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A Soberania de Deus e a Responsabilidade Humana

1
̶ Reverência, consolo, estímulo e desafio missionário ̶ (4)

2.4. O Homem Caído: A Imagem Desfigurada

“Na verdade, o que torna o pecado


humano realmente grande é o fato de
que ele ainda é alguém que traz a ima-
gem de Deus. O que faz o pecado tão
hediondo é que o homem está prostitu-
indo dons tão esplêndidos. Corruptio
optimi pessima: a corrupção do que é
2
ótimo é pior” - Anthony A. Hoekema.

“O coração da rebelião de satanás


e do homem estava no desejo de ser
3
autônomo” - F.A. Schaeffer.

“A natureza de Satanás consiste em


pensar, falar e agir em constante e ma-
liciosa oposição a Deus, o Criador, e,
por conseguinte, em oposição ao povo
4
de Deus também” - J.I. Packer.

Como os nossos primeiros pais foram levados ao pecado numa atmosfera perfei-
5 6
ta? Talvez devido ao “interesse existencial” do problema é que esta pergunta tem
atravessado os séculos. A resposta para mim é simples e me contento com ela; não
pelo prazer da ignorância, antes como uma confissão de meu limite dentro da esfera
7
do revelado na Escritura: Não sei. O meu não saber não invalida o fato, nem elimi-
na a razão de sua existência, apenas, resume uma ignorância pessoal.

1
Texto disponibilizado pela Secretaria de Apoio Pastoral do Presbitério de São Bernardo do Campo,
SP.
2
Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 101-
102.
3
F.A. Schaeffer, O Deus que intervém, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 256.
4
J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 78.
5
“Apesar de ter sido colocado num Paraíso, cercado de abundantes bênçãos de Deus, o
homem escolheu resistir ao direito de Deus de governar sobre ele” (Steven J. Lawson, Funda-
mentos da Graça, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2012, Vol. 1, p. 76).
6
Veja-se: G.C. Berkouwer, Doutrina Bíblica do Pecado, São Paulo: ASTE., 1970, p. 14-15.
7
Devo pontuar que entendo a teologia como uma sistematização do revelado na Palavra, a fim de
tornar mais compreensível a plenitude da revelação. A teologia, portanto, nada tem a dizer além das
Escrituras. Ela não a substitui nem a completa, antes, deve ser a sua serva. A teologia brota dentro
da intimidade da fé daqueles que cultuam a Deus e comprometem-se com a edificação da igreja.
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A Palavra relata que Adão e Eva, criados em perfeita retidão, tendo perfeita liber-
dade de escolha optaram por desobedecerem a Deus e comeram da árvore do bem
e do mal que lhes fora expressamente proibida por quem tinha poderes para fazê-lo
8
(Gn 2.15-17).

No Paraíso, Satanás tentou os nossos primeiros pais por meio do desejo, que cer-
tamente de alguma forma cultivavam, de serem iguais a Deus. Eles se esqueceram
9
de todo o histórico de sua relação com o Deus fiel, amoroso, justo e sábio; o seu
desejo falou mais alto aos seus corações. O desejo ainda que por vezes momentâ-
neo tende a eternizar-se na brevidade de seu ardor. Aqui eles conceberam o que
10
pode ser chamado de mal moral.

Paulo interpretando o acontecimento histórico registrado em Gênesis, diz: “Mas


receio que, assim como a serpente enganou (e)capata/w = desviou, seduziu, desen-
11
caminhou) a Eva com a sua astúcia (panourgi/a = “ardil”, “truque”, “maquinação”,
“trapaça”), assim também sejam corrompidas as vossas mentes, e se apartem da
simplicidade e pureza devidas a Cristo” (2Co 11.3). Novamente: “A mulher, sendo
enganada, (e)capata/w) caiu em transgressão” (1Tm 2.14).

O verbo grego12 tem o sentido de enganar completamente, conseguindo totalmen-


te o seu objetivo; deste modo, Eva, segundo o texto nos diz, foi completamente en-
ganada por Satanás. Assim, quando ela cede à tentação, está plenamente conven-
cida de que o que faz é certo dentro de seus objetivos duvidosos. Daqui podemos
concluir que a certeza subjetiva não significa necessariamente a correta interpreta-
ção dos fatos. Satanás enganou Eva e Adão. Após isso, os fez crer que a mentira
em que creram era a verdade. Satanás, que tem pretensões divinas, fez com que
Eva o seguisse. Adão, a seguiu. Ninguém seguiu Deus. O caos se instalara. Nossos
primeiros pais demonstraram que seguiriam a um novo senhor. As consequências vi-
riam de forma intensamente perceptível. A proximidade de Satanás os afastará cada
vez mais de Deus. No tempo próprio, que não demoraria, eles se esconderiam da
presença de Deus (Gn 3.8-10). A presença abençoadora e alegre de Deus no cair
da tarde, tornou-se uma presença terrificante e assombrosa. Deus continuava a ser
o mesmo. O homem, no entanto, não. O pecado nos afasta de Deus, rejeitando a
Sua presença que, por si só, revela o nosso estado de desobediência, tornando no-
tória a nossa infelicidade conquistada autonomamente.

Na realidade, Eva e Adão desejaram a autonomia; ter um conhecimento indepen-

8 15
“ Tomou, pois, o SENHOR Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o
16 17
guardar. E o SENHOR Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente,
mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres,
certamente morrerás” (Gn 2.15-17).
9
“O pecado original foi o pecado de esquecer Deus. Adão e Eva deram as costas a Ele –
daí os problemas” (David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5,
2. ed. Rio de Janeiro: Textus, 2004, p. 47).
10
“Mal moral é o mal resultante das escolhas e das ações dos seres humanos” (Ronald H. Na-
sh, O Problema do Mal: In: Francis J. Beckwith, et. al. eds. Ensaios Apologéticos, São Paulo: Hagnos,
2006, p. 247).
11
Ocorre 5 vezes no NT.: Lc 20.23; 1Co 3.19; 2Co 4.2; 11.3; Ef 4.14.
12
e)capata/w (exapatáõ)* Rm 7.11; 16.18; 1Co 3.18; 2Co 11.3; 2Ts 2.3; 1Tm 2.14.
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dentemente de Deus; queriam ser iguais a Deus, autossuficientes. O limite é, com


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frequência, o atrativo maior do desejado. Mas, ao mesmo tempo, o limite é o teste
de nossa fidelidade e caminho de crescimento.

Na insinuação diabólica há sempre uma tentativa de mostrar que o nosso cami-


nho, a nossa opção é a melhor; a sua proposta sempre se configurará como a mais
lógica e atraente. A desobediência a Deus de fato é, com frequência, o caminho que
nos parece mais objetivo e prático, além de encontrarmos uma inclinação natural pa-
ra ele. No entanto, a vontade de Deus para nós é que resistamos a estas tentações
e continuemos crendo em Deus e na Sua Palavra, seguindo a rota proposta; o cami-
nho de vida por Ele traçado para nós.
14
A heresia normalmente surge assim: Satanás, que cita a Palavra de Deus, insi-
nua que há algo mais profundo e rápido do que o árduo estudo das Escrituras; ele
propicia “revelações especiais”, sonhos, “luz interior”. Ele nos diz que por intermédio
destes meios podemos chegar a conhecer mais do que todos os homens. Que fi-
nalmente descobrimos o “método” de Deus para o nosso “crescimento espiritual”,
para adquirir uma visão mais abrangente do mundo que nos circunda. Satanás é o
15
grande divulgador da “autoajuda”. Faça você mesmo sem necessidade de Deus e
da sua Palavra; esta é a sua insinuação. “Satanás, furtivamente, se move sobre
nós e gradualmente nos alicia por meio de artifícios secretos, de modo tal
que quando chegamos a extraviar-nos, não nos apercebemos de como o fi-
zemos. Escorregamo-nos gradualmente, até finalmente nos precipitarmos na
16
ruína”.

O alvo constante de Satanás é a Palavra de Deus. Ele procura tirá-la de nós, ou,
senão, dar-nos uma visão distorcida do seu teor. No seu argumento sempre há algo
de verdadeiro, contudo, a sua dialética, que pode se valer das Escrituras, tem um re-
ferencial totalmente excludente, o qual ele dilui muito bem a fim de dar-nos a im-
17
pressão de que a sua conclusão é coerente com a Palavra. Como bem disse Bo-
nhoeffer (1906-1945): “A fraude, a mentira do diabo consiste na sua tentativa

13
"Os homens pecaminosos nunca se dispõem a andar dentro das fronteiras que Deus im-
põe às suas criaturas. Em sua arrogância, declaram sua suposta liberdade e reivindicam ser
senhores de seus próprios destinos" (Allan Harman, Comentário do Antigo Testamento ‒ Salmos,
São Paulo: Cultura Cristã, 2011, (Sl 2), p. 79).
14
Bonhoeffer, com argúcia, disse que “Também Satanás sabe empregar a Palavra de Deus
como arma na luta” (D. Bonhoeffer, Tentação, Porto Alegre, RS.: Editora Metrópole, 1968, p. 52).
15
Outro mal contemporâneo é aquilo que MacArthur chama de “teologia da autoestima” e “psi-
cologia da autoestima” (Ver: John MacArthur Jr., Sociedade sem Pecado, São Paulo: Editora Cul-
tura Cristã, 2002, p. 74ss).
16
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 6.4), p. 151-152.
17
“O credo alternativo do diabo contém, frequentemente, alguns elementos da verdade,
escolhidos com cuidado – mas sempre diluídos e totalmente misturados com falsidades,
contradições, deturpações, distorções e qualquer outra perversão imaginável da realidade.
E, somando tudo isso, o resultado final é uma grande mentira” (John F. MacArthur, Jr., A Guer-
ra pela Verdade: lutando por certeza numa época de engano, São José dos Campos, SP.: Editora Fi-
el, 2008, p. 71).
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de fazer o homem acreditar que poderia viver sem a Palavra de Deus”.

Com este propósito ele também age por intermédio de falsos mestres, dizendo-
nos que pode nos levar à verdade plena muito superior a que nos é proposta pela
Escritura. Foi isto que ocorreu na Igreja de Corinto: os falsos mestres usados por Sa-
tanás fizeram muitos crentes acreditarem que o Apóstolo Paulo era desprezível, por-
tanto, não poderia dar-lhes ensinamento profundo. Nós sabemos quanto sofrimento
isto trouxe à Igreja e a Paulo; quanta dor e desvios doutrinários e consequentemente
um distanciamento de Deus. Satanás sempre objetiva nos afastar de Deus e, quan-
do damos crédito às suas insinuações, ele consegue o seu objetivo.

O pecado é enganoso, dando-nos a impressão, num primeiro momento, de plena


e completa satisfação. Ele tende a satisfazer os nossos desejos mais imediatos, mui-
tos dos quais até legítimos em determinadas circunstâncias – ainda que nem sempre
–; no entanto, fornece-nos caminhos que conflitam com a Palavra de Deus, que nos
conduzem ao fracasso ou à perda da oportunidade de nosso amadurecimento, da
lapidação do nosso caráter e vida espiritual.

Na narrativa bíblica da Criação, lemos: “Do solo fez o SENHOR Deus brotar toda
sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e também a árvore da vida
no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal ([r;)(ra`)” (Gn 2.9).

Lemos também a respeito da proibição divina aos nossos primeiros pais: “16E o
SENHOR Deus lhe deu esta ordem (hw"c') (tsavah): De toda árvore do jardim comerás
livremente, 17Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal ([r;)(ra`) não come-
rás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2.16-17).

Eles desobedeceram. A chave da questão não está na árvore, antes, na desobe-


diência à ordem de Deus: “Perguntou-lhe Deus: Quem te fez saber que estavas nu?
19
Comeste da árvore de que te ordenei (hw"c') (tsavah) que não comesses?” (Gn 3.11).

Observe a ênfase dada à ordem divina. Somente Deus tem autoridade para esta-
belecer leis e critérios para a Sua criação. Na realidade pouco importaria para Deus
o que o homem comeria no Jardim do Éden, exceto pelo fato Dele estabelecer a sua
proibição como sinal de Sua autoridade absoluta, demarcando o limite que caracteri-
20
zaria a obediência ou não do homem e da mulher, Suas criaturas.

Apesar de o pecado ter comprometido, de forma gravíssima todas as faculdades


originais do ser humano, o homem não deixou de ser a imagem e semelhança de
Deus – visto que isto implicaria em deixar de ser homem. Nele “esses atributos a-

18
D. Bonhoeffer, Tentação, p. 60.
19
“E a Adão disse: Visto que atendeste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te ordenara
(hw"c') (tsavah) não comesses, maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o sustento du-
rante os dias de tua vida” (Gn 3.17). O contraste posterior com Noé é evidente. Este, fez tudo quando
o Senhor ordenara (hw"c') (tsavah) (Gn 6.22, 7.5,9,16). Os mandamentos de Deus são para serem lite-
ralmente cumpridos: “Tu ordenaste (hw"c') (tsavah) os teus mandamentos, para que os cumpramos à
risca” (Sl 119.4).
20
Veja-se: Steven J. Lawson, Fundamentos da Graça, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel,
2012, Vol. 1, p. 73.
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inda estão presentes em ‘pequenas reservas’ remanescentes da sua cria-


21
ção”. Contudo, ele se tornou uma imagem desfigurada, pervertida, desfocalizada,
22
mais propriamente uma “caricatura” do Seu Criador. Em outras palavras: continu-
amos sendo homens, ainda que em franca rebelião contra Deus. Perdemos, assim,
algo de nossa humanidade. Agora a sua maneira de perceber a realidade e respon-
der a ela passou por uma mudança drástica, sofreu uma virada antropológica. O
homem deseja satisfazer unicamente seus interesses. A realidade tornou-se egorre-
ferente. A condição de pecador, é a expressão negativa por livre escolha, de ser e
existir criado à imagem de Deus. A consciência da escolha torna-se real e relevante
na condição de pecador. Na obediência em amor, não ocorre a possibilidade da de-
sobediência. Portanto, o pecado nos identifica como criados à imagem de Deus e,
ao mesmo tempo, como alguém que usou terrivelmente deste privilégio.

Calvino (1509-1564), comentando este assunto, disse que, “Quando de seu es-
tado [original] decaiu Adão, não há mínima dúvida de que por esta defec-
ção se haja alienado de Deus. Pelo que, embora concedamos não haja sido
nele aniquilada e apagada de todo a imagem de Deus, foi ela, todavia, cor-
23
rompida a tal ponto que, o que quer que resta, é horrenda deformidade”.

O pecado como consequência da desobediência voluntária do homem (Gn 3.1-6;


Is 48.8; Rm 1.18-32), trouxe sobre ele efeitos danosos, tornando-o necessitado de
salvação, a qual estava além de sua capacidade de obtê-la. Analisemos agora o
significado do pecado e as suas consequências.

2.4.1. O SIGNIFICADO DO PECADO

O Catecismo Menor de Westminster define bem a questão: “Pecado é


qualquer falta de conformidade com a lei de Deus, ou qualquer transgressão
24
desta lei” (Vejam-se: Tg 2.10; 4.17; 1Jo 3.4).

Pecar significa agir de maneira contrária aos princípios expressos por Deus em

21
Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 18.
22
Veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã,
1999, p. 87.
23
João Calvino, As Institutas, I.15.4. Em outro lugar, escreve Calvino: “O primeiro homem foi cria-
do por Deus em retidão; em sua queda, porém, arrastou-nos a uma corrupção tão profun-
da, que toda e qualquer luz que lhe foi originalmente concedida ficou totalmente obscure-
cida. (...) Só quando aliado ao conhecimento de Deus é que alguns dos dotes a nós confe-
rido do alto se pode dizer que possui alguma excelência real. À parte disso, eles se acham
viciados por aquele contágio do pecado que não deixou sequer um vestígio no homem de
sua integridade original” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 2,
(Sl 62.9), p. 579). “Tão logo Adão alienou-se de Deus em consequência de seu pecado, foi
ele imediatamente despojado de todas as coisas boas que recebera” (João Calvino, Exposi-
ção de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 2.5), p. 57). “É verdade que ela (a imagem de
Deus no homem) não foi totalmente extinta; mas, infelizmente, quão ínfima é a porção dela
que ainda permanece em meio à miserável subversão e ruínas da queda” (João Calvino, O
Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 8.5), p. 169).
24
Catecismo Menor, Perg. 14.
A Soberania de Deus e a Responsabilidade humana (4) – Rev. Hermisten – 28/03/14 – 6/17

25
Sua Palavra. No pecado de nossos primeiros Pais, encontramos a expressão da
26
falta de amor por Deus que já cultivavam em seus corações.

2.4.2. O PECADO É UNIVERSAL

Todos pecaram. O homem além de não querer, nada pode fazer para dei-
xar de pecar. Após a queda, a natureza humana se corrompeu total e intensamente,
se estendendo essa contaminação a todas as áreas da sua vida. O pecado trouxe
um quadro de irreversibilidade pecaminosa que se perpetuou em todos os seres
humanos devido o seu pecado. Ou seja: o homem continuou nesta prática (Gn 6.5;
8.21; Is 64.6; Rm 3.9-12). A Escritura nos fala que o pecado, comum a todos nós
27
(Rm 3.23), nos fez cativos (Jo 8.34; Rm 6.20; 7.23 ), habitando em nós (Rm
28
7.17,20), mantendo-nos sob o seu domínio. Portanto, negar a nossa condição de
pecadores, é negar a própria Palavra de Deus, que diz: “Se dissermos que não te-
mos cometido pecado, fazemo-lo mentiroso e a sua palavra não está em nós” (1Jo
29
1.10). “Não ser consciente de pecado algum é o pior pecado de todos”.

O pecado é o grande nivelador de toda a humanidade: todos pecaram; todos es-


30
tão no mesmo nível; não há lugar para arrogância ou supostas boas obras justifi-
31
cadoras (Rm 3.19-20). Se todos pecaram, isso significa que nós também pecamos;
se todos precisam de salvação, significa que nós também precisamos. “Pecado
32
não é algo peculiar a uns poucos, senão que permeia o mundo inteiro”. O
pecado nos impossibilita totalmente de nos salvar a nós mesmos.

Na Oração do Senhor temos um indicativo da universalidade do pecado. “O fato


de Jesus ensinar a todas as pessoas a fazerem esta oração demonstra a uni-
versalidade do pecado; e para repetir esta oração se requer um sentido de

25
“O pecado não é um lapso lamentável de padrões convencionais; a sua essência é a
hostilidade para com Deus (Romanos 8.7), manifesta em rebeldia ativa contra Ele” (John
R.W. Stott, A Cruz de Cristo, Florida: Editora Vida, 1991, p. 80).
26
“O pecado de Adão consistiu no fato de que ele baniu todo o amor por Deus do seu co-
ração. (...) Quando Adão deixou de amar a Deus, ele começou a odiá-lo” (Abraham Kuyper,
A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 361).
27
“....Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado” (Jo 8.34).
“Porque, quando éreis escravos do pecado, estáveis isentos em relação à justiça” (Rm 6.20). “Mas
vejo, nos meus membros, outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da
lei do pecado que está nos meus membros” (Rm 7.23).
28
“Neste caso, quem faz isto já não sou eu, mas o pecado que habita em mim. (...) Mas, se eu faço o
que não quero, já não sou eu quem o faz, e sim o pecado que habita em mim” (Rm 7.17,20).
29
W. Barclay, El Padrenuestro, Buenos Aires: La Aurora/ABAP, 1985, p. 118.
30
Ver: Francis Schaeffer, A Obra Consumada de Cristo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p.
70.
31
“Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e
todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras da
lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado” (Rm 3.19-20).
32
João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 2.2), p. 52.
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33
pecado”.

2.4.3. A COMUNHÃO COM DEUS FOI INTERROMPIDA

O pecado gerou a separação entre o homem e o Deus Santo, Justo, Puro


34
e Sublime (Is 59.2). O homem encontra-se num estado de rebelião contra Deus (Is
35
65.2).

2.4.4. O HOMEM ESTÁ MORTO

O pecado como algo universal, trouxe como justo pagamento, a morte de


36
todos: o salário do pecado é a morte (Rm 5.12; 6.23). “A sentença que foi im-
posta como resultado do pecado de Adão, inclui mais do que a mera de-
composição do corpo. A palavra ‘morte’, tal como é usada nas Escrituras
com referência às consequências do pecado, inclui todas as formas de mal
que são infligidas como castigo desse pecado. (...) Significa, pois, a miséria
eterna do inferno (...) juntamente com o antegozo dessas misérias que são os
37
males e penalidades que passamos neste mundo”.

A Bíblia nos fala de três tipos de morte decorrentes do pecado:

1) A Morte Física: Separação da alma e corpo, pela qual todos os ho-


mens − com exceção dos que estiverem vivos quando Cristo retornar em Glória − te-
38 39
rão de passar (Ec 12.7; 1Co 15.51-52; Hb 9.27 ). Adão e Eva ao desobedecerem

33
W. Barclay, El Padrenuestro, Buenos Aires: La Aurora/ABAP, 1985, p. 118.
34
“Mas as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados en-
cobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.2).
35
“Estendi as mãos todo dia a um povo rebelde, que anda por caminho que não é bom, seguindo os
seus próprios pensamentos” (Is 65.2).
36
“Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, as-
sim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram” (Rm 5.12). “Porque o salário
do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor”
(Rm 6.23).
37
Loraine Boettner, La Imortalidad, Grand Rapids, Michigan: TELL. (s.d), p. 20-21.
38
“E o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu” (Ec 12.7). “Eis que vos digo
um mistério: nem todos dormiremos, mas transformados seremos todos, num momento, num abrir e
fechar de olhos, ao ressoar da última trombeta. A trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptí-
veis, e nós seremos transformados” (1Co 15.51-52). “E, assim como aos homens está ordenado mor-
rerem uma só vez, vindo, depois disto, o juízo” (Hb 9.27).
39
Quanto à morte física como consequência do pecado, vejam-se: Louis Berkhof, Teologia Sistemáti-
ca, p. 262, 675-676; Loraine Boettner, La Inmortalidad, Grand Rapids, Michigan: TELL. (s.d), p. 15ss;
J. Gresham Machen, El Hombre, Lima: El Estandarte de la Verdad, 1969, p. 158; Anthony A. Hoeke-
ma, A Bíblia e o Futuro, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1989, p. 105-114; “Todos os povos ou
puxam Deus panteisticamente para baixo, na direção daquilo que é criado, ou o elevam
deisticamente, colocando-o infinitamente acima da criatura. Em nenhum dos caos se che-
ga a uma verdadeira comunhão, a uma aliança, a uma religião genuína. No entanto, a Es-
critura insiste em ambos: Deus é infinitamente grande e condescendentemente bom; Ele é
A Soberania de Deus e a Responsabilidade humana (4) – Rev. Hermisten – 28/03/14 – 8/17

a Deus, tiveram a sua sentença de morte decretada. Eles morreram espiritualmente


imediatamente – ficando separados de Deus –; todavia, a morte física, que veio
também como consequência do pecado (Gn 2.16,17; 3.11-24; Rm 5.12), não foi i-
mediatamente executada, porque Deus usou de Sua graça comum, protelando a e-
xecução da Sua sentença (Gn 3.15), concedendo oportunidade para o arrependi-
mento do homem (Textos que ilustram este princípio: Is 48.9; Jr 7.23-25; Lc 13.6-9;
40
Rm 2.4; 9.22; 2Pe 3.9); entretanto, o Seu juízo entrou em processo de concretiza-
41
ção, tornando a vida uma caminhada para a morte. A condenação de Deus indica
como Deus leva a sério o pecado. Adão e Eva ao desobedecerem a Deus, tiveram a
sua sentença de morte decretada. Eles morreram espiritualmente imediatamente –
ficando separados de Deus –; todavia, a morte física, que veio também como conse-
quência do pecado (Gn 2.16,17; 3.11-24; Rm 5.12), não foi imediatamente executa-
da, porque Deus usou de Sua graça comum, protelando, adiando a plena execução
42
da Sua sentença (Gn 3.15,19), concedendo oportunidade para o arrependimento
do homem (Textos que ilustram este princípio: Is 48.9; Jr 7.23-25; Lc 13.6-9; Rm 2.4;
43
9.22; 2Pe 3.9).

O pecado passou a ser o selo de todas as suas obras: “Viu o SENHOR que a
maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau
44
([r;)(ra`) todo desígnio do seu coração” (Gn 6.5). Desde então, o pecado sujeitou o
homem ao juízo histórico e eterno (Mt 5.21-22; 12.36; Rm 5.16; 1Tm 5.24); por isso,
parte deste juízo já é manifesto nesta vida (Jo 3.16-18), mas não totalmente; daí a
perplexidade de alguns servos de Deus em determinados momentos da história,
45
quando o mal parece oprimir e esmagar o bem (Sl 73.1-14; Hc 1.1-17; Ml 3.14-15).

soberano, mas também é Pai; Ele é Criador, mas também é Protótipo. Em uma palavra, Ele é
o Deus da aliança” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, Vol.
2, p. 573ss.; Vol. 3, p. 187-190). (Todos esses autores entendem que a morte física foi uma conse-
quência do pecado. Eu os acompanho neste ponto). Quanto a uma posição contrária, Vejam-se: Karl
Barth, Church Dogmatics, Edinburgh: T & T. Clark, 1960, III/2. p. 596ss e Reinhold Niebuhr, The Natu-
re and Destiny of Man, New York: Scribner, 1941, Vol. I, p. 175-177. No passado, o bispo Celéstio,
discípulo de Pelágio, foi mais longe do que seu mestre, defendendo que Adão foi criado mortal e, por-
tanto, teria morrido, quer tivesse pecado, quer não (Vejam-se: J.N. D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé
Cristã: origem e desenvolvimento, São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 273; Williston Walker, História da
Igreja Cristã, São Paulo: ASTE, 1967, Vol. I, p. 243; K.S. Latourette, Historia del Cristianismo. 4. ed.
Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1978, Vol. I, p. 96). Há também, aqueles que não se
definem, como por exemplo: L.L. Morris, Morte: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia,
Vol. II, p. 1073 e Ray Summers, A Vida no Além, 2. ed. Rio de Janeiro: JUERP., 1979, p. 25.
40
Cf. L. Berkhof, Teologia Sistemática, p. 443. Ver também: Anthony Hoekema, A Bíblia e o Futuro,
São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1989, p. 107-108.
41
Cf. Geerhardus Vos, Biblical Theology: Old and New Testaments, Grand Rapids, Michigan: Eerd-
mans, 1985 (Reprinted), p. 38-40. Vejam-se também: Anthony Hoekema, A Bíblia e o Futuro, p. 107-
108.
42
Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, Vol. 3, p. 187-
190.
43
Cf. L. Berkhof, Teologia Sistemática, p. 443. Ver também: Anthony Hoekema, A Bíblia e o Futuro,
São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1989, p. 107-108.
44
“E o SENHOR aspirou o suave cheiro e disse consigo mesmo: Não tornarei a amaldiçoar a terra
por causa do homem, porque é mau ([r;)(ra`) o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade;
nem tornarei a ferir todo vivente, como fiz” (Gn 8.21).
45
Vejam-se: João Calvino, As Institutas, II.10.17ss. D.M. Lloyd-Jones, Por Que Prosperam os Ím-
pios?, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1983, 145p.
A Soberania de Deus e a Responsabilidade humana (4) – Rev. Hermisten – 28/03/14 – 9/17

As consequências, portanto, não foram simplesmente visivelmente imediatas. E-


las ainda iriam aparecer. A natureza humana foi corrompida. O juízo de Deus entrou
46
em processo de concretização, tornando a vida uma caminhada para a morte. O
processo de morte entrou em cena na vida humana. A morte, portanto, soa como al-
47
go anormal, contrária ao nosso desejo de viver. O nosso desejo vislumbra a perpe-
tuidade da vida; os nossos esforços se concentram neste ideal, enquanto que o nos-
so organismo caminha de forma cada vez mais célere para a morte. Esta é a terrível
geografia da humanidade. “O que distingue os humanos de todas as outras cri-
aturas é a autoconsciência. Sabemos que estamos vivos e que morreremos,
e não conseguimos deixar de questionar por que a vida é assim e qual é o
48
seu significado”.

2) A Morte Espiritual: Interrupção da comunhão com Deus. O pecado


gerou a quebra de nossa comunhão com Deus; isto significa a nossa morte espiritu-
al, pois a vida está em Deus, e sem comunhão com Ele estamos mortos (Is 59.2; Ef
2.1,5; Cl 2.13),49 expressando em nossa vida, paradoxalmente, as propriedades pró-
50
prias de um cadáver. “Uma vez que, de acordo com as Escrituras, o signifi-
cado mais profundo da vida é a comunhão com Deus, o significado mais
profundo da morte tem de ser a separação de Deus”, conclui Hoekema (1913-
51
1988).

3) A Morte Eterna: A interrupção eterna e definitiva da comunhão com


Deus. Os homens que morrem fisicamente, estando mortos espiritualmente, estão
mortos eternamente para Deus, não tendo mais oportunidade de arrependimento
(Hb 9.27).

Em síntese, o pecado lançou o homem num estado de miséria espiritual contra o


52
qual ele nada pode fazer (Mt 19.25,26; Gl 2.16; Ef 2.9). Isto torna todos os homens

46
Cf. Geerhardus Vos, Biblical Theology: Old and New Testaments, Grand Rapids, Michigan: Eerd-
mans, 1985 (Reprinted), p. 38-40; Steven J. Lawson, Fundamentos da Graça, São José dos Campos,
SP.: Editora Fiel, 2012, Vol. 1, p. 81-82.
47
“A Bíblia confirma nosso sentimento instintivo de que, no seu sentido mais profundo, toda
morte é anormal” (J. I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 185).
48
Charles Colson; Harold Fickett, Uma boa vida, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 20.
49
“.... as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados enco-
brem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.2). “Ele vos deu vida, estando vós mortos nos
vossos delitos e pecados (...) E estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com
Cristo, -- pela graça sois salvos” (Ef 2.1,5). “E a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas trans-
gressões e pela incircuncisão da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele, perdoando todos os
nossos delitos” (Cl 2.13). “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom
de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie” (Ef 2.8-9).
50
Cf. Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 354.
51
Anthony Hoekema, A Bíblia e o Futuro, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989, p. 108.
52
“Ouvindo isto, os discípulos ficaram grandemente maravilhados e disseram: Sendo assim, quem
26
pode ser salvo? Jesus, fitando neles o olhar, disse-lhes: Isto é impossível aos homens, mas para
Deus tudo é possível” (Mt 19.25-26). “Sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da
lei, e sim mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos
A Soberania de Deus e a Responsabilidade humana (4) – Rev. Hermisten – 28/03/14 – 10/17

dependentes única e exclusivamente da salvação de Deus manifestada em Cristo.

2.4.5. DEPRAVAÇÃO TOTAL

O homem após a Queda, prolifera o pecado, gerando filhos à sua i-


magem caída: “Viveu Adão cento e trinta anos, e gerou um filho à sua semelhança,
conforme a sua imagem, e lhe chamou Sete” (Gn 5.3). E assim se sucedeu com os
filhos de seus filhos, até à nossa geração (Gn 8.21; Sl 50.5; 58.3).

Calvino comenta com maestria:

“Ao dizer que Sete gerou um filho conforme sua própria imagem, em
parte a referência é à primeira origem de nossa natureza; ao mesmo tem-
po deve-se notar sua corrupção e poluição, as quais, sendo contraídas
por Adão, por sua queda, inundou toda sua posteridade. Se permaneces-
se íntegro, teria transmitido a todos os seus filhos o que havia recebido;
agora, porém, lemos que Sete, bem como os demais, foi maculado, por-
que Adão, que decaíra de seu estado original, a ninguém podia gerar se-
53
não seres semelhantes a ele próprio”.

O pecado, portanto, atingiu a toda a humanidade e corrompeu o homem inteiro: o


intelecto, a vontade e a faculdade moral de toda a raça humana. Por isso, o homem
está morto espiritualmente, sendo escravo do pecado (Gn 6.5; 8.21; Is 59.2; Jo
54
8.34,43,44 Rm 3.9-12,23; Ef 2.1,5; Cl 1.13; 2.13) e, nada pode fazer – e na reali-
dade nem sequer deseja – para retornar à comunhão perdida. Como disse o Senhor
Jesus Cristo: “Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é es-

justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois, por obras da lei, ninguém será justificado”
(Gl 2.16).
53
John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan:
Baker Book House, 1981 (Reprinted), Vol. I, (Gn 5.3), p. 228-229.
54
“Viu o SENHOR que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente
mau todo desígnio do seu coração” (Gn 6.5). “.... o SENHOR (...) disse consigo mesmo: Não tornarei
a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua
mocidade....” (Gn 8.21). “.... as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os
vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.2). “Replicou-lhes Je-
sus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado. (...) Qual a
razão por que não compreendeis a minha linguagem? É porque sois incapazes de ouvir a minha pa-
lavra. Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde
o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira,
fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.34,43,44). “Que se conclui? Te-
mos nós qualquer vantagem? Não, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto
judeus como gregos, estão debaixo do pecado; como está escrito: Não há justo, nem um sequer, não
há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não
há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.9-12). “.... todos pecaram e carecem da glória de
Deus” (Rm 3.23). “Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais an-
dastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que
agora atua nos filhos da desobediência; (...) e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida
juntamente com Cristo, - pela graça sois salvos” (Ef 2.1,5). “Ele nos libertou do império das trevas e
nos transportou para o reino do Filho do seu amor (...). E a vós outros, que estáveis mortos pelas
vossas transgressões e pela incircuncisão da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele, perdo-
ando todos os nossos delitos” (Cl 1.13; 2.13).
A Soberania de Deus e a Responsabilidade humana (4) – Rev. Hermisten – 28/03/14 – 11/17

cravo do pecado” (Jo 8.34) (Vejam-se: Is 64.6; Rm 6.6). Agora “O homem peca
55
com o consentimento de uma vontade pronta e disposta”. A depravação to-
tal é justamente isto: a contaminação de todas as nossas faculdades pelo pecado.
Perdemos totalmente a nossa capacidade de percepção espiritual. As cousas de
56
Deus soam como loucura (1Co 1.18-21; 2.6-8; 12-16). A nossa lógica tão hábil pa-
ra desvendar os mistérios do saber e desmantelar sofismas, se mostra totalmente
inadequada e incapaz para perceber a realidade da Palavra que nos fala de Deus e
do que somos. O homem pelo seu próprio conhecimento não pode conhecer a Deus.
É por isso que a loucura de Deus, que tanto humilha o homem em sua tentativa de
autossuficiência, é o caminho estabelecido por Deus para conhecê-Lo salvadora-
mente (1Co 1.21). “O intelecto do homem está de fato cegado, envolto em
infinitos erros e sempre contrário à sabedoria de Deus; a vontade, má e
cheia de afeições corruptas, odeia a justiça de Deus; e a força física, inca-
57
paz de boas obras, tende furiosamente à iniquidade”.

Ainda que o homem não seja absolutamente mau − não é tão mau quanto poderia
58
−, é extensivamente mau; todo o seu ser está contaminado pelo pecado. O pecado
55
João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 5, p. 16.
56 18
“ Certamente, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos sal-
19
vos, poder de Deus. Pois está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios e aniquilarei a inteligência
20
dos instruídos. Onde está o sábio? Onde, o escriba? Onde, o inquiridor deste século? Porventura,
21
não tornou Deus louca a sabedoria do mundo? Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o
conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que creem pela loucura da pregação”
6
(1Co 1.18-21). “ Entretanto, expomos sabedoria entre os experimentados; não, porém, a sabedoria
7
deste século, nem a dos poderosos desta época, que se reduzem a nada; mas falamos a sabedoria
de Deus em mistério, outrora oculta, a qual Deus preordenou desde a eternidade para a nossa glória;
8
sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem conheci-
12
do, jamais teriam crucificado o Senhor da glória” (1Co 2.6-8). “ Ora, nós não temos recebido o espíri-
to do mundo, e sim o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o que por Deus nos foi dado
13
gratuitamente. Disto também falamos, não em palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas
14
ensinadas pelo Espírito, conferindo coisas espirituais com espirituais. Ora, o homem natural não
aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se
15
discernem espiritualmente. Porém o homem espiritual julga todas as coisas, mas ele mesmo não é
16
julgado por ninguém. Pois quem conheceu a mente do Senhor, que o possa instruir? Nós, porém,
temos a mente de Cristo” (1Co 2.12-16).
57
João Calvino, Instrução na Fé, Cap. 4, p. 15. Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, O supremo propósito de
Deus: Exposição sobre Efésios 1.1-23, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p.
338. “Admito plenamente que o homem tenha ainda grandes e nobres faculdades, e que
demonstre imensa capacidade nas artes, ciências e literatura. Porém, permanece o fato
que nas coisas espirituais o homem está totalmente ‘morto’, destituído de qualquer conhe-
cimento, amor ou temor a Deus. As excelências do homem estão de tal modo entremeadas
e mescladas com a corrupção que o contraste somente põe em destaque a verdade e a
extensão da queda” (J.C. Ryle, Santidade, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 1987, p. 24).
58
"Lembremo-nos de que nossa ruína se deve imputar à depravação de nossa natureza,
não à natureza em si, em sua condição original, para que não lhe lancemos a acusação
contra o próprio Deus, autor dessa natureza" (João Calvino, As Institutas, II.1.10). Vejam-se: Con-
fissão de Westminster, VI.2; IX.3; Catecismo Menor de Westminster, Questão 18; Catecismo de Hei-
delberg, Questões 5 e 7; Cânones de Dort, III e IV; L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.:
Luz para o Caminho, 1990, p. 248; W.J. Seaton, Os Cinco Pontos do Calvinismo, São Paulo: Publica-
ções Evangélicas Selecionadas, (s.d.), p. 6-7; Duane E. Spencer, TULIP: Os Cinco Pontos do Calvi-
nismo à Luz das Escrituras, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, p. 39; L. Boettner, La Pre-
destinación, Grand Rapids, Michigan: SLC. (s.d.), p. 55-73; A.W. Pink, Deus é Soberano, São Paulo:
Fiel, 1977, p.101-119; Edwin H. Palmer, Doctrinas Claves, Carlisle, Pennsylvania: El Estandarte de la
A Soberania de Deus e a Responsabilidade humana (4) – Rev. Hermisten – 28/03/14 – 12/17

nos domina completamente. Na linguagem do profeta Isaías, “toda a cabeça está


doente e todo o coração enfermo. Desde a planta do pé até à cabeça não há nele
cousa sã, são feridas, contusões e chagas inflamadas, umas e outras não espremi-
das, nem atadas, nem amolecidas com óleo” (Is 1.5-6). “Não teremos uma ideia
adequada do domínio do pecado, a menos que nos convençamos dele
como algo que se estende a cada parte da alma, e reconheçamos que
tanto a mente quanto o coração humanos se têm tornado completamente
59
corrompidos”.

Calvino, interpretando Rm 8.7, diz:

“....nada, senão a morte, procede dos labores de nossa carne, visto que
os mesmos são hostis à vontade de Deus. Ora, a vontade de Deus é a
norma da justiça. Segue-se que tudo quanto seja contrário a ela é injusto;
e se é injusto, também traz, ao mesmo tempo, a morte. Contemplamos a
vida em vão, caso Deus nos seja contrário e hostil, pois a morte, que é a
vingança da ira divina, deve necessariamente seguir de imediato a ira di-
60
vina”.
61
O homem foi criado essencialmente como ser social. O pecado alienou-nos de
62
Deus e de nosso semelhante. Assim, o pecado, de certa forma, desumanizou-nos.
A Queda trouxe consequências desastrosas à imagem de Deus refletida no homem.
Após a queda, mesmo o homem não regenerado continua sendo imagem e seme-
63
lhança de Deus (aspecto metafísico): Apesar de o pecado ter sido devastador para

Verdad, 1976, p. 11-36; A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa: Barata & Sanches, 1895, Cap.
XX, p. 312-321; John L. Dagg, Manual de Teologia, São Paulo: Fiel, 1989, p. 126-130; Herman Ba-
vinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, Vol. 3, p. 123ss.; John MacArthur, O
Evangelho Segundo os Apóstolos, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2011, p. 81-83.
59
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 51.5), p. 431. Do mesmo modo MacArthur: “A de-
pravação (...) significa que o mal contaminou cada aspecto da humanidade – coração,
mente, personalidade, emoções, consciência, razões e vontade (Cf. Jr 17.9; Jo 8.44)” (John
MacArthur Jr., Sociedade sem Pecado, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 81).
60
João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.7), p. 266-267.
61
“O homem foi formado para ser um animal social” (John Calvin, Commentaries on The First
Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981 (Reprinted), Vol. I,
(Gn 2.18), p. 128). Em outro lugar: “O homem é um animal social de natureza, consequente-
mente, propende por instinto natural a promover e conservar esta sociedade e, por isso, ob-
servamos que existem na mente de todos os homens impressões universais não só de uma
certa probidade, como também de uma ordem civil” (João Calvino, As Institutas, II.2.13).
62
“Pelo pecado estamos alienados de Deus” (João Calvino, Efésios, (Ef 1.9), p. 32); “Tão logo
Adão alienou-se de Deus em consequência de seu pecado, foi ele imediatamente despo-
jado de todas as coisas boas que recebera” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo:
Paracletos, 1997, (Hb 2.5), p. 57). “Como a vida espiritual de Adão era o permanecer unido e
ligado a seu Criador, assim também o dEle alienar-se foi-lhe a morte da alma” (João Calvino,
As Institutas, II.1.5).
63
Podemos também chamar de aspecto "lato", "estrutural" ou "formal". (Para uma visão panorâmica
do uso destes termos, veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus, São Paulo: Editora
Cultura Cristã, 1999, p. 84-88,101).
A Soberania de Deus e a Responsabilidade humana (4) – Rev. Hermisten – 28/03/14 – 13/17

64
o homem, Deus não apagou a sua “imagem”, ainda que a tenha corrompida, alie-
nando-o de Deus. O pecado trouxe como implicação a perda do aspecto ético da
65 66
imagem de Deus. A nossa vontade, como agente de nosso intelecto, agora, é
oposta à vontade de Deus. O propósito divino de santidade para nós foi contraposto
pelo desejo pecaminoso do homem de seguir seu próprio caminho à revelia de Deus
e de Seus mandamentos. “Observemos aqui que a vontade humana é em to-
dos os aspectos oposta à vontade divina, pois assim como há uma grande
diferença entre nós e Deus, também deve haver entre a depravação e a re-
67
tidão”. A imagem que agora refletimos estampa mais propriamente o caráter de
68 69
Satanás. O homem está eticamente sob o seu domínio.

64
Vejam-se: João Calvino, As Institutas, I.15.4; II.1.5; Juan Calvino, Breve Instruccion Cristiana, Bar-
celona: Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 13; João Calvino, Efésios, (Ef 4.24), p.
142; João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 8.5), p. 169; Vol. 2, (Sl 62.9), p. 579.
65
Podemos também chamar de aspecto "estrito", "funcional" ou "material". (Para uma visão panorâ-
mica do uso destes termos, veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus, São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 1999, p. 84-88,101). “Ele é a criatura que, inicialmente, foi criada à ima-
gem e semelhança de Deus, e essa origem divina e essa marca divina nenhum erro pode
destruir. Contudo, ele perdeu, por causa do pecado, os gloriosos atributos de conhecimen-
to, justiça e santidade que estavam contidos na imagem de Deus. Todavia, esses atributos
ainda estão presentes em ‘pequenas reservas’ remanescentes da sua criação; essas reser-
vas são suficientes não somente para torná-lo culpado, mas também para dar testemunho
de sua primeira grandeza e lembrá-lo continuamente de seu chamado divino e de seu des-
tino celestial” (Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001,
p. 17-18). Vejam-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 51.5),
p. 431-432; John Calvin, Commentaries on the Epistle of James, Grand Rapids, Michigan: Baker Book
House Company, 1996, (Calvin's Commentaries, Vol. XXII), (Tg 3.9), p. 323; As Institutas, I.15.8; I-
I.2.26,27; Hermisten M.P. Costa, João Calvino 500 anos: introdução ao seu pensamento e obra, São
Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 211ss.; W. Gary Crampton; Richard E. Bacon, Em Direção a uma
Cosmovisão Cristã, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 27; Herman Dooyeweerd, No Crepúsculo do
Pensamento, São Paulo: Hagnos, 2010, p. 260-261; François Turretini, Compêndio de Teologia Apo-
logética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, Vol. 1, p. 591; Emil Brunner, Dogmática: A Doutrina Cristã
da Criação e da Redenção, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, Vol. 2, p. 88.
66
Ver: James M. Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 111. Agostinho
(354-430), comentando o Salmo 148, faz uma analogia muito interessante: “Como nossos ouvidos
captam nossas palavras, os ouvidos de Deus captam nossos pensamentos. Não é possível
agir mal quem tem bons pensamentos. Pois as ações procedem do pensamento. Ninguém
pode fazer alguma coisa, ou mover os membros para fazer algo, se primeiro não preceder
uma ordem de seu pensamento, como do interior do palácio, qualquer coisa que o impe-
rador ordenar, emana para todo o império romano; tudo o que se realiza através das pro-
víncias. Quanto movimento se faz somente a uma ordem do imperador, sentado lá dentro?
Ao falar, ele move somente os lábios; mas move-se toda a província, ao se executar o que
ele fala. Assim também em cada homem, o imperador acha-se no seu íntimo, senta-se em
seu coração; se é bem e ordena coisas boas, elas se fazem; se é mau, e ordena o mal, o
mal se faz” (Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 9/3), 1998, Vol. III,
(Sl 148.1-2), p. 1126-1127).
67
João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 8.7), p. 266-267.
68
“Moral e espiritualmente, o caráter do homem estampa a imagem de Satanás, e não a
de Deus. Ora, é precisamente isso o que a Bíblia quer dizer quando fala sobre o homem caí-
do no pecado como ‘filho do diabo’. (Jo 8.44; Mt 13.38; At 13.10 e 1Jo 3.8)” (J.I. Packer, Vo-
cábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 67). “Tampouco é absurdo dizer que
a imagem em parte se perdeu e em parte se conservou, e que no mesmo sujeito há a ima-
gem de Deus e a do diabo em diferentes aspectos” (François Turretini, Compêndio de Teologia
Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, Vol. 1, p. 588).
A Soberania de Deus e a Responsabilidade humana (4) – Rev. Hermisten – 28/03/14 – 14/17

Calvino é enfático ao retratar a depravação humana:

“Portanto, que os homens reconheçam que, conquanto são nascidos de A-


dão, são criaturas depravadas, e por isso só podem conceber pensamentos pe-
caminosos, até que se tornem nova feitura de Cristo, e sejam formados por seu
Espírito para uma nova vida. E não se deve nutrir dúvida de que o Senhor declara
que a própria mente do homem é depravada e totalmente infectada com pe-
cado; de modo que todos os pensamentos que procedem daí são maus. Se tal é
o defeito na própria fonte, segue-se que todos os afetos humanos são maus e su-
as obras cobertas com a mesma poluição, visto que, necessariamente, têm laivos
de seu original. Porquanto Deus não diz meramente que os homens às vezes pen-
sam mal; mas a linguagem é sem fronteira, circunscrevendo a árvore com seus
frutos. (...) Pois visto que sua mente seja corrompida com descaso de Deus, com
orgulho, amor próprio, ambição, hipocrisia e fraude, ela não pode proceder de
outra forma, senão que todos os seus pensamentos se acham contaminados
com os mesmos vícios. Além disso, não podem tender para um fim correto; don-
de sucede devam ser julgados como sendo o que realmente são: pervertidos e
perversos. Pois tudo quanto há em tais homens, que nos deleita sob o matiz de
virtude, é como o vinho deteriorado pelo odor do tonel. Porque (como já se dis-
se) as próprias afeições da natureza, que em si mesmas são louváveis, contudo
estão viciadas pelo pecado original, e, em razão de sua irregularidade, têm se
degenerado de sua natureza peculiar; tal é o amor mútuo de pessoas casadas, o
amor de pais para com seus filhos, e daí por diante. E a cláusula adicionada,
‘desde sua mocidade’, declara mais plenamente que os homens já nascem
maus; a fim de mostrar que, tão logo atingem a idade em que começam a for-
mar pensamentos, já revelam a corrupção radical da mente. (...) Devemos, pois,
aquiescer ao juízo de Deus, o qual pronuncia o homem como estando tão escra-
vizado pelo pecado, que não pode produzir nada são e sincero. Todavia, ao
mesmo tempo devemos recordar que não se deve lançar nenhuma culpa sobre
Deus por aquilo que tem sua origem na defecção do primeiro homem, pela qual
a ordem da criação foi subvertida. E, além do mais, deve-se notar que os ho-
mens não são isentados de culpa e condenação mediante o pretexto desta ser-
vidão; porque, embora todos se apressem para o mal, contudo não são impeli-
dos por qualquer força extrínseca, e sim pela inclinação direta de seus próprios
70
corações; e, por fim, pecam não de outro modo, senão voluntariamente”.

Por intermédio de Isaías, Deus faz uma analogia extremamente forte para ilustrar
a nossa situação. Ele toma dois animais difíceis de trato: o boi e o jumento. Mostra
que a obtusidade, a teimosia e a dificuldade de condução destes animais dão-se pe-
la sua própria natureza; no entanto, assim mesmo, eles sabem reconhecer os seus
donos, aqueles que lhes alimentam. O homem, por sua vez, como coroa da cria-
71
ção, cedendo ao pecado perdeu totalmente o seu discernimento espiritual; já não

69
Cf. Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, Vol. 3, 190.
70
John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan:
Baker Book House, 1981 (Reprinted), Vol. I, (Gn 8.21), p. 284-286.
71
"Não é arrogância humana acreditar que seja a coroa, o alvo da criação. Ela o é, não
apenas porque seja a última numa série ascendente, mas porque, pela sua natureza, foi es-
tabelecida para isso" (Emil Brunner, Dogmática: A Doutrina Cristã da Criação e da Redenção, São
Paulo: Fonte Editorial, 2006, Vol. 2, p. 99).
A Soberania de Deus e a Responsabilidade humana (4) – Rev. Hermisten – 28/03/14 – 15/17

reconhecemos nem mesmo o nosso Criador; antes lhe voltamos as costas e prosse-
72
guimos em outra direção: “O boi conhece o seu possuidor, e o jumento, o dono da
sua manjedoura; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende. Ai
desta nação pecaminosa, povo carregado de iniquidade, raça de malignos, filhos
corruptores; abandonaram o SENHOR, blasfemaram do Santo de Israel, voltaram
para trás” (Is 1.3-4).

Com o pecado, o homem tornou-se positivamente mau (Gn 6.5; 8.21; Mt 7.11) e
incapaz de:

a) Fazer o Bem: O homem é mau, por isso não pode produzir bons fru-
73
tos (Jó 14.4; Jr 13.23; Mt 7.17-18; Jo 15.4-5; Rm 3.9-18). Diante do escrutínio
perfeito de Deus, os atos de “bondade” praticados pelo homem natural, são frutos
da Graça Comum de Deus, a qual atua sobre todos indistintamente.

b) Entender o Bem: Se Deus não iluminar o homem natural, ele jamais


compreenderá a mensagem salvadora do Evangelho: nós um dia fomos salvos,
porque Deus abriu os nossos olhos para a Sua Palavra (Jo 1.11; 8.43-44; At
74
16.14; 1Co 2.14; Sl 119.18; 1Jo 4.5-6). O conhecimento que Adão e Eva passa-
ram a ter após o pecado, foi virtualmente diferente (Gn 2.25; 3.7); nada havia ali de
um “conhecimento salvador”.

Calvino (1509-1564), resume: “No tocante ao reino de Deus e a tudo quanto

72
Lloyd-Jones explora com vivacidade a analogia do texto. Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de
Deus, não o nosso, p. 43-46.
73
“Quem da imundícia poderá tirar coisa pura? Ninguém!” (Jó 14.4).“Pode, acaso, o etíope mudar a
sua pele ou o leopardo, as suas manchas? Então, poderíeis fazer o bem, estando acostumados a fa-
17
zer o mal” (Jr 13.23). “ Assim, toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos
18
maus. Não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons” (Mt
7.17-18).“Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós. Como não pode o ramo produzir fruto de
si mesmo, se não permanecer na videira, assim, nem vós o podeis dar, se não permanecerdes em
5
mim. Eu sou a videira, vós, os ramos. Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto;
9
porque sem mim nada podeis fazer” (Jo 15.4-5). “ Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem?
Não, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão de-
10 11
baixo do pecado; como está escrito: Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não
12
há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem,
13
não há nem um sequer. A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua, urdem engano, veneno
14 15
de víbora está nos seus lábios, a boca, eles a têm cheia de maldição e de amargura; são os seus
16 17
pés velozes para derramar sangue, nos seus caminhos, há destruição e miséria; desconheceram
18
o caminho da paz. Não há temor de Deus diante de seus olhos” (Rm 3.9-18).
74 43
“Veio para o que era seu, e os seus não o receberam” (Jo 1.11). “ Qual a razão por que não com-
44
preendeis a minha linguagem? É porque sois incapazes de ouvir a minha palavra. Vós sois do dia-
bo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais
se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é
próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.43-44). “Certa mulher, chamada Lídia, da cidade
de Tiatira, vendedora de púrpura, temente a Deus, nos escutava; o Senhor lhe abriu o coração para
atender às coisas que Paulo dizia” (At 16.14). “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito
de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente”
(1Co 2.14). “Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei” (Sl 119.18).
5 6
“ Eles procedem do mundo; por essa razão, falam da parte do mundo, e o mundo os ouve. Nós so-
mos de Deus; aquele que conhece a Deus nos ouve; aquele que não é da parte de Deus não nos ou-
ve. Nisto reconhecemos o espírito da verdade e o espírito do erro” (1Jo 4.5-6).
A Soberania de Deus e a Responsabilidade humana (4) – Rev. Hermisten – 28/03/14 – 16/17

se acha relacionado à vida espiritual, a luz da razão humana difere pouquís-


simo das trevas; pois, antes de ser-lhe mostrado o caminho, ela é extinta; e
sua perspicácia não é mais digna que a cegueira, pois quando vai em bus-
ca do resultado, ele não existe. Pois os princípios verdadeiros são como as
centelhas; essas, porém, são apagadas pela depravação da natureza antes
75
que sejam postas em seu verdadeiro uso”.

c) Desejar o Bem: O homem natural, além de não fazer e não entender


o bem, nem sequer o deseja. A sua vontade está sob o domínio tirânico do pecado
e, por isso, quando o homem deseja a Cristo sinceramente, já indica a ação pri-
meira de Deus: a iniciativa é sempre de Deus (Mt 7.18; Jo 3.3; 5.40; Jo 6.44,65;
76
8.43; 15.4-5).

A.A. Hodge (1823-1886), diz:

“Sua essência está na inabilidade da alma de conhecer, escolher e


amar o que é bom espiritualmente, e seu fundamento está nessa corrup-
ção moral da alma que a torna cega, insensível e totalmente adversa
77
para tudo quanto é bom espiritualmente”.

Desta forma, todas as escolhas “livres” do homem natural estão na realidade a


78
serviço do pecado, como escreveu Seaton: “Somos como Lázaro em seu túmu-
lo, mãos e pés amarrados; fomos tomados pela corrupção. Assim como não
havia qualquer lampejo de vida no corpo morto de Lázaro, assim também
79
não há ‘centelha interna receptiva’ em nossos corações”.

No entanto, parece-nos pertinente a constatação de Calvino:

“Deus, ao criar o homem, deu uma demonstração de sua graça infinita


e mais que amor paternal para com ele, o que deve oportunamente exta-
siar-nos com real espanto; e embora, mediante a queda do homem, essa
feliz condição tenha ficado quase que totalmente em ruína, não obstante

75
João Calvino, Efésios, (Ef 4.17), p. 134-135.
76
“Não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons” (Mt 7.18). “A
isto, respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não po-
44
de ver o reino de Deus” (Jo 3.3). “Contudo, não quereis vir a mim para terdes vida” (Jo 5.40). “ Nin-
65
guém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia. (…)
E prosseguiu: Por causa disto, é que vos tenho dito: ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe
for concedido” (Jo 6.44,65). “Qual a razão por que não compreendeis a minha linguagem? É porque
4
sois incapazes de ouvir a minha palavra” (Jo 8.43). “ Permanecei em mim, e eu permanecerei em
vós. Como não pode o ramo produzir fruto de si mesmo, se não permanecer na videira, assim, nem
5
vós o podeis dar, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira, vós, os ramos. Quem perma-
nece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer” (Jo 15.4-5).
77
A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa: Barata & Sanches, 1895, p. 315.
78
Veja-se: J.I. Packer, Liberdade: In: J.D. Douglas, ed. ger. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo:
Junta Editorial Cristã, 1966, Vol. II, p. 930.
79
W.J. Seaton, Os Cinco Pontos do Calvinismo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,
(s.d.), p. 8.
A Soberania de Deus e a Responsabilidade humana (4) – Rev. Hermisten – 28/03/14 – 17/17

ainda há nele alguns vestígios da liberalidade divina então demonstrada


80
para com ele, o que é suficiente para encher-nos de pasmo”.

Maringá, 28 de março de 2014.


Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

80
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 8.7-9), p. 173-174.

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