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O enigma do Homem:
Entre imagem de Deus e animal

António Martins
Universidade Católica Portuguesa (UCP), Lisboa

À entrada de Tebas, enfrenta Édipo a terrível prova de vida ou de


morte colocada pela Esfinge, o monstro que devora os humanos que não
saibam decifrar os enigmas: «Existe um animal na terra que pode ter qua-
tro, três ou duas pernas, mas que se chama sempre com o mesmo nome. É
a única criatura entre as que se movem na terra, no céu e no mar que muda
de natureza. Quando caminha sobre o maior número de pés, a sua veloci-
dade é menor». Édipo decifra o enigma, reconhecendo aí a imagem do Ho-
mem. Quando criança caminha com quatro pernas, em adulto com duas e
na velhice com três, apoiado na bengala. O enigma da condição humana é
decifrado, a razão vence a irracionalidade, o Homem a besta. Esta narrativa
mítica é aqui convocada para afirmar a originalidade do animal-Homem, o
único capaz de tentar decifrar o enigma da sua origem e do seu destino,
sem deixar de se reconhecer animal enquanto tal. O mais indefeso dos ani-
mais, permanentemente desprotegido, é ao mesmo tempo capaz de superar
as suas carências biológicas e a adversidade do meio ambiente pela invenção
da cultura, pelo engenho da sua inteligência, pela sua capacidade de socia-
bilidade e solidariedade. Ser de fronteira entre a animalidade que o consti-

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tui e a consciência que o eleva, o Homem é capaz de se transcender no


meio da cadeia evolutiva e contrariar até o sentido da própria evolução.
Na dialéctica Homem-animal apresentam-se diante de nós dois cami-
nhos opostos: homologar o homem ao animal próprio do monismo mate-
rialista dos reducionismos biológicos e do evolucionismo materialista, ou,
o dualismo que afirma uma clara oposição entre espírito e matéria, entre o
Homem e o animal, contrariado pela experiência concreta da condição hu-
mana e pelo contributo das ciências naturais. Entre o reducionismo do hu-
mano ao animal e a oposição inadmissível entre matéria e espírito, natureza
e cultura, evolução e consciência, há lugar para um meio-termo que acolhe
com serenidade a colocação do Homem na cadeia evolutiva da vida e par-
ticularmente dos primatas, mas não abdica de procurar uma diferença on-
tológica para assinalar a emergência do especificamente humano. No
equilíbrio entre biologia e ontologia decide-se o específico do animal ra-
cional (ou relacional, preferimos dizer) que é a pessoa humana. Esta via de
meio, no respeito pela metodologia e especificidade própria dos diferentes
saberes, tenta ensaiar uma compreensão mais aprofundada da condição
humana, procurando cruzar o discurso das ciências experimentais com
uma exigência metafísica.

A dialéctica Homem-animal: a revolução darwinista

A publicação em 1859 por C. Darwin do livro On the Origin of Species


by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Racesin the
Struggle for Life (A Origem das Espécies por meio da Selecção Natural)1 marca
uma revolução científica e antropológica na relação do Homem com o ani-
mal. Darwin rompe com o modelo naturalista de espécie enquanto uma es-
sência invariável e introduz, para caracterizar a espécie, a perspectiva da
mudança, da adaptação, da selecção natural, da luta pela sobrevivência, da
competição entre todos os seres vivos2. Nesta perspectiva, a teoria evolutiva
coloca o primado na mutabilidade, na progressividade e radicaliza a con-

1 Cf. C. Darwin, A Origem das Espécies, Lisboa 2005. A edição é da Europa-América com tradução de Dora
Batista.
2 Cf. J.-M- Maldamé, «Enquête de l’Homme. Notes de lecture sur la question de la place de l’humanité

dans le monde des vivants», Revue Thomiste 109 (2009) 254-257.

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tingência da vida. Se a questão de Deus não é estranha ao processo cientí-


fico de Darwin, este opta, contudo, no livro, por não se pronunciar em ma-
térias metafísicas e de crenças religiosas. O teórico da evolução nunca
deixou de ser um filho fiel da Igreja de Inglaterra.
As reacções intempestivas nos meios religiosos ingleses a Darwin pela
simplificação da sua teoria evolutiva na afirmação de que «o homem veio
do macaco», levou-o a publicar em 1871 The Descent of Man, and Selection
in Relation to Sex (A Descendência do Homem e a Selecção Sexual), onde es-
tuda a origem da humanidade com todo o rigor científico, sem nunca re-
correr ao argumento de uma intervenção divina3. Será nesta obra que mais
especificamente Darwin elabora a sua visão de Homem, contextualizada
no optimismo reinante da revolução industrial e da expansão do colonia-
lismo ingleses. Contudo, o cientista não hesita em afirmar que a originali-
dade do Homem situa-se na cultura e na sua capacidade de decidir
moralmente (estávamos na luta contra a escravatura), inserindo-se assim,
claramente, na tradição humanista cristã ocidental, A questão que, en-
quanto crente, Darwin se confronta é a do mal e do papel da morte na se-
lecção natural. Para isso não foi irrelevante a morte da sua filha. A
sinceridade da sua afirmação, que é expressão do seu pathos pessoal, «o so-
frimento de uma criança é um mal infinito», pode ser dita por qualquer ho-
mem, crente ou não crente, pela sua irrenunciável verdade existencial.
O evolucionismo darwinista, ao situar o Homem na cadeia evolutiva
das espécies, contribuiu decisivamente para a passagem de um paradigma
antropológico dualista a um outro monista. A tese de que o homem pro-
vinha do animal foi, recentemente, desenvolvida pela biologia numa ou-
tra, de incidência ontológica, a de redução do Homem ao animal (o
Homem é só animal). E se as doutrinas evolucionistas popularizaram a afi-
nidade do homem com o animal, as recentes teorias genéticas põem em
relevo as semelhanças do Homem com os grandes monos, seus parentes,
que têm em comum o mesmo património genético. Com a identificação
do Homem ao animal fica posta em causa a singularidade ontológica do
próprio homem; este era, no fundo, o temor que palpitava na oposição
teológica às teorias evolucionistas4.
3 Cf. os estudos de J. Arnould, La théologie après Darwin. Eléments pour une théologie de la création dans une

perspective evolucionniste, Paris 1998; ID., Requiem pour Darwin, Paris 2009.
4 Cf. J. L. Ruiz de la Peña, Imagen de Dios. Antropología teológica fundamental, Santander 1988, 267-268.

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Na sequência da radicalização de uma leitura materialista da evolução,


o reducionismo biológico transporta para o plano científico os pressupos-
tos do estruturalismo neopositivista francês dos anos 70, ou seja, a recusa
da ideia de sujeito e a dissolução do humano numa pura objectividade. Este
debate foi, particularmente, protagonizado pelo biólogo J. Monod e pelo
antropólogo E. Morin no campo da etologia5 e por E. O. Wilson no campo
da genética comparada, a chamada sociobiologia6, assimilando o homem
ao animal e reduzindo as ciências humanas às ciências da natureza.
Recentemente, a obra de Jean-Marie Schaeffer, O fim da excepção hu-
mana7, cujo título é desde logo um programa metafísico, apresenta-se como
uma «desconstrução» da ideia de Homem assente na sua diferença em rela-
ção ao animal (a subjectividade, a sociabilidade, a capacidade de construção
cultural). Defende a tese de que a espécie humana integra-se na continui-
dade dos viventes, no phylum da vida, numa unidade histórica fundamen-
tal8. Não há qualquer «essência» da humanidade que é um produto da
evolução do vivente, como igualmente a cultura é um modo de ser da natu-
reza. Apesar do consenso actual sobre o processo evolutivo, esta tese é bem a
expressão, no pensamento contemporâneo, da dificuldade em reconhecer a
originalidade do humano a partir da construção da teoria evolutiva9. A ho-
mologação do Homem ao animal está longe de ser consensual e não faltam,
nos diversos campos do saber, vozes contrárias a este reducionismo10.

5 J. Monod publica em 1970 a sua obra Le hasard et la nécessité. Três anos depois E. Morin publica Le pa-

radigme perdu.
6 Cf. E. O. Wilson, Sociobiology: The New Synthesis, Cambridge 1975; Id., On Human Nature, Cambridge

1978.
7 J.-M. Schaeffer, La fin de l’exception humaine, Paris 2007.

8 J.-M. Schaeffer, La fin de l’exception humaine, 154: «Tout l’ordre du vivant tel que nous le connaissons

sur Terre repose sur les mêmes “matériaux”, utilize les mêmes mécanismes moléculaires et cellulaires, se développe
selon les mêmes processus fondamentaux».
9 Cf. J.-M. Maldamé, «Enquête de l’Homme», 273.

10 J. L. Ruiz de la Peña, «La antropología y la tentación biologista», 513: «La homologación del hombre

con el animal [...] ha provocado – y sigue haciéndolo – una ola de rechazos: biólogos (Jacob, Ruffié), filósofos de
la biología (Gehlen, Portmann, Ruse), etólogos (Thorpe, Eibl-Eibesfeldt), genetistas y teóricos de la evolución
(Dobzhansky, Ayala), por no hablar de filósofos, teólogos y psicólogos, señalan en el hombre una originalidad es-
tructural, funcional y ontológica que, sin derogar su insoslayable dimensión biológica, lo hace irreductible a la ani-
malidad químicamente pura».

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A posição do Magistério Contemporâneo

Perante a incompatibilidade reinante da tese evolucionista com a fé na


criação, houve logo tentativas de conciliação. Em 1877, o biólogo católico
inglês G. Mivart defende que o corpo humano procederia de pais não hu-
manos, enquanto a alma seria criada directamente por Deus. A tendência
dominante das Igrejas é de recusa das teses evolucionistas pelo radicalismo
materialista de colocar o Homem ao nível do animal, comprometendo, as-
sim, a perspectiva revelada da diferença e da singularidade do Homem
criado à imagem de Deus. Os campos são extremados, a uma leitura litera-
lista da Escritura opõe-se a cientificidade da evolução. Os escritos do jesuíta
paleontólogo Pierre Teilhard de Chardin, particularmente a sua obra de
síntese Le Fénomène Humain (O Fenómeno Humano), irão influenciar, de-
cisivamente, a aceitação da cosmovisão evolutiva no mundo.
Em 1955, o Papa Pio XII, na sua Encíclica Humani Generis, aceita, fi-
nalmente, um evolucionismo moderado. Admite-se aí a origem do corpo
humano de uma matéria já existente, mas rejeita-se a aplicação da tese evo-
lucionista à alma. Esta é «criação imediata» de Deus (a Deo immediate
creari)11. O grande mérito da Encíclica é o de dar cidadania ao evolucio-
nismo mitigado, tão antigo no pensamento católico quanto as próprias te-
ses de Darwin, dando, assim, um passo significativo no diálogo da fé com
a ciência. A Encíclica revela, contudo, grandes limitações: assenta numa
concepção dualista de alma-corpo. Como se poderá sustentar uma evolu-
ção para o corpo e não para a alma? Poderá haver uma evolução dualista,
apenas de uma parte do homem?12 Uma correcta colocação da questão
deve partir de um dos dados básicos da antropologia bíblica: o homem é
uma unidade substancial de corpo e alma, de matéria e espírito.
O Concílio Vaticano II não se referiu directamente à questão antropo-
lógica da evolução. Na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, de todos os
documentos conciliares aquele em que a reflexão antropológica é mais de-
terminante e teologicamente mais rica13, são apresentados os parâmetros

11 DH, 3896.
12 Cf. J. L. Ruiz de la Peña, Imagen de Dios, 255.
13 Cf. G. Colombo, «La teologia della “Gaudium et spes” e l’esercizio del magistero ecclesiastico», Scola Cat-

tolica 98 (1970) 477-511; L. Ladaria, «L’homme à la lumière du Christ dans Vatican II», in R. Latourelle (ed.),
Vatican II: Bilan et perspectives. Vingt cinq ans après (1962-1987), Paris 1988, 409-422; A. Martins, – «O círculo fé-
razão no Vaticano II», in C. Reimão (ed.), O círculo hermenêutico entre a fé e a razão. Colóquio 22 de Maio 2003, Lis-
boa 2004, 143-156; F. G. Brambilla, Antropologia teologica. Chi è l’uomo perchè te ne curi?, Bolonha 2005, 27-31.

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para uma correcta colocação da especificidade e da singularidade da condi-


ção humana. A unidade dual antropológica é afirmada sem quaisquer equí-
vocos, demarcando os limites irrenunciáveis da antropologia cristã, que se
distancia, ao mesmo tempo, quer do monismo materialista quer do dua-
lismo: «O homem, uno em corpo e alma (corpore et anima unus), sintetiza
em si mesmo, pela sua natureza corporal, os elementos do mundo material,
os quais, por meio dele, atingem a sua máxima elevação e louvam livre-
mente o Criador». Por isso não pode desprezar a via corporal, devendo,
pelo contrário, «considerar o seu corpo como bom e digno de respeito, pois
foi criado por Deus e há-de ressuscitar no último dia». Não se engana,
pois, o Homem «quando se reconhece por superior às coisas materiais e se
considera como algo mais do que simples parcela da natureza». E conclui o
número que estamos a citar: «Ao reconhecer, pois, em si uma alma espiri-
tual e imortal, não se ilude com uma enganosa criação imaginativa, mero
resultado das condições físicas e sociais; atinge, pelo contrário, a verdade
profunda das coisas» (GS 22). O mesmo é dizer a verdade profunda de si
mesmo, irredutível ao material físico e biológico. Na sequência de toda a
tradição cristã, «a alma espiritual e imortal» é a expressão pela qual se ex-
pressa a singularidade ontológica da pessoa humana, que se eleva acima da
matéria. A reflexão conciliar completa-se com o número 24, onde se afirma
a semelhança do Homem a Deus, a analogia entre a pessoa humana e as
Pessoas divinas: «Esta semelhança torna manifesto que o Homem, [é] a
única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma» (GS 22).
Por ser pessoa, o homem está acima da espécie; tem valor por si mesmo. É
fim e não meio. O seu valor é absoluto porque querido por Deus como tal.
O pronunciamento positivo mais explícito acerca da teoria da evolução
pertence a João Paulo II, na sua mensagem dirigida em 1996 à Academia
Pontifícia de Ciências:

«Hoje, quase meio século depois da publicação da encíclica [Hu-


mani Generis], novos conhecimentos levam a pensar que a teoria da evo-
lução é mais do que uma simples hipótese. De facto, é notável que esta
teoria se tenha imposto paulatinamente aos investigadores, por causa de
uma série de descobertas feitas em diversas disciplinas do saber. A con-
vergência, de modo nenhum buscada ou provocada, dos resultados de
trabalhos realizados independentemente uns dos outros, constituem por
si um argumento significativo em favor da teoria».

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Constata-se o consenso actual dos saberes sobre a teoria evolutiva. A


par desta percepção positiva, o Papa introduz uma precisão de linguagem:
«(…) mais do que da teoria da evolução, convém falar das teorias da evolu-
ção. Esta pluralidade afecta, por um lado, a diversidade das explicações que
se têm proposto em relação ao mecanismo da evolução, e, por outro, as di-
versas filosofias às quais se refere»14.
Na pluralidade das explicações filosóficas e antropológicas para a evo-
lução, e daí o pluralismo de interpretações da mesma, nem todas as antro-
pologias de base se equivalem e têm igual espaço de cidadania na teologia
cristã. E num tom mais solene e declarativo, afirma ainda o Papa João
Paulo II: «As teorias da evolução que, em função das filosofias nas quais se
inspiram, consideram que o espírito surge das forças da matéria viva ou que
se trata de um simples epifenómeno desta matéria, são incompatíveis com
a verdade do homem» e «incapazes de fundar a dignidade da pessoa hu-
mana»15. A preocupação é, radicalmente, antropológica, o fundamento on-
tológico da dignidade da pessoa humana. Esta diferença ontológica, «a
passagem ao espiritual», a descontinuidade introduzida na continuidade
biológica evolutiva, é preocupação e tarefa irrenunciável da antropologia
cristã. A singularidade da pessoa humana, irredutível ao material e ao bio-
lógico, é afirmada pelo Papa polaco com recurso à expressão de Pio XII, «a
alma espiritual é criada imediatamente por Deus»16. Apesar da coloração
dualizante da expressão, com a mesma o magistério pontifício contempo-
râneo afirma a especificidade da antropologia cristã, a capacidade relacional
do Homem, a sua abertura transcendente a Deus, a vocação divina que lhe
é constitutiva. A mensagem de João Paulo II define o âmbito da recepção
cristã às teorias evolutivas, a possibilidade ou não de salvaguardarem a es-
pecificidade teologal do homem enquanto imagem de Deus.
A mesma exigência é reafirmada pelo actual Papa, Bento XVI, no dis-
curso à mesma Academia Pontifícia de Ciências, em 31 de Outubro de
2008: «A distinção entre um ser vivo e um ser espiritual, que é capax Dei,
indica a existência da alma intelectiva de um sujeito livre e transcendente.
Por isso, o magistério da Igreja tem constantemente afirmado que “cada
14 Juan Pablo II, Mensage a los miembros de la Academia Pontifícia de Ciencias, 4, in http://www.vatican.va/

holy_father/john_paul_ii/messages/pont_messages/1996/documents/hf_jpii_mes_19961022_evoluzione_sp.ht
ml (29.03.2011: 00.29).
15 Juan Pablo II, Mensage a los miembros de la Academia Pontifícia de Ciencias, 5.

16 Juan Pablo II, Mensage a los miembros de la Academia Pontifícia de Ciencias, 5.

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alma espiritual é directamente criada por Deus – não é “produzida” pelos


pais – e é imortal”. Isto põe em evidência a peculiaridade da antropologia e
convida o pensamento moderno a explorá-la»17. Tal posição não pretende
sustentar por parte dos cristãos posições criacionistas que excluam a huma-
nidade da evolução dos viventes. O magistério pontifício apela, pois, à
questão da especificidade do Homem no âmbito metafísico da acção de
Deus sem deixar de inscrever a humanidade no processo evolutivo. Com
isto estamos no núcleo duro da reflexão que aqui nos congrega, a relação de
continuidade e de descontinuidade entre o Homem e o animal. Como
compatibilizar «continuidade física» com «descontinuidade ontológica» é
tarefa que o Magistério deixa à teologia em sua liberdade de investigação.
Define-lhe, contudo, os limites irrenunciáveis.

O Homem, imagem divina e animal

Verifica-se actualmente, no interior da Igreja, um consenso geral sobre


a evolução; esta impõe-se como a melhor hipótese explicativa das desco-
bertas científicas18. Esse é, por ventura, o aspecto mais significativo do de-
bate contemporâneo entre fé e ciência. Podem-se discutir interpretações e
teorias diversas, até contraditórias nos seus pressupostos metafísicos e em
suas metodologias interpretativas, o facto da evolução apresenta-se hoje
como uma realidade aceite. Nos debates académicos actuais não se põem
em causa o evento da evolução e, em concreto, da hominização. O que não
significa que tudo esteja explicado do ponto de vista científico. De facto, há
hiatos obscuros, sem provas científicas seguras, na construção da teoria de
evolução, onde a verificação dá lugar à probabilidade. O processo evolutivo
não é uma absoluta evidência científica. Por exemplo, a especiação (ou seja,
o aparecimento biológico e morfológico de uma espécie) permanece misté-
rio por explicar para as ciências. As ciências que estudam o evento da evo-
lução (biologia genética, antropologia molecular, paleontologia…) deixam
por explicar a diferença e a originalidade radical do fenómeno humano (do
17 Benedicto XVI, Discurso a la asemblea plenaria de la Academia Pontifica de Ciencias, in http://www.vati-

can.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/october/documents/hf_ben-xvi_spe_20081031_academy-scien-
ces_sp.html (02.04.2011: 23.20). A citação entre aspas no texto papal é tirada do Catecismo da Igreja Católica, nº 366.
18 Cf. G. Martelet, Évolution et creation I, Paris 1998, 80-81; M. T. La Vecchia, L’evoluzione della psiche,

Roma 1995, 203-208.

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Homo sapiens). «Com a introdução de factores unicamente humanos, tais


como a consciência, a intencionalidade, a liberdade e a criatividade, a evo-
lução biológica assumiu a nova veste de uma evolução de tipo social e cul-
tural»19. A passagem do animal ao Homem implica uma ruptura no
horizonte biológico, mas que não exige, de modo nenhum, a negação das
continuidades biológicas, anatómicas e até físicas entre os dois20. A homi-
nização e o aparecimento da mente apelam a uma antropologia com densi-
dade metafísica que dê razão da especificidade do humano, salvaguardando
a continuidade evolutiva e a novidade ontológica.
Na continuidade da história evolutiva dos viventes, é tarefa da antro-
pologia teológica assinalar e explicar, na indigência da linguagem, a especi-
ficidade da condição humana em seu acontecer pessoal. Na sequência da
revelação bíblica, a antropologia afirma que o Homem é criado à imagem
e semelhança da Trindade. Deus em sua comunhão de Pessoas é funda-
mento de toda a realidade e da pessoalidade do próprio Homem, «pois nele
vivemos, nos movemos e existimos» (Act 17,28). Afirma a Comissão Teo-
lógica Internacional, no documento Comunhão e serviço: «É, precisamente,
sobre esta semelhança radical a Deus uno e trino que se funda a possibili-
dade de comunhão dos seres criados com as pessoas incriadas da Trindade.
Criados à imagem de Deus, os seres humanos são por natureza corpóreos e
espirituais, homens e mulheres feitos uns para os outros, pessoas orientadas
para a comunhão com Deus e recíproca»21. Por essa razão, e porque a lógica
da fé em sua radicalidade não se pode opor à lógica intrínseca da realidade
que progride, «os cristãos têm a responsabilidade de colocar os modernos
conhecimentos do universo no âmbito de uma teologia da criação»22.
A criação é acontecimento trinitário: o Pai cria no Filho pelo Espírito
Santo23. A criação aparece, assim, como transbordamento do amor trinitá-
rio para fora de si mesmo. A Trindade, em sua dinâmica pessoal de unidade
e pluralidade, é o fundamento ontológico de toda a criação. A realidade e
nela, particularmente, o Homem surgem da plenitude da comunhão trini-

19 Commissione Teologica Internazionale, Communione e servizio. La persona umana creata a immagine

di Dio, 63, in http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_con_cfaith_doc_


20040723_communion-stewardship_it.html (04.4.2011: 14.45).
20 Cf. F. Fanchini, Le sfide della evoluzione, Milão 2008, 135-142.

21 Commissione Teologica Internazionale, Communione e servizio, 25.

22 Commissione Teologica Internazionale, Communione e servizio, 62.

23 Cf. F.-X. Durrwell, Le Pére. Dieu en son Mystère, Paris 1988, 121.

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tária. Criando por amor, o Deus uno e trino, torna amável toda a realidade.
«O amor é a fonte, o fundo, o sustento e o fim de todo o real»24. A procla-
mação da fé cristã na criação coloca como fundamento de toda a realidade
uma ontologia do amor25. A realidade é, pois, uma grandeza fundada e
digna de crédito. A fundamentação do real a partir de uma ontologia do
amor, ou da relação, constitui actualmente um dos aspectos mais promis-
sores da reflexão teológica, sobretudo quando a base dessa concepção on-
tológica é o ser da comunhão interpessoal da própria Trindade. Antes de ser
uma categoria ética, o amor é uma categoria ontológica26.
Uma ontologia trinitária da criação, como acabámos de esboçar, abre-se,
necessariamente, à cristologia. Cristo é o ponto de convergência e de plena
realização: «Por Ele e para Ele todas as coisas foram criadas» (Col 1,18). O Lo-
gos divino por quem tudo foi feito é o mesmo que se faz carne na história da
humanidade e da matéria (cf. Jo 1,5.14). Na encarnação do Filho de Deus
não é a apenas a condição humana que é assumida. Em sua humanidade,
Cristo encontra-se, ontologicamente com cada Homem em concreto, pes-
soalizando e filializando, «por um modo só de Deus conhecido» (GS 22).
Avançando na nossa reflexão, podemos ainda afirmar que toda a matéria,
toda a expressão de vida vegetal, animal e humana, em sua diferenciada com-
plexidade de estruturação, é assumida e integrada na Trindade pela encarna-
ção e consequente ressurreição do Filho de Deus feito homem. Se como
afirma o Concílio Vaticano II, «o mistério do Homem só no mistério do
Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente» (GS 22), não é forçoso con-
cluir que a complexa e enigmática evolução do universo e do Homem ad-
quirem um maior esclarecimento quando compreendidas à luz de Cristo,
«pois nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade» (Col 2,9).
Na sua homília da vigília pascal de 2006, o Papa Bento XVI ousa in-
terpretar a ressurreição de Cristo recorrendo à linguagem da evolução: «A
ressurreição de Cristo (…) – se nos é permitido utilizar, uma vez, a lingua-

24 J. L. Ruiz de la Peña, Teología de la creación, Santander 19964, 268.


25 Cf. J. L. Ruiz de la Peña, «Materia, materialismo, creacionismo», Salmanticensis 32 (1985) 67; ID.,
«Creación», in C. Floristán, J. J. Tamayo (ed.), Conceptos fundamentales del cristianismo, Madrid 1996, 268. O
conceito de «metafísica da caridade (da agápe)» é também formulado pela Commissione Teologica Interna-
zionale, «Teologia-cristologia-antropologia», Civiltà Cattolica 3181 (1983) 57.
26 Cf. J. H. Walgrave, «Personalisme et anthropologie chrétienne», Gregorianum 65 (1984) 457; D. J.

Hall, Être image de Dieu, Montréal-Paris 1998, 199; P. CODA, «Trinità e ontologia dell’agape», Credere Oggi 21
(2001) 116-125.

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gem da doutrina da evolução – é a maior “mutação”, o salto absolutamente


decisivo para algo de inteiramente novo, que aconteceu na longa história da
vida e dos seus desenvolvimentos (…). É uma brecha na história da “evo-
lução” e da vida em geral para uma nova vida futura; para um mundo novo
que, a partir de Cristo, já para sempre imbuiu o nosso mundo, o reconfi-
gura e arrasta»27. Cristo é, por um lado, a continuidade culminante de toda
a evolução do universo, o ponto de convergência da hominização e da his-
tória humana28; mas por outro, a sua vinda em nossa carne e o dom da sua
vida por nós (morte e ressurreição) é a afirmação do excesso do amor de
Deus incondicional que nenhum dinamismo da história poderia prever e
exigir29. Na continuidade-descontinuidade de Cristo em relação à evolução
do cosmos, da vida e do Homem, simultaneamente de progressividade e de
novidade, podemos encontrar uma esclarecedora analogia para iluminar a
relação de continuidade-descontinuidade do Homem com a evolução da
vida animal.
Fiel à ideia bíblica de homem enquanto imagem de Deus, é tarefa irre-
cusável da antropologia teológica balizar aqueles limites por onde passa
uma correcta afirmação da identidade e da singularidade relacional da pes-
soa. Por essa razão não interessam tanto à antropologia teológica os siste-
mas filosóficos em si, mas se estes salvaguardam aqueles mínimos
antropológicos necessários, fora dos quais se compromete uma cabal com-
preensão cristã do ser humano em sua unidade psicossomática. Situamos
aqui a proposta de diálogo interdisciplinar de J. L. Ruiz de la Peña (1937-
1996) que tem como principal intenção contestar o projecto de dissolução
do homem no animal, da cultura na natureza, de redução das ciências hu-
manas às ciências naturais. Antes de ser teológica, a sua preocupação pri-
meira é humanista. Pois homologar o homem ao animal, reduzir a ética a
um determinismo biológico e genético, é não ter em conta a singularidade
e a originalidade ontológica do ser humano, a sua diferença qualitativa em
relação ao animal.

27 Bento XVI, Homília da Vigília pascal (15 de Abril de 2006), . Cf. Círculo de Discípulos do Papa

Bento XVI, Criação e evolução. Uma jornada com o Papa Bento XVI em Castel Gandolfo, Lisboa 2007, 98.
28 Cf. K. Rahner, Curso fundamental sobre la fe, Barcelona 1984, 216-243; A. Martins, «A plenitude do

Homem em Cristo. A relação entre antropologia e cristologia em Karl Rahner», Didaskália 35 (2005) 311-325.
29 Cf. H. U. Von Balthasar, Córdula ou o momento decisivo, Lisboa 2009, 40.70; A. Martins, «A dimen-

são confessante da existência cristã: perspectiva antropológica», in M. M. C. D. Carvalho, M. I. A. Cardoso


(ed.), Amor, história e eternidade. Actas das jornadas balthasarianas. Outubro de 2008 e 2009, Lisboa 2010, 73-90.

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A questão que, no fundo, mobiliza Ruiz de la Peña é claramente meta-


física, a reivindicação do fundamento da diferença ontológica do homem
em relação ao animal e que funda a sua singularidade30. A reivindicação do
valor incondicional da pessoa leva-o a rejeitar, liminarmente, as teses da
pura identificação do homem ao animal, ao físico e ao material, o chamado
monismo materialista31. O valor da pessoa funda-se num plus ontológico.
O axiológico exige o ontológico, se não se quiser dissolver o humano no
animal e no inumano. Por isso (re)propõe a actualidade do problema da
alma. Mais do que a questão do conceito, a razão de fundo é a exigência
ontológica que com o mesmo se expressa. Considera que o conceito de
alma é «o momento ôntico da autotranscendência da matéria face ao novo,
o distinto, o qualitativamente mais rico e mais válido»32. O conceito de
alma diz o modo humano de ser corpo, essa estruturação específica e pró-
pria da matéria onde emerge o pessoal33. Para a teologia, o conceito de
alma tem, portanto, uma valência relacional muito mais do que ontológica.
Com a ideia de alma assinala-se a capacidade de relação do homem com
Deus. O dialógico tem primazia sobre o ontológico, porque é na sua rela-
ção constitutiva com Deus que se funda o valor ontológico de ser pessoa,
enquanto imagem de Deus.
A par da diferença ontológica, a antropologia cristã não esquece que o
Homem é também animal. O Homem embora criado à imagem de Deus
não deixa de ter um parentesco com os animais: «Deus criou humano à sua
imagem (…), macho e fêmea Ele os criou» (Gn 1,27). Em sua especifici-
dade teologal de ser imagem divina, o Homem não deixa de ser animal
(«macho» e «fêmea» são termos que o Antigo Testamento aplica também
aos animais), chamado não apenas a dominar os demais animais (cf. Gn
1,28), mas, ainda mais radicalmente, a sua própria animalidade. A novi-

30 J. L. Ruiz de da Peña, Nuevas antropologías. Un reto a la teología, Salamanca 19832, 128: Com palavras

do Autor «la reivindicación para aquél [el hombre] de un plus entitativo que, trascendiendo la mera biología funde
real y objectivamente (ontológicamente) la distancia estipulada entre lo humano y lo zoológico». Cf. Nosso estudo:
A. Martins, «A condição corpórea da pessoa em J. L. Ruiz de la Peña», Didaskalia 34 (2004) 79-182.
31 J. L. Ruiz de da Peña, «Sobre el alma: introdución, cuatro tesis y épilogo», Estudios Eclesiásticos 64 (1989) 383.

32 Cf. J. L. Ruiz de da Peña, «Sobre el problema mente-cerebro», Diálogo Filosófico 12 (1996) 41.

33 Cf. J. M. Maldamé, «L’émergence de l’homme comme avènement de l’âme», Revue Thomiste. 102 (2002)

73-105 que aplica o conceito de emergência à evolução do homem. Não sem ousadia mas no contexto de uma fi-
losofia fenomenológica, M. Henry, Incarnation, Paris 2000, 280, chega mesmo a referir o conceito de «chair vi-
vante» como sinónimo de alma: «L’âme, c’est-à-dire aussi bien notre chair vivante – l’ensemble de nos impressions,
des prestations de nos sens et de nos divers pouvoirs – s’aperçoit de l’extérieur sous l’aspect d’un corps objectif».

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dade e a continuidade do Homem em relação ao animal, é já intuída pela


própria Escritura. O Homem é um ser intermediário entre o divino e o ani-
mal, e essa linha de aproximação e de separação passa por dentro de si
mesmo. Há no Homem uma dimensão de instintividade, de violência, de
agressividade, de luta pela sobrevivência que faz parte da sua condição ani-
mal. Tornar-se imagem de Deus é um humanizar-se continuamente, inte-
grar na relação as forças vitais e violentas da sua animalidade34. Tanto o
Homem como os animais são abençoados por Deus em sua fecundidade
biológica, expressão da própria fecundidade divina (cf. Gn 1,22.28)35. Mas
só o Homem tem capacidade de acolher a vida como dom de Deus e lhe
responder, livremente, fazendo da sua própria vida «sincero dom de si
mesmo» (GS 24).
Em jeito de uma conclusão aberta: O Homem é a única criatura capaz
de dar nome aos demais animais: «O homem deu nome a todos os animais,
às aves do céu e a todas as feras selvagens» (Gn 2,20). Essa capacidade é pró-
pria de Deus que tudo cria com a sua palavra e chama as coisas a ser (cf. Gn
1,5.8.10). Dar nome significa estabelecer uma relação com sentido, identifi-
car o ser próprio das coisas, ler interiormente (inteligir). Só o Homem tem
capacidade para decifrar e interpretar a realidade. A diversidade da vida, das
espécies, das criaturas, as suas diferenças próprias, são harmonizadas e inte-
gradas numa ordem de sentido pela palavra. O mundo é inteligível, é «ló-
gico», pode chegar à palavra humana porque têm na Palavra de Deus (no
Lógos que é o Filho) o seu fundamento e a sua finalização. E com a palavra, o
riso e as lágrimas o Homem renasce para si mesmo e faz (re)nascer continua-
mente o mundo diante de si. «Que é o Homem?». Animal enigmático, sem
dúvida, a tentar decifrar o enigma da origem da vida e da sua própria origem.

34 A. Wénin, D’Adam à Abraham ou les errances de l’humain, Paris 2007, 43-45; P. Beauchamp, L’un et l’au-

tre Testament II. Accomplir les Écritures, Paris 1990, 124.


35 F. G. Brambilla, Antropologia teologica, 316.

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