dinheiro nem de coleta ou e~m~las, senao de 4'.bênçao>,
A wais relevante é a de ljo 3,12ss: «Não laçamos como Caim, que obra de caridade, serviço em favor dos cristaos. carentes, graça de

1
era do Maligno, e matou o seu irmão. E por que o matou? Porque Deus ... Se os cristãos de Corinto abundam em carismas -:- f~, palavra,
as suas obras eram más, e as do seu irmão justas>. Caim não matou ciência _ devem todavia primar também pelas obras car1tat1vas.
Abel porque era instrumento nas mãos do diabo, irresponsâvel pelos _ A fé é um dom, não realização pessoal; é conheci~ento e posse
seus atos. Foi a acumulação de mãs ações e injustiças (cl. vv. 7.8.10) de doutrina, incluindo porém atitude de crença, ~e . adesao a alguém,
que o fizeram aos poucos vitima do mal. E de vítima do mal que ele
0 expressão de confiança dedicação e sacnfic10. - A palavra,
mesmo perpetrava, tornou-se instrumento do Maligno e escravo do pe-
cado (e!. jo 8,34.44). ~.:ifestada à Igreja e por eÍa aceita, foi-nos confiada par~ ser p~o­
fessada e ensinada a outros co~ ? -fito de conyencê-los; e dout~1n~
Depois desta releitura de .Gn 4 em ljo 3,7-12 vem a aplicação (vv. transmitida gratuitamente aos Corintios pelo Espln~o de form'! pl~r~va
13-18): «Quem não ama seu -irmão é assassino>. Isto quer dizer, pros- lente _ A ciência é compreensão da fé e autêntica sabedorJa _d1v1~a,
segue o texto: «Quem possuir bens deste mundo e vir o seu ifmão ( = conf~rida a quantos a buscam de boa vontade. cPalavra» e «~1ênc1a>
o irmão em Cristo) sofrer necessidade, mas lhe fechar o coração», é aparecem junto aqui, em 2Cor 11,6! em _lCor 1 ? e 12 8 - formulas
1 1
assassino. Ele mata seu irmão, deixando-o morrer de fome, de doença, que exprimem conceitos bem conhecidos e entendidos.
de salário-fome, sem soc-0rrê-lo, nem combater as causas destas des- Realçam-se os dons do zelo e da caridade ,por virem no final da
graças, mas permanecendo de braços cruzados. A linguagem de joão - como fossem um acréscimo. A caridade é o amor f~men­
é clara, forte, sem equívocos. O hagiógrafo somente pode ter escrito
desta maneira porque viu a comunidade e a Igreja exposta ao perigo :~~~e;~iª~aulo, cultivado e retribuído pelos. Coríntios. . Zelo e carit~de
caracterizam as relações entre ele e a comunidade, culminando em o tas
de facilitar nas exigências do amor fraterno. Uma vez que é impossível •t ti' as o v s _ excluldo do texto litúrgico - conota a espon a-
enfraquecer o sentido das paJavras de joão e de escapar à concreção cari a v e· liberalidade
· .
das mesmas,· somente resta reconhecer e confessar que, no sentido desta neidade que devem remar em quem parti c1·pa da. coleta·.:
palavra inspirada, na Igreja da América Latina e fora dela se alojam não é preceito nem imposição, nem se quer armar um laço a com~
muitos fratricidas. dade (!Cor 7,Íl5), _ apenas se record~ a solicitude do;; mace~ômos,
visando comprovar a sinceridade da .car1da~e q~e autentica a fe e a
Bibliografia: E. o., o comentãrlo de Oênesls de J. de P r a i n e.
ciência (Ijo 3,17s). Com eleito, a caridade e. uniao _no amor. com DeuÓ
de quem deriva todo amor. Paulo atenua o imperativo aute~or. O v.
traz a "ustilicativa da caridade social: o amor de Jesus Cristo. Paulo,
Raul Ruijs, O.F.M. face ao~ problemas da comunidade, apela para o exemplo de. Cristo
Petrópolis, RJ que amou, se humilhou, obedeceu etc. Insiste no aspecto teológ1_co das
realidades humanas. Cristo resignou momentaneamente de sua glóna para
334 335
fazer-se um de nós, partilhando de nossa pobreza para com isso
conferir-nos a riqueza de sua redenção - a graça de Nosso Senhor Terceira Leitura: Me 5,21-43
jesus Cristo.
«Minha filha, a tua fé te salvou>
Não raro, apela-se para o mistério da Encarnação, a fim de exortar·
nos ao aJtrufsmo, à renúncia e ao sacrifício (Rm 15,3.7; Ef 3,8; Fl 2,5-11; Jl!os três primeiros evangelhos, o relato da ressurreição da filha
Hb 12,2). Se Cristo nos enriqueceu, cabe a nós agora repartir carido- de Jruro (vv. 21-24; 35-43) entrelaça a narrativa da cura da hemorroissa
samente. A ·conduta do cristão deve ser uma seqiiência dos gestos de Cvy. ?5-34; veja Mt 8,18-26; Lc 8,40-56). Em outras palavras, entre a
Cristo. Para os cristãos da primeira geração a vida de Cristo, pobre pruneira e a segunda parte da história da reanimação da filha de jairo
e humilde, era wn modelo perfeito de amor fraterno. Três razões levam foi introduzido o relato da cura da mulher enferma.
à generosidade: - a graça concedida às comunidades da Macedônia Marcos oferece, sem dúvida, a versão mais primitiva do aconteci...
(8,1), - a graça conferida aos Coríntios que será eficaz (8,6s), - menta. Seguindo sua tendência literária, a descrição é viva e plena
o exemplo de Cristo (8,9). Oraça, aqtú, é a capacidade de sacrifício e de detalhes - detalhes que são eliminados pelos demais evangelistas,
de renúncia como dom divino. Nos vv. 10-12, o Apóstolo se esmera por que aqui como alhu~es se concentram sobre o essencial. Mateus, por
evitar qualquer sinal de coação ou imposição e tenta mostrar a conve- exemplo, simplifica o relato de Marcos omitindo Me 5,26 (o sofrimento
niência e o proveito da referida coleta, bem como a constância para da mulher nas mãos de vários médicos e os gastos que fizera sem obter
levá-la a cabo, não bastando. a boa vontade inicial. Como remate apela resultado algum), Me 5,30 (o misterioso poder que saira de jesus sem
à boa vontade dos Corintios, os quais haviam começado espontanea- que EJe conhecesse a razão), Me 5,31 (o comentário dos discípulos),
mente, no ano anterior, a dita coleta (vv. 10-15). Não importa a 5,32 (Jesus lançando um olhar em volta à busca da mulher); bem
quantidade e qualidade, mas a boa vontade. No v. 7 Paulo, entusias- como, mais tarde, O primeiro evangelista eliminará Me 5,35.37.4142.
mado com os Coríntios, intima-os (com imperativo) a serem ainda Marcos acentua aparentemente o poder taumatúrgico do Cristo, Mateus
mais generosos que os macedônios, aceitando tamanha ~raça. acentua a estreita r.elação entre fé e milagre. lsto se torna notório
A contribuição, para ser agradáveJ a Deus, deve ser segundo as na inversão que o primeiro evangelista faz. Em Me, a cura precede
posses (v. 12; cf. 12,41ss) e generosa. cEuprósdéktos> ( = agradável) a afirmação sobre a fé. Mateus faz da afirmação da fé a causa da
é termo técnico para qualificar o sacriflcio (6,2; Rm 15,16; JPd 2,6). cura. Se Marcos ressalta mais o poder extraordinário de Jesus de curar
Não se exige o impossfve~.' A doação seja proporcionaJ, visando à os doentes e ressuscitar os mortos, Mateus seguindo uma orientação
eqüidade na distribuição dos bens vitais. Não é bom ficar em necessi- mais catequética e pedagógica afirma que a fé deve preceder o milagre.
dade para aJiviar os outros. A abundância material de uns deve suprir Marcos dispõe o assunto de tal forma a levá-lo a um clímax: Inicia
a escassez de outros. Exige-o a comunhão dos santos. Na Macedônia com o pedido de um dos chefes da sinagoga de impor as suas mãos
deram mais do que realmente podiam. O próprio Paulo decidira sacrificar- ã sua filha «prestes ·a morrer». Jesus o acompanha cercado por nume-
ro~a multidão. Mas eis que no caminho acontece um grande milagre,
se pelos outros (12,15), já que sua morte seria lucro para a vida da
po1~ uma mulher que o toca se vê livre de sua hemorragia crônica.
comunidade (4,12). Haverá compensação: a comunidade de Corinto ajuda
a de jerusalém com bens materiais e a de jerusalém retribtúrá com O 1nt;rvalo . que daf resulta serve para preparar a situação para novo
os espirituais (Rm 15,27). Alguns exegetas (Spicq, Plmnmer, Lietzmann, e maior mllagre. Entrementes, a filha de Jairo morre. E assim, em
lugar de uma cura, sucede uma ressurreição. É a este suspense e culmi-
Windisch ..• ) entendem permuta só de bens materiais: hoje é Corinto nância que visa a disposição e seqüência de Marcos.
que subsidia, - amanhã, Jerusalém.
Para ~ compreender melhor a idéia do evangelista convém notar a
Com efeito, o Apóstolo promete que a ajuda material terá seu .expressão que aparece no pedido do pai: «para que ela se salve e
retorno sobre os doadores pela ação de graças que a comunidade de viva:. (v. 23). O vocábulo grego correspondente a «salvar> pode ser
jerusalém renderá a Deus (9,12): cosmose entre matéria e espirito entendido seja num sentido de cura corporal, seja num sentido de sal-
no âmbito da comunhão dos santos> (Ricciotti). Para encerrar (v. 15), vação eterna. O me!fmo se dá com o verbo «viva». A vida para um
cita o VT, quando alude ao maná: uns recolhiam mais, outros menos; hebreu significa a um tempo bem-estar e salvação. Jesus doa a vida
entretanto, no final, todos tinham a mesma quantia, o suficiente (Ex corporal, símbolo de uma outra vida, a vida eterna. O gesto de cura
16,18). O que aconteceu no . deserto, por milagre, deve agora repetir- encerra, por conseguinte, o sinal da doação da vida. perene e impe-
se por amor fraterno nas comunidades cristãs: o intercâmbio de bens recível. Este conceito, claramente expresso no quarto. evangelho (no
entre os <santos> do NT. .É o principio de igualdade aplicado na relato da ressurreição de Lázaro em ]o li, por exemplo), já está la-
Igreja primitiva (AI 2,45s). A igualdade em Ex 16,18 (LXX) é para tente em Marcos.
Paulo figura da dupla igualdade, material e espiritual, que resulta da A mesma idéia aparece no relato da cura da hemorroíssa: Wlinha
esmola: a riqueza material de uns se transfere aos pobres e a abun- filha, a tua fé te salvou> (v. 34). A fé simples, a filial confiança, da
dância espiritual destes reverte para bem daqueles que dão esmola. mulher, não apenas restitui-lhe a saúde, mas a conduz à salvação
plena. Baseado sobre a fé, jesus confirma à mulher a salvação que
Bibliografia: Cf. Jlo:> Domingo do Tempo Comum. Ano B (2• leitura),: p. 319. faz já vislumbrar a redenção integral do homem no sentido pleno do
termo. Em outras palavras, a afirmação do -Cristo não só atesta a
P. Malheus F. Oiuliani, S.A.C. bondade e o poder em relação à enferma, mas a vontade salvífica
Santa Maria, RS de Deus.
336
337
Os temas da fé e da vida prosseguem nos vv. 35-43. jesus diante quicas que nos prostram. Muitas vezes assistimos o duro espe-
da noticia da morte da filha de ]airo encoraja o pai dizendo: «Não tãculo da morte. Ela é para nós um mistério. Não é possível
temas; crê somente> (v. 36). A verdadeira fé não deve capitular nem que essa ânsia de vida que existe em nós seja ilusória! Temos
sequer diante da morte. E esta ressurreição, por sua vez, é sinal da sede de vida. Vemos nossos amigos e nossos parentes nos aban-
outra vida que lhe será dada: «A criança não morreu, dorme> (v. 39).
A morte não passa mais de mn sono passageiro. Sob as luzes da fé donarem ceifados pela morte. juntamente com esse desejo de
a morte é algo transitôrio e dela o cristão acorda pelo poder de vida sabemos que nós estamos também destinados à morte. Ela
Deus. A Igreja primitiva conservou este modo de falar dos «adorme- vem como um ladrão, quando menos se espera. Ela se apre-
cidos> (At 7,60; 13,36; !Cor 7,39; 11,30), na expectativa da ressurreição senta como um absurdo e como um contra-senso. Por que o
(!Ts 4,13-16; !Cor 15,20-21). sofrimento? Por que a morte?
Marcos, conseqilentemente, embora em menor escala que Mateus e
João, associa os conceitos de fé e milagre, e milagre e vida eterna. O pensamento cristão nos ensina que Deus não criou a
O milagre não é um benefício puramente individual desligado da fé morte, mas ela é fruto do pecado do homem. Desde as pri-
e do plano salvífico de Deus. É antes um acontecimento no qual o meiras pãginas do Gênesis lemos esta explicação da fé israelita.
homem percebe . a presença de Deus e é levado à f<! e a uma vida O pecado do homem introduziu a morte e a separação, o ódio
nova. O milagre não é apenas precedido pela fé, mas se constitui em e a destruição no coração da história. Os sãbios de Israel afir-
um apelo que Deus faz ao homem. Ele não pos5ui uma finalidade em
si mesmo. Tem (por finalidade a conversão do indivíduo e a vida que mam que Deus não ·é o autor da morte; esta não lhe dã alegria
nem sequer a morte pode suprimir. alguma. Criou tudo para a existência, para a vida. Os homens
de todos os tempos são chamados à vida pela força do Senhor.
Veja os comentários de V. Ta y 1 o r, R. Se b na ç k e n b u r g,
BJbllograjia:
C. F. D. Moule, H. Wansbroug e G. 5. SJoyan. Mas o pecado do homem tudo destrói.
Pe. Gabriel Selong, S.V.D. 2. Os efeitos do pecado
Rio de janeiro, RJ
Hã dentro de cada um de nós uma dupla lei. Não queremos
Tema Principal o mal e é o mal qu'e praticamos. Queremos o bem e praticamos
o mal. Esta experiência foi feita por Paulo, o apóstolo. Ela é
NOSSO DEUS É O DEUS DA VllJA
universal. Pensamos em ganhar a vida, construir a vida na me-
dida em que nos tornamos senhores de nossa história indepen-
Sugestões para a Homilia dentes de Deus. Queremos viver à nossa maneira. Imaginamos
que derrotando e destruindo os outros estamos salvando nossa
httrodução vida. Queremos ganhar a vida através de uma série de empreen-
dimentos e expedientes nos quais nos colocamos em primeiro
O Evangelho deste domingo nos relata a ressurreição da plano. Mais ainda. Nossa maneira de querer viver visa o ime-
filha de jairo, um dos chefes da sinagoga, e a cura de uma diato, o momento presente. Acontece que querendo viver inten-
mulher que padecia de fluxo de sangue. jesus se apresenta como samente não atinamos com o sentido mais profundo do existir.
senhor da vida. Ele não é um curandeiro, mas alguém que des- Queremos trazer um amanhã definitivo que está no horizonte
venda e revela que a destinação do homem é a vida em ple- de Deus para o hoje de nossos momentos. Há um brilho externo
nitude e a libertação de toda sorte de males, principalmente do em nossa vida. Acontece mesmo que pisamos outras existências,
pecado e da morte. destruímos sonhos de vida dos outros, paramos em nós mesmos.
Esquecemos que somos peregrinos da terra da vidà que é Deus.
Corpo Ele é a terra onde correm leite e mel e onde há fontes que po-
derão matar a sede infinita que arde em nós. Muitos de nossos
1. A ânsia de viver contemporâneos fazem seus arranjos existenciais de gozo e de
Todos nós experimentamos uma profunda ânsia de vida. Não fruição do momento presente. Instalam-se no tempo mortal. Tudo
suportamos a idéia do sofrimento flsico que ameaça nossa vida. isso é fruto do pecado, dessa desordem que existe e habita em
Debatemo-nos· com os tormentos interiores e com as dores psi- nós. O pecado individual se associa a um pecado 'social. Vemos

338 339
então estruturas, grupos, organismos que coordenam o mal e O cristi~ni~'?º ~ a fé daqueles que crêem que a última
institucionalizam a morte. Morte que significa muitas vezes im- p~lavr~ da h1stona nao é a morte, mas a vida. Há uma relação
possibilidade de muitos de terem um amanhã melhor, condições m1stenosa entre morte e vida. A morte encerra gennes de vida
desumanas de vida, espezinhamento do homem pelo homem. His- porque d~sde o dia em que a terra recebeu o corpo morto do
tórias de milhões de pessoas são histórias pobres e existências Senhor ficou com sementes de vitória. No coração dos sofri-
truncadas por causa da faina e do ímpeto de grupos a possuírem ?1entos físicos, espirituais, individuais e comunitários a fé cristã
coisas e bens, prestigio e poder. Em nome da vida matam a vida. JO~a m1'.a luz de esperança de vida. Lutamos para que 0 mal
S~J~ .extJrpado da face da terra, mas temos certeza que a plena
3. «Menina, digo-te, levanta-te/> v1tona .sobre a raiz do mal que é o pecado nos é dada somente
Jairo acercou-se de Jesus. Lançou-se aos pés desse Mestre por Cnsto.
itinerante. Sua filha está nas últimas. Há uma atitude de con-
fiança no Mestre. Por detrás desse pedido há uma atitude de Conclusão
fé. Não busca «Um curandeiro». Mas aproxima-se do Senhor
da vida. Aquela mulher que tinha fluxo de sangue toca as vestes Os milagres de Jesus são sinais. Curando o corpo frágil dos
do Mestre. Há uma entrega de sua pessoa confiantemente ao homens c~ama atenção para a salvação eterna que traz. As
Senhor. Ela se sente indigna. Jairo prostrado e a mulher teme- curas re.a_hzadas ~or seu poder querem dizer que os últimos
rosa são modelos de fé. Crêem que o Senhor pode curá-los. te_mpos Jª foram_ maugurados. Marcos insiste que esses sinais
Crêem que a doença e a própria morte não podem dominar nao devem ser divulgados ainda. Eles ganharão seu pleno senti-
esse Senhor que se apresenta como caminho, verdade e vida. do quando chegar o momento da paixão, morte e ressurreição
A menina doente e depois morta, a mulher curvada pelo peso do Senhor.
Frei Almir Ribeiro Guimarães, O.F.M.
de sua enfennidade e debilitada com os sofrimentos do corpo Petrópolis, RJ
são exemplos da humanidade que não pode construir seu amanhã
definitivo. São modelos daqueles que aprenderam a jogar-se em
Deus, daqueles que sabem que nada podem. No coração de
séus sofrimentos experimentam uma incapacidade radical e uma
impotência total de se verem livres de suas limitações. Jogam-
se no Senhor. Ser um homem de fé é construir o hoje e o
amanhã à luz de Deus. É crer que o Senhor que passa pode
curar nossas feridas exteriores e transfonnar nossas lágrimas
em cantos de alegria.
A mulher vai curada e a menina levanta-se e se põe a
andar. O vocabulário do evangelista Marcos é proposital. Há
um dinamismo de vida. O homem que se deixa tocar pela sal-
vação e força que vem do Senhor já não precisa ficar prostrado.
Levanta-se, ergue-se, caminha. Essas expressões fazem alusão
à ressurreição. Dias virão em que o próprio Mestre terá que
enfrentar a dura realidade do sofrimento e da morte. Não tinha
necessidade disso, mas como se tinha tornado homem, tornou-
se homem até o fim. Tornar-se-á um leproso diante do qual
temos vontade de cobrir o rosto. Tornar-se-á feito um galho
seco contorcido e sem beleza. Dando um grande suspiro, sus-
penso entre o céu e a terra, ele, o Mestre e Senhor, enfrentará
também a dura realidade da morte. Ai assim se tornará defini-
tivamente o Senhor da vida. Ressuscitará.

340 341
Décimo Quarto Domingo Segunda Leitura: 2Cor 12,7-10
do Tempo Comum Contexto. O atrevimento e exibição de seus opGsltores, os falsos apóstolos,
levaram Paulo a admitir como razoável o g;oriar·se, não em si como - eles, mas
em Cristo (10,18). No cap. 11, porém, parece lmltá-Jos, assumlndo sua linguagem
Pistas Exegéticas de vangtór!a, contrariando o que censurara, pouco antes, como loucura (11,7).
Mais vezes começa a glorla1-se para, em seguida, desistir, porque percebe que a
insensatez é demasiada (10,7s.J3; 11,5.16.19.21.23.30; 12,1.11) - atitude que é
Primeira Leitura: Ez 2,2-5 "segundo a carne", não segundo o Senhor, allâs uma vergonha (11,21s). Contudo,
vencendo a resistência prõJ!rla-e levado pela paixão, enumera as prerrogativas huma-
nas e divinas (11,21-12,10). Imita seus opositores: comporta-se como um fanfarrão
que procura suplantar os rlvais pelo elogio de si próprio ou pelo insulto e Ironia.
•Quer te ou~am ou não, saberão que há um profeta entre eles. Entretanto, mesmo a titulo de vruiglórfa, acaba dizendo a verdàde, convencendo
com tal expediente literário os amJgos e aniquilando os adversãrlos. Defende sua
A leitura faz parle da longa narrativa da vocação de Ezequiel missão, sua pessoa, diante dos que o acusam. Revela sua orlgem, seus sacriflclGS
(cc. 1-3). Dominado pela magnifica visão da glória divina, o profeta e sofrlmentos, suas visões. e revelaç5es (12,1·9-a): sabe-se que foi" objeto de muitas
outras (At 9,3--9; 16,9; 18,9; ~.18; 27,23; JCor 9,1; 15,8; OI 1,12; 2,2) - algumas
estava prostrado por terra. Mas a voz de Deus lhe ordena que se das quais conhecldas de todos, como a da conversão. Apesar de fa:tar no plura1,
ponha de pé para ouvir o encargo da missão (2,1). Ezequiel sente-se limita-se a descrever uma só visão (vv. 2-4), à qual empresta peculiar importância,
confidenciando-a como algo desconhecido. Não dá expressamente o nome do vidente,
invadido e dominado pela força do espirita de Deus (cf. 3,12.24; 8,3; mas o contexto no-lo aponta claro (v. 7). A visão teve lugar 14 anos antes e, se
11,1), à maoeira dos juízes (jz 14,6.19; 15,14) ou dos antigos profetas, a Carta foi escrita lá pelo ano 57~ podemos situá-la nos anos 43-44, no inicio de
seu múnus apostólico. Ele recorda o tempo-.!.. não a modalldade (no corpo ou fora
Elias (!Rs 18,12; 2Rs 2,16) e Eliseu (2Rs 2,15). C?mo seus pre.de- dele). O "39 céu" designa o lugar onde ueus está e é terminologia astronômica
cessores imediatos (jr 1,7; Am 7,15; Is 6,8s), Ezeqwel tem con:ic•ên- daquele tempo, que dividia o céu em 3 partes: atmosférico, astral e superior
{empJreo). Corresponde ao "paraJso" (v. 3), de sabor mais hebraico (Gn 2,8),
cia nítida de ser um enviado de Deus. Sabe que deve falar aos israe- usado por Cristo como lugar dos justos após a morte (LC· 23,43). Nesse u39 céu"
litas, isto é, taoto aos que ainda se achavam em Judâ aotes da qued.a Paulo ouviu palavras inefâveis ~ue o homem não pode pronunciar (v. 4) e diz-se
incapaz de descrever o que ai contemplou. g o ponto máximo da contemplação
de jerusalém, como, especialmente, aos exilados (3,15). Mas desde logo direta de Deus nesta vida.
a voz previne o profeta a respeito da oposição que sofrerá da parte
desta cnação rebelde~. Esta rebeldia, segundo o profeta (2,3), vem Texto. Depois dessas manifestações, Paulo recua, temendo que o
desde os tempos do Egito (cf. Ez 16 e 20). considerem mais do que é: um homem em Cristo. Talvez ninguém
Diaote do povo insensível aos seus apelos (2,4s), Ezequiel deverâ recebeu tantos dons extraordinários como ele. Em vez de revelar o
apresentar-se como encarregado de uma missáo divina («tu lhes dirás>) seu mundo divino, detém-se em seu mundo humano e fraco. No v. 5
a ser autenticada com a fórmula corâculo do Senhor Deus>. distinguira em si dois homens: - o cristão, que é divino e se apóia
na união vital com Cristo, e - o humano, com suas debilidades. Afirma
Ezequiel a exemplo dos demais profetas, tem certeza de ser um que poderia gabar-se das revelações divinas, mas prefere ufanar-se
enviado de 'Deus. Quando fala não o faz por interesse pessoal, mas de suas fraquezas, que são coisa própria (vv. 5-6). Além disso declara
por imperativo divino. Como outros profetas foi por isso rejeitado : algo importante: perante seus privilégios, para não incidir na soberba,
incompreendido (Ez 33,30-33; cl. Is 6,9s; 28,9-22; jr 11,19-21), po!S como contrapeso, foj...}he posto um como espinho na carne, em voga
a pretensão de falar em nome de Deus é sempre vista com desconfiaoça nos condenados, que o pungisse, - um enviado de satanás para o
por parte do homem. Teve de denunciar o pecado e anunciar o castigo esbofetear (v. 7), quase uma disciplina divina, mas dolorosa. Segundo
(Ez 4-24), e depois reanimar o povo abatido (~ 37), na certeza de exegetas, tal «espinho na carne> seria alusão a uma enfermidade cor-
que o Senhor estava com ele. Teve de lutar sozinho contra a corre~­ poral que o fazia sofrer sobremodo, física e moralmente, impedindo-lhe
teza da opinião pública, acoshtmada a ouvir as palavras agradáveis o bom desempenho de sua missão apostólica; muito se escreveu_ e pouco
dos falsos profetas1 anunciadores de uma ilusória seguraoça (Ez 13). se pode afirmar sobre a natureza dessa doença: lebre? oflalmia? ata·
Só com o passar do tempo, quando os fatos históricos dessem razão ques de nervos? Parece tratar-se da mesma doença de OI 4,13-14.
(Ez 24,25-27; 33,21-22)° a Ezequiel, é que o povo <ficaria sabendo que Padres da Igreja, seguidos por modernos, julgam ver aí expressas as
houve um profeta entre eles» (2,5). perseguições por que Paulo passou. Há quem sugira que o «espinho
Como aconteceu com Ezequiel e outros profetas, haveria de acon- na carne» designaria sofrimentos de origem mística (estigmas?) ou
tecer com jesus. Também ele foi investido pelo Espírito no momento até as tentações da carne. Todas são posições justificáveis.
do seu batismo para anunciar a boa-nova do Reino. Os primeiros a Não é de estranhar-se que o «:emissário de satanás» se coadune
rejeitá-lo foram seus próprios conterrâneos de Nazaré (cf. Me 6,1-6). -com tal «:espinho ou aguilhão ná carne>, já que entre judeus era normal
Somente após os fatos pascais é que a figura de jesus seria reabilitada. · atribuir míticamente as doenças ao demônio (cf. Lc 13,16; jó 2,6s).
De resto, é verdade que o demônio se aproveita de tudo para fazer-nos
Blbllografia: Comentãrlos de W. Z l m m e r 1 i e K. W. C a r J e y. o mal e infundir-nos pessimismo apostólico (cf. 2,11; 11,14; Ef 6,12): O
verbo «esbofetear)!) conota humilhação, desprezo, visando prevenir da
L. Oarmus, 0.F.M. vaidade. Em 1Cor 4,13 Paulo se declara rebatalho da humanidade, espe-
Petrópolis, Rj cialmente se atendermos às suas perseguições e constantes fugas cá e lá.
Paulo pediu por bem três vezes ao Senhor - como jesus no
Oetsêmani (cf. Mt 26,44) - que se lhe tirasse o vexame (v. 8). O n• 3
é número perfeito, indicando pluralidade: «três vezes» é cmuitas vezes>;

342 343
a decisão do Apóstolo, estribada nas palavras do Senhor (12,9), sen-
trata-se de oração habitual e freqüente, visto que as perseguições tam- tença válida para todos: submeter-se sem reservas e com alegria à
bém eram numerosas. Ora cao Senhor», a Jesus glorioso, cheio de determinação do Senhor, fazendo da palavra e vontade divinas a norma
poder sobre as potências do mal (Mt 12,29; Cl 2,15). Assim Paulo e fundamental de vida.
a Igreja rezam a Cristo, coisa pacifica para nós hoje. Entretanto não
sempre o foi: nos primórdios da cristandade, a oração era dirigida BiMiografia: Cf. 11" Domingo do Tempo Comum, Ano B (2ª leitura), p. 318.
de preferência a Deus Pai, sem excluir Jesus Cristo, porquanto os
cristãos são os que invocam o Nome do Senhor Jesus Cristo (At 9,14) P. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
e a Igreja é a comunidade dos que suplicam ao Nome de Nosso Senhor Santa Maria, RS
Jesus Cristo (!Cor 1,2). Não é excluído tenha pedido a graça em três
ocasiões concretas. O Apóstolo questiona o sofrimento e luta por com- Terceira Leitura: Me 6,1-6
preender o sentido de tal opressão, pede socorro. Só na 3' vez é que
aparece a resposta. «Não é -'ele o carpinteiro, filho de Maria?>
1
TodaviaJ tal qual Jesus, houve de aceitar a dura prova, confortado Com a missão dos doze começaJ em Me 6,7ss, uma parte nova do
t com as palavras do mesmo Jesus: «Basta-te a minha graça, pois é evangelho. Há indícios literários de que a primeira parte está incluída
justamente na tua fraqueza que se revela a força em plenitude> (v. 9). entre 1,21-27 (Jesus na sinagoga de Cafarnaum) e 6,1-6 (Jesus na
Resposta sublime que resume a doutrina que se inculcava ao longo sinagoga de Nazaré). Uma sinopse põe estes indícios em relevo:
da carta. «Minha graça» - é o poder divino conferido grahtitamente
para reforçar o espírito e a carne tão débeis. Ocorre aquiJ implicita- Me 1,21-27 Me 6,1-6
mente, a antítese bíblica «carne-espírito>. Paulo sente-se fraco («carne>)
diante de tantos inimigos, por isso clama, corno o salmistaJ pela liber- 1 A (v. 21): Chegaram a Ca- 1 B (v. 1): Saiu dali e foi para
tação de seus inimigos. Cristo, com poderes divinos de Ressusci- farnaum. sua terra. E seus discípulos O
tado, lhe oferece a força de seu Espírito, com o qual poderã vencer. seguiram.
Ê força não da carne mas do espíritoJ não do homem senão de Deus, Aos sábados ia à sinagoga (v. 2) : Quando chegou o sá-
que atua nele e em todos nós, quando o pedimos. Tal graça se torna ensinar. bado, ele começou a ensinar
plena, perfeita, não em si mesma mas em sua dinâmica. Aqui o mi- na sinagoga.
lagre do Cristianismo : realizam-se maravilhas com instrumentos tão insig.. (v. 22) : Ficavam e&pantados Todos que o estavam escutan-
nilicantes - hoje, ontem, amanhã. A vida de Paulo é o que deve com o ensinamento dele ... do ficavam espantados.
ser a nossa. Não admira pois que, ne1a apoiadoJ volte a enumerar com 11 A (v. 23) : Estava na sinagoga 111 B: Diziam:
júbilo suas fraquezas para gloriar-se delas (v. 10); confia alegre na deles um homem com um espí- a': <Donde lhe vem isso?
força do Senhor que ampara a sua fraqueza, levando-o a dizer: eJá rito imundo que gritou : «O b': Que sabedoria é essa que
não sou eu, é Cristo que vive em mim; a minha vida presente na que tens tu conosco, Jesus Na- lhe foi dada?
carne, eu a vivo na fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou zareno? . . . Eu sei quem és: e': E estes milagres que se fa-
por mim> (GI 2,20) ou <Tudo posso naquele que me dã força> (Fl 4,13). o Santo de Deus!> zem por suas mãos?»
Com efeito, tais palavras servem de fundo pálido para real!ª' a
imagem do poder de Deus, que age pelo Evangelho para saJvaçao de 111 A (v. 27): 11 B (v. 3): <Esse não é o
todo o fiel. O· v. 10 amplia a lista das fraquezas de Paulo, de aspecto 1. Todo o mundo ficou admi- marceneiro, o filho de Maria,
moral próprias de quem é perseguido. As doenças corporais não figu- rado irmão ... ?> (etc.). E se escan-
ram 'expressamente, apenas como humilhação ou obstáculo à missão. dalizavam dele.
No desfalecimento humano de Paulo se patenteia o poder de Cristo e 2. e até perguntaram uns aos (v. 4) : Jesus porém lhes dizia:
do espírito. Quanto menos capaz, mais forte éJ porque aí intervém outros: «É só mesmo na sua terra ...
o Espírito de Cristo com sua força e poder. «Habite em mim>. . . como a: <Que é isso? que um profeta não é bem
o nuvem repousava sobre a Arca ou no Templo. A história de cada b: um ensinamento novo recebido».
santo ou apósto1o ostenta esta presença do Espirito e força de Deus e: e com autoridade I» (v. 5) : E ele não pôde fazer
no homem. Paulo é paradoxal: vive e sofre no mundo presente, mas nenhum milagre ali... (cf. e).
participa também do celeste e não se afasta de Cristo. (v. 6) : Ele se admirou da falta
Paulo sabe e entende pela fé que Deus é o autor e doador da de fé deles.
vida. Ora, a doençafmorte são o oposto da vida. Se Deus é o senhor Qual a significação ou função destas pequenas passagens dentro.
da vidaJ não a destrói. Logo, a doença/morte não prov-ém de Deus,
mas de satanás. Deus permitiu semelhante contrariedade para que PauloJ do Evangelho de Marcos, dentro da perspectiva teológica própria deste-
tão dotado não se ensoberbecesse. Até satanãs e o mal servem aos Evangelho? Precisa-se de um pouco de história da redação, prestando-
se atenção aos de.talhes e às pequenas diferenças.
planos divi~os e contribuem para a sa1vação dos homens: «Todas as
coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus> (Rm 8,28). 1 A + B: Em comparação com 1 A a introdução de 6,1-6 (/ B)
O v. IOb - <Quando sou fraco, então é que sou forte> - repete realça a presença dos discípulos. Eles foram eleitos em 3,13-19 e serão.

344 345
enviados em 1D1ssao Jogo depois, em 6,7-13. Comparando-se 6,7-13 com
1,21-27 e 6,1-6 vê-se Jogo que nestas passagens Jesus é visado como Para crer ou não crer n'Ele; para participar ou permanecer fora do
protótipo do missionário cristão. O • êxito de Jesus é o êxito dos dis- Reino de Deus que estâ chegando· na Sua pessoa.
cípulos (6,13: «eles expeliam muitos demônios [cf. l,23-26.27c] e..• lJl A: Esta parle descreve o suspense em que os ouvintes se vêem
curavam a muitos enfermos [cf. 6,5b]»). Os insucessos de Jesus c!:'locados por Jesus. É uma situação de admiração (1) e de interroga-
(6,4-5a.6a) são os insucessos deles (e!. 6,11: cSe em algum lugar çao (2). Nesta passagem inicial do evangelho o evangelista fica ·nisso.
não vos receberem, nem vos escutarem ... J.). A missão· dos discípulos ~o que se segue, apresenta os dados que encaminham a resposta.
é uma iniciação na sorte do Mestre ou, então, um treinamento para • Jil B e 11 B supõem tudo que separa 1,21-27 e 6,1-16. III B parece
segui-lo. A passagem reveste-se pois de um significado basilar. Codifi- igual a III A. Mas os detalhes são importantes. 1IJ A a: «Que é isso?>
cando a história de jesus e de seus discípulos o evangelista apresenta 1II B a: «Donde lhe vem isso?> Os leitores do evangelho acabam de
uma teologia da missão da comunidade e da Igreja à qual ele per- ler, por exemplo, a passagem de 3,22-30 que contém a alternativa: Jesus
tence e na e à qual ele escreve. A atividade missionãria da década de age no poder de Satanãs ou do Espirito de Deus? E eles os leitores
sessenta a setenta depois de Cristo é revista e interpretada à luz da são motivados para crerem que Jesus age no poder do Espírito. Em
pregação e da sorte de Jesus. Procedendo deste modo o evangelista l~I A b preserva-se a tonalidade da constatação: «Um ensinamento novo,
sugere e mostra que Jesus continua presente na pregação contempo- diferente daquele dos escribas» (cf. J,22s). Os leitores que crêem já·
rânea do Evangelho. . . e naquela de todos os tempos! sabem a resposta à pergunta de J1l B b': Que sabedoria é essa que
«Ficavam espantados>. A frase é literalmente a mesma em J A lhe .foi dada?» Eles acreditam que ela lhe foi dada por Deus. O mesmo
(v. 22) e 1 B (6,2). O verbo plessein significa bater, atingir (e!. Ap apl!ca-se a JJl A e e III B e': os milagres ou as <forças» são forças
8,12). O verbo ekplessein, usado· em sentido metafórico, significa ferir, divmas.
chocar, espantar e no reflexivo ficar fora de si. No contexto de 1,22 Marcos, porém, repete as perguntas de III A em lJl B, colocando-as
e 6,2 o uso deste verbo indica que a figura de Jesus e a doutrina na boca dos nazarenos para contrastá-las com · a pergunta que estes
dele questionam o auditório e exigem uma tomada de posição. Pode fazem: «esse não é um de nós . .. ".um marceneiro sem instrução?» «Os
ser .uma posição a favor ou contra ele, mas exclui-se uma atitude contemporâneos de Jesus não crêem, porque csabe"ll» - pretendem
neutra. saber - a resposta e... se escandalizam. Esses nazarenos e conterrâ-
II A: A presença de Jesus «ch-0ca» também os espíritos imundos. neos de jesus fazem, pois, o contrário do que fez o espírito imundo de JJ A,
Eles se revelam e ... revelam também quem é Jesus. cEu sei quem és: mas... com o mesmo efeito! O demônio separa o sagrado do priífano,
o Santo de Deus!» O espírito imundo sabe (cf. 1,27 - III A 2: os evidenciando o divino e exclamando: «0 que tens tu conosco, :Jesus
ouvintes não sabem, mas perguntam-se!). Ele não se admira, nem se de Nazaré?> (1,24). Os nazarenos separam ·o sagrado do profano o
pergunta, tampouco reage com fé ou descrença, mas «desmascara» jesus, divino do humano, dizendo: «Ele é nosso, Ele é nazareno como ~ós!
por assim dizer. Jesus de sua parte não entra em diálogo com o espí- Não acreditem nisso, não, que E~e é um homem fora do comum!»
rito imundo, mas logo o expulsa. Por que motivo? Porque a declaração l!rocedendo desta maneira tambémt eles dissolvem a ambigüidade_ e a
dele não é uma confissão mas uma denúncia. Esta denúncia da parte do lndole paradoxal da personalidade de Jesus e desarmam o processo
espírito imundo não é livre mas forçada e Jesus exige uma adesão livre. histórico da encarnação do sagrado no profano, do divino no humano
Ora, a própria liberdade da fé supõe a ambigüidade da personalidade que Jesus inaugura. Cf. <E Ele não pôde fazer nenhum milagre ai»
de Jesus. E esta ambigilidade é inerente ao fato de que Ele é Deus (6,5a).
e homem ao mesmo tempo. A sua humanidade esconde e ao mesmo II B (v. 6): Agora é a vez de Jesus ficar admirado (cf. III A 1).
tempo revela a sua divindade. E, seja dito Jogo, na teologia de Marcos A sua própria gente é tão obcecad_!i e «possessa» pelas suas evidências
é assim: quanto mais a divindade se esconde por trás da humanidade míopes que a figura, a doutrina e os milagres de Jesus não a conseguem
de Jesus tanto mais ela se revela. A primeira confissão clara e autên- «atingir», <chocar». Percebe-se um certo clímax na atitude dos naza-
tica da divindade de Jesus (15,39) segu.e, em Marcos, às palavras renos: «Todos ficavam espantado&» (J B); <0Eles ficaram escandalizados
<Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (Me 15,34). com Ele> (II B); <(Ele ficou adrtlirado ºfoi com) a descrença deleS»
(II B, v. 6).
Ora, o espírito imundo está altamente interessado em dissolver a
ambigüidade, o caráter paradoxal, de Jesus e em desencantar seu mis- ' Aqui, no procedimento dos· nazarenos, encontra-se o ponto nevrál-
tério. Ele somente ganha em separar as coisas e distinguir bem o pro- gico da passagem. Colocados diante do mistério da personalidade de
fano do sagrado. Porque esta distinção e separação desarmam o pro- Jesus (isto é, diante de /II B e II B ao mesmo tempo), o dissolvem,
cesso histórico de encarnação do divino no humano que Jesus está enquadrando jesus nas categorias familiares de suas costumeiras idéias
inaugurando. Separando o sagrado do profano e o divino do humano acerca de Deus, dos homens e do mundo (// B). Eles não se deixam
a religião e a vida se tornam comportamentos estanques: a religiã~ atingir por novos dados (JIJ B). J~sus, porém, .não se deixa enquadrar
torna-se uma presença meramente simbólica, relegada a um recinto sa- nem nas categorias da experiência humana - das ciências ou da fi1o-
grado {«na sacristia»!) e urna superestrutura que não <atinge>, não ~fia -, nem nas categorias que a história d3. religião oferece. Jesus
cchoca» os homens. E a infra-estrutura ou o domínio do demônio ~scapa a ambas porque pertence a ·ambas de um modo superior e novo.
permanece <inatingido> e ele se mantém no poder (cf. Me 3,22-27). Jesus . o que o evangelista fez para ó seu tempõ e ambiente é tarefa con-
expulsa os demônios e, com isso, devolve aos possessos a liberdade tinua da Igreja: rever-se e sua missão à luz do evangelho e da me-
mória de jesus. A religião cristã 'Dão consiste em construir e manter
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347
1
. 1

uma fachada que enfeita o nosso mundo com recintos sagrados e sinais muito preocupada, porque todos sabiam que ele, além de ini- i
religiosos e cristãos, nem em variar o ritmo da vida com certas c~le­ bido e pouco falador, era muito medroso. Podia acontecer de
brações esotéricas e manifestações públicas religiosas que deixam o tudo. Por isso, a surpresa total, quando, depois de muitas horas
próprio mundo, isto é, o homem e a sua história inatingidos (e!. MI
7,21-23; Lc 13,25-27; 6,46 e textos do AT como jr 7,4 e contexto). de tensão, ele foi solto e chegou, correndo e sem fôlego, à turma,
De outro lado, um secularismo radical que identificasse a religião cristã gritando: <<Ê vert;ladel É verdade!» - O que era verdade? -
e a reduzisse a um puro humanismo esvaziaria o mundo e a história «Ê verdade o que. Jesus falou, que não devemos ter medo,
humana de sua inspiração revelada. feita história em jesus de Nazaré, quando somos levados diante dos tribunais, e .nem devemos
o Verbo de Deus feito homem, en,camado, que estã presente e atua pensar no que falaremos, porque será o Espírito Santo que fala
de um modo misterioso e por isso paradoxal e amblguo através da
Igreja, dos sacramentos, do clero, ·dos religiosos e leigos. e não nós mesmos (cf. Me 13, 11). Foi o que aconteceu. Eu
Na teologia desenvolvlda entre' 1,21-27 e 6,1-6 o evangelista des- sou um medroso e não sei falar. Mas falei tão bem que ninguém
linda bem claramente o que vem a ser a religião cristã. Encerra entrar pôde contra mim, e não souberam fazer outra coisa, senão
no processo histórico que jesus inaugurou; é participar da sorte d'Ele soltar-me».
e ir, o Seu caminho, que é o do divino no humano, do sagrado no
profano, do transcendente no imanente; em outras palavras é o caminho Corpo
da <secularização> do Reino de Deus e da <Santificação» do mundo
e do homem. Esta aproximação dinâmica dos dois pólos ganha a sua Foi no Brasil, não há muito tempo, qne um homem, que eu
expressão mais mordei:ite em 3,35: «Eis minha mãe e meus irmãos.
Todo aquele que faz a vontade de Deus é meu irmão, minha irmã e encarava como um dos mais corajosos e engajados na defesa
minha mãe.. tl difícil dizer se é por acaso ou por composição literã- dos oprimidos, me confiou, com toda a simplicidade e franqueza:
ria impllcita ou explicita que entre 1,21-27 e 3,22-30 de um lado e «Para dizer a verdade, eu sou, por natureza, medroso e até
entre. 3,31-35 e 6,1-6 de outro lado há mais ou menos um mesmo covarde. Mas a coisa me pegou e não me larga mais. É algo
número de versiculos. Mas a unidade literária 3,20-35 estã bem no centro que me leva. Não sei o que é. É algo mais forte do que eu».
das duas passagens (1,21-27 e 3,22-30: Jesus e os demônios; 3,31-35
e 6,1-6: jesus e os parentes), como o cume de uma pirâmide, onde Lembrei-me de Jeremias, o profeta cansado, que se sentia
os extremos se tocam. seduzido e abusado; e que estava farto de falar em nome de
Os dois aspectos que estão ~m jogo podem ser resumidos ria Deus. E disse: «Eu não me lembrarei mais dele, nem falarei
frase: a sacralização ou santificação do mundo efetuar-se-á pela secula- mais em seu nome. Mas aí ficava no meu coração como um
rização do Reino. Esta dialética encontra uma confirmação nas duas
versões do mesmo dito de jesus: «Sede perfeitos como vosso · Pai fogo abrasador, que devorava os meus ossos» (Jr 20,9). Quando
celeste é perfeito> (Mt 5,48); «Sede misericordiosos como também vosso chamado para denunciar a injustiça e o pecado, ele tinha pro-
Pai é misericordioso> (Lc 6,36; cf. Lv 19,1 e as ações que se motivam testado: «Ai, Senhor Deus, tu bem vês que eu não sei falar,
neste adágio: Lv 19,11-13). Também São joão combina os dois aspectos, porque sou uma criança» (Jr 1,6). Tal qual Moisés; que, cha-
escrevendo: «Como tu me enviaste ao . mundoJ também eu os enviei mado para libertar o povo, relutou igualmente: «Perdoa, Senhor,
ao mundo. Santifico-me por eles, para que também eles sejam santi-
ficados pela verdade. (Jo 17,lBs). : eu não fui nunca bom falador, e desde que tu falaste com teu
servo, minha língua está mais embaraçada ainda» (Ex 4, 10).
B/bUograjia: Além de comentários, especlaJmente: E. O rã s ser, Jesus 'ln
Nazaretb (.M.ark 6,l-fla). Notes on the redactlon and theo1ogy of St. J;lru-k, em N'fS
E quantos outros profetas não recuavam diante da missão árdua
16 ( 1969), 1-23. . e arriscada de denunciar os males e os abusos na «cidade dos
Raul Ruijs, O.F.M. homens»!
Petrópolis, RJ Para todos eles, Deus se põe como garantia: Não penses
que depende de ti. Eu estarei contigo. Dizes que não sabes falar?
Sugestões pàra a Ho~Jla Mas, «quem fez a boca do homem? ou quem formou o mudo
Introdução e o surdo? quem dá a vista ou a cegueira? Não sou eu? Vai,
pois, e eu estarei na tua boca e te ensinarei o que deverás
Foi na China, no tempo logo depois da conquista comuniS- dizer» (Ex 4,11-12). Assim Deus falou a Moisés. E assim ele
ta, durante a perseguição cerrada contra a Igreja, e de modo fala a todos os profetas, Jeremias, Isaías e todos os outros, e,
especial contra a legião de Maria, que mais empenho havia pela na leitura de hoje, a Ezequiel. Ezequiel também era um homem
fidelidade a Roma. Um rapaz foi preso, e a comunidade ficcin comum, com medo e inibido. Mas Deus o levanta sobre os seus

348 349
na sua pátria e na sua família, não aceito e até rejeitado e
pés: «Filho do homem, põe-te de pé e Eu falarei contigo. Eu
morto pelo que era seu, realizou a salvação dos seus. josé de
te envio aos filhos de Israel. . . filhos de semblante duro e de
Egito. jesus de Nazaré. Todo profeta chamado por Deus. E
coração indomável, e tu lhes dirás: Isto diz o Senhor Deus»
uma constante e parece uma lei: pelo fracasso humano vem o
(Ez 2,3-4).
êxito divino, ou, pelo menos, na fraqueza humana realiza-se a
Nenhum profeta deve pensar que o êxito de sua missão força divina.
depende dele. Onde existe este perigo ou tendência, Deus pro- Assim, se não há motivo de vanglória, também não há
videncia algum «remédio» preventivo, como no caso de Paulo, o motivo de desânimo. Não está ai a mensagem para todos nós?
apóstolo - profeta fogoso e atrevido, que confessa: «Já que Não somos todos nós, Cristãos, chamados a testemunhar, a falar
as revelações eram extraordinárias, para eu não me encher de e a agir em nome de Deus, na cidade dos homens? Não há na
soberba, foi-me dado um aguilhão na carne - um anjo de sa- vida de todos nós 'aqueles «momentos proféticos», em que Deus
tanás para me espancar. Três vezes pedi ao Senhor que o afas- nos chama a salvar ou defender, ajudar ou assistir algum ser
tasse de mim. Respondeu-me, porém: Basta-te a minha graça, humano, algum irmão, ou algum grupo de irmãos, que vêm so-
pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder» frendo injustiças, desprezo ou opressão seja de que tipo for?
(2Cor 12,7-9).
Nesta últ.ima palavra temos a chave da força de toda pro-
fecia, como de toda ação de Deus na história humana. Não Conclusão
na grandeza humana, mas na sua fraqueza e humildade, revela Aí, não podem.os recuar, alegando que somos fracos, sem
Deus o seu poder. O que é loucura no mundo, o que é fraco, jeito ou sem coragem. Pois é justamente em tudo isto que Deus
o que é vil e desprezado, e o que não é, Deus o escolhe, a fim realiza e cumpre o seu Reino, sua promessa de libertação e sal-
de que nenhuma criatura se possa vangloriar diante de Deus vação. Mesmo que haja contradição, ou melhor, justamente quando
( cf. 1Cor 1,27-29). Podemos ver esta mesma «política» de Deus há contradição, é que devemos firmar a nossa atitude, lembrando-
em todos os profetas, seus eleitos, desde Abraão e Moisés, até nos de todos aqueles e aquelas que, com toda a sua fraqueza, se
a pequena figura da «Serva do Senhor», que exclama e canta: entregaram e se dedicaram à missão cristã no mundo, não se
«Ele olhou a .humildade da sua serva» (Lc 1,48), e até o pró- valendo de si mesmos, mas também não duvidando da ação e
prio Filho de· Deus, que desceu na mais profunda humilhação da força divinas. Sabendo que para Deus não existe o fracasso.
da cruz e da morte. A fim de que nenhuma criatura, nenhuma Que para Ele fracasso e vitória são uma coisa só. Que o fra-
carne se glorie diante de Deus! casso mais profundo foi o êxito definitivo do plano de Deus:
Mas também, garantido e firmado este ponto, que não é a a cruz de jesus Cristo, transformada em ressurreição!
criatura, não é o homem que pode realizar alguma obra de
Deus, dá-se a· segunda volta da chave: a garantia de que a A. van den Berg, C.M.
obra de Deus se realizará. Com o que é loucura no mundo, ,· Belém, PA
Deus confunde o sábio; com o fraco confunde o forte; com o
que não ê reduz a nada o que é (cf. !Cor 1,27-28). Eu estarei
contigo. Minha palavra na tua boca. Nenhum dos vossos adver-
sários poderá Jesistir, nem contradizer.
Se, por um lado, o profeta chamado não deve pensar que
é a sua própria força que consegue alguma coisa, pelo outro
lado, não deve jamais duvidar do êxito da missão. Ele pode
não ser aceito na sua pátria. O próprio jesus conheceu esta
experiência (Jo 1,10-11), e falou neste sentido (cf. Mt 13,57;
Me 6,4; Lc 4,24; j o 4,44). Mas também o próprio jesus, mais
que qualquer outro profeta, viu, através do mais total fracasso,
realizar-se a grande obra, o grande plano de Deus. Sem honra
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Décimo Quinto Domingo ". ' O profeta é sempre, -e antes de tudo, um homem chamado e enviado
por D~us para falar em seu nome ao povo. Corno taJ, · sempre· toma
do Tempo Comum o partido de Deus, permanecendo livre para criticar e denunciar o• que
l'istas Exegéticas há de erra~o nas instituições civis, religiosas e sociais. Em nome de
Deus anuncia as suas intervenções punitivas ou salvíficas na história
Primeira Leitura: Am 7,12·15 humana, «porque o Senhor Javé nada faz sem revelar o seu segredo ·aos
profetas, seus servoS» (Am 3,7). Por isso os profetas continuam sendo
«Vai, .e profetiza ao meu povo de Israel!» aind~ hoje, incômodos tanto diante da Igreja, como diante da sociedade:
~ontinuam sendo expulsos, perseguidos ou mortos numa tentativa -des-
O texto que hoje lemos, do Profeta Amós, foi inserido no contexto tinada ao fracasso, de impedir que Deus seja o Senhor da História
das cinco visões do profeta (7,1·3.4-6.7-9; 8,1-3; 9,1-4). Estas visões dos homens.
mostram o amadurecimento de sua vocaçã-0 profética. Jnicialmente, Amós L. Garmus, 0.F.M.
reluta diante de Deus que o chamava, e lhe comunicava seu plano de Petrópolis, RJ
punir Jsrael pelos graves pecados (7,2.õ). Mas aos poucos compreen..
de que a infidelidade do povo, a violação dos .direitos humanos, era Segunda Leitura: Ef 1,3-14
tão grave, que não tinha mais cura: «Caiu, e não se levantará mais
a virgem de Israel>... (5,2). <Chegou o fim para o meu povo de As c~rtas de Paulo logo após a saudação têm uma ação de graças
Israel> (8,2). ou um hmo. A segunda leitura da missa de hoje é justamente o hino
Tendo entendido esta terrível ameaça que pairava sobre Israel, Amós introdutório da carta aos efésios, que de modo poético e sucinto, re-
não pode deixar de falar: «0 leão ruge, quem não temerá? O Senhor SJJme toda a história da salvação. O texto pertence ao gênero literário
Javé fala, quem não profetizará» (3,8)? Foi por isso que ele deixou das bênçãos (cf. 2Cor 1,3; !Pd 1,3) muito freqüente na liturgia judaica,
sua terra natal, Técua, a uns 20 km ao sul de Jerusalém, em Judá, e bastando !embrar que a principal oração dos judeus são as <18 bênçãos>.
i dirigiu-se ao Reino de Israel, onde começou a alertar as a ·.itoridades No próprio Novo Testamento encontramos outros sinais desse costume
1.
e o povo para o iminente castigo divino. De : nada mais adiantava nos hinos de Maria - Magnificat e de Zacarias - Benedictus.
refugiar-se nos ,dogmas fundamentais da eleição de Israel: cDentre O conteúdo do hino é uma meditação sobre o terna «Deus· e1n
todas as raças da terra só a vós conheço; por isso vos castigarei Cristo». Estil~sti~a e gramaticalmente o texto divide-se na parte mais
por todas as vossas iniqüidades» (3,2) . • . «Acaso não sois vós para longa e meditahva, que se refere_. ao «nós» e os últimos dois versí-
mim, ó filhos de Israel, como os cuchitas? - oráculo do Senhor. culos que se referem a «VÓS», em .forma de alocução. Deus é o sujeito
Se tirei Israel do Egito, não tirei também os iilisteus de Caitor, e os dos verbos, sua ação porém está marcada pelo ·«em Cristo» e é objeto
sírios de Quir?» (9,7). De nada valem a prática· cultuai, os sacrifícios, ~e <lo~vor e glória> nas doxologias (vv. 6.12.14). A bênção de Deus
as visitas aos santuários (4,4-5; 5,4-6.2ls), pois- o que Deus quer é e. considerada nos seus aspectos- sucessivos ainda que não cróno-
que «jorre a ecjüidade como a fonte e a justiça como torrente que lógicos, e inseparáveis: eleição (v. 4); prede~tinação (v. 5); redençâo
não seca» (5,24). (':'.. 7); recapitulação (vv. 8-10); herança (1 J) dom do Espirito (v. 13).
No entanto,: o sacerdote Amasias, a serviço ·do santuário real de Sao termos do vocabulário da Aliança do Antigo Testamento que Paulo
Betel, permanecia surdo às denúncias das injustiças (2,4-16; 3,10; 4,1-3; retoma e refunde passando da idéia de povo de Deus para ~ de Igreja
5,7.10-12 etc.). Mostrava-se mais preocupado com a inviolabilidade dos Corpo de Cristo. · '
dogmas tradicionais. Temia perder o seu cargo no santuário rea]. Por
Todas as bênçãos têm sua origem em Deus, por esta razão Pàulo
isso denunciou Q profeta diante do rei: «Amós conspira contra ti no
meio dos israelitas:. (7,10). Depois, talvez receando que Amós fosse, se. eleva ao plan? celeste, ~ .. lá se mantém em toda a epístola, 1;20:
apesar de tudo, um verdadeiro profeta (c!. Dt 18,15-22), resolve expulsá- Cnsto; 2,6: lgre1a; 3,10: f1e1s; e até os espiritos maus (6,12) para
demonstrar o caráter radical da vitória de Cristo. Ê o Deus não- só
lo do país, antes que Jeroboão o mandasse matar (7,12). Amasias con- criador, mas o Deus Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo que ~os aben-
sidera Amós um dos tantos «VidenteS» ligados* aos santuários, vivendo
ço~. ~aulo nos ass.?ci~ à confis~ão _de fé na Filiação divina de Jesus,
às custas das esmolas do povo que os vinha consultar. Como ousava e indica que as bençaos em nos sao fruto da ação do Espírito ..1 por
Amós, um estrangeiro, ganhar o pão no santuário real de Betel, e ao conseguinteJ bênçãos espirituais. '
mesmo tempo anunciar a morte do rei e o exilio do povo (7,11)?
r• Amós, porém, nega pertencer aos profetas profissionais que viviam ELEIÇÃO: Fomos chamados desde sempre para uma vida santa
em corporações, tão numerosas no tempo de Elias e Eliseu (e!. lRs no amor, dom de Deus para conosco (Rm 5,5) e resposta nossa ao
seu do_m. O amor é a fonte das bênçãos divinas, porque por nós mes-
18,19; 2Rs 2,1-7.15-16; 4,38 etc.). Ele não precisava ser um profeta
deste tipo para viver. Ele tinha duas profissões: era pastor e cultiva- mos nao merecemos nada. Jesus não é a origem da nossa eleição, mas
quem nos deu a conhecer. .
dor de sicõmoros (Am 7,14). ErivDeus que o chamava e o mandava
profetizar. Pot isso, contra Amasias que tentava cercear a palavra · . PREDESTINAÇÃO: E sublinhada a iniciativa divina como absoÍuta.
divina csubverslva~ e se julgava com o direito de indicar a Deus a Eleitos,.. somos predestinados a ser filhos, o que aumenta nossa res-
maneira e o lugar de se revelar ao povo. Amós anuncia uma punição po~sabil!dade. Em swna ser santo ê viver como filho de Deus se-
toda especial (7,16s). gumdo o modelo de Cristo Deus fixou o ponto de partida e o· de

352 353
chegada da nossa ação, ser filhos em Cristo, filhos no Filho, um com três pessoas divinas. E o homem novo que constitui esse povo adquirido
Ele (OI 3,28).
O verslculo doxológico (v. 6) conclui o plano de Deus antes de (Tt ~.14; lPd 2,9 eco de Ex 19,5; Dt 14,2) é o objeto de todas as
bênçãos de Deus. ·
sua realização em Cristo, e mostra que tudo é dom, cgraça». A essa
graça, forma concreta de percebennos Deus, devemos louvor e glória. Bibllogra/ia: H. C o n z e 1 m a n n - O. F ri e dr 1 eh Epistolas de Ia Cautividad
Pelo seu louvor o homem rende graças ao Deus que tudo lhe dá. Não Madri 1972; H. Se h 11 e r, Lettera agll Efesinl, Bré'scla 1972· i\1. Z e r w 1 e k'
que·. a glória de Deus possa ser aumentada, mas que ela deve ser La Jettera agll Efesini, Roma 1966. • '
mamfestada no homem que o reconhece como Deus e o louva. A glória Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
de Deus é o fim da sua obra. Paulista, ,pE
REDENÇÃO: Trata-se do fato histórico do Cristo que derramou seu
sangue na cruz, nos redimiu e remiu nossos pecados. O texto lembra Terceira Leitura: Me 6,7-13
Cl 1,14.20 e est~ ligado à tradição da Ceia, csangue da aliança der-
ramado por mmtos> (Mt 26,28) e do gxodo (Ex 24 8) símbolo da «Sacudi a poeira dos pés' em testemunho contra eleS»>
libertação plena em Cristo. O pecado é mostrado com~ ~ fato real
que causou o espargimento do sangue de Cristo. Na Pista Exegética de Me 6,1·6 (cf. Domingo passado!) já explicou-
RECAPITULAÇAO: A graça de Deus entre outras realidades nos se que, ao escrever a missão dos: doze, a atuação de jesus serviu de
revelou o mistério de sua vontade, isto é, que seríamos salvos em modelo. Resulta de uma comparação dos dados deste passo com aquilo
Cristo, e que Cristo se tornaria o cabeça do universo: Nele tudo serã que precede. Os doze recebem o poder de Jesus sobre os maus espí-
plenificado e recapitulado. O mundo criado será regenerado por Cristo ritos (6,7c; cf. 1,27; 3,15 etc.). Jesus não foi bem recebido em Nazaré
e reunido sob sua autoridade para ser levado a Deus. A revelação, (6,1-6); o mesmo pode acontecer- aos apóstolos (6,11). Os apóstolos
que: ·como fato histórico manifesta .uma resolução transcendental em pregam a conversão (6,12) como Jesus (1,14-15). Expulsam como 'Ele
Cristo chega à pleuitude, tanto enquanto ele pela encarnação é ~eali­ (cf. 3,22) os demônios (6,13a) e curam como Ele (e!. 6,5b) os doe11tes
zação plena da promessa vétero-testamentária (Gl 4,4), como o que (6,13b). Sem negar a historicidade desta missão, pode-se dizer ,que
inaugur~ pela ressurreição, o novo tempo da 1greja, que chegará à nos elementos citados transparece inais a teologia-de-missão do evarige-
plenitude quando Deus for tudo em todos (!Cor 15,28) recapitulando l_ista Marcos.
() mundo em Cristo. Contato com dados históricos encontra-se com maior probabilidade
HERANÇA: O povo de Israel considerava-se herança de Deus (Ex nos elementos próprios desta passagem, isto é, nos versículos 8-11. Eles
34,9), e Paulo alarga o horizonte afirmando que a nova herança acon- admitem duas interpretações, uma que se pode chamar de «escatológica»
tece em Cristo, e se inclui, como membro da nova herança, a Igreja. e outra de «frànciscana». Esta última focaliza a pobreza evangélica que,
Não é de se excluir, porém, a herança como algo que o cristão rece- livre de preocupações terrestres, se dedica integralmente à causa - do
berá de Deus. No Antigo Testamento era a terra prometida (D! 3,18), Evangelho, confiando na providência de Deus e na bondade dos homens.
no Novo Testamento é o céu (Rm 8,17; Gl 3,29; 4,7) do qual o A interpretação escatológica deduz das palavras de Jesus que se
Espírito Santo é o penhor (v. 14). trata de uma missão de grande urgência. Como outrora Giezi, o servo
O texto não deve ser entendido como se o «nós» se referisse aos de Eliseu, na sua missão de vida: ou de morte (2Rs 4,29), assim os
judeus, mas como o «nós> sendo os judeu-cristãos. A eles foi pregado apóstolos devem preocupar-se somente com o essencial. Mantimento e
inicialmente o Evangelho, e feita a nova promessa de herança, mas de ~estuário são coisas secundârias; no momento urge é pregar a conversão
modo nenhum foi excluído o «VÓS» a quem se deveria anunciar a pro- ao Reino de Deus que está chegando, antes que seja tarde. Não receber
messa, em seguida (At 13,36). ós emissários desta mensagem e não lhes prestar atenção têm conseqüên-
'A doxologia do v. 12 conclui a realização histórica da vontade sal- éias escatológicas que Marcos evoca nas injunções: «Saiam de lá, ,ba-
vijica de Deus, quanto aos judeus que esperavam o Cristo. O verso tendo o pó que ficou na sola do calçado. Isso serã um testemunho
sêguinte porém abrirá a perspectiva desta esperança, mostrando que contra eles». Pela retirada dos apóstolos os incrédulos são entregues
iodas os homens esperavam a salvação e que Deus não faz -acepção à sua própria sorte. Em não fazencl!) caso da pregação apostólica podem
de pessoas (At 10,34). ter perdido a última chance de participar do Reino. O gesto de ·até
ESPIRITO SANTO: Certamente a doação de seu próprio Espírito bater o pó do calçado chama atenção pela seriedade do comporta-
.aos;. homens é a bênção, o dom maior que De.us pode dar ao homem. mento deles: rejeitando os enússários, estes os privam de qualquer
Os gentios são convidados a participarem da promessa feita a lsrael, vestigio de esperança. Até o pó que fica na sola do sapato é conta-
' '!'inado e <Poluído~ por este gesto· de rejeição e se torna terra conde-
e recebem o Espírito Santo (At 11,44) que seria derramado sobre os
filhos de Deus (JI 3,1-5). O dom do Espírito coroa a execução do nada. No dia do juizo este gesto será alegado contra eles como tes-
desígnio de Deus e é uma garantia, uma caparra (2Cor 5,5), um selo temunho do descaso e da incredulidade deles. L
(2Cor 1,22), talvez melhor um pregosto da herança definitiva que virá
Bibliografia: AJêm de comentários, especialmente: H. S t r a t b m a n n, o ver•
em plenitude na parusia. _ bete "martús", em Tb,VzNT 4 (1942), 477ss; F. H a u e k .. S. Se h u 1 z, o
· Se na primeira parte do hino o centro era a ação de Deus em verbete "poreúomai", em: ThWzNT 6 (1959), 577ss.
Cristo, nesta parte final o centro é o homem, objeto da atenção das Raul Ruijs, O.P.M.
Petrópolis,- RJ
354 355
Sugestões para a Homilia Jesus oferece uma libertação radical que representa a possi-
Introdução bilidade de uma vida nova já presente neste mundo. Jesus foi
enviado para reintegrar os pobres e pequenos, os marginalizados
Na pluralidade das idéias e notícias, no surgimento de novos e perdidos, os miseráveis e fracassados, os doentes e oprimidos,
profetas, no diálogo com os diversos humanismos, no contato os ofendidos e humilhados, os esquecidos e explorados, numa
com novas religiões, na proliferação de seitas e misticismos, na só família como irmãos e amigos, amados pelo mesmo Pai.
convivência com pessoas que não compartilham a fé cristã, é Jesus veio para ser irmão, amigo - próximo de todos.
necessário fazer uma pergunta fundamental: «Ü Filho do Homem veio procurar o que estava perdido»
Para que Cristo veio ao mundo? Para que serve a Igreja? (Lc 19,10). É o programa, o leitmotiv de toda sua vida e pre-
Qual é o papel do cristão em nosso tempo? gação. Jesus assumiu esta missão numa fidelidade. total ao. Pai
e aos homens dentro do contexto histórico de sua época. Pela
Corpo ação corajosa e coerente, Jesus provocou o drama da incom-
preensão, do conflito, da oposição, da cruz.
!. A missão de jesus
, O projeto de Deus em relação ao homem é liberdade, dig- 2. Vocação da Igreja - missão do cristão
nidade, salvação. Deus quer que o homem seja feliz como Ele Jesus não quer ficar sozinho na missão evangelizadora:
é feliz. Esse projeto se concretiza progressivamente num fabu- missão de inaugurar o Reino de Deus de aldeia em aldeia, de
loso dinamismo que culmina no envio do próprio Filho: «De tal cidade em cidade. Ele tem necessidade de testemunhas, de co-
modo Deus amou o mundo, que lhe enviou seu filho único, para laboradores, de pessoas dispostas e disponíveis, corajosas e con-
que todos que crerem nele não pereçam, mas tenham a vida fiantes, livres e esperançosas. Por isso chama, escolhe, transfor-
eterna» (Jo 3,16). ma e envia os doze apóstolos.
Jesus, o Filho de Deus, viveu em plenitude o projeto do
Como o Filho foi enviado pelo Pai, assim também Ele enviou
Pai. Ele é o enviado para ser o revelador do Pai, o missionário
os apóstolos (cf. Jo 20,21). Assim envia a cada fiel com a
do Pai no gesto definitivo para salvar os homens. Neste envio
missão de anunciar e testemunhar um mundo absolutamente novo:
se realiza a passagem da eternidade do Filho de Deus para sua
«Chegou o Reino de Deus» (Me 1,15).
entrada na história.
Jesus foi enviado para manifestar a vontade, a vida, a Eis o fundamento e o imperativo da vocação missionária:
bondade, a glória, a face do Pai. «Meu alimento é fazer a von- comunicar aos outros a experiência que fizemos do Reino de
tade daquele que me enviou» (Jo 4,34). No início de sua vida Deus.
pública define com clareza sua missão: anunciar e instalar neste Evangelizar é missão essencial, a vocação própria, a iden-
mundo a novidade do Reino: «Para isso é que fui enviado» tidade da Igreja, tarefa que as profundas mudanças da socie-
(Lc 4,43). Ele veio para dar a vista aos cegos, o ouvido aos dade atual tornam ainda mais urgente (cf. EN 14).
• surdos, o movimento aos paralíticos, a esperança aos desespe- Evangelizar não é privilégio dos bispos, padres, religiosos.
rados, o pão aos famintos, a vida aos mortos ... Todo o Povo de Deus é chamado, convocado, enviado por Jesus
Jesus foi enviado para comunicar um mundo inteiramente a fim de levar a energia explosiva do Evangelho a todos os
novo, uma nova ordem de justiça e solidariedade, de AMOR e homens de todos os tempos, de todos os lugares.
fraternidade, de paz e liberdade, realizando o sentido pleno da E preciso superar de vez á visão individualista e clericalista
vida: «Eu vim para que todos tenham a vida e a tenham em da Igreja, pois, em virtude do· batismo e da confirmação, todo
abundância» (Jo 10,10). cristão deve ser sinal e portador do Reino e sentir-se respon-
Jesus foi enviado para participar intensamente da vida dos sável pela irradiação da mensagem libertadora de Cristo.
homens, libertando-os de tudo aquilo que oprime: egoismo, ódio, Ser cristão não é questão de teoria, de sentimento, de moda,
divisão, sofrimento, violência, culpa, morte; numa palavra, o de tradição familiar. Ser cristão é questão de opção, de entrega,
pecado e suas conseqüências. de testemunho, de convicção, de comunhão de vida.
356 357
Não basta ser batizado, é preciso viver o batismo.
Décimo Sexto Domingo
'Não basta ser embaixador, é preciso viver a missão. do Tempo Comum
Quais são as exigências para evangelizar com credibilidade? Pistas Exegéticas
a) O testemunho comunitário da unidade. Por isso, Cristo
os envia dois a dois. A força e o fruto da evangelização de- Primeira Leitura: Jr 23,1·6
pendem da identidade de nosso testemunho diante dos cristãos «ÍJeus é 11 nossa justlç111>
e não-cristãos, de batizados e não-batizados. '
Os profetas do Antigo Testamento criticaram o presente (cf. vv.
b) O testemunho de uma vida desapegada, despojada de l-2a) à luz da ação de Deus no passado (cf. vv. 5.7-8) e prometeram
ambição, vantagens, proveitos, privilégios. O que importa, o que um futuro melhor da parte de Deus (vv. 2b.6). Nas suas denúncias
é fundamental é Cristo e seu Reino. Tudo o mais é relativo e responsabilizaram antes de tudo as classes que exerciam a liderança
secundário. política, judicial, econômica, militar e religiosa, aqui indicadas todas
na palavra «OS pastores» (vv. l-2a). Do povo em geral denunciam-se
c) O testemunho autêntico e coerente do anúncio e da vi- especialmente as crenças e práticas heterodoxas e supersticiosas, junto
vência do Evangelho, provocando a conversão, a mudança pro- com os desvios morais etc. Estas heterodoxias e heteropráxis religiosas
funda de vidas e mentalidades, de valores e ambientes. e morais junto com os fracassos e desgraças nas gestões políticas,~
d) O testemunho encarnado e solidário, assumindo o com- econômicas e militares são denunciadas como conseqüências da falta J
.de responsabilidade, de omissão e de exploração das classes lideres. O;
prom'sso e a luta contra os «demônios» que esmagam e des- povo em geral é visto como vitima e como rebanho por elas transviadoj
troem a dignidade do homem: os demônios do egoísmo, da ido- e traido.
latria do poder, do sexo, do lucro, da exploração, da violência, Uma vez que segundo esta visão e interpretação profética da reali· 1
da injustiça. Testemunho sempre a serviço do homem, a serviço dade - que pode ser historicamente condicionada - os lideres são ,
de um mundo mais justo, lutando «para que não haja crianças responsáveis pela (má) sorte do povo, os profetas dirigem geralmente •
a eles e contra eles suas profecias que, .neste contexto, assmnem a"!
sem nutrição suficiente, sem educação, sem instrução; que não forma e o conteúdo de denúncias e ameaças. Poucas vezes somente!
haja jovens sem a preparação conveniente, que não haja cam- os profetas apelaram à res2ons'!ll;ilidade do povo para opor... e aos\
poneses sem terra para viver e desenvolverem-se dignamente, que líderes, Jivtar-se deles e4'dmar a SuaSorte nas próprias mãos. Pro- 11
··clamam ao invés que Deus mesmo intervirá. Ele d~tuir4 os -Ucteus:
não haja trabalhadores maltratados nem diminuídos em seus di-
reitos, que não haja sistemas que permitam a exploração do
t. e lideranças erradas; salvará o povo e lhe dará novos líderes que
guiarão o povo com justiça (cl. vv. 3-4). -
homem pelo homem ou pelo Estado, que não haja corrupção, Nesta perspectiva prof~tica surge a figura messiânica de um novo
que não haja quem tenha muito de sobra enquanto outros sem
culpa estejam em falta, que não haja tanta familia mal cons-
1•· Davi, mesmo nas profecias de um Jeremias que em geral deposita
pouca confiança nos homens (cf. v. 5). Os novos líderes, o rei messiâ- . '.
tituida, desfeita, desunida, insuficientemente atendida, que não nico à frente, serão a «:encarnação» da justiça de ]avé (cf. v. 6b).
Receberá este nome «]avé - llbssa justiç11» porque em última análise •
haja injustiça e desigualdade na repartição da justiça» (João o povo deve a Deus mesmo - e não aos líderes! - a salvação da j
Paulo II, em sua viagem a Puebla). opressão e do exílio (vv. 3.7-8), do medo e do temor (v. 4) e a
segurança (v. 6a), o direito e a eqilidade (v. 5b).
Nem neste contexto das profecias de um futuro melhor o povo ~
Conclusão é chamado a tornar-se agente de sua própria história, mas antes é
visto como beneficiado de Deus, que o Sãlvarã'Cte suas tendências '";
A medida que nosso envio expressar coerência de vida e pecaminosas e renovará seus corações pela infusão do Espírito _Esta
ação, ele serã testemunho e apelo ao seguimento. Sem o tes- perspectiva da interiorização da justiça de Deus nos corações ~mem-
temunho visível e atuante a evangelização serã como uma má- bros do povo talvez não esteja explicitamente presente em Jr 23,1-6
quina de escrever sem fita: faz barulho, mas nada produz. (cf. Ez 34 e 361). Mas implicitamente estã, porque o novo Davi serã
em um sentido muito intenso o princípio vital da vida do povo e a
Clemente Kesselmeier, O.F.M. alma da nação como o era outrora Sedecias (cl. Lm 4,20). Sedecias ·
signüica: «Minha Justiça é Javé (~idqij-jãhü)>. O nome que o profeta
Rio de Janeiro, RJ atribui ao rei messiânico é: <Javé - nossa justiça Qabweh $idqênü)>~.

Raul Ruijs, O.F.M.


Petrópolis, RJ

358 359
Segunda Leitura: Ef 2,13-18 Adão, corrompido pelo pecado, pelo ódio e pela divisão (cf. Rm 5,12s).
Este homem novo é a humanidade nova, para além das distinções de
Este trecho da carta aos efésios pode ser considerado o centro raça, religião, cultura, classe social e cor (cf. Cl 3,lOs; Gl 3,27s). O
teológico da carta. Paulo mostra a Igreja como o lugar onde os homens termo pode então ser aplicado de modo coletivo à 1greja, e pessoal,
das mais diferentes condições estão juntos. A Igreja não nasceu do ao batizado. Diria que o homem novo é protótipo e constitui a nova
acordo ou da decisão dos seus membros, é anterior a eles, é fruto do criação, a Igreja, onde está presente a paz fruto do Espírito Santo,
sangue de Cristo derramado na cruz. dom de Cristo. Realiza-se a profecia de Is 56 e 27 onde se anuncia
Uma leitura mais atenta do texto nos mostra .uma estrutura de que os filhos dos estrangeiros se unirão a Israel para louvar o Senhor.
paralelismos, tendo como centro os vv. 15b-16a: «a fim de criar em
si mesmo um só homem novo, estabelecendo a paz, e de reconciliar a Bibliografia: H. C o n z e 1 m a n n - O. F r i e d ri e h, Epistolas de la cautivldad,
Madrid 1972; H. Se h 11 e r, Lettera agli Efesini, Brescia 1972; M. z
e r w i e k,
ambos com Deus em um só Corpo». O v. 13 diz que estáveis longe e La Ictlera agli Efesini, Roma 1966.
Cristo vos trouxe para perto, os vv. 17-18: os de longe e os de perto
(ambos) têm acesso ao Pai. O v. 13 é então o inicio de um itinerário Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.j.
que se conclui no v. 18, trata-se da aproximação dos homens com Paulista, PE
Deus. Os vv. 14-15a nos indicam o motivo desta aproximação: Cristo é
nossa paz, ele uniu ambos os povos, suprimindo no seu corpo a ini- Terceira Leitura: Me 6,30-34
miza~e da lei. Os vv. 16b-17 completam o pensamento dizendo que
Cristo na cruz matou a inimizade e anunciou a paz aos de perto e «Jesus compadeceu-se deles» .. 1 '.
aos de longe. Assim no centro da perícope está a afirmação que Cristo
criou «em si mesmo um só homem novo estabelecendo a paz», recon- A passagem retoma o fio da narração, interrompida depois de
ciliando ambos os povos «em um só Corpo», a Igreja. Pode-se então 6,7-13, e narra a volta dos apóstolos da sua missão. Entre 6,13 e 6,30
considerar como ensinamento central a criação do homem novo, fun- inseriu-se a narração do martírio de João Batista (6,14-29), recurso
damento e fim da Igreja. literário para sugerir um intervalo de tempo entre a missão e a volta.
Mas certamente também um recurso teológico para sugerir as «últimas
Jsaias 57,19 falava dos que estavam longe e dos que estavam conseqüências» da pregação evangélica. Em Mt e Me João Batista pro-
pertó. Para o profeta tratava-se da proximidade ou distância de Jeru- vavelmente desempenha o papel de protomártir; nos escritos de Lc -
salém, para Paulo, os que estavam próximos eram os judeus, e os Evangelho e Atos dos ApóstolOs - Estêvão desempenha este papel
distantes, os pagãos. A cruz de Cristo aproximou gentios e judeus (At 6,8-8,13), dispensando-se de narrar no evangelho o martírio de
(vv. 14-15) entre si e com o Pai (vv. 16-18). Essa união só foi gossi- joão Batista.
vel em Cristo, cabeça e motivo da unidade. Os dois grupos irreconciliá- Os apóstolos contaram a jesus o que tinham feito e ensinado. A
veis, judeus e pagãos, encontram-se reconciliados na Igreja, pelo sangue movimentação do povo (v. 31b) dá a impressão de que a missão teve
expiador de Cristo. grande êxito. Como em 6,7-13 encerram-se nestes poucos dados as
O sangue de Cristo trouxe paz ao mundo, paz que inclui em si a coordenadas principais da missão apostólica e cristã futura.
destruição dos muros que dividiam -os homensJ dos quais o muro do Também o convite de Jesus para procurar com Ele a solidão pode
Templo de Jerusalém que separava o átrio dos gentios era um sinal ter um sentido exemplar ou tipico. Jesus rodeado por Seus disc.pulos
vivo e concreto; e das leis de morte, das quais a judaica da pureza «para comer» (v. 31c) é o símbolo da comunidade cristã futura em que
e impureza se tornara um protótipo, por exigir sem dar condições missão e união na oração e na comensalidade com o Senhor são elemen-
de observância. O v. 19 de Is 57 aludido no v. 13 tem aqui sua tos basilares.
exegese feita, no v. 17 ele será citado e no 19 desenvolvido. Os vv. 33-44 representam um passo novo na atuação de Jesus.
Cristo restabeleceu a paz entre os homens e entre os homens e Com os discípulos vieram grupos de moradores de toda a Galiléia para
Deus. Destruiu os muros que separavam os homens, e de uma vez por conhecerem pessoalmente a Jesus, cuja Boa-Nova seus missionários lhes
todas cumpriu a lei pela morte de cruz (Cl 2,14). A paz messiânica, pregaram. «Ao desembarcar, jesus viu esta grande multidão e compadeceu-
prometida pelos profetas, tornou-se urna realidade pela morte de Cristo se dela, porque era como ovelhas que não têm pastor» (v. 34a) ..Esta
(Cl 1,22) e na fundação da Igreja _(!Cor 12,12) .. o próprio Cristo, compaixão de Jesus concretiza-se desta vez no ensinamento prolongado
pela boca sua e dos apóstolos, anunciou a paz realizada, congregando (v. 35: <até à tardinha») e na alimentação farta (vv. 41-44) desta
os homens ao redor do único Espírito. Em outras palavras o Espírito grande multidão» (v. 34). Há, pois, também aqui a dupla ação de
que vivifica a Igreja é o motivo da união entre os homens. O motivo Jesus em palavras e ações, sublinhada pelos adjetivos grifados, e pelo
da vida nova é um só, o Espírito, por isso formamos um só corpo. uso repetido de muitos (em vv. 31-35 seis vezes) e de todos (em
Desse corpo é parte integrante o homem novo. vv. 39-42 três vezes). ·
I-Iomem novo que significa a transformação radical da existência
pelo batismo. O Antigo Testamento fa1a deste homem como fruto do
Espírito que Jhe dará um coração capaz de conhecer a Deus (Ez
36,26s),' praticamente acontece urna nova criação segundo a jus~iça. e
f Esta instrução e alimentação da grande multidão «de todas as
cidadeS» da Galiléia (v. 33) ocorreu na estação da primavera, «da relva
verde» (v. 39), isto é, da Páscoa (cf. Jo 6,4). O lugar onde este
povo se reúne em redor de Jesus é deserto (v. 35b); quer-se evocar
' ' .
a santidade (4 26) tendo sido aniquilada na cruz a raça do pnmeuo «O deserto» onde Moisés alimentou o povo com o maná (cf. Jo 6,31s)?

360 361
os necessitados se multiplicam os pães. Este Jesus, e não tanto o Jesus
jesus multiplica os pães do seguinte modo: «Tomando os cinco pães ... milagreiro ou taumaturgo, é a rev~Iação por excelência da misericórdia
levantou os olhos para o céu, rezou a bênção e partiu os pães e deu de Deus e da graça salvífica. É a comunhão com este jesus que traz
aos disclpulos para distribui-los... a eles... todos• (v. 41). Estas n salvação. É na comunhão com ·este jesus, com o seu ctúdado pelo
formulações revestem um cunho litúrgico que evoca a associação com povo e com as suas mãos abertaS para dar e socorrer, que se ;pode
as narrações da última Ceia e da celebração da mesma nas comuni- realizar ainda hoje - o milagre(?)· de - uma salvação efetiva do povo.
dades cristãs.
l
A importância que a tradição eclesial atribuiu à multiplicação dos Bibliografia: Além de comentários, especialmente W. O r u n d .m a n n Die
pães· e à narração da mesma deduz-se dos elementos literários acima Geschichte Jesu Chr{sti, p. 274ss; B. van J e r s e 1, (A .mesa do Senhor) em
Hei Heilig Land 17 (1964), 145-149; 1 d em, (Jesus, a Revelação da mlseriCórdla
realçados, dos textos paralelos e do fato de que também o quarto de .qeus) (Me 6,34-56), na mesma revista, 11 (1958), 76s. O primeJro artigo
evangelho a assume. Existem seis versões desta narração: Me 6,30-43; tarnbem em: J d em (Acerca de jesus), p. 118-132; j. D e 1 o :r m e jésus Jes
apõtres et la fonte (1\ilc 6,3()..34), em: AdS 11/47 (1970) 44-58· A' 'V e i 'ser
8,1-9; Mt 14,13-21; 15,32-39; Lc 9,10-17; jo 6,1-15). Que também o O que é milagre na 1Jlblia~ São Paulo :.1978. ' ' · '
próprio evangelista Marcos estimou demais a importância desta comen-
saJid_ade para com Jesus resulta do fato que o tema «comer» e «PãW>, Raul Ruijs, O.F.M.
além. de nas duas narrações da multiplicação dos pães (6,35-44; 8,1-10), Petrópolis, RJ
volta como um fio de ouro nas passagens que seguem (cf. 6,52; 7,2.5;
7,27; 8,14.16.19). Parece que Marcos quis ligar todas estas passagens Tema frincipal
com o grande tema que precede a todas elas: «(Jesus) viu a gr?nde
multidão e compadeceu-se dela, porque era como ovelhas que não têm ]AVE-NOSSA-JUSTIÇA.
pastor> (6,34a). Em todas elas jesus é apresentado como salvador COMO EXERCER UMA COMPAIXÃO INTELIGENTE, CRITICA,
nas ·necessidades, que conSistem em' ignorância (6,34), fome (6,35-44), EVAN_GELICA
vento contrário (6,48.51) e doença (6,55-56). Ele salva ensinando, ali-
mentando, acalmando o mar e curando as doenças. Em 6,34 caracteriza-
i se, pois, a situação mal-aventurada do povo que anda a esmo como Sugestões para a Homilia
1. «:ovelhas sem pastor». Socorrendo-o jesus apresenta-se como o pastor
do rebanho. O detalhe de que jesus •deu ordens aos discípulos para
1 que ·fizessem sentar a todos em grupos na relva verde» pode ser uma
Introdução
;
i referência intencional a Sl 22,2.5: «0 Senhor é meu pastor. . . em verdes : A credibilidade de nosso Deus, que se revela em seu filho
relvas ele me faz deitar. . . Preparais para mim a mesa à vista de meus
inimigos». ]esus Cristo e nos quer como irmãos, está na defesa do Direito

l
A afirmação categórica de que o povo «era como ovelhas sem e da Justiça onde estes são escamoteados por estruturas iníquas
ou espezinhados por regimes arbitrários.
1 pastor», não faça esquecer que houve no tempo e ambiente de jesus
muita gente que pretendia ter um papel de liderança junto ao · povo
É um Deus que se compadece do povo, .pois são como que
e de «pastor»: escribas, ra!Jis, fariseus, saduceus, sacerdotes, Sumos
sacerdotes, anciãos, o Sinédrio. . . l';la.is categórico ainda do que Marcos
ovelhas sem pastor.
é João afirmando que «todos que vieram antes de Jesus eram ladrões
e salteadores» (Jo 10,8) que <não cuidaràm senão de seu próprio Corpo
pasto» (cf. Ez 34,2). O critério da autenticidade dos pastores não se
encontra nos próprios pastore&, na consciência vocacional, nas boas Deus
1. jesus Cristo como encarnação, concreção da justiça de
intenções deles; nem nas teorias (ou teologias) deles, mas na' sorre
do rebanho. Em Jesus surgiu para o rebanho descuidado do povo de Estes oráculos ( J·> leitura) contra os maus pastores, os
Deus um pastor qUe não se restringiu a dar palpites, mas que se com- falsos profetas e guias do povo são duros, diretos, reais. Por
padeceu efetivamente das multidões. 'Ele se tornou para o povo aban- isso mesmo é que eles nos impressionam, nos interpelam e ques-
donado e marginalizado - abandonado porque seus líderes se distan- tionam como pastores, sacerdotes, agentes de pastoral, líderes
ciaram do povo e o povo de seus lideres - o pastor, que instruía o cristãos.
povo e dele ctúdava. O cuidado pelo povo que se une à sua instrução,
concretiza-se na alimentação do povo faminto e nos outros socorros. , Até onde, consciente ou inconscientemente, através de 11ossa
O aforismo «não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que ação pastoral, nossos movimentos, promoções, organizações esta-
procede da boca de Deus», não funcionou, no caso de Jesus, ' como mos criando condiçfü~s para que o povo seja povo, to~e-se
paliativo nem como desculpa ... agente de sua própria história? -
A. narração da multiplicação dos pães não. realça de forma alguma
o caráter milagroso do fato. O intuito da narração é diferente. Ela A Igreja como instituição, com tudo o que tem, possui e
não quer focalizar a grandeza e o,• poder sobrenaturais de Jesus qu.e, pode - numa palavra: com todo o seu peso social - é pastora,
também, se manifestam ·através de seus milagres: Antes de tudo apre- isto é, alguém que vai à frente, que se compromete com o povo,
senta Jesus como o salvador em cujas mãos abertas para dar e socorrer

362 363
com a justiça? Ela é povo? É capaz de se despojar sempre demagogia, com pureza de i.ntenção, veracidade de coração.
mais· de uma série de privilégios e regalias acumulados atràvés Deixou transparecer em si, mais por seu comportamento (orto-
da história, mas que, no nosso contexto de Terceiro Mundo~ de praxia), que por sua doutrina (ortodoxia), este Deus-Justiça,
América Latina, de Brasil, desacreditam-na perante milhões, de Deus-Pastor de seu povo, portador da verdadeira paz ..
pessoas (na sua maioria cristãos, filhos seus), esvaziando' seu
potencial evangelizador e libertador? Con_clusão
É interessante observàr que os verdadeiros profetas voltav\im-
se, sobretudo, em suas criticas; contra os que se arvoravam Dos Direitos Humanos aos Direitos dos Pobres
como pastores, como líderes de então: as classes politicas, ~co­ Defender os direitos humanos hoje, na América Latina,
nômicas, judiciais, militares e religiosas. É bem verdade que ··não impõe-se como tarefa prioritária. A Igreja, em muitas dioceses,
toleravam também as práticas e crenças heterodoxas e supersti- está ciente e envolvida nessa luta. Situações há em que, por
ciosas, os desvios morais reinantes entre o povo. Mas a carga circunstâncias históricas, ela é a única voz que pode levantar-
mais pesada era contra os «pastores», a liderança de IS'rael ! se para defender os mais elementares direitos violados.
Se a realidade é caótica, i~justa; se não há paz (2• lei- Para -evitar abusos, distorções e desmascarar o jogo daque-
tura), é •porque a realidade dos ~atos, a vida social, a organiza- les que, na América Latina,· dentro de uma visão liberal-
cão ·da convivência htunana como ela se estrutura e se articula reformadora, buscam criar uma·· «face mais humana» do sistema
1~ ~a sua dimensão econômica (produção - distribuição da riqueza capitalista, seria menos ambíguo, portanto mais oportuno, mais
e dos bens); na sua dimensão politica (regime politico - condiz.ente com a linguagem piblica, com Medellín e Puebla,
'I
j divisão do poder e responsabilidades - participação nas decisões- falar em direitos dos pobres ,(vide· «0 São Paulo», 23 a :29
i chaves); na sua dimensão jurídica (Constituição do país - a de dezembro de 1978, «Evangelização e Libertação», p. 5).
legislação reinante como objetivação da mentalidade ou da cons- Falar de direito dos pobres é falar do direito que têm os opri-
1 ciência coletiva), estão em função de uma pequena minoria e midos da América Latina de viver, de lutar por seus direitos.·
' conseqüentemente em prejuízo cfa grande maioria, da multidão, Como se dá isto na prátic_a? Como isto se torna «práxis»,
do povo. ação pastoral? Como este «mis~reor super turbam» de Cristo1 se
.Em linguagem teológica: é. porque esta realidade, em si dá «hoje», no «aqui e agora» de nossa realidade? Como o h_oje
mesma, se apresenta como injusta, pecaminosa, contrária à «kairológico» de Cristo, denso de libertação, de Páscoa, se tdrna
vontade do Pai; é um an!i-Reinó. vida, realidade, por isso mesmo prenhe de credibilidade, no
2. A atitude de Cristo
hoje «cronológico» de nossa sqciedade complexa, co111 mecanis-
mos de funcionamento e reproçlução destas estruturas injustas,
Ele se compadeceu da multiaão de tal modo que se tornou ihumanas e antievangélicas? ·
perigoso, incômodo e por isso Rrocuraram se livrar d'Ele! Acreditar, valorizar e preparar agentes pastorais com u_rna
Mas é justamente neste compromisso com a Justiça, com o consciência mais eclesial do que eclesiástica, aptos para partici-
povo e seus direitos que se fundamenta sua força de credibili- par nos mais variados tipos de experiências de organização,' de
dade através dos tempos. Nisto Ele se apresentou como a encar- comunicação pópular, de resistência e de luta: associações ' de
nação da Justiça de Deus. O seu Deus é «Javé-Nossa-Jus!iça». amigos de bairro, de favelas e de moradores dos loteamentos
Vidé primeira leitura: Jr 23,5-6. clandestinos, chibes de mães, centros de defesa de direitos huma-
. Dai que a postura de Jesus tenha sido bem diferente 1 da- nos, centros de educação populá_r, mutirões, movimentos de custo
quela dos profetas do AT. Dirigiu-se com preferêpcia às massas de vida ...
popúlares, ao povo do interior, •às periferias sociais de então, Trata-se de ter «compaixão da multidão», do povo, certo!
marginalizadas e manipuladas pelos que dispunham do poder, rtias de modo inteligente, crítico, evangélico, organizado. Enfim:
inclusive do poder religioso (os 'sacerdotes· - escribas - fari- exercer uma «caridade política», segundo as exigências do ipo-
seus sobretudo). mento histórico! '
' O povo intuiu n'Ele algo de novo, de profundo; alguém Frei Cristóvão Pereira, 0.F.M.
que· falava «com autoridade», se111 mentira, sem hipocrisia, sem Vale do jatobá, Belo Horizonte, MG

364 365
Décimo Sétimo Domingo do Ano B Segunda Leitura: Ef 4,1·6
Paulo tem diante de si um dos três problemas que ameaçavam a
Igreja nascente, a discórdia (vv. 1-3), os outros dois eram a divisão
Pistas EXegétlcas dos ministérios (vv, 7-11) e as heresias (vv. 14s), A esses perigos
ele opõe a unidade em Cristo (vv. 4-6) como único modo de superar
Primeira Leitura: 2Rs 4,4244 discórdias, ciúmes (vv. J2s) e heresias (v. 16), assim ele faz ·.mna
admoestação mais longa sobre a união dos membros da Igreja na
«Ele os distribuiu e comeram» caridade e na paz.
A exortação é resultado da doutrina antes anunciada, ou seja, a
1. Este passo pertence ao gênero literário das lendas profeticas. conduta é decorrência normal de uma opção de fé. Dogma e vida, fé
A estrutura principal deste gênero consiste em três elementos: o oráculo e ação estão permanentemente unidos. Assim na vida concreta da: co-
- o evento - a confirmação. Estes três elementos estão aqui juntos munidade deve-se manifestar a fé. Essa comunidade não é de origem
no ~remate da lenda: anônima, mas nasceu da única fé, a partir da qual os homens se
ordculo: «Eis o que diz o Senhor: Comerão e ainda sobrará»· encontram unidos e reconciliados na paz (cf. Ef 2,13-18). A pare-
evento: <E (o servo de Eliseu) deu os (pães) ao povo>; ' nese de Efésios (cc. 4-6) é então conseqüência espontânea e conatural
confirmação: «Comeram e ainda sobrou, como o .Senhor tinha dito». do que foi dito na primeira parte (cc. 1-3).
Esta pequena narração - apesar de mna repetição. quádrupla Paulo prisioneiro, por ter andado segundo sua vocação de apósto-
(1. «Dá-os a esses homens, disse Eliseu, para que comam»; 2. «Seu lo, anunciando Cristo, exorta os que estão livres a orientarem suas
servo respondeu: Como poderei dar de comer a cem pessoas com isto»; vidas segundo o chamado que tiveÍ'am. Chamado esse por demais empe-
3. .'«Dd-os a esses homens, repetiu EJiseu, para que comam»; 4. «E nhativo em razão de quem chama ,e para que se é chamado. Em suma,
lhes deu e comeram») - tem um forte suspense por causa da seqüên- o cristão foi chamado, escolhido e predestinado por Deus para ser
cia: ordem de Eliseu - objeção 'do servo - repetição da ordem; seu filho (Ef 1,4s), por isso deve andar de modo especial (cf. At
Somente neste momento segue~se o práculo: «Eis o que diz o Senhor-: 14,16). É interessante notar essa idéia do cristianismo como sendo um
Com~rão. e ainda sobrará». Somen'e ~aqui, no finzinho, revela-se que jâ
caminho (cl. At 24,14; 9,2 etc.). ,
a pnme1ra ordem não era mera palavra humana de um homem qual- Passa-se a indicar, então, qual o modo de se trilhar o novo -ca-
minho: humildade, mansidão, generosidade e paciência. Como se vê,. são
quer, mas mna palavra. cheia de vig,or, do homem de Deus Eliseu (v. 42a). virtudes concretas do bem viver, da vida em comum, que têm por
n:sve.nda-s.e de manetra surpr~enfe~t~ que o servo, cuja objeção ~ base a humildade, que não é esporádica, mas um constante renunciar
pr1me1ra vista se apresenta mruto realista, somente 1eva em considera- a ser o primeiro, a mandar, a fazer prevalecer a sua própria opinião
ção uma parcela daqu"!a realidade mais abrangente em que o profeta, e que se caracteriza pelo semrJ • isto é, procurar o desprezível, _;agir
«O _homem de Deus», vive e age. inobservadamente sem dar na vista, deixar morrer o seu eu. Como o
2. Mesmo em mna tradução, basta a simples leitura desta lenda Cristo, entrar num processo de Kenosis.
para verificar que ela influenciou a redação das narrações evangéli- Aqui como no Evangelhb (Mt 11,29), humildade vai de mãos dadas
cas. sobre a multiplicação dos pães de jesus. Qual era a intenção desta com mansidão. Ser manso é não responder violêticia com violência
referência e alusões _a 2Rs 4,42-44? Jesus veio para cumprir a Lei e (Mt 5,4), é dar a outra face para ser batida (Mt 5,39), é não impor-se
os Profetas. Era, pois, conveniente mostrar que Ele autenticava su3. pela dureza das palavras ou gestos.
mi.São através de sinais que os profetas fizeram. O quarto evangelista Ser generoso, longânime é repartir o que se tem (At 2,44s; 4,32.34s).
acentua esta perspectiva, anotando a exclamação do povo: «Este é Tudo isso no amor, que faz um suportar o outro. Afinal de contas
verdadeiramente o Profeta que hã de vir ao mundo!> (Jo 6,14). Este todos foram unidos num único povo por Cristo (Ef 2,14) e devem se
evangelista relaciona o milagre de jesus tanto com a multiplicação de aceitar e amar como são. Vivendo na paz, dom de Deus que frutifica
pães de Eliseu, anotando que se tratava de pães de cevada (Jo 6,9; pelo esforço d.o homem, realizarão_ concretamente na vida a união que
cl. 2Rs 42), como com o Maná de Moisés (cf. · jo 6,3Jss). Eliseu era o possuem no Espírito, fonte de unidade.
«substituto» de Elias. Este último junto com Moisés uniu-se a jesus na .. Mais uma vez percebe-se a necessidade de se demonstrar na vida
da comunidade o que motiva a existência dessa mesma comunidade, a
montanha da transfiguração, revelando-se Jesus maior do que eles, sejá. presença do Espírito, unificador, de Deus.
por causa da mensagem que pregou, seja graças aos sinais que feZ. Os últimos dois versículos constituem uma breve aclamação, de
Estas perspectivas alargam os horizontes limitados da gente e ajudam tríplice ritmo ternãrio (3x3). Provavelmente de origem batismal, onde
a avaliar devidamente a Jesus e ultrapassar os limites da realidade se insiste, sete vezes, sobre um só, uma só, fazendo ecoar aqui ·a fé
corriqueira em que se costuma viver e se é· tentado a enquadrar de lsrael na unicidade de Deus (Dt 6,4). A aclamação segue a ordem
também o jesus e a fé cristã (cl. jo 6,15.26). inversa do Hino introdutório de Efésios (1,3-18), começando pela Igreja,

'
um só Corpo, indo até Deus Pai, criador.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
., Hã uma só Jgreja, porque _um só é o Espírito que a une e dá
consistência, e uma só é a esperança dos seus membros, a herança

366 367
entre os santos (Ef 1,18). Assim a esperança designa mais o que se Em primeiro lugar notamos que jo explicita a razão por que a
espera do que o fato de se esperar. multidão segue a jesus: viram os seus sinais (v. 2). Esta atitude, a
·Hã. um só Senhor. Essa era a confissão de fé dos primeiros cristãos mera procura de sinais, é' exatamente o que jesus criticará<' no discurso
(FI «2,9-11). Desacreditar no batismo, seria descrer na base da unidade de revelação (6,26ss). Em segundo lugar, a encenação 'é hierãtica,
eclesial. ·1 quase litúrgica (num monte, na proximidade de Pãscoa; Jo 6,3-4).
'Hã um só Deus. Aqui judeus e· cristãos têm sua fé comum, más Nisto joão difere dos sinóticos, que quase com um certo zhumor des-
os cristãos vão mais a1ém considerando-o como Pai de todos os homens, crevem a ocasião da multiplicação dos pães como que .um excesso
sem . distinção de raça ou credo (MI 5,45) e relacionando-se de modo ,I de zelo de jesus: guardou a turma por demais tempo, é obrigado pelas
especial ,com ele, chamando-o Abbã, Papai (GI 4,6; Mt 6,9). " circunstâncias - a hora · avançada e a dificuldade do povo encontrar
;A unidade da Igreja segundo Efésios não é só fruto da boa vontade viveres - a fazer um milagre. Em joão não é assim. Depriis da intro..
dos"' homens, mas é antes de tudo .um dom da Tdndade que nós de-
1 dução hierática (vv. 3-4 e 5a, celevando os olhos ao cén>, illuitas vezes
vemos fazer por merecer. O Espírito' da unidade age em nós, deixemos gesto de oração), e sem .. nenhum Indicio da circunstâncias çonstrangen-
que i Ele produza seus frutos. tes, jesus torna a iniciatiya de saciar o povo. Não se diz que o po;vo
'
Bibliografia: A mesma do Do.mingo anterior.
estava lá escutando jesus,; Parece que foi reunido ali para .ser saciado.
Também não são os discípulos, como nos sinóticos, que;- chamam a
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J. atenção de jesus para a· fome da multidão. Jesus parece só desejar
Paulista, PE saciá-los. Os discípulos intervêm dµma outra maneira, b~m joanina,
como testemunhas que não entendem o que se passa. Com ambigüidade
Terceira Leitura: Jo 6,1·15 tipicamente joanina, Jesus pergunta «donde» comprar pãq para ali-
mentar a multidão (v. 5). O leitor cristão, já conhecendo ;a catequese
1. Contexto ·da perlcope cristã e todo o evangelho de João, sabe que o pão que; alimenta o
mundo é Jesus Cristo. «Donde?», em João, sempre sugere o origem
O 69 cap. de João forma um- conjunto; duas partes narrativas celeste. O resto do capitulo (cf. próximo domingo) tornai claro isto.
(6,1-21 e 6,60-71) enquadram um «discurso de revelação> (6,25-59) de Filipe, porém, pensa em ..:.Pão material e faz um cálculo b~m ingênuo.
jesus Cristo. Esta combinação de narração e discurso de revelação é Do mesmo modo André, - que apresenta um menino tendo_. cinco pães
típica do quarto Evangelho. A narrativa exerce a função de sinal, o e dois peixes, mas fica_. desconfiado de que isto não será o sufi-
discurso explica seu sentido. Jo 6,1-15 é o sinal que introduz o «Di&- ciente... (v. 9). '
curso do Pão da Vidw (Jo 6,25-59). As outras partes narrativas, a
caminhada de jesus sobre as ãguas · (6,16-21) e a reação da multidão De toda maneira, J~sus manda os apóstolos Jazer a turnia se
e dos discípulos (6,60-71) funcionam como elementos secundãrios, re,. sentar, Novamente, joão . difere dos Sinóticos num detalhe, importante.
forçando a estrutura símbolo-significado que se encontra no tema do Nos Sinóticos, Jesus manda os apóstolos saciarem a turma (idéia da
Pão~. De fato, na caminhada sobre as águas, Jesus se revela de modo missão), e ele fornece a matéria-prima. Em João, ele mesmo, tendo
especial aos discípulos; ora, depois -do Discurso do Pão da vida, à pronunciado a bênção da mesa, distribui o pão.
multidão fica inacessível à sua revelação (6,60-66), mas os discípulos, Depois de recolhidos :i os restos, João narra que o, povo . quis pro-
liderados por Pedro, reconhecem em jesus as palavras da vida (6,67-71):. clamar Jesus rei. Notaram o caráter messiânico de seu ; gesto. Mas
..Portanto, se Jo 6,1-15 narra um milagre, a multiplicação dos pães~ Jesus lhes escapa. A razão ficará clara no Discurso, a partir do v. 25:
devemos ter bem claro que este milagre não tem seu sentido último menos ainda que os Apóstolos, o povo tinha entendido o, sentido do
em 'si mesmo. O importante não é saciar-se com pão (cl. 6,26, próximo pão que Jesus lhes distribuiu. Ficou numa compreensão meramente
domingo), mas sim ver neste acontecimento um sinal daquilo que Jesus material.
é para nós (sentido cristológico e ~oteriológico). Para a explicação da· presente narrativa é importante deixar trans...
parecer a dupla dimensão que marca as narrações joaninaS. Em si, a
2. ]o 6,1-15 narração contém algumas·· improbabilidades. Não apenas o .milagre em
si, mas também a encenação (por exemplo, Jesus só parece ter reunido
Jo 6,1-15 é uma das perícopes , sinóticas do quarto Evangelho. A' a turma para os alimentar). Mas o característico de joão é que ele
matéria é estritamente idêntica com . Me 6,34-44 par (primeira multipli~ descreve, por um lado, D)ilagres fortes para, depois, mostrar que seu
cação dos pães). Aliãs, a per!cope que segue, jo 6,16-21, é idêntica com sentido não está no seu aspecto material, mas na realidade espiritual
Me 6,45-52 par, e depois do discurso de Jo 6,25-59, reencontramos à que este fato «extraordinário:P assinala. Ao mesmo tempo! reforça o
ordem sinótica subseqüente à segunda multíplicação dos pães (Jo tem caráter milagroso e o rélativiza em função da missão reVelatória do
só uma), comparãvel com Me 8,27-30. É inegável que jo reproduz Cristo. A pregação deverá ter em conta esta dialética. Não poderã
aqui a mesma tradição que a da seção dos pães -no evangelho de Me_. perder-se numa evocação do milagre por si mesmo. Este não tem
Um estudo aprofundado levou-nos à redação dos evangelhos de Me e Mt. valor por si mesmo. Teril valor somente com ·,referência àquele que
Portanto, não nos interessa estudar Jo 6,1-15 por seu valor bisf-órico, é Palavra e Filho de Deus. Por isto, no comentârio da presente perí-
tratando-se de um relato derivado. .Mais importante é descobrir nesta
narrativa o ponto de vista teológico · característico do quarto evangelhQ. ,• cope, importa sobretudo mostrar a soberania de Jesus, co~forrne des-
crição do evangelista. Soberania que é realçada, em comparação com o

368 369
relato siilótico do mesmo lato. Exatamente como no milagre do vinho um sinal da presença de Deus mesmo, operando nele. Ninguém faz
em Caná, Jesus não se deixa mover pelas circunstâncias (cl. a resposta tais sinais (Jo 10,42).
diante de Maria em 2,4), mas domina a situação. Soberanamente, dã O sentido da tipologia que une a !• e 3' leituras é precisamente
um sinal. Aliâs, João faz questão de nunca chamar os milagres de expressar a plenitude que chega em Jesus Cristo: até 'Moisés a LeÍ
Jesus com outro termo que «sinal~, termo que, no AT, indica o agir e os Prole.tas; em Jesus Cristo, a graça e a verdade de Deus (Jo
de Javé nos prodígios que acompanham a história de seu povo (sobre- 1,17). o. sma! _dos pães é revelação da realidade messiânica divina,
tudo em Ex e Dt). Jo 6,1-15 deve ser entendido como um ato de Deus eseatológica, última, de Jesus Cristo. Esta deve ser a mensagem da
no seu Filho Jesus; ele faz as obras do Pai. Não é o efeito material liturgia deste dia.
da multiplicação dos pães que importa, mas confrontar-se com Deus Bibliografia: Ver 60 Domingo da Páscoa, Ano B (J.l Jeitura) .. p. 201.
em Jesus Cristo: este é o teor do discurso que segue (evangelho do Johan Konings
próximo domingo). Porto Alegre, RS
Em vez de contar a história, é importante mostrar a compreensão
do evangelista. A estória, todo o mundo a conhece. Mas devemos Tema Prlnclpat
dirigir a atenção a estas frases que mostram exatamente uma com.
preensão diferente da de todo o mundo. João, embora transmitindo Só CRISTO NOS DA O VERDADEIRO PAO
os milagres de jesus, não quer apresentar jesus como um milagreiro.
Por isto, aproveitando a notícia tradicional de que depois da multiplica-
ção Jesus se retirou à solidão (Mt 6,45s), João explicita a razã-0 desta
fuga. jesus quis soberanamente dar um sinal messiânico, isto é, um Sugestões para a Homilia
sinal do dom eseatológico de Deus (que é ·sua própria pessoa, reve-
lador do Pai, como aparecerá mais tarde). Mas o povo o entende numa Introdução
perspectiva~ de messianismo político; não entende a referência do sinal
Nos vv. 14-15 se anuncia a palavra de Jesus diante de Pilatos: «sou O tema deste domingo, a multiplicação dos pães, nos coloca
rei, mas meu reino não é deste mundo>. Este é o sentido profundo da frente ao magno problema de todos os tempos: a fome e suas
ambigilidade joanina: sob os sinais materiais esconde-se uma realidade
c~nseqüências: a busca, do pão, a manipulação do pão, a absor-
espiritual, tj_ue só se revela a quem procura jesus na fé em sua palavra; e
este recebe o verdadeiro alimento messiânico. çao das energias para assegurá-lo, a guerra por sua causa.
Tomo à liberdade de advertir contra uma posslvel utilização ideoló- Po~que o pão é o símbolo de todo o alimento humano: do que
gica desta perlcope, no sentido de exortar os cristãos a se empenhar na esta presente nas mesas e do que está ausente. Inclusive, o pão
práxis da 1justiça social para fornecer pão aos que não têm. E evi- pode emprestar ambigüidade aos «messias» de todos 9s tempos,
dente que ~o cristão deve fazer isto, mas não é isto que o presente
à~ teorias e ide_ologias ·e até às teologias. Por isso, ~risto dá o
evangelho quer ensinar. O evangelho toma como base o fato, trans-
mitido na tradição dos primeiros cristãos, de que Jesus multiplicou o pao e se faz pao, para aclarar os contornos da nossa realidade
pão. Mas ensina, exatamente, que Jesus não se satisfaz com o con- e estabelecer uma unidade, fundamental para o bom uso do pão.
tentamento~ que este gesto causou na multidão. Um benefício material,
por importante que seja, não tem seu sentido em si mesmo, pãra o
cristão. Se fosse assim, absurda seria a existência dos que não recebem Corpo
os benefícios materiais. . . O benefício material significa que jesus é um
t. O pão é um dom para todos
dom de Deus, que nele Deus está com sua gente. Que isto seja também
o significado último e verdadeiro de toda intermediação material (sócio-- Segundo o Evang~lho Jesus toma a iniciativa de saciar o
econômica) do cristão. Se não for assim, Jesus terá que fugir mais uma povo materialmente, depois de tê-lo saciado espiritualmente, mos-
vez para a montanha . ..
trando que as duas necessidades se alternam no homem. A ra-
3. Função na lifurgia dicalização numa das duas realidades esvaziaria e distorceria a
mensagem evangélica. A hannonia na busca conduz à ·verdadeira
A 2• leitura (continua de Ef) não se integrando com a J• e 3',
pode-se dirigir a atenção à linha traçada pela 1' (2Rs 4,42-44) e a 3•. meta do homem, dentro do plano de Deus. Na 1' e 3' leituras,
O sentido . da aproximação é evidente: duas multiplicações de pão. Só o pão é multiplicado pelo poder de Deus - uma vez através
que as proposições são bastante diferentes: no 'AT, 100 pessoas são do profeta, outra através do Cristo - a partir de um pouco
saciadas com 20 pãezinhos; no Novo, 5.000 pessoas com cinco pães. de matéria existente e -ampliada o quanto o exigiam as circuns-
O NT deve superar o AT. O Antigo é prefiguração. O que aconteceu
com Eliseu no AT é uma façanha de profeta, «homem de Deus>. E tâncias: quando Deus intervém, nossa boa vontade. e nossos
um sinal de sua autoridade. Mas o que Jesus faz é incomparável: é dons são suficientes para ele desencadear qualquer processo de

370 371
multiplicação de forças e ampliação de sua presença. . . Interroga Condusão
os apóstolos para testar-lhes o pensamento, que sabia estar Cristo tem a solução agora, como a teve então, mas precisa
condicionado pelas soluções terrenas, insuficientes sempre ..• dos homens. Sabe que é um risco confiá-la aos homens. Mas
Como o pão é o símbolo de todo alimento, a multiplicação do corre este risco. Como pediu aos apóstolos distribuíssem o pão,
mesmo é o símbolo da multipilcação de nossas possibilidades pede a cada um de nós que continuemos tentando melhorar o
de colaboração e participação no esforço de Deus para dar mundo com o pão da palavra de Deus, vivida e ensinada, o que
pão material e espiritual à humanidade. Por nossa vez, somos ajuda e facilita a aquisição do pão material: cada um se ali-
símbolos desta preocupação de Deus. mente deste pão e leve aos outros os resultados, sobretudo a
2. O pão une os alimentados coragem de recomeçar sempre de novo a nossa caminhada e a
dos outros. E o pão de Cristo é tanto que, no final, haverá
O grupo ficou unido porque Cristo lhes deu pão, caso con-
sempre sobras no campo da história, isto é, a doutrina de Cristo
trário se haveriam dispersado à busca do mesmo. S. Paulo, na
não se esgota num periodo histórico, nem se circunscreve a um
Epistola aos Efésios, dirige veemente apelo à unidade, porque so-
grupo privilegiado, nem se enquadra totalmente numa teoria,
mos chamados a formar um só corpo e um só bloco de pensamen-
pois atravessa os tempos, por ser de sempre, uma vez que par-
to, uma vez que vivemos duma só fé e nos alimentamos de um
ticipa da eternidade e da amplidão de Deus.
só pão, que é o Senhor, sacramento do único Deus, o Pai. Cristo
fez com que os homens «Se assentassem» antes de lhes dar Frei Hugo D. Baggio, O.F.M.
o pão. Assentar significa colocar-se um ao lado do outro, sentir- Rio de janeiro, RJ
se unido, apoiado, na humildade de quem espera. A ordem de
Cristo - sua Palavra - acalmou os homens e os uniu num
todo esperançoso. Ele é a união. Se a luta pelo pão de cada
dia une e desune os homens, o pão-Cristo os une para juntos
procurarem uma solução. Na sua Palavra encontram a razão
da Juta pelo pão. E descobrem que são «Comensais» da mesa
dos bens e dons da terra e «Companheiros» na caminhada para
o supremo dom: a casa do Pai, caminhada que atravessa as
vicissitudes da história. A unidade leva à caridade, e a caridade
à justiça na posse do pão. '
3. Cristo limpa as ambigüidades
Frente ao prodígio, os homens querem fazê-lo rei. Mas rei
político, milagreiro, «padeiro-coroado», para dispor dele nas
horas de aperto: pouco trabalho e muito pão. Mas ele quer ser
o Messias, o Libertador, não das contingências históricas que
exigem trabalho para ganhar o pão, mas- da injusta distribuição
do pão, das guerras pelo pão, dos ódios entre os que o têm e
os que não o têm, da absolutização de esforços em torno do
pão, da ganância, da avareza, da escravização ao pão e por
causa do pão. «Foge», por isso, para a montanha: Cristo se
afasta das situações ambíguas e duvidosas, das intenções co-
mercializadoras. Nossa manipulação de -sua doutrina e nossa
interpretação ao nosso favor e o radicalismo com que a aplica-
mos aos nossos esquemas pode espantar o Cristo. Daí, o rótulo
é Cristo, a teoria, porém, é nossa, e a solução não é alcançada.

372 373
Décimo Oitavo Domingo tivéssemos sido mortos pela mão do Senhor no Egito .. .> Da P"-'!e
de Deus a libertação · do Egito era pura graça. E graça não ena
do Tempo Comum direitos. Mas o povo alega a graça como motivo de reivindicação. Quando
0 povo murmura, o faz na suposição ~e. que seja frustrado e!Il_ um
Pistas Exegéticas direito. O texto não admite nenhuma duvida de que esta supos1çao e
reivindicação não têm cabimento, nem que por tal atitude Deus é sub-
Primeira Leitura: Ex 16,2·4.12·15 metido a critérios humanos. A murmuração é um atentado contra a
soberania de Deus que vigora também diante de seu povo. ~ murmu-
«.Amanhã vos fartareis de pão e sabereis que eu sou o Senhor> ração encerra, pois, uma desqualificação de Deus da _parte do ~ºTem,
que Ele ligou a Si e a Quem o homem deve confiança, gratidão e
O livro do Bxodo divide-se em três partes: A Libertação ou O submissão ou obediência. Em vez disso, o homem levanta-se co~tra
Sxodo do Egito (1,1-15,21); Israel no Deserto (15,22-18,27); Israel Deus, seu benfeitor, como juiz. Nesta atitude revela-se. a perversi?~de
junto ao Sinai: a Aliança e a Lei (19,1-40,38). do homem. O texto bíblico, em que se censura esta atitude, é o JUlZO
Na descrição bíblica de Israel no Deserto o interesse teológico de Deus sobre este homem,
predomina sobre o interesse histórico. Nos hinos que celebram a esta-
dia no deserto localiza-se o papel de Deus. Nestes hinos Israel é Bibliografia: O. te S t r -o e t e, Exodus; O. von R a d~, Theologie des. .Allen
objeto mudo e passivo do agir divino (cf. SI 135,16). Em outras cor- Testaments· X L é o n - D 11 f o 11 r o verbete "lncreduJidade , em Vocabularzo de
Teologia lÍlbll~a; K. R e n g s 1 o r 't, o verbete ugoggli2o", em ThWzNT l {1933),
rentes da tradição tematiza-se a reação de Jsrael à ação de Deus. 727ss.
Nestes contextos constatam-se duas interpretações divergentes. Raul Ruijs, O.F.M.
De um lado o tempo no deserto é visto como o tempo das relações Petrópolis, RJ
ideais, do primeiro amor entre Javé e seu povo (p. ex., jr 2,1-3).
Naquele tempo Israel pertencia totalmente a Javé, livre da antiga escra-
vidão e ainda salvo das tentações idólatras de Canaan. Deus carregou Segunda Leitura: Ef 4,17.20·24
o seu povo, cuidando até mesmo de suas vestes e de seu calçado ( cf.
Dt 29,5s). Esta interpretação transparece na parle sacerdotal de Ex 16. A frase inicia] da Jeitura contém uma exortação..: que representa
De manhã lodos recolheram do maná. Mas de noite deu-se que cada bem a catequese mora1 dà comunidade primitiva. Sua base está no
Um ajuntou para si e sua família exatamente tanto quanto precisava. Antigo Testamento (SI 4,5; Zc 8,16), mas foi so?retudo no j~daísmo
Não houve sobra nem houve falta. E a situação ideal que se realiza do séc. ] aC, por exemplo, em Qumrân_, onde. tais tem~s do~i!laram.
quando Deus age e quando se deixa Deus agir ou quando se age como A idéia clássica da oposição entre dois caminhos, dois esp1r1tos, é
Deus age. Deus dá a cada um o que precisa. Este sentido exemplar adaptada e sublinha-se o contraste entre o. antigo e o novo ~odo de
do evento é sublinhado pelo detalhe que o maná não presta para vida, «Outrora éreis trev~, mas agora sois luz» (~.8). A!51m, a~s
estocar-se. Ao ajuntar-se mais do que se precisa, estraga. S. Paulo ter dado uma fundamentação doutrinal, Paulo dá instruçoes morrus
aproveita deste sentido em lCor 8-9, ou seja, nos capítulos sobre a sobre o que se deve ser -e fazer. Há uma intima ligação entre esta
coleta das comunidades mais ricas para a comunidade necessitada de segunda parte da carta e a inicial. .
Jerusalém. A confiança em Deus permite o amor ao próximo. Procurar É interessante observai o ponto sobre , o. qual. Paulo insiste: ª.
segurança nas riquezas deste mundo é desconfiar de Deus que é dono sabedoria dos pagãos. já .na carta aos Corml1os (IC~r 1,20: «a. sa-
e doador de ludo. bedoria deste mundo é loucura») que relata a pregaçao dele apos a
De outro lado vê-se na geração do deserto o tipo de Israel re- decepção de Atenas (At 17,33: <então Paulo foi embora. dai~»), ele
belde contra Deus. Esta interpretação domina nos Salmos históricos mostrou que o conhecimento dos pagãos levou a nada, pois nao fora
77 e 106 (cf. SI 77,8ss.17ss.40ss.56ss) e em Ez 20. Neste último texto suficiente para fazê-los descobrir a Deus (cf. Rm 1,18-32), mas levou-os
a estadia no deserto transforma-se até em tipo do julgamento que Deus às maiores aberrações (cf. também Sb 13-14). No desprezo pela sa-
executará ao seu povo pelo exílio babilônico. Também esta interpre- bedoria humana Paulo coloca-se na linha tradicional d~ Qoh7Iel: ~tudo
tação encontra-se em Ex 16, no tema da murmuração. Este tema é é vaidade» (1,2), no hebraico, «tudo é vão~. A busca das coisas vas . é
uma constante em Ex 15-17 e Nm 14-17. Ele é retomado por jo vaidade. A capacidade de. - compreensão do homem . move-se no vazio
6,41ss.52.00s e !Cor 10,1-10. quando ele exclui Deus; então o que ele pensa af1rm_ar é eng~o e
A murmuração ou reclamação ·contra Deus e seus representantes ilusão. A vaidade de muito saber afasta-o da verdadeira sabedoria.
- no caso Moisés e Aarão - é, por assim dizer, a encarnação da fé O texto ·lembra então ; a catequese batismal que deu aos cristãos
pervertida. A murmuração sempre tem um motivo concreto: sede, fome a verdadeira sabedoria: Jesus. O texto original di~ apenas: «_aprender
etc. Mas no fundo ela é uma teimosia, porque o povo acha que tem Cristo», apresentando Cristo como objeto e contendo ~o ensin~m~n~o
direito de reclamar contra Deus. A murmuração supõe a eleição da (cf. Zerwi<ik). Desse modo Cristo opõe-se aos conhecunenlos ~nulets
parte de Deus. Ê o povo eleito e agraciado que - consciente ou dos pagãos. Aprender Cristo, é aprender um novo m~do de vida, e
inconscientemente - alega a sua eleição como justificação de sua ati- não uma doutrina. Cristo é antes de tudo uma relaçao pessoal, que
tude. Por isso, a murmuração contém algo de chantagem: «Oxalá modifica o homem muito mais que um. a doutrina que convence. \..[ ~"

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Ê claro que Cristo uão está mais presente entre nós, desse modo Porém, estes três momentos não são estanques. Transbordam um no
adere-se à pessoa dele através da palavra do pregador. Urge então -outro .sem que a gente o note claramente.
adquirir familiaridade, isto é, relação pessoal, com tudo que diz res- O evangelho de hoje não é delimitado conforme os momentos que
peito a Cristo. \forna-se necessária uma meditação, um aprofundamento distinguimos, porém propoiciona como que um clima'x, que termina
de relação pessoa] com o próprio Cristo, para se entender sua pessoa ~om a frase central do segundo momento, frase central de todo o
e seu ensinamento. Talvez no v. 21 esteja· toda a base da meditação, discurso também: «Eu sou o Pão da Vida» (6,35).
da oração reflexiva tão cara à Igreja dos místicos. Ela aprofunda a
relação pessoal ·com Cristo.
A introdução do termo cem jesus» é •uma confissão paulina, que 2. ]o 6,24.35
jdentifica Cristo- e jesus, isto é, Cristo no Nazareno, em oposição a O v. 24 é a conclusão da complicada transição · dos vv. 22-24,
certas correntes heréticas que os dissociavam. Nesse jesus toma-se co- eriados de todas as peças· pelo evangelista, que precisava recolocar
nhecimento da realidade do Deus feito homem que morreu e ressuscitoúJ Jesus em contato com a multidão, da qual ele tinha fugido no outro
o verdadeiro Cristo é o Jesus histórico ( cf. Cl 2,6). lado do lago (6,15). No v. 25, a multidão encontra Jesus e revela-se
Nas últimas frasesJ Paulo retoma o seu tema tão querido (cf. admirada, mas de modo meramente sensacional: «Que . façanha fizeste
Rm 13Jl2; CI 3,8.10.l2)J o homem velho deve renovar-se, tornar-se para chegares aqui sem nós o percebermos?» Esta expectativa sen-
homem novo. Ê·. a catequese batismal repetida a todas as comunidades. sacionalista torna-se para Jesus a ocasião para lhes çensurar a falta
Ontem como hoje, o renovar-se pode ser ffitendido de fonna estática. de visão de fé: «Procurai~me não por ter visto sinais (como ~revela­
Para Paulo o renovar-se é dinâmico, é um mover-se contínuo, é uma ção do Pai), mas porque vos alimentastes bem». Procuram Jesus por
repetição criativa, é um vir a ser constante, pois o batismo é um com- razões meramente mundanas. Jesus dirige sua atenção:. para um outro
promisso que se renova a cada instante, e não algo que aconteceu tipo de pão, um pão que não perece. Note-se a semelhap.ça com a água
no passado. Se em nós estâ «impressa» a imagem de Cristo, essa mesma que sacia a sede para sempre em jo 4,14. Na sua . narrativaJ joão
imagem deve ser <expressa» na vida (Zel'Widk). avança «em dois trilhoS». Em ambos os textos (Jo 4 e 6), o leitor
·Acontece uma nova criação (cf. Gl 3,27; Rm 13,14), e essa nova é convidado para passar do trilho inferior ao trilho superior da narra-
criatura é o homem novo (2Cor 5,17; Ef 2,15). Seria como alguém ção. Se até aqui a narrativa pareceu ocupar-se com pão material,
que tivesse recebido uma veste nova e n~o a usasse, o cristão que agora o leitor deve sintonizar para um outro tipo de compreensão.
batizado não agisse como tal, e seguisse a v~idade da sabedoria humana. Este pão que não perece, ,o Filho do Homem - figura escatológica,
A verdade , do cristão não é uma teor~a, uma doutrina, mas uma que o cristão identifica corp. Jesus - o dará. Pois ele tem garantia
vida reta e santa segundo a de Jesus, o Cristo. do Pai (v. 27c). A resposta do povo em v. 28 mostra que eles re-
t lacionam este pão imperecível com Deus - já que o enviado de Deus
Bibliografia: A, mesma do Domingo anterior. o dará. Mas expressam est~ intuição de maneira bem .judaica: querem
• Pe, Carlos A1berto da Costa Silva, S.C.J.
fazer «Obras»,. O judeu farisaico se salva por suas obras. A resposta
de Jesus é fina: não são jas muitas obras (do homem) que salvam
Paulista, PE
" e conservam para a eternidade. Importa uma só obra, a obra de
Deus, e esta é: acreditar ~no enviado de Deus. Há uma dificuldade
Terceira Leitura: Jo 6!24-35 aqui: será esta a «obra dé Deus» no sentido de obra que agrada a
Deus, ou obra que é operada por Deus (o dom da fé como dom de
I. O contexto da perícope Deus). Ambas as interpretações são possíveis. Mas a frase do v. 44
O presente 'evangelho traz a primeira parte do Discurso do Pão da parece favorecer a última.
vida, parte honiilética do conjunto literário. da Multiplicação dos Pães Aqui, os judeus se sentem provocados. Pedem credenciais. Pedem
no evangelho de joão. Neste conjunto, a ·narrativa (jo 6,1-15, dom. um sinal (provando que de fato não enxergaram o sinal de Deus na
anterior) funcioria como acontecimento de revelação divina, que porém multiplicação dos Pães). Mas Jesus não faz sinais a pedido. Fá-los
só é visível aoS olhos da fé. Isto é o que explica a parte homilética, de maneira soberana, como revelação gratuita do Pai, e não para dar
o Discurso do : Pão da Vida (Jo 6,25-59). Tem três momentos: O satisfação aos judeus. Ê tradição firme dos evangelhos que Jesus recusa
primeiro momento explica o sentido do <Pão da Vida> como sendo a 1ais demonstrações (Mt 12,38-39 par; 16,14 par; Jo 2,18; cf. 3° dom.
vontade e a obra de Deus (vv. 25-29). O segundo momento, que é Quaresma B). Portanto, parece que eles não viram o sinal, porque
central, especifica mais profundamente o primeiro; mostra Jesus como tinham outro conceito de sinal, conceito que tem suas raízes no AT
o Pão descido do Céu, aquele que é enviado pelo Pai para com sua (o profeta que se procura justificar por sinais, cf. Dt 18,21). Porém, o
Palavra realizar o dom messiânico que a narração milagrosa assinalou mesmo livro do Dt (6,16) ·proibe exigir provas de Deus. Ora, Jesus
(vv. 30-51). Num terceiro momento, o evangelista introduz a linguagem é lnais que um profeta. Ele é Deus. Por isto, não faz sinais a pedido.
eucarística: o que se celebra na Eucaristia, onde os cristãos se ali- Pelo contrário, numa resposta bem irônica, prepara o entendimento do
mentam com o corpo do Senhor e se aliviam com seu sangue, é exata- sinal que lhe acaba de fazer: Os judeus pedem um sinal como o do
mente este dom messiânico do Pão descido do Céu, Jesus Cristo, reve- maná no deserto. Jesus responde: não deveis dar demasiada atenção
lador do Pai, que permanece em nós pela adesão da fé (6,51c-58). ao papel dos «pais> nesta história, pois quem deu pão do céu (o

376 "517
manã) não foi ,Moisés, mas Javé. Com isto, qualquer judeu deve con- A liturgia insiste no «descer do céu>. E uma maneira mitológica
cordar. Mas por baixo corre toda a sutileza das discussões rabínicas para expressar o que, filosoficamente, indicamos pelo termo ctranscen-
que os primeiro_s cristãos travavam com seus compatriotas da sinagoga dente>. Mas não é preciso evitar a terminologia mitológica, nem mesme>
judaica: o verdadeiro pão que desceu dos céus não foi propriamente depois dos satélites, pois olhar para cima é uma expressão natural do
o maná, mas o Filho do Homem, que d~e do céu, e que é: jesus homem para assinalar o transcendente, que não se limita à matéria
Cristo. Jsto, porém, não é cJaro para quem não é iniciado na sabe- deste mundo1 embora esta ..eja seu csinal». O judaísmo que jesus cri·
doria da comunidade cristã. Por isto, os judeus aparecem como gente ticou Jimitou.se a um materialismo de cunho religioso: um messianis-
sem compreensão, exatamente como a samaritana no cap. 4. Jesus mo sociológico e nacional, marcado pela figura de MoiSés. Os cristãos,
explica que o pão que desce do céu dá Vida ao mundo. Os judeus refletindo sobre os ensinamentos do seu Mestre, rejeitam tal leitura
ouvem a maiúscula na fala de jesus e respondem: que ele dê sempre da história. O verdadeiro dom de Deus é Jesus Cristo. mesmo, porque
deste pão. Mostram sua abertura à fé, embora ainda com grande inge- ele faz ver Deus, e fá-lo no amor até o fim. Nós hoje devemos ficar
nuidade. Mas é. o suficiente para jesus se revelar como sendo o Piio fiéis a esta releitura cristã. O único pão do céu é Jesus, e jesus
da Vida (v. 35). crucificado.
Os primeiros cristãos viviam numa continua discussão com o ju-
daísmo rabínico -- aliás, eram provavelmente uma ramificação do mesmo. Bibliografia: Ver 611 Domingo da Páscoa, Ano B (3Q leitura), p. 201.
Atrás de Jo 6,3o-35, reconhecemos esta discussão. Para os cristãos, Pe. Johan Konings
todos os temas maiores do AT falavam de Jesus Cristo. Também o Porto Alegre, RS
tema do maná. «Descer do cén» é o que torna o maná figura de jesus
Cristo. Assim, Moisés se torna antitipo (prefiguração) de Jesus, porque
por sua interceSsão desceu o pão do céu ·de Deus. De modo que os Sugestões para a Homilia
judeus «ortodoxos» (no tempo de João, fim do 1° século, reunidos na
hegemonia farisaica) não mais podem valer-se de Moisés, pois este tem
sua plenitude em Jesus Cristo (e!. jo 1,17). Esta é a discussão que Jntrodllção
está por baixo de Jo 6,31-35. Para nós hoje importa aprender a lição:
enquanto o entendimento farisaico do messianismo e do profetismo pode O tema da liturgia de hoje parece centrar~se sobre o modo
ser caracterizado como sendo «deste mundo», auto-suficiente, sujeito de relacionamento entre Deus e o homem - um relacionamento
a categorias húmanas, a mensagem de Cristo é verdadeiramente de que se apresenta sob a forma de busca por parte do homem e
Deus, soberana, transcendente. É espírito Versus carne. Ora, nós hoje de dom por parte de Deus. O dom precede a busca, mas nem
u,ão estamos em discussão com a sinagoga. Porém defrontamo-nos tam-
bém com um entendimento mundano, imaneÍlte e auto-suficiente da rea- sempre o homem tem consciência disso. O que se interpõe como
lidade salvadora, seja na sociedade de consumo, seja nas ideologias obstáculo nesse relacionamento é a tentação do homem de
que se dizem emancipacionistas e libertadoras, mas de fato limitam parar no meio do caminho, perdendo-se num mundo de objetos
o homem à materialidade. jo 6 desafia-nos para o reto entendimento ilusórios, que não respondem de fato à sua necessidade mais
do messianismo. Será dom messiânico o pão material (descido do céu
da sociedade de consumo ou do paraíso ! comunista), ou Aquele que
profunda. Quando o homem, porém, consegue prosseguir até
traz a palavra do Pai e nos confronta com· a Verda_de da nossa existên- o fim em sua busca, então a plenitude do dom de Deus se
cia. Escolher n nosso Pão da Vida, esta i! a lição perene de Jo 6. instala em seu coração.
3. Função na liturgia e na vida
Corpo
Como no domingo anterior, a J• e 3• leituras indicam a dinâmica
da liturgia. · A 1' conta como Deus (não Moisés) fez chover pão do A discussão que Jesus trava com os judeus no Evangelho
céu. A 3' nos mostra a leitura cristã deste fato, a exegese tipológica de hoje encerra toda uma psicologia sobre o modo como os
que os primeiros cristãos fizeram deste fato: o -manã (que significa:
«Que é») é prefiguração de Jesus Cristo,· o verdadeiro pão do céu. homens se deixam fascinar por coisas fáceis de serem obtidas
Será bom aprof1mdar esta linha central, procurando entender por que e também logo esquecidas. Muitos judens presenciaram ou ouvi-
Jesus é pão descido do céu. Isto não está no trecho do evangelho ram falar do episódio em que Jesus saciara uma grande multi-
oferecido pela liturgia de hoje, mas no trecho imediatamente seguinte dã~ com um punhado de pães e peixes. Vieram então procurá-
(19' dom. comum). Contudo, é bom abrir já na liturgia de hoje os
olhos para o sentido profundo do Pão da Vida em Jesus Cristo: ele lo, mas não puderam dissimular seus sentimentos, que Jesus
é o verdadeiro Pão da Vida porque ele -nos faz conhecer o Pai, a logo denuncia: eles vieram para fartar-se mais uma vez, ou
quem ninguém jamais viu (Jo 6,45-48). jesus nos alimenta porque ele simplesmente levados pela curiosidade sensacionalista. Eles que-
traz o céu no meio de nós. riam ver prodígios, embora no fundo talvez duvidassem.
378 379
Mas Jesus não se limita a apontar as intenções ocultas de ousadia nessas palavras! Elas provocam novamente aquela im-
seus interlocutores. Ele os convida ao diálogo: «Trabalhem não pressão de superabundância que a multidão havia experimentado
pela comida que se estraga, mas por aquela que permanece para na multiplicação dos pães: todos ficaram fartos, e ainda so-
a vida eterna». Essa maneira de agir de Cristo reaparece sempre braram doze cestos! Esse caráter de fartura e até de prodiga-
nos Evangelhos. Partindo dos desejos ou das necessidades pre- lidade do dom de Deus, é evocado também numa passagem
sentes dos homens, ele procura despertar ou reavivar as ne- semelhante a esta, quando jesus dialoga com a samaritana à
cessidades mais profundas, o desejo mais radical do ser humano, beira do poço: «Quem beber da água que eu lhe der, diz
que é a Vida que emana de Deus. E acrescenta que é ele jesus, não terá jamais sede: a água que eu darej se transfor-
mesmo, o Cristo, que veio para trazer essa vida aos homens. mará dentro dele numa fonte jorrando vida eterna» (Jo 4,14).
Assim acontece, por exemplo, nos milagres, especialmente nas O homem é um ser constantemente insatisfeito. Essa sua
curas: ao curar os cegos, Cristo chama a atenção para o seu inquietação é a marca de sua vida como criatura, como ser
poder de curar a verdadeira cegueira, que é aquela que afeta voltado para o infinito. Nenhum produto da natureza ou da
o coração do homem. Também ao alimentar a multidão famin- avançada indústria moderna pode satisfazer essa sede de infi-
ta, Jesus manifestava a abundância de alimento que ele veio nito. Mas todas essas coisas materiais são de algum modo me-
trazer em termos de vida, de amor, de fé e de esperança. diações, para que o homem chegue até o seu fim último, trans-
Com efei.to, por trás do gesto de repartir o pão, havia o cendente. O que acontece, porém, é que muitas vezes o homem
subentendido: .«Nem só de pão vive o homem, mas de toda se atrapalha ao fazer das mediações o ponto final de sua busca.
palavra que sai da boca de Deus» (Mt 4,4). Ora, a Palavra Ele confunde os meios com os fins, o relativo com o absoluto.
estava ali, era o verdadeiro pão que não perece, o Verbo de Então vem a ilusão. E a desilusão. E o homem parece estar
Deus. Mas os homens estavam ainda cegos e surdos para o sempre recomeçando a mesma busca, sempre voltando ao mesmo
subentendido. Eles se fixaram no pão. E como Cristo tentasse ponto de partida, e cada vez mais descrente.
«dilatar» o sentido do pão, ao evocar um alimento que não Assim acontece no mundo de hoje. Vivemos em uma so-
se estraga, eles passaram ao aspecto mágico da questão: um ciedade para a qual o desenvolvimento econômico se tomou o
pão que nunca se estraga? Será um pão caido do céu? Como único objetivo, a direção exclusiva em todos os ramos da ati-
o maná do deserto? Os judeus não captaram o símbolo, porque vidade humana. já se falou em «Sociedade unidimensional», isto
estavam presos aos aspectos materiais dos fatos. Eles queriam é, uma sociedade onde todas as dimensões foram reduzidas a
uma prova palpável e, entre a dúvida e a desconfiança, pediram uma só. O trabalho, a dignidade, a arte, a cultura, a liberdade,
mais um sinal. o esporte, o amor, tudo isto é hoje traduzido e equacionado em
termos econômicos, tudo é transformado em mercadoria de com-
Essa situação sempre se repete. Ela já ocorrera no deserto,
pra e venda. Enquanto se criam necessidades supérfluas nos
quando os israelitas murmuravam contra Moisés e contra Deus.
consumidores, já saturados, os recursos da natureza vão se esgo-
Queriam alimento e queriam prodígios. Quando receberam o
alimento, esqueceram o prodigio, ou melhor, o dom de Deus. tando assustadoramente. Diante dessa realidade inédita, a voz
Hoje permanece a mesma tendência. Nenhum prodígio satisfaz dos profetas de hoje se faz ouvir dentro e fora da Igreja:
a sede do homem. Estamos cercados dos «milagres» da ciên-
«De tão pesada, a porca já não anda;
cia e da tecnologia, da medicina e da psicologia, do sexo e dos
de tão usada, a faca já não corta»,
tóxicos, e no entanto, quem está satil\feito? Falta algo de fun-
damental. Carlos Drummond de Andrade escreveu, certa vez, canta Chico Buarque. O que devia servir de mediação para a
que hoje em dia os milagres são tantos e tão variados que só felicidade verdadeira do homem transformou-se, ao contrário, em
é verdadeiramente milagroso quem não os faz. obstáculo quase intransponível. Mais otimista que Chico, alerta
Respondendo aos judeus, jesus insiste em que não se trata Dom Hélder:
de fazer obras ou sinais. O verdadeiro sinal está, aí, diante
deles: «Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá fome «ótimo, que tua mão
jamais; quem crê em mim não terá sede jamais» (v. 35). Quanta ajude o vôo ...
380 381
Mas que ela jamais se atreva Décimo Nono Domingo
a tomar o lugar das asas». do Tempo Comuin
(Mil razões para viver, Civ. Bras., Rio 1978, p. 28) Pistas Exegéticas
Primeira Leitura: 1Rs 19,4-8
Conclusão
Contexto. jezabe1, mais decidida do que Acab e apreensiva (vv. 1-2), ciente do
Percebendo o possivel engodo das mediações, São Paulo que ocorrera no .monte Carmelo - o desafio vitorioso de Elias contra os sacerdntes
de Baal e matança dos mesmos {18 2D-46) - notificou sob imprecação ao profeta
recomenda na epistola de hoje, o «despir-se do homem velho», que, se não fugisse, ele teria o fim dos sacerdotes de BaaJ. Elias, diante da
ameaça, apavorou-se e fugiu às pressas do reino de Judã, rumo ao sul - Bersbeba,
isto é, daquele (dentro de nós) que se vai corrompendo e ao no Negeb, em busca de segurança, visto que judã era governadp por josafã,
aparentado com Acab. Aí chegado, despediu o servo.
mesmo tempo se decepcionando na busca de bens que se perdl'!m.
Revestir-se do «homem novo», ao contrário, significa recusar-se Texto. Elias, resoluto, continuou viagem deserto adentro, durante
um dia (vv. 5-8). A tarde, cansado, faminto e com sede, aborrecido
a absolutizar as coisas relativas e abrir-se assim ao Absoluto com a veleidade do povo e sem conforto divino, imprecando contra a
para o qual elas apontam discretamente. Significa transformar sua sorte e desejando a morte (Jó 31,30; Jn 4,8), jogou-se ao chão,
os bens materiais em dons que recebemos, e partilhamos fra- sob um arbusto espesso _e de boa forma, e adormeceu. Eis que um
ternalmente, numa celebração contínua das criaturas ao Criador. anjo do Senhor (w. 5-8) o convidou a levantar-se e a comer. Olhando
ao redor, o profeta Wvisou um alimento misterioso: pão e jarra com
O «homem novo» é aquele (dentro de nós) que não transige com água. Comeu, bebeu e voltou a deitar-se. Novamente o anjo o acordou,
a falta de verdade e de justiça; o seu pão de cada dia é um solicitando-lhe comesse e bebesse porque teria ainda muito a pere-
amor amadurecido e criativo que, ao invés de enfastiá-lo e grinar. Elias obedeceu e viajou 40 dias e noites até chegar ao Hor-eb,
corrompê-lo, transforma-o aos poucos na imagem e semelhança o monte do Senhor, - lugar em que Javé se revelara a Moisés (Ex 3).
de seu Senhor. O monte Horeb (fontes E, D) é aqui sinônimo de monte Sinai (fontes
j, P): ambos formam um todo maciço. Neles Moisés teve sua experiên-
Teresa Cavalcanti cia com Deus (Horeb, Ex 3) em função da missão de libertador, -
Rio de Janeiro, RJ recebeu a Lei (Sinai, Ex 19,1-23), - fez jorrar água da rocha. A
distância entre Bersheba e os montes Sinai/Horeb, por terra - caminho
seguido pelas caravanas, via Aqaba - é de 480 km, o qual para ser
vencido exigia 11 a 15 dias (Dt 2,1). Elias o percorreu em 40 dias.
A não ser que se trate de arredondamento ou de simbolismo, o profeta
presumivelmente caminhou só nas horas mais frescas e à noite. Como
o texto não alude ao alimento, pensou-se que Elias, durante esses
dias, teria feito penitência, rezando e jejuando, como o fizera Moisés
em circunstância análoga (Ex 24,12-18; Dt 9,9-11; Ex 34,28).
Aplicação. A Igreja vê nos vv. 6-8, referentes ao pão subcinerício-,
o Pão Eucarlstico, o qual empresta vigor ao cristão durante a pere-
grinação terrena (Cone. Trento, sessão J3•, cap. 8 - Denz 882; Cat.
Rom. II, 4,54; 3• resp. do J• noturno da festa do Corpo de Deus).
A Eucaristia, pão celeste preparado pelo amor divino mediante o fogo
dos tormentos e das humilhações da Paixão, nos sustém ao longo do
deserto desta vida até os pincaros da união com Deus no C·éu.
O descanso/refúgio que Elias quer é a morte, pois não se sente
melhor que os antepassados. Não espera poder fazer mais do que eles
para Javé. Então, para que viver? Boa lição para nós! Diante de
heróis como Moisés, Elias, se aceitarmos nossa limitação, com a ajuda
divina poderemos ser fortes como eles. O trecho evoca ainda a impar-
cialidade da história, a concepção antiga segundo a qual o «sheoh>
(residência dos mortos), embora privasse da atividade e alegria desta
vida (Is 38,11), todavia oferecia aos justos paz e descanso, sem as
aflições de agora.
A peregrinação de Elias significa uma volta às origens, um retomo
à fonte do javismo, onde_ outrora Deus se revelara a Moisés, enquanto

382 383
este ardia de indignação contra a prevaricação de Israel (Ex !9,16ss; (!Cor 3,!0s). Conclui-se, então, que aqui o Espírito é considerado como
33,21ss). Agora é Elias que ai vai para buscar alívio e redescobrir a
alguém que pode ser entristecido, e porque sabemos que teologicamente
tal fato não é possível em Deus, a explicação é que Paulo fala de modo
imagem de Deus, uma concepção nova para o Povo Eleito não satisfeito humano para se fazer entender.
com a de Moisés. Israel evoluira em 500 apos. A missão do profeta Viver em Cristo ,-significa viver confonne o batismo que exclui O.;..
é restabelecer a doutrina da aliança em toda a sua pureza: para vicias do homem velho, aqui catalogados ( cf. GI 5, l 9-23): segundo o
tanto dirigiu-se ao lugar onde Javé fizera "aliança com seu Povo e
preferia morar (Jz 5,2ss), deixando atrás de· si o Povo infiel e clau- Estoicismo e que chegou até Paulo pela mediação do ·judaísmo. Esses
vícios refletem a reação do homem de sentimentos vulgares diante de
dicante (!Rs 18,21). Atuando em Samaria, Elias embateu-se com nova
uma ofensa recebida; o cristãoJ então, terá de superar estes impuisos.
mentalidade! o reino do norte optara, desde. jeroboão, pela liberdade Agindo como homem novo deverá per.doar quem lhe ofenden(Mt 6,12.14;
sob o único Senhor Javé. Não queria maiS. viver ligado à dinastia 18,21.35), até os inimigos. (Mt 5,44) chegando ao ponto ·de oferecer
davidica, institucionalizada no reino do sul. Além dos ideais pollticos, a outra face para ser batida (Mt 5,39), por uma razão que é causa
queria voltar às fontes autênticas da fé. Holtve cisma polltico e reli- e exemplo, Deus que nos perdoou e nos amou primeiro (Rm 5,8;
gioso. Se valeu em certos pontos, não deixou de ter sérios perigos: ljo 4,10). Em outras palavras, Paulo expressa a idéia dominaute da
pendor pardl a idolatria, instabilidade devida a1 carismáticos aventureiros, parábola do Servo cruel e do Pai-Nosso. Não se trata, portauto, de
contaminaçã~ com o paganismo, ecumenismo fácil, estabilidade econômica um moral servU, mas de uma atitude que exige muita força interior,
que levou a confiar pouco em Deus, cuja presença era mais e mais para que o mal seja, no crlstão, vencido pelo bem (Rm ~2,21).
materializadã. Foi época de transição e de crise profunda, que vai O perdão que Deus nos deu em Cristo <exige> e <faz possível> o
repercutir ein Elias, o qual assume _os ideais revolucionários positivos perdão reciproco dos cristãos. Os filhos diletos podem e devem imitar
no sentido de atualizar os valores. do passa~o, opondo-se aos abusos a Deus (cl. Mt 5,44s), pois dele receberam a vida nova que se mani-
do presente e redimensionando os termos da-, aliança no diálogo entre festa cada dia, e deve ser vivida no amor e na alegria. Que o cristão
Deus e os novos tempos. Era integrar os nôvos valores na existência seja perfeito, seja misericordioso como Deus o é (cf. Lc 6,36). Imitar
humana, superando a concepção de Deus que tiveram no deserto, séculos· a Deus é viver como filho, pois não existe maior alegria ,para o Pai
antes, pois ;,a civilização agora era outra. Elias, home·m de Deus e que ver suas qualidades refletidas nos filhos. No caso de Deus, sua
crente (17,18), partilhou da crise do povo. A fim de vencê-la, dirigiu-se graça imprime em nós as qualidades que desabrocham na prática das
ao Horeb, -Onde redescobriu a imagem divjria. Sentiu que sem nova virtudes. Imitar é viver como <0 Filho> que perdoou e ;deu a vida
revelação ~o o conseguiria. Eis a nova im?gem de ]avé: um Deus por todos.
conosco, tr3!1scendente e inacessível, de atuaçªo imprevisfvel, que salva Passa-se da imitação de Deus à de Cristo, e para Paulo o modelo
em troca da fé. Elias conciliou o passado cmµ o presente. não é a atitude humana de Jesus, como será o Cristo pobre para Fran-
BibUografiir: O a r o f a 1 o, S., li llbro dei Re, MartettJ/Turim 1960; p l r o t •
cisco de Assis, mas o Cristo que, como sacerdote e vítima (Hb 10,5-14),
C ta m e r, La S. Blble, III, Paris 1949: M e s t e r s.~ C., O profeta Elias: Jnspha- salva pela oferta livre de si mesmo na cruz. A imitação decorre, então,
ção para boje, em RBB (1970). 590ss; A r n a 1 d J eh, L., Blblla Comentada, da graça que nos é dada, e não que a imitação nos mereça a salvação.
AT/11, BAC/Madrld 1961; R o dr 1 g u e z Mole r ci, P. X., La S. Escritura,
AT/JJ, BAC/Madrld 1!l6B. Paulo, que viveu como imitador de Cristo, convida o~ cristãos a
fazerem o mesmo: «tornai-vos imitadores de Deus. i . andai no amor
'
P. Matheus F. Gíuliani, 5.A.C. como Cristo».
Santa Maria, RS •
.. Bibliografia: C o n z e t m a n n H.·O. F r 1 e dr 1 eh, Epistolas de la Cautividad,
Fax, Madrid 1962; Sta a b K.·N. B r o x, Cartas de Ia Cautiv!dad, Herder, Barcelona
t 1974; Biblla Comentada,· VI (111), BAC, Madrid 1975i Se b 1 J e r H., La Iettera
Segunda Leitura: E! 4,3Q,5,2 agll Efesinl, Paidê.la, Brescia 1973; Z e r w i e k M., Lettera agli ~ Efesini, Città
Nuova, Roma 196fi.
ó
Neste texto parenético de Efésios, Paulo mostra como deve ser Pe. Carlos Alberto da Costa: Silva, S.C.J.
a vida nova e pura em Cristo. Ele não apr;esenta exemplos, mas um ,Paulista, PE
catâlogo do, que deve ser evitado e do que ,!leve ser feito.
Terceira Leitura: Jo 6,41·51 (gr.)
O ·Espirita Santo, motivo da união do Co;po de Cristo (4,4; l Cor
12,13), que é a Igreja, é entristecido por tudo o que prejudica a unidade
deste Corpo. Pelo batismo fomos selados no ·Espírito, isto é, passamos !. Contexto
a viver como propriedade e sob a proteção d'Ele, em vista do último
dia, dia do juízo em que será consumada a 'Obra redentora de Cristo, A presente pericope faz parte do Discurso do Pão º!ia Vida, Jo
-e Deus reconhecerá os seus e afastarã os estranhos. Possivelmente 6,25-59 (cf. os domingos precedentes). Neste, distinguem-se ·duas partes:
o texto alude a Is 63, 1O, quaudo fala de entristecer o Esplrito. Em 1) sapiencial (v. 32-51b); 2) eucarística (v. 51c-58). Na primeira parte,
Qumrân estava presente a idéia de que o Espírito dado ao homem podia explica-se que jesus traz um dom que os judeus desconhecem, mas que
ser afetado pelo comportamento deste, para o bem ou para o mal. é assinalado pelo sinal do pão (Multiplicação dos Pães, ]o 6,1-15; cf.
Desde que o homem é templo de Deus, ele assume a responsabilidade v. 25s). E.ste dom do Pai é jesus mesmo, como revelador de Deus.
de não devastar o templo de Deus, e quem nele habita, senão perecerá Nesta idéia situa-se a perlcope deste domingo.

384 385
2. Exegese de ]o 6,41-51 O laço entre os dois temas seja talvez a imagem sapiencial da Sabedoria
como banquete, comida (cf. Is 55,1-3, etc.). Por este método homilético,
A murmuração dos judeus (v. 41) mostra ao mesmo tempo incom- Jo 6,31-51 mostra que: I ') os judens não entenderam o sentido «espi-
preensão e meio entendimento, pois eles entendem pelo menos que Jesus ritual» (que os cristãos conhecem) de Ex 16,4ss; 2') eles não acolheram
está falando de sua origem celeste, e rejeitam esta, porque eles o co- a realização escatológica do ensinamento anunciado por Is 54,13 e
nhecem como o filho de José. Ficam em categorias desta terra. Signi- Jr 31,33ss. ,
ficativamente, os interlocutores de jesns, até agora indicados como ca · Quem pode realizar este ensinamento? Ninguém jamais viu o Pai!
multidão>, aparecem doravante como lhe sendo hostis e são chamados (v. 46). Isto é um dogma para Jo (cf. 1,18). Somente o Filho, que
cos judeUS>. Nisto reflete-se a discussão entre cristãos e judeus no vem dele, pode mostrar o Pai para os homens. 1l o que anuncia Jo 1,18
tempo da redação do 4• Evangelho. O murmurar dos judeus é um dado e esclarece o episódio de Filipe, Jo 14,9.
bíblico: Jo 6,31ss é uma homilia (midraxe) sobre Ex 16,4ss. Ora, Este crer em Jesus produz cvida eter110 (vv. 47-48). A fé é o
naquele contexto encontra-se várias vezes esta atitude dos judeus (cf. pressuposto para qualquer eficácia na ordem da salvação. Por issoJ ao
Ex 15,24ss). ler os vv. 52ss, não se deve pensar que a Eucaristia funcione auto-
«Ninguém pode vir a mim se o Pai não o atrair» (v. 44). Esta é maticamente como .cremedium immortalitati~. E preciso lembrar-se do
a resposta de João para o problema da incredulidade dos judeus. A que os verslculos anteriores dizem a respeito da fé!
interpelação dos judeus, propriamente, não recebe resposta. Embora o Para indicar a realidade salvífica, jo utiliza o termo «Vida eterna»-.
tipo de objeções que eles fazem seja corriqueiro na discussão com o «Eterno» é sinônimo de «divinol>. O acento não cai na pós-existência,
cristianismo do 1• século, não vale propriamente a pena responder. ?•pois da morte, mas na qualidade divina desta vida, desde já. Por
Negam a messianidade de Jesns, uma vez porque conhecem sua origem 1sso, o tempo presente: quem crê tem (já) a vida eterna (cf. 5,24:
(6,41s e 7,27), outra vez porque não a conhecem (9,29). Este problema «. . . tem a vida eterna e não irã para o juízo>). Fé, como adesão a
rabínico sobre a origem do Messias não é o problema real. O problema Jesus Cristo, é vida de qualidade divina. O que acontece na pós-morte,
real é a incapacidade, que eles demonstram, de sair dos seus parâmetros é a confirmação disso ai.
terrestres, daquilo que ca gente sempre pensou>. E 1! a este problema <Não pereça quem dele comer» (v. 50). Retomando o texto de
que se referem os vv. 4311-44. Ora, será que Jo quer dizer que certas base de sua homilia, Ex l 6,4s, Jo comenta agora o que significa o
pessoas são excluldas da fé em Cristo porque o Pai não os atrai? A «comer> do pão descido do céu. Não é bem aquilo que os pais no
frase dá esta impressão. Contudo, parece-nos que Jo não enuncia ll1D deserto fizeram. Isto era apenas uma fraca prefiguraçãó, pois eles
principio de predestinação, mas antes constata o seguinte: jã que eles morreram (como também o maná dado por Moisés foi apénas uma
não vão ao Cristo, deve-se concluir que eles não são atraídos nem se fraca prefiguração: cf. v. 321). Comer o pão do céu, como sinônimo
deixam atrair pelo Pai. de crer em Jesus Cristo, significa alimentar-se para a vida eterna, ou
Nota-se, nestas frases, o paradoxo da fé. Por um lado, o homem melhor, passar já da morte para a vida.
precisa ser atraido por Deus. Por outro, ele tem a responsabilidade da «A minha carae para a vida do 11111ndQ,, (v. 51c). O v. 51c já introduz
fé (v. 47). Talvez a comparação com o encontro da amizade esclareça a parte eucar!stica do Discurso (vv. 52-58), mas é ainda marcado pelo
um pouco este paradoxo. Na amizade, uma pessoa convida a outra à contexto dos vv. 32-51b, que explicam que Jesus é o pão que desce
medida que esta gosta de ser convidada; porém, gostando de ser con- do céu. A novidade do v. 51c é que agora é jesus quem dá o pão.
vidado, a gente não se pode impor e não adianta impor-se quando não No v. 51a ele é o pão, em 51c ele o dá. Devemos dizer que o v. 51b
hã convite da outra parte .•. Assim, não se pode ir a Jesus se o Pai encerra a parte sapiencial do discurso, retomando, em forma de inclusão
não convida, mas este convite já responde a uma cbnsca de crer>, literária, os temas iniciais dos vv. 32-35. Seria, então, melhor terminar
uma disponibilidade da parte dos que querem ir a jesus. O ensina- a !•itura com o v. 51b? Não necessariamente. O acréscimo de v. 51c
mento de Deus a todos (cf. infra), predito pelos profetas, é este con- é interessante. porque identifica com maior precisão em que consiste
vite que Ele nos dirige para irmos a Jesus (v. 45). o valor salvlfico de Jesus como pão da vida. Por que serã acreditar
cTodos serão ensinados por Deu11> (v. 45). A citação de Is 54,13 nele vida eterna? Porque sua vida teve o conteúdo de ser doação
(cf. Jr 31,33s) mostra que Deus quer realizar uma revelação para até o fim. Assim, não só o Pai dã este pão mas Jesus mesmo na
todos (nada de predestinação!). Ninguém é exclu!do da realização esca- doação de sua «carne> ( = existência humana)' para a vida do m~ndo
tológica da revelação, anunciada pelos profetas. A vinda de Jesus como («mundo» não no costmneiro sentido negativo, mas como objeto do
sendo o que desce do céu (cf. vv. 46 e 37s) é a realização desta amor divino, cf. Jo 3,16). Que a existência de Jesus, na hora de sua
palavra. De si mesmo, ninguém pode crer. Mas quem se deixa conduzir morte, se tornou dom para nós, é uma idéia que pertence à tradição
por este supremo e último ensinamento de Deus, vem a jesus. Vir a eucar!stica desde o inicio (cf. cpara muitoS>, Mt 26 28 e Me 14 24·
jesus é ser atraido pelo Pai. O ensinamento escatológico de Deus, •
«para vos>, Lc 22,19 e 1cor 11,24). Não há dúvida: as' últimas palavras
' '
quando acolhido, conduz o bomem a jesus. Implicitamente, signüica que do v. 51 integram-se na tradição eucarlstica do 1• século.
os judeus não aceitam para si a promessa profética. Atrás desta citação
está todo o método da exegese no 1• século dC. Lia-se, na sinagoga, 3. Função na lllurgia do dia
um trecho da Lei ou Torá (por exemplo, Ex 16,4s; cf. jo 6,31) e
mn trechq. dos profetas (por exemplo, Is 54,13; ci Jo 6,45). Depois, Lendo-se toda a liturgia do dia, inclnsive as antifanas e orações,
come11tavam-se as leituras. :tl exatamente o que Jo faz nesta homilia. se pode fazer a seguinte sintese: a fidelidade e a verdade de Deus nos

386 387
são reveladas pelo dom de Deus, que é o pão do céu e da irida eterna: a sua insuficiência e negado o seu caráter paradigmático e o
a irida de Jesus dada por nós. O evangelho ocupa o lugar-chave neste
pensamento: conduz ao seu sentido pleno a imagem da 14 leitura (Elias seu valor normativo para a ação de Deus. Esta irrompe segundo
confortado pelo alimento que Deus lhe fornece) e oferece uma base uma liberdade absoluta e, no caso de Jesus, o que perturba os
para a imitação das atitudes de Cristo, enunciadas pela 2' leitura. seus ouvintes é o caráter ordinário, comum de sua origem huma-
johan Konings na, incompatível com a pretensão de sµas palavras: ele não
Porto Alegre, RS corresponde ao ideal messiânico e, ao mesmo tempo, se arroga
uma origem divina à quar sua condição humana não serve de
mediação.
Sugestões para a Homilia
2. O corpo humano de jesus, mediação do Espírito
Introdução Em verdade, Jesus tem uma proposta que pretende superar
e não apenas cumprir o que os profetas prometeram: a Graça
Referência ao passado e ao presente e a Verdade transcendem a Lei, e o Espírito faz de tudo uma
Desde: o próprio anúncio da Conversão, inscrito na pregação nova criação. Ora, o Espírito é o princípio primeiro da Vida
de João B;itista, o Novo Testamento proclama a necessidade de e, desde o discurso sacramentar da Ceia, 'vai ser o Dom pascal
uma nova , consciência. No IV Evangelho, esta necessidade está visado por Jesus. É voltado para este Dom que o capítulo VI
sempre presente, tanto na pregação de Jesus quanto no discurso desdobra a sua mensagem; ela parte de sua remota origem: o
do Evangelista. Todavia, ao fazer-se, este anúncio assume uma homem comum, Jesus de Nazaré, cujos pais são acessíveis ao
forma mais adequada às devidas dimensões do mundo, mais mais vulgar conhecimento, e de sua pretensão a possuir uma
cosmopolita. Certamente, os interlocutores de Jesus continuam a palavra absolutamente nova, capaz do dom da Vida e deste
ser os judeus (palavra que tem um sentido peculiar por oposi- sob a forma de um Pão superior ao Maná, tanto quanto a
ção a israelita), mas estes são divisados desde a diáspora e do Verdade é superior à Lei.
farisaísmo ' e colocados face a face com o mundo antigo e os
monumentos de sua cultura, sua organização · política, suas con- 3. A Eucaristia, dom presente e escatológico do E•pirito
cepções sobre o homem. Em razão disso . tudo, tanto a sua A compreensão de tudo isto depende da Fé: é esta que
narração quanto os discursos e diálogos de vário tipo nele desvela Jesus como único mediador necessário e como o me"
encontrados se desenvolvem em dois tempos: o passado, repre- diador em que a Vida está supersubstancialmente presente, de
sentado pelos judeus, e o presente, encarnado no Império Ro- modo a poder ser dada em seu Corpo e em seu Sangue. O
mano, cujo' vulto se ergue hostil, como o ma~ifestará o processo
sinal do Pão, no qual o homem é chamado a reconhecer o Corpo,
de Jesus. '
obedece à mesma lógica da Fé na Ressurreição e só à luz
Corpo desta pode ser interpretado: importa transcender toda a visão
física. No capitulo VI trata-se de reconhecer no Corpo excessi-
l. jesus humano demais? vamente humano de Jesus de Nazaré o Pão da Vida; no capitulo
Esta dupla abertura ou referência constitui uma critica - XX, trata-se de confessar o Senhor ressurgente para além da
na acepçãó originária de discernimento -, R_Ue confere a tudo visão de seu corpo e mesmo na ausência desta. No Dom de si
nm peso e um valor que não o fecha sobre si mesmo, o que mesmo, o Cristo faz o Dom da Vida, mas não o faz de um
é de máximo alcance teológico e pastoral. No caso especial do modo exterior; ao contrário, ele o faz no próprio princípio de
capitulo VI o que se visa imediatamente é o passado: o judaís- suá existência corporal, isto é, no Dom do Espírito. A Euca-
mo é posto em seu devido horizonte, o do. exodo, que trans- ristia é o Sacramento do Dom presente e escatol'ógico do Espí-
parece por detrás dos símbolos do maná, dO' mar, da montanha, rito. É óbvio, este só pode ser alcançado na Fé e esta é susci-
da ·murmuração e do desafio da Fé. Trata-se de um passado tada naqueles que o Pai envia, pois só este envio torna capaz
cujo valof'.salvlfico não é posto em questão, mas tem proclamada da comunhão; isto não é uma limitação, mas um pressuposto
388 389
vital, ontológico. O que se visa através da Fé é alcançar a Vigésimo Domingo do Tempo Comum
unidade corporal com o Cristo no Espírito.
4. Recobrar o hwmuw em cada homem e na conmnidade humaaa Pistas Exegéticas
Feitas estas considerações, é possível divisar a importância
Primeira Leitura: Pr 9,1·6
dos dois momentos dá Fé no discurso sobre o Pão da Vida: o
passado, representado pelos judeus, tem por referente a excessi- «A Sabedoria preparou a mes11>
va humanidade de Jesus; o presente eclesial e pascal, ao con-
O cap. 9 de Provérbios consiste em duas partes (9,1-6 e 9,13-18)
trário, tem por referente a ausência desta humanidade em sua em que se contrastam entre si a Sabedoria e a Loucura, personificadas
aparência física: o excessivamente humano, entretanto, se reco- como duas senhoras. (Os ditos de 9,7-12 são inseridos posteriormente
bra em cada homem ,e na comunidade humana; novamente, é como um comentário ao v. 6.)
necessário crer na mais comum humanidade para ser arrebatado O passo pertence ao gênero literário das parábolas. Seu sentido
pelo Espírito, experimentar o excessivamente humano do homem é transparente: <como há dois caminhos, o do bem e o do mal (Pr·
2,13; 4,11-19; SI I; 118,29; 138,24; Jr 21,8; Mt 7,13-14; cf. Is 55,8-9),
atual, reencontrado neste Jesus de Nazaré, para chegar, no Espí- assim há dois apelos a que o homem pode dar ouvido ou dois ban-
rito, dado sobre a Cruz, ao Senhor Ressurgente. quetes a que é convidado. O homem hã de escolher (cf. Eclo 15,14-18;
Dt 11,26-29; 30,15-20). Quem der ouvido ao convite da Sabedoria entra
no caminho da vida (v. 6), quem atender ao convite da Loucura, entra
na região dos mortos (v. 18).
A Sabedoria do Antigo Testamento, apesar de certas tendências
Na Eucaristia, na Ceia do Senhor, na perene Vigília de para hipostasiã-la, jamais se tornou uma sabedoria misteriosa, preier-
seu Dom, estes dois momentos são compreendidos sob os sinais vada a um grupo fechado de iniciados. Ela estã ao alcance do povn,
do Pão e do Vinho: , nela, da humanidade nazarena dos con- é realista, fica com os pés no chão. O seu convite dirige-se a todos
.vivas, é qne o Senhor quer ressurgir em seu Corpo Pascal, na ( cf. vv. 3-5). :li possível que Jesus, na parábola do banquete (Mt
22,lss; Lc 14,16ss), se tenha inspirado neste passo.
unidade do Esplrito em ato de Comunhão. E isto até perfazer-se Os convites ·da Sabedoria e da Loucura são introduzidos da mesma
o desvelamento definit}vo da Palavra que veio sob a forma de maneira: «Quem for simples apresente-sei Aos insensatos ela disse ... >
um tornar-se-homem. (vv. 4 e 6). Pode ser que o autor por esta formulação tenha querido
sugerir a perplexidade e a ambigllidade diante das quais a vida coloca
. Benjamin de Souza, O.S.B. os desprevenidos. A vida põe o homem sempre< de novo em uma encru-
São Paulo, SP zilhada. Ele tem de fazer a escolha certa e procurar subsidias que o
ajudem a acertar.
O próprio texto jã fornece tais subsldios. A Sabedoria é apresen-
tada como uma dona-de-casa sensata, dedicada e responsável que pre-
para a ceia e - permanecendo ela mesma· em casa como convém
(conforme os costumes da época e da cultural) - manda os empre-
gados chamar os convidados. A Loucura comporta-se como uma mulher-
da-vida que, sentada à porta da casa, alicia os estranhos que passam
(cf. 5,15-18) para afazeres que não suportam a luz do dia. São dois
tipos de comportamento diferentes que sugerem, por si mesmos, o
caminho certo e errado.
A primeira parte da parãbola (9,1-6) é muitas vezes adaptada à
liturgia eucar!stica para evocar a mesa do pão e do vinho preparada
pelo Senhor da vida.
BfbJiogra/Ia: H. D u e s b erg - P.A u v r a y, Le Livre des Pro'lltrbes. Blble
de Jerusalém; J. v a n d e r PJ o e g, Spreuken; O. v o n R a d, Teologia do
Antigo Testamento; Raul C. M. Rui J s, Salmo 1: da Forma ao Contetido, em
J. S a 1 v a d o r e.o., Atualidades Bibli,as, Petróp-olls 1971, p. 256-276.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ

300 391
Segunda Le!tum: Ef 5,15-20 Terceira Leitura: Jo 6,51-58 (gr.)
Esta segunda leitura continua a reflexão de Paulo sobre a vida do Cf. a Pista Exegética da Solenidade do Santíssimo Corpo e
homem novo. Não se trata de uma reflexão moralista, mas do convite Sangue de Cristo na Mesa da Palavra, Ano A, p. 271-275.
a se tirar as conseqüências do compromisso assumido no batismo.
Mais uma vez o cristianismo é apresentado como um caminho a ser
percorrido (cl. At 9,2; 18,26). A fé seria o início de uma caminhada
que tem por meta a ressurreição em Deus.
O homem, uma vez iluminado (v•. 14) pela. sabedoria de Deus Tema Principal
(cf. !Cor 1,17-31), deve agir segundo essa mesma sabedorb, fazendo-a
frutificar para sua própria vantagem. A luz pode perder sua força, mas MINHA CARNE P~RA A VIDA DO MUNDO
também pode se fortificar pelo uso, o sábio vive segundo sua mente e
coração iluminados pela sabedoria. ·
O tempo é curto, e o cristão, embora assediado poi mil dificuldades
do mundo e dos homens que fazem este tempo mau t:(Qo 9,10), deve Sugestões para a Homilia
tirar o maior proveito ' do tempo de vida que lhe foi concedido. O
tema sapiencial dos dias maus, onde dominam o pecado, as tentações Introdução
e as más ações do «homem velho», aqui como nos Sinóticos é apre-
sentado como dos últimos tempos, em oposição aos <tempos bon0» que Nessa curta. perlcope de João entrelaçam-se três mve1s de
acontecerão - no século futuro. Trata-se de uma admóestação geral e
não especifica desta comunidade, a fim de que o cristão se prepare afinnação. Um refere-se ao mistério histórico de Jesus. Outro
para a parusia. O cristão sábio saberá tirar água das rochas, isto é, exprime o modo como o cristão da comunidade primitiva pode
auferir dos tempos maus um bem, no meio do mal ;:optar pelo bem, participar dessa realidade pela fé. E num aprofundamento desse
escolher o melhor em cada situação. Como sâhio descobre a vontade filão; João introduz a participação através do sacramento euca-
de Deus nas realidaes, também más, da vida e a norteia segundo essa ristico, com tudo que isso implica para a comunidade dos crís!ãos.
mesma vontade.
A úl!)ma parte da leitura parece referir-se às celebrações agápicas, Esse mesmo processo devemos refazer hoje no nosso contexto
onde aconteceram abusos (cl. 1Cor 11,20-22). É notório que o homem de cristãos latino-americanos. Reencontrar-nos com o Jesus de
procura no álcool esquecer, ou falsamente superar, as dificuldades de Nazaré pela mediação da fé, do sacramei:ito e da conseqüente
sua vida. Essa atitude de. fuga, ao contrário de resolver os problemas, prática da caridade.
abre a porta para a irresponsabilidade e obscurece .. a sabedoria do
homem._ Paulo usa a terminologia da fuga, «embriagar~se~, para indicar
uma atitude de engajamento. O ·homem que se deixa embriagar pelo Corpo
Espírito Santo é o que abre espaço dentro de si para Deus. Não
creio que se precise apelar para a terminologia dos cultos dionislacos 1. A verdade da «carn"" de jesus
para explicar · esse uso feito por Paulo. Ele faz apenas uma transpo-
'' sição semântica a partir~ da experiência de vida; sua e da comunidade, Já desde os albores do cristianismo, os homens sentiram
. Possuído pelo Espírito Santo, o homem encontra palavras para dificuldades em aceitar a verdade desconcertante da humanidade
a exortação mútua e para louvar a Deus que o criou e salvou. A frágil do Verbo divino. Ou refugiam-se num jesus «mero homem»
boca do .homem cantará e falará do que seu coração, fonte de decisões (psilos anthropos dos ebionitas) ou preferem reter a aparência
e . amor, .está .cheio, o Espírito Santo.
A .última frase, interpretada como participação na Eucaristia por humana de um deus vestido de corpo etéreo, irreal ( docetas).
Schlier, significaria que : a comunidade. se reunia sob a proteção do João defronta-se certamente com grupos désse segundo tipo, de
nome de Cristo (cf. !Cor 5,4). Paulo teria em mente, ao escrever esta caráter gnóstico. A carne de Jesus não passava para eles de
carta, as assembléias comunitárias que se reuniam para a Eucaristia, e mero artifício para a divindade apresentar-se, sem que aquela
que durante a mesma liam suas cartas, louvando e agradecendo ao fosse verdadeiramente assumida. João reafirma nesses poucos
Senhor.
versículos a dupla verdade humana de Jesus: sua encarnação
Bibliografia: C o n z e 1 m a n n H.·O. P r J e d r i e h, Epistolas de Ia Cautividad, na fraqueza da carne e sua morte oblativa. «Ü pão vivo descido
Fax, Madrid 1962; S t a a b K.-N. B r o x, Cartas de la Cautividad, Herder, Barcelona
1974; Biblia Comentada VI (19),- BAC, Madrid. 1975; Se b 1 i e r H., La lettera do céu» exprime craramente o mistério da Encarnação. Para
agll E/esinl, Paid~Ja, Brescfa 1973; Z e r w i e k M., LeHera agli Bfesinl, Città
Nu1>va, Roma 1966. evitar qualquer resquício de dúvida, acres'centa que esse «pão
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.j. é sua carne:>. 'Usa precisamente o mesmo termo com que des-
Paulista, PE creve a Encarnação: «E o Verbo se fez carne» (Jo 1,14). Não
392 • 393
se pode perder em nenhum espiritualismo que diminua a histo- cbeber seu sangue». Não há dúvida que se trata de algo
ricidade humana, de carne, de Jesus. bem visível, sacramental, real. Participação através de sinais
Um olhar acostumado ao vocabulário sacrifical do Novo perceptíveis.
Testamento, percebe também no texto de João a alusão à morte Esse aspecto foi muito retido pela tradição da Igreja, até
de Jesus. Não somente se trata de alguém qne assumiu verda- as raias do mágico. Esquece-se, porém, que João corrige uma
deiramente a humanidade, mas que não escapou ao grande des• intelecção materialista, mágica do sacramento. É necessário um
tino de todos os homens: morrer. Mais. Sua morte se faz num comer físico. Mas ele é sinal, expressão, meio, para a verda-
sentido de entrega, de sacrifício. «É a minha carne para a vida deira realidade em questão «ler a vida em si» (53), «ter a
do mundo». A expressão «para a vida do mundo» significa, vida eterna» (54), «permanecer nele e ele permanecer em nós»
pois, uma alusão clara à morte de sacriflcio na cruz conforme (56), «viver por meio dele» (57). Portanto, o fundamental é
o uso lingüístico da comunidade primitiva (Me 14,24; Lc 22, 19; viver de Cristo, é participar de sua vida, é permanecer nere,
Rm 8,32; lCor 15,3; 2Cor 5,21), OI 1,4; 2,20; 3,13 etc.). é ter a vida dele. Ora, essa vida é aquela de que se falava antes :
Expressão estreitamente ligada com a instituição da Eucaristia, «na historicidade da carne». A participação eucarística é a ponte
onde aparece claramente o contexto de sua morte (!Cor 11,24; simbólica e mística que liga o fiel com o Jesus da História.
Lc 22,19). Coloca-o diante dos mistérios de Jesus, fá-lo participar deles,
Portanto, para João, qualquer reflexão sobre a fé em Jesus, como exigência para sua prática presente. Não é, pois, uma
sobre o sacramento, tem como pouto de partida imprescindível, participação mágica, de uma fisicidade meramente material de
. '' fundamental, o re-conhecimento da carne histórica de Jesus, de receber o sacramento. Supõe o compromisso de vida: viver nele
i ~
seu existir humano, visível. e ele viver em nós. Essa ligação íntima de vida, que termina
na escatologia pela ressurreição final (6,54.58), exprime o cerne
2. A ponte da fé e da sacramento da participação eucarística para João. Ela tende à união pessoal
A realidade fundamentar é o Jesus da História, o nazareno, com o Jesus Ressuscitado, que é o mesmo da Palestina, com
que na fragilidade da carne viveu entre nós, morreu numa cruz, toda a sua vida de compromisso humano assumido nos anos
como entrega de si ao Pai e aos homens. Como participar vividos entre nós. A vida que Jesus comunica é imperecíver,
desses mistérios? Como ligar-se com esse Jesus? Como viver porque nos coloca em união íntima com ele, que recebeu do
de sua vida, deixar-se possuir por ele? João responde a essas Pai - fonte da vida - a própria vida d'Ele. «0 Pai que é
perguntas apontando a dupla via de acesso a Jesus: fé e par- vivo>>, «eu vivo através do Pai» (6,57) revela a natureza dessa
ticipação eucarística. Na primeira parte do sermão trata mais vida que Jesus comunica através da participação de sua carne
diretamente dessa aproximação a Jesus pela fé: «Eu sou o pão e sangue pela Eucaristia.
de vida. Quem vem a mim ( = quem crê) não terá nunca fome;
quem crê em mim, não terá jamais sede» (6,35). 3. A eucaristia num contexto de «lllOrle»
A perícope de hoje, concentra-se mais diretamente no se- A idéia central de João é de que Jesus é fonte de vida,
gundo meio de acesso aos mistérios históricos de Jesus: «se recebida do Pai vivo, e que no-la comunica através da man-
não comerdes a carne do Filho do homem e se não beberdes ducação de sua carne e bebida de seu sangue. Assim o . cristão
seu sangue, não tereis a vida em vós» (6,53). João situa o entra em comunhão com a sua vida, vivida na historicidade
leitor diante de uma dupla falsa intelecção desse acesso a Jesus. da carne -na 'Pales'tina 'e glorificada na ressurreição, e agora
Assumir o sacramento como metáfora, como mero símbolo de presente de 'modo misterioso, real à comunidade dos fiéis. A
algum vínculo qualquer. Aparece tal dúvida através da perple- força do pensamento de joão concentra-se na realidade da
Y.idade dos judeus que se interrogam «como este homem pode «vida». Não se pode entender nem Jesus, nem a fé n'Ele, nem
dar-nos sua carne para comer»? (6,52). E na resposta há um a Eucaristia, sem a realidade da «Vida».
reforço e não abrandamento. Jesus repete a expressão «comer No nível simbólico, escatológico, do dinamismo de histori-
a carne do Filho do homem» e acrescenta outra expressão ainda cizar-se, já vivemos, de fato, dessa vida na Eucaristia, na fé.
mais realista e de certo modo escaftdafosa para os judeus: Contudo, isso acontece dentro de um contexto soi:ial profunda-
394 395
mente marcado pela morte. Vivemos num Continente, em que Vigésimo Primeiro Domingo
a maioria das pessoas «morre antes do tempo». Umas nem
nascem. Outras morrem antes do 3• ano. E as grandes maiorias do Tempo Comum
morrem aceleradamente cada dia, minadas pela desnutrição, pelas Pistas Exegéticas
doenças, pela miséria, pela precariedade das condições humanas
Primeira Leitura: Js 24,1-2a.15°17.18b
de viver. E que significa celebrar aí, nessa situação bem con-
creta, o mistério da vida? Que significa a autodefinição de «Também nós serviremos a Jahve porque ele é nosso Deus:;.
Jesus: eu sou o Pão da vida?
Contexto literário de /s 24,1-2a.15-17.18b. Todo o capítulo 24,1-28
Cada celebração só adquire sentido, na medida em que se compõe, do ponto de vista formal, de elementos narrativos e de dis-
aponta de modo simbólico e escatológico, jã realizado definiti- cursos. As partes narrativas, vv. J.25s.28, lidas num puxar de fôlego,
vamente em Jesus, para a plenitude da vida. Todos somos cha- não formam uma narração em si. Nos versículos restantes 2-24.27 se
encontram discursos divididos formalmente em duas partes: na primeira
mados a ela. Doutro lado, esse dinamismo escatológico tem um discurso de Iabve (vv. 2-13) e na segunda um diálogo entre Josué
dupla dimensão: do «ainda não» e do «já». O «ainda não» (vv. 14s.19s.22s) e o povo (vv. 16-18.21.24). A leitura deste domingo,
aparece-nos claro, ao constatarmos a distância que nos separa portanto, se compõe de alguns elementos narrativos e de uma parte
dessa vida anunciada. Contudo, cabe-nos agora, na força do do diálogo entre Josué e o povo (cf. Perlitt, p. 239-247).
A época da composição de ]s 24. Os elementos da moldura narra-
Espírito, viver o «jâ» dessa vida, através de nosso testemunho, tiva (js 24,1.255.28) contêm dados da época pré-estatal de Israel, como
de nossa prãtica. Esse «já» se realiza em todo lugar em que os o Hder Josué e a reunião das tribos de Jsrael em Siquém. Lendo-se,
bens materiais sejam distribuídos socialmente para que mais no entanto, com atenção js 24 percebe-se logo que este capitulo não
gente viva; que os bens políticos se democratizem, para que fundamenta a unidade de Israel, mas a supõe como já existente. Se
mais gente se personalize; que os bens culturais, espirituais se então js 24,1-28 não foi composto na época pré-estatal de Israel pode-
se perguntar: Quando surgiu esta passagem? O pano de fundo js 24
difundam, para que mais gente se plenifique. Cada celebração parece ser um século com uma situação politicamente muito instável
do «Pão da vida» pelos cristãos se historiciza, não somente e com uma constante repressão da f-é em 1ahve. Isto nos leva a co-
através da vivência simbolicamente real da participação da rea- gitar no tempo entre 701-609 aC. Este per!odo foi inicialmente marcado
lidade escatológica, mas também através de toda participação pelo rei de Judá Manassés (696-841 aC). Este manifestou de tal ma-
neira a sua submissão e lealdade ao rei dos assírios, para se conservar
de bens humanos, materiais, culturais, que termine no aumento seguro no trono de Judá, que transformou o templo de labve em
de vida dos mais necessitados. Cada eucaristia é um protesto Jerusalém, em um santuário dos deuses assírios. Por causa desta vas-
contra o reino da morte, pelo anúncio da ressurreição de Jesus salagem pol!tico-religiosa, a qualquer preço, ele foi chamado pela fonte
e nossa, e pela condenação de todos os mecanismos e estru- literária deuteronornista o apóstata por excelência. E esta onda de
turas geradores de morte, de miséria. A Eucaristia exprime, apostasias dos israelitas de Iahve cresceu tanto que nem o rei Josias
(639-608 aC), o iabvista ideal, conseguiu estancar. É sob este prisma
enfim, o grande compromisso do cristão com a «Vida do mundo», que se deve escutar e ler a nossa passagem js 24,1-2a.15-17.18b e todo
já que ele recebeu o Pão vivo do Céu, a carne dada para vi- este capítulo do livro de Josué (cf. Perlitt, p. 271-279).
vificar esse mundo, em todas as suas dimensões, até o pleno Comentários de }s 24,1-2a.15-17.18b. A terminologia e os temas
desabrochar na plenitude final. aqui tratados também revelam a época histórica supra-aludida. A expres-
são «todas as tribos de 1srael» no v. l manifesta o conjunto do povo
israelita e se restringe às diversas camadas literárias da obra histó-
joão Batista Libãnio, S.J. rica deuteronomista. E a ladainha dos convocados por Josué para Siquém
Rio de janeiro, RJ (v. 1), que tem como finalidade revestir a cena com o cunho oficial
e autoritativo (cf. 2Rs 23,ls), nunca é encontrada fora da literatura
deuteronômica/deuteronomista.
E, além disso, o aposto Iabve, «Deus de Israel» (vv. 2.23), é
~bém dominantemente empregado nesta camada deuteronômica. E esta
enfatização é importante e tem suas razões bem óbvias porque o povo
israelita, convocado para Siquém e colocado diante de Jahve, já há
tempo não tem mais só experiências com lahve, mas também com

1 outros deuses. Não é mais tão natural que Jahve seja o Deus de Jsrael.
Por isso, Josué coloca os israelitas diante da decisão: servir a
Iahve ou aos deuses dos ancestrais ou aos deuses dos amorreus (v. 15).

396 397
O que quer dizer isto? Primeiramente a expressão «venerar os deuses A carta manifesta claramente a alt!ssima concepção do matrimônio
dos ancestrais não quer apenas aludir a um falo do passado que os cristão, já esboçada em !Cor 7,1-9, tomando por modelo a relação
ancestrais do povo de Israel veneravam deuses. Mas a veneração de Cristo-Igreja. A impressão· que se tem é de Paulo ter proposto o tema
deuses pelos <nossos ancestrais:r; «no outro lado do rio» aponta para a do matrimônio, mas ter-se preocupado mais em desenvolver o da rela-
Assíria na parle oriental do rio Jordão, que agora subjuga polltica e reli- ção Cristo-Igreja, valendo-se das imagens cabeça-corpo, esposo-esposa.
giosamente o povo israelita. Em jerusalém os deuses foram expostos No Antigo Testamento e nas tradições do Novo, o autor encontrou
para veneração pública. E este é o perigo de vida e de morte para o os primeiros passos do desenvolvimento da doutrina do relacionamento
pov~ de Israel, para o qual se aler~a. Uma situação dessas só pode amoroso de Deus-Cristo com a comunidade. Oséias (2,4-25) desenvolveu
aludir ao século VII aC. E, além disso, a constatação da veneração a idéia do adultério do povo de Israel em relação a Deus (cf. Is 54,5;
dos deuses dos amorreus, «que vivem no meio de vó&» a oeste do 62,5s). Ezeqniel comparou o povo a uma jovem de quem Deus cuidou
rio Jordão, também não quer ser apenas uma reminiscênci~ do passado mas foi traido (Ez 16). joão Batista chamou Cristo de . esposo (Jo
mas apontar i:ara outro perigo no presente, isto é, a opção pelos seus 3,29), e o próprio Cristo se considerou como tal (Me 2,19s), como
deuses. A tôruca, portanto, não se encontra na alusão aos amorreus também apresentou o seu Reino comparando-o a um banquete de núpcias
como um povo do passado, mas no perigo polftico e religioso que re- (Mt 22,1-14) e o Apocalipse (19,7) fala das bodas do Cordeiro.
presentam para os israelitas no presente, cujos deuses podiam ser ve- Na comparação entre a realidade de Cristo e a dos homens, porém,
nerados por eles. Foi talvez a situação de vassalagem dos israelitas percebe-se imediatamente uma diferença marcante: Cristo, cabeça, é sal-
aos reis assírios e. a convivência próxima dos amorreus com o povo vador da Igreja, seu Corpo; Aqui, vê-se que toda comparação manca, e
de Israel que obrigou o redator da fonte literária deuteronômica a que o mafrimônio humano é um débil sinal de uma realidade maior.
!•lar . clarament_e do perigo dos deuses estrangeiros para a religião Por outro lado, pode-se ver esta realidade maior, como uma meta a
israelita, revestindo, porém, sua catequese com dados da história do ser realizada em parte no matrimônio cristão. O marido que ama sua
passado. esposa a ponto de dar a sua vida por ela, de algum modo <a salva>.
Esta pregação deuteronômica quer convidar os israelitas - e hoje Cristo é cabeça da Igreja enquanto é seu chefe e a salva, isto é,
a nós - a uma clara e única opção por Jahve. Josué e sua familia a ama como a seu próprio corpo, entregando-se por e1a; _por isso a
(v. 15) e os israelitas (v. 18) se decidiram por Jahve pois só ele Igreja necessariamente lhe é submissa. Pode-se então concluir que se
é Libertador verdadeiro e Protetor fiel (vv. 17s) no c~nho da vida o marido preenche esses requisitos, necessariamente a mulher encontrará
(cf. Perlitt, p. 247-260). , sentido em lhe ser submissa em tudo, quer dizer, sem Caprichos ou
abusos.
Bibliografia: Per 11 t t~. L.é Bundestheologie im Allen Testament WMANT 36 Por um momento Paulo volta à situação anterior à fundação da
Neukircbener Verlag 1!169; me ar t b y, D. J., Treafy tJnd Covenant' An Bibl 21' Igreja-comunidade. O anúncio da palavra e o batismo constituem a co-
Roma 1963. ' · · •
munidade, transformam um grupo de pessoas em Igreja, fazem com
Pe. Pedro Kramer, O.S,P.S. que desapareçam «manchas, rugas e coisas semelhantes», características
Porto Alegre, RS do homem velho, e nasça uma comunidade «Santa e irrepreensível>.
Cristo amoú os homens e deu a eles a condição de constituírem na
Igreja o seu Corpo e de serem a Igreja, sua esposa. O batismo e a
Segunda Leitura: Ili 5,21·32 palavra purificam os homens (cf. jo 15,3; 13,6.11) e são uma expli-
citação do que seja o amor de Cristo pela Igreja. Essa mesma imagem
Este texto de Efésios mais do que seu paralelo de CI 3 18s foi encontramos em Ezequiel (16,9), referindo-se a Israel que' pelo banho
sobremaneira estudado devido ao desenvolvimento dado à idéia d~ espon- se prepara para a Aliança, como também entre os orientais se preparava
sallcio entre Cristo e a Igreja. Paulo aqui não procura desenvolver a noiva, através de banhos rituais, para o casamento.
uma moral cristã específica, mas dá um fundamento cristão para o que No texto de Oênesis sobre o matrimônio, Paulo encontra, habil-
ele encontra de válido na sociedade. mente passando do termo «carne> do Oênesis para «corpo> do texto,
O autor lança as bases da nova re1ação entre os homens, o temor uma prefiguração da união Cristo-Igreja, pois como o homem une-se
de Deus, o temor de Cristo. O texto, em estudo, refere-se a lo.da a à sua mulher e constituem uma só carne, assim também a cabeça
comunidade, por conseguinte ao marido e à mulher e não só à muiher estâ unida ao corpo, Cristo à Igreja. E esse é o grande mistério,
como em CI 3,18. o V. 23 faz a aplicação, em relação à mulher do · escondido e agora revelado, como o da conversão dos pagãos (1,9s.33s;
principio enunci~do no v. 22, introduzindo, porém, uma clãusula ~ova Rm 16,25): Deus (<UllOU de tal modo os homens, que em Cristo se
a esse fato social da época; trata-se da submissão ceamo ao Senhor». uniu à humanidade, formando com ela, pela Igreja, um corpo onde
à primeira vista, Paulo não rompe com o esquema social tradicional Ele é a cabeça e nós os membros. E claro que a Igreja não se iden-
~as ~ consideranno..s que o marido é comparado ao Senhor, a exigên~ tifica com a humanidade, mas na Igreja concretiza-se o plano que Deus
eia feita a este é !ao grande ou maior que aquela de submissão feita quis realizar com Ioda a humanidade.
à mulher. Antes de ser um privilégio traia-se de uma responsabilidade Pode-se ver então no matrimônio cristão o reflexo da misteriosa
dada. ao homem, .imitar o Cristo, e não uma justificativa para qualquer união de Deus -com a humanidade, e o casal cristão verã na relação
espécie de despotismo. Cristo-Igreja o protótipo de sua vida.

398 .399
Blbllograjfa: C o -n z e Jm a n n H.-0. P r J e d r 1 e h, Epistolas de la Cauüvidad,
P-ax1 Madrid 1962; S t a a b K.-N. B r o x. Cartas de la Cauiividad, Herder, Barcelona
de Nazaré um enviado de Deus. A Jui de sua ressurre1çao e exaltação
l.974j Biblia 'Comentada V1 (lv), BAC, Madrid 1975; Se h 1 J e r H., La lettera por Deus é que o reconhecemos como tal e suas palavras se tornam
agll Bfesinl, - Paldêla, Brescla 1973; Z e r w i e k M., Letlera agli Efesini, Città realidade divina para nós, cespírito e vida> (v. 63). Isto é muito sério:
Nuova, Roma 1966.
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J. Jesus não é mensageiro de Deus por. causa daquilo que humanamente
•Paulista, PE podemos apreciar nele (por exemplo~· sua inteligência, sua visão da
sociedade), mas por aquilo que é reyelado êm sua exaltação. Ora, a
«exaltação> de jesus, segundo jo, re~iza-se, antes de tudo, na cruz
Terceira Leitura: ]o 6,60-69 (gr.) (Jo 12,32s). É ai que Jesus se torna compreensivel... Quem não o
compreender naquele momento, nunca o compreenderâ! Neste sentido, o
1. Contexto • v. 63 provoca uma decisão pró ou contra, e é nos mesmos termos que
Jo 6,60-71 forma a conclusão da unidade literária constitulda pelo Pedro darâ a resposta - favorável - no v. 67. Portanto, depois do
cap. 6 de Jo. Nesta unidade, podemos distinguir três momentos: !) o ensinamento de Cristo, a «exaltação» não forma tanto um novo «escân...
sinal, a multiplicação dos pães (w. 1-15); 2) depois de uma transição, dalo> (paradoxo), mas mostra (como também a alusão à sua doação
constitu!da pela perlcope tradicional da caminhada sobre as águas (w. de vida em v. 5Jc) qual é o verdadeiro escândalo de jesus. O escân-
16-24), a explicação do sinal, o Discurso do Pão da Vida (vv. 25-59); dalo de Jesus é que o Revelador de Deus é aquele que é elevado na
3) o resultado, a decisão para a fé ou a incredulidade (w. 60-71). cruz e assim (e só assim) também na glória A carne de nada serve.
Para bem 'entender estes últimos vers!culos, é .preciso ter na mente (Contrariamente a Schnackenburg, e r baseando-nos na -analogia com
todo o capitulo. ,- 3,6ss etc., entendemos sarx [carne] no v. 63 como referindo-se ao
homem em geral, e não meramente à éxistência humana de Jesus, como
2. Exegese de ]o 6,60-69 • oposta à sua glorificação. Porém, é possível que Jo, além de que.rer
dizer que as categorias humanas não adiantam, também tenha pensado
<Dura é esta palavra. (v. 60). Considerando-se o contexto na existência «carnal» de Jesus, como não sendo em si decisiva para a
imediato parece que a dificuldade da palavra de Jesus se refere ao fé, jã que esta precisa do Espírito. · Contudo, a <Carne» de Jesus é
dar seu' corpo e sangue em comida e bebida (w. 52-58). Mas como indispensável [cf. Jo 1,14; lJo 4,2 etc.].)
o termo . <palavra> (logos) significa também «discurso> e não há ne- Nos; vv. 64-86, Jesus de~unc!a a incredulidade. C?s .vv. 64b_--65 e 70~
nhuma razão constrangente para pensar que a d_ificuldade se refira só relacionam isto com a presc1ênc1a de .jesus quanto a 1ncreduhdade e a
à última parte deste discurso, parece-nos que a objeção dos ouvintes traição de Judas. Como já foi dito (vv. 37 e 44), ninguém pode vir
concerne ao discurso todo, que, depois da fórmula de conclusão no a Jesus ·por força própria. A fé é dom do Pai. Aqui também mos!"a-~e
v. 59J pode· ser considerado como um conjunto. jã na incompreensão a necessidade da outra dimensão que 'não só a «carne,.. A presc1ênc1a
do v. 34 e• na murmuração dos vv. 4ls e 52 mostrou-se que o dis- de Jesus não sjgnifica predestinação, mas antes, sua união com o ~ai,
curso era djfícil. Era dillcil aceitar que Jesus vem do céu. Mais dillcil que conhece quem recebe seu dom, e a soberania com que ele enfrenta
ainda, responde ele, será admitir que ele volta para lá (v. 62). E so- seu destino. O v. 66 pode ser uma resposta à objeção de que o sucesso
bretudo o voltar de jesus, isto é, a fé na ressurreição de Jesus Cristo, de Jesus diminuiu : é porque muitos não se deixam atrair pelo Pai.
que afasta .·os candidatos, ou, como ilustra a perícope, instaura uma «Tu' tens palavras de vida eterna>'" (v. 67). Na decisão, Pedro con-
divisão entre os que crêem e os que não crêem. firma o que foi provocado por Jesus no v. 63. Pedro reconhece que
A. resposta de jesus, nos vv. 62s, natura1mente não é uma resposta só o Espírito vivifica, e que este se encontra na palavra de jesus. Na
à objeção, 'não resolve o «escândalo> (paradoxo) que eles enfrentam situação de desafio é que o homem rtoma a sua decisão de fé, e é
(v. 61) .. Antes, determina melhor o momento decisivo, Não são estas nesta decisão que Cristo e sua palavra se tornam revelação para a
palavras diffoeis, mas sobretudo a cexaltação> de' Jesus (cf. Jo 3,14-16; gente. Pedro chama jesus o Santo <!e Deus (v.. 69). Diferent~me_nte
12,32s; 17,lss) que representa o paradoxo da ·fé. Mas é também a dos Sinóticos, Jo evita dar a jesus um título tecrucamente mess1âmco.
partir desta': exaltação, qu_e a fé se torna possível (pelo dom do Espí- Na Profissão de Fé de Pedro, nos Sinóticos, Jesus é confessado como
rito, cf. 7,39 e 6,631). Mais ainda, ela é o conteúdo fundamental da Cristo, ou seja, Messias. jo evita este titulo aqui, p~ra excluir qualquer
fé. lnterprefarlamos, portanto, o v. 62 no sentido de que o prôblema categoria «carnal». Pois os judeus pensavam o Messias em t_ermos bas-
da fé se cóloca em termos claros a partir da exaltação do Filho do tante ccarnais» (messianismo terrestre, l nacional etc.).
Homem.
Restlmindo, podemos dizer que o importante, ·neste episódio, é notar
«O espfrito é que vivifica> (v. 63). Para entender o mistério do como súrge e .se decide a decisão da' fé. Ela surge no paradoxo, no
Filho do Homem que desce do céu, é necessária a exaltação, que dá «escând3loJo, para pôr fim à ambição d.o nosso pensar e sentir humano.
o Espírito. Só quem recebe o Esplrito, pode receber na fé o evento Então, diante deste impasse é que a r,pessoa s~ entrega ou se recusa
da revelaçãÓ de Deus em jesus Cristo. Quem fica raciocinando no nível
da ccarne»,· 1isto é, dentro de parâmetros mefamente humanos {ccarne>, àquele que, na sua cexaltação», se mostra ser aquele que vem de Deus.
cf., por exemplo, Js 40,6: ctoda carne é como erva>), não pode acolher '
o que Jesus mostra de Deus. «A carne (notem bem: aqui, Jesus não 3. Função na litürgia do dia
' l . •
diz: «minha carne>, como em v. 56!) não serve de nada> (v. 63). Em A liturgia deste domingo é um tanto heterogênea. A 2' leitura não
outros termos: humanamente falando, não é possível reconhecer em jesus participa da temática comum das duas outras. Na 1• é exigida a de-
400 401
c1sao dos israelitas pró ou contra Javé, resp. o javismo proposto por ama, e se entrega por eles, a fim de purificã-los com o banho
Josué. Esta decisão tem razões humanamente plausíveis: Javé é quem da ãgua e santificã-los pela palavra, para apresentã-los a si
libertou Israel do Egito. A escolha pró ou contra jesus, sugerida por
jo no evangelho, não tem tais razões humanamente interessantes. Trata- mesmo gloriosos, sem manchas nem rugas ou coisa semelhante,
se de entregar-se a um modo de existir que não é nosso. Jesus não mas santos e irrepreensíveis (segunda leitura).
fornece argumentos: a fé é a fé. Trata-se de aceitar esta vida de Nisto, 'el'e vai mesmo até o fim (Jo 13,1), como o amante,
jesus como sendo sua volta à existência na glória <antes da fundação apaixonado pela mulher amada. Sacrifica tudo e sacrifica até a
do cosmo» (Jo 17,lss), e de tirar dai a lição: este é o rumo da si mesmo, perseguindo o seu amor como um louco, procurando,
«Vida eierna».
johan Konings solicitando, suplicando, perdoando as infidelidades, e reatando
Porto Alegre, RS a relação (Oséias 1-3). Finalmente, no seu Filho, ele se entrega
até à morte, e morte de cruz (segunda leitura: Fl 2,8).
Sugestões, para a Homilia A história-de-amor de Deus aperfeiçoa o romance mais per-
feito, no que toca à auto-entrega do amante. Evita, poré~, o
Introdução ponto fraco de quase toda história de amor humana, porque não
Não sei quem escreveu, nem se jã foi escrito; mas se ainda prende, · não toma, não conquista, - para Deus não hã con-
não foi, devia ser escrito: o romance do homem que tanto quista de amor: amor e conquista são contraditórios, - nem
amava uma mulher, que tudo, absolutamente tudo fazia para impõe ou força. Nisto encontram-se a primeira e a terceira
conquistã-la. Esforçava-se por agradar-lhe, comprava presentes, leituras. de hoje. Desde o Antigo Testamento até hoje, a ini-
mandava flores, escrevia cartas, efundindo nelas seu coração. ciativa é inteiramente de Deus. A iniciativa de Deus envolve
E quando perto, inventava e sabia achar as mais belas palavras o romance - história, na sua totalidade, do começo até o fim :
e mais atraentes expressões de amor. lança o começo, e garante o fim. No entanto, dentro desta ini-
Havia, porém, no amor dele um ponto fraco. É que não ciativa total, Deus oferece ao seu povo a fórmula da al'iança,
admitia nem permitia uma ,recusa, nem podia imaginar uma honrando ao máximo a sua dignidade de povo livre. Mistério
resposta negativa aos seus apelos de amor. Com todas as inven- insondável: que dentro da iniciativa total e envolvente de Deus,
ções e provas de seu amor, ele ia envolvendo a amiga, cercando-a, o povo, eleito pode e deve decidir, com toda a liberdade, deve
acuando-a, obrigando-a, não deixando-lhe o espaço e a llberdade, e pode dar o seu sim ou não ao amor-convite de Javé.
para nascer, desabrochar e crescer nela a resposta livre de amor; jesus encontra-se e mantém-se na mesma linha - linha
mas impondo esta resposta, e;dgindo-a, extorquindo-a, até. . . até libertadora também sob este aspecto. Apela, convida, insiste,
descobrir que tinha nos braços apenas uma boneca, um mane- corre atrás da ovelha desgarrada; mas não força jamais. ·A
quim, um robô, em vez de uma pessoa humana. Uma mulher resposta, ele a espera apenas. Uns aceitam: Zaqueu, a mulher
que dizia sim ao apelo dele, mas não era ela, era ele mesmo adúltera, Nicodemos (?). Outros não: o jovem rico, judas, os
que a fazia dizer. Era o sim dele mesmo. Não era ela que se chefes do povo. . . Jesus somente oferece, chama e. . . espera,
entregava: era ele que a tomava. Era conquista mesmo, não com a paciência do amor (cf. !Cor 13,4). Assim, nesta leitura
fruto de liberdade. Não era amor. do evangelho: afastaram-se as muitidões, afastaram-se muitos
discípulos. Então, Jesus diz aos doze: «Não quereis também
Corpo partir?» É num contexto análogo, que Paulo exclama: «Õ abismo
Hã um outro romance, que não é propriamente romance, e, da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são inson-
sim, uma história verdadeira: ,do Deus que tanto ama os homens, dãveis seus juízos e impenetrãveis seus caminhos! ~ . . Tudo é
que tudo, absorutamente tudo faz, para merecer e ganhar o dele e por ele e para ele. A ele a glória pelos séculos! Amém»
amor deles. Começa por criã-los, pondo-os na existência, pois (Rm li,33-36).
nem isto eles tinham. Em seguida, vai cumulando-os de bene- E agora? Para nós? Parece haver uma dupla mensagem na
flcios e de provas de amor, libertando-os da terra do Egito, liturgia' de hoje. Em relação a Deus e a Jesus Cristo: É possível
da casa da escravidão, faz.endo para eles grandes sinais e resistir? Serã que se pode endurecer o coração?
guardando-os por todo o caminho que andam, e entre todos os E em relação à ação cristã no mundo : «Sede perfeitos,
povos pelo meio dos quais 'passam (primeira leitura). Ele os como o vosso Pai é perfeito». Perfeito, de uma peça só: nunca

402 403
perdendo de vista a meta marcada, firme e constante até o fim, Vigésimo Segundo Domingo
mas com uma firmeza e constância sem violência. Quanto maior
o amor, menor a violência. Não é verdade que muita$ vezes do Tempo Comum
procuramos suprir a falta de amor pela força? A violência e Pistas Exegéticas
a força não são, tal qual o ciúme, fraquezas do amor, amor
falho? Os pais amam os filhos e desejam a felicidade deles. Primeira Leitura: Dt 4,1-2.6·_8
Mas os filhos são recalcitrantes: não aceitam os conselhos dos
pais e não querem fazer o que leva à felicidade. Não se. tornam, «Escuta, Israel, as leis que te ensino para. que as pratiqueS>
então, os pais facilmente mais rigorosos, exigentes, severos? E Contexto lilerário de Dt 4,1-2.6-ll. Esta passagem deve ser situada
a educação, fruto de amor, não se torna, muitas vezes, coação e lida no contexto de todo o capítulo. Isto porque Dt 4, além de
formar uma unidàde em si, não manifesta ser •urna continuação com
e dominação? O agente social quer bem ao povo e deseja que o que lhe precede, Dt 1-3, e nem com o que lhe segue, principalmente
ele compreenda e defenda os seus direitos; mas custa tanto ... Dt 5-26. Este capitulo, no entanto, apesar de sua posição especial
Não se levanta então muitas vezes a tendência de usar 111étodos no Dt, forma com Dt 1-3 a moldura introdutória à lei deuteronômica.
cada vez mais fortes? O idealista engajado quer ver os opri- A época da "origem de Dt 4,1-2.6-ll. Estes verslculos bem como
midos livres da opressão; mas os opressores não quere111 enten- os demais que compõem Dt 4 são atribuidos à .fonte literária deutero-
dçr. Aí, a tentação de pegar nas armas. nomista. E como tal Dt 4 deve ter surgido Ílo tempo em que os
israelitas sofriam as conseqüências do exílio na'. Babilônia (cf. Perlitt,
As vezes, as armas levam a resultado. O seu alcance, porém, p. 32-35; Rad, O.· v., p. 7). Esta constatação é '.muito importante, pois
como de toda violência, é sempre curto. As armas brutalizam e situa historicamente tanto os redatores desta fànte literária como os
violentam. O amor envolve, mas deixa livre. Deixa livre, como seus destinatários.· Como exilados na Babilõniâ estão longe de sua
só o amor pode deixar. A força do amor estã na sua aparente pátria, distante de mmtos de seus familiares e amigos, impossibilitados
de viver intensamente a sua fé em Jahve e expressá-la cultualmente com
fraqueza, que na realidade é paciência, ou «firmeza permanente». liberdade já que São forçados a morar em terras estrangeiras, domi-
Não devemos perguntar-nos, sempre de novo, se a nossa nados pelo imperialismo e religião babilônicos. É fácil de compreender
ação é realmente inspirada pelo amor, pelo amor maior;? E re- que estes exilados israelitas estavam profundamente chocados com tudo
nunciar a toda a forma de violência? A renúncia consciente à que experimentavam, apesar de terem sido freqüentemente alertados,
sobretudo pelos seus profetas. Muitos caíram num fatalismo nocivo, e
violência não tem nada de moleza. Não pode ter nada de mo- outros, não raramente, apos.tatavam da fé em Jahve integrando-se à
leza: onde começa a moleza ou a passividade dos braços cru- maneira de viver d-0s babilônios. Esta caracte.rização sintética é o
zados; cessou o amor. Pois o amor é ativo e não descansa. A pano de fundo pelo qual devemos ler e interprétar a nossa passagem
diferença entre amor e viol~ncia consiste em que o primeiro Dt 4,1-2.fi.-8 bem como todo o ensinamento COIJ!ido em Dt 4, que é
tardiamente exflico.
prefere plantar a espada no próprio peito, antes que plantã-la
Comentário de Dt 4,1-2.ô-8. Tendo presente a situação em que vivem
n9 do outro. Deus, para libertar o seu povo, os seus filhos os israelitas exilados, facilmente se entenderá o _convite tradicional em
eieitos, acaba, não destruindo os opressores, mas sacrificando a Israel: .S'má Israel = escuta, Israel» no v. 1'. Os teólogos deutero-
si mesmo. A espada, na mão de Deus, toma forma de cruz. Não nomistas também convidam os israelitas no exílio a prestar atenção.
ficamos longe deste modelo, se, apesar de cristãos, manejamos Talvez agora eles dessem mais ouvidos às paiaVras de seus líderes do
que quando estavam na Palestina. E o apelo -~os exilados se refere
a. cruz como espada? a um assunto por demais conhecido, isto é, a , escutar as normas e
Conclusão as leis que Deus ensina para que as ponham em prática. Já aqui neste
versículo transparece claramente que não se trata do tempo em que
Responder honestamente, e em toda a liberdade, ao amor- os hebreus ·tomaram pela primeira vez posse da Palestina. Pois a
até-o-fim, e, ao mesmo tempo, colocar a ação do nosso amor catequese dos pregadores douteronomistas não versa sobre a explicação
sob a luz do modelo divino; não serã este o duplo apelo da das normas e lei~, como se fosse algo descorihecidO, mas fala sim-
plesmente sobre normas e leis que devem ser praticadas. Estas, no
liturgia de hoje? Aprender de Deus a força do amor, que não entanto, não foram observadas quando os israelitas viviam na terra
força, mas liberta, e que, apesar disto, ou justamente por isto, de Canaã, por isso, segundo os catequistas deu'teronomistas, os israe-
merece e receberá a resposta definitiva, segura e livre: a res- litas foram expulsos de sua terra e levados pa'ra o exílio babilônico.
posta do amor. ;; Mas, se as normas e leis forem cumpridas, Israel poderá tomar uma
Adriano van den Berg, C.M. segunda vez posse do país que labve, o Deus dos antepassados de
Belém, PA Israel, dá e nele poderá viver.

404 405
A estas normas e leis os israelitas não devem acrescentar nada acima de qualquer ordem terrestre ou lei cósmica, imutável e perfeito
e nem delas tirar algo, mas simplesmente guardá-las como lahve as (sem eclipse) em seu ser e agir; logo, não pode ser autor do mal
prescreveu (v. 2). Apenas a sua obediência fiel possibilitará a volta e da imperfeição. Não aceitar esta realidade significa incidir na ten-
dos israelitas à sua pátria. labve então poderá realizar um segundo tação e fraquejar. No _VT é corrente contrapor a imutabilidade divina
êxodo, desta vez da opressão babilônica. às variações dos astros.
Além disto a prática fiel das normas e leis de Deus revelará que Assim corno Deus criou o mundo por um ato livre de sua vontade
os israelitas são sábios e inteligentes diante dos povos (v. 6). E os (v. 18), assim também, como salvador bondoso, nos regenerou para
povos, no meio dos quais sobretudo os israelitas exilados viviam, vendo uma vida inteiramente gratuita, sem qualquer mérito nosso. Se em seu
concretamente observadas as normas e leis de lahve, e assim tomando beneplãcito nos salvou de maneira irreversível, como permitirá que os
conhecimento delas, ficarão muito admirados e proclamarão que não remidos voltem a se perder? Portanto, se não é possivel desconfiar
há outro povo tão sábio e inteligente como a grande nação israelita. do amor salvífico de Deus Pai, muito menos na tentação, quando
Os teólogos deuteronomistas, como se percebe aqui, procuram de todas sua presença é nosso único amparo e base firme de nossa confiança.
as maneiras convidar:_ os israelitas exilados a se converter a lahve A Palavra da Verdade - que no SI 118,43 é a lei mosaica e no NT
observando a sua Lei, pois para eles é o único meio para provocar é a pregação do Evangelho (!Cor 4,15; IPd 1,3; Ef 1,13) - torna-se
o fim do exilio. E eles continuam sua catequese com algumas per- o agente da salvação e filiação divina para quem acata a fé da Igreja
guotas bem diretas a seus destinatários. Através delas eles são exorta- na redenção operada por Jesus Cristo e vive em comuohão com ela.
dos a pensar se há mua nação tão grande como a israelita cujos Tiago exprime a obra salvifica de Deus com mu termo raro: «apo!<Yein»
deuses vivem tão próximos como Jahve está juoto de seu povo (v. 7). (= dar à luz). A Palavra da Verdade (= Evangelho) é como que o
Ou se há outra nação tão grande como a israelita que tenha normas princípio materno, por meio do qual Deus «dá à luz» o homem quando
e leis tão justas como a Lei de lahve (v. 8). Estas perguntas diri- disposto, conferindo-lhe vida nova. Não se trata do batismo, senão
gidas outrora aos israelitas, são hoje endereçadas a nós. E a' nossa apenas da mensageni salvífica da f·é. O batismo, depois, efetua e con-
resposta é apenas uma confirmação intelectual ou também mua opção suma esse renascimento mediante a fé na Palavra, uma como nova
vital? criação (2Cor 5,17; OI 6,15; Ef 2,10; Jo 1,t2s; 3,3-8).
Bibliografia: R a d O. von, Das filnjte Buch. Mose. Deuteronumium ATD 8
«Como que primlcias» (v. 18) indica o fim primordial do novo nas-
Oõttlngen 1968; Per J 1 t t, L., Bundestheologie lm Allen Testament W:iHANT 35' cimento: o cristão torna-se fruto primeiro, antes dos demrus ou a
!' f~~frchener Verlag 1969; K u t s eh, E., Verhelssung. imd Oesetz, BZÁW 131, Bern.ni parte melhor, - a criatura mais sublime (cf. Rm 16,5; !Cor 16,15).
De uma parte, Deus prepara para si ofertas mais excelentes - as
Pe. Pedro Kramer, O.S.F.S. criaturas humanas - que lhe sejam agradáveis. Por outra, os renasci-
Porto Alegre, RS dos constituem a renovação escatológica do muodo já em germe na
Igreja (5,7ss), visando à transiormação de toda criação. As demais
criaturas aguardam ansiosas a redenção do homem (Rm 8,22s), motivo
Seguoda Leitura: Tg 1,17-18.2lb-22.27 de júbilo e de esperança. A dignidade de filhos de Deus implica nos
renascidos em responsabilidade: viver a Palavra da Verdade pela fé
A carta de Tiago é a J• das cartas «católicas> ou ccanõnicaS>, atuante. Tiago, antes de explicitar normas cristãs, estabelece como fun-
tipo encíclica, dirigidas a várias comunidades; afim à carta aos Ro· damento o fato de termos renascido em Deus, filhos de Deus, primícias
manos, possui estilo elegante, de caráter didático-gnõmico-sapiencial, do mundo remido. A ação de Deus em nós exige cooperação: estarmos
reunindo elementos da parênese hebraico-helenista: exortações morais prontos para ouvir, tardos para falar e se irritar. A injustiça do
com a roupagem da diatribe cínico-estóica, homem impede a justiça divina.
No começo de sua carta, Tiago aponta a provação/tentação como
fator de alegria e felicidade, porque leva à perseverança (vv. 2-3.12) Para tanto, faz-se mister depor, além dos pecados de/contra a pa-
e esta, à perfeição (v. 4). Para que isto aconteça, precisa-se da sa- lavra, toda e qualquer maldade e pecado_, inclusive as manifestações
bedoria de Deus, que a concede sem reserva e sem medida (v. 5), externas do mal (cólera etc.). Trata-se de receber com mansidão a
contanto se peça com fé isenta de qualquer dúvida (vv. 6ss). As apa- Palavra, formulada na pregação da Igreja e professada no batismo, a
rências enganam. Só a vocação é motivo de glória, quando vivida na qual produz, não porém sem o concurso humano, mansidão, arnabUidade,
humildade (vv. 9s). As riquezas são transitórias (v. li). A vitória cortesia, humildade e confiança - uma vida nova. :e. o que profetizara
sobre as tentações acarreta grande recompensa (v. 12). A tentação Jeremias (31,33): <incutir-lhe-ei a minha lei, gravá-la-ei em seu cora-
não provém de Deus, mas da concupiscência, fonte de pecado e de ção>. «Receber a Palavra» na Bíblia é aceitá-la, compreendê-la e
morte (w. 13-18). Aos que pretendem responsabilizar, em última aná- obedecê-la. Exemplo disso é a atitude de Cristo para com o Pai. 1l
lise, a Deus pelas tentações e pecados, Tiago assegura que a causa preciso aceitar a salvação oferecida por Deus, como ensinara jesus. A
e a origem de todo o bem ( = graça) é Deus, criador e conservador, <Vida pela Palavra» é a integração autêntica da. verdadeira vida cristã
- numa palavra, Pai. No v. 17 Tiago, a titulo de ilustração, apela de sempre, - Palavra que tem poder de salvar. contanto que seja cum-
para imagens dos astros: Deus é pai das luzes, em sentido próprio prida, como fez Maria. É viver o que se crê. Ilude-se aquele que ouve,
e aJegórico, criando e ordenando as luminárias do firmamento (imagem aceita com prazer a Palavra, sem pô-la em prática. Tal fé não basta
do bem) para dissipar as trevas (imagem do mal). Como tal, estã para salvar-se, antes, tornar-se-á fatal.

406 407
! Uma religião sem as boas obras - santificação própria e caridade
ao próximo - é vã. Entre os primeiros cristãos deviam existir res-
quícios de formalismo; em conseqüência, Tiago quer esclarecer e reti-
ficar tal conduta. Para uma piedade autêntica não bastam prãticas
Na discussão com os fariseus trata-se explicitamente do problema
desta atitude de jesus. A réplica de jesus é veemente. Ele censura os
fariseus de hipócritas e desmascara o legalismo dos mesmos mediante
uma denúncia profética: a religião de vocês é invenção humana. Ao
externas e ritualismos frios. Faz-se mister, além da integridade moral sistema deles jesus opõe: cBem-aventurados os puros de coração, por- .
(coração puro), uma vida ativa nas obras de caridade fraterna e de que verão a Deus» (cf. MI 5,8). Não é uma coisa exterior que faz o
misericórdia. Na Bíblia os carentes proverbiais são as viúvas e os homem impuro, nem são ritos externos que o purificam. A impureza
órfãos. A tese de Tiago é: nem santificação própria sem caridade vem do coração e é o coração puro que faz o sacrifício agradável
nem caridade sem santificação própria. } a Deus.
Seria outro engano e hipocrisia a partir clisso entender a pureza
Bibliografia: K no e b, O., A carta do Apóstolo Tiago (trad. de E. Binder), do coração como uma pureza moral. Puro de coração é aquele que
Vozes, Petrópolis 1970; S a 1 g u e r -0, O. P., E2lstola de Santiago Biblia Comen-
tada, VII, BAC/Madrld 1965; O a r o f a l o, S., La Sacra Bihbia/Le Epistole ê sincero. E sincero precisamente quanto à sua culpa. Pureza evangéJica
Cattollchel Mariettl, Turim 1949; M u s ser, F., La lettera dl Giacomo, ln Commen- é sinceridade, veracidade. Como aquele publicano era puro de coração
tario teo ogico dei NT Pafdéla, Brescla 1970; O eh ar d, B., etc., Verbum Dei, - e não inocente! - e voltou justificado para casa depois de ter
III (NT), p. 403ss, Ê:erder, Barcelona 1957; A 1 o n s o j., Carta de Santiago,
NT (JIJ). BAC/Madrld 1962; P f r o t - C J a m e r, La sãlnte Bible XII p 393ss
Paris 1951. ' ' · '
reconhecido: «Ó Deus, tem piedade_ de mim, que sou pecador» (Lc 18 13; 1

cf. 23,39-43).
P. Matheus F. Giuliani, S.A.C. Por sua atitude Jesus derruba as fronteiras entre o profano e o
Santa Maria, RS sagrado, o mundo dividido em coisas e costumes uns santos outros
profanos, uns divinos outros diabólicos, aos quais o homem estã entre-
Terceira Leitura: Me 7,l·Sa.14-15.21·23 gue apesar de si mesmo. Porque Jesus põe fim a tudo isso, à distinção
cDeixando de lado o mandamento de Deus, entre o profano e o sagrado como vendo de fora, Ele pôde procurar
vds vos apegais à tradição dos homensz, e acolher os pecadores. Ele clirige-se a eles para que o coração do
homem se torne puro e livre. Nesta pureza e liberdade reside a salva-
As «leis de purificação> desempenharam um papel importante na ção do mundo e o início do sacrifício agradável a Deus. Salvando o
mundivisão e na observância judaicas do tempo de Jesus. Israel devia homem dos conceitos farisaicos do sagrado e desmascarando-os como
ser uma nação pura e santa e viver numa terra pura e santa, distinguindo- invenções humanas em que Deus não tem parte alguma, Jesus abre o
se por esta pureza e santidade dos outros povos, dos pagãos. No ambien- coração humano para o verdadeiro reino de Deus. Com isso também,
te de Israel a pureza é tanto uma pureza cultuai ou ritual como - so- Jesus devolve ao homem a soberania sobre o mundo. Neste sentido
bretudo graças à influência da pregação profética - uma pureza moral. Me 7,19b: «Jesus declarava puro todo alimento> soa como uma re-
Na religião do judaísmo tardio, a exigência da pureza cultual começou criação do mundo, comparável à criação do mundo pela Palavra de
a predominar demais sobre a dimensão interior da religião. Deus: «Deus viu que tudo era muito bom> (On 1,31). A maldade
Pode-se perguntar em que medida o povo todo acompanhou este vem do homem, do seu interior (Me 7,21-22). A salvação desta mal-
proc~sso. Os costumes descritos em vv. 3-4 dizem respeito somente aos dade vem de Deus como uma graça e não da observância de ritos, de
~acerdotes ou também aos leigos? Seja corno for, a importância dada costumes, de enclausuramento em recintos sagrados, vestes sagradas etc.
a pureza Jegal trouxe no bojo urna discriminação infeliz. Para os fa-
riseus era impuro quen: pertencia ao epovo da roçfil) (o «am ha-arez»), Bibliografia: Além de comentãrJos, especialmente: Ch. E. C a r 1 s t o n, The
Things tbat deflle (Mk 7,14) and tbe Law ln Matthew and Marlc, em NTS 15
os saduceus, os samantanos e os pagãos. Para os essênios e qumra- (1968-1969), 75-96; \V. O r u n d m a n n, Dle Oeschichte ]esu Christi, Berlim 19592.
n!tas também os fariseus eram impuros e eles retiraram-se de jerusa-
lem e . do templo, achando-os profanados porque servidos por sacer- Raul Ruijs, O.F.M.
dotes impuros. Para eles a sua comunidade no deserto era o novo Petrópolis, RJ
«santuário de Javé».
. . Na opinião d~s fariseus, a pretensão de jesus de ser um líder re- Tema Prlnclpal
hg1oso e de reunir em redor de si adeptos obriaava-o
0
a submeter-se
às convenções tradicionais, isto é, às estruturas e costumes vigentes A RELIGIÃO QUE PROCEDE DO INTERIOR
na «classe». Para eles a observância das «leis de purificaçãol> era uma
primeira exigência para admitir uma tal pretensão.
_ Ora! J~~s fez o ~ontrário. A questão da pureza ou impureza legais
nao atribui 1mportânc1a mesmo. Ele senta-se à mesa com pecadores e Sugestões para a Homilia
p~blicanos, tidos como impuros. Não exige deles uma purificação cultual;
nao mostra reserva nem receio de ser contagiado pelo contato com Introdução
~les. Ele fala . com leprosos e toca nelesi permite que a hemorroíssa,.
impura n~ mais alto grau, toque n'Ele; e não chama a atenção dela O Evangelho deste domingo nos coroca diante de uma po- \,,
por ser impura e tê-lo maculado pelo toque da mão dela (e!. Me lêmica entre Jesus e grupos de fariseus e escribas. Aborda a
5,25-34 e 6,56). questão da religião interior e da justificação pelas prãticas inte-
408 409
riores. Jesus nunca se pronunciará contra a observância dos pre- 2. :e do coração que procede nosso relacionamento com Deas
ceitos da Lei que levam o homem a trilhar o caminho da feli-
cidade· e do encontro com Deus, mas se levanta violentamente Estamos lutando pela implantação de uma prática ~islã
contra todos os que pensam estar «quites» com Deus através marcada pela autenticidade. Desejamos que todas as manifes-
'de certas práticas exteriores e feitas sem espírito intimo. É do tações exteriores de homenagem a Deus sejam provenie.n~es. do
interior do homem que deve provir o relacionamento com Deus coração. É a partir desse interior, desse âmago, desse no mbmo
e nunca apenas de ritos vazios. onde somos nós mesmos que brota nossa , resposta às exigên-
cias e às intenções de Deus a respeito de nós e dos nossos
irmãos. Aqui deveriamos aprofundar o·. tema d~ cónversão~ A
Corpo conversão é muito mais do que uma «vida extenor de oraça0>>.
1. Os ritos e as práticas É antes de mais nada um esforço mais ou menos calmo e cons-
tante de mudança do coração. Morremos ao homem velh? e se
Faz parte de nossa sinceridade de cristãos analisar cons- instala em nossa pele o homem novo do Evangelho nascido ~a
tantemente a qualidade de nosso relacionamento e de nosso po- morte e ressurreição do Senhor. Há em nós uma transformaçao
sicionamento perante Deus e os homens. Somos homens religio- interior lenta, gradativa, mas constante. A partir desse nó int~­
sos na medida em que nosso ser mais profundo está orientado rior realiza-se nossa adesão ao mundo de Cristo. Nossas ati-
para esse duplo amor que se resume num só: o amor do Senhor tudes são tais que vivemos no cli!11a da vida nova de. Cri~to.
e dos irmãos. A Igreja católica e seus membros dispõem de uma Ao se aproximar da fonte do batismo o homem está mter10r-
série de expressões exteriores dessa adesão a Deus através de mente convicto ile que este banho de purificação expnm1ra seu
Cristo. As diferentes formas dos sacramentos (batismo, comu- desejo sincero e
Intimo de se vestir de Cristo._ Labutando e
nhão, matrimõruo etc.), as modalidades de orações vocais (Pai- trabalhando par.a construir uma terra de fraterm?a?e, homens
nosso, Ave-Maria etc.), as prescrições da participação domirucal fracos se aproximam do pão da vida na Eucansba. Do~ram
da missa, do jejum, da esmola etc., constituem al'gumas das prá- seus joelhos diante de um sacerdote 110 sacramento da Pemtên-
ticas religiosas mais comuns. Sem querer ser pessimista e sa-
bendo que no seio da Igreja há hoje muita sinceridade, somos cia e, não por uma disposição mecânica, mas porque quer~'.11 ~er
obrigados a reconhecer que muitas vezes nossos católicos vivem de Deus acolhem o gesto do sacramento da Reconc1haçao.
na casca das coisas. Sabemos que o Batismo nos coloca num Cantam ~ louvam o Senhor em orações oficiais ou preces par-
universo diferente, nos faz nascer para uma nova ordem de ticulares porque querem que esse exterior corresponda a um
coisas, faz com que morramos para o homem velho e nasçamos Intimo sentimento de adoração e de Jouvot diante do Senhor.
É do coração que procedem todas essas. manifestações. Não
para o mundo de Cristo. Muitos batizados, no entanto, são meros
ritos exteriores. Os cursos de batismo são insuficientes para que admitirá esse homem novo estar diante de Deus, de um
os candidatos aos sacramentos possam atinar com o essencial lado, nos ritos exteriores e de outro conviver com incoerências
do rito. Os que pedem o batismo para os filhos pensam que interiores. Nada' mais repugnante ao cristão sincero do que a
estão cumprindo sua «obrigação religiosa» de batizar as crianças máscara. Em todas essas manifestações el'es cuidam de escapar
e se consideram «satisfeitos» interiormente. Reflexão análoga da frase de Is'aías retomada por Cristo no Evangelho deste
deveríamos fazer com relação aos outros sacramentos que apa- domingo: «Este::povo honra-me com os lábios, mas seu coração
recem muitas vezes como «lranqüilizadores» da consciência e está longe de niim, pois me dão um culto vão».
«apaziguadores» interiores. É como se o homem tivesse medo
3. Tradições humanas ou exigências de sinceridade?
de Deus e colocasse certos ritos que funcionariam como pactos
que o homem faz com uma divindade exigente. Muitas «rezas» Como é difícil fazer desaparecer uma mentalidade dualista
e orações, a participação mais ou menos mecânica da missa que animou tanta gente no passado! N~o julga~?s nin~ém;
dominical se situam um pouco na mesma linha. Os ritos ficam mas é necessário afirmar que esse domlmo da pratica rehgmsa
muito exteriores e se revestem de cunho até mesmo supersticioso. separado da vida não pode satisfazer profundamente o homem.
Certos católicos pensam «varar» os céus com orações e preces Não existe o culto de um lado e a vida do outro lado. Não
mágicas. Funciona muitas vezes o esquema dôs cultos pagãos. existe o domínio de Deus que se passa nas dependências dos
410 .. 411
templos e nas formas rituais de um lado e a vida profissional, Vigésimo Terceiro Domingo
fraterna do outro. Há uma interligação dessas duas realidades. do Tempo Comum
Todas as tradições humanas no campo da prática religiosa Pistas Exegéticas
podem e devem ser revistas. O homem contemporâneo, quando
sincero, quer ver coerência. Não admite rituais separados da Primeira Leitura: Is 35,4.7a
vida. De tempos para cá sentimos que a comunidade dos cristãos
sem negar a importância dos ritos e dos sacramentos, gestos Os quatro versículos da 1~ leitura deste domingo formam um con-
junto homogêneo com todo o capihtlo 35 de Isaías. Embora curto este
da fé, está convencida de que é necessário que a vida seja capítulo, através de suas imagens e metáforas, t:az uma mensagem
marcada por um prolongamento de suas convicções Intimas e cheia de alegria e felicidade. --Faz um contraste vivo com o . c_ap. 34
é extensão da vida nova que borbulha em seu peito. Os que em que se descrevem os castigos e as desgr~ças que sobr.ev1rao aos
se aproximam dos sacramentos e colocam os gestos dos ritos odiados inimigos do povo de Deus, os edom1tas. Pelo estilo e pela
estão profundamente interessados em dar um testemunho de temática assemelha-se muito à segunda parte de Isaías (Is 4ü-55). Por
isso muitos exegetas julgam que tenha sido composto na época ~o
compromissamento com a verdade, com a justiça e com tudo exílio; mais precisamente, pelo fim do mesmo, quando. se r~acend1a
aquilo que possa manifestar Deus e seu louvor no coração da nos corações dos pios judeus a esperança do retorno - a Pátria e da
realidade humana e cósmica. Os movimentos de comunidades manifestação renovada do poder de Deus.
de base nos quais sentimos entre outras coisas uma vontade Todo o trecho vibra de explosões de alegria e júbilo, pela ma-
nifestação de Deus. Reanima os desesperançados, fortalece os f~acos,
de solidariedade com os irmãos e onde se experimenta, a vida porque l)eus vem. Vem com poder, em favor de seu povo. Ele vai dar
fraterna, as campanhas de diferentes tipos em vista dos direitos saúde a JS doentes, vai fazer brotar água no deserto, transformando-o
do homem, os esforços intensos e sérios de lançar a fé na vida num jardim.
e a vida na fé. Essa exigência de laços entre rito e vida provém o v. 4 é um convite ao encorajamento, dirigido a pesS?as teme-
do Evangelho. Jesus sempre se mostrou altaneiro aos ritos exte- rosas e sem esperança. Certamente pessoas que sofreram muito e por
isso não conseguem mais ter motivos de esperança. Os contemporâneos
riores e levou ao mais alto píncaro o critério supremo dÓ agir do Profeta estavam tristes, desanimados, diante,.. do prol?n?amento do
do homem que é o amor. exílio e de tantos sofrimentos. Estas palavras tem o obJet1vo de rea-
nimar os pusilânimes, com a promessa da próxima intervenção divina
que vai trazer libertação e salvação. O Profeta, em nome ?e _Deus,
Conclusão anuncia que Deus mesmo, em pessoa, vem restabelecer a 1usttça e
dar a cada um a sua recompensa. Entrevê-se na frase uma ameaça
O apóstolo Tiago na segunda leitura deste domingo nos dirigida provavelmente, à Babilônia.
1

lembra que a religião pura e sem mácula, além de consistir em Vv. 5-6. A chegada de Deus vai trazer consigo uma total trans-
nos mantermos puros interiormente, se dá na vida de caridade formação da natureza. Tudo o que tiver defeitos será ;:orrigido. Ce~~ns,
surdos mudos1 coxos recuperarão suas faculdades, serao restabelecidos
expressa na visita aos órfãos e viúvas. Todo o contexto atual em su~ saúde perfeita. Javé é o Deus da vida, e quando e onde Ele
da Igreja chama atenção para essa verdade da vida cristã que chega, a vida desabrocha e se realiza em plenitude. Na resposta que
passa pelo interesse efetivo pefos outros que para nós se chama Jesus dá aos discípulos de João (Mt 11,5) recor;e a e.ste texto para
caridade e que foi derramada em nossos corações. Os ritos e mostrar seu caráter de Messias. «És tu o que ha de vir, ou devemos
esperar por outro?» (Lc 7,20). Curando cox~s, dando vista a cegos,
as expressões exteriores de religiosidade exprimirão esse «cora- fazendo ouvir e falar surdos e mudos, jesus dtz: o Deus que prometeu
ção» do homem intimamente ligado a Deus e ao serviço fraterno intervir para libertar seu povo de todos os males já está n_o meio de
dos irmãos. vós. Deus com seu Reino chegou. No Evangelho deste domingo lemos
Almir Ribeiro Guimarães, O.F.M. a cura do surdo-mudo. E o povo entusiasmado exclama: «Ele fez bem
· Petrópolis, RJ todas as coisas. Fez ouvir os surdos e falar os mudoS».
Certamente para um primeiro plano, para o qual o profet.a ~~de,
que é a restauração de Israel, estas. expressões têm um valor s1mbohco.
Com jesus elas vão tomar um sentido real, embora mesmo para jesus
as curas não tenham um fim em si mesmas, mas o de despertar a
fé para algo de muito mais importante que ele veio fazer.
Vv. 6-7a. Da metáfora da restauração da saúde, o Profeta salta
para outra, muito cara aos hebreus.: o das ~guas q~e jorram no ~eserto.
A escassez de água é uma reahdade muito sentida na Palestina. E
\
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1

como a ãgua é absolutamente indispensável à vida, nada melhor do sendo inconseqüentes e, portanto, maus juízes? E não estaremos du-
que esta imagem para representar o Deus da Vida: aquele que fez vidando a quem servir: a Deus ou ao mundo? Se temos fé, vivemos
jorrar ãgua do rochedo (Ex 17,1-7; Nm 20,2-11) vai fazer também como não a tivéssemos.
jorrar água no deserto e correr torrentes na estepe. E. assim Deus Uma coisa está fora de qualquer discussão: Deus escolheu os
manifesta seu poder fazendo desabrochar vida, onde antes só havia pobres para herdeiros do Reino (v. 5) em vez de enriquecê-los mate-
sinais de morte. rialmente. Se Deus assim age, nós não podemos continuar insensatos.
Blbliograj/a: Comentários de C o r d e r o, M o r i ar t y, P 1 r o t - C J a m e r, Devemos imitá...Jo. Deus, em sua be:rievolência, não nega a ninguém o
Pen na. seu amor, muito menos aos pobres e desamparados. Aliâs, aquilo que
Pe. Aguinelo Burin, S.A.C. o mundo julga estulto, Deus escolheu para confundir os fortes (cf. 1Cor
Santa Maria, RS 1,27), uma vez que tais pessoas, com o infortúnio, compreendem melhor
a necessidade da salvação, tornando-se mais suscetíveis à misericórdia
Segunda Leitura: Tg 2,1-5 divina (cf. MI 13,22; Me 10,23; lTm 6,9s) e mais livres para amar
a Deus (cf. Mt 5,3ss; 19,16-30). É a esses que jesus dedicava de
A fé em Jesus Cristo ressuscitado, na vida prática, tem exigências: preferência seu amor e sua mensagem: <Bem-aventurados os pobres
não se conciJia com a discriminação entre pessoas, no trato parcial com porque deles é o Reino de Deus> (Lc 6,20).
ricos e pobres nas assemb1éias cristãs. Tiago ilustra sua asserção re-- Tiago destarte é fiel testemunha do Senhor jesus. Nem por isso
lativa à acepçãQ de pessoas com exemplos tirados da vida prática os ricos ficam excluídos da salvação. A predileção especial pelos pobres
diária, salientando outra contradição na vida de fé. Quem dá prelêrên- e marginalizados, nos evangelhos, é uma constante. Logo, devem ser
cia aos ricos, age mal. A fé - adesão intelectua1 e afetiva à pessoa tidos como ricos na fé; com efeito, a verdadeira riqueza do homem
e doutrina de Jesus glorioso - liberta da adulação calculista ou louva- é sua eleição da parte de Deus, é a fé, a herança eterna (Mt 5,3;
minheira face aos grandes. Não se podem apreciar as pessoas só pelo 2Cor 6,10; 8,9; Ap 2,9). Em virtude disto, sejam honrados e amados!
prestigio social. Valem especialmente pelo que são diante de Deus. Se Deus os ama e honra, por que não nós? Por que não usar os
Entretanto, diante de Deus somos iguais, corno criaturas e c.:orno peca_.. mesmos padrões? Infelizmente parece ocorrer o contrário em nossas
dores. Tiago faz um paradoxo: de um lado, a verdadeira glória de comunidades. Quanta indiferença para com os desprotegidosl «Como
Cristo, - de outro, a vanglória dos abastados. Deus não olha para pode amar a Deus1 a quem não vê, se não ama a seu irmão, a quem
o exterior, sonda o coração (lSrn 16,7). As categorias sociais, mera- vê> (cl. ljo 4,20)? Vale a censura de Tiago: «Vós desprezastes o
mente humanas, pecam não raro contra a justiça e o amor. Já não pobre> (2,6) 1 De fato, quanto jufzo temerário ao atendermos mais às
podem ser aplicadas no trato diário entre cristãos. aparências!
O principio da não-acepção de pessoas é ilustrado com um exemplo
Bibliografia: CI. 22':' Domingo do Tempo Comum, Ano R. p. 408.
(vv. 2ss): um rico participa do culto, com lugar determinado, ao lado
de outros, pobres, sem lugar determinado. E quase praxe ter-se todo P. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
cuidado pelos de elevado cstatus> social, destinando-lhes lugar de Santa Maria, RS
honra, ao passo que os mais simples, os pobres, são bastante omitidos,
obrigando-se a ficar de pé ou a buscar um lugar qualquer no chão. Terceira Leitura: Me 7,31-37
O trato privilegiado com os ricos, a negJigência para com os pobres, cB/e fez tudo bem feito»
nãp são atitudes cristãs, porque a Igreja é de todos, tanto para os
pobres como para os ricos. O cristão, que assim procede, é mau juiz1 A passagem do Antigo Testamento (Is 35,4-7a) foi escolhida por
pois se deixa levar pela prevenção e pelos partidarismos, traindo sua causa da citação impllcita ou alusão que se encontra na terceira lei-
vocação e missão. De resto, o próprio VT já ferreteava semelhantes tura: eJesus) fez tudo bem feito. Fez os surdos ouvir e fez os mudos
pessoas, as quais não se escapariam do juízo de Deus (cf. Lv 19,15; falar> (Me 7,37). Este procedimento literário evoca toda a problemática
Dt 1,17; 16.19; SI 82,2; Eclo 12,1; Pr 18,5; 24,33; Am 4,1; 5,10-15; da relação entre o Novo e o Antigo Testamento. Tais referências a
8,4-7; Is 1,17.23; 5,20-23; 10,1-3; Mq 3,9-12). textos do Antigo Testamento nem sempre querem dizer somente que
O Messias !ará deveras justiça (cf. Is JJ,3ss; Mt 5,3; 11,28; 22,16; tal texto isolado, tirado de seu contexto, é uma profecia literalmente
Lc 6,24; 16,19-31; 18,24s). S. Gregório Magno (PL 76,121 Is) aponta cumprida por jesus. Muitas vezes tais referências são multo mais im-
jesus, corno exemplo de não-acepção de pessoas: não marcou presença portantes e querem insinuar: para captar o pleno sentido de um certo
na cura do filho do oficial de Cafarnaum (jo 4,46-54), mas fez-s1> ato ou de um certo modo de proceder de jesus é bom olhar todo o
presente na do servo do centurião (Mt 8,5-13) .. Como pode prevalecer contexto a que o texto citado pertence. Nestes casos as citações ou
aquele que mede os homens segundo padrões que eles mesmos se a1usões ao Antigo Testamento são, pois, verdadeiras cpistas exegéticas»,
aplicam (Mt 7,1-2)? Como tornar atraente e persuasivo o Cristianismo, chaves para a devida interpretação do texto do Novo Testamento... e
se a vida prática contradiz os imperativos da fé e da caridade? Tal vice-versa.
conduta de favorecimento aos ricos e de restrições aos pobres não Tudo indica que se deve interpretar deste modo a alusão a Is
é um dos principais escândalos para os de fora? Conviria questionar: 35,5s em Me 7,37. Qual é, então, o contexto de Is 35,5s? Estes ver-
serã que não se aplicam estes padrões de vida na existência de nossas s!culos pertencem à unidade literária e temática de Is 34 e 35. Estes
comunidades cristãs como algo de natural e normal? Não estaremos capítulos formam um assim chamado cdlptico //terdr/o>, um quadro de

414 415
dois painéis. O primeiro paineL apresenta uma imagem bem. apoca- Costuma-se interpretar os gestos de jesus que acompanham a cura
líptica da futura desgraça que at;ngirâ os inimigos do povo de Deus. do surdo-mudo (7,32-34) e do cego (8,23-25) como resquícios de gestos
O outro faz uma descrição paradislaca da futura salvação do povo eleito. e fórmulas mâgicas (cf. a transcrição da palavra: <E/falá»!). Mas é
Em outras palavras, trata-se de um dlptico fortemente antitético da bem provável que no segundo evangelho se revistam de um val~r
ação escatológica de Deus. Referindo-se a desgraças concretas que todo simbólico, sugerindo-se o lento progresso dos discipulos no reconheci-
mundo conhece (pragas provocadas pela maldade dos homens: guerras, mento de Jesus. Este reconhecimento é um «milagre> muito maior do
derrotas, massacres; e pragas causadas pela natureza: fogo devastador, que os demais! Como confirmar esta hipótese?
'[ perigo de animais selvagens, secas e tempestades), ele lhes dá(rnedidas Nas Pistas Exegéticas de Me 6,30-34 (cf. p. 346's) realçou-se que
cósmicas (cos céus se enrolarão corno um livro», isto é, se amassarão Marcos quis ligar todas as passagens entre 6,30ss e 8,27ss pelo tema
como se amassa uma folha de papel). Usa-se o binômio lõha e bõhü, «comer» e «pão> que, além de dominar nas duas narraçõ~s da mul-
usado em Gn 1,2 para dar urna idéia do caos que reinou no mundo tiplicação dos pães (6,35-44; 8,1-10), se retoma co~o um fio de. ouro
antes que se procedesse à distinção dos vários elementos. Este .binômio em 6,52; 7,2.5; 7,"ZJ; 8,14.16.19. junto com este fio de ouro vat um
usa·se somente mais uma vez na Bíblia, a saber, em ]r 4,23. Toda outro, a saber, aquele da incompreensão dos discípulos (6,52;. 7,17-1~;
esta obra de desgraça ou de redução ao nada prevê.se para «O dia 8,4.15-21). Na última passagem jesus lhes pergunta: < ... Amda .nao
da vingança do Senhor, o ano de desforra para o defensor de Sião» entendeis, nem compreendeis? Ainda tendes o coração empedernido?
(Is 34,8). ·· Tendo olhos não vedes e tendo ouvidos, não ouvis? Já não vos lem-
, Este dia de vingança· para os inimigos do povo eleito será, para brais ... ? ..'. Como é que ainda não entendeis?» A pergunta grifada
este mesmo, um dia de salvação (Is 35,4). Para descrever esta sal... afigura-se como uma citação implícita do Antigo Testamento. Ora, esta
vação, o autor faz o contrário daquilo que fez em cap. 34. Constrói queixa de jesus é precedida pela cura do surdo-mu.do (7,31-37) e se-
um mundo bom de que elimina:> tudo que é desgraça que afeta, seja " guida pela cura do cego (8,22-26) e. . . logo depois ~ar~os narra a )
a natureza (vv. 1-2.6b-9a), seja o homem (vv. 5-6aHl). Ele prevê, pois, confissão de fé de Pedro (8,27-30). Esta marca a primeira vez que J
a recriação de um mundo paradisíaco, do '-próprio paraíso Esta re- os olhos de um homem se abrem para ver quem Jesus rea.lm~nte é,
criação do paraíso é a manifestação da glória e da majestade do Senhor e a primeira vez que uma boca humana profere aquela conf1ssao que l
(vv. 2b-c). . se tornou logo a mais importante confissão batismal. Este Jesus, que ·,
Ora aludindo a Is 35,5s, Me 7,37 quer dizer: em jesus realiza-se cura o surdo-mudo e o cego é o Messias que abre o «coração endu-J
esta re~riação; n'Ele é chegado o dia da salvação; n'Ele ~anif~sta-s; recido (6,52; 8,17) dos hom~s para ver. e reconhecer n'Ele. ~ Cristo
a glória de Daus. (Lembre-se como, no Evangelho de ]oao, isto e, de Deus. Este reconhecimento é um «nnlagre>, da graça divina. Mt
em uma etapa mais avançada da tradição e da teologia, se interpretam 16,17 exprime esta mesma teologia, mas com recursos literários total-
os milagres de Jesus como sinais e como manifestações da glória do mente diferentes! A perspectiva em que Marcos colocou a cura do surdo-
Pai!) Para tirar qualquer dúvida a respeito deste sentido dos milagres mudo e do cego sobrevive desde os primeiros séculos na cerimônia do
de jesus, introduziu-se à alusão a Is 35,5s. com_ as poucas pal~vras: rito batismal, que faz o sacerdote tocar (com saliva de sua boca) os
<Ele fez tudo bem feito». Vê-se nesta afirmaçao uma evocaçao da ouvidos e os lábios do catecúmeno, dizendo: «Effatá::ti.
frase com que o autor de Gn 1 encerra a descrição da criação: «Deus
contemplou toda a sua obra e viu que tudo era muito bem feito» ( Gn Bibliografia: Comentârlos de Isaias e de Marcos. A. R 1 eh ar d s o n, Thi
Miracle Storles of the OospelS; A. \V e 1 s e r, O que é milagre na Blblia, S.
1,31). A obra de jesus é a nova criação, o início da renovação da Paulo 1978; R. H. F u 11 e r, Interpreting the Miracles; C. H. D o d d, Accordlng
face da terra. to the Scriptures •••
Raul Ruijs, O.F.M.
: Esta interpretação dos milagres ou sinais que Jesus fez provoca
uma interrogação. Se aqueles poucos e despretensiosos milagres com Petrópolis, RJ
que jesus veio em socorro aos doentes e pobres de seu tempo inau-
guraram (a realização de visões apocalípticas sobre) a renovação da Tema Principal
_face da terra, a chegada do reino de Deus e o «dia da séjllvação»,
isto não vale a fortiori de llill aproveitamento maciço das novas possi- Como «fazer bem~ a Evangelização hoje? Como ser e anunciar o
bilidades na área da técnica, da cultura, da medicina, da agricultura, Reino de Deus na atualidade de nossa realidade? Isto é: fazer os surdos
da comunicação em favor da humanidade? Corno, aliás, o contrário, isto ouvirem e os mudos falarem e assim, ela, a Igreja «ser admirada>,
é o uso maciço destas possibilidades para fins egoístas e bélico~ amea- dar provas de veracidade e credibilidade. Ser força libertadora para
ç~ -realizar a outra face do díptico 1 ( cf. A enciclica de joão Paulo II : todos. Tanto para pobres como para ricos.
O Libertador do Homem, e.o., n<) 8: Redenção: renovada criação; n° 16:
Progresso ou ameaça?). ·
A teologia dos milagres de j~us, exposta acima, o evangeJ,sta pro- Sugestões para a Homllla
vavelmente a teria encontrado na tradição existente, de que el~ lançou
mão quando escreveu o· seu livrinho sobre Jesus. O lugar qu~ ocupa Corpo
na, composição do evangelho de Marcos e a função que o evangelista
.atribui à narração deste milagre na estrutura do mundo podem •for- 1. A f1fopia escatológica - sua negação
necer uma pista para descobrir a teologia marciana deste fatp. Cristo prova que ela é possível e que n'Ele já começou

416 417
Na primeira leitura, no cap. 35, !saias, em contraste com o turais. Vai-se tornando menos surdo-muda, menos coxa, por
cap. anterior, 34, descreve com imagens vivas, dentro de um isso mesmo mais lépida, mais explícita e capaz. para evangelizar
estilo literãrio próprio ao gênero de vida de um povo nômade hoje e agora, no «aqui» e no «agora» da realidade onde está
e rural, o que serã no futuro quando o Messias vier e inaugurar e deve estar como luz, sal, fermento, dimensão de verdade e
o seu Reino: «Então se abrirão os olhos do cego. E se desim- de «dia do Senhor». Ela é desafiada a ser profética e compar-
pedirão os ouvidos dos surdos; então o coxo saltará como um tilhar com todos aqueles que anseiam por uma Sociedade outra,
cervo e a língua do mudo dará gritos alegres». No Evangelho, onde não haja ricos e pobres discriminados estruturalmente.
Marcos apresenta Jesus multiplicando gestos messiãnicos, por- Onde uns exploram, às mais das vezes sem o saber (cegos -
tanto, libertadores, evangélicos. Ele vai tomando topia esta uto- cegueira), respaldados por mecanismos intrinsecamente injustos
pia descrita e sonhada pelo profeta, já na Antiga Aliança. E (os ricos). Outros, a maioria, são pobres que nem percebem as
por isso Ele é admirado, toma-se motivo de credibilidade, con- causas (cegos - cegueira), reais e estruturais, de sua situação
vence, converte, liberta seus ouvintes! de explorados.
Na 2• leitura, Tiago, homem prãtico, mais pastor do que Conclusão
teólogo, estã às voltas com os problemas em sua Comunidade!
Há separações sociais, discriminações, distinção de pessoas, pri- Na tentativa de motivar e sensibilizar os ouvintes para co-
vilégios gritantes: os pobres são desprezados, os ricos temidos, nhecer e estudar o documento de Puebla, fica como sugestão:
bajulados, incensados. O espírito de subserviência é prova da apresentar os itens mais eloqüentes do n. 2 da 1• parte:· visão
fraqueza da crença de quem serve e de- quem é servido. pastoral da realidade latino-americana: «Visão sócio-cultural da
Na 3• leitura, Marcos, dentro do contexto do cap. 7, apre- realidade latino-americana», deste documento intitulado «Evan-
senta Jesus em discussão com os fariseus, leigos piedosos e gelização no presente e no futuro da América Latina - Con-
observantes. As tradições religiosas judaicas, como todo o AT, clusões da Conferência de Puebla».
recebem sangue novo. São criticados e purificados de tudo aquilo Vai ficando mais claro para muitos, clero, leigos e interes-
que oprime, cega, sufoca a liberdade dos verdadeiros adoradores sados (passam a ouvir e ver com mais lucidez!), que os pobres
do Pai! Surge uma nova Religião, uma nova Ética, um novo e marginalizados são os primeiros destinatários do Evangelho;
modo de se posicionar perante Deus, que é Pai; perante os eles são também os primeiros portadores e mensageiros da
homens, todos são próximo, filhos de Deus e portanto irmãos; Boa-Nova.
perante o mundo, as coisas, a Sociedade, a Lei, o Direito, a Para eles o Evangelho é mais denso de verdade, mais
Economia, a Política e a Família. Tudo isto são manifestações prenhe de libertação 1 «Reconhecer isto, tanto para a hierarquia
do Reino de Deus quando libertam o homem e o tornam mais como para leigos qne ocupam outro lugar social já é fruto de
consciente e responsável' de sua dignidade e vocação. São va- compromisso de solidariedade com os pobres».
lores conquistados por todos e que devem ser colocados a ser- Nunca Tiago, Marx também, apostrofaram, de modo tão
viço de todos e não de uma minoria privilegiada. . . Quem enten- candente, uma sociedade que condena a maioria dos seus membros
der isto, quem fizer isto, uão é mais surdo-mudo, coxo, leproso; (para nós na América Latina esta maioria constitui a própria
vai-se tornando um homem-novo e nele o ~eino de Deus, o novo Igreja ... !), a uma vida inumana como é ainda hoje a de nossos
mundo já se torna realidade. países latino-americanos.
Se a voz de Medell!n como também a voz de Puebla, a voz
2. A evangelizarão como obra libertadora: da Igreja que tenta e busca ser a voz do Evangelho, não forem
faz ver e ouvir melhor a realidade ouvidas, tanto pelos Estados como pela própria Igreja, a culpa
!
Para nós, em específico, na América Latina, depois de Me- recaia sobre as nossas cabeças de pretensos cristãos 1 A nossa
dellln com suas três opções básicas: pelos pobres, pela liber- postura de fé, como cristãos e como Comunidade cristã, por
tação integral e pelas Comunidades Eclesiais de Base, agora paradoxal que seja, não nos libertou ainda da surdez e cegueira
retomadas, aprofundadas em Puebla, a Igreja vai-se convencendo de nossas injustiças e males sociais.
a si mesma, vai-se convertendo mais ao Evangelho e aos seus Frei Cristóvão Pereira, O.F.M.
desafios e compromissos sociais, coletivos comunitários e estru- Vale do jatobá, cidade industrial, Belo Horizonte, MO

418 419
Vigésimo Quarto Domingo Assim, quando· Cristo anuncia que vai ter que sofrer muito, ser
i'
do Tempo Comum rejeitado e condenado à morte pelos chefes do povo, está aplicando a
Pistas Exegéticas si mesmo esta passagem do livro de !salas. '

Bibliografia: Comentârfo.s de C o r d e r o, .Morlarty, '
PJ r o t•CI a m er,
Primeira Leitura: Is 50,5-9a Pen na.
Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
Este trecho está em consonância com o Evangelho desse domingo, Santa Maria, RS
em que Cristo, após a profissão de fé de Pedro, revela que ele terâ
que sofrer muito, ser rejeitado e condenado à morte pelos chefes
do povo. Segunda Leitura: Tg 2,14·18
O trecho de Isaías, proposto para a leitura de hoje, é o terceiro
dos conhecidos 4 poemas do Servo de Javé (Is 42,1-4; 49,1-6; 50,4-9; O texto sob forma de diatribe ou controvérsia didâtica, aborda a
52,13-53,12). E seu tema central é o sofrimento que o Servo terã que intenção ce~tral da carta de Tiago: o problema da relação entre fé
suportar, não .um sofrimento qualquer, mas um sofrimento infligido e obras. A fé sem. as obras não conta, é morta, não salva (w. 17.26) ..
por seus adversários. E como ãrvore seca: não produz fruto. Já em 1,19-27 se dissera que
No v. 4, omitido na liturgia de hoje, mas que inicia o poema, o não basta escutar :a palavra sem cumpri-la e, em 2,1-13; ficou estabe-
Servo fala de sua missão profética, recebida de Deus. E alguém que lecido que não se pode crer em Cristo e ao mesmo tempo discriminar
recebeu de Deus, como um dom, a facilidade de falar, para consolar pessoas. o confronto f<H>bras, o exemplo de Abraão, poderiam msmuar
e aliviar os fracos e abatidos. Ele tem consciência· de sua capacidade que Tiago estaria rebatendo interpretações errôneas da ijoutrina de S.
de falar bem, de convencer, ao contrário de Moisés que, por causa de Paulo quando ·assere que só a fé, sem as obras exigidas na lei ju-
sua gagueira, queria esquivar-si! da missão. A eficácia de sua pala- daica' é que salva (Rm 3,4; GI 3-4). Contudo, o próprio S. Paulo já
vra provém de Deus. Por isso o Servo mantém uma atitude constante resol;era a questão em Rm 6,1-23 contra tais postulados. Tudo indica
e dócil de escuta: «cada manhã ele desperta meus ouvidos para que ser diferente a problemâtica e respectiva argumentação. Tiago diz que
" escute como discípulo>.
V. 5. Insiste nesta atitude de escuta da mensagem divina. Não
a fé caso não organize a vida segundo o beneplâcito ctivino, é vã,
porq~e dessa forma não salva. Entretanto, Paulo está em outras cir-
reluta, nem foge como Jonas, mesm_o diante das circunstâncias mais cunstàncias: debate-se com a tese judaizante de que o homem é capaz,
duras e antipáticas de sua missão. O Servo aceita a vocação com a por si, de operar a sua justificação perante Deus, observando a rigor
pesada carga de ultrajes e sofrimentos, sem um movimento de revolta. as prescrições da Lei mosaica; quer esclarecer que o _homem pecador
Vv. 6-7. Aparecem aqui os ultrajes a que é submetido o Servo: é incapaz de salvar-se com suas forças apenas, sem o auxilio da graça
espancamentos, arrancamento da barba e escarros no rosto. Eles expri.. divina, e que a fé deve ser informada pela caridade (Rm 2,6; 8,2-5;
mem sofrimentos físicos e profunda humilhação. A barba, para os orien.. 12; 13,8-10; GI. 5,6.13.19-25; 6,1-16; !Cor 3,10-15; 2Cor 5,9), se quiser
tais, era o símbolo da dignidade social. Arrancá-Ia, alem de sofrimento enfrentar o ju!zo 'de Deus, o qual verificnrá os frutos da fé. E o
físico, é um grande vexame. E escarrar no rosto constituía o máximo critério de julgamento.
da injúria (cf. Nm 12,14; Jó 30,10). O Servo, não só não reage vio- Tiago não nega a fé, mas a supõe. Contudo, sem as correspondentes
lentamente, mas nem sequer desvia o rosto. Enfrenta as afrontas e obras, ela não traz proveito algum no plano da salvação, é ortodoxia
ultrajes com tranqüilidade e firmeza. Não se sente intimamente aba- teórica e convicção platônica, A fé teologal - adesão total a Deus
lado ou desamparado porque tem toda a sua confiança no Senhor, e - por natureza tende a realizar-se. Um fiel que não vive de acordo
tem certeza que Ele virâ em seu auxilio. com sua convicção, que não enquadra sua existência nos_ moldes do
Vv. 8-9. A esperança do triunfo final é alimentada pela certeza da gracioso dom divi~9, não merece tal apelativo, - o que_- combina com
assistência divina. O Servo está tão seguro desta proteção (<aquele que a pregação de jesus: <Nem todo aquele que me diz: Sj!nhor, Senhor,
me justifica aí estâ») que pode desafiar seus adversários. Os dois vv. entr;u'ã no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade do Pai que
são escritos na forma de um debate forense, no qual entram Javé como está nos céus» (Mt 7,21). Inclusive, quem não pratica sua fé, é réu
juiz, os acusadores, que são também os acusados, e o Servo, acusado de castigo maior (cf. Lc 12,47),
inocentemente. O Servo tem a absoluta certeza que o Senhor irá Se a semente se orienta para o fruto, - a fé se ordena à prática.
declará..Jo inocente. Ninguém conseguirá provar que o Servo é culpado. Pouco ou nada adiantaria enaltecer no Cristianismo os l valores, entu-
E por isso s~us sofrimentos deverão encontrar outra explicação. Esta siasmar-se com a _,doutrina, louvar a mensagem moral, s_e não se vive
aparece no 4' poema do Servo (Is 53,4-6.JO). tal fé. O que dará seguridade no juízo divino é a obediência, a de-
O Canto encerra.Se com uma nota de triunfo. O Servo, protegido dicação, a fidelida<j_e, a perseverança no amor. Isso é q11e leva à bem-
por Deus, ganha a causa. Seus adversários não só não conseguem o aventurança eterna.
seu intento contra o Servo, mas eles mesmos é que são condenados. Tiago ilustra sua doutrina com uma parâbola (w. 15-16): o exem-
Esta derrota aparece nas metâforas do final do v. 9: <cairão em fran- plo aduzido é chocante, desmascara o absurdo e a vaidade de seme-
galhos como um velho manto, a traça os roerá>. lhante fé. A saudação de despedida e o conselho, na 'aparência fra-
420 421
ternos (cide ,em paz... aquecei-vos... fartai-vos>), são hipócritas, a que se irã desenvolvendo nos capltulos seguintes até o fim do evan-
negação do amor (2,8), o oposto da fé, um embuste. fraudulento, porque, gelho (8,31-16,8). Por isso, esta seção aparece como o centro de
embora se conheça a obrigação de quem crê e se a reconheça exterior- convergência de todo o evangelho.
mente, nada é leito para realizá-la, mesmo na pior das carências do Percebe-se, pela leitura de Me 1-8, que Jesus foi insinuando na
.: i irmão. Como o homem se subtrai às exigências fundamentais de sua fé, mente dos discipulos a suspeita de que ele era o Messias, embora
dum modo um tanto estranho, oculto, secreto, através dos seus _ensina·
'
i' peculiarmente no .que tange à caridade 1 Diante disso, Tiago penetra mentos e milagres. Não se compreenderia o seguimento de jesus
no âmago da questão, dênunciando o egoísmo, a presunção, a hipocrisia (1,16-20), sem, ao· menos, uma leve esperança de que nele se cum-
face ao mandamento por excelência. Em decorrência, não hã senão priam as antigas esperanças.
levar a sério o que Deus exige de nós. Nossa tibieza, nossa indiferença, Até aqui (Me 8,26) o evangelista apresenta os principios da dou-
nossas ambigiiidades não podem prevalecer, sob o risco de perdermos o irina de Jesus, como faz um bom teólogo. Da confissão. de Pedro em
•Céu. Diante do juiz supremo pouco valerá ter !alado bonito, mas sem diante, quer levar o leitor à práxis, à vivência destes :princípios por
obras de caridade e de misericórdia (lJo 3,17s; Mt 25,31-46). O NT um seguimento decisivo e uma opção livre, engajante, mas decidida, a
as traduz em carência de vestuário e de alimento , (Lc 3,11; Mt 6,25; ele. Portanto, verifica-se, neste momento (8,27-35), uma virada impor-
lTm 6,8). iante na própria vida de Jesus. Ele aparece não só como um rabino
O v. 18 encerra uma objeção que, à primeira vista, poderia ser ou taumaturgo, mas deixa-se identificar com o Messias, que inicia um
procedente; outros exegetas preferem ver ai um desafio. O que vale caminho que terminará em Jerusalém, onde é julgado, morto, sepultado
é a fé que se tem, pouco importando as obras sem a fé. De fato, a e entronizado na sua glória pela ressurreição. Começa-se a abrir os
fé é um grande valor, a base da salvação, o dom da vida nova e o clhos dos discipulos para a verdadeira dimensão messiânica de Jesus.
penhor da vida eterna. Entretanto, ninguém está dispensado de rea- 3. o inicio do caminho no seguimento de Jesus começa com a
lizar esse dóm, essa vida nova na vida prãtica diãria. Não sendo profissão de fé messiOnlca de Pedro e a ordem dada por jesus para
assim, a objeção envolve subterfúgio, pois só quem tiver fé e viver qae guarde silêncio sobre a sua identidade (8!27-30) f~f. M_t 16:1!!-20;
segundo sua' convicção religiosa é que produzirá obras da fé; sem Lc 9,18-21). Esta confissão se dã em Cesaréia de Filipe, 1dent1!1cada
elas a fé é morta, o dom salvflico de Deus fenece, As obras não são <:om a antiga cidade de Pânias ou Pâneas, consagrada ao deus Pan,
a causa da lé, porém a manifestam. Segundo o Concilio de Trento, deus dos pastores e dos rebanhos, donde o seu nome atual árabe
a justificação envolve não apenas a remissão dos pecados, senão tam- l!aniyas. Distingue-se da Cesaréia Marltima situada às margens do
bém a renovação interior do homem, porque a fé sem esperança e .Mediterrâneo. Foi reconstruida por Filipe, filho de Herodes, o Grande.
caridade não nos une a Cristo plenamente e nem vivifica os membros Filipe foi tetrarca da Jturéia, com as regiões da Batanéia, Traconltida,
de seu Corpo (Denz. 800). A verdadeira fé se traduz em obras não da Auranltida da Oaulanltida e de Pânias. Foi chamada Cesaréia em
da lei mosaica, mas do amor (Mt 7,21.24s; Lc 6,46; 12,47). honra do imperador Augusto. Está situada uns 40 km ai> nordeste do
lago de Oenesaré.
Bibliografia: Cf. 220 Domingo do Tempo Comum, Ano B, p. 408. Segundo Me Jesus escolheu propositadamente esta regiao pagã, ro-
manizada para Q.ue os discípulos tomassem consciência da sua missão
P. Matheus F. Oiuliani, S.A.C. messiânica porque assim estavam longe do fanatismo das multidões da
Santa Maria, RS Oaliléia q~e identificavam o messias como um revolucionário, um liber-
tador nacionalista e terreno. E pediu silêncio para evitar falsas Inter-
pretações, porque os discipulos e menos ainda o povo compreendiam
Terceira Leitura: Me 8,27-35 as verdadeiras dimensões do messianismo de Jesus.
Portanto para Me não há tanto uma preocupação geográfica ou
«Tu és o Cristo> topográfica, 'mas teolÓgica. Cesaréia de Filipe significa o _Início da
1. Com estes últimos versiculos do capitulo oitavo nos encontramos ~amlnhada de Jesus para Jerusalém; abre-se uma perspectiva nova,
diante do próprio cerne de todo o evangelho de · Marcos. Os vários universalista do seu messianismo, livre dos preconceitos e condiciona-
momentos de~te conjunto, isto é, a confissão de 'Pedro (8,27-30), o mentos da mentalidade judaica. Esta caminhada inicial não é geográfica,
inicio das predições da Paixão e Ressurreição (8,31), a repreensão a mas de fé. Só através da fé, mesmo inicial, se consegue seguir Jesus.
Pedro explicando o verdadeiro messianismo (8,32-33) e o seguimento A pergunta de Jesus: «Quem os homens dizem que eu sou?> (v. 27)
de Cristo (8,34-35) são fundamentais, decisivos para se entender a foi uma espécie de teste para avaliar quanto os disclpulos tinham assi-
teologia de Marcos. ' milado e compreendido sobre seus ensinamentos, pessoa e missão. ~
2. A confissão de Pedro (8,27-30) entrelaça as "duas grandes partes uma pergunta dirigida ainda hoje a cada homem. Os homens (OI
do evangelho. A parte anterior (1,1-8,26) retrata,' desde o inicio, a anthropoi) são aqueles que estão fora do circulo formado ao redor
preocupação do evangelista em revelar aos disclpulos, às autoridades de Jesus (1,17). A resposta dada pelos dis~fpulos reflete uma diver-
oficiais, e ao povo aos poucos e gradativamente o mistério de Cristo. sidade de identificação, mas conclui-se que, segundo a opinião pública,
jesus não aparecia como um homem qualquer; contudo, -"ainda não era
Ela culmina i:om a auto-revelação de Jesus como Messias e com o identificado como o Messias, Servo Sofredor. Por isso, fala-se de João
primeiro reconhecimento dos discipulos, na pessoa de Pedro, do messia- Batista, Elias, ou um dos profetas (cf. 1,2-8; 6,14-15),• opiniões ina-
nismo de Jesus (8,29). Introduz também o tema do Messias Sofredor,

422 423
dequadas ao messtamsmo de jesus. Agora se entende a ln/ase da per-
gunta de jesus: cE vós, quem dizeis que eu sou?:> (v. 29). Nota-se serviu-se' desta tradição elaborando-a .na perspectiva de· sua teologia.
claramente que os disc!pulos aparecem em contraste com os chomellS>. Ele quer levar o leitor a ir aos poucos ainadurecendo na sua fé
O cvós> assinala aqueles a quem foi confiado o segredo do Reino de messiânica, · no seguimento dum Cristo Messias-Sofredor. Durante a ca-
Deus, em contraste com os cde fora>. , · minhada não se pode tergiversar apesar das circunstâncias adversas,
A resposta de Pedro cTu és o Cristo> (v. 29) em seu nome e em dos acontecimentos contrários, das decepções e oposições.
nome dos outros discípulos, revela simplesmente a convicção de fé O anúncio é introduzido com a .expressão «é necessârio> (dei)
no messianismo de jesus sem qualquer outra atribuição. Os acrésci- que alude ao cumprimento das Escrituras e por isso possui uma cono-
m~s dos outros evangelistas «filho do Deus vivo> (Mt 16,16), co
tação bastante apocaliptica e designa a inelutabilidade na consumação
~nsto de DeuS> (Lc 9,20), co Santo de Deus> (Jo 6,69) são expressões
da história da salv~ção ou na realização do plano de Deus a respeito
t1yadas d~ _AT que, segundo a exegese hodierna, não querem dizer de Cristo. :E claro que não se trata dum fatalismo mas a salvação
ainda a dmndade de jesus. Pedro é o primeiro homem que reconhece de toda a humanidade depende da morte do Filho do Homem.
oú, ao menos, que reconhece abertamente jesus como o Libertador Me coloca este. primeiro anúncio dos sofrimentos, da morte e da
esperado.. J'.az um ato de fé na messianidade de jesus mas ainda não ressurreição de jesus numa perspectiva profética pela aplicação do ti-
na sua divindade. Portanto, trata-se duma confissão . de fé inicial fraca tulo «Filho do Homem> a Cristo na mesma dimensão do messianismo
incipiente, mas verdadeira, ponto de partida para o seguime~to d~ e da profecia do Servo de Javé (cf. a 1• leitura: Is 505-9). Me une
jesus. A aceitaç~o da personalidade total de jesus· se darâ . só depois a idéia da vinda gloriosa do Filho do Homem (Dn), ju~ escatológico,
com a de Servo de Javé (Is). Percebe-se neste modo de falar de Me:
• da Páscoa, depoIS da ressurrejção. Me quer levar o leitor a encontrar
c:sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos saCerdotes e
um .inicio n~ ~u.a cainin~ada de fé atrãs de jesus. «Cristo> (em grego
Christós) sigrufica «ungido> como Mashlakh em hebraico. Donde se pelos escribas, ser morto e ·ressuscitar depois de três dias> (v. 31)
'1 pode traduzir> <Tu és o Messias> (note o artigo). Pode entender-se resqulcio duma elaboração cristã posterior à Páscoa. :E a mentalidade
~elhor esta expressão à luz da Páscoa, quando as comunidades primi- e teologia dos primeiros cristãos relembrando os últimos acontecimen-
tivas, sobretudo as fundadas por Paulo, aplicavain a jesus o apelativo tos da vida de jesus
de Cristo. . O evangelista insiste em dizer que jesus <!alava abertainente> (v.
A imposição dum severo silêncio (v. 30) torna~se muito compreen- 32), sugerindo que jesus agora deixa de manifestar-se ocultamente a
sível porque jesus não podia revelar publicainente, durante sua vida seus ouvintes para falar de seus sofrimentos e sua rejeição em termos
terrena e de maneira total, o mistério da sua identidade, antes de ter claros e inequívocos, isto é, sem metáforas, a ponto de Pedro se
1 1 chocar vivainente. Este se pôs a repreendê-lo (v, 32) dando prova
demonstrado, ,por sua morte. e ressurreição, o sentido real de todos
os seus tltulos. Caso contráno, · para aquela gente despreparada a di- que, embora tenha reconhecido em jesus a messíanidacte; contudo não
vulgação pública geraria mal-entendidos. Assim Me apresenta um jesus compreende que esta missão traz consigo o sofrimento e a morte de
1 que respeita o progresso da fé dos seus seguidores. Entende-se, então, jesus e de seu seguidor. Pedro ainda está preso a um messianismo
a reação tipiça de jesus diante dos ti1ulos messiânicos populares car- terrestre e por isso recusará o primeiro ensinamento sobre o messias
regados de nacionalismo e política. Ademais, só com esta fé se pode cristão sofredor e advertirá mais uma vez jesus, para :que abandone
falar de Jesus, pois nem os discipulos tinham entendido que ele era o seu caminho. 1

o Filho do homem, Servo de Javé. Esta perlcope parece pobre em Diante desta atitude repentina, temperamental, ardeÍlte de Pedro,
relação a Mt; mas ela é entendida a partir das intenções teológico- jesus vê mais uma oportunidade para corrigir a idéia dum falso messia-
cristológicas e não eclesiológicas de Marcos. Mt tinha preocupações nismo e ao mesmo tempo lhe faz lembrar as várias tentações que passou
eclesiológicas ao passo que Me não as tinha. em seu caminho. Nesta perspectiva entendem-se os gestos e as pa-
4. Com o v. 31 começa a segunda parte do evangelho de Me a lavras duras de Jesus dirigidas a Pedro e aos discipulos: <voltando-se
qual forma uma unidade indivisivel com a primeira. Tal seção inÍcia e olhando para seus discípulos, repreendeu Pedro e lhe disse: 'Afasta-te,
com a primeira predição de jesus sobte seus futuros sofrimentos. :E satanás, pois não sabes as coisas de Deus, mas as dos homens' (v. 33).
a caminhada do Filho do homem. Este pormenor gráfico «Voltando-se e olhando para seus discipulos>
Este primeiro anúncio (8,31-33) (e!, Mt 16,21-23; Lc 9,22) não indica que a resposta de jesus dirigida a Pedro deve ser ouvida também
poderá ser separado da primeira parte do evangelho como nem da pelos demais. Dizendo a Pedro: «Afasta-te, satanás», jesus estava
segunda.· O episódio constitui uma junção que ar.ticula as duas me- vencendo mais uma vez a tentação dum falso messianismo e optava
tades do evang~lho, semJ contudo, pensar-se numa seqüência lógica. com mais decisão pelo messianismo de sofrimento e de morte. Cristo
Como também nao podemos separar esta primeira predição das outras amadurecia conscientemente na sua idéia messiânica. Enquanto Pedro
duas .<:f. Me .9,31 e ~0,33-34?, porque as três seguem o mesmo esquema (satanás: adversário), os disclpulos e os homens (seus inimigos) se
(prediçao, mal-entendido e instrução). A intenção iundamental de Me alinham contra o plano salvífico de Deus, Jesus · escolheu seguir a
estã em corrigir qualquer idéia falsa que pudesse afetar a messianidade vontade de Deus.
que acaba d~ ser reconhecida na confissão de ~edro. Segundo Me, 5. Depois de Me traçar para o leitor o verdadeiro caminho que
jesus tratou de dar a. seus discípulos alguma idéia daquilo que o espe- o Cristo devia percorrer passando pelo sofrimento e chegando à glo-
raya. !!um futuro próximo. Talvez a triplice predição .pertença à tradição rificação, agrupa uma série de sentenças isoladas sobre o compromisso
prumtiva porque está colocada dentro dum quadro bastante artificial. Me dos seguidores de· Jesus (8,34-9,1) (e!. Mt 16,24-28; L"c 9,23-27). A
!é sempre corresponde o seguimento. O ideal: seguir jesus
424
425
'

Pode-se ver neste agrupamento de inslru;ões sobre o discipu/ar]J)


em cada cultura , que entra em contato com o Evangelho. Como
uma elaboraçãb e preocupação da comunidade primitiva, que, ouvjndo dizer quem é Jesus?
as pregações ilos apóstolos, era convidada a participar do Mistério da Haverá aqueles a quem parece supérflua a pergunta. Não
Paixão de Cristo. Me recolheu tal tradição e a agrupou segundo a está nossa fé em Cristo de uma vez por todas baseada na so-
sua intenção teológica. Assim se entendem melhor tais exigências à
luz da Páscoa. lidez da confissãe> de Pedro? Não basta repetir: «Tu és o
jesus diz cse alguém quiser .. .>, porque está dirigindo-se a pessoas Messias»? E, se necessário, ainda acrescentar: «Tit és o Filho
livres e não obriga ninguém, mas se alguém se decidir é para valer. de Deus», «Tu és e> Senhor», «Tu és e> Verbo consubstancial
Não convida só os discipulos, mas todos para segui-lo. ao Pai» etc., etc.? Por que repetir a pergunta: «E vós, quem
Duas conµições, segundo Me, são necessárias para o seguimento dizeis que eu sou?:o Porque a questãe> não é tãe> simples como
de jesus: renunciar a si mesmo e tomar a cruz. Renunciar encontra-se
em Is 31,7 e indica o gesto dos israelitas infiéis que, esclarecidos pela parece. Basta !'ermos ce>m atenção e> Evangelhe> de hoje.
Uerrota dos assirios rejeitaram seus ídolos de ouro· e prata fabricados
1

por suas mãos. Este termo enérgico (aparnesástho) mostra bem gual
'! i deve ser a atitude do disclpulo que se entregou a Cristo; nada mais Corpo
conta para ele; uma coisa só importa: viver e agir para aquele a
quem se entregou inteiramente. Portanto, renunciar quer dizer arriscar t. A resposta de Pedro é amblgua
a própria vida por amor dos bens escatológicos -0ue jã estão ao alcance A pergunta de Jesus Pedm responde: «Tu és o Messias».
das mãos. Tomar sua cruz aqui significa arrepender-se e entregar..se
totalmente a .Deus; arriscar a própria vida na sua palavra; assumir Nada mais ortodoxe>, diriamos nós. E, no entanto, Jesus proibe
os sofrimentos· e as dificuldades da vida que terminam na ressurreição; severamente os discípulos de falarem a alguém a seu respeito
realizarJ entãoJ o plano de Deus, isto éJ caminhar cada dia no cumpri- nestes termos. Sinal de que a confissão de Pedro nãe> corres-
mento dos próprios deveres buscando realizar o próprio ideal nos acon- ponde à verdade. Se tivermos dúvida, basta continuar a leitura
ci tecimentos; acompanhar o Cristo na caminhada da fé sem tergiversar.
Este é o verdadeiro martírio. Depois de assumir tudo issoJ o discípulo, do evangelho. Dentro dos esquemas de Pedro não cabem o
i
1
então, segue o mestre. sofrimento, a rejeição e a morte do Messias.
O v. 35 explica e completa o verslculo anterior. Salvar a alma (tén Qual é propriamente o problema? É um equlvl)co quanto à
psychen autou sósai) significa salvar a vida, a própria pessoa (corres-
ponde a néfesh: ser vivo, pessoa); portanto, significa que há urna forma de conhecer uma pessoa. Uma pessoa não se conhece por
fase escatológica da existência humana que nenhum sacriflcio se torna titules. Pessoas se conhecem num contato vital, histórico. Coisas,
excessivo pará alcançã-Ja. Perder a vida por amor de Cristo e por sim. Coisas se conhecem etiquetando-as. Quem conhece melhor
causa do Evangelho quer dizer em Me a presença e a identificação as rochas do que o mineralogista? Ele as examina e põe uma
de Cristo com a proclamação evangélica, a Boa-Nova da salvação
messiânica. etiqueta «quartzo», «basalto», «granito». . . E a rocha está defi-
nitivamente conh~cida. Nunca vai mudar. Pode pôr o fragmento
Bibliografia: . P 1 r o t - C 1 a m e r. La Sainte Bible, t. JX, Letouzey et Anê, de rocha no mostruário do museu de mineralogia e deixá-lo
Paris 1950; B u r n i e r, M. P., O.P., Perscrutando as Escrituras, fase. V, São
Maroos {JV). Ed. Vozes, PetrCpolis 1060; Ma e r tens, T.-P r J s que, J., Gula Já. No mâximo será necessário mudar a etiqueta, quando os
da Assembléia Crlstil, vol VJJ, Ed. Vozes, Petrópolis 1970; V ã r 1 o s, Comentcirio
ao Evangelho de Siío Marcos, Ed. Vozes, Petrópolis 19'18i C a 11 e, P. de la,
Teologia de Marcos, Ed. Paulinas, São Pauto 1978; V á r J os, Comentdrio Blbllco
anos a tiverem ·,feito desbotar a ponto de se tornar ilegível.
"San Jerónimo",, t. Ili, NT, J, Ed. Crlstlandad, Madrid 19'12. Mas quem tiver a tarefa de repôr as etiquetas, ,repetirá pura e
Constantino Bombo, O.F.M.Cap. simplesmente a mesma coisa. Objetos se conhecem assim:
Piracicaba, SP etiquetando-os, referindo-os a uma designação já conhecida.
Quem quiser conhecer uma pessoa dessa maneira, vai por
maus caminhos. A pessoa não é fixa, tem sua história. A pessoa
Sugestões para a Homilia se faz através de sua história, no intercâmbio com o outro. Só
:1 conhecemos al'guém, convivendo com ele, vendo como reage em
Jntrod11ção diferentes circunstâncias, deixando que o tempo nos diga quem
«E vós, quem dizeis que eu sou?» (Me 8,29). É a pergunta ele é. Ao sermos apresentados a alguém, ainda não podemos
que Jesus faz para todos os seus discipulos a cada momento, dizer que o conhecemos. Apenas sabemos o nome. Uma pessoa
em cada época histórica. 1i o desafio lançado, sempre de novo, só se conhece a partir de sua história, de suas relações e reações.
427
426
p
Na diferença entre esses dois tipos de conhecimento está o plena participação social e política~ (n. 898). Deveremos
1 problema da confissão de Pedro. Apesar da convivência com reconhecê-l'o no rosto de indígenas e afro-americanos, no rosto
de camponeses e operários, no rosto de marginalizados nos aglo-
~ .
jesus, ele não o quer conhecer por sua história, mas por um
título: o Messias. Não que o título não coubesse a jesus. Cabia- merados humanos, no rosto de subempregados e desempregados,

Ir.í'
t

!
lhe. E mesmo a partir de sua história até aquele momento. Uma
das características do rei messiânico era seu amor pelos pobres,
de jovens desorientados, de crianças golpeadas pela pobreza
ainda antes de nascer, de anciãos (leia-se todo o · n. 20 do
Documento de Puebla).
1 i sua atitude de não fazer acepção de pessoas, mas julgar se-
i. gundo o direito e a justiça. Mas o titulo continha muito mais
na mentalidade corrente de então: o dominador dos povos pa- Conclusão
,', gãos, o vingador da honra de Israel, o rei temporal e guerreiro ...
E Pedro pensava em tudo isso ao proclamar a messianidade Na medida em que nos pusermos a serviço de todos esses
de .J_esus. Catalogava-o como se catalogam coisas. E por isso manifestações históricas do rosto sofredor de jesus - esta-
não acertou. Tanto é assim que, quando Jesus lhe indica o seu remos mostrando que conhecemos a jesus à maneira como se
caminho histórico que passa pel'o sofrimento, pela rej.eição e conhecem pessoas. Nessa medida não estaremos apenas cata-
pela morte, Pedro não consegue compreender. julga estar pe- logando a jesus como um fenômeno impessoal no universo da
rante um momento de desânimo de jesus. história das religiões, mas estaremos «implodindo» todos aqueles
titulas com o conteúdo da experiência histórica do Jesus vivo
2. A jesus se conhece na história entre nós.
Francisco Taborda, S.j.
jesus, no entanto, se dá a conhecer por sua história. Po- Porto Alegre, RS
demos proclamá-lo Messias, o Cristo, o ungido de Deus, o
escolhido, desde que saibamos relativizar esse título a partir
i';i da história real de jesus. E essa história «implode» a concep-
ção tradicional de Messias. O rei escolhido por Deus não é o
triunfador soberano aos moldes dos desejos humanos. Mas aquele
que se torna triunfador exatamente por solidarizar-se com os
desprezados ' da terra, com os condenados à morte, com os
marginalizados, com os pobres, com os que não têm graça nem
formosura ( cf. 53,2).
«E vós, quem dizeis que eu sou?» Vós, latino-americanos,
brasileiros do último quartel do sécul'o XX. Podemos repetir a
confissão tradicional, como o fizeram os bispos latino-americanos
em Puebla: «Tu és o Filho de Deus», «o Verbo nascido do
Pai antes de todos os séculos», «o centro ·da história», «O
único mediador». Mas, se não quisermos cair no mal-entendido
da confissão de Pedro (segundo a versão de São Marcos),
deveremos saber reconhecê-lo no rosto do pobre, como também
o soube a Conferência Episcopal de Puebla. Deveremos reconhecê-
lo na «imensa maioria de nossos irmãos» que «Vive uma situa-
ção de pobreza e até de miséria que se vem agravando», «ca-
rentes dos mais elementares bens materiais, em contraste com
o acúmulo de riquezas em mãos de uma minoria, às vezes à
custa da pobreza de muitos». Reconhecer a Cristo naqueles que
«não só estão privados de bens materiais», mas também «de

428 429
Vigésimo Quinto Domingo ninguém os incomodaria. O autor menciona estes três grupos, comumente
empurrados para a margem da sociedade, para realçar a mentalidade
do Tempo Comum covarde e impiedosa dos ímpios. É precisamente para estes grupos
que, na Sagrada Escritura, se pede repetidamente piedade e respeito
Pistas Exegéticas particulares.
V. 11: Os impios estão cheios de desprezo pelos fracos e proclamam
Primeira Leitura: Sb 2,12.17-20 o direito do mais forte. Este recurso ao direito do mais forte é uma
tentativa de se legitimar a subversão da ordem estabelecida por Deus.
«Se o justo é filho de Deus, Deus o assb»tirá> Vv. J2-16a: Quando a injustiça é transformada em regime clegi-
timo>, a perseguição e a eliminação dos ju~tos. não tardam.. A mera
A leitura de hoje pertence à unidade literãria 1,16-2,24; e esta presença destes jã representa uma contestaçao mtolerãvel: ExISte um.a
pertence à primeira parte do livro, que abrange cc. 1-5. Nesta parte oposição 1otal e intransponível entre os modos de ver, Julgar e agir
o autor previne os judeus, seus correligionários, sobre a tentação do dos justos e dos ímpios.
paganismo. (0 livro foi escrito no Egito para os judeus da diâspora Vv. 16b-20: Hã também uma oposição entre a disposição de espírito
que aí moravam.) Esta tentação consiste na vida desregrada que se dos justos e dos ímpios. Da parte dos justos tranqüilidade, firmeza e
pode viver no paganismo e que encontra um aliado nas paixões e na paciência resultado da certeza de que têm Deus do seu lado. Da parte
concupiscência do homem. dos ímpi~s insegurança, desconfiança e pânico que levam ~ toda esp~
O autor mostra uma certa habilidade em imaginar-se na situação cie de perseguições, através das quais desesperadamente poem Deus a
de outros para, a partir daí, analisar a mentalidade dos mesmos. Em prova nas suas vítimas.
2,1-20 analisa a mentalidade de judeus apóstatas e aborda lógica e O valor paradigmãtico desta parte do Livro da Sabedoria (cc. 1.-5)
psicologicamente o modo de pensar e de viver deles e a sua atitude foi muito explorado pelos primeiros cristãos. Eles encontraram aí mwtas
frente a judeus que lutam para continuar fiéis e conseguem jsso. pistas para entender devidamente a paixão e morte de jesus. Pode-se
A passagem 1, 16-2,24 trata do tema: «Quem se entrega ao pecado, perguntar se contém uma profecia de um messias sofredor. Muitos·
merece a morte». Embora dirigindo·se a judeus fiéis contra judeus Padres motivados por alusões como se encontram em Mt 27,39-43 (cf.
apóstatas (cf. 2,12c e d), suas palavras valem para todos que hão Tg 5,5"6) deram à passagem uma interpretação messiânica. Os compo-
de lidar com gente que não respeita a Deus. Neste sentido o texto, como sitores do novo lecionário litúrgico trienal, ao procurarem no Antigo
toda a primeira parte do livro (cc. 1-5), reveste-se de um valor para- Testamento um texto que concordasse com a segunda predição da
digmático sempre atual. O ímpio chama a si a perdição (1, 16) em paixão, morte e ressurreição de jesus _(Me 9,31), r~correram. a _Sb
conseqüência de seus princlpios (2,1-5), de seu modo de viver (2,6-9) 2,12.17-20. Mas não se precisa desta relaçao de •P!ofecia -: realizaçao»
e de sua atitude hostil contra os justos que não compartilham estes para se explicar a semelhança entre a sorte dos 1ustos, ob1eto das re-
princípios, nem este comportamento (2,1().20). Em 2,21-24 o hagiógrafo flexões de Sb 1-5 e a sorte de jesus de Nazaré, narrada nos Evan-
formula a sua própria doutrina. gelhos. Jesus mor;eu como um homem inde~jado ~ p~rseguido, porque
Os princlpios dos ímpios são marcados pelo materialismo. Mesmo era justo como os justos, e seus perseguidores 1mp1edosos como os
que não sejam ateístas teóricos, querem banir Deus e toda dimensão impios de Sb 1-5.
espiritual de sua vida (2,1-5). A vida deles é conforme com estes princf- O detalhe pelo qual estes justos ganham, em Sb 1-5, o nome de
pios: se o homem todo não é mais do que a sua existência terrestre, ele dilho(s) de Deus» (2,13.18; 5,5) que têm <Deus por pai» (2,16) também
hã de gozá-la o quanto puder (2,6-9), sem importar-se com ninguém atraiu a atenção dos primeiros cristãos para_ estes capítulos de Sb e
(2,toss). O último, porém, é imposslvel. Sempre há lã os justos, que desempenhou um papel importante no reconhecimento e na confissão
por sua mera presença importunam e incomodam a consciência dos da filiação divina de jesus. Em Sb 2,13 o justo é chamado «pais Theou»,
aproveitadores. Uma vez que é impossível negar a existência e a titulo também do servo-de-Javé-sofredor de Is 52,13-53,12 (cf. Is 42,l;
presença deles, importa eliminá-los. 52,13). Em Sb 2,18 chuios Theou» (cf. 5,5). Nos Atos dos Apóstolos
A procura dos prazeres da vida é uma conseqüência lógica dos Lucas ainda usa os dois titulos para falar de jesus (cf. At 4,27.30).
principias dos ímpios. A atitude hostil contra os justos não. Esta é São sinais de uma cristologia antiga desenvolvida a partir dos Cânticos
uma conseqüência psicológica. Os hnpios não estão totalmente certos do Servo de Javé Sofredor e de Sb 1-5. Resqufcios desta cristologia
dos princípios que propalam com tanta bravura. E não o podem estar. primitiva acham-se em Didaqué 9,2-3; 10,2-3 e 1Clem 59,2-4.
Por esta razão vivem em uma inquietação embaraçada, que experi- Documentos recentes da Igreja, como o de Puebla (por exemplo,
mentam ma_is agudamente ao perceberem a vivência convicta de prin- n• 20), mostram que nem os Cânticos do Servo de Javé, nem Sb 1-5,
cípios opostos. Não podendo refutar estes, recorrem à gozação, des- nem a (interpretação da) paixão e morte de jesus de Nazaré nada
moralização e perseguição daqueles que os subscrevem. São tentativas perderam de seu valor paradigmãtico.
malogradas para salvar as aparências e calar por algum tempo a cons-
ciência perturbada. Bibliografia: A. O r u b b e 1, Wljsheid; E. Os ty, Le Livre de la Sagesse.
Blble de Jérusaiem; E. S eh i 11 e b e e e k x, ]ezus, Bloemendaat 1974.
Nos w. 1().20 a retidão dos oprimidos ocupa o primeiro plano.
V. 10: Se os pobres, as viúvas e os de idade avançada concordassem Raul Ruijs, O.F.M.
com os principias pecaminosos e o comportamento licencioso dos ímpios, Petrópolis, RJ

430 431

'
Segunda Leitura: Tg 3,16·4,3 nas comunidades. A erigem das contendas são as injustiças sociais
que produzem contraste entre ricos e pobres (2,1-9; 5,1-6). Os pobres,
No capitulo 3, Tiago se ocupa de mais outra falha na vida cristã: ao reivindicar seus direitos, presumivelmente falharam quanto ao modo,
os pecados da língua, do não-controle no falar. Segue-se um apelo para dando oportunidade a violências, descontentamentos e discórdias. No
que se domine a língua, sujeitando-a ao espírito de fé e caridade, - fundo, sobrevivem ainda motivações terrenas e egoístas nos cristãos.
o que é uma obrigação. Havia, com efeito, entre os judaizantes, quem Toda dádiva boa provém de Deus (1,17); logo, a Ele deverá o
primasse em aparecer como mestres, nem sempre sinceros e responsá- homem ordenar sua vida para haver paz em si e na comunidade.
veis, sujeitos a abusos. O apósto1o adverte: a perfeição implica em Sem a paz de Deus não haverá paz no homem, o que implica em desa-
não pecar por palavra (3,2ss), em refrear a língua, cujo poder é pego, ausência de egoísmo, controle das paixões. A salvação só pode
tremendo (3,5ss), sendo fonte de males por vezes incontroJáveis (3,7s). vir de dentro ou de cima. Tiago não impede que os pobres reclamem
O órgão da fala deveria, ao invés, louvar a Deus e abençoar os seus direitos primários, mas indica o caminho a seguir: soJicitar esses
homens (3,9-12). É antinatural ser a lingua fonte de bem e de mal, dons a Deus com confiança, isto é, uma vida realizada, rica, segura,
.
·1 i
'
como não pode a mesma bica jorrar água doce e salgada ao mesmo
tempo.
que resu1te em alegrias e satisfação, próprias de quem cumpre a von-
tade de Deus. Acontece que o homem decaido, não raro, julga-se dono
O contexto próximo investe contra a sabedoria mundana, contra o exclusivo de sua vida, desgastando-a em desmandos morais.
·1
ciúme, contra a dissensão e suas raízes - egoísmo, amor-próprio, mau Empregam-se aqui termos cruentos: «homicídio», «guerra». Algumas
i coração (3,13-4,12) - convidando para a verdadeira sabedoria, a do versões atenuam, sem base, o «phoneite» (assassinar) com a variante
«phthoneite» (invejar). Não é provável que se trate de homicídio con-
!'
i
aJto (3,13.15.17ss), e para a conversão a Deus e ao próximo. Ciúme,
rancor, orgulho, vanglória, partidarismos, contendas... levam à per-
turbação, ao vício, à animalidade, à discórdia, à cisão - ambiente
creto, mas alusão àquilo de Jesus: «Todo aquele que odiar seu irmão
é homicida> (MI 5,21s; ljo 3,15).
1 próprio de quem serve a Satanás, em oposição ao Espírito de Deus Se a vida do cristão não muda para melhor é porque não se pede
que é verdade, unidade, concórdia . e amor. Estes constroem e unem, a Deus tal favor, que o daria generosamente (1,5). Quem pede recebe
aque1es destroem e dispersam. (Mt 7,7s). O v. 3 responde a uma objeção tácita: se se pede e não
Nos vv. 17-18 Tiago descreve a fonte e os produtos da verdadeira se recebe, é porque se pede mal, isto é, não para superar a fragilidade
sabedoria, que vem do alio (Sb 1,4; 7,25ss) e tende a efetuar o bene- humana, senão para satisfazer às paixões. E oração desorientada, sem
plácito divino no mundo - o crescimento interno e externo da 1grej a. reta intenção: em vez de pedir que se faça a vontade de_ Deus, que
Tal sabedoria não se exalta, não se arroga direitos, mas quer servir, se realize seu Reino (Mt 6,33), pedimos que se faça a nossa, mani-
dar bons frutos - o reverso da sabedoria mundana, auto-suficiente e, pulamos a bondade de Deus a serviço de nosso egoísmo. Como Tiago
por isso, destinada ao malogro (cf. !Cor 3,18s). Como discernir a desmascara a tentação de muitos cristãos, que não levam a sério seu
sabedoria autêntica? Para tanto apontam-se vários sinais. A sabedoria cristianismo, deixando-S;e envolver pelo mundano! Ter fé é entregar-se
do alto é pura, sem hipocrisia (Sb 7,22-27), não tem ambição e nem sem reservas a Deus: «Faça-se a tua vontade, não a minha» (cf.
paixões, sem exibicionismos, evitando o erro; - só pretende agradar Me 14,36).
a Deus, sem egoísmos ou segundas intenções; - é capaz de abrir Bibliografia: Cf. 22~ Domin~o do Tempo Comum, Ano R, p. 408.
espaços em si mesma e na comunidade ao Espírito, isto é, dócil; - é
bondosa, misericordiosa e indulgente (SI 85,5; !Pd 2,18) para com P. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
todos, sabe perdoar e ajudar aos necessitados (1,27; 2,14-16); - re- Santa Maria, RS
nuncia a direitos e privilégios, se o bem comum o exige; - abstém-se
de dissensões, de particularismos, de parcialidades, esmerando-se em
promover a paz e a unidade na Igreja (e!. Pr 3,17; Rm 8,6). Quem Terceira Leitura: Me 9,30-37
procede assim é sábio, filho de Deus, porque imita a Cristo que se
propôs servir e não ser servido, com palavras e obras (virtudes cristãs). «. . . aquele que serve a todo~
O elogio à sabedoria é análogo ao de Paulo à caridade (!Cor 13).
O v. 18 perodia a 7' bem-aventurança (Mt 5,9) : pera ser tal sábio, Em uma leitura contínua lê-se, nos próximos doming-os, Me 9,30-
só mesmo um grande amor! A verdadeira sabedoria produz a justiça 10,52. Incluindo-se a segunda parte da leitura de domingo passado
na paz. A discórdia destrói, somente a caridade constrói a comunidade. (8,31ss), corresponde praticamente à Parte Central do Evangelho de
A amizade do mundo é inimizade contra Deus (4,lss). O espirito Marcos. Vários autores o dividem em três partes, com uma introdução
mundano com suas ambições é a causa de tantos males e dissensões (1,1-13):
(4,1-5,6; lTm 6,10). As paixões é que são a raiz da sabedoria inau- 1: 1,14-8,29: O mistério do Messias: a revelação de Deus e a cegueira
têntica (e!. Rm 7,23; !Pd 2,11) e do hedonismo, cujos frutos são des- dos homens.
critos aqui com hipérboles do estilo exortativo e doutrinário, as quais Ponto alto: a confissão de Pedro: •Tu és o Messias> (8,29).
não necessariamente se devem tornar ao pé da letra. Linda a an4lise li: 8,30-10,52: O mistério do Filho do homem: o seguimento de jesus
psicológica de Tiagol As expressões se ressentem da terminologia mi- no caminho que leva de Cesaréia de Filipe a jerusalém.
litar, - o que poderia insinuar a existência de e-estado de guerra> Pontos altos: as predições da paixão e 10,45.

432 433
III: 11,1-16,8: A revelação do mistério: ação, paixão e !IlOrte, e ressur- com o Messias esperado. Ele volta de novo em 8,32s; 9,6.10.32: 10,13-14
reição de Jesus em Jerusalém. etc.). Nesta Parle Central, porém, a incompreensão diz respeito à v~­
Pontos altos: a confissão do centurião «Este homenl era o Filho dadeira missão de jesus, à sua paixão e morte. Doravante acrescenta-se
de Deus> (15,39) e o querigma pascal (16,6). ao tema da incompreensão o do medo (cl. 9,32; 10,32).
Através desta estruturação de sua mensagem, o evangelista Marcos
Na Parte Central estes autores descortinam uma estrutura tripàrtida: repete por três vezes (8,27-35; 9,30-37; 10,32-45) que não é suficiente
reconhecer em Jesus o Messias e aclamá-1'0 como salvador ou liber-
A: A Primeira Predição da Paixão e o que lhe segue tador. A profissão de fé batismal (<Tu és o Cristo>: 8,29) em que
- Primeira Predição da Paixão (8,31-32a); culmina a Primeira Parte do evangelho é somente o início de uma
- Incompreensão da parte dos discípulos (8,32b-33); metanóia constante e de uma mudança contínua de mentalidade e de
- Instrução de Jesus sobre o verdadeiro seguimento (8,34-9,1): maneiras de agir através das quais o cristão sintoniza sempre mais
- O que segue (9,2-29). os seus critérios com os critérios que jesus revelou pai Suas palavras
e Suas obras; e a sua vida à vida de jesus, que é toda disponibilidade
B: A Segunda Predição da Pai:c,ão e o que lhe segue ao Pai e fideJidade aos homens, aos quais é enviado como servo,
- Segunda Predição da Paixão (9,30-31); corno servo sofredor (9,35; 10,43-45).
- Incompreensão da parte dos discfpulos (9,32-34);
- Instrução de Jesus sobre o verdadeiro seguimento (9,35-37); Bibliografia: Os comentãrlos de T a y 1 o r, S eh w e 1 z e r e M a 11 y (em:
- Outras instruções (9,38-10,31). The ]erome. Bibllcal Commentary); Fr. Nelrynck, A Tradição das Sentenças
de Jesus. Um estudo baseado em Me 9,33-50, em: Concilium 1966/10, p. 57s; L.
Sou b l g ou, O Plano do Evangelho segundo São Marcos, em RCB 12 (1975),
C: A Terceira Predição da Paixão e o que lhe segue JM..96; K. K e r te 1 g e, A Epifania de jesus no Evangelho de Marcos, em: J.
- Terceira Predição da Paixão (10,32-34); Se h r e i n e r - O. D a u t zen b e r gj Forma e Exigéncias do Novo Testamento,
S. Paulo 1977 p. 228-255; L. A 1 g s 1, A Composição do Evangelho de Marcos,
- Incompreensão da parte de Tiago e João (10,35-40) e dos outros em: T. B a 1 f ar i n i, e.o., lntroduili.O à BlbUa com ontologia exegética, vol. IV,
Petrópolis 1972, p. 110-127.
dez (10,41);
- Instrução de Jesus sobre o verdadeiro seguimento (10,42-45). Raul Ruijs, O.F.M.
Encerramento da Parte Central e transição para a última Parte (que Petrópolis, RJ
traz a revelação do mistério!): Jesus abre os olhos de um cego
(10,46-52).
:• Tema Principal
A estrutura interna da passagem que se lê hoje (Me 9,30-37) é
semelhante àquela de Me 8,27-35 (e!. domingo passado!). Jesus aada PARA QUE SOFRER?
sozinho com os discípulos respectivamente pelas aldeias de Cesaréia de
Filipe (8,27) e através da Galiléia (9,30). Jesus instrui os dtsclpul~s
acerca de seu fim doloroso (8,31 e 9,31). Pedro (9,32b-33) e os demrus Sugestões para a Homilia
apóstolos (9,32) mostram incompreensão para com esta instrução de
Jesus. Introdução
A discussão no caminho sobre a questão quem (dos discípulos)
seria o maior (no reino messiânico de Jesus) (9,33-34) é relutada Sofre o homem de hoje e sofre muito. Sofre apesar das
por Jesus (9,35-37) como uma preocupação que não sintoniza com a
'Causa, se quiser, e-política:. (do reino) de Deus, mas com a dos homens prodigiosas descobertas no campo da medicina. Sofre apesar
(e!. 8,33). do avanço tremendo do progresso científico. Basta um ligeiro
Jesus sublinha sua instrução com um gesto simbólico, abraçando olhar ao nosso redor, basta ler os jornais e as notícias diãrias
urna criança e explicando de que maneira um discípulo se aproxima, da TV, basta entrar nos pequenos ou grandes hospitais de nossa
seja d'Ele mesmo seja do Pai, a saber, pelo amor aos pequenos cidade para sentir o drama do sofrimento.
(9,36-37). É neste amor aos pequenos que o disc!pulo de Cristo
e.renuncia-se a si mesmo, torna a sua cruz, segue Je$US e perde a sua
vida por amor de Jesus e da Boa-Nova> (cf. 8,34-35).
Corpo
No contexto da terceira predição da paixão Marcos adotarã de
novo este mesmo esquema (cf. respectivamente: 10,32; 10,33-34; 10,35-41;
1. O fato
10,42-45).
Pode-se ainda constatar como nesta parte volta o tema da incom- · Sofre a criança que mal acaba de nascer. Sofre o adoles-
preensão dos discípulos, já presente na primeira parte (cf. 6,52; 7,17-18; cente na primavera da vida. Sofre a jovem esposa que perdeu
8,4.15-21; cf. também a Pista Exegética de Me 7,31-37, acima, p. 403').
E.m um primeiro passo, esta incompreensão é ultrapassada pela con- o primeiro filho. Sofre o pai com uma grande familia a sus-
fissão de Pedro (8,27-30), que consiste em uma identificação de jesus tentar. Sofre o operãrio com o peso do trabalho. Sofre o co-

434 435
lono com as colheitas destruídas. Sofre o velho com o aban- e deserdados neste mundo. O sofrimento de Jesus é a conse-
dono e a solidão. Sofrem as famílias enlutadas pela perda de qüência lógica da coerência de sua vida, atitude e mensagem.
entes queridos nas últimas enchentes e catástrofes. Cristo viveu, testemunhou e anunciou a novidade total do amor
Quantas crianças com mãos trituradas. Quantas pessoas que sem limit~s e sem fronteiras, sem 'Jnedida e sem cálculos. Amou
ficaram aleijadas. Quantas faces enrugadas pela tristeza. Quantos apesar da prepotência dos poderosos, apesar do ódio dos ini-
corações rasgados pelas unhas da ingratidão. Quantas vidas que- migos, apesar do egoísmo dos incomodados, apesar da indi-
bradas pelas pedras da brutalidade. Quantos pobres esmaga- ferença dos instalados. Mas seu amor esbarrou contra o muro
dos pelos sistemas políticos e econômicos. Quantos gritos aba- da injustiça, da adversidade, da opressão, da resistência, da
fados dos oprimidos e humilhados. maldade, · da malícia, do pecado.
O mundo continua sendo um mar de dores. É o sofrimento Jesus jamais fugiu de sua missão libertadora, continuou
de milhões que morrem de fome. O sofrimento de milhões pros- amando <1pesar de, apesar dos pesares e apesar de tudo. Tes-
trados pela miséria. O sofrimento de milhões que vegetam no temunhou até a última gota de seu',sangue que sempre, em qual-
subdesenvolvimento. quer situação, na presença de qualquer pessoa se deve e se
Ninguém escapa da Via-Sacra. A dor acompanha-nos do pode amar e confiar no amor do pai, mesmo no extremo aban-
berço ao túmulo, como a sombra acompanha o nosso corpo. dono, na mais terrivel solidão, no' vazio e no aparente absurdo
Terrível mistério do sofrimento que envolve a história humana! da morte. Permaneceu firme em comunicar o amor-doação, na
maneira mais profunda e universal, assumindo nossos sofrimen-
2. Para quê? tos, chorando nossas lágrimas, sofrendo nossas dores, morrendo
Para que tanto sofrimento? Como ver um sentido no so- nossa morte.
frimento absurdo dos inocentes? Para que este menino que há Só a partir do olhar para o Crucificado nossa existência
semanas geme terrivelmente queimado? Para que 270 pessoas tantas vezes atormentada encontra um sentido pleno. Só a partir
que foram enterradas na sepultura do próprio avião? Para que da cruz de Cristo encontramos força e coragem para não re-
esta mãe concerosa condenada tão cedo a morrer? Para que signar e lutar contra o sofrimento e contra suas causas na vida
esse operário que caiu dos andaimes, quebrando a espinha familiar e social, nos sistemas econômicos e politicos, nas estru-
dorsal? Para que essa moça paralítica há mais de 20 anos? turas profissionais e industriais.
Para que tanto sofrimento no mundo que a tantos faz revoltar, A partir do Calvário aceitamos o desafio, as crises, os
blasfemar ou enlouquecer? dramas, os sofrimentos, as cruzes que nascem do engajamento
pelos injustiçados e desumanizados, pelos violentados e opri-
3. Tentativa de resposta midos, pelos expulsos e exilados deste mundo.
A resposta não é fácil. O sofrimento foi um escândalo na Em nome do Crucificado não podemos jamais marginalizar
própria vida de Jesus a tal ponto que suou sangue e sentiu a história da tragédia humana desde o massacre das crianças
sua alma angustiada até a morte e pediu ao Pai para que inocentes de Herodes até o holocausto dos judeus, até Hiroxima,
afastasse o cálice da dor. r até o Vietnã, até Uganda, até a Nicarágua, até as vítimas do
A paixão e a morte foram realidades incompreensíveis para trânsito infernal.
a inteligência dos discípuros. Como o Filho do Homem poderá A luz do Cristo crucificado e ressuscitado podemos e de-
ser assassinado? Como, se Ele veio para que nós vivêssemos vemos assumir a responsabilidade de enxugar as lágrimas, de
a plenitude da alegria? aliviar o sofrimento, de acalmar as angústias, lutando pela jus-
«Eles não entendiam essas coisas ... » Me 9,32. tiça bem concreta na família, no trabalho, no bairro, em qual-
O sofrimento é realmente um desafio para a nossa fé cristã. quer lugar, porque pela sua PASCOA todos os males foram
Jesus não procurou a paixão, o sofrimento, a morte. A fundamentalmente vencidos.
predição de sua rejeição é o sinal, a demonstração do com-
promisso radical de fidelidade no amor ao Pai e aos homens,
solidarizando-se sempre com aqueles que eram desqualificados

436 437
r
Conclusão
Vigésimo Sexto Domingo
1 Para todos aqueles que hoje sofrem, se sentem oprimidos, do Tempo Comum
têm fome e sede de justiça, de dignidade, de respeito, de liber-
dade, Cristo traz uma esperança. «Vinde a mim todos que estais Pistas Exegéticas
sobrecarregados, oprimidos, angustiados, sofitários, vinde a mim,
Primeira Leitura: Nm 11,25-29
eu vos aliviarei».
Nenhuma lágrima cai no vazio. Nenhum esforço se perde «Quem dera que todo o povo do Senhor fossem profetas!»
durante â vida. Não existe nenhum sofrimento absolutamente
No cap. 11 dos Números aparecem duas tradições distintas: a
absurdo, desde que nós façamos dos nossos sofrimentos uma javista (w. 4-13.15.IS-24a.31-35) e a elofsta (w. l-3.14.16.17.24b-30).
comunhão com Ele. O autor javista ocupa-se da murmuração do povo, que sente desejos
O que salva o mundo é o amor. Nossa paixão tem sentido de comer carne. Moisés pede ao Senhor uma solução para o problema
porque prepara a ressurreição. Nosso sofrimento tem sentido da fome. Manifesta, ao mesmo tempo, seu cansaço em bancar sozinho
porque é caminho de libertação. Nossa morte tem sentido por- a «babá do povo~. Deus, então, anuncia carne em fartura para o dia
seguinte (w. 18-24a).
t que prepara a vida eterna, pois «tudo contribui para o bem
daqueles que amam a Deus» (Rm 8,28).
Neste relato o redator entrelaçou o episódio eloista dos 70 anciãos.
O cansaço manifestado por Moisés (vv. l lss) serviu como razão para
o Senhor lhe prometer 70 auxiliares carismáticos (vv. 16s). A tradição
Frei Clemente Kesselmeier eloista conhece outro lato semelhante (cf. Ex 18,13-27). Teria sido
Ipanema, Rio de Janeiro, RJ jetro, o sogro de Moisés, que, ao notar sua estafa, lhe sugeriu a
criação de juízes auxiliares. Moisés deveria reservar-se apenas as ques-
tões mais importantes. ~ evidente, pois, o interesse do texto desta
missa (Nm 11,25-29) na origem do carisma profético. O próprio Deus
tira parte do espírito profético de Moisés e o passa aos seus 70 novos
colaboradores. Estes, apenas recebem o espírito, começam a cprofetizar».
Esta expressão no profetismo das origens (e!. ISm 10,10-13) significa
centrar em transe>, ccair em êxtase>. Mostra-se aqui o interesse da
tradição eloísta em legitimar o movimento profético, bastante desen-
volvido no Reino de Israel, atribuindo-lhe a origem aos tempos de
Moisés. O texto hebraico, porém, constata que os anciãos «não con-
tinuara= a profetizar (v. 25), termo ,que o texto da Vulgata entende
mal e traduz por cnão pararam maisl> de profetizar.
Josué, o futuro substituto de Moisés e lider do povo (Nm 27,12-23
= P), mostra-se cioso da autoridade de Mo.isés. Não o preocupam tanto
os 70 anciãos, que participavam do poder delegado - e, portanto,
controlável - de Moisés. De lato, eles profetizavam na tenda de
reunião, no santuãrio, à sombra do poder sacerdotal. Josué estã mais
preocupado com dois outros. homens, que não pertenciam aos 70 (cf.
v. 16). Sobre eles também desceu o espírito. Ao contrário dos 70, que
logo cpararam>, estes continuavam profetizando, fora da tenda, sem o
controle de Moisés e dos sacerdotes (v. 27). Josué, intérprete da von-
tade dos sacerdotes que detinham o controle da religião, chega a pedir
a Moisés que os proíba de continuar profetizando (v. 28). A resposta
de Moisés, porém, vale pua todos aqueles que, na Igreja, revestidos
do carisma sacerdotal, querem controlar o carisma profético: «Quem
dera que todo o povo do Senhor fossem profetas, e o Senhor lhes
concedesse o seu espírito> (v. 29) 1
As manifestações carismãticas sempre têm causado inquietação à
hierarquia da Jgreja. .a que os verdadeiros carismáticos, os profetas,
não se enquadram facilmente nos esquemas estabelecidos; são inova-
dores, mexem com as estruturas e com a própria segurança da insti-
tuição. Tanto Moisés, como Cristo no Evangelho de hoje (Me 9,38-40)

438 439
e o próprio joão Batista (cf. jo 3,26ss), porém, souberam afastar a aos que pôssuem terras e, a seguir,1 também aos de outros setores
tentação de circunscrever a manifestação do Esplrito dentro dos estrei- de trabalho. O' salário vem à baila, qile, além de minimo, vinha sendo
tos limites de uma estrutura controlável. retido. A Lei mosaica pleiteava e garantia o salârio mlnimo, a ser
Também hoje os verdadeiros profetas, apesar da Inquietação que pago no final do dia (Lv 19,13; Dt 24,14s; Mq 3,3-5; jr 22,13; Tb 4,14;
possam causar à hierarquia, devem ser acolbidós como parte do povo ]ó 24,9; Eclo 4,1-6) - sem o que 'º trabalhador passaria fome. O
de Deus em marcha para a terra prometida, que é a realização do salário defraudado era comparado a .um clamor que, como o sanguê
Reino de Deus. Como Eldade e· Medade, também os profetas contem- de Abel, pedia vingança ao céu (Gn 4,10; Ex 2,23s; Dt 24,15; Js 5,8s).
porâneos estão «inscritos>, fazem parte dos deslgnios de Deus. O Deus mesmo promete sua ajuda aos "injustiçados que lha pedem (Ex
carisma profético não está a serviço de veleidades pessoais, mas da 22,26). O v. 4 está repleto de reminiscências do VT. Os ricos, insensíveis
aliança de Israel com seu Deus. É neste sentido que os profetas con- aos gritos dos pobres, abusam de SLµlS posses no prazer e no luxo:
tribuem também hoje para renovar a fidelidade da Igreja a Cristo. Banquetes e ociosidade os engordam cómo animais destinados à matançà
(cf. jr 46,21; 12,13; Os 4,11; Pr 23,20.29s). Recorde-se a parábola
Bibliografia: O. L o h f J n k, Dfe Angst vor dem OeJst. Eine HomUJe zu Num do rico epulão e de lázaro (Lc 12,16-21; 16,19-31).
11,16s.24-2~. em Blbel und Leben., 11 (1970), 114-117.
Não ~só. Os ricos, com seu poder, odeiam e massacram o pobre
L. Garmus, Q,p;M. em contendas judiciais, lesando seus direitos, inclusive os da liberdade
Petrópolis, RJ e da vidà (2,6ss), e explorando a boa-fé dos operários cristãos, que
procuram itudo suportar em nome de Jesus. Esta situação era favorecida
pela parcialidade e corrupção dos juízes. Pense-se na ruína social e
Segumla Leitura: Tg 5,1·6 econômica: dessa gente simples. O Eclesiástico identifica a exploração
do operáiio ao homicldio (Eclo 34,22-27). Os proMas protestam contra
No contexto imediato anterior, Tiago, com estilo profético sobre semelhantes repressões (Mq 3,1-3.9-10; Am 5,12; 6,12). Os abastados
o juízo, investe contra uma atitude contrária à mensagem cristã: a normalmente são egoistas sem escrúpulos, a quem o direito e a justiça
temerária confiança em si mesmos dos comerciantes (4,13-17), quando, não contam, visando o aumento de suas posses e hedonismo (Fl 3,19).
áo invés, só Deus é o senhor do futuro. Agora (5,1-6) é a vez dos Não se comovem com o estado infra-humano de seus servidores inde~
ricos, avarentos e exploradores: injustos, dos hedonistas desumanos: fesos, ao contrârio, valem-se deles para enriquecer mais, explorando-os
estão sob o juízo inexorável de Deus, porquanto não seguem sua a lodo vapor. Os ricos foram julgados e os pobres, graças à sua
consciência (4,7; cf. Rm 14,23). Como um profeta, Tiago repete os confiança· em Deus, foram justiçados. O Criador faz justiça a todos
«ais::t> que jesus proferira contra os ricos, os fartos, os glutões, os os pobres, não Só aos cristãos. Tal justiça divina não nos isenta de
exploradores do próximo (cf. Lc · 6,20s; livro de Enoc 94,7-14; 98,2-15). contribuir para superar as injustiças , sociais, embora a última espe.;;
Desde a ressurreição de Cristo; o mundo está em julgamento e os rança esteja em Deus.
ressuscitados procedem a uma gtande inversão de valores: o terrestre O cjitsto» condenado não é jesus, mas o cristão pobre, oprimido
cede ao celeste. Os ricos - devem ser certos cristãos - ·já foram e persegilido, coletivamente (cl. Sb 2,10.12.18; Is 57,1; SI 94,21), o
sentenciados (vv. 2ss) em sua insegurança e pobreza, razão pela qual qual confia em Deus e não será por Ele abandonado. O pecado dos
deveriam lamentar sua triste sorte (v. !). Tudo aqnilo que 'constituia ricos é tanto mais grave e odioso, quanto menos defesa tem o pobre~
a sua seguridade e o seu poder, foi efêmero, desiludiu. Tais riquezas '
Bihliogr9/ia: Cf. 220 Domingo do Tempo e.comum, Ano R, p. 408.
consistem em viveres, vestuãrio e metais preciosos. «Fermgem> e «tra...
ças» (vv. 2-3) testemunharão contra a dureza e a avareza dos ricos, P. Matheus P. Giuliani, S.A.C;
os quais preferiram ver estragadas e carcomidas suas coisas' a dá-las Santa Maria, RS
aos carentes (cf. Eclo 29,13). Ferrugem/traças simbolizam também o
remorso, a ruina do rico. Segundo o pecado, serão castigados (Sb Terceira Leitura: Me! 9,37·42M.46-47
11,7). jesus exortava a não acumular bens que a ferrugem e a traça
corroem (Mt 6;19s; Lc 12,33). Tais pessoas perder-se-ão, porque de- ~«. . . quem não é contra nds está a nosso fcwon
sitmanas e insensatas: além de dissipar no fasto os seus bens, diante
dO que Jesus fez e sofreu, não levaram a sério e não quiseram reco- Existe um certo nexo entre os ditos de jesus que se lêem hoje.
nhecer a nova ordem messiânica e escatológica, quando o julgamento Ele, porém, não é de ordem lógica, ma's literária e consiste em palavras...
foi já instaurado (v. 5: o «dia da matança>). Antes, permaneceram chaves que facilitam a memorização. .'A proposta que aqui se faz de
na sua, como se o mundo durasse indefinidamente, como se Deus não uma conexão e subdivisão 1emática somente visa dar uma sugestão
os julgasse. Pobre e Insensato aquele que, após o evento pascal, não àqueles que preferem basear a homilia no Evangelho. Com esta res-
se prepara para o juízo divino e busca sua segurança e auto-suficiência salva pode-se resumir o conteúdo dos diversos ditos na frase: não
nos valores deste século, os quais vão tornar mais terrível· a cólera prejudicar' em nada o Espírito de Je~us quando este atua, seja ford
divina - centesourastes nos últimos dias> (v. 3) 1 da igreja· (vv. 38-40), seja dentro qela (vv. 41-42) seja dentro d~
Os vv. 4-6 ensinam que há uma triplice injustiça clamando a Deus cada um (vv. 43-48). Ressaltando a palavra-chave mais importante destas
por vingança: defraudar o salário, abusar dos bens no hedonismo, sentenças.' pode·se dizer, em outras palavras: não escandalizar-se do
explorar e oprimir o pobre. Parece referir-se Tiago, em primeiro lugar, bem que,. acontece fora da igreja (vv. 38-40); .não dar escândalo a

440 441
ninguém que pertence à Igreja (vv. 41-42); erradicar de nós tudo que Sugestões para a Homilia
causa escàndalo (vv. 43-48). Ou ainda: em Jesus Deus quer atingir
todos os homens: os de fora (vv. 38-40), os mais pequeninos de dentro
(v. 42) e co homem todo> (vv. 43-47); Introdução
Vv. 38-40: João reclama que se proíba toda a atividade. em nome
de Jesus a quem não pertence reconhecidamente ao grupo dos dis- Deus é grande. Sua presença enche o mundo. «Ü céu e a
clpulos. Jesus opõe-se com muita clareza a este exclusivismo. João terra est~o cheios de vossa glória~ - cantamos no «Santo» da
guer ver a atuação do Esplrito de Deus e de Jesus enquadrada em um missa. «A terra está cheia de seú amor>> - diz um salmo. E
grupo bem definido, para evitar dispersão de forças, perda de pres- S. Paulo afinna que Cristo subiu ao céu para encher o mundo
tigio, confusão... Jesus rejeita , esta tendência. Para Ele o, bem não
tem fronteiras, nem religiosas, nem sagradas, nem denominacionais, nem com a énergia de sua ressurreição (cf. Ef 4,10). A Palavra
ideológicas .•. O homem não tem o direito de encurtar a mão de Deus de Deus. hoje nos convida a olharmos para esta presença viva
e de se projetar como instrumento exclusivo dela. e atuante de Deus no mundo e na história.
Associando esta versão deste dito com a versão de Mt 12,30 dá-se
que todos - querendo ou não, consciente ou inconscientemente -
agem como seguidores ou advereãrios da causa do Senhor, mesmo os Corpo
que não se tiverem unido a Ele, exteriormente. Poder-se-ia falar de um
«cristianismo extra-eclesial:t ou «anônimo> e aplicar este termo a todos Muita gente acha que Deus está só na Igreja, O mundo
que procuram o bem. Não se p_ode fiar nas aparências e baseando-se
nelas dividir os homens em seguidores ou adversários de Jesus. Nin- para eles é vazio de Deus. Aí Deus está ausente. O mundo é
1
guém, pois, se escandalize da presença ativa do Espírito de Deus e o reino dos homens e, quem sabe, até mesmo das forças do
do Senhor Jesus fora da Igreja. Em •vista da atitude dos cristãos Maligno..
1 diante ae todos aqueles que não, pertencem à Igreja ou dela .se distan- Essà é uma mentalidade estreita. Que não faz jus à gran-
ciaram, isto é de máxima importância. Deus e o Senhor são maiores
do que a Igreja. , deza da fé cristã. Que não honra ao infinito do mistério divino.
1
Vv. 41-42: Todos os disclpulos de Jesus, mas especialmente os É como· .a da rã: no fundo de se u poço pensa que o céu tem
menores dentre eles~ merecem o máximo respeito. Como sempr.e, jesus o tamanho da abertura redonda do poço.
defende especialmente os pequenos. Ele mostra a máxima consideração Ora, a Igreja não é a cadeia de Deus. Menos ainda seu
para com eles e a exige de todos. Em v. 41 e 42 formulam-se dois túmulo. Deus se encoutra certamente ua Igreja. Mas sua pre-
casos extremos: um gesto à primeira vista tão insignificante como
oferecer um copo de água já será recompensado; o escàndalo dado sença e sua ação salvadora desborda a Igreja por todos os
a um dos mais insignificantes será ca5tigado. Trata-se da recompensa lados. O Reino de Deus é maior que a Igreja que é seu sa-
e castigo eternos. Veicula-se desta maneira a pretensão escatológica cramentei. Deus e seu amor se estendem por toda a terra. O
de Jesus em suas últimas conseqüências de extremas misericórdia e jus- Espírito ·do Senhor enche o mundo. «0 Verbo é a luz que ilu-
tiça divinas. Um laço anônimo com Jesus (v. 40), um gesto simples
de simpatia (v. 41), um prejuízo causado a um dos menores (v. 42) mina todo o homem que vem a este mundo» - diz S. joão no
são decisivos aos olhos de Deus que perscmta as profundezas do prólogo de seu evangelho. '
coração. De tato, a presença de Deus' no mundo é como a do sol.
Vv. 43-48: Estes dois extremos excluem imobilismo. Se Deus estã Ela se 'esparrama sobre todos Índistintamente. jesus mesmo
presente em Jesus, o homem há de buscá-lo com todo o seu ser e
afastar de si tudo que o possa separar do Senhor. Na época da pu- disse: O Pai é tão bom que faz levantar-se o sol sobre os
blicação do Evangelho as perseguições contra os cristãos podem ter bons e sobre os maus. Os benefícios de Deus são como os
atribuído aos ditos de vv. 42-47 'uma grande atualidade e exigido uma do sol: :generosos e discretos ao 'mesmo tempo.
interpretação bastante literal: melhor é entrares mutilado para a Vida É mania de muita gente, mesmo da Igreja, dividir o mundo
do que.. . negar o Senhor e apostatar da fé. Em todas as circunstâncias,
no entanto, o cristão há de erradicar tudo que possa prejudicar sua em duas categorias: os bons e os· maus; nós e os outros. Essa
adesão ao Senhor. é uma visão simplória da realidade. É o maniqueísmo. Esse
método é muito cômodo. Dá-nos segurança e nos garante contra
BlbliograjJa: Al!m de comentários: .A. M l eh e l, verb. "mlkrõs", em :ThWzNT 4
(1942), 650s; B. S t ã b 1 i n, verb. "skánda1on", em ThWzJVT 7 (1964), 3385; B. o medo de nos enganarmos. Há gente que pensa como joão
v a n I e r s e 1, /ilk 9.~ em Jd.,1 Een Begin, Bllthoven 1973, p. 69-74: Pr. no Evangelho de hoje: quem não está conosco é contra nós,
N e i r 'Y n e k, A Tradição das Sentenças de jesus. Um estudo baseado em Me
?,33-50, em Conciliam 1966/10, p. 57Ss. está no .erro e perdido. Mas Jesus mostrou que não devia ser
Raul Ruijs, O.P.M. .assim. Mostrou que todos os que_' praticam a bondade, o amor,
Petrópolis, RJ a justiça - todos esses perteucem ao seu grupo. Decidindo
442 443
pelo homem decidiram por Deus. Seguindo os pobres, estão Igreja praticavam essa lição. S. Justino, por exemplo, diz:
seguindo Jesus Cristo. Podem não saber disso, mas tal é a «Aqueles que viveram segundo o Verbo são cristãos, mesmo
realidade que nos ensina o ,Evangelho de hoje. Jesus mostrou se passaram como ateus. Assim, por exemplo, entre os gregos,
que todas as pessoas que procuram fazer o bem estão unidas Sócrates, Heráclito e seus semelhantes».
e devem se unir. E isso, mesmo se não se acham nii mesma
religião. O importante é anfar os irmãos, lutar ao lado dos Conclusão
oprimidos.
Entretanto, encontra-se muito cristão que pensa assim: esse Ouçamos, por fim, esse lindo depoimento de um homem
homem é ateu, então é mau, ,é pervertido, não merece confiança. muito querido de nosso tempo, o Papa João. Quando era ainda
Ou: essa pessoa é protestante, então está errada, é falsa etc. arcebispo de Veneza, foi um dia visitar a Câmara Municipal.
Ora, para conhecer uma pessoa temos de usar o critério Aí viu sentados ·políticos socialistas e comunistas. Dirigindo-se
que Jesus nos ensinou: olhar para suas obras. Pelos frutos se a eles, falou assim: «Só quem faz o bem é que é cristão. Quero
conhece a árvore. É assim também que Deus vai reconhecer dizer, a única maneira de ser cristão consiste em fazer o. bem.
os seus no fim do mundo. Não será pelo seu dizer: se são ou Por isso digo que me acho aqui à vontade, pois se acaso alguém
não são cristãos. Será pelo seu fazer: pelas obras que tiverem houver que não se considere cristão, o é de fato, embora não
· praticado. Quem é cristão? Não é o que se diz cristão. É o creia, se faz o bem».
aquele que faz o que Jesus fez. CI. Bo!f, O.S.M.
De fato, Jesus avisava: Tomai cuidado com os lobos vesti- Rio de janeiro, RJ
dos com pele de ovelha. E atacava da maneira mais forte a
hipocrisia, a falsidade: a atitude dos fariseus que faziam de
tudo para parecerem justos ·quando de fato não passavam de
homens corrompidos.
Pensemos. Quanta gente. há neste mundo que tem. bondade
de coração. Quantos sofrem perseguição com coragem. Quantos
têm fome e sede de justiça. Quantos lutam para melhorar o
mundo. Muitos há que se sacrificam pelos outros. Mqitos dão
de si, de seu tempo, de seu, dinheiro, de sua habilidade para
libertar os sofredores de seu~ sofrimentos. E isso a g~nte pode
encontrar em todas as partes do mundo: em países católicos
e em países não-católicos. São pais e mães de familia, operá-
rios e sindicalistas, analfabetos e doutores, estudantes e campo-
neses. Muitos há que se entfegam a grandes causas: .a causas
que são as do povo mais pobre e explorado - o Cristo. do povo.
Tudo isso é graça. É presença secreta de Deus em nosso
mundo. Todo gesto de bondade e amor é reflexo da bondade
e do amor de Deus. O cristão é chamado a honrar essa ma-
nifestação de Deus nas práticas da justiça e do amm:, seja lá
por quem forem feitas.
Os profetas sabiam ver a ação de Deus também presente
nos outros povos. Assim foi Jonas com Nínive. Assim Jsalas
com Ciro. O Novo Testamento faz a mesma coisa. Assim, o
Apocalipse diz que a multidão imensa dos redimidos 'provinha
«de toda nação, raça, povo• e lingua» (7,9). Os Padres da
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Vigésimo Sétimo Domingo desde sempre, rompe com os laços sagrados da tribo, reafirmando sua
prioridade. É o plano salvífico de Deus. Adão e Eva são apresenta-
do Tempo Comum dos como arquétip·o, como causa exemplar, simbolizando o desejo divino
concernente ao matrimônio, instituição sagrada e indissolúvel. O texto
Pistas Exegéticas não alude, menos ainda prova, o modo exato e biológico de como a
mulher foi tirada do homem. Por outro lado, a alegoria não exclui a
Primeira Leitura: Gn 2,18·24 realidade dos eventos. É simbólica a maneira de narrar a criação de
Eva, não a sua formação «a partir> do primeiro homem,- isto é, à sua
«Não é bom que o homem esteja só .. .> (v. 18) - é narração imagem e semelhança. Ela não foi tirada biologicamente de uma parte
popular haurida das fontes ]E; a criação da mulher já constava de do homem, mas como realidade humana e espiritual, pois o homem
Gn 1,27 (fonte P). A filosofia constata e propugna a sociabilidade do não é completo sem ela. É a complementação mútua. A expressão doi
homem. O mesmo fará a revelação: o homem não vive sozinho, estâ tomada do homem> (23) não diz causalidade material, mas exemplar
em função da comunidade. A passagem explana o sentido da relação e final: Eva foi constitulda segundo o exemplar-Adão e destinada a
matrimonial homem-mulher: de fato, desde o inicio, a mulher esteve complementá-lo. Ambos são 2 seres da mesma natureza que um mesmo
intimamente ligada ao homem, como um auxiliar semelhante a ele, um amor deve unir, .porquanto Eva é para Adão um «outro-ele-mesmo>.
vis-à-vis, um complemento ou um reflexo do homem (cf. Eclo 4,9-12; O «SODO> de Adão, enquanto Deus formava a mulher, pode insinuar
36,26). Trata-se não apenas de comunidade externa para o trabalho que a criação de Eva é obra misteriosa e exclusiva de Deus, sem
e o sustento, como também de comunhão interna no pensar e agir, qualquer palpite do homem.
culminando na união flsica e psicológica de ambos. A mulher, no O autor, como teólogo, projeta sobre os primórdios a realidade
contexto, figura coino um ser humano, superior aos animais: o pri- atual do matrimônio, não lhe interessando a : origem genética masculi-
meiro homem, com efeito, não encontrara entre estes uma companheira na e feminina. Sublinha o relacionamento homem-mulher, instituldo pelo
ideal. Não obstante a utilidade deles, Adão curtia uma solidão imensa. Criador e, portanto, fundamentalmente bom. A sã exegese exclui antro-
A narração da origem da mulher põe em relevo mais • igualdade pomorfismos (cirurgia em Adão) e recurso ao mito hermafrodita ou
do homem e da mulher do que o modo de como foi criada. «Ser to- andrógino. Prescinde ainda do problema relativo ao mono/poli-genismo,
mada do homem> (v. 23) mostra em concreto que a mulher possui atendendo mais a considerações religiosas: união çom Deus e com o
personalidade perfeita humana. O «sono de Adão>, a «costela:> possuem cônjuge. Toda comunhão de vida, afinal, provém de Deus. Trata-se da
simbolismo; jã Orlgenes e Agostinho o haviam reconhecido. O Cardeal unicidade de um evento primordial, carregado de simbolismo religioso,
Caetano, no século XVI, atesta que não se trata de sentido literal, mas que se estende a toda a humanidade.
misteriosamente alegórico-parabólico. «Sêlã'> pode significar costela, cos-
tado, vida. Parece mais consentâneo com a alegoria conservar a acepção BlbJiografla: D e Pra i n e, J., La Bible et J'orl_glne de l'homme, Desclée,
Bélgica 1961; Si m'ó n - Pra d o, Praelectlones, VT/l, Marietti, Turim 1949;
de ccostela>, porque, enquanto estã ao lado e perto do coração, co• Testa, P. E., Genesi (S. Bibbla/Oarofalo). J.t. Marietti, Turim 1968; Ar na 1 d i eh,
nota amizade e, pelo seu .número, torna pJausível a imagem ctirar uma L. Origem do homem e do mundo, Lisboa 1!158; P 1rot-C1 ame r, La S. Bibte,
costela>. Seja como for, a mente do hagiógrafo é: homem e mulher J.1 Paris 1953; B a 11 ar i n J, O al b ia t 1, Mor a ld 1, Introdufão à BlbUa,
11·1, Vozes 1975. ·
perfazem unidade indissolúvel, a mulher não se concebe senão como
parte do homem. Eva foi tirada do costado de Adão para manifestar P. Matheus P. Giuliani, S.A.C.
que entre homem e mulher deve existir comunidade perfeita. No texto Santa Maria, RS
são expressos 3 elementos: - um vínculo sólido entre homem e mulher,
pelo qual, amando sua mulher, ama-se a si mesmo (Ef 5,28s); - a Segunda Leitura: Hb Z,9·11
dignidade ~special do homem a quem a mulher se equipara (Ef 5,23;
!Cor 11,7; lTm 2,12s); - a igualdade de natureza entre ambos (!Cor O texto da segunda leitura de hoje é tirado da primeira parte da
11,12), algo surpreendente para aquele tempo. carta aos Hebreus, onde o autor indica qual o verdadeiro lugar de
Adão (v. 23) ergue um hino de júbilo à bondade divina por ter-lhe Cristo no contexto da criação. Muitos tentaram fazer de Cristo uma
dado Eva, com o que reconhece a identidade de natureza dos dois. criatura como as outras, ou apenas um mensageiro ilustre de Deus. A
c:Osso de meu osso, carne de minha carn6 não indica tanto a origem carta aos Hebreus porém afirma peremptoriamente ser Cristo superior
material ou a igualdade de natureza, quanto a intimidade da união ma- também aos Anjos, que numa certa teologia judaica eram considerados
trimonial (cf. Gn 29,14; jz 9,2; 2Sm 5,1; 19,12s). O simbolismo não como mediadores entre Deus e os homens, até da própria Lei Mosaica
contradiz os fatos. Antes, o evento antigo leva o hagiógrafo a uma e por conseguinte · da salvação pela Lei.
adjunção etiológica: eis por que - remontando às origens - o homem Hb 2,9-11 faz parle da afirmação de que a redenção veio por
deixarã tudo, pai e mãe, para unir-se à sua mulher e os dois serão Cristo e não pelos Anjos, assim as palavras cpor um pouco menor
uma só carne (cf. Mt 19,4s). O apelativo «DJulher> deve-se a trocadilho que os anjo~ deverão ser interpretadas como referindo.se ao tempo
de palavras ciã> (vir) e ci!§ah> (virago) - o que confirma o simbo- de sua vida terrestre, onde na sua condição kenótica Cristo, assumindo
lismo da narração. a condição de homem, assumiu uma condição inferior à dos Anjos.
Gn 2,18-24 é mais que simples fábula, alegoria ou lenda. No início Certamente o homem de Nazaré, limitado no espaço e no tempo, era
houve um fato que perdura: a comunidade familiar, querida por Deus inferior aos espíritos superiores, mas será que podemos separar, de

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fato, o homem, Jesus de Nazaré, do Cristo Verbo Encarnado? Talvez Isto porém é antes a interpretação contemporânea (cf. Me 10,4) a
seja melhor dizer que o Verbo assumiu uma condição inferior, nm que' Jesus ~e opõe com a frase: cEla é uma lei que Moisés deu de-
aspecto inferior (cf. FI 2;7) permanecendo Deus. É o _mistério do Cristo! vido à vossa dureza de coração» (cf. Me 10,3.5). O modo como, no
Condição da situação kenótica de Cristo foram seus sofrimentos e Antigo Testamento, se usa a expressão cxdureza de coração» não admite
morte, mas em contrapartida ele foi elevado ao ser coroado de honra que Jesus tenha concordado com a interpretação judaica. Esta expressão
e glória. Ao abaixamento corresponde uma elevação. O texto deve, então, indica a desobediência obstinada a Deus, seja da parte do povo de
ser colocado na linha do Hino Kenótico de FI 2,6-11, e do livro de Deus, seja da parte de seus adversários e inimigos. Deus reage a esta
Jó, onde o justo sofredor aparece exaltado por DeUSJ atitude de rebeldia seja através da ira, castigando; seja através do
O fato do homem Jesus dar a vida por nós foi 'uma graça, a nós amor, perdoando ou prometendo a renovação espiritual do coração; mas
concedida por Deus. Ele ·poderia ter salvo o homem de maneira diversa, jamais através de concessões.
mas o fez pelo gesto que indica um amor maior, á doação da vida Quando Jesus diz que Moisés deu a lei que exige uma carta de
(cf. Jo 15,13). Assim a' morte de Cristo foi um afo de benevolência divórcio antes de despedir a esposa «.devido à dureza de coração», isto
de Deus, não uma derrofa, mas uma exaltação do Cristo (cf. Jo 12,32). não significa que Ele veio ao encontro desta, mas que agiu de encontro
Pela morte na cruz, Cristo fez-se sacerdote e vítima,ntornou-se o nosso à mesma. A dureza de coração é o alvo da lei, uma agravante e não a
único e Sumo sacerdote,'' porque semelhante em tudo a nós, tanto no razão prévia escusatória por que ela é dada. Não se deve esquecer
sofrimento como na morte (cf. Hb 2,l7s). Assim 'pelo sofrimento e que o judeu que queria dar uma carta de divórcio à esposa, não so-
morte, o Cristo foi elevado à perfeição>, isto é, foi constituido Sumo mente devia endossá-la ele sozinho, mas procurar ainda dois outros
Sacerdote, - esse é o sentido do verbo nos LXX e Hb o usa para expri- homens que deviam assinar como testemunhas. O marido é, pois, obri-
mir o mistério da glorificação de Cristo (2,10; 5,9; 7,28), tentando gado a reconhecer com toda formalidade que seu casamento foi um
explicar e justificar o que foi escândalo para a comunidade primitiva fracasso e que tinha violado a ordem estabelecida por Deus. Dando
(cf. lCor 1,23), o Cristo morto numa cruz. ·• esta lei, Moisés, pois, não enfraqueceu esta ordem ~tabel~cida por
Há entre Cristo e os homens uma comunhão' profunda. O que Deus mas tirou um procedimento errôneo e uma práxis leviana, que
aconteceu a Cristo não 'é indiferente aos homens. Para queL1 vivia ou lesav~ gravemente os direitos da mulher, da clandestinidade, anoni-
vive nos sofrimentos e p'erseguições esse anúncio é fonte de esperança. midade e leviandade. A carta servia de testemunho diante de Deus e
Nosso destino está irremediavelmente ligado ao de Cristo, porque os da sociedade.
homens como Cristo têm~ uma origem comum, Deus;·· e como sua per- Os verbos que se usam na versão marciana da controvérsia con·
feição incluiu o sofrimento, nós também temos de participar dele. firmam esta interpretação. Os fariseus perguntaram a Jesus «se era
Cristo nosso guia e salvador é o exemplo, e 'guiada por ele a permitido ao homem repudiar a mulher» (v. 2). Jesus indaga-os _qual
comunidade se aproxima de Deus. Ele é assim nosso irmão pela encar.. é a respeito do matrimônio a ~o?tade de Deus revela_da na Let . de
nação (v. 14) e pela morte (v. 17), pois foi solidário conosco em tudo. Moisés: «Ü que vos ordenou Moises?:> (v. 3). Isto é, digam qual e .ª
J· •
Lei de Moisés, vocês que se ufanam de conhecer tão bem esta Lei!
Bibliografia: S t r a t h m ~ n n H., La Bplstola a los Ílebreos, Fax, Madrld A interpretação costumeira, influenciada pela versão ~e M.ate~, pensa
1971; K u s s O., Lettera agli Ebrel, Morce11iana, Brescia 1966; Blblia Comentada,
BAC, Madrid 19'15; S e b i e r se P. J., Lettera agli Bbrel, Città Nuova, Roma que Jesus teria perguntado por Dt 24,l e que os fariseus tenam acer-
1968. : tado com a resposta que deram. Esta, porém, é somente uma d:15 r~
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J. postas possíveis e não a mais acertada. A resp.osta ce~ta tena sido
Paulista, PE antes aquela que o próprio jesus dá logo depois, referindo-se a Gn
1,27 e 2 24. Estes textos também pertencem a «Moisés», isto é, ao
Terceira Leitura: Me 10,2-12(16) Pentateuc~ (cf. Lc 24,27.44) e são uma verdadeira «lei». Em vez de

responder corno convinha a peritos na Lei, rec?rrer~ a uma resposta
«Já não: são dois, mas wna Só carne:; evasiva, alegando a prescrição da carta de divórcio de Dt 24,.1 q~e
interpretam como concessão: «Moisés permitiu escrever carta d.e divórcio
Os evangelhos sinótiJos testemunham em dois grupos de textos que e despedir a mulher» (v. 4). Procedendo deste modo, mediante este
Jesus tomou posição na" questão controvertida do divórcio. O primeiro subterfúgio mostram que conhecem a vontade de Deus a fundo, mas
grupo consiste em ditos isolados de Jesus, como Mt 5,32 e Lc 16,18. preferem ,;iegar a casu!stica deles desenvoMda em redor de Dt 24,1,
O outro grupo aparece 'na forma de uma controvérsia (Me 10,2-12 e que aparentemente fornece um fundo legal a esta cas~istica. Suger!Ddo
MI 19,5-9). Parece que Marcos ou a tradição por ·ele usada uniu os que aquela lei seria uma permissão que goza da autoridade de Moisés,
dois grupos. Ainda percejle-se com facilidade como o .v. 10 liga entre si opõem Moisés a Moisés <para pôr Jesus à prova» (v. 2).
a controvérsia (vv. 2-9) e o dito (vv. 11-12). ; Jesus, porém, não se deixa eng8:nar. Prime!ro diz que Dt .24~1 ~ão
A versão da controvérsia de Mt 19 sempre dominou a interpretação é uma permissão mas uma lei. Depois, que Mo;sés deu esta l~i . «d~Vtdo
da versão de Me 10. Porque a última certamente .. corresponde mais à vossa dureza de coração». A dureza de coraçao com que Mo1ses lidou,
às palavras originais de Jesus, vale a pena considerá-Ia mais de perto. em última análise, não é diferente daquela com que Jesus se defrontou:
Geralmente pensa-se que Jesus teria interpretado Dt 24,1 sobre a a recusa de respeitar a vontade clara de Deus e de submeter-se a ela.
lei a respeito da carta de divórcio como uma concessão (cf. Mt 19,81). Por isso, o cvossa dureza de coração» aplica-se, com toda força, aos

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fariseus com quem Jesus está lidando. Por fim, Jesus se refere à lei saída de suas mãos criadoras. Nada era igual. Todos os seres
inicial: cDesde o princípio da criação não vigorou outra lei: Deus os foram criados na coletividade. Só o homem o foi na individua-
fez homem e mulher... etc.> (vv. 6-8). A expressão <desde o principio lidade. Assim o homem, assim a mulher. Por isso emprega Deus
da criação» é, no texto grego canônico, urna referência cronológica.
Pode ser que no original aramaico jesus tenha aludido mais claramente
«técnica» igual para criar o primeiro casal. Os dois se trans-
ao clnfcio do Livro da Criação::r>, isto é, aos primeiros capítulos do formam na sementeira que povoará a terra, mas para tanto
Gênesis, atribuído a Moisés. deixarão o grupo donde saíram para formar o novo grupo:
Se esta interpretação for certa, não é mais tão fácil admitir que a família. O homem colocado na família era associado ao plano
Jesus tenha feito uma distinção entre algum tempo da história da huma- criador e conservador de Deus, plano inicial, puro e intacto,
nidade em que a vontade de Deus tivesse vigorado em todo o seu
rigor; que esse tempo tivesse sido seguido por um outro, em que onde o homem podia aparecer tal qual era, sem esconder partes
foram admitidas concessões; e que este último tempo tivesse chegado. do corpo ou mascarar atitudes internas. Os tempos mudaram:
ao seu fim em jesus, por ter urgido o rigor original. Fora de qualquer o homem se cobriu de roupa e de máscaras e envolveu a família
dúvida, Jesus pôs fim à casu!stica hipócrita e às tradições humanas em suas tramas, dificultando, sempre mais, que ela realizasse
de seu tempo em lavor da vontade de Deus.
plenamente o projeto que Deus tínha sobre ela.
BibUograjla: A1ém de comentãrios consultou-se especialmente: H. O r e e v e n,
Ehe nach dem Neuen Testament, em NTS 15 (1~1969), 365-388.
2. Cristo recria a familia
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ Foi nesta família alterada que Cristo assumiu a carne para
realizar seu plano salvífico, numa missão comparada à dos
Tema Principal Anjos (2• leitura): enviado para anunciar e pôr-se a servíço.
O plano da salvação não podia fugir do plano da criação. Deus
DEUS CRIOU A FAMJLIA E CRISTO A RECRIOU
age dentro de uma lógica: coloca Cristo no seío da família,
totalmente sujeíto aos organismos sociaís, os quais viera recon-
Sugestões para a Homllla duzir ao primitívo esplendor e não anular. Entrando na família,
colocava a instituição familiar, em cheio, dentro do mistério
Introdução
salvífico. Mostrou ser a família a única organização capaz de
Falando em Puebla, dízía João Paulo II : «nosso Deus, em superar as inconsistências da história, porque na sua simplici-
seu mistério mais íntimo, não é uma solidão, mas uma família, dade resume e abrange tudo quanto Deus pode esperar do ho-
uma vez que tem em si a paternidade, filiação e a essência mem, porque a família não é apenas a matriz da vida bíológica,
da família que é o amor». A palavra deste domingo é a fala mas o laboratório das personalidades, pois é ela que é a «for-
de Deus sobre a família, fala que, em todos os tempos, é a madora de personalidade, educadora na fé e promotora do de-
recriação da importância da família na tessitura hístórica do senvolvimento» (joão Paulo II). Não basta cuidar da família.
homem. Por isso, a família se toma um ponto de referência para :E preciso chamá-la à sua verdadeira função histórico-teológica.
todas as instituições, pois sua «saúde» se reflete sobre o todo Não basta evangelizar a família. Necessário se faz torná-la evan-
e sua problemática se derrama sobre as demaís ínstítuições. Não gelizadora: integrá-la na construção da Igreja que se renova.
se pode promover ou atacar a instítuíção familiar sem causar
repercussões correspondentes sobre a sociedade. Daí, a Confe- 3. Ação estável reclama estabilidade de compromisso
rência de Puebla dedicar atenção especial à família, despertando
a Igreja para sua responsabilidade no tocante à família, recor- Quem «repudiar», diz Cristo: o verbo lembra uma rejeíção
dando o embasamento teológico da família humana. nascida de sentimentos internos, do desamor, do desprezo, do
desligamento. Cristo recorre às duas leis: a de Moisés e a de
Corpo Deus: a primeira ele a explica, baseado na dureza do coração
do homem, dureza que hoje recebe o nome de íncompatíbili-
t. A familia querida por Deus dade, diferença de gênios, necessidades históricas, cópia de outras
O Oênesis conta como Deus se deu conta da solidão do civilizações. A segunda ele ratifica, reafirma e vítaliza, porque
homem, ainda que cercado dos esplendores da natureza recém- é esta a querida por Deus. E não procura figuras. Fala claro:

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violar a lei de Deus é cometer adultério, infidelidade (contra
a fé, a promessa). É quebra, não apenas de um compromisso Vigésimo Oitavo Domingo
entre um homem e uma mulher, mas entre um par com Deus do Tempo Comum
e mais ainda: é a destorção de um plano de Deus pelas arti- Pistas Exegétfcas
manhas do homem, que faz prevalecer seu egoismo e sua sen-
sualidade sobre uma responsabil'idade social. É o homem se Prlmelra Leitura: Sb 7,7·11
fechando em si mesmo. Adultério é a traição a uma vocação.
Por isso, Deus chamava o povo eleito de adúltero, sempre que Sb 6-9, parte central do Livro, disserta sobre a sabedoria: natu-
abandonava os caminhos da aliança. Aliança é entrega, doação, reza, excelência (6), necessidade, propriedades (7), valor (8). A pe-
rícope encerra com uma preciosa oração para impetrá-la (9). Em espe-
pessoal, total, íntegra, irrevogável, fecunda, única e irrepetível, cial precisam dela os reis, cujo poder vem de Deus (6). Quem a
íntima e carregada de amor e responsabilidade, como é a união busca, gozará de seus beneficias. E como é elogiada (6,22-25) l Sendo
entre Cristo e a Igreja. Dai nascem as verdadeiras dimensões que a sabedoria não é dom natural, nem privilégio decorrente da
do relacionamento homem-mulher, da sexualidade, da paternida- nobreza ou dignidade rea11 Salomão, mortal como qualquer outro,
de responsável, do lugar exato da mulher, da educação, da valeu-se dos meios para obtê-la (v. 7). Recorreu antes de tudo .à
oração e Javé lhe conferiu sabedoria e prudência. O homem recebe a
função eclesial e social do grupo familiar. existência, não a cria por si mesmo, porquanto o nascer e o morrer
independem dele.
A csabedoria» pode ser a ciência especulativa, - a «prudência»,
Conclusão a inteligência bem aplicada, a ciência prática, que ensina a todos o
caminho para alcançar a legitima sabedoria. No v. 8 inicia o hino de
Cristo recriou e santificou a família. Conduziu-a de volta louvor à sabedoria, conferindo mais originalidade e inspiração poética
à fonte de toda a santidade, para que ela, por sua vez, fosse à prece elevada por Salomão, em Oabaon (IRs 3,9-14), com um li-
torrente de santidade. Por isso diz Puebla: «Ü casal santificado rismo especial, com termos e comparações escolhidas. Estimou-se a sa-
bedoria mais do que as pedras preciosas, ouro e prata, que rião são
pelo sacramento do matrimônio é um evangelho da presença mais do que areia e lodo, - mais do que a saúde (v. 10), a qual,
pascal do Senhor. A família cristã cultiva o espirita de amor em certas ocasiões, não é fácil conservar sem o saber e a prudência
e de serviço. Quatro relações fundamentais da pessoa encontram conferidos pela sabedoria. Foi preferida à formosura, tão instável e vã,
seu pleno desenvolvimento na vida de familia: paternidade, fi- \• se comparada com a sabedoria, cujas conseqüências e frutos são du-
fiação, fraternidade, nupcialidade. Estas mesmas quatro relações radouros, um tesouro inesgotável.
A llatureza nada oferece de melhor do que a luz, entretanto a
compõem a vida da Igreja: experiência de Deus como Pai, sabedoria a supera, porque esta cede às trevas, quando ao invés o
experiência de ser filhos no Filho, com Ele e por Ele, e a expe- resplendor daquela brilha sempre (lRs 3,13; Pr 6,23; Sb 7,10). Em
riência de Cristo como Esposo da Igreja ... » (Puebla, n• 431). Oabaon, Deus ofereceu em sonho a Salomão tudo o que desejasse;
Mais do que nunca está a familia convocada a aclarar sua ação o rei não pediu nem vida longa nem riquezas, apenas um coração
e a acreditar, mais uma vez, em sua força renovadora, como co- 1 sábio para governar seu povo (d. lRs 3,9). Para o homem, ouro e
prata são valores; saúde e beleza, ainda mais. Todavia, acima de tudo
munidade evangelizadora insubstituível. Dai, todos os movimen- está a sabedoria.
tos e iniciativas em prol da familia significam tentativas de trazer A sabedoria ou é o próprio Deus ou está persorii!icada. Com efeito,
soluções ao conturbado quadro social de nossos dias. Nela co- é mais luminosa do que o sol e, comparada com a luz, é mais clara
locamos nossa esperança e nosso esforço no sentido de pre- (7,29). Deus fez a luz (On 1,3) e Deus é a luz (ljo 1,5; ]o 8,12). A
sabedoria é reflexo da luz eterna (7,26), logo, não se extingue. São
parar os candidatos ao matrimônio, de dirigir os casados e João (Jo J,9) garante que a Sabedoria, feita homem em jesus Cristo,
colaborar na melhoria das circunstâncias envolventes, para que é a verdadeira luz que ilumina todos os homens. Na vida futura não
a família seja verdadeiramente a imagem de Deus, consciente haverá nem dia nem noite, pois o Cordeiro será luz inexaurível e
de sua vocação e de sua mi.~são. perene (1,15; Ap 21,5). Nesta passagem o sãbio nos fornece um cri-
tério excelente para julgar se, de fato, possuímos o espírito de sa-
Frei Hugo D. Baggio, O.F.M. '' bedoria e de Deus, que nos habilita a constatar se amamos, se de-
sejamos a Deus mais do que as outras coisas, se depositamos nele
Rio de janeiro, RJ nossas esperanças e grandéza, se, embora privados de tudo, nos sen-
timos felizes em possui-lo.
Com a sabedoria (v. 11), Salomão, em prêmio pelo desinteresse,
recebeu todos os bens, em especial glória e riquezas, em virtude das
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quais passou para a história como o sábio por excelência, o maior de duplo talho> que sala da boca do Filho do Homem. No judafsmo,
rei de Israel. Tudo isso lhe trouxe grande felicidade, graças à sua Filon foi um dos que especularam sobre a Palavra (cf. !Moisés 15,10).
amizade com Deus e à posse de tantos bens materiais e espirituais Na moderna hermenêutica insiste-se no fato de a palavra ser viva enquan-
(cf. JRs JO; 2Cr 9). O sãbio não despreza os bens terrenos, Sendo 1o é atualização daquilo que foi, no passado, dito ou escrito por alguém.
bons, os compara com a sabedoria, preferindo-a àqueles. Nos livros Ela faz presente, vivifica o ensinamento, a mensagem de alguém, sobre-
dos Reis e Crônicas, os bens são: riqueza, glória, poder rea]. No livro -tudo quando lida, anunciada, proclamada.
da Sb são bens superiores aqueles da sabedoria, porquanto sua mãe Essa Palavra então, julga o homem (cf. jo 12,48: Ap 19,13) nos
é a própria sabedoria: gozam da mesma dignidade (v. 12). Tais bens, 1) seus maiores segredos, assume uma função judicial. Seremos julgados
riqueza incalculável da sabedoria, valem mais do que tudo neste mundo, num confronto direto com a Palavra de Deus. Nosso destino depende
porque pertencem ao plano divino e garantem a amizade divina (v. 14). da nossa atitude de docilidade ou não a essa palavra.
A sabedoria é em nossa alma principio de todo entendimento, do bom O v. 13, porém, poderia também ser interpretado como referindo-se
senso e da virtude. a Deus, pois em grego clogoS> e cTheos> (palavra e Deus) são masculi-
nos e os possessivos poderiam se referir a qualquer um dos dois. Nesse
Blbliograj/a: Pérez R o dr i g u e z, O., Sabldurla, Blblia Comentada, IV,
BAC, Madrid 1968; Vi I e b e zb ]., La S. Escritura, AT/JV, BAC, Madrid 1959; caso a Palavra de Deus esmiuçaria o homem que compareceria para o
Pirot-Clame!J La S. Bl Ie, IV!-. Paris 1964; Barucq, A.-Orelot, P., julgamento, como que nu diante de Deus. Como um lutador à mercê
~·sabedoria", em yocab. de Teologia tdblica, Vozes 1978.
do adversário, ou um animal a ser imolado que não reage, tais os
P. Matheus F. Oiuliani, S.A.C. sentidos do verbo grego. Em suma, ninguém pode escapar da sentença
Santa Maria, RS de Deus.
O homem na sua liberdade pode desprezar ou transcurar essa
Palavra, mas, quando ele menos esperar, essa Palavra transcurada e
Segunda Leitura: Hb 4,12-13 desprezada o cbamarã às contas.
1
Bibiiograjla: S t r a t b m a n n H., La E Isto/a a los Hebreos, Pax, Madrid
O texto da segunda leitura de hoje está como que deslocado dentro 1971; K u s s, O., Lettera agli "i!brel, Morceufana, Brescia 1966; BlbUa Comentada
do cap. 4, pois é colocado pelo autor como prova de que Cristo é (Vlb), BAC, Madrid 1975; Se b i e r se, P. J., Lettera aglt Ebrei, Clttà Nuova,
Roma 1968.
superior a Moisés. No contexto da Carta, porém, ele é um reflexo da
afirmação de que «nestes dias, que são os últimos, (Deus) falou-nos Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.j.
por meio de seu Filho» (l ~). . ~ ele então um aprofundamento, . em Paulista, PE
forma de hino do valor e s1gm!1cado da Palavra de Deus, anunciada
aos judeus, q.;'e, no deserto, por sua cdureza de coração::r> (v. 7) não
a ouviram. Para o cristão, o texto é um convite à docilidade, um con- Terceira Leitura: Me 10,17-24(30)
vite à não-imitação do que fizeram os judeus.
Trata-se da Palavra de Deus, não tanto enquanto Logos, mas como «. . . do que um rico entrar no reino de Deun-
revelação que manifesta sua vontade, promessas e castigos. Essa pa-
lavra transmitida pelos Profetas e por Cristo, é viva e operante nos Nas predições da paixão (8,31; 9,31; 10,33) jesus revela a sua
fiéis '(cf. 12,13), é a palavra que não volta sem ter produzido seu verdadeira missão. Esta não corresponde às expectativas do povo, nem
efeito (Is 55,11). Ela não é impotente como a humana, é como um dos entendidos na religião, nem dos discfpulos. Por isso, seguem-se
sistematicamente instruções que se dirigem aos últimos (cf. a Pista
ser vivo. O próprio Deus atua nela e por ela enquanto cria e ordena Exegêtica de Me 9,30-37; p. 433). Nestas instruções Jesus coloca a
o universo (cf. Gn 1,3; Is 40,26). Em suma, é viva porque eficaz, não existência cristã sob o signo da cruz.
sendo só uma mensagem inteligível dirigida aos homens. :a uma rea- A leitura de hoje pertence às instruções que se seguem à segunda
lidade dinâmica, um poder que opera infalivelmente os eleitos visados predição da paixão (9,31). Na primeira delas localiza-se a relação
por Deus. mútua dos disclpulos que é marcada pela atitude de serviço (9,33ss) ;
Ela penetra nos recônditos do homem, como uma espada. Para na segunda exige-se coerência dos discípulos consigo mesmos (9,43ss);
exprimir tal, o autor usa os termos alma e espírjto, significando prin- na terceira aborda-se, em forma de controvérsia, a questão do matri-
cipio da vida flsico-pslquica e espiritual respectivamente (TOB). Ei_n mônio (I0,2-12). Na última trata-se da disposição fundamental para
outras palavras ela questiona o coração, o profundo do homem, pois receber o Reino (J0,13ss); esta inclui um desapego total frente às
o conhece, e manifesta o Deus interlocutor pessoal do homem. Para realidade terrestres (I0,17ss).
a Palavra não existe segredo no nosso intimo. A passagem que se lê hoje pode, pois, ser chamada uma instrução,
Esse fraseado de Hb não é estranho, mas corrente no Antigo em forma de narração, sobre a relação entre os discipu1os e co mundo>,
Testamento onde Is 49,2 e Sb 18,14 comparam a palavra de Deus entre o Reino de Deus e as realidades terrestres. A interpretação cos-
a uma esPada que corta, e Sb 7 )2 a apresenta como onisciente. tumeira encontrava neste texto o argumento clãssico para o conselho
No Novo Testamento, GI 3,8.22 fala da Escritura. como se fosse uma evangélico da pobreza. Mas atualmente estã perdendo terreno. Aborda-se
pessoa que atua como um ser vivente (c!. Pd 1,23); E! 6,17 compara nesta passagem uma atitude cristã fundamental (e!. Lumen Oentium,
a Palavra de D~us à cespada do Espírito~ e Ap 1,16 fala da cespada n• 39ss).

454 455
O homem - somente Mt o chama de «Jovem>! - ajoelhando-se claro que aqui como em outros textos transparece ' seu combate ao ri-
diante de jesus, O saúda como cBom Mestre>. jesus replica: <>Por tualismo legalista e ·à hipocrisia contida nas tradições dos homens. Pro-
que me chamas bom? Só Deus é boml> Esta resposta não nos informa metendo a vida eterna a quem observa a segunda parte do Decãlogo,
primeiramente sobri: a autoconsciência de jesus qe tal maneira que jesus retoma a sua atitude critica diante da «tradição>, que O faz
criaria problemas de ordem cristológica. Antes ela Jã é mna adver- aceitá-la quando ela leva ao amor e O faz rejeitã-la quando prejudica
tência ao homem que pensa encontrar facilmente 'demais o bom no o amor.
seu caminho. Meslll)> que o interlocutor tenha tido boas intenções e O homem rico _não parece satisfeito com a resposta de jesus. Não
não tenha querido · adular jesus, o caso faz pensar em alguém · que esperava a simples- e quase fria referência aos mandamentos (da se-
se aproxima de uma autoridade religiosa ou eclesiástica, beijando-lhe gunda tábua), mas, uma orientação nova a respeito de um caminho
a mão e dizendo que é muito santo etc. A única resposta adequada mais seguro ou mais «Santo> à vida eterna que ultrapassasse a Lei.
em uma situação dessas seria: «Por favor! Só Deus é Santo! O que o Ele certamente não. procurou o que todo mundo cansa de saber desde
Sr. quer de mim?:> (cf. At 10,25-26; 14,8-18). Mediante sua resposta jesus sempre tão velho que é e que, mesmo assim, é sempre novo porque
transforma a capla/io benevolentiae em um compromisso: reconhecendo inobservado. Ele esperava ouvir deste novo mestre o novo desconhecido.
em Mim .o bom mestre, quando somente Deus é bom, hã de assumir Decepcionado pela resposta de jesus - a quem ele procurou com
as conseqüências. ;: expectativas tão elevadas: ajoelhou-se diante d'Ele e O saudou como
O homem qws saber de jesus - deste cBom Mestre» tão diferente «Bom Mestre>! - retirou-se desiludido do próprio jesus. Sua decepção
dos crabis> -, o que se deve fazer para alcançar 'a vida eterna. jes~s exprime-se na sua :resposta: «Mestre, tudo isso tenho observado desde
o remete ao Decãlogo. Um detalhe interessante é que nesta versao a minha juventude!> Ela evoca à lembrança o depoimento de Paulo:
marciana dos mandamentos do Decálogo encontra-se uma referência ao <quanto à lei fui fariseu... vivia irrepreensivelmente> (PI 3,5-ô).
mandamento de Dt '24,14, que diz respeito ao pagamento de um orde- jesus parece ter apreciado a franqueza ingênua do homem. Ele
nado justo: «Não reter (a saber: o ordenado):> (cf. Lv 19,13). Esta mostra-se um idealista verdadeiro, que não está satisfeito com o ca·
creleitura:o ou atualização do Decãlogo é relevante! Mais importante, minha muito batido da costumeira observância piedosa das leis: «não
porém é o seguinte. A quem conhece bem o Decãlogo - e supõe-se matei, não roubei, não. . . etc.» Jesus simpatizou com ele e lhe res-
que e;te conhecimento seja partilhado por qualquer' criança catequizada pondeu com a mesma franqueza, sem rodeios lhe revelando e propondo
- não escapará que jesus introduz a pergunta «Que farei para alcan- o que ele estava procurando, a saber, a radical novidade de Seu
çar a vida eterna?» com a asserção: «Conhece os mandamentos». caminho evangélico: «Só te falta uma coisa I> C9m isso jesus não
Citando-os somente alega, no entanto, os mandamentos da segunda quis dizer que, para herdar a vida eterna, faltava\- somente um ato a
tãbua; isto é, aqueles que tratam da relação mútua entre os homens mais a fazer, que estaria na mesma linha das demais observâncias.
e referem o homem ao seu próximo. Nesta resposta não transparece, Era dever tradicional dos ricos dar esmolas de 1.suas posses e so-
da parte de jesus, nenhuma preocupação para coin. os .deveres estri- correr os' pobres. jesus propõe mais. A ordem p~ra dispor de tudo
tamente religiosos a respeito do culto, do Sábado, da legislação acerca que ele tem e para doá-lo aos pobres, Ele acrescenta: «depois venha
do dizimo da pureza ritual etc. Por quê? Deve ter um motivo. Se Me seguir». É este «Seguir» que conduz à vida. A renúncia às riquezas
uma crianÇa recitasse o Decálogo da maneira como jesus o fez, não a e o socorro aos pobres são somente condições ptévias indispensáveis
corrigiríamos obserirando-lhe que tinha esquecido 'o mais importante? para poder seguir jesus.
Onde procurar, então, o motivo da resposta :<deficiente» de Jesus? Serã O rico que chamou jesus de Divino Mestre encontra aqui a res-
porque os ricos tendem a sobreestimar demrus ~s ll)andamentos .da ~rt­
posta à sua pergunta. Ele há de tornar-se pobre para, desprendido de
meira tábua, em detrimento dos outros, espec1alni.ente das exigências tudo, seguir jesus na Sua disponibilidade total pelo Reino. Estã aqui
da justiça? Porque estão inclinados a sossegar a voz da consciência a novidade que o homem procurava. A aceitação de$ta novidade, porém,
por meio da defesa. dos direitos de Deus e dos dev"!'es para com EI.e, desestruturaria o homem. Ele não dá conta do recado. Era de muito
boa vontade, mas nesta hora decisiva há de reconhecer que toda a sua
apresentando-se assj_m ao povo como os defensores .fedei por exc;I_ênc~a
e os infatigãveis PJOmotores da religião e de seu.s valores espmtua1s santa observância ·de até agora não passava de presunção. Ele não
era capaz ou, melhor, ela não o capacitava a largar tudo e ser radi-
e culturais? Nesta ,hipótese jesus teria focalizado .u.ma certa hipocrisia, calmente obediente à nova proposta que Deus lhe faz. Esta metanóia,
isto é, uma falta ~e crítica que se manifesta em. uma subestima da esta mudança de mentalidade e de comportamento que o desligaria ra-
segunda parte dos . mandamentos, acompanhada e .camuflada por uma dicalmente de seu passado e o colocada livre de tudo no caminho do
superestima da prjmeira parte, salvando-se as aparências de serem futuro eterno. vai além de suas forças. Ele, em última análise, mostra-se
muito religiosos. A atitude de jesus, apontada aqui, seria, então, coe- preso, seja às suas observâncias legalistas, seja às suas riquezas. Seguir
rente com a Sua atitude em outras .ocasiões. Em outras oportunidades, Jesus, no entanto, imp1ica abandonar atnbas as seguranças, tanto as
Ele subordinou a lei do Sábado (o terceiro mandamento) à exigência espirituais como as materiais. Em outras palavras, a novidade que Jesus
do amor (cf. Me 2,23-3,6); desmascarou a hipocrisia contida na <pro- propõe supõe um homem novo.
messa:> feita em beneficio do templo de jerusalém, para esquivar-se das Quem pode soltar estas cadeias e libertar o homem destes laços?
obrigações dt> quarto mandamento (cf. Me 7,8-13); ou quando declarou É essa a pergunta que se coloca em vv. 23-27. ,Na exegese recente
o segundo mandamento do amor ao próximo igual ao primeiro (cf. Me houve várias tentativas de se atenuar a comparação do camelo que
12,28-34). Mesmo que jesus não tenha fundado uma nova moral, é passa pelo fundo de uma agulha. Estã-se voltando atrás. Os funda-

456 457
mentos exegéticos para isso são fracos. Ela ilustra, sem tirar nem pôr,
a sentença de Jesus: <Aos h.omens, sim, é impossível, não a Deus>~
A entrada no Reino é ação de Deus nos homens. Esta ação é salvação
gratuita, é libertação dos laços que prendem o homem a este mundo.
Na conversa com os discípuJos - o homem rico já se foi -
jesus os admoesta, dizendo «Filhinhos . .. > Em um clima de confidência,
l se de um desvio de certos padres: falam mais do próximo que
de Deus. O evangelho de hoje nos dã o que pensar neste sentido.

Corpo
mantido até v. 30, Jesus desvenda o mistério do Reino e faz os discí- 1. A alitúde fundamental frente ao Reino
pulos sentirem que· eles Lhe pertencem como «filhos de Deus, movidos
pelo Esp!rito de Deus> (cf. Rm 8,14), e que neles operam os dons O Reino de Deus foi o centro da pregação de Jesus. Jesus
do Espírito Santo que csão disposições, em nós postas de maneira per-
manente, para seguirmos, com a sua graça, o impulso que o próprio
Deus nos dá, para lá da medida humana, mesmo · virtuosa, a fim de
''}' pregou o Reino, viveu o Reino, morreu pelo Reino. E a ressur-
reição confinnou que sua mensagem vinha de Deus, que sua
agirmos plenamente como filhos de Deus, seguindo as perspectivas e vida correspondia à mensagem e que sua morte fora conseqüên-
a medida de Deus> (Y. Congar, p. 47s). • cia de uma vida que compendiava a boa-nova do Reino .
'
i'
A referência à onipotência de Deus liberta os disc!pulos do peso Reino de Deus significa pôr a Deus em primeiro lugar na
do imposs!vel (vv. 24.26). Ela provoca a intervenção de Pedro. Sur-
preendido pela verificação do fato de que Deus operou neles o que é sua vida. Não. «Primeiro lugar» é pouco ou, pelo menos, é
impossível aos homens, ele constata: «Nós abandonamos tudo e te se- amblguo. Se se diz «primeiro lugar», pensa-se logo num segundo
guimos l» Eles, os discípulos, largando as barcas, as redes, os meios lugar, num terceiro, num quar\o. . . Ora, por mais que se enume-
de sustentação honestos, a casa dos pais e parentes para seguir jesus,
' rem «lugares», todos estarão em última anãlise no mesmo plano.

l
fizeram o que Jesus está exigindo l Atraldos pela palavra e comporta- São em si intercambiãveis. O que era segundo, pode passar a
mento de Jesus foram liberados dos laços. Pedro, em nome de todos,
interpreta isso como resultado da ação de Deus neles. primeiro; o que era terceiro, também. Não hã diferença essencial,
A resposta de Jesus a esta constatação encerra três momentos. mais profunda. Por isso não basta dizer que o Reino significa
i
Primeiro diz-se que· este desapego e esta seqüela livremente assumidos pôr Deus em primeiro rugar. Logo viria a pergunta sobre o
serão largamente recompensados. Todos que se desprendem recebem segundo, terceiro ... , décimo lugar. Está a riqueza em segundo
o cêntuplo daquilo que abandonaram. O Reino de Deus em que entram lugar (ou mesmo em vigésimo)? Então não se faz grande dife-
é a grande plenitude de que Deus dispõe em favor deles ( cf. Lc
12)32). Em segunda instância, a resposta reparte esta recompensa di- rença entre Deus e a abundância de bens materiais. E pode
vina sobre dois tempos, o tempo presente no aquém e o tempo futuro chegar o momento de trocar as posições. Falar que Deus deve
no além. Quem segue Jesus encontra a felicidade já aqui na terra, estar em primeiro lugar na vida ainda não é suficiente.
apesar das perseguições, e no Reino de Deus vindouro, porque «OS O homem rico do evangelho de hoje certamente punha Deus
sofrimentos da vida presente não têm proporção alguma com a glória
futura> (cf. Rm 8,18). em primeiro lugar, pois observava os mandamentos. Mas, como
a riqueza estava em segundo lugar, no mesmo nível que Deus,
Bibllograjla: Atém de comentàrlos, .e..o., W. O r u n d ma n n, Die Geschichte
]esu Chrlstl; R. B u 1 tm a n n, Theologie des Neuen Testaments; T. W: Ma n s.o n,
O Ensino de /esus; C. M. e s t e :r s, Fundamentação Evangélica da Vida Religiosa,
Publicação da CRB; Y. C o n g ar, Situação da pobreza na vida cristã no seio
l ela jã era idolatrada. Não tardou o momento em que Deus
passasse ao segundo lugar, como um ídolo entre outros ...
de uma clvlHzação do bem·estar, em Conc/Uum 1966 {5); S. L é g asse, Apelo
ao Rico, em j. D u p o n t - A. O e o r g e - S. L ê g as s e - B. R 1 g a u x - Ph.
Reino de Deus significa, portanto, mais que Deus em pri-
Se 1 d e n s ti e k e r, A Pobreza Evangélica, S. Paulo 1976, p. 67-93. meiro lugar. Significa pôr a Deus no primeiro e único lugar
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ
l
1'
de nossa vida. Deus não pode ter concorrentes que lhe possam
disputar o lugar. Deus em primeiro lugar, sim, mas num pri-
meiro lugar que é único com refação a tudo o mais. «Vai,
vende o que tens ... » Como na parábola do tesouro escondido
Sugestões para a Homilia
1 e da pérola preciosa: o Reino significa pospor todos os valores
ao valor supremo, Deus (cf. Mt 13,44-46). E isso sempre, em
Introdução qualquer hipótese, frente a qualquer valor.
Essa a atitude fundamental frente ao Reino. A atitude de
A Igreja Latino-americana fez em Puebl'a solenemente uma
opção preferencial pelo pobre. Para muitos cristãos tradicionais
poderã parecer modismo falar de pobre. Ou julgarão até tratar-
r f
quem só quer Deus em sua vida. Não é espiritualismo desen-
camado? Não, porque o Deus de que aqui se fala não é um
Deus abstrato, criado por nossa imaginação, nias o Deus vivo
458 459
r
'
'
que se manifestou em Cristo. Aquele Deus, cuja «glória ê a A opção preferencial pelos pobres é profundamente evangé-
realização do homem» (Santo Irineu de Lyon). O Deus que lica. Os pobres são os primeiros destinatários do Evangelho,
é amor. A atitude fr<mte ao Reino é a de quem pospõe todos pois para eles, mais do que para ninguém, o Reino é uma boa
os valores ao respeito à dignidade do homem. A fraternidade notícia, é Evangelho. Para o rico, como o do evangelho de hoje,
é o modo concreto de viver o Reino. É, portanto, aquilo que se é má notícia. Ele precisa deixar seus privilégios para que os
deve procurar acima de qualquer outro valor. pobres se tornem seus irmãos na realidade e não só na decla-
mação retórica. Para abraçar o Reino, o rico deverá tomar o
2. O Reino, a riqueza e a pobreza partido do pobre. Querer que os pobres tenham o que lhes é
direito humano e, portanto, - traição da classe! - que os
Na figura do homem rico o evangelho de hoje nos mostra ricos tenham menos, até que se estabeleça igualdade, que é a
alguém que não compreendeu o Reino. Mas não por falta de expressão concreta da fraternidade.
inteligência. Simplesmente por falta de disponibilidade para pôr A opção evangélica pelo pobre não exclui ninguém. É o
Deus acima de todos os valores. O rico do evangelho era um que o Documento de Puebla não se cansa de repetir. Mas como?
homem bom. Cumpria com seus deveres legais para com o Opção por uns não é uma forma de excluir os demais? Sim
próximo (todos os mandamentos que Jesus cita e o homem e não. Opção pelos pobres é pôr os demais a serviço dos pobres.
afirma que os cumpre são obrigações para com o próximo). E «pobres» é o nome teológico dos que sociologicamente cons-
Mas o amor a Deus e ao próximo estavam apenas em primeiro tituem as classes populares. O «rico» (não apenas o magnata,
lugar em sua vida. Em segundo lugar vinha a riqueza. No mesmo mas todo aquele que tem um pouco mais de instrução, um pouco
plano e nivel que o amor a Deus e ao próximo. Tão no mesmo mais de meios, força para trabalhar), o «rico» poderá entrar
plano que era passivei conflito. Tão no mesmo plano que bastava no Reino, enquanto estiver disposto a pôr aquilo que tem a
o minimo deslize e a riqueza vencia a Deus. serviço do pobre, para que o pobre seja concretamente irmão,
Mas não por acaso. Jesus mesmo tira a conclusão para com todas as chances e direitos que os demais. Chances e di-
quem tiver dúvida: a riqueza é assim mesmo. Ela é para o reitos não apenas abstratamente, no papel, mas na realidade.
homem a grande concorrente de Deus. A expressão mais pal-
pável da auto-afirmação do homem. E nessa riqueza estão
incluidas todas as formas de ter, não só o dinheiro, também Conclusão
o saber, o poder. Como a riqueza lhe dá tudo, o homem pensa A «Mensagem aos Povos da América Latina» que os bispos
perder tudo, se a deixar. Por isso não se atreve a abandoná-la, elaboraram no final da Conferência de Puebla expressa magni-
nem mesmo por Deus. Uma palavra radical como a de Jesus fica e claramente o que é no concreto a opção preferencial pelo
deixa-o contristado e ele se vai pesaroso. Pesaroso, sim, porque pobre sem exclusão dos demais: «Convidamos a todos, sem
quereria amar a Deus, quereria participar da alegria do Reino, distinçãó de classes, a aceitar e assumir a causa dos pobres,
quereria fraternidade. Mas sem perder nada. como se estivesse aceitando e assumindo a sua própria causa,
Essa atitude é muito «normal». Por isso Jesus chama os a causa mesma de Jesus Cristo». AI temos a tradução J'atino-
pobres de bem-aventurados, porque deles é o Reino ( cf. Lc americana atual e autorizada do «vai, vende o que tens, dá aos
6,20). Não tendo nada para pôr em segundo lugar, no mesmo pobres ... »
plano que Deus, o pobre está por «natureza» mais aberto a
sacrificar tudo por Deus e pela fraternidade. Ele não tem o Francisco Taborda, S.j.
que perder (pois nada tem). Só tem a ganhar com um mundo Porto Alegre, RS
novo, mais fraterno, que seja aproximação do Reino.
Por isso Jesus prega a boa-nova aos pobres (cf. Lc 4,18).
Porque para eles é boa-nova a mensagem de fraternidade. Se
passarem a ser tratados como irmãos, nada perderão. Só ganha-
rão: de desprezados e explorados passarão a ser reconhecidos
.f
em sua dignidade.

460 461
Vigésimo Nono Domingo nos vv. 11 e 12 usa-se o tenno mais vago e mais amplo crabbim>,
multidão. O contexto todo indica um sentido universalista: esses «mnitos~
do Tempo Comum são todos os pecadores. '
Pistas Exegéticas O sentido misslonário é evidente. Os sofrimentos e a morte do
Servo inocente, aceitos livremente, são a fonte perene da salvação para
todos os homens. Graças ao sacriflcio voluntário do Servo, todos os
Primeira Leitura: 1s 53,10-11 povo, raças e nações têm acesso à vida e à salvação.
l )
Para o domingo das missões a liturgia escolheu nm curto trecho Bibllograjia: Comentários de Cor d e r o, Mor 1 ar ty, Pen na, Piro t-
de Isaías, extraido do conhecidissimo quarto cântico do Servo de Javé. e 1 a m e r; F eu 11 J e t, Etude d'Exegese et de ThêoI. Bibl., Ani:len Testament,
p. 119-119.
O Cântico todo abraoge Is 52,13-53,12. Este poema é o mais longo
dos quatro, o mais denso de conteúdo e o mais diflcil, em razão da Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
profundidade de seu pensamento e dos elementos inéditos que traz. Santa Maria, RS
O preâmbulo, Is 52,13-15, parece ter a finalidade de prevenir o escân-
dalo que vai provocar a descrição dos inauditos sofrimentos a que o
Servo vai ser submetido e que são descritos no cap. 53. Por isso Segunda Leitura: Hb 4,14-16
Is 52,13-15 inicia anuociando um triuo!o sem precedentes, aotecedido,
porém, por sofrimentos também sem precedentes, a tal ponto de deixar O autor de Hb, até 4,14, faz introdução, evocando cá e lá os
pasmados os próprios reis. princípios cristológicos da parte central: 4,14-10,18. A parte final
No c. 53,1-9 descreve com muitas palavras e imagens a humilhação, 10,19-13,25 - contém exortações próprias para a situação concreta da
os sofrimentos e castigos que ca!ram sobre ele, mas ao mesmo tempo comunidade. O nosso texto (4,14-16) ressalta a figura de Cristo, como
repete, à saciedade, que ele sofreu isto inocentemente; e mais: sofreu sumo e eterno Sacerdote da Nova Aliança - mil dos ternas centrais
em nosso lugar, assumiu o castigo que tocava a nós. Dito isto no da Revelação. Cristo sacerdote está junto a Deus Pai e está presente
Antigo Testamento, é algo de inaudito 1 aos homens, porque se tornou um deles (2,7), solidarizaodo-se com
O v. 10 começa afinnaodo que todo este sofrimento e castigo não eles e infundindo-lhes conforto e seguraoça, porque passou pela pro-
era obra do acaso ou de uma fatalidade histórica, mas deslgnio de vação/tentação (2,18) e cumpriu a missão do Pai através da obediência
Deus. O Servo assume livremente, aceita este plano de Deus. E justa- • e da dor, chegando assim à perfeição. Dai a breve e comovente exorta-
mente esta aceitação livre vai fazer que o seu gesto seja extrema-
mente fecundo: cterã uma posteridade duradoura>.
'' ção à confiança.
O v. 14 se parece à conclusão de nm tratado sobre o sacerdócio de
A morte do Servo tem o caráter de nm csacriflcio expiatório... Cristo e demonstra a superioridade do Pontilice eristão sobre o sacerdócio
Aqni o texto hebraico usa a palavra casham• que é um termo técnico dos levitas. Diversamente do sacerdócio levitico, j.Sus é apontado como
para desigoar o sacrif!cio de reparação oferecido pelo pecado (e!. o «grande Sacerdote> (cf. 13,20) que penetrou nos céus para expiar
Lv 5,15). O animal era sacrificado em lugar do pecador e para tornâ- os pecados, sendo nosso mediador. Quem escreveu Hb não tinha uma
lo puro e santo diante de Deus. Os sofrimentos e a morte do Servo concepção orgânica do céu como lugar preciso (cf. 9,11). «Céus» para
têm o caráter de um verdadeiro sacrif!cio expiatório. Para que este ele é uma espécie de corpo intennediário, além do qual está o trono
sacrifício seja eficaz deve ser ·aceito por Deus. Ora, o Servo oferece-se de Deus.
a ' si mesmo voluntariamente, porque sabe que é do plaoo de Deus. E «Jesus» é nome humano de quem é também denominado «Filho de
sendo do plano de Deus, é aceito e é eficaz. E é por isto que o v. 10 Deus», designação de sua condição divina - objeto essencial da pro-
termina afirmaodo: ce a vontade do Senhor será por ele realizada». fissão de fé sobre o qual Hb quer chamar a atenção de seus leitores,
O v. 11 supõe uma correção: o verbo cver. deve ler como objeto introduzindo-os no campo teológico com a exortação de permanecerem
ca luz>. O texto Hebraico não o tem, mas os LXX e os manuscritos firmes na fé (3,1; 10,23). Trata-se de uma fónnula mais ou menos
de Qurnrân assim_ o trazem. Preferimos, por isso, a tradução de Vir- fixa, presumivelmente a do batismo, na qual estaria a revelação escri-
gulin: ~or causa da angústia da sua alma verá a luz, e de seu ccr. ta. Não sabemos com precisão quais seriam os tennos de tal pro-
nhecimenlo há de saciar-se> (cf. Ballarini, Inir. à Bíblia, 11/3, p. 203, fissão cristológica, além do nome cjesus> e do titulo cFilho de DeuS».
Vozes). O sentido da frase é de retorno à vida, ou de alcançar uma Nenhum símbolo de fé, que atribulsse a jesus o qualificativo de apósto-
plenitude de vida que vai enchê-lo de gozo e felicidade. Ê certo que lo ou pontlfice, chegou a nós. Nosso texto evocaria um hipotético hino
não se fala expressamente de ressurreição, mas os pensamentos expressos li!úrgieo? A profissão é certa, não porém o hino, já que o autor de
apontam para isto. Temos que levar em conta que na época em que Hb parece ter assumido, como ponto de partida, um dos símbolos ba-
o poema é composto (século VI aC) a ressurreição é ainda impensável. tismais para construir, sobre ele, a nova teologia do sumo-sacerdócio
«Justificará a muitos.. O Servo não tem apenas a missão de salvar de Cristo.
o povo eleito. Mas ele justificará uma multidão pecadora. O tenno Hb aqui nos apresenta mn lato consolador: o Salvador não é
hebraico crabbim>, muitos, ou multidão, parece que abre proposital- apenas um ente celeste, inacessível, capaz de incutir desânimo nos
mente o leque dos beneficiados com o sacrifício do Servo. No v. 8 afir- fiéis. Pelo contrário, nosso Pontlfice pode compadecer-se de nossas
mava-se que ele era cmorto pelo pecado de meu povo~. Ao passo que enfermidades (5,2; 7,28) ·porque foi tentado como qualquer nm de

462 463
nós. A primeira vista, pareceria não haver grande diferença entre nós Terceira Leitura: Me 10,85(42)-45
e Ele, mas, bem logo, o autor acrescenta uma expressão - cexceto
o pecado> - a qual interpõe uma distância infinita. Hb se esmera por «Assim não há de ser entre VÓS>
sublinhar a ausência total de pecado no Sumo Sacerdote que se sa-
crifica (4,15; cf. 7,26· 9,14), embora, no contexto imediatamente ante- A passagem de hoje segue-se à terceira predição da paixao. jâ
rior tenha salientad~ que a humanidade estã sujeita a perigos, a
tent~ções, como nós. A diferença entre as duas posições se denota com
clareza; entretanto sua percepção teológica caberia a um estudo su-
perior da cristologia.
f se prestou atenção à composição destas passagens. As três predições
da paixão (Me 8,31; 9,31; 10,32-34) revelam que a verdadeira missão
de jesus não corresponde às expectativas messiânicas tradicionais que
eram triunfalistas e hostis à idéia de sofrimento. Seguem-se-lhes inva-
riavelmente incompreensões da parte dos disclpulos (8,32-33; 9,32-34;
Certos, assim, de que nosso estado não é desesperador (v. 16), 10,35-41) e instruções de jesus sobre aquilo que marca os Seus ver-
nós podemos e devemos dirigir-nos a Deus, cujo trono - graças a dadeiros dilícípulos (Me 8,34-9,1; 9,35-10,31; 10,42-45). Marcos compõe,
jesus - não incute mais temor, antes, é manancial de graça. cAJcan- portanto, segundo o esquema: como é o mestre, .assim serão os discf...
çar misericórdia> e «achar graça» são expressões equivalentes. A cer- pulos (cf. a Pista Exegélica de Me 9,30-37, p. 433).
teza e a segurança dadas pela fé nos transformam. Se, antes, estãva- A primeira predição da paixão segue-se a contestação de Pedro
mos oprimidos e quase esmagados pelo terrível poder de Deus (cf. (Me 8,32-33); à última, o pedido de Tiago e joão. Estes três discípu-
12,18-21), - agora, graças a jesus, possuímos nova liberdade e a los gozaram de uma posição de destaque entre os doze (e!. Me 1,29;
certeza de que a misericórdia e a graça de Deus nos ajudarão cem 3,16-17; 5,37; 9,2; 13,3; 14,33). A contestação de Pedro diz respeito
tempo oportuno», neste instante decisivo da salvação que viv.emos, quando à primeira parte das predições, aquela que fala da paixão e morte
tudo estã em jogo (cf. 3,13). de jesus. O pedido dos Zebedeus liga-se à segunda parte, ou seja, à
Em 3,6 como em 4,16 e 10,19.35 aparece o termo grego «parresla>, predição da ressurreição; eles querem segura? para si, já já, as me-
que é traduzido como «Confiança>. De início, cparrêsi~ designou a lhores posições na glória de jesus.
liberdade de falar no plano po!ltico, em tempos da democracia ãtica, jesus reage energicamente à contestação de Pedro, rejeitando como
podendo o cidadão cpleni juris> dizer tudo que sentia; aplicado a um uma tentação de Satanás a insinuação de que Ele possa chegar· à glória
escravo, porém, tornava conotação moral: «libertinagem», csem-vergo- sem passar pela Cruz. Aos Zebedeus e demais clisclpulos jesus esclarece
nhisrno». A verdadeira «J)arrêsia» distinguia o amigo sincero do adula- que não poderão participar da Sua glória sem primeiro terem partici-
dor. Em Flávio josé e em Filo, o vocábulo qualifica o relacionami;nto pado de Sua humilhação. Em outras palavras, o caminho que condu-
do homem com Deus: quem estâ sem remorso e sem culpa estâ IJVre zirá os discípulos à glória é igual ao caminho que levou Jesus à
diante de Deus, é seu amigo. No NT pode ter o sentido profano de glória; tanto o Mestre como os discípulos hão de passar pelo caminho
«direito> «autorização> (Fm 8) ou de dato público e notório» (Jo da Cruz, aqui símbolízado pelo câlice e pelo batismo.
7,4.26), 'bem como o de <falar abertamente sem enigmas> (Jo 11,14; Os filhos de Zebedeu pedem a jesus que laça a vontade deles.
16,25.29; Ef 6,19) ou ainda a franqueza de anunciar o Evangelho (At jesus, porém, lhes fala da vontade do Pai, que domina .a. Sua própria
2,29; 4,13.19.31; 28,31). Na carta aos Hebreus (3,6; 4,16; 10,19.l!5) sorte e a de Seus discípulos, tanto quanto à parte da paixao (10,38-39)
o termo evoca a imagem do cristão, seguro de que Deus o abnga como quanto à parte da glorificação (10,40). Ao pedido que brota
favoravelmente. Deus é o Senhor Supremo, ao passo que o homem da mentalidade «seja feita a nossa vontade> (10,35-37) jesus contrapõe,
é um escravo, privado de qualquer direito, inclusive de falar com liber- pois, uma atitude que corresponde à terceira súplic:i do Pai~n~o:
dade. Que o homem tenha acesso junto a Deus é algo de inaudito, que cseja feitêl. a Vossa vontade»-. Preparando-se, no Jardim das Oliveiras,
só pode acontecer a quem está em/com Cristo. Tal sentido aparece para a Sua paixão, Jesus retoma a imagem do cálice e reza no espi-
também em Ef 3,12. rito desta mesma súplica: «Abba, Papai! Tudo te é possível: afasta
de mim este cálice; mas não seja o que eu quero senão o que tu
Bibliografia: K u s s, O.. La letfera -agll Bbrei (Regensburger Neues Testament,
trad. de o. Rinaldl) Morcelllana, Brescla 1966; Se h 1 e r se, P. J., Epistola queres> (Me 14,36). Somente no prolongamento do caminho da Cruz,
aos Hebreus, Vozes, '1970 (trad. de W. P. Martins); N 1 e o 1 a u, M., carta a que não se consegue percorrer a não ser alimentado e sustentado
los Hebreos, La S. Escritura, NT/111, BAC, Madrid 1962; T urra d o, L., Epistola
a los Hebreos, Blblla Comentada, VI, BAC, .i\iadrJd 1965; R 1 e e l o t ti, O.z.. Le por esta oração, despontará a glória e a realização da segunda súplica
Jettere dl S. Paolo, Milão 1931; B ove r, J. M., La teologia de S. Pablo, 11AC, da oração dominical: «Venha - a nós - o Vosso Reino~.
Madrid 1946; Pra t, F., La théologle de S. Paul, Paris 1908; S p f e q. e., L'tpltre
aux Hébreux J/JI, Paris 19õ2s; L é o n ªD u f o u r, X., Vocabuldrlo de Teologia Em v. 41 entram em cena os outros dez disclpulos. Vendo o perigo
Bfblica, Vozés 197S.2• (verbetes: sacerdócio, culto, sacrlficlo). de serem postergados pelo pedido dos colegas Tiago e joão, mostram-
se contrariados. Mediante este verslculo de transição ligam-se outros
P. Matheus F. Oiuliani, S.A.C. ditos de jesus à instrução precedente. O alcance destes ultrapassa o
Santa Maria, RS dos ditos de vv. 38-40 (como o de 8,34-38 d de 8,331). O câlice e o
batismo podem, de lato, ser interpretados como slmbolos do martírio
e, pois, das últimas conseqüências de paix~o e morte, às quais pode
levar o seguimento de jesus. Entendidos assim, os ditos de vv. 38-39
podem ter encontrado o seu lugar na tradição por causa das perse-
guições. Em vv. 42-45 tod~ a vida cristã de todos os cristãos, em todas

464 465
as situações possiveis, é vista pelo prisma do seguimento de Jesus, nada se fez em prol dos negros trazidos da África como escra-
dimensionando-a em termos de serviço a exemplo do serviço de Jesus.
Estas coordenadas de serviço alicerçam uma comunidade regida por vos. Eis aí um pecado que deve nos servir, agora, de exame de
princípios frontalmente opostos aos princípios que vigoram nas so- consciência: temos falhado diante daqueles que, hoje, são des-
ciedades terrestres e politkas. O principio do poder e do direito do respeitados em seus direitos? Temos sido omissos frente ao
mais forte é visto como a força-motriz da história dos povos. Aponta- clamor dos oprimidos? Se rezamos •Pai, perdoai as nossas
se o aspecto demoníaco desta ordem de coisas em que se usurpa o
poder, oprimindo os homens. Na formulação desta critica percebe-se ofensas» é para que não nos transformemos em fariseus con-
uma nota de ironia por causa do uso do verbo dokein em: «OS que vencidos de que não têm pecado ...
parecem (ou: pre!emlem) reinar sobre os povoS>. Em Lc 22,25 realça-
se mais claramente esta ironia, dizendo deles que «gostam de passar
por benfeitores>. Corpo
1 jesus decididamente não quer que na Sua comunidade se copie este
1 tipo de relações: «Entre vós não deverá ser assim l> Na Sua comuni- !. Uma Igreja servidora e pobre
dade jesus não aceita a luta competitiva pelo poder e pela autoridade.
\ Ele substitui a hierarquia do poder pela hierarquia do serviço; a O Evangelho de hoje nos fala do pedido que os filhos de
imposição e subordinação pela fraternidade. A grandeza dos Seus dis- Zebedeu, Tiago e João, fizeram a Jesus, o Messias: queremos
cípulos está na capacidade de servir e na dedicação ao serviço. Longe sentar à direita e à esquerda de seu trono. Essa imagem triun-
deles <ganhar o mundo> e as honrarias do mundo pelo poder e pela falista, de uma Igreja poderosa, por vezes predominou em nossas
imposição. O caminho deles é o do serviço ao mundo, sacrificando-se
pelos outros. Neste serviço não perdem a sua vida, mas a ganham missões. Porém, Jesus mostra que só terá parte com ele aquele
(cf. Me 8,35-36). que for capaz de beber o cálice que el'e bebeu, ou seja, aquele
jesus afasta Seus discípulos da luta pelo poder e os dirige no que se faz servo e não poderoso, humil'de e não orgulhoso,
caminho do serviço, porque Ele mesmo não veio para deixar-se servir aberm aos pobres e não egoísta e avarento, capaz de colocar-se
e ganhar poder, mas para servir e dar a Sua vida para muitos, isto é em atitude filial diante do Pai e não pennanecer em postura
para todos, pelo mundo inteiro. No seu discip.ulado, os discípulos expe-
rimentam o serviço de jesus na forma de instrução pela palavra e pelo auto-suficiente.
exemplo, em que Ele mostra uma dedicação e um cuidado preferenciais Hoje é um dia de esperança porque enxergamos de uma
pelas vítimas daquele tipo de sociedade que critica. Feita vitima da outra maneira a tarefa missionária que nós, leigos e clérigos,
mesma, pela ressurreição as comunidades cristãs são dadas ao mundo
e à humanidade como amostra grâtis da convivência humana como Deus somos chamados a realizar enquanto Igreja. «Terras de missões»
a quer, contanto que sigam o exemplo de jesus. não são apenas os recantos longínquos da Africa ou da Asia.
É esta terra na qual vivemos, onde o cristianismo se tornou um
Bibltografla: Além de comentários cf. R. R u 1 j s, Estruturas Eclesiais no
Novo Testamento à Luz da Vontade de Jesus, em RBB 33 (1973/129), 35--60 e a pressuposto cultural adaptado a uma realidade social dividida
bibliografJa ai citada. em classes antagônicas. Terra de missão é o nosso coração,
Raul Ruijs, O.F.M. por vezes endurecido às exigências mais prementes de nosso
Petrópolis, RJ povo e fechado aos apelos de justiça que o Senhor nos faz
pela hoca dos oprimidos.
Sugestões para a Homilia Nesse sentido, devemos rever nossa atitude missionária e
nos perguntar: temos anunciado a fé por nossa maneira de
Introdução viver? Temos experimentado a bem-aventurança da fome e da
sede de justiça? Temos sido cristãos capazes de convencer o
A comunidade católica comemora, hoje, o dia das missões. próximo da boa novidade que é o Evangelho? Ou somos simples
Este é um dia de penitência e de esperança. De penitência, por- cidadãos cumpridores de seus deveres, freqüentadores da igreja
que temos muito a rever, a fazer autocrítica, perante empenhos aos domingos, capazes de recorrer a Deus na hora do aperto?
missionários que nem sempre corresponderam ao estilo evangé- Estamos mais próximos dos discípulos de Jesus ou do grupo dos
lico. Muitas vezes a Igreja chegou às terras de missões trazida fariseus?
pelas caravelas dos conquistadores cujas armas submetiam o É no serviço libertador aos pobres que a Igreja encontra,
povo nativo e facilitavam a imposição da fé cristã. No Brasil, atualmente, o terreno mais fértil para plantar a semente do
muitos missionários defenderam os direitos dos índios, mas quase Evangelho. Se ela, em Puebla, faz «opção preferencial e soli-
466 467
11
'

dária pelos pobres» não é por querer abandonar os ricos, mas Trigésimo Domingo do Tempo Comum
sim por saber que os ricos só se convertem na medida em que
são interpelados pelos pobres. Freqüentemente, ao fazer-se rica
com os ricos, foi mais fácil a Igreja corromper-se do que Pistas Exegéticas
convertê-los ...

1
1
! 2. Tem mais autoridade aquele que serve
Primeira Leitura: Jr 31,7-9
Os capítulos 30 e 31 de Jeremias constituem uma unidade literária
Jesus disse a seus discípulos: «Vocês sabem que os que se originariamente independente. De fato, em 30,2 o profeta recebe a
dizem governadores mandam no povo e são os líderes que do- ordem de escrever num livro todas as palavras que o Senhor lhe
minam. Mas entre vocês não pode ser assim» (Me 10,42). A falou. O tema geral deste «livro~ está sintetizado em 30,3: «Mudarei
a sorte de meu povo, Israel (e Judá), a fim de reintegrá-lo na posse
missao da Igreja é servir e não mandar. Nela, tem mais auto- da terra que havia dado a seus pais>. O redator, talvez o secretário
ridade aquel'e que mais serve, que imita o exemplo de Jesus. de jeremias, Baruc, após a destruição de jerusalém, colocou estes dois
É por isso que a maior autoridade da Igreja, o Papa, possui capítulos logo após Jr 29, pois em Jr 29,32 o profeta já anuncia a
o título de «Servo dos servos de Deus». nova felicidade que Deus concederá ao seu povo.
Servir a quem e por quê? Servir aos que mais necessitam O conteúdo de Jr 30-31 (muito próximo a 3,1-4,4) contém oráculos
de nossa ajuda - os oprimidos. É da missão evangelizadora que pertencem com probabilidade aos primeiros anos da atividade de
Jeremias. Originariamente se dirigiam estes oráculos aos exilados do
" da Igreja, conforme foi definido em Puebla, a luta pela liberta- Reino de Israel, levados ao exílio na Assíria, um século antes de ]e-.
1 ção integral - portanto, não apenas espiritual, religiosa, mas remias, em 722. De fatO, com o declínio do Império Assírio, sobretudo
também política, social, econômica e cultural. É claro que o a partir da morte de Assurbanipal (626aC), reacenderam-se em Judá as
1 projeto social a ser construído não é tarefa da Igreja e nem esperanças de uma reunificação com Israel, após o retorno dos exilados,
«O resto de Israel» (31,7). Jeremias, procedente de Anatote, uma vila

l
cabe a ela definir como deve ser o processo libertador. Mas, da tribo de Benjamim, etnologicamente ligada a Israel, sentiu também
de sua índole evangélica, decorre a exigência de ser «a voz com ansiedade o retorno dos israelitas. O próprio rei josias, aproveitando-
dos que não têm voz» e de anunciar «a libertação aos cativos, se da fraqueza da Assíria, jâ tinha até anexado a maior parte dos
a vista aos cegos, a alegria aos que estão sofrendo». E, como territórios da Samaria, pertencentes ao antigo Reino de Jsrael (cf.
1 Igreja, esta não é uma tarefa só dos bispos e dos padres. É 2Rs 23,15-20).
;j uma tarefa também dos leigos, que são Igreja. A cada vez que É neste contexto histórico que o profeta Jeremias, movido mais
por razões de ordem teológica que politica, pronunciou os orâculos
~! um de nós se cala dian.te da injustiça ou se omite diante da
necessidade do próximo, estamos negando a nossa fé e man-
de restauração dos capítulos 3Q..31. Recebeu a ordem de lançá-los por
escrito, talvez, para enviá-los aos israelitas exilados na distante Assíria.
chando a face de nossa Igreja. Eis ai a· causa do atraso missio- A estes exilados de Israel Jeremias promete o fim do cativeiro e o
nário, pois nem sempre nós cristãos somos coerentes em fazer retorno à sua terra, com a reunificação do reino davídico. Usando de
aquilo que pregamos e cremos. uma expressão tão cara ao último profeta do Reino de Israel, Oséias
(cf. Os 11,1), Jeremias promete que Deus, cheio de amor paterno,
tratará Efraim ( = Israel) novamente como seu filho primogênito (Jr
Conclusão 31,9).
A leitura de Jr 31,7-9 ao lado do evangelho da cura do cego
Peçamos ao Senhor que nos ajude a assumir, COJ11 vigor e Bartimeu leva a liturgia a nos apresentar ·Cristo como o verdadeiro
decisão, a nossa vocação missionária, como servos de um mundo restaurador de Israel. Cristo é quem traz a salvação a todos os de-
serdados, reintegrando-os no povo de Deus. A compaixão de Jesus
novo enraizado na justiça, na paz e no amor. Permita Ele que para com o cego de Jericó revela este amor paterno de Deus em
a vida de cada um de nós seja semente dessa realidade nova, relação a todos os homens, especialmente os deserdados.
a fim de que as futuras gerações possam colher os frutos da
BJbllografla: A. W e 1 ser, Der Prophet ]eremia, Kap. 25,1-52,34 i1bersetzt
«gloriosa liberdade dos filhos de Deus». und erkUlrt (ATO, 21), Ooettlngen 1955; j. S k i n n e r, Jeremias: Profecia e
ReligUio, ASTE, S. Paulo 1966.
Frei Betto L. Oarmus, O.F.M.
Belo Horizonte, MO Petrópolis, RJ

468 469
Segunda Lelltna: Hb 5,1·6 (1,5; SI 2,7; cf. 2Sm 7,14) - quanto pela Palavra de Deus que o

Hb 5,1-10 desenvolve o tema de 4,14-16: o sacerdócio de Cristo. constituiu sacerdote - «Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem
jesus é com todo direito nosso Pontífice e Sumo Sacerdote. Um pon- de Melquisedec> (SI 109,4). • ·
ti!ice que saberá entender a miséria humana, visto que dela fez expe- O t • texto - «Tu és meu Filho ... :> - visa aqui o sacerdócio de
riência (vv. 1-3). Sua eficácia é infalível, graças à iniciativa e vocação Cristo. Anteriormente fora alegado para assegurar a superioridade dele
dívina (v. 4). Cristo foi instituído sacerdote por Deus de maneira única sobre os anjos (1,5). Paulo o aduz para provar a sua ressurreição
(vv. 5-6). Assomam aqui as características do sacerdócio para que seja (At 13,33; Fl 2,9). Entretanto, estes sentidos não se repelem, antes
legitimo e eficaz (vv. 1-4), as quais são aplicadas a Cristo (vv. 5-10). se plenifícam: o Messias, cuja exaltação é proclamada por S. Paulo,
São elas: - pertencer à raça humana, - representá-la na:quilo que era também sacerdote (SI 109,4). E. que o fundamento ontológico do
se refere a Deus, oferecendo dons e sacrifícios pelos pecados, - ca- sacerdócio de Cristo e sua dignidade excelsa repousam no fato de ser
pacidade de apiedar-se da·. ignorância e da limitação daqueles a quem Jesus ·verdadeiro homem e verdadeiro Deus.
representa, - escolha ou chamado divino. : O 2' texto - «Tu és sacerdote eternamente... > -"é messiânico,
O autor de Hb não se ocupa tanto do sacerdócio em abstrato, mas aplicando-se com propriedade a jesus, sacerdote eterno, em especiÍIJ
visa ao sacerdócio levitico com termos e idéias familiares a seus leitores a partir da ressurreição, sem negar que o fosse jã antes. A carta aos
judeus. Entretanto, o apresenta com certo aspecto de universalidade, Hebreus vai explicitar esta citação no cap.. 7'. Cristo é sacerdote segnndo
referente à humanidade atual, ferida pelo pecado original jesus desem- a ordem de Me1quisedec, superior a Abraão, personagem misterioso que
penha a rigor o seu múnus mediante o sofrimento e a obediência prenuncia algo de importante no futuro. Como tal, o sacerdócio de
(vv. 7-10). Como principio geral, todo pont!fice vem dos homens; esco- Cristo é superior ao de Aarão e ao de Levi, suplantando-os de longe.
lhido dentre os mesmos, está a serviço deles para as cois~s de Deus, jesus é o grande Sacerdote, eterno e perfeito, que a humanidade espe~
qual mediador. Para servi-los em suas relações com Deus, deverá ofe- rava e de que tanto necessitava.
recer «dons e sacrifícios» pelos pecados. Não se entende claro se «dons
e sacrifícios~ indicam respectivamente sacrifícios incruentos (Lv 2,1-16; Bihliogrufià: Cf. 29!:> Domingo do Tempo Comum, Ano R, p. 466.
6,7-10) e cruentos (Lv 3,1-5.26), - ou se os csacriflcios cruentos~ são
parte dos dons, - ou ainda se ambos os termos designam sacrifícios P. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
cruentos. De qualquer modo, o pontifice é capaz de compadecer-se, Santa Maria, RS
porque ele também está cercado de fraquezas (v. 2; cf. 4,15; 7,28),
- o que impede de irar-se contra os pecadores; antes, é levado a Terceira Leitura: Me 10,46-52
comedir-se, a ter sentimentos de moderação ( «metriopathei~), - a
atitude de quem, após experimentar a fraqueza, sabe julgar com suavi- •Coragem! Levanta-te que Ele te chama»
dade as transgressões humanas, sem ofender-se ou indignar..se, sem
deixar de interceder por eles ou de assisti-los. O milagre deste passo no evangelho de Marcos é o último da vida
Tal compaixão tem sentido face aos pecados cometidos por igno- pública de jesus feito em favor de um homem (cf. Me 11,14.20ss;
rância ou por lapso (cf. Lv 4,2.13.22.27; 5,2-4) e não àqueles que se 15,38) e desempenha um papel especial na composição deste evangelho.
fazem conscientemente, de mão erguida, cuja conseqüência era a expul- Ele situa-se em Jericó, última parada de jesus e Seus discípulos na
são da comunidade (Nm 15,305). Note-se que, na Bíblia, os pecados viagem que os conduz da Galiléia (cf. 10,1) a Jerusalém (cf. 10,32.46;
de inadvertência ou fraqueza são, por vezes, graves; todavia, não cons- 11,1), onde celebrarão a Páscoa. A multidão que os acompanha ao
tituem uma recusa consciente, voluntária e temerária da poderosa graça sair de Jericó compõe-se de moradores desta cidade e de romeiros
de Deus. O pontifice não está acima dos pecadores, mas no meio deles. que por motivo da Páscoa se dirigiam a Jerusalém. Esta movimentação
Por isso é que deve ele oferecer sacrifícios pelo)> pecados próprios e acompanhava-se de um clima de euforia festiva e de entusiasmo inspira-
do povo (v. 3; cf. Lv 9,7; 16,16s.24.33). do por expectativas messiânicas. Chegando em jerusalém jesus será acla-
No sacerdócio o que deveras conta é a ·iniciativa divina. Como mado com as palavras «Hosana! Behdito quem vem em nome do Senhor!
outrora Aarão (Ex 28-29; Lv 8; Nm 3,10; 16,18), assim também agora Bendito o reino de nosso pai, Davi, que estâ chegando l Hosana nas
Cristo é chamado, escolhido por Deus. Sem este chamado o sacerdote alturas!» (11,9-10), aclamação que em parte se inspira no Salmo pro-
não preencheria 3, função primordial do sacerdócio, que é de ser me- cessional 118, que constava do repertório destes dias, e cujo canto ali-
diador entre Deus e a humanidade, jã que, longe de aplacar a Deus, mentava e · expressava estas expectativas mess,iânicas. Jesus é, po!~,
iria antes provocar sua justa ira (3,JO; 16,40). É uma ho~a, sim, mas recebido na capital e no santuário nacional como o messias prometidn
de suma responsabilidade, razão pela qual ninguém pode apropriar-se da casa de Davi. '
dela por conta própria (v. 4). Foi o que Jesus fez (v. 5): não se Segundo o evangelho de Marcos somente os demônios, graças a
arrogou tal dignidade, respondeu fielmente ao chamado do Pai. Aqui recursos particulares, e os discípulos estiveram, até agora, a par do
está o ponto central que o autor de Hb quer frisar: Cristo não é caráter messiânico da missão de jesus. E jesus lhes proibira divulgá-lo.
sacerdote da linhagem de Aarão. Com dois argumentos bíblicos esta- O cego Bartimeu pôde aclamar Jesus como «Filho de Davi» ou porque
belece que o sacerdócio de jesus se justifica tanto pela sua dignidade o segredo messiânico se tornara conhecido, ou porque o próprio Bar-
metafisica de Filho de Deus - <Tu és meu Filho, eu hoje te gerei» timeu, interpretando as obras de Jesus à luz das Escrituras (cf., por

470 471

J
exemplo, Is 29,18; 35,5; 42,7; 61,1), chegara à conclusão de que ]esns Esta etimologia pode-se explorar para explicar a frase da Segunda
era o Messias esperado. De qualquer forma, na composição de Marcos, Leitura: ctodo pontífice é escolhido entre os homens e constituído a
o reconhecimento e a aclamação coletivos de Jesus como Messias em favor dos hml!ens como mediador nas coisas de Deus> (Hb 5,1). No
jerusalém são preparados pelo reconhecimento e pela aclamação indi- decorrer das Sugestões para a Homüitz. não somente se tenta escla-
vidual de Bartimeu. Não mais proibindo o reconhecimento público de recer o sacerdócio de Cristo ou da hierarquia da lgreja, mas de todos
Sua dignidade messiânica, jesus o endossa através da cura do cego. os cristãos. Por isso, formula-se como tema principal_:
Desta maneira o passo serve, na composição de Marcos, de transição
daquilo que precede para aquilo que se segue imediatamente depois SOMOS UM POVO DE PONTIFICES, DE CONSTRUTORES DE PONTES
em c. li. ENTRE DEUS E OS HOMENS
Do ponto de vista da teologia da fé cristã a interpretação deste
milagre é óbvia. Corno a confissão de Pedro, também a aclamação de
jesus como Messias da parte da multidão e do próprio Barlimeu são
ligadas à cura de um cego ( cf. 8,22-26 antes de 8,27-30; 11,46-52 antes Sugestões para a Homilia
de 11,1-!0), ilustrando-se que a fé supõe a luz interior da graça. Esta
mesma teologia encontra-se em textos como Mt 16,17, a bem-aventurança Introdução
que, em Mt, comenta a confissão de Pedro: «Feliz és tu, Simão, filho
de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue quem te revelou, mas Pontes que não servem
o Pai que está nos céUS>j e corno lCor 12,3b: « ... ninguém pode
dizer 'Jesus é o Senhor', senão no Espírito Santo»; ou ]o 6,44.65: (Citam-se var1os casos reais que podem ser aproveitados conforme
«Ninguém poderá vir a mim se não o atrair o Pai». Quando confessamos o interesse de cada lugar e região).
nossa fé em jesus, jã somos porta-vozes do Espírito Santo, porque «O - Pode acontecer em algum lugar que a gente encontre uma
próprio Esp!rito dã testemunho a nosso espírito» (Rm 8,16). ponte construida no mcio do Jeito de um rio, mas sem estrada. A
O Bartimeu é um homem sem recursos, cego e pobre, à mercê da rodovia atravessa o rio em outro lugar. As razões de uma tal curiosi-
providência humana e divina, até que Jesus se aproxime e ele saiba dade se entendem. O prefeito de um partido político construiu a ponte.
procurá-1'0. Apesar das tentativas de muitos para silenciá-lo e mantê-lo E o prefeito da oposição que depois construiu a rodovia não quis
longe de Jesus e da possibilidade de salvação que n'Ele se lhe descor- que ela passasse pela ponte do outro partido.
tina (cf. v. 48a), ele não desiste e grita alto até ouvir a voz de Jesus - Por ocasião de .sua visita ao Brasil, .uns cinqüenta anos atrás,
que o chama. Sendo atendido por Jesus, ele é salvo de uma dupla o rei da Bélgica doou ao Brasil uma ponte sobre o Rio São Francisco1
cegueira, a física e a espiritual E, de olhos abertos, csegue Jesus para a estrada-de-ferro. Mas até agora não se construiu a fenovia.
pelo caminho» (v. 53), como discípulo. - Todo mundo conhece os problemas da ponte Rio-Niterói e o
.:Desta maneira a narração é uma ilustração de três temas da caso daquela ponte no Paraná, que no dia da inauguração desabou.
pregai;ão cristã: fé, salvação messiânica e díscipulado> (Fuller, p. 71).
A fé de que fala esta estória milagrosa não é fé em um curandeiro, - Em Minas Gerais, perto de Belo Horizonte, o povo deu a um
dos viadutos o nome de Viaduto das Almas, por causa dos muitos
mas fé cristã, fé que salva. A salvação é messiânica, isto é, atinge o desastres que ali ocorreram.
homem todo, nem somente a dimensão corporal, nem somente a di-
mensão espiritual, mas o homem integral. Ela o liberta de uma depen- Esta história de pontes faz pensar. Urna ponte não serve se não
dência humilhante para uma entrega livre de si à pessoa de Cristo tiver estrada. E a estrada não serve, se não tiver pontes e viadutos
pelo seguimento: c:Coragem! Levanta-te que Ele te chama»! para atravessar os rios e abismos. Esta é a razão por que as pontes
sobre rios e abismos sempre são pontos estratégicos. No tempo de
Bibliografia: A. R 1 eh a r d s o n, The Mlracle Stories of the Gospels, Londres guerra o que mais se vigiam são as pontes e os viadutos.
1963, especialmente p. 88-90; R. H. P u 11 e r, Die Wunder ]esu in Exegese un'!
Verkilndlgung, Düsseldorf 1968, especialmente p. 70s; A. W e 1 ser, O que e O que vale nesta reaJidade de pontes e estradas, aplica-se também
milagre na Biblia. Para Pocê l!ntender os relatos dos Evangelhos, São Paulo 1978. à realidade espiritual1 aos caminhos que levam a Deus e às pessoas
que constroem estas estradas e pontes.
Raul Ruijs, O.F.M.
Petrópolis, RJ O construtor de pontes espirituais entre Deus e os homens
chama-se «pontífice». «Pontífice» agora é somente usado para o
Tema Principal Papa e os bispos. Mas no seu sentido figurativo pode também
ser usado para os padres e ainda para todos os cristãos. Por-
A tradução latina do Novo Testamento traduz a palavra sumo que todos juntos somos chamados a ser uma ponte de ligação
sacerdote (archiereüs) por «pontifext>, pontífice, que etimologicamente entre Deus e a humanidade.
vem de pontem facere, construir urna ponte (sobre um rio), ligando
as beiradas e dando passagem de um lado para outro, e vice-versa.

472 473
Corpo humanas e mundanas e quanto mais dedicados a Deus e às
)

J. Não somos guardas de uma ponte entre Deus e os. homens


coisas de Deus.
Ora, esta teoria foi aquela dos fariseus. Falaram mal de
Muita gente pensa · que o Papa, os bispos e os padres são Jesus porque procurava a companhia de pobres e pecadores, de
uma espécie de guardas que devem cuidar que a ponte entre impuros e publicanos. Nesta teoria a gente vai inventar coisas
Deus e a humanidade permaneça intacta. Aquela ponte seria, como línguas · e vestimentas sagradas: como eram o latim, as
então, a igreja católica; ou o culto da igreja. batinas, as fitas e uniformes. . . Mas uma língua que ninguém
Nesta teoria, os bispos e os padres devem cuidar que o entende é como uma ponte sem estraqas ou uma rodovia sem
povo seja servido quando precisa batizar os filhos; quando estes viadutos. Não serve para nada a não ser para vanglória. É
estão na idade para fazer a primeira comunhão; quando devem muito esquisito querer viver em um a111biente sagrado ao qual
ser crismados. Também precisa-se do padre para celebrar a o povo de Deus não tem acesso. É tão. estranho como construir
Missa de Sétimo Dia; para fazer o casamento e a encomendação uma casa.. ao longo de um trecho de uma rodovia entre dois
da alma. abismos nias sem viadutos.
Muita gente nem quer saber o que o padre, afinal, está
fazendo; nem por que ele faz isto ou aquilo. Nem se pergunta, 3. Nós mesmos somos a ponte
se serve ou não serve. Só exige que o padre faça o que sempre
se tem feito. E, nesta hipótese, de bom grado paga o serviço Nós cristãos, padres e leigos, não somos guardas de uma
prestado. ponte entre Deus e os homens. Nem vivemos em cima de uma
.Muita gente pensa, assim mesmo e fica aborrecida quando ponte que ligaria entre si o mundo de Deus e o mundo dos
o padre quer explicar o que ele está fazendo e por que ele faz homens. Nós mesmos somos aquela ponte, a ponte de ligação
isto ou aquilo. Acham ludo isso complicação e amolação. entre Deus e os homens.
Este povo que pensa assim esquece que os bispos e padres Nós somos um povo de pontifices, de construtores de pontes
não estão a serviço de uma instituição ou de uma organização entre Deus e os homens. Devemos, mediante nossa vida, tigar
ou de um culto, mas a serviço dos homens que eles hão de entre si o mundo de Deus e o mundo dos homens. Não devemos
representar junto a Deus. sair do mundo, mas ser a presença de Deus no mundo.
Muita gente pensa: bom é aquele padre que /cuida da Não devemos fugir do mundo dos homens, mas ser para
beleza do culto e se esgota na construção de igrejas bonitas e o nosso próximo a estrada que o leva ao mundo de Deus.
sabe impor respeito pela religião e pela Igreja católica. Como diz a segunda leitura: somos tomados do meio dos homens
Mas pode ser que o tal padre esteja defendendo e guar- e colocados em beneficio dos homens, para que possamos re-
dando uma ponte pela qual não passa estrada ou passa uma presentar, isto é, tornar presente os homens junto a Deus e
estrada que acaba diante de abismos e rios intransitáveis. Deus junto aos homens.
Então, pode-se melhorar a ponte e consertár as estradas, Não devemos fechar os nossos olhos para o mal que existe
gastar esforços e dinheiro, mas não adianta nada. no mundo. Pelo contrário. Devemos abrir os nossos próprios
olhos e os olhos de todos que não vêem.
2. Não vivemos em cima de uma ponte Não devemos fugir do mundo e deixá-lo perder-se no seu
entre o mundo de Deus e o mundo dos homens pecado e na sua desgraça. Devemos ir à procura de todos que
Muita gente pensa que a Igreja é uma espécie de ponte ou precisam de nossa ajuda material e de nosso apoio moral e
de balsa entre o mundo de Deus e o mundo dos homens. E que espiritual.
a gente seria mais cristã na medida que estaria mais afastada No mundo inteiro há gente que grita: «Jesus, Filho de Davi,
daquela parte da ponte ou do rio que está mais perto do mundo tenha pena de mim!» «Cristo, filho de Deus, tenha pena de
dos homens, do mundo do mal e do pecado. Quanto mais longe mim!»
do mundo dos homens, tanto mais perto do mundo de Deus. Não devemos mandar que estas vozes se calem, mas que
A gente seria mais cristã e o padre seria mais paÍire quanto sejam ouvidas. Devemos proclamar como faz o profeta da se- 1
menos estivéssemos ligados com os homens e as preocupações gunda leitura: 1

474 475

j
«0 Senhor salva o Seu povo! Ele os conduz às correntes
de água e os reúne dos lugares mais distantes da terra. Ele
se compadece dos cegos e ,paralíticos e abre o Seu coração para Trigésimo Primeiro Domingo
os aflitos». do Tempo Comum
Conclusão
Deus nos ama e, por meio de nós, quer amar todo mundo. Pistas Exegéticas
Jesus é o grande pontífice, que na Sua humanidade construiu Primeira leitura: Dt 6,2-6
a ponte entre Deus e os homens: esta ponte é a Igreja e a
Igreja somos nós, cristãos. Nós somos a ponte entre o mundo «Escllfa Israel, ]avé, nosso Deus, é o único».
de Deus e o mundo dos homens. Devemos cuidar das vias de
Contexto literário de Dt 6,2-6. A leitura deste domingo se compõe
acesso, dos aterros. . . Demos passagem a Deus que está à de duas partes de moldura; Dt 6,2s faz parte do conjunto Dt 5,1.32-6,3
procura dos homens e aos homens que estão à procura de Deus. que emoldura o núcleo central que é o Decálogo. E Dt 6,4-6 participam
da unidade Dt 6,4.5-9 emoldurando de um lado Dt 6,10-13. O texto de
Raul Ruijs, O.F.M. hoje, portanto, faz parte de dois conjuntos que emolduram núcleos dife-
Petrópolis, RJ rentes (cf. PERLITT, p. 78s; MERENDINO, p. 186s).
A época da composição de Dt 6,2-6. Para Perlitt o texto desta
leitura pertence à fonte literária deuteronômica. E esta supõe que tenha
surgido no séc. VJI a.C. Este século, no entanto, se caracteriza pela
dominação dos isra-e1itas pela potência internacional que é a Assíria. Este
reino impôs sua vontade aos israelitas não só no campo político, mas
também no religioso. Isto é, nos santuários mais importantes de Israel
se cultuavam as divindades assírias, colocando Javé em segundo lugar.
No culto oficial, portanto, Javé não estava no centro mas fora degradado
e preteridb pelo panteão assirio. A ·esta apostasia de Javé, o Deus do
/ povo de Israel, o grupo de teólogo e catequistas deuteronômicos reage
exigindo uma conversão, conclamando os israe1itas a uma veneração
única e exclusiva de Javé, pois só Ele é o Deus do povo israelita. A
luz deste pano de fundo vamos agora ler, meditar e interpretar a leitura
deste domingo.
Comentário de Dt 6,2-6. Moisés é aqui apresentado, exortando pri-
meiramente os israelitas ao temor de Deus. O que quer dizer «temer a
Javé»? Aqµi tem o sentido de testemunhar a soberania e exclusividade
divina de Javé. Este temor de Deus, no entanto, se revela concretamente
no relacionamento inter-humano, na prática fiel e constante da justiça
para com todos. E isto transparece na outra recomendação que convida
a observar todas as leis e os mandamentos de Deus. Este apelo, no
entanto, não se dirige só a alguns, mas a todas as gerações, isto é, a
todos sem nenhuma exceção e sempre. Esta é a condição para que a
vida dos israelitas na terra de Canaã seja longa e feliz.
Com o v. 4 começa a nova introdução. E esta se inicia com o
tradicional convite Xemá = «escuta!» Para que o insarelita deve abrir o
ouvido e atentamente escutar? Para esta profissão de fé: «]avé é nosso
Deus, Javé é o único Deus». Esta afirmação existencial, razão de consolo
e de identidade de muitos israelitas, ·era, ao mesmo tempo, questiona-
mento para a elite oligárquica de Israel, pois dava mais atenção à voz
dos deuses assírios do _que a Javé, o Deus de sua história. Já que Javé
é o único Deus do povo de Israel, então é também Ele a única e exc-lu-
siva realidade do amor do israeJita. Por isso que ]avé deve ser amado
de todo o coração, de toda a alma e com todas as forças.

476 477
Aqui se percebe que amor e temor de Deus são a mesma coisa. meta finaJ. Para o autor de Hb .a multiplicidade e a mudança indicam
Porque amar única e exclusivamente a Javé, significa temê-lo, isto é, insuficiência.
reconhecê-lo, contemplá-lo e servi-Jo como o único Senhor. Amar e Em conseqüência, Cristo sacerdote nos é consolo, porque pode salvar
temer só a ]avé quer dizer repulsa absoluta de qualquer outra realidade plena e perfeitamente a quantos o aceitarem corno mediador para ir a
que é colocada ou se põe no lugar de Deus. Esta profissão de fé deve Deus. Porque sempre vivo, está pronto a interceder por eles (v. 25). O
estar gravada profundamente no coração de cada israelita. Ela deve ser sacerdote israelita, ao invés, morria; a interc'essão perpétua de Cristo
a sua única convicção para sempre. consiste em que Ele, no céu, está continuamente mostrando ao Pai a
O texto fála que esta catequese básica é para «hoje». Isto é, ela sua humanidade, oferecida e imolada por nós, enquanto diante do Pai
deve nortear sempre e em toda parte a vida do povo de Israel e de nutre em si o desejo ardente e eterno de nossa redenção.
todo aquele que acredita neste Deus Libertador. Esta catequese deve Os v. 26-28 concluem a pericope concernente a Melquisedec, reto-
ser sempre atual; ela dev:e ser presença constante na existência de cada mando quanto se dissera de Jesus, em especial de sua total isenção de
israelita. pecado. Adernais, servem de transição para os_ capítulos seguintes, onde
se ilustra o Pontifice eterno, cujos pr-edicados foram anunciados em Hb
Bihliogra}ia: L. P e r 1 i 1, Bundeslheo/ogie im Allen Teslament, WMANT 36 7,1-25. Cristo é o Sumo Sacerdote, eterno e perfeito, de que a humani-
Neuklrchener Verlag, l!Jfi9; R. P. t\t e r e n d ln o, Die Zeugnisse,- die Sat2ungen und
die Rechie. Ueherlfrferungsgeschit:IJl!iche E1111iigungen zu Deut 6, ln: Bausteine hihUcher dade necessitava. Tais versículos são como um hino que -brota da
Theologie; fs für O. j. Bo11erweck. BBB 50 (1977) 185-208. humanidade reconhecida por ter, enfim, encontrado o Sacerdote perfeito.
Aparecem aqui, em síntese, as qualidades descritivas da sublime figura
Pedro Kramer, O.S.F.S. de Cristo, sacerdote supremo:
Porto Alegre, RS
1. Sempre o ministério sacerdotal foi ê~isa série;; para qualquer
sacerdote se exigem santidade e separação dos pecadores (Lv 10; 21,6-15;
22,2-9; Ez 30,19s; SI 23,3s). Entretanto, Jesus o foi infinitamente mais
Segunda leitura: Hb 7,23°28 (v. 26): - «santo» já em sua concepção (Lc 1,35). - «inocente» em
seu relacionamento com os homens, sem malícia, simples e reto, -
Contexto. Hb 7 apresenta Melquisedec (Gn 14,lSs), rei e sacerdote, «imaculado» por sua pureza interior, - «separado dos pecadores» por
como figura profética de Cristo (v. 1-3), superior a Abraão e a Levi não ter pecado, - «elevado acima de todos os céus» porque transcen-
(v 4-10), realçando o sacerdócio de C_risto que suplantou o 1evítico dente, na ordem espiritual, a todas as criaturas. Intérpretes há que
(v. 11-25). O sacerdócio do AT foi est~belecido segundo a prescrição vislumbram nessa expressão a ascensão, quancJo Jesus se apartou defi-
de uma lei humana, enq_uanto o de Crpsto, à semelhança daquele de nitivamente do mundo pecador. ~
M·e-Jquisedec, se impôs pelo poder de sua imortalidade (v. 16): este
eterno, aquele passageiro. Nos v. 1-10 o autor falara diretamen1e de 2. Cristo não necessita oferecer diariamente vítimas por seus
MeJquisedec, indiretamente de Cristo. Agora (v. 11-25), refere-se direta- pecados e pelos do povo, como acontecia com- os sacerdotes da antiga
mente a Cristo e indiretamente a Melquisedec. Aliança. Com efeito, Jesus não teve pecado para expiar e pelos do povo
Abolido o antigo sacerdócio, ficou abolida também a correspondente foi suficiente uma vez por todas oferecer-se a si mesmo (v. 27). Eis
Lei mosaica (1' aliança), notória por sua debilidade e inutilidade, a diferença entre os dois sacerdócios: o Ievítico sacrificava todos os
embora tenha suscitado melhor esperança de chegar a Deus (vv. 18s). dias, antes por seus pecados, depois pelos do povo; - o de Cristo
Com isso Jesus inaugurou definitivamente uma nova etapa religiosa, sacrificou uma só vez e somente para o povo, porquanto não carecia
muito mais elevada e santificadora. Para demonstrar essa mudança, pessoalmente de expiação por estar sem pecacto. Com sua ação sacer-
dá-se ênfase ao texto do 'SI 109,4 que fala do sacerdócio de Cristo dotal continua ( = diária), não precisa reiterar· sacrifícios, porque o seu
«segundo a ordem de Melquisedec», com o que se patenteia a conti- é único, perfeito, definitivo. O sacrifício «diári~», segundo uns, seria o
nuidade com o que antecedera (v. 11.15.17.21). anual, no dia da expiação (Yôm Kippur), embora houvesse, no AT, o
Texto. O novo sacerdócio apresenta algumas características: 1) não holocausto vespertino que também possuía caráter expiatório (Ez 29,38-42;
é um sacerdócio segundo a ordem de Aarão, mas segundo a de Melqui- Nm 28,3s). O autor de Hb, por vezes impreciso no expressar-se, parece
sedec (v. 11), porquanto não é hereditário e perdura eternamente na prescindir da questão de tempo; o sacrifício «diário> conotaria a sua
mesina pessoa (SI 109,4); - 2) ele infunde uma esperança melhor, a freqüência. É o sacrifício da cruz, plenamente eficaz em termos de
qual nos possibilita ir a Deus com maior confiança, pois, surge do redenção, conttastando com o do sacerdócio Jevitico, sempre repetido e
perdão e da reconciliação com Ele (v. 19; Rm 5,1-2; 8,14s; Ef 2,18); - incapaz de realizar a salvação. As missas que, por ordem de Jesus, se
3) foi instituído por Deus· «com juramento», o que não acontecera multiplicam .diariamente, são um memorial do Calvário, aplicando-nos os
com o levítico (v. 20s; SI 109,4), em outros termos: o sacerdócio de méritos infinitos do sacrifício da Cruz. No v. Z1 se 'diz claramente, pela
Cristo é mais exce1en1e que o de Aarão, porque instaurou uma aliança primeira vez, que Jesus é a um tempo sacerdote e vitima.
mais perfeita (v. 22); um juramento se justifica em decisões de grande
importância e para ressaltar a es1abilidade do que se jura (v. 23-24). 3. Os sacerdotes da Lei mosaica eram homens, sujeitos a fraquezas
morais e à morte. Agora, porém, na era do juramento (vv. 20s), Deus
- 4) O sacerdócio de Jesus é uno, permanente, integro e imutável, ao estabelece em definitivo, como Sumo Sacerdote, o FILHO que é eterna-
passo que o Jevítico era múltiplo, transitório, perecível, não atingindo a mente perfeito (v. 28). Aqui há o contraste entre a precariedade da

478 479
Lei e a perfeição da nova aliança, entre «homens» (fra~o~) e «Filho» políticos, os teólogos (conservadores e progressistas) se fecham à vinda
(forte vitorioso como sacerdote), possuidor daquela v1z1nhança co_m do R'E!ino de Deus (salvo o escriba no trecho proposto hoje: a e-xceção
Deus 'que empresta ao seu sacerdócio urna eficácia infinita. Jesus . nao confirma a regra!) enquanto os pequeninos e os pobres representados
é apenas homêm, senão _,também Filho de Deus. O termo «p.erfetto», pela pobre viúva (12,41-44), abrem-se totalmente a Õeu; porque- prati-
aplicado a Cristo, pode significar que Jesus, com s.eu~ sofrt!11_entc:s, cam sem medida o grande .mandamento do Amor e da misericórdia.
levou a cabo a obra salvífica do Pai ou aii;ida a sua propr1a gl.~rif~caçao
(ascensão); Ele tornou-se, <&perfeito:.1> ·em virtude de sua expenenc1a em 2. Comentário do texto
assumir a dor habilitando-se inteiramente e para sempre a exercer a
sua função eU-: favor dos.-_ homens - a salvação. A «disputa» entre ]esUs e os escribas nos é narrada pelos três
sinóticos: Mt 22,34-40; Me 12,28-34 e Lc 10,25-28 (p. 18,18-19; 20,39-40).
Biblionrafia· L T u r r a d o Biblia Comentada, BAC/Madrid, 1955; O. K u s s, Mt e Lc se enquadram mais num contexto de controvérsia porque,
La Letterâ Al!il ihrt'i, i\\o"rcemiina/Brescla, 1966; F. J. Se hEi e ~,se, ~J!f s~olaBAªC~
Hl!hrt'US Vozes Petrópolis 1970· J'1. N i e o 1 a u, La Sagrada scri ura, 1• segundo eles, o legista interroga ao Cristo para <&prová-lo» (Mt 22,35 =
i' P.iladrid.' 1962; -F. A. D a 1't1 e r.' A Carta aos Hebreus, Paulinas, São Paulo, 1980. Lc 10,25).
l1 1. Ver 0 comentário dos g., e 11}9 Domingos do Tempo Comum, Ano B.
Me é o único dos evaÍtgelistas a relatar um episódio -elogioso para
' um doutor da lei, como Lc' é o único a citar um exemplo de conversão
P. Matheus F. Oiuliani, S.A.C. de um rico (19,1-10) ! Em Me, o escriba nos é apresentado de modo
Santa Maria, RS
simpático; torna-se até uni discípulo entusiasta de jesus. Por isso, o
diálogo enlre o Cristo e o legista não é nada conflitivo. Apresenta-se
Terceira leitura: Me 12,28b-34 em duas partes bem distintas:

<&Qual é o primeiro de todos os n1andamentos?» - resposta de Jesus ao escriba (v. 28-31);


- resposta do escriba a Jesus (v. 32-34).
/
1. O contexto
2.1. Resposta de jesus ao escriba (v. 28-31)
A pregação do Cristo não foi pacífica. Desde o inicio, suscitou a Os escribas pertenciam quase todos ao farisaismo. Daí entendemos
oposição na sua própria terra (controy~rsias g~Ji/aifas: 1 Me 2, 1-~.3.5) melhor porque o nosso doutor da Lei ficou feliz da vida depois. de ter
e também na capital espiritual e pohtica do 1uda1sm~ (controvers1!'s ouvido Jesus calar a boca dos saduceus que não acreditam na ·ressur-
hierosolimitanas: Me 11-12). Destas últimas, podemos dizer que cons1&- reição (12,18-37) na qual, pelo contrário, acreditam os fariseus (cf.
tem na revelação pública de jesus diante de hostiJidade crescente de At 23,6-8).
seus adversários. A secçãO começa com a entrada triunfal de Jesus na Entusiasmado, o escriba faz uma pergunta freqüentemente debatida
cidade santa (Me· 11,1-1 I)', logo mitigada pelas s~as instruções sobre a nas escolas rabínicas: «Qual é o mandamento, o primeiro de todos?»
figueira estéril (11,12-14 e
20-26) e pela expulsao d?S vendedores __ do (v. 28b). Com efeito, os rabinos contavam um total de 613 mandamentos,
templo (11,15-19). Os priiiciJ?es dos sacerdotes, os. escribas e os anc1aos 365 enunciados positivamente e 248 _negativamente. Nesta selva procura-
contestam-lhe então a autoridade de fazer tudo isso (11,27-33). _ vam definir qual preceito era o maior.
Depois da paráboJa dos vin~ateiros homicidas CI.2,.1-12) -: a1usao O famoso rabino Hillel (+ 20 aCn) já tinha dado a sua resposta:
clara à paixão e morte do Messias -, temos. uma serie de seis cenas <&Aquilo que é detestável P,ara ti, não o faças a teu próximo: esta é
dirigidas aos grupos mais irilportantes da sociedade: toda a Lei, o resto só é comentário». Um outro rabino, Aqiba, dizia
a mesma coisa de modo positivo desta vez: «Amarás ao teu próximo
- os fariseus: teólogos leigos progressistas, mais ligados ao povo como a ti mesmo: é o princípio fundamental de toda a Lei».
(v. 13); 1 . O célebre Tratado das-:'" Duas Vias, um pequeno código de móral de
- os herodianos: políticos partidários do rei I-Ierodes Anhpas, com origem judaica mas adaptado ulterior1nente pelos Cristãos (foi traduzido
os quais os fariseus fizeram aJiança (v. 13); em grego. pela Didaché e ftambém em latim sob o título de Doctrina
- os saduceus: teólogos conservadores pertencendo ao alto clero Apostolorum), abre-se sobre o tema sapiencial das <&duas vias» (SI ª1,6;
(v. 18); Pr 4,18-19; 12,28; 15,24; E_clo 15,17; 33,14), uma levando à vida, a outra
- os escribas: moralistas e professores da Lei (v. 28,- 35 e 38); levando à morte (Dt 30,15-20). O tratado começa definindo a «via da
- os ricos: pertencem à classe alta e abastada da sociedade (v. 41). vida» de modo positivo: «Tal é a via da vida: primeiro, an1arás ao
jesus dirige-se a todas as autoridades civ~s ·e reli~iosas que .exerce_m Deus quem te fez; segundo, ao teu próximo como a ti mesmo»º (1,2).
uma. influência importante. na sociedade. As 1ntervençoe~ d? Cristo sao Continua de maneira negativa: «Tudo o que querias que não te aconte-
• nitidamente controversísticas, menos justamente a do pr!me1ro dos man- cesse, tu também não o faças a outrem» (1,3a). Encontremos no primeiro
damentos peJo menos na recensão marciana ( 12,28-34). evangelho, de maneira dispersa, quase todos os elementos essenciais
É i~portantíssimo notar que Jesus vai encerrar ª..
parte das. contro- do Tratado das Duas Vias: Mt 5,14-48 (o sal e 3 luz - o cumprimento
da Lei - a radicalização da Nova Lei - os maus desejos - a repu-
vérsias hierosolimitanas com a parábola da pobre viuva. Os ricos, os
diação - o juramento - a vingança - o amor dos inimigos); 7,12-14

480 481
'~
:
I

(o preceito áureo - as duas vias); 19,16-26 (o jovem rico); 22,34-40 (o


gfande mandamento). Exerceu também uma influência menor em S.
Paulo: Rm 12,16c-21 (vencer o mal com ·o bem); 13,8-10.12 (quem
ama aos outros cumpre a Lei); OI 5,13-14 (o amor cumpre Ioda a Tema principal
Lei); !Cor 12,31b e 13,4-7 (qualidades do amor). ·
Voltando à resposta de Jesus Cristo no Evangelho de Me, consta- Amor x Idolatria
tamos que não inova nada; a)ia.se à esco1a de Hillel e ao Tratado das
Duas Vias. Encontramos entretanto uma importantíssima inovação nos
outros sinóticos, quando jesus iguaJa os dois mandamentos um ao outro Sugestões para a homilia
(dizendo que «o segundo é semelhante» ao primeiro: Mt 22,39a) ou
quando os funde simplesmente num único (L~ 10,27). A versão marciana Introdução
deixa ·aparecer uma anomalia: à pergunta d,o escriba («Qual é o man-
damento, o primeiro de todos?» - v. 28b), jesus responde citando dois,
preceitos! «0 primeiro» (v. 29a) é uma citação do famoso «escuta Israel» Amar a Deus, amar ao próximo. Há coisa mais repetida em
de Dt 6,4-5) e «o segundo» (v. 31a) é uma retomada de Lv 19,18. Há sermões, conferências, retiros, palestras, encontros? Haveria ne-
entretanto uma . inábil tentativa de fusão dOs dois mandamentos num cessidade de lermos o Evangelho deste domingo, para mais
só, com a conclusão do v. 31b: «Não há outro mandamento maior uma vez repetirmos e ouvirmos repetir o mandamento do amor?
(singular) do que estes ·(plural)». '
E, no entanto, é necessário proclamá-lo sempre de novo e
2.2. Resposta do escriba a jesus (v. 32-34) aprofundar também teoricamente a centralidade do duplo man-
damento para a vivência cristã. O texto do Evangelho deste
A segunda parte da narração, própria a Me. também é estranha: domingo e a leitura do Deuteronômio propiciam aprofundar a
como explicar o v. 34 («E jesus, vendo que falara sabiamente. lhe
disse: 'Não estás longe do Reino de Deus'») se o legista se contenta raiz teo-lógica do amor a Deus e ao próximo.
com uma pseudo-resposta, citando literalmente o que o próprio Cristo
acabou de dizer?
Na realidade, Me 12,32-34 assemelha-se mais com Lc 10,25-28 do 1. Amor a Deus x idolatria
que com Me 12,28-31 por três principais motivos:
2.2.1. A resposta do escriba não estabelece mais a distinção entre . Ao responder à pergunta sobre o maior mandamento,' jesus
os dois mandamentos que sãoJ desta vez, citados um na seqüência do cita o texto do Deuteronômio que todo judeu piedoso repetia
outro, unidos pela conjunção de coordenação e. Por outro lado, é o como profissão de fé e compromisso de vida. O amor total e
doutor da Lei, e não mais o Cristo, que cita Dt 6,4-5 e Lv 19,18.
Entendem-se melhor então as felicitações de Jesus pela sua boa resposta. absoluto a Deus é fundamentado na unicidade de Deus'. Javé
é o único Deus, por isso não dispersarás teu coração, honrando
2.2.2. Houve entretanto uma pequena modificação na resposta do a outros deuses. Centrar a vida em Deus é o programa que
legista: o termo «entendimento» (v. 33) substitui o de «alma» (v. 30).
O vocabul~rio mais «intelectual» lembra o de Lc e de Paulo. Dt 6 apresenta ao povo de Israel.
A relação com a unicidade de Deus leva-nos a opor o amor
2.2.3. Enfim, Me introduz um elemento novo: amar a Deus de todo a Deus exigido pelo Deuteronômio à prática da idolatria. Ido-
o coração e ao próximo corno a si mesmo «é muito mais do que todos
os holocaustos e sacrifícios» (v. 34b). É um tema caro ao profetismo latria é adorar o não-adorável, absolutizar o relativo, pôr como
(Os 6,6; IS 15,22; SI 40,7-9), retornado duas vezes por Mt (9,13b; valor supremo da existência o que é um valor não-último. Se
12,7). A adição marciana equivale à da parábola do «Bom Samaritano» Javé é o único Deus, toda tentativa de centrar a vida em' outra
que Lc conta imediatamente depois da pergunta do legista (Lc 10,29-37). realidade que Javé, o Deus libertador, é idolatria.
A atitude misericordiosa do Samaritano~ Jesus opõe a atitude legalista
do sacerdote e do Jevita que deixaram de praticar o grande mandamento Mas a idolatria já não é algo ultrapassado? Os israelitas
do amor sob o insidioso pretexto de não incorrer numa impureza ritual do tempo do Deuteronômio poderão ter sido tentados pela
que os impediria de oferecer holocaustos e sacrifícios no templo! idolatria dos povos vizinhos e dos povos dominadores e vito-
rioso~ de então. Os contemporâneos de jesus também poderão
Bibliografia: Veja 99 Domingo do Tempo Comum, Ano B, p. 300.
ler sido tentados pela religião dos gregos e dos romanos. Mas
Pe. Hugues d' ANS nós hoje, em nosso mundo cristão ...
Lins, SP Exatamente nós hoje somos - e fortemente - tentados e
até compelidos à idolatria. Porque idolatria não requer templos

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.
1.
~

que se considerem formalmente tais, nem estátuas que se ad?rem. adoradores. E insaciável.
A idolatria está presente na vida, quando o valor determinado Mas não apenas os próprios adoradores são vitimas. Tam-
de nossa existência é qualquer bem que não seja o Bem supremo bém outros a quem os adoradores não duvidam em sacrificar
nem conduza a ele. para poderem aproximar-se mais do seu deus.
O Documento de Puebla recorda o perigo moderno da ido- E o que acontece também na idolatria capitalista vigente.
latria e apresenta a riqueza, o poder e o prazer como os três Para acumulação de capital nas mãos de poucos, sacrifica-se
1. idolos predominantes em nossa cultura .. A sociedade capitalista toda uma população, não se respeitam as pessoas humanas,
em que vivemos converte a riqueza em ídolo, levando as pessoas negam-se os direitos mais elementares como o direito à alimen-
a absolutizá-la e a concentrar todo seu esforço em obtê-la ou tação suficiente, à moradia decente, à saúde etc. Em defesa da
cobiçá-la. O dinheiro é o valor supremo dessa sociedade. Daí ríquez<1 privada de poucos, regimes de força não duvidam em
a predominância do capital sobre o trabalho e a brecha crescente torturar, seqiiestrar, exilar, matar. Ou pelo menos não dão prio-
.' entre ricos e pobres. Para assegurar a .ordem centrada no cap1-
tal, esiabelecem-se regimes de força, mais ou menos disfarçados.
ridade à eliminação da fome, da falta· de habitação, da carência
em educação. . . O incentivo ao sexo barato e impessoal faz da
O poder é um meio de garantir a alguns poucos o acesso tran- pessoa mero instrumento, coisa que se usa, se troca e se joga
qüilo à acumulação de ·capital. O prazer, por sua vez, é válvula fora.
de escape nessa luta de vida e morte pela posse do deus supre- Em uma palavra: os ídolos capitalistas exigem sacrifícios
mo e, ·ao mesmo tempo, prova do poder desse deus que tudo humanos. Vidas humanas em hecatombe lhe são oferecidas cons-
compra, inclusive o «amor» (entendido dentro de uma perspec- tantemente. Assim se mostra como também o amor ao próximo
tiva egocêntrica como prazer erótico). Os três · constituem a só se consegue manter a partir da adoração e do amor ao único
trindade suprema do panteão capitalista. Deus verdadeiro. Ao concluir sua palavra ao escriba, jesus une
i
1
Amar a Deus sobre todas as coisas tem assim sua face os dois mandamentos que ele antes distinguira: «Outro manda-
1 concreta hoje na atitude crítica ao copsumísmo desenfreado e mento maior que estes não existe» (Me 12,3lb). O amor a Deus
no combate à compreensão e realização capitalista do mundo. e o amor ao próximo são um só, inseparáveis como as duas
. Os templos dos ídolos de hoje são as grandes lojas e supermer- faces de uma moeda. A adoração ao Deus verdadeiro traz consigo
cados . onde tudo se oferece a quem tem; os palácios, onde se uma atitude e uma atuação de amor eficaz ao próximo. Se isto
admi;lstra um poder discricionário; os cinemas e casas de diver- não acontece, precisamos perguntar que ídolo estamos adorando
são, onde se vende um sexo despersonalizado e barato. sob o nome de Deus. A idolatria traz consigo desrespeito ao
próximo, por mais que enfatizemos nossos propósitos de amá-lo.
2. Amor ao pr6ximo x idolatria
3. Reino de Deus x idolatria
jesus acrescenta ao primeiro mandamento um segundo que
lhe é inseparável: o amor ao próximo. Aqui parece que nos Quando o escriba reconhece o acerto da resposta de jesus
apartamos da problemática da idolatria, Total engano. Qua~do e que no amor - e não em atos rituais ( cf. Me 12,33) -
se idolatra algo, põe-se o finito no lugl'r do infinito, o relahvo reside priméiramente a adoração a Deus, o Senhor o elogia:
no Juuar do absoluto. Que decorre dai, na prática? O finito, o «Não estás longe do Reino de Deus» (Me 12,34). De !ato.
relati;o é sempre limitado, isto é, afirma-se em oposição ao porque o Reino de Deus, tema central da pregação e da vida de
outro. Para um corpo ocupar determ.i,nado lugar no espaço, jesus, é reconhecer a Deus como único absoluto no concrc!:i
outros precisam ceder, ser deslocados, comprimir-se, porque, da vida. O Reino acontece, quando pospomos a ele todos os
sendo. finitos, delimitados, são eles mesll\os enquanto não começa demais valores. O Reino acontece, quando Deus é o valor domi-
o outro. Um ente desse tipo, elevado à condição de ser supremo, nante na existência (cf. MI 13,44-45). O Reino é, portanto, por
continua com a mesma tendência: tudo deve ceder para que excelência adoração a Deus e rejeição aos ídolos. Como conse-
ele se possa afirmar como valor supremo. Por isso, todo ídolo qüência, o Reino se concretiza, onde a pessoa humana é respei-
esmaga, suprime a quem não o serve, consome seus próprios tada e amada como irmão (e não postergada e odiada como

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concorrente). Por isso mesmo, o Deus do Reino não .é apresen- Trigésimo Segrmdo Domingo
/ tado por Jesus como Pai qne perdoa, que acolhe o fraco, o
do Tempo Comum
pobre, o pequenino. O Reino se realiza, onde o Deus, do Reino
está em primeiro lugar, é o supremo da existência. E o Deus Pistas Exegéticas
do Reino é Pai, que será vivido como valor dominante através
da vivência da fraternidade. Afirmar do único Absoluto que ele Primeira Leitura: 1Rs 17,10..lli
é Pai, vem a ser afirmar que o valor supremo de nossa vida é
<Durante muito tempo a viúva teve o que comer>
amor: amor filial com relação ao Pai, amor fraterno com relação
aos irmãos. Tudo o que foge a isso é idolatria. Como 2Rs 4,42-44 (e!. p. 366) também esta narração (17,7-16)
O escriba, reconhecend,0 a identidade entre adoração a Deus, é uma lenda profética. Comentando-se 2Rs 4,42-44 indicaram-se os
amor a Deus e amor ao próximo (ou negativamente entre idola- elementos principais deste gênero literário, a saber: oráculo - evento
- confirmação. Encontram-se estes elementos em v. 9 (oráculo) . e
tria e morte do irmão), não está longe do Reino de Deus. E v. 10 (evento); vv. 13-14 (orâculo); v. 15 (evento); v. 16 (confirmação
Jesus o declara abertamente, porque aqui está a medida de de que no evento se realiza o oráculo).
nossa religião. Estamos ligados a Deus, adoramo-lo de verdade, ·Esta mesma estrlltura literária usa-se em lendas com um conteúdo
quando o amor ao proximo é realidade em nossa vida. Senão totalmente diferente. No caso de 2Rs 4,42-44 e lRs 17,7-16 existi! se-
todo gesto· ritual de adoração é oco. Como também haverá muitos melhança nos motivos. Em 2Rs 4,42-44 é o motivo da multiplicação
dos pães, encontradiço -também no Novo Testamento. Na p. 366
que se pensam ateus e, no entanto, são verdadeiros adoradores mostrou-se que os evangelistas, ao narrarem a mulliplicação dos pães
do Pai em Espírito e verdade ( cf. Jo 4,23). de Jesus, retomaram certos detalhes de 2Rs 4,42-44 ou, então, aludem
Ter por Cristo acesso ao Pai é seguir o caminho de Jesus: ao maná. Assim insinuam que Jesus está na linha dos grandes profetas
ser para os outros. O resto é retórica. do Antigo Testamento e ao mesmo tempo os ultrapassa. Fenômeno
semelhante verifica-se, comparando-se rns· 17,7-16 com 2Rs 4,1-7 (mul-
tiplicação milagrosa por intermédio de, respectivamente, Elias e Eliseu).
Francisco Taborda, S.J. No comentário de !Rs 19,1-18 (c!i p. 383) pode-se constatar
Curitiba, PR como, pel<> mesmo procedimento literárfo, quis-se sugerir que Elias
estã na linha de Moisés. <rNesses paralelos de motivos vemos como
dois homens, Elias e Moisés (etc.), são ··vistos e apre!;entados sob o
mesmo prisma, isto é, com o olhar da eXperiência · religiosa que nunca
perde de vIBta o diálogo entre Deus ·e o homem, mesmo quando
parece narrar particularidades históricas.'. • Nesses contos ou nessas
lendas não devem ter sido comunicados acontecimentos históricos únlcos,
mas uma determinada figura profética. :. é entendida e apresentada
como portadora de uma afirmação teológica> (Hermann, p. 101).
Qual é a mensagem particular de lRs 17,7-16? O profeta Elias e
outros profetas de Javé contemporâneos ·foram perseguidos sob insti-
gação da rainha Jezabel, filha de Jttobaal, rei de Tiro na Fenícia. O
rei de Israel, Acab, sob influência da Rainha, aquiesceu demais em
permitir o culto idólatra de Baal, deus da fertilidade. Mesmo assim
o pais é vítima de uma fome. Elias interpreta esta fome como um
castigo de Javé por causa da idolatria. Ora, para escapar à perse-
guição e à fome, o profeta de Javé refugia-se na pátria da rrunha
jezabel, isto é, em terra pagã. É aí, nesta terra pagã, que Javé lhe
1 vem em socorro. E como? Por intermédi~ de uma viúva pobre e pagã
- contraste da rainha poderosa 1 - que: presta ouvidos à palavra do
profeta e acredita no Deus dele.
Este jogo de contrastes e de pamdo;<os evidencia bem que as leis
do gênero literário e as limitações de certos motivos e esquemas não
diminulram em nada a expressividade dos recursos literários da. lenda
profética. Em outras palavras, os autores do Antigo Testamento sou-
beram contar histórlasl -Nestes paradoxos· transparece uma .ironia sur-
preendente. O profeta fugitivo esconde-SE: na pátria de JeZabeil Este

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