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TERAPIA DAS DOENÇAS Para este curso de Terapia das Doenças Espirituais, o

relato do livro do Gênesis sublinha um fato de notável


ESPIRITUAIS importância: quando a serpente apresentou o fruto da
Quaresma 2018 árvore à mulher, ela “viu que seria bom comer da árvore,
pois era atraente para os olhos e desejável para obter
conhecimento" [5]. Estas três realidades – “comer",
Catequese 1
“atraente para os olhos" e “desejável para obter
conhecimento" – perpassam toda a história da
humanidade: representam a tendência do homem para o
prazer, para possuir as coisas e para o poder, essa última
entendida como uma espécie de astúcia operativa.

São João entendeu bem isso, quando escreveu que “tudo o


que há no mundo – a concupiscência da carne, a
concupiscência dos olhos e a ostentação da riqueza [a
soberba da vida] – não vem do Pai, mas do mundo" [6]. E
o próprio Senhor, no deserto, foi tentado pelo demônio
As três causas do pecado com essas três matérias [7]. Primeiro, Satanás propôs a
Ele que transformasse pedras em pão, a fim de comer.
O pecado entrou no mundo quando as criaturas Depois, “mostrou-lhe, num relance, todos os reinos da
tentaram ser igual a Deus pelas próprias forças, terra" e prometeu dar-Lhe tudo aquilo, se Se prostrasse
sem o auxílio da graça. Ao contrário das mãos de diante dele. Por fim, tentou Jesus a fazer uma
Eva, que se fecharam para roubar o fruto proibido, demonstração de poder: “Se és Filho de Deus, lança-te
as mãos de Cristo se abriram para tudo entregar. daqui abaixo". Nosso Senhor venceu as três tentações,
mostrando ao homem que é possível, com a Sua graça,
Vamos nesta catequese sobre a Terapia das vencer a carne, decaída pelo pecado original.
Doenças Espirituais, conheçer quais são as três
"raízes" do pecado, que atravessam toda a história
da humanidade. Mas, que são essas três coisas que com razão se podem
chamar de “raízes" do pecado? Tratam-se de três libidos
( libidines, em latim). As duas primeiras são chamadas
por São João de “ἐπιθυμία" (lê-se: epithumía) – assim, há
a “ἐπιθυμία τῆς σαρκὸς", que é a concupiscência da carne,
O livro do Gênesis diz que “Deus criou o ser humano à
e a “ἐπιθυμία τῶν ὀφθαλμῶν", que é a dos olhos –, pois
sua imagem" [1]. Antes disso, o pecado já existia, não por
estão radicadas na potência concupiscível do homem. A
natureza, mas pela má vontade dos anjos decaídos, os
terceira, por sua vez, está na potência irascível: é a
demônios. Foram eles quem, por inveja, se aproximaram
“ἀλαζονεία τοῦ βίου", a soberba da vida.
do primeiro homem para tentá-lo. Até então, Deus o havia
colocado em um jardim de benesses [2], com múltiplas
possibilidades de árvores e animais para comer e inúmeras
coisas para fazer, tendo proibido apenas uma coisa: A primeira, a libido amandi, é o apetite desordenado que
“Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da “tem por objeto tudo o que pode fisicamente sustentar o
árvore do conhecimento do bem e do mal não deves corpo seja para a conservação do indivíduo, alimento,
comer, porque, no dia em que dele comeres, com certeza bebida etc., seja para a conservação da espécie, as coisas
morrerás" [3]. venéreas" [8]. O objeto dessa concupiscência é tanto a
gula quanto o sexo desordenado, que é o vício da luxúria.
É curioso que, na mesma época em que se vê o fenômeno
da anorexia, de meninas que morrem de fome porque não
Por medo da morte e pelo aviso divino, Adão e Eva não
querem comer, percebe-se uma humanidade que busca o
tinham comido da árvore, até que o demônio lhes tentou,
prazer venéreo, mas não quer assumir a responsabilidade
invertendo o apelo de Deus e transformando em atrativo
dos filhos. As pessoas querem comer, mas não querem
aquilo que era proibido: “De modo algum morrereis. Pelo
engordar; querem fazer sexo, mas não querem estar
contrário, Deus sabe que, no dia em que comerdes da
abertas à vida.
árvore, vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus,
conhecedores do bem e do mal" [4]. Seduzidos pelo
maligno, os primeiros pais pecaram e a desordem entrou
na humanidade.
A segunda, a libido possidendi, “é concupiscência animal, 6. 1 Jo 2, 16
e tem por objeto as coisas que não se apresentam para a
sustentação e o prazer da carne, mas que agradam à 7. Cf. Lc 4, 1-13
imaginação [delectabilia secundum apprehensionem 8. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-
imaginationis] ou a uma percepção semelhante, por II, q. 77, a. 5
exemplo, o dinheiro, o ornato das vestes, e outras coisas
deste gênero. É esta espécie de concupiscência que se 9. Idem
chama de concupiscência dos olhos" [9].
10. Idem

A terceira é a libido dominandi. É a soberba fundamental


de querer ser igual a Deus, como fez Satanás. Enraizada
no irascível, essa libido deseja o bem enquanto algo Catequese 2
árduo: “Quanto ao apetite desordenado do bem difícil,
pertence à soberba da vida, sendo que a soberba é o
apetite desordenado da excelência [appetitus inordinatus
excellentiae]" [10].

É para combater essas três causas do pecado que se


praticam as três obras quaresmais: o jejum, a esmola e a
oração; e também os três votos evangélicos: a castidade, a
pobreza e a obediência. Também aqui se identificam os
nossos relacionamentos com o outro, com as coisas e
conosco mesmos. Se abusamos de outra pessoa, usando-a
como objeto para obter prazer, estamos cedendo à
concupiscência da carne; se idolatramos as coisas,
pensando estar nelas a nossa felicidade, cedemos à
concupiscência dos olhos; e se fazemos de nós mesmos
deus, estamos na soberba da vida.

Deus criou o homem para que ele participasse de Sua


divindade, mas ele deveria sê-lo pela graça, não por suas
Terapia das Doenças Espirituais
próprias forças. Quando Eva “se apega ciosamente ao ser
igual a Deus", ela rouba, com “ἁρπαγμὸς" (lê- A filáucia
se: harpagmós): as suas mãos se fecham para pegar para
si. As mãos de Cristo são o contrário das mãos de Eva: Com o pecado original, o amor do homem por si
elas se abrem para dar. Enquanto Eva quis, Cristo tudo mesmo experimentou uma desordem: ele prefere
entregou. Enquanto as mãos de Eva se voltam ao lenho gozar dos bens mutáveis a honrar o Bem imutável,
para pegar, as de Cristo se deixam pregar ao lenho da que é Deus. A única forma de sair desse sistema
Cruz para dar. Da primeira árvore nos vêm a desgraça e a mundano é a renúncia de si próprio, como manda
morte; da segunda, a graça e a vida, a nossa salvação. Jesus no Evangelho: "Se alguém quer vir após
mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz, cada
dia e siga-me."
Referências
Vamos nesta catequese sobre as doenças
espirituais, em que consiste a filáucia, origem de
1. Gn 1, 27 todos os vícios capitais.
2. Cf. Gn 2, 8 Na primeira catequese, foi sondado o começo de nossa
“ historia calamitatum". Pelo pecado de Adão e Eva,
3. Gn 2, 16-17 entrou uma desordem no mundo, desordem que se mostra
por três raízes, a saber: a libido amandi, a libido
4. Gn 3, 4-5
possidendi e a libido dominandi. Essas três causas do
5. Gn 3, 6 pecado têm origem em uma só: o amor desordenado de si
mesmo, que também se pode chamar de amor sui, em
latim, e de filáucia. Esta expressão vem de duas palavras conclusões que chegam os autores espirituais e a Tradição
gregas – φιλία (lê-se: filía) e αυτός (lê-se: autós) – e da Igreja.
designa o amor que o ser humano tem por si mesmo, amor
que se encontra doente, por conta do pecado original.
A partir da queda, então, as criaturas, que eram ícones que
apontavam para o alto, ficam opacas e o seu uso se dirige
Como referência para esta aula, é recomendada a à satisfação de si próprio. Esse sistema é completamente
leitura da obra Philautia. Dall'amore di sé alla carità, do autodestrutivo. Um dependente químico, por exemplo, usa
Pe. Irénée Hausherr. Para escrevê-la, ele se baseia drogas porque quer ser feliz. Todas as pessoas veem,
especialmente em São Máximo, o Confessor, que é mestre porém, que ele está destruindo a si mesmo, a sua família e
sobre esse tema. Em suas Centúrias sobre a Caridade, aqueles que estão à sua volta. “O homem mau não deve
esse autor cristão ensina: ser um amante de si mesmo, visto que obedecerá às suas
paixões vis e assim prejudicará tanto a si mesmo quanto
aos seus semelhantes" [6], diz Aristóteles. São João
“Toma cuidado com o amor-próprio, mãe de todos os Crisóstomo compara essa situação à loucura:
vícios, e que é o amor irracional do próprio corpo.
Indubitavelmente, dele nascem os três primeiros
pensamentos passionais fundamentais: o da gula, o da “Se, andando pela rua, encontrássemos uma pessoa
avareza, e o da vanglória, que tem origem nas exigências mutilando a si mesma e arrancando pedaços do seu
necessárias do corpo; por eles nasce toda a série de vícios. próprio corpo, não hesitaríamos em dizer que se trata de
É preciso, portanto, como se disse, ter cuidado com este um louco, pois dilacerar os próprios membros 'é próprio
amor-próprio, e combatê-lo com muita sobriedade; de furiosos e de loucos'. Tal é a nossa condição de
destruído ele, são destruídos todos os pensamentos que pecadores. Achamo-nos muito inteligentes ao deixar Deus
dele provêm." [1] de lado e inventar uma forma nova de amor-próprio, mas
acabamos por nos destruir." [7]
“O amor-próprio, como muitas vezes se disse, é causa de
todos os pensamentos passionais. Dele se engendram os Para curar essa doença, é necessário voltar à capacidade
três pensamentos capitais da concupiscência: o da gula, o de transcender, olhando para as coisas criadas e dirigindo
da avareza e o da vanglória. Do da gula nasce o da o nosso olhar ao Céu. A esse propósito, Santo Agostinho
fornicação; do da avareza, o da avidez; do da vanglória, o faz uma comparação fantástica:
da soberba. Todos os outros se seguem a cada um dos
três: o da ira, o da maledicência e os mais. Estas paixões
atam a mente às coisas materiais e a retêm na terra, como “Deus não te proíbe de amar estas coisas [as criaturas],
pedra pesadíssima em cima dela, sendo embora a mente, mas de amá-las com a finalidade de obter a felicidade.
por natureza, mais leve e ágil que o fogo." [2] Não é proibido, porém, admirar e aceitar as criaturas para
amar o Criador." 
O amor filaucioso, por sua vez, nasce da realidade do “Irmãos, suponhamos que um esposo fizesse um anel para
pecado original. Antes da queda, os olhos do homem eram sua esposa e esta tivesse mais amor pelo anel recebido do
capazes de voltar-se às coisas criadas e transcender para que pelo esposo que lho fabricou; não é verdade que com
Deus. As criaturas não passavam de ícones que remetiam aquele presente se revelaria que a esposa tem um coração
ao Criador. Assim, se se olhasse no espelho, o homem na adúltero, embora ela ame algo que é presente do esposo?
inocência primitiva amaria em si a “imagem e É claro que ela ama algo que foi feito pelo seu esposo,
semelhança" divinas impressas nele [3]. Esse era o amor mas se ela dissesse: 'Basta-me o seu anel, e não me
sui sadio, pelo qual Nosso Senhor dizia que o homem interessa ver o seu rosto', que tipo de esposa seria esta?
deveria amar ao próximo como a si mesmo [4]. Quem não abominaria esta loucura? Quem não
condenaria este sentimento de adúltera?" 

Após o pecado original, no entanto, entrou uma desordem “Amas o ouro no lugar do homem, amas o anel no lugar
nesse amor-próprio. Notável é que também os filósofos do esposo: se estes são os teus sentimentos a ponto de
pagãos a tenham notado. Aristóteles escreve que, já em amar um anel no lugar do teu esposo e a teu esposo não
seu tempo, “'amante de si mesmo' é uma expressão queres nem mesmo ver; então quer dizer que ele te deu
desonrosa". E, ao exemplificar como o homem mau se este penhor, não para te comprometer, mas para te perder.
ama desordenadamente, ele faz referência ao “gozo É para isto que um esposo oferece um penhor, para que no
medíocre", ao “dinheiro" e, depois, “às honras e aos penhor ele mesmo seja amado. Para isto Deus te ofereceu
cargos" [5] – curiosamente, as mesmas três libidines de as coisas [criadas]: ama aquele que as fez. Ele quer te
que se falou na última aula. Impressiona como o homem oferecer muito mais, ou seja, quer dar a si mesmo. Mas se
iluminado pela razão consegue chegar às mesmas amares as coisas, mesmo que tenham sido feitas por ele,
se esquecesses o Criador para amares o mundo, o teu 7. Padre Paulo Ricardo. Um Olhar que Cura.
amor não deveria ser julgado como amor adulterino?" [8] São Paulo: Editora Canção Nova, 2008. p.
22
Amar as coisas ao invés de Deus é destruidor porque
significa cortar o próprio galho no qual se está sentado. 8. Santo Agostinho, In epistolam Iohannis ad
Identifica-se, aqui, o conflito entre dois amores – o amor Parthos, II, 11: PL 35, 1995
Deie o amor sui. É a essa luta que se refere São João,
quando diz que “tudo o que há no mundo (...) não vem do 9. 1 Jo 2, 16.17
Pai, mas do mundo" e que “o mundo passa, e também a 10. Santo Agostinho, De Civitate Dei, XIV, 28
sua concupiscência; mas aquele que faz a vontade de
Deus permanece para sempre" [9]. É também sobre o que 11. Lc 9, 23
Santo Agostinho fala em sua obra De Civitate Dei: “Dois
amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor- 12. Mt 16, 25
próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a
Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial" [10].

O “desprezo de si próprio" significa a renúncia ao amor


doente. A única forma de sair desse sistema de destruição
no qual o homem foi colocado com o pecado original é
renunciando a si mesmo. Foi o próprio Jesus quem disse:
“Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome
a sua cruz, cada dia e siga-me" [11]. Infelizmente, muitas
pessoas dentro da própria Igreja não entendem – ou
mesmo subvertem – isso, procurando uma forma de serem
cristãs sem abraçar a Cruz e renunciar à própria vontade.
Mas, é novamente Nosso Senhor quem diz, “quem quiser
salvar a sua vida a perderá; e quem perder a sua vida por
causa de mim a encontrará" [12].

Assim, a única forma de viver o amor sui correto é situá-


lo dentro do amor Dei. O amor virtuoso, a caridade de
que falam as Sagradas Escrituras, embora se possa dirigir
a Deus, a si próprio e ao próximo, deve ter um único
objeto formal, que é o próprio Deus. Isso significa amar o
Criador e as criaturas somente por causa d'Ele. Só assim
entraremos no caminho da cura, que pavimenta a cidade
de Deus.

Referências

1. Centúrias sobre a Caridade, II, 59: PG 90,


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2. Ibidem, III, 56: PG 90, 436
3. Gn 1, 26
4. Cf. Mt 22, 39
5. Ética a Nicômaco, IX, 8
6. Idem

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